ALMANAQUE ENTREVISTA JACYNTHO LINS BRANDÃO

 


Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, Jacyntho Lins Brandão lecionou língua e literatura grega de 1977 a 2018, foi diretor da Faculdade de Letras por duas vezes e vice-reitor da Universidade. Foi também professor visitante na Universidade de Aveiro, em Portugal, na Universidad Nacional del Sur, na Argentina e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. Atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Ouro Preto e membro da Academia Mineira de Letras.

Almanaque: Para todos nós que amamos textos, letras, escritos, seu trabalho é uma referência. De certa maneira, nós psicanalistas também trabalhamos com textos antigos, de certa forma bastante arcaicos: precisamos ler — ou mesmo decifrar —, no texto que escutamos do que nossos analisantes nos dizem, camadas de texto recobertas por outras camadas. Precisamos interpretar. Mas que diabos é isso? No Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, temos estudado o tema da interpretação ou as diferentes modalidades de intepretação: entre o sentido (ou uma determinada concepção de sentido) e o fora-de-sentido (idem). Assim, para começo de conversa e de maneira bem geral, dizendo a primeira coisa que lhe ocorrer, o que os textos antigos nos ensinam sobre a ciência e a arte da interpretação? E o que as poéticas e as retóricas antigas nos ensinam hoje sobre o vasto domínio da interpretação? 

JACYNTHO BRANDÃO: O que me ocorre logo, a partir de sua provocação, é que o que os textos antigos nos ensinam sobre a “ciência e arte da interpretação” é a dificuldade. Pelo simples fato de serem antigos, mas de um modo mais agudo ainda quando se trata de nossos antigos, como são os gregos. Sempre lembro para meus alunos que, tendo-nos acostumado já com a ideia de alteridade, costumamos pensá-la só numa dimensão espacial, sincrônica, esquecendo-nos de que os antigos são também nossos outros. Se o outro sempre representa uma dificuldade, o outro que é nosso impõe dificuldades maiores.

Vou dar um exemplo prático: quando estive como professor visitante em Portugal (na Universidade de Aveiro), a primeira coisa que perguntei a um colega, logo que cheguei, foi como é que o professor se dirigia aos alunos, com qual pronome, uma dúvida que eu não teria caso estivesse num país de língua estrangeira. Fiquei logo sabendo que o tratamento normal era “você”, mas não por algum tipo de igualitarismo, como no Brasil, mas porque essa é a forma de alguém mais importante dirigir-se a alguém menos importante, o que significa que um aluno jamais diria “você” a um professor — aliás, o torneio para eles é “o professor-doutor”. Entre o reles você e as formas de tratamento solenes, há outras gradações: se formos colegas, mas não tão íntimos para usar “tu”, um modo intermediário é usar o nome daquele com quem se fala — como numa vez em que cheguei a Coimbra e minha colega de lá perguntou-me: “o Jacyntho fez boa viagem”?. Então, é a mesma língua, mas não inteiramente própria, algo como minha língua outra. Manusear essa língua sem impropriedade ou ridículo acaba sendo mais difícil do que falar uma língua estrangeira, que sempre se fala como outro, tanto que minha solução foi dizer a meus alunos, no primeiro dia de aula, “vou falar brasileiro”, o que, reconheço, era um modo de me resguardar de minha falência em falar “português” assumindo minha alteridade mesmo no espaço de minha língua materna, restando então perguntar sobre o que seria “materno” no âmbito da língua (de um modo meramente lúdico, me ocorre que talvez o “português” seja meu idioma paterno, ao “brasileiro” cabendo a parte materna, a relação entre os dois sendo como disse Caetano Veloso: “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões” etc.).

Acho que são esses afastamentos que as diferenças entre outro e outro provocam que geram as dificuldades que geram a necessidade ou o desejo de interpretação. Eu não quero dizer diferença entre eu e o outro, porque, dependendo das ideologias, um dos dois seria tomado como referência, mas sublinhar esse “outro e outro” que deixa as coisas um tanto mais complicadas — “outro e outro” sendo como se diz em grego o que nós dizemos em português “um e outro”: állos kaì állos ou, como mais ênfase na diferença, héteros kaì héteros. Acho que não seria absurdo pensar que todo texto é uma alologia, enquanto é do outro, ou uma heterologia, porque do diferente. E por isso que todo texto é sempre difícil.

Chegando à última parte de sua pergunta: eu gosto do esforço de discernimento sobre os modos de ler um texto feito por Tzvetan Todorov no capítulo “Ler”, do livro Poética da prosa. Na ordem em que ele os apresenta (vou deixar de lado o último), o primeiro modo é constituído pela “leitura regressiva”, que se interessa pelo que há antes do texto, o autor, sua época etc., acreditando que nisso estaria uma chave para a compreensão. O segundo modo é o “comentário”, que se volta inteiramente para os elementos do próprio texto, com escrúpulo de introduzir nele algo estranho, até o limite das leituras parafrásticas. O terceiro modo é a “leitura poética”, que busca a compreensão do texto tendo em vista as categorias a que ele pertence, como os gêneros e modos, tecendo, portanto, uma leitura entre texto e teoria. O quarto modo é a “interpretação”, que produz um outro texto como resultado do encontro entre texto e leitor (ou ouvinte, pois uso “leitor” no sentido de recebedor, “texto” abrangendo tanto textos orais quanto escritos). Mesmo que Todorov chame de interpretação apenas um dos modos que apresenta, eu acredito que todos devem ser mobilizados na interpretação em sentido amplo, ou seja, estou querendo dizer que ler é sempre interpretar, porque ler implica sempre a relação texto-leitor que produz um novo texto. Os outros níveis, contudo, são importantes para controlar essa produção, que não pode se entregar ao aleatório, gerando interpretações equivocadas.

Maria Luiza Ramos contava um caso curioso a propósito do poema de Manuel Bandeira que começa assim “Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável)/ talvez eu tenha medo. / Talvez sorria, ou diga: / – Alô iniludível!”, dando o poema em aula e pedindo que os alunos interpretassem, um deles afirmou que a “Indesejada das gentes” era a sogra! É claro que, tendo em vista o poema, se trata de uma interpretação equivocada, que leva de “morte” a “sogra”, embora essa própria interpretação possa ser interpretada justamente no que tem de desviante — e estaria perfeita, por exemplo, num contexto cômico ou satírico, mas, na situação em que se deu a professora que ensina como interpretar, auxiliada pela teoria, apontaria um desvio de gênero, porque não se trata de comédia, etc.

Nós poderíamos pensar que o que pretendem as poéticas e retóricas antigas é tentar entender a produção do texto não propriamente para codificá-la, mas para exercer algum tipo de controle sobre sua recepção. Nesse sentido, a definição de tragédia por Aristóteles é modelar: depois de falar sobre com que ela se realiza (com palavras, música e espetáculo), o que encena (histórias elevadas) e como (através de atores), a definição atinge o ponto mais importante ao declarar que o efeito da tragédia, pela produção de medo e piedade, é a purificação (catarse) dessas emoções. Não basta, portanto, identificar os elementos próprios do gênero, seu efeito sendo o que faz com que seja isso ou aquilo. Esse modelo de definição poderia ser aplicado a outros gêneros — e o ponto de chegada, interessante para exercícios de elucubração de nossa parte, seria relativo aos efeitos: qual o da comédia? qual o da épica? qual o do romance? qual o das novelas da Globo? qual o das séries de detetive da Netflix? A codificação de que a tragédia deve produzir a catarse de medo e piedade tem um efeito explicativo, sem dúvida, mas também um efeito prescritivo em termos da recepção ao afirmar que o efeito da tragédia não pode ser o riso, ou a catarse de emoções através do riso, talvez porque medo e piedade implicam empatia, enquanto, para rir, é preciso distanciamento. São os efeitos descontrolados que atormentavam Platão a ponto de, mesmo admitindo que os poemas são belos e os poetas homens admiráveis, em especial Homero, não admitir sua presença na sua República.

A retórica também se elabora da perspectiva da produção-recepção, com um agravante com relação à poética: ainda conforme Aristóteles, nas suas duas modalidades políticas, a retórica da assembleia e a do tribunal, o efeito visado é o voto, decidido pelos membros da assembleia ou do júri a partir dos discursos que ouvem, ou seja, da interpretação do que lhes parece mais verossímil. Esse é um exercício de interpretação bastante radical, em vista do pouco tempo para firmá-la e de seu caráter irrevogável, ainda conforme Aristóteles, sendo por isso que ele afirma que os juízes erram muito (na Atenas democrática, os juízes eram os membros do júri, não havendo juiz profissional).

Então, modalizando esse conceito de “erro” de interpretação a que estamos sujeitos o tempo todo, é bom lembrar que errar é vagar e que erro é também errância, essa errância parecendo ser algo inerente aos discursos, na distância entre quem fala e quem ouve ou entre quem escreve e quem lê. É por errar sobre as novelas de cavalaria que D. Quixote se torna cavaleiro errante: e que erro genial! Todo leitor/recebedor é um tanto errante, talvez porque todo texto induza a isso. Por isso toda interpretação é difícil. Talvez isso decorra de uma pretensão de controlar os erros.

A.: Em seu percurso, você foi da Grécia à Mesopotâmia. O que esses deslocamentos, cada vez mais ao leste, cada vez mais para fora da Europa, nos ensinam?

J.L.B. Acho que essa pergunta me permite emendar a resposta com o que eu dizia antes sobre a errância. Eu já falei de quando estudei hebraico (e fui colega de seu pai). Meu interesse era muito linguístico — ter contato com uma língua que não fosse indo-europeia, o curso sendo de hebraico moderno — mas havia também um interesse cultural, que era menos chegar na Bíblia hebraica e mais nos comentários rabínicos, que praticam uma forma de texto diferente, em que a errância funciona como um elemento estruturante. Vou dar um exemplo tomado do tratado Bereshit Rabah: sobre a árvore do paraíso, a partir da pergunta “qual foi essa árvore da qual Adão e Eva comeram?”, segue a sucessão de pareceres: Rabi Meir disse: era trigo…; Rabi Samuel ben Isaac compareceu diante de Rabi Zeira e perguntou: é possível que ela seja trigo?… pois está escrito ‘árvore’; Rabi Zeira explicou: plantas de trigo cresciam algo como cedros do Líbano…; Rabi Judah ben Ilai disse: eram uvas…; Rabi Aba de Acco disse: era cidra…; Rabi José disse: eram figos…; mas de qual espécie de figueira? Rabi Abin disse: era a berath sheva…; Rabi Josua de Siknin disse em nome de Rabi Levi: era a berath ali…; Rabi Azariah e Rabi Judah ben Simon disseram, em nome de Rabi Joshua ben Levi: Deus nos livre, o Único-Santo-Abençoado-Seja-Ele não expôs ao homem a natureza dessa árvore e não a exporá no futuro. E assim termina a passagem. Para cada uma das interpretações há uma explicação (que deixei de lado), todas usando o método hermenêutico de confrontar o texto com o próprio texto, isto é, explicar uma passagem com outra da própria Bíblia. Mas o que quero ilustrar é como o acúmulo de opiniões configura uma sintaxe errante, nesse caso chegando ao gran finale de que Deus não revelou a natureza da árvore nem a revelará no futuro, o que faz parecer que toda elucubração anterior era vã, mas a prova de que não era está em que se conserva como um conjunto de interpretações tão valiosas quanto a última.

Eu diria que meu caminho para o Oriente, que é uma errância, foi preparado pelos gregos, que, da Antiguidade até hoje, sempre foram e são muito orientais, as descobertas dos textos cuneiformes do Oriente Médio escancarando isso e derrubando aquela ideia do “milagre grego” brotado do nada. O que me atrai na história das culturas são a contaminações, os processos de troca mútua e seus resultados, então, para mim, é muito mais atraente uma visão dos gregos não como uma espécie de princípio inaugural (e puro) de algo (o Ocidente), mas como parte de todo tipo de contatos e confluções no espaço do Mediterrâneo oriental. Mais interessante isso se torna porque, ainda que redescobertas no século 20, os próprios gregos nunca se furtaram a referir suas relações com o Oriente: conforme Heródoto, foram os fenícios que inventaram o alfabeto, Tales aprendeu geometria no Egito, onde também Pitágoras foi iniciado nos mistérios etc. — ao que se pode acrescentar que, segundo Luciano, o próprio Homero não seria grego, mas babilônio, não se chamando Homero, mas Tigranes, e tendo recebido aquele nome só depois de ter sido tomado como refém pelos gregos, pois em grego ‘refém’ se diz hómeros. Mesmo que essa explicação, dada pelo próprio Homero, esteja num texto ficcional (mais exatamente um texto de autoficção), não deixa de ser sugestiva enquanto faz do fundamento da Grécia (de seu educador, como afirmava Platão) nada menos que um bárbaro e, mais ainda, conhecido não por seu nome próprio, mas por um apelido que, na verdade, era só um nome comum. Veja-se quanta errância!

O trato mais íntimo com a literatura babilônica só iniciei há pouco tempo, faz uns dez anos, implicando estudar a língua acádia, que é da mesma família que o hebraico (e o aramaico e o árabe), para traduzir o poema de Gilgámesh, fazer traduções sendo também um investimento a que eu tinha me dedicado pouco até então. Fazer essa tradução foi uma experiência de alteridade muito intensa, pois eu não queria domesticar a diferença que um texto assim apresenta, enquanto antigo e enquanto “oriental”. Quando o cuneiforme foi decifrado e se começou a conhecer a produção em acádio, a tendência foi classificar os textos em categorias reconhecidas na nossa experiência. Assim, Gilgámesh foi identificado com Nemrod, personagem referido do Gênesis bíblico, e o poema sobre ele foi classificado como epopeia, que é um gênero grego. Gregos e hebreus serviram de critério para a recepção dessa literatura muito mais antiga que ambos, nesse processo de classificação por retrospectiva, que constitui ao fim e ao cabo uma tentativa de controle da recepção. O poema intitulado Enuma elish, para falar de um outro exemplo, recebeu o título de Relato caldeu de Gênesis, que já de início o relaciona com o livro bíblico, embora seja, em sua maior parte, uma teogonia, mais próxima de Hesíodo que da Bíblia.

Não quero dizer que essas aproximações não sejam legítimas e se façam até naturalmente, só desejo sublinhar que uma recepção que se pretende mais cuidada deve ter consciência delas ao aproximar-se do diferente, para não reduzir tudo à mesmice do mesmo. Como a tradução implica fazer justamente a passagem de uma língua outra à língua própria, a cada passo impõe a questão de como não domesticar inteiramente o outro. Vou dar um exemplo: há no poema de Gilgámesh uma expressão difícil de verter, ana dūr dār, porque dūru significa ‘para sempre’ e dāru ‘eternidade’, havendo aí um jogo iterativo, algo como ‘pela eternidade de para sempre’, sublinhado também pela aliteração sonora (ana é a preposição). A solução dos tradutores vai de “for all eternity” (Andrew George), que dá conta do sentido, mas perde o estilo, a “por los siglos de los siglos” (Joaquín Sanmartín), que preserva o estilo, mas lança mão de um lugar comum excessivamente marcado (a alguém que diz ‘pelos séculos dos séculos’ só falta acrescentar ‘amém’!). Demorei um tanto a achar minha solução, que no final me agradou bastante em sua simplicidade: “de era em era”, tanto porque mantém o estilo quanto porque usa termos neutros e respeita uma concepção diferente de organização do tempo, uma organização por eras, como usavam os babilônios, as principais sendo a era antediluviana e a pós-diluviana.

Eu gostaria de que o acesso a essa produção médio-oriental, sobre a qual o fato de ser mais antiga que a de hebreus e gregos lança naturalmente um ar de respeitabilidade, representasse uma experiência forte para o leitor, experiência de contato com a diferença provocando mudanças de percepção do mundo. Basta lembrar que essa produção admirável esteve por séculos enterrada nos desertos do Iraque, que é lá que ela foi escrita, naquele lugar que o Ocidente olha com desprezo. Há um poeta iraquiano contemporâneo, Khalid Al-Maaly, que põe em xeque essa mentalidade ao intitular seu livro Eu sou da terra de Gilgámesh (o livro foi traduzido do árabe para o português por Mamede Jarouche). Isso é importante para evitar que se idealize esse Oriente descolando-o de onde ele se encontra e continua, como em geral aquela Grécia fundadora do Ocidente terminou por ser algo fortemente idealizado, saqueado dos próprios gregos, como se eles não se encontrassem e continuassem lá.

A.: Recentemente, em 2018, você escreveu um belíssimo artigo sobre uma citação e um lugar comum de Lacan (agalma e sicut palea). Mas tenho aqui, diante de mim, um livro que você organizou em 1984, intitulado O enigma em Édipo Rei, que foi o tema do I Congresso Nacional de Estudos Clássicos. Você lembra que Édipo Rei continua sendo “inspiração e ponto de partida para a arte e a ciência” e lembra a equivalência freudiana entre o Oedipouskomplex (complexo de Édipo) e o Kernkomplex (complexo nuclear) afirmando, com Freud, que o “Édipo é o nosso cerne”. Não sem nos lembrar de nosso dilaceramento, da dimensão do enigma e, um pouco depois, da polifonia… Fala-se muito, desde algumas décadas, da necessidade de ir além do Édipo. Em que ponto estamos? Fomos além? Se você me permite lembrar uma expressão que aprendi em um de seus cursos, somos, realmente, “pós-antigos”? Por outro lado, que papel a psicanálise tem ou teve, se é que teve, no seu percurso?

J.L.B.: Essa pergunta tem tantos aspectos que nem sei se consigo respondê-la. Então vou tomar o que me parece o fio que os amarra, que é essa perspectiva da temporalidade e da transmissão da cultura. Acho que isso está inscrito tanto no uso de “ágalma” e “sicut palea”, por Lacan, quanto no uso de Édipo por Freud, algo que se retoma e se ressignifica, a cultura sendo esse procedimento constante de ressignificação. Enquanto está viva isso acontece, de modo que cada etapa tem seu pré e seu pós. Nesse sentido, torcendo um pouco sua pergunta, poderíamos dizer que a psicanálise é muito pós-antiga. Estou querendo dizer com isso que é claro que a descoberta do inconsciente é um salto espetacular, que muda nossa percepção de mundo, mas também que ela resulta de uma acumulação de experiências e conhecimentos, que é o antigo desse pós.

Eu conheço pouco de psicanálise, embora ser professor de grego me tenha permitido conviver com psicanalistas, e eu gosto especialmente de tratar de assuntos encomendados, pois sempre comportam um desafio, mas sempre tive o cuidado de ficar na esfera de minha competência. Nisso, aprendi como é diferente falar das coisas em lugares diferentes, pois os diálogos que isso gera são diferenciados. É claro que há textos de Freud que são obrigatórios para um helenista, como o primeiro, sobre a interpretação de sonhos, em que Édipo aparece, de par com Hamlet. Gosto muito de “O tema dos três escrínios”, da análise da Gradiva de Jensen, para lembrar de alguns textos. Mas não me aventuro nos trabalhos mais especializados, interessando-me mais pelo “Freud pensador da cultura”, como no título do livro do Renato Mezan.

A.: Finalmente, o que Jacyntho leitor (filólogo, helenista, paleógrafo) ensinou a Jacyntho escritor (ficcional) sobre a verdade e a ficção? 

J.L.B.: Essa é uma questão de longa duração que nos vem dos gregos. As Musas, que são deusas e que, segundo uma concepção ingênua, deviam falar sempre a verdade, começam o poema que ensinaram a Hesíodo sobre a origem dos deuses (a Teogonia) com a afirmativa de que “sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autênticas/ e sabemos, quando queremos, proferir verdades”. Esse é um ponto de partida perturbador: deusas que sabem mentir e só em alguns momentos dizem verdades — mas os deuses gregos sabem fazer isso. Acho que isso mostra como a verdade sempre se apresentou, entre os gregos, como problema, o único indício a respeito dela sendo a verossimilhança, que é o que as Musas dizem que fazem normalmente, porque não está na esfera delas a simples mentira, mas essa mentira semelhante a coisas autênticas (pseúdea etymoisin homoîa). É por isso que é preciso sempre testar os discursos, porque não se conta com algo externo — um deus ou um rei — que avalize a verdade do discurso. Na filosofia, na história, na retórica esse foi um motor constante: testar o lógos para problematizar as verdades aparentes, muitas vezes jogando lógos contra lógos, como na assembleia e no tribunal.

Esses discursos sobre discursos (filosofia, história, retórica) têm como horizonte a poesia, que era o que havia antes de todos, distinguindo-se dela porque postulam certos modos de verdade. Luciano de Samósata, que é o autor que foi assunto de meu doutorado, tem uma perspectiva interessante. Segundo ele, antes de tudo, um escritor (se quisermos, um intelectual) deve ser amigo da verdade, autônomo, sem pátria, sem rei, pois de outro modo não gozaria de liberdade intelectual; mas quem goza de “liberdade pura” é só poeta, pois a liberdade do historiador tem seu limite nos acontecimentos que ele narra, a liberdade do retórico tem seu limite nas situações em que ele profere seus discursos, e a liberdade do filósofo tem seu limite na concordância do que ele diz e do que ele faz. Então, só poetas, pintores e sonhos gozam de liberdade pura, essa expressão remetendo ao vinho que os bárbaros tomavam puro, mas os gregos costumavam tomar misturado (ou temperado) com água. Filósofos, historiadores e rétores tem, portanto, uma liberdade temperada; poetas, como pintores e sonhos, a pura liberdade, a qual, por ser pura, faz supor que seu discurso seja mais inebriante que os outros.

O ficcionista faz isso. Convida o leitor (ou ouvinte) para mergulhar num lógos que ele conduz baseado no que chamamos de verossímil, mas os gregos chamavam de eikós, semelhante, adequado, conveniente — o que faz com que a “verossimilhança” (para usar o nosso termo) dependa não exatamente de um verdadeiro a que ela se assemelhe mais ou menos, mas à cena discursiva com que ela convém. O princípio que orienta a ficção seria então um princípio de consequência (akolouthía). Como exemplifica Luciano, se um poeta afirma existir um homem com dez braços e dez pernas, então ele será consequente se mostrar como esse homem pode lutar com dez inimigos ao mesmo tempo, brandindo dez lanças etc. É interessante que é justamente por isso que Aristóteles afirma que a poesia é mais filosófica que a história, pois esta, a história, se ocupa do particular, o que aconteceu, enquanto o poesia se ocupa do que poderia acontecer, ou seja, do universal, de acordo com regras de necessidade e semelhança. Mas Luciano, em Das narrativas verdadeiras, diz que escreve não sobre o que aconteceu nem sobre o que poderia acontecer, mas sobre o que não poderia acontecer, ou seja, ele avança mais uma etapa enveredando pelo inverossímil. Isso depende do pacto que ele celebra explicitamente com o leitor logo de saída: o confessar que tudo o que dirá é mentira, só numa coisa sendo verdadeiro, ao confessar que mente.

Para não me alongar mais, explorar as formas de ficção talvez nos ensine mais sobre o verdadeiro que muitos tratados, considerando que, conforme o Sócrates de Platão (portanto, uma personagem), a busca da verdade se assemelha a crianças perseguindo andorinhas: quando estão a ponto de pegá-las, elas escapam. Não quer isso dizer que não haja nada de verdadeiro, pois o mundo está aí lançado sob nossos olhos, em sua verdade crua, e somos seres no mundo que não nos fornece de antemão a razão das coisas, mas significa que alcançar essa verdade mundana é difícil, o que nos leva de volta ao tema da dificuldade. São desafios que a linguagem nos permite encarar. E, de novo com Platão, vale a pena lembrar que “as coisas belas são difíceis”. Falar de dificuldade leva a isto: a falar de beleza.

Entrevista feita por Gilson Iannini.