Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line: Em seu texto “Quando um sonho desperta Um corpo”,  há um ensinamento em que clareza e beleza se combinam em uma transmissão. Cito abaixo a frase em questão, e peço que nos fale como o analista pode chegar a esse ponto de “precisão” que você disse e que marca a fineza de uma clínica lacaniana:

Se o sonho, para além da sua história, abriga também um núcleo autista de gozo, é então necessário poder especificar na experiência o momento clínico que implica a passagem do campo do Outro do significante para o corpo como Outro. (VENTURA, 2020, p. 10)

Em outras palavras, como podemos situar essa distinção entre o inconsciente “mentiroso” e o inconsciente real na interpretação dos sonhos que ocorrem na prática analítica?

Oscar Ventura: Obrigado por esta pergunta, porque me permite continuar interrogando a função que os sonhos desempenham na prática clínica. E permite também articular diferentes momentos da obra de Freud e do ensino de Lacan sobre a possibilidade que os sonhos oferecem de produzir uma retificação na economia do gozo. Porque, na verdade, o que interessa afinal é como dar conta do poder que alguns sonhos têm de modificar a própria posição do sujeito em relação ao sonho sonhado.

Nem todos os sonhos que se desenrolam durante um tratamento dão essa possibilidade; talvez os mais interessantes sejam aqueles em que se pode localizar uma destituição do analista na transferência. Isto é, se o sonho já implica a transferência, como apontou Freud, se o relato do sonho está dirigido ao Outro. Além disso, podemos colocar desta forma: os sonhos podem permitir uma evaporação do Outro.

Provavelmente, temos o paradigma desse deslocamento do Outro com o sonho da Injeção de Irma, “o sonho dos sonhos”, como Lacan o chama no Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Ali, o que em última instância permanece a céu aberto, para Freud, é um real que se encarna no abismo e no mistério do corpo, um furo que suga toda pretensão de sentido que lhe poderia ser concedida. E isso não deixou de ter consequências para o próprio Freud como sonhador e como analisante. Não só lhe foi revelada aquela zona indecifrável do sonho, limite de qualquer interpretação possível, mas também inaugura aquele espaço insondável, no qual se funda a sexualidade humana, incluindo aquele “continente negro”, como Freud o chamava, para ilustrar o enigmático da sexualidade feminina. A elisão do sentido produzida pelo umbigo do sonho deixa fora de jogo a Bedeutung do falo enquanto tal, e esse movimento dá conta da presença de um gozo que não tem nenhuma escrita no campo das representações, sejam elas imaginárias, sejam simbólicas.

Sempre que nos referimos ao umbigo do sonho, a essa diluição das representações que transcorre no próprio lapso do sonho, pode-se notar, por um lado, a presença do limite de um real que ocorre mais além de qualquer significação, e, por outro, uma resposta do corpo, que de uma forma ou de outra é o único suporte para a experiência de um gozo cuja fixação é inexpugnável, e que dá conta, ao mesmo tempo, tanto da vida que ali pulsa, quanto da morte que também abriga.

O relato de um sonho sob transferência tem, portanto, duas dimensões. Por um lado, a sua estrutura significante, o que o analisante diz sobre ele, o conto que o sonho conta, o cenário que constrói, enigmático por vezes, outras mais claro. É a parte de verdade que o sonho veicula em seu estatuto de inconsciente transferencial, é um conto do Outro e para o Outro. E, nessa direção, a verdade mentirosa, mas necessária, se faz ouvir no nível do uso que o sujeito faz do que para ele foram as formas pelas quais o significante mordeu e debilitou sua satisfação, sempre corroída pelo parasita da palavra e que produz um sintoma, o de cada um. Nesse nível, o que constatamos é que o próprio relato do sonho já é uma interpretação, alimenta um sentido novo que corre o risco de se metonimizar num infinito estéril, a repetição é o obstáculo que retorna continuamente. Nessa conjuntura, os atos do analista visam corroer o aparato da fantasia, coração da máquina interpretativa e da repetição a que submete o sujeito, também solidária com a estrutura da fantasia.

Agora, no relato de um sonho, por outro lado, também podemos encontrar seu ponto de furo, seu abismo, a garganta de Irma, por exemplo. É o ponto no qual o significante se esgota e surge a possibilidade de o corpo responder a esse inominável com seu acontecimento. Encontrar esse momento, o Kairós do sonho, se podemos dizer assim, é a possibilidade que podemos oferecer à transferência para produzir a disjunção necessária entre saber e gozo. É o próprio corpo do analista, colocado a serviço do corte, que pode permitir ao sujeito percorrer esse território onde a ausência de sentido faz ressoar outra coisa, que pode ir um pouco mais além do laço que faz o significante se solidarizar com a ruína da repetição.

A.O.: Ainda nesse mesmo texto você trata de um despertar, ligado a um significante novo, fora do sentido, que produz também um acontecimento de corpo, no caso, uma gargalhada que toma todo o corpo. Parece ser necessário consentir com esse significante novo e seu estatuto de fora do sentido para que esse encontro com algo do real se efetive. Em “Rumo a um significante novo”, Lacan (1977/1998, p. 11) aponta o chiste e a poesia como formas de fazer ressoar o fora do sentido que desperta e, em A terceira, ele diz: “O significante não é a letra. O significante se abre para outros – e a letra é morta, ou, o que de mais vivo há, pois dá acesso ao real.” (LACAN, 1974/2023, p. 57). Seria a partir de um significante novo que se conseguiria vivificar a letra morta do sintoma, tornando-o sinthome? Como você percebe a função do chiste e da poesia numa clínica orientada para o real?

O.V.: Bom, há muitas perguntas na questão, daria para escrever um artigo inteiro, uma investigação… Mas podemos reduzi-las um pouco a questões fundamentais. Vou começar fazendo uma pequena pontuação sobre o sinthoma. Às vezes tendemos a nos precipitar sobre as contribuições fundamentais que Lacan nos deixou em seu último ensino. E é verdade que esse último ensino é fundamental para enfrentar a prática clínica contemporânea. A potência clínica que daí emerge nos permite às vezes captar algumas questões muito rapidamente, por vezes logo no início da experiência, inclusive durante as entrevistas preliminares. Por exemplo, há casos em que podemos vislumbrar a partir do relato, e para além da estrutura clínica, incluindo o diagnóstico, qual é a interpretação que o próprio sujeito tem do seu sintoma, qual é também a interpretação que ele tem do mundo, se o sujeito tem ou não uma fantasia consistente, se a estrutura da fantasia é mais permeável, talvez mais fraca, ou se ele não foi capaz de construir esse aparato de interpretação que é a fantasia. Ou seja, às vezes podemos verificar com certa antecipação qual é a relação que um sujeito estabelece com o real, e qual o tipo de defesas ele articulou para amortecer esse real que o habita.

Mas isso não nos autoriza a um procedimento repentino de orientar a experiência para o imediatismo técnico, se assim posso dizer. É necessário tempo para que um sujeito estabeleça algum tipo de acordo com o impossível, embora à orientação do ato analítico não falte uma orientação para o real em hipótese alguma. Digo isso porque é importante enfatizar, creio, que o último ensino de Lacan não dispensa o primeiro. Posso dizer de outra forma: é necessário que a verdade mentirosa se desdobre, que se produza a construção de um mito individual, que a repetição seja escandida, para decantar, até onde o sujeito consinta, as estratégias que ele concebeu para se defender, para dizê-lo rapidamente, da ausência de relação sexual.

Então, a passagem do sintoma ao sinthoma – quando isso ocorre – se estabelece na medida em que um tratamento se desenrola ao longo do tempo. Além disso, a emergência de um significante novo, mesmo que seja contingente, ainda assim necessita que o sujeito, de alguma forma, esteja decidido a fazer da incerteza um parceiro; é uma condição para que a irrupção da contingência possa escrever-se.

O sinthoma implica uma forma de funcionamento subjetivo, coloca a serviço da vida pelo menos uma parte do gozo que parasita a existência. Seria interessante clinicamente não confundir o sinthoma com a raridade de cada um, com um traço peculiar, mas antes apreender que o sinthoma implica uma lógica borromeana, onde o gozo vai mudando, e é na medida em que um sujeito está advertido da irredutibilidade desse gozo que pode inventar a possibilidade de colocá-lo a serviço de outra coisa, alguma coisa que não seja sempre solidária com o autismo subjetivo que o gozo implica.

Seria necessário, talvez, diferenciar duas dimensões da letra, para esclarecer o que é letra morta e o que não é – e que seria letra viva. E para isso é importante colocar a lupa sobre o deslocamento que Lacan vai progressivamente operando do sujeito ao falasser e do inconsciente a lalíngua.

Por um lado, temos um movimento que está inscrito muito cedo no ensino de Lacan, que é a mortificação do corpo, aquela mordida do significante no vivente de que fala Lacan. Ou seja, a desvitalização que o simbólico imprime sobre o corpo e que se solidariza com a letra morta do sintoma, deixando à deriva o mais de gozar que se aninha no próprio núcleo do sintoma.

Na transferência, a interpretação tem um alcance sobre a letra morta, graças à operação do sentido, à decifração como tal. Essa operação transferencial não se confunde com o aparecimento de um significante novo. Não constitui um arranjo para o funcionamento que o sujeito estabeleceu com o sintoma, o sentido, que é infinito, é o obstáculo aqui.

É necessário ter o conceito de lalíngua como pano de fundo para dar todo o seu alcance a um significante novo, porque aí se trata dessa outra dimensão, de um encontro diferente sobre o corpo, que é logicamente anterior, inaugural, se assim podemos dizer, da relação do sujeito com a vida. Nessa dimensão, não se trata da mordida do significante na carne, mas sim do impacto de lalíngua sobre o corpo, que não imprime uma letra morta, mas um afeto que marca o tom vital de cada um. Imprime uma letra inédita e exclusiva. Um significante novo tem a possibilidade de emergir graças ao equívoco de lalíngua que cada um pode produzir na experiência analítica. E esse significante cai da cadeia, não se liga a nada, nenhum S2 pode ser acoplado a esse S1. E é na exploração desse litoral, entre lalíngua e o corpo, onde um gozo pode ser articulado como uma letra, por minúscula que seja, sempre é insensata, ou seja, fora do sentido. É a partir daí que se pode estabelecer um funcionamento orientado mais pelo afeto que fixou a experiência inaugural de gozo do que pelo significante que tenta captá-lo. Provavelmente assim se pode instalar na subjetividade uma lógica do sinthoma que aspire um pouco mais à relação com a vida do que ao parasitismo da carne assassinada pelo logos.

Por fim, muito brevemente, a função do chiste e da poesia na experiência clínica. Provavelmente, o que mais nos interessa tanto no chiste como na poesia é a sua relação com a ressonância que produzem no corpo. Ou seja, o que podem escrever de esvaziamento, o que já não se pode mais metaforizar ou metonimizar. Do lado do chiste, poderíamos dizer que ele não responde exatamente à mesma lógica das demais formações do inconsciente, há aí possibilidades plurais de invenções de significantes novos que coagulam o sentido, mesmo que efêmero, para dar lugar a um eco no corpo, sem que o recalcamento, digamos assim, funcione como obstáculo. Nesse sentido, talvez fosse lícito dizer, em termos freudianos, que o chiste é uma pequena sublimação, certamente necessária para amenizar a existência. A irrupção do chiste na transferência é sem dúvida um momento privilegiado, pois permite um fechamento, um lapso de evaporação do sentido, anterior à emergência do chiste como tal, detém-se a significação para dar lugar a um breve acontecimento do corpo, o riso, por exemplo, às vezes a gargalhada, enfim, nada mais a dizer, fim da sessão.

No que diz respeito à poesia, digo coisas muito sintéticas. Por um lado, há a poesia que se lê, incluindo aquela que é citada, aquela que pode ser recitada, ou seja, a poesia do Outro, que sem dúvida tem um alcance de significação pessoal, e que também pode inspirar um impedimento do relato anódino da história. Por que não pensar a poesia como uma possibilidade de corroer, de furar o suposto bom senso da gramática, de explodir a pontuação, de favorecer a boa forma da ausência, de fazer emergir o novo com palavras que não cabem mais ao cancelamento de um sentido, seja ele seu, seja coletivo, comum?

Por outro lado, podemos perguntar-nos sobre uma outra dimensão da poesia, aquela que pode destilar a experiência de uma análise, aquela que pode brotar de cada encontro com um real que as palavras nunca chegarão a nomear como tal. Se, como Jacques-Alain Miller nos anuncia com todo o rigor, o mais fundamental da língua é que ela se cria ao falar, então nos resta a possibilidade de fazer esse esforço de poesia que tantas vezes citamos, como uma das possibilidades mais autênticas dos efeitos que um tratamento analítico pode produzir.

A.O.: Por fim, gostaríamos de recuperar um trecho do artigo de nosso colega Ram Mandil – que está publicado nesta edição – no qual ele se refere ao diálogo entre Stephen Dedalus e seus colegas em O retrato do artista quando jovem.[1] Nesse diálogo perturbador para Stephen-Joyce, Mandil (2024, s/p) se interessa em destacar como esse encontro “com a inconsistência do Outro”, “com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da pergunta sobre a resposta correta para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss. E Mandil conclui que essa passagem pode nos ajudar a entender o que seria ler um sintoma. Poderíamos pensar que ela também condensa algo que nos ilumina sobre o que estaria em jogo ao final da experiência psicanalítica?

O.V.: É uma alegria me deparar com o texto do Ram e poder conversar um pouco com ele aqui. Não poderia estar mais do que de acordo  com o recorte que Ram faz do Retrato de um artista quando jovem. Ele é uma orientação para captar mais claramente o que significa ler um sintoma, um sintagma que pareceria ser compreendido facilmente à primeira vista. E, ainda assim, envolve toda uma complexidade.

Ler um sintoma implica, em primeiro lugar, um esforço para nos livrarmos daquilo que convencionalmente chamamos de ler, ou seja, da lógica do sentido implícita na leitura em termos amplos, isto que pensamos compreender quando ouvimos, ou quando lemos em sentido estrito, algum texto, por exemplo. Esperamos sempre que a retroação nos conduza, graças ao ponto capitonê, a uma significação que nos permita continuar deslizando na cadeia significante. Talvez fosse interessante pontuar a diferença que existe entre a cadeia significante e a cadeia borromeana: não vou me demorar nisso, certamente precisaria de muito mais páginas. Mas pode ser uma referência conceitual para poder pensar o deslocamento de uma leitura sujeita às leis da linguagem, sob a lógica da tríade edipiana, para uma tríade RSI, em que a diferença se estabeleceria entre uma interpretação, na qual se escuta o sentido, para uma leitura do fora do sentido.

É fundamental diferenciar escuta e leitura. Se quiséssemos esquematizar isso, reduzi-lo, poderíamos dizer que, do lado da escuta enquanto tal, estamos sempre mais ou menos sujeitos ao território do sentido, enquanto, do lado da leitura, nos encontramos com a letra, com a materialidade da letra, o que implica uma diluição do campo do sentido em favor de uma cifra de gozo. Também podemos pensá-lo a partir do binômio som-sentido, o som como tal implica, em sua materialidade, uma detenção da significação, um basta, já que não é um ponto capitonê, que não permite a extensão da metonímia. E esse ponto de parada está ancorado não no Outro da linguagem, mas no corpo como Outro. Ram Mandil (2024, s/p) explica-o claramente nessa vicissitude de Stephen com seus amigos, quando, destacando o impacto do encontro com o desejo do Outro, ele nos conta como esse encontro “com a inconsistência do Outro, com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da “pergunta sobre a resposta correta” para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss.

Vemos, nessa sequência, como o corpo de Stephen é o local de um acontecimento, em busca da resposta correta, a resposta correta seria aquela que fizesse sentido, com o riso compartilhado, ao qual Stephen não tem acesso. E precisa primeiro desfazer todo o aparato da linguagem, toda a confusão da pergunta sobre se era certo ou não beijar sua mãe, para concluir:

Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! […]” (JOYCE, 1916/1998, p. 18).

Talvez tudo se reduza a esse bift!, a essa sonoridade que pode ter a possibilidade de nos fazer apreender a articulação e, ao mesmo tempo, a disjunção entre o corpo e a palavra.

Ora, a experiência de uma análise não está isenta do fato de que o tratamento do sintoma deve passar pela dialética do desejo e pela própria interpretação que a máquina do inconsciente produz. Passar por aí é o que permite, ao fim e ao cabo, desalojar os impasses da verdade que a decifração nos oferece. É a condição que nos guia para um mais além, onde reside em última instância o trauma fundamental da língua, a fixidez de um gozo irredutível e a opacidade, radicalmente indecifrável, de um real que não tem nem causa nem lei a que se submeter.

E, sim, esse é o território por onde transitam, sempre de forma diferente, os finais da análise.

Responsáveis pela entrevista: Ana Helena Souza, Giselle Moreira, Lilany Pacheco, Maria Rita Guimarães e Patrícia Ribeiro
Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Márcia Mezêncio

Referências
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. (Trabalho original publicado em 1916).
LACAN, J. Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 22, p. 6-15, ago. 1998. (Trabalho original proferido em 1977).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
MANDIL, R. O ato de leitura em psicanálise. Almanaque On-line, n. 32, 2024.
VENTURA, O. Quando um sonho desperta Um corpo. 6 + Um – Papers 06, p. 10-13, 2020. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_006-pt.pdf. Acesso em: 24 nov. 2023.

[1] Depois que ele saiu, Wells veio até Stephen e lhe disse:
Diga-nos uma coisa, Dedalus, você beija sua mãe antes de ir deitar?
Stephen respondeu:
Beijo, sim.
Wells virou-se para os demais camaradas e disse:
Escutem uma coisa, este camarada aqui está dizendo que beija a mãe dele todas as noites antes   de ir deitar.
Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela direção, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:
Não beijo nada.
Wells disse:
Escutem vocês, este camarada aqui está dizendo que não beija a mãe dele antes de ir deitar.
Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu todo seu corpo quente e confuso, de súbito. Qual era a resposta certa para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. […] Fora Wells que o empurrara para dentro da valeta na véspera […] Agir assim era uma coisa má; todos os camaradas tinham dito. E como a água estava fria e escorregadia! […]
O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro […]. Tentava ainda pensar qual seria a resposta certa. Era direito beijar sua mãe, ou não era direito beijar sua mãe? Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! porque as pessoas faziam isso assim com seus rostos.
(JOYCE, 1916/1998, p. 17-18.)