Almanaque On-Line Entrevista

MARCELO VERAS

Almanaque On-Line: Publicamos, Neste Número De Almanaque On-Line, Um Belo Artigo De Silvia Tendlarz, No Qual Ela Se Remete À “Mascarada Feminina” De Joan Rivière E À Pergunta Sobre A Diferença Entre A Feminilidade Como Disfarce E A Verdadeira Feminilidade. Diz Rivière: “Que A Feminilidade Seja Fundamental Ou Superficial, É Sempre A Mesma Coisa”. Para Silvia, No Entanto, A Criação Da Mascarada Não Sutura A Pergunta Acerca De “O Que É Ser Mulher”. Que Resposta (Ou Respostas) Podemos Esperar Encontrar Nas “Figuras Do Feminino”?

Marcelo Veras: Há mais de um modo de responder à questão. Tomarei o caminho aberto por Lacan a partir da diferença entre identificação simbólica e imaginária. É fato que a figuração remete ao imaginário e ao simbólico: percepção da privação e aplicabilidade da função castração. Aqui não se trata apenas do imaginário da relação especular, presente em Freud, no texto sobre a diferença anatômica entre os sexos, mas do modo como a ereção permite localizar o gozo sexual através das culturas e dos tempos. Basta caminhar pelas ruas de Pompeia ou presenciar as festividades do solstício na Suécia até hoje — o Midsommar, festa familiar popular em torno de um enorme pênis — para perceber o triunfo do falo ereto. O gozo feminino, por sua vez, mobiliza o corpo de um modo totalmente distinto. Não deixa de ser relevante que o XIX Encontro se passe na Bahia, terra onde o transe místico tem uma função fundamental para o Candomblé. O transe não tem nada a ver com a histeria. Na histeria, os eventos corporais passam pelo corpo mapeado pela castração e pela falta simbólica, tal como podemos perceber na descrição que faz Freud da terceira modalidade de identificação, chamada de identificação pela falta ou histérica. No transe, o que está em questão é o gozo do corpo que escapa à lógica fálica, em conexão direta com os deuses politeístas que, no Candomblé, se inscrevem de um modo muito particular na lógica da sexuação.

Para a psicanálise, o desafio é maior. Não basta ser tomado pelo gozo que escapa à lógica fálica, é preciso um bem dizer sobre isso. Um ponto que tem sido colocado em relevo constantemente nos passes é o acontecimento de corpo, no final de análise, que não se conecta com a castração. O bem dizer implica poder falar desse acontecimento e não apenas experimentá-lo. Meu mestre de psiquiatria na Bahia, o falecido Professor Rubim de Pinho, dizia que as boas Ekedis, no Candomblé, sabem muito bem separar o que é uma manifestação de transe da loucura. As Ekedis, também chamadas, em alguns terreiros, de mães, assim como os Ogans, não entram em transe, pois devem estar acordados para orientar e assessorar os rituais. Arrisco-me a dizer que há algo da posição do analista nas Ekedis, elas aprenderam a organizar o mundo para além da lógica da castração.

Almanaque On-Line: O Que É Uma Verdadeira Mulher? O Que Distingue A Histérica E A Mulher Quanto Ao Gozo?

Marcelo Veras: Retomo um pouco a pergunta anterior. Quando fazemos a pergunta sobre a verdadeira mulher, nós já a inscrevemos no binário verdadeiro/falso, que nada tem a ver com o real. Desse modo, não há incompatibilidade em afirmar que “A” mulher não existe e, ao mesmo tempo, falar de uma verdadeira mulher. Sabemos que apontar para essa inexistência, na análise, muda o cerne da questão feminina, passando de uma impotência a uma impossibilidade. Há, nesse ponto, uma subversão do dispositivo da demanda que é crucial na clínica. É necessário um consentimento à castração para não perpetuar uma demanda que esgota o sujeito na busca de máscaras. Máscaras que nunca se adequam perfeitamente, sem restos. Podemos dizer que há uma mulher verdadeira, já que verdadeiro e falso são proposições constantes na relação do falasser com o Outro, quando seu dizer não se escora na rivalidade fálica e avança sem a garantia de que esse Outro obture sua falta com a castração. Ou seja, a mulher verdadeira não institui o Outro da castração como parceiro.

Almanaque On-Line: Como Retomarmos E Discutirmos Hoje A Expressão De Lacan: “Para O Homem, Uma Mulher Pode Representar A Hora Da Verdade”? O Que Quer Dizer Isso Hoje? De Que Forma O XIX EBCF, Com O Tema “Mulheres De Hoje: Figuras Do Feminino”, Atualiza E Aborda Essa Questão?

Marcelo Veras: Com Lacan, aprendemos que a verdade não é algo que se alcança pelo saber. Eis um ponto que faz com que a psicanálise não seja uma forma de filosofia. A leitura das fórmulas da sexuação nos ajuda a ver como o homem acredita que a mulher pode ser inscrita em seu desejo. Para construir esse espaço, ele se serve da fantasia fundamental; é pelo aparelho da fantasia que ele acredita na existência da mulher. Ocorre que o feminino aponta para algo fora da cena, algo que faz com que ela, desculpem se repito um bordão, esteja não-toda no campo da realidade. Então, respondendo à pergunta, para um homem, a verdade irrompe na parceria quando se ultrapassa o verdadeiro/falso da castração. É quando a parceira recusa a posição que lhe é assegurada pela fantasia masculina. Ela recusa a fantasia que a fixa na zona de conforto fálica, para fazer valer sua demanda de outra coisa, que não se relaciona com o falo e sim com um gozo suplementar, que escapa precisamente a esse gozo do falo. Musas, Medusas ou Medeias, as figuras do feminino que serão tratadas no XIX Encontro elevam, cada uma à sua maneira, o parceiro masculino a uma dimensão mais além do que pode ser obtido pela sua fantasia, é aí que se situa a hora da verdade.

Almanaque On-Line: O Tema Da Seção Clínica Do IPSM-MG, Para Este Semestre, É “O Fracasso Em Psicanálise Na Feminização Do Mundo”. Esse Tema Articula Fracasso E Sucesso, Se Pensarmos A Feminização Como Uma Valorização E Prevalência Da Posição Feminina No Mundo De Hoje. Se Tomarmos A Ideia De Lacan De Que O Sucesso Da Psicanálise Seria Seu Fracasso, Que Correlação Podemos Fazer Em Relação Ao Sucesso Feminino?

Marcelo Veras: Eu diria que há muita semelhança entre as duas formulações. A feminização do mundo ocorre naquele ponto em que o mundo recusa a ordem totalizadora e homogeneizadora dos mestres antigos ou atuais. Ela ocorre quando as formas de gozo se desprendem do Édipo e vão mais além. Assim é também a psicanálise. Já o sucesso, no mundo contemporâneo, é uma exigência onipresente em todos os setores da vida. Nesse sentido, não tem nada a ver com o feminino ou com a psicanálise, que recusam uma solução universal. Há uma certa vocação à segregação da psicanálise e da mulher, que é de estrutura. Daí o papel importante de uma Escola de Psicanálise, pois não são muitos os que suportam sustentar essa condição de exceção.