Almanaque On-Line Entrevista
COMISSÃO CIENTÍFICA DO XX EBCF
Esta edição n.14 do Almanaque on-line aborda o tema do XX EBCF, “Trauma nos corpos, violência nas cidades”, pelo viés da proposta de trabalho da Seção Clínica do Instituto para o ano de 2014, formulada como questão: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? Segundo Simone Souto, em argumento divulgado na Agenda EBP-MG e IPSM-MG do segundo semestre de 2014,
[…] em um primeiro momento, nossa investigação se dedicou a encontrar os meios através dos quais, em nossa prática, um real pode ser localizado. A partir daí, nos deparamos com uma nova questão: que respostas dar a um real que não se deixa tratar pelo sentido? Essa pergunta nos leva, agora, a abordar a invenção, ou seja, o que cada um inventa como resposta a partir do real. A invenção diz respeito, certamente, ao sujeito e ao que lhe é único, mas, também, não deixa de concernir o praticante e mesmo as instituições: o que temos feito para dar lugar às invenções do sujeito frente ao real? O que podemos recolher, da nossa experiência clínica e institucional, como um “saber fazer com o real”?
A partir desse argumento, solicitamos aos membros da Comissão Científica do XX EBCF que nos enviassem uma colaboração, um flash, um breve depoimento sobre o real que encontram em sua prática clínica, pesquisa teórica ou uma indicação de como esse real pode ser abordado – uma obra literária, um filme ou obra de arte – bem como sobre as invenções possíveis diante desse real.
Recebemos os depoimentos abaixo, pelos quais muito agradecemos aos seus autores.
CARLOS AUGUSTO NICÉAS: “Eu sou um deprimido”. Assim João se nomeou quando chegou dizendo-se um fracassado em tentar fugir da “desgraça” que aconteceu em sua vida amorosa. E trouxe a marca do seu traumatismo nas pontuações e nas palavras escolhidas para falar do seu sofrimento. Ele já atravessara quase um ano sob efeitos de antidepressivos receitados por um colega seu, melhor amigo desde a faculdade, e logo me confessou: “Eu me entupi de remédio, eu só queria evitar o pior”. João é ortopedista e, com termos próprios de seu saber particular, me diz por que decidiu vir falar a um analista: “Eu cansei meu amigo repetindo o que me aconteceu, foi bom contar com seu ombro para não morrer, mas não fez ‘calo’, a fratura continua exposta”. E prossegue: “Toda minha vida eu cuidei de traumatizados, agora eu preciso cuidar do que se quebrou dentro de mim”. Um abandono, o da mulher, ele o põe no lugar de causa do seu “traumatismo”, acontecimento que, em sua contingência, o encontrou “totalmente despreparado”. Na mesma entrevista, refere-se ao efeito do acontecimento assim:
Ela me pegou de surpresa, comunicou brutalmente que estava apaixonada por um colega de escritório, arquiteto como ela, com quem estava me traindo há um ano e com quem iria morar a partir daquela semana. Tudo isso numa enxurrada só, o casamento acabou assim, ela saiu assim da minha vida, e eu fiquei vários dias sem entender o que se passou, andando pela cidade como um “zumbi”, completamente siderado. Depois começaram os sintomas: depressão, insônia, dores no corpo todo. O que me mantém de pé é o antidepressivo, que eu já estou reduzindo desde que decidi vir me tratar aqui.
Assim, João, ortopedista de “acidentados do trabalho”, em um hospital público, decidiu “ver o que está quebrado e que ainda dói dentro de mim”, porque precisa estar “curado, para o caso de a vida me dar outras rasteiras”. A psicanálise não lhe é uma “matéria” muito conhecida, diz ele, mas do nome de Freud ele diz se lembrar:
Como eu sou um médico que se interessou por osso, essas coisas da alma fogem da minha cultura, mas minha primeira namorada era psicóloga, e, um dia, ela leu para mim um texto de Freud em que o psicanalista era comparado a um cirurgião da alma. Foi dela que me lembrei quando o amigo psiquiatra que me receitou o antidepressivo me sugeriu vir falar com um analista, procurar você, porque ele não estava vendo muita mudança em mim.
Nesse momento em que vir falar a um analista parecia já abrir um lugar diferente para João, um lugar não somente para “desabafar” com um amigo ou se “entupir” com medicamentos, acreditando assim e até agora lutar contra o real antes que ele se presentificasse, eu suspendi essa primeira entrevista e, antes de oferecer-lhe uma segunda, mantive aberta a porta da psicanálise, sublinhando simplesmente da escuta das palavras de sua lembrança: “Dela, mas também de Freud…”
Vir falar a um analista pode trazer já embutida, na demanda de psicoterapia, um esboço de mudança subjetiva. João, em uma de suas sessões preliminares imediatas à primeira, me diz: “No começo, eu me perguntava por que a vida me fez isso, mas, agora, eu desconfio de que não era também para ficar assim, tanto tempo vagando como um zumbi”. É, João me pareceu ter chegado começando a desfazer uma identificação ao significante “vítima”, ao qual ele se colou para se proteger do efeito traumático do abandono que sofreu do Outro. Não querendo somente responsabilizar o Outro para justificar seu sofrimento, eu já o escutava nesses primeiros tempos da transferência esboçando uma implicação de sujeito, mesmo que isso lhe fosse ainda opaco e enigmático.
MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática?: questão que orienta o trabalho da Sessão Clínica do IPSM-MG, rumo ao XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. As discussões no Núcleo de Psicanálise e Direito têm nos aproximado do eixo temático “Psicologia das massas, análise do eu… e a deriva das pulsões”.
Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud afirma que a identificação é a forma mais antiga de laço libidinal. A identificação com o ideal permite a coesão da massa, ainda que ela, em momentos específicos, possa irromper em explosões de violência.
Na prática com os adolescentes e jovens, nas instituições educativas e socioeducativas, vemos como eles, mesmo que circulando lado a lado no mesmo espaço, não se agrupam, segundo a lógica freudiana da referência ao ideal do eu. Ao contrário, muitas vezes, permanecem na satisfação com os objetos, e são frequentes as manifestações de violência e agressividade entre eles e contra os responsáveis pelo trabalho nas instituições, impossibilitando ou dificultando o laço com o Outro proposto.
É possível considerar que a mudança no programa de satisfação de nossa civilização — da renúncia em prol de um ideal, para o imperativo de satisfação — teve como consequência um “mal-estar nas identificações” ou mesmo uma “patologia nas identificações”, que chega até nós por meio das irrupções de transgressão e violência. As contribuições da psicanálise de orientação lacaniana sobre as nomeações têm nos permitido aproximar e intervir em algumas dessas manifestações.
Nos casos que nos chegam, é comum a presença de designações ou apelidos relacionados à violência e transgressão. São modos de nomear distintos da operação do Nome-do-Pai, cujo poder metafórico pode substituir a satisfação direta, promovendo o laço com o Outro. Em nossa época, essa nomeação se encontra em declínio. Assim, encontramos, cada vez mais, designações em conexão direta com o gozo, que acabam por promovê-lo e incitá-lo, em uma manifestação da vertente superegoica do imperativo de gozo.
“Esse é B.O.”, “Ele é Jack”, “Sou 4:20”[1] são exemplos de designações que formam um curto-circuito, no qual os adolescentes são vistos e se mostram identificados ao resto da sociedade, sem possibilidade de vacilação, como em uma ordem de ferro. Nas instituições, a cada manifestação de hostilidade da parte dos adolescentes, nova tentativa de coerção e interdição, produzindo mais agressividade e violência.
A presença da psicanálise e sua oferta da palavra têm permitido uma vacilação nas designações que segregam e promovem o gozo, abrindo um espaço para acolher outras possibilidades de surgimento do sujeito. Dessa forma, é possível demonstrar como a psicanálise pode funcionar como uma ajuda contra as passagens ao ato e atuações, como nos indicou Lacan.
MARCELA ANTELO: Detalhar o real
Sacrilégio do “Noli tangere”, o close up é magnífica prova da penetração da civilização “na fábrica do real”. A literatura nos entregou os divinos detalhes, ensinou Miller lendo Nabokov. O artificio começou com a configuração exata do coque de Madame Bovary. “Detalhar quer dizer fracionar em pedaços” [2]. Para o cineasta Jean Epstein assim como para Miller é assunto de ética.
Um destino possível do detalhe é sua divinização, devemos livrar-nos dela, disse Jacques-Alain Miller em 1989, fazê-lo poderia constituir a dignidade da psicanálise.
O divino nos oferece o quê? Será que ter uma parte ao alcance nos faz supor um todo onde não existe? A ascensão do objeto ao zênite implica sua divinização. Qualquer objeto que se situe na vertical do observador será divinizado. Perturbar a divinização dos pedaços.
O zênite possui seu oposto, Nadir, que goza de muito menos imprensa. Pedaços no oposto do zênite. Perturbar a divinização pode servir-se da leitura do detalhe, já não da sua observação.
Epstein, no seu artigo “Magnificação”[3] afirma que um close-up extraído da cadeia, fora do contexto, é monstruoso e constitui a alma do cinema. Diviniza um sorriso, abrindo na tela como uma fruta madura ou indica o abismo da boca vazia de Old Boy. Inquietantemente estranho o close dá a ver o que vida diurna e suas grandes magnitudes dissimula. Estaria ele animado pelo desejo feminino de tocar o corpo sagrado que lembrava Ram Mandil nos Papers 1? Arrancar um pedaço do divino e fazê-lo cair.
Saber que o mais inquietante e perturbador reside no mais próximo e familiar é justamente uma das sabedorias que adquiriu cidadania no amanhecer do século. O fragmento, a parte, o minúsculo, a peça avulsa, pode constituir-se como um princípio epistêmico de aproximação ao homem contemporâneo se a orientação vai do Zenith ao Nadir.
A experiência princeps do close-up chama-se fotogenia, algo inarticulável, no limite do simbólico, um plus acrescentado ao objeto pelo ato cinematográfico, pela sua ação específica. Identificado por muitos como a alma do cinema, o close up não é dócil ao conceito nem deixa datar sua cronologia. O close up visa a um mais além de realidade, dar um zoom que ultrapasse o estreito representacional. Eisenstein, compatriota de Holbein, propunha em 1926 um cinema soco que cortasse até a caveira.
Paradoxalmente, em russo e em francês a palavra usada para close-up denota grande escala (gros plan); enquanto que em inglês, espanhol e português é a proximidade que está em jogo. Mary Ann Doane[4] sabe extrair todas as consequências desse paradoxo.
Fernand Léger, pintor fascinado pelo cinema ensina a objetividade que resulta do corte, o fim do todo, na cacofonia do seu Ballet mécanique, justaposição de pedaços. Léger disse:
Eu próprio usei o close-up, que é a única e real invenção do cinema. O fragmento do objeto também foi útil para mim; isolando-o o personalizamos. Todo este trabalho me conduziu a olhar o fenômeno da objetividade como novo e altamente contemporâneo em si próprio[5].
O cinema concorre com este aspecto da vida. A mão é um objeto múltiplo e transformável. Antes de vê-lo no filme não sabia o que era uma mão! O próprio objeto é capaz de devir um absoluto, uma coisa trágica e em movimento[6].
Uma série de fotografias[7] atrozes, de detalhes que não conduzem ao todo, de pedaços arrancados do corpo humanamente estendido, pode aproximar demasiadamente, close too close, do real dos campos de concentração colocando em cena o gozo de um Outro abismal. Freud falou da lente de aumento da análise e dos infusórios microscópicos da ciência.