ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA MÁRCIO ABREU
Ator, diretor e dramaturgo, natural do Rio de Janeiro, sua formação tem passagens pela EITALC (Escola Internacional de Teatro da América Latina e Caribe) e pela ISTA (Escola Internacional de Antropologia Teatral). Nos anos 1990, em Curitiba, fundou o Grupo Resistência de Teatro, com o qual trabalhou por seis anos. Diretor da companhia brasileira de teatro em 1999, sediada em Curitiba, desenvolveu pesquisas e processos criativos em intercâmbio com artistas de várias partes do Brasil e de outros países. Entre seus trabalhos recentes estão PROJETO bRASIL (2015) e PRETO (2017), com os parceiros da companhia brasileira de teatro. Dirigiu o Grupo Galpão no espetáculo Nós (2016) e Outros (2018). Em 2021 estreou Sem Palavras, uma criação junto à companhia brasileira de teatro.
ALMANAQUE ON-LINE: É um prazer poder conversar com você sobre seu trabalho. Gostaríamos que nos falasse dos caminhos que te levaram ao teatro.
MÁRCIO ABREU: Todos os percursos têm as suas singularidades, e o meu desliza entre os campos da experiência, do conhecimento, dos saberes. Desde muito cedo fui ligado às artes, pois sempre tive, desde criança, muito estímulo e pendor para a criatividade, para a leitura. Sempre fui muito estimulado às letras. Eu me lembro, já falei disso em algumas entrevistas, que existem imagens marcantes da minha infância que significam muito, que insistem quando eu vou falar de mim, da minha trajetória, do que faço hoje. Uma dessas imagens, que define muito por onde eu fui caminhando, é o meu interesse por literatura desde muito cedo. Na escola em que estudava no Rio de Janeiro, havia uma espécie de cerimônia, quando éramos alfabetizados, que se chamava festa do livro. Nessa cerimônia, cada criança tinha um padrinho ou uma madrinha, que a presenteava com um primeiro livro. Isso era um acontecimento! Eu me lembro disso, tenho até uma foto no palco de um teatro, com a minha mãe, que foi a minha madrinha. Ela me dando o livro, fazendo um gesto para baixo e eu no palco, recebendo um livro que se chamava Os patinhos de prata; me lembro dele até hoje. Isso é tão inscrito na minha memória, essa imagem recebendo um livro, a minha mãe a me dar, e a de ter sido muito interessado por leitura… Talvez eu tivesse também uma personalidade mais introspectiva, e os livros, de alguma maneira, eram também uma espécie de companhia, de refúgio, como também de abertura.
Quando eu mudei do Rio para Curitiba, aos quinze, dezesseis anos, foi um momento bem importante também para mim. Naquele momento em que me mudei, Curitiba era uma cidade muito efervescente culturalmente; ela era muito menor que o Rio de Janeiro naquele final dos anos 80, início dos anos 90, e tinha um tipo de cultura menos mainstream, mais alternativa, mais underground, que me fascinou. Fiquei muito estimulado pelo movimento de poesia marginal, de músicos, de poetas, do próprio teatro, da dança, do centro cultural onde havia um teatro grande, como o Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Havia quatro montagens de ópera por ano, festival de música antiga, renascentista, a cidade ficava lotada…
Ao mesmo tempo, havia as cenas de rock and roll, de música do movimento punk e uma forte veia literária. Curitiba é uma cidade de grandes autores, autores e autoras. São coisas que me marcaram muito. Fui muito influenciado, na minha adolescência, por essa cena curitibana.
Quando chegou a época de fazer vestibular, eu não tinha muito interesse em fazer a faculdade de teatro, que hoje é a Faculdade de Artes do Paraná. Acabei fazendo direito, embora me interessasse também por arquitetura, por filosofia. Terminei esse curso por vários motivos e só depois eu fui percebendo o porquê de não ter nenhuma ligação profissional com o direito.
Eu ingressei em uma escola de teatro, uma escola bastante singular, que se chama Escola Internacional de Teatro da América Latina e do Caribe, criada no início dos anos 80, em Cuba, por representantes de vários países latino-americanos de um modelo itinerante e antropológico de ensino. Foi uma experiência radicalmente marcante para mim. Eu fazia viagens para alguns países e tinha experiências de formação, de compartilhamento e de vivência de situações em comunidades específicas. Por exemplo, para citar uma dessas experiências de formação, na Nicarágua, no final dos anos 90, eu fiquei trabalhando com o movimento artístico de camponeses que tinha sido criado na época da Revolução Sandinista e que ainda se mantinha ativo e muito forte. Ele era orientado por professores de alguns países da América Latina, muito ligados — quase discípulos — das técnicas do Augusto Boal. Essa formação fora dos moldes da clássica formação acadêmica, que era justamente uma dissidência desse modelo de ensino hierárquico, tradicional, foi fundamental para mim. Era uma espécie de esquizofrenia, pois também participava de uma escola hipertradicional do direito, que é como uma torre do saber.
Naquele momento, a Universidade Federal do Paraná e, justamente, a escola de direito, era para mim — depois fui entender isso — um microcosmos de uma vida institucional e política brasileira que me causava muito horror. Eu queria terminar aquele percurso do curso de direito pelo fato de estar em uma escola pública importante; não queria abandonar uma oportunidade que eu tive, de ter acesso ao ensino público, quando pessoas que talvez necessitassem mais do ensino público do que eu não tinham acesso. Mas, claro, ali eu também encontrei estímulos em determinados campos do estudo. Foi na Faculdade de Direito que comecei a realmente me interessar por filosofia, que é um campo de estudo permanente para mim, pois participo de grupos de estudo, de grupos de leitura, tenho muita interlocução com filósofos. Isso me foi inoculado na Faculdade de Direito, por mais que aquele campo fosse meio minado e que eu me visse como uma espécie de E.T. naquela paisagem humana. Ainda assim, foi lá que uma outra luzinha se acendeu na criação de uma certa consciência reativa, combativa a determinados lugares, a modos de entendimentos de mundo e a pessoas com as quais realmente não há condição de diálogo nem negociação. Então eu vivi muito esses extremos na minha formação e, evidentemente, já fazendo muito teatro, criando grupos, viajando.
AOL: Ainda como ator?
M.A: Ainda como ator, mas sempre escrevendo. A escrita sempre teve um papel importante para mim, foi um lugar de expressão desde cedo. E, aos poucos, o meu processo foi me tirando da cena, tirando meu corpo da cena… O meu corpo na perspectiva da encenação, pois ele não é um corpo de fora. Sempre entro em debate diante dessa noção do encenador, do diretor de teatro, desse fazer teatral com a ideia de que é um olhar de fora. Eu não entendo o lugar da criação como um olhar e muito menos como um olhar de fora. Eu entendo como um campo de articulação de vários níveis e perspectivas de linguagens, e isso tem a ver com composição, com criação. No sentido de você poder justamente habitar o seu corpo multiplamente. O seu corpo precisa se reconhecer e ser atravessado por perspectivas diversas, múltiplas. É uma atividade bastante exigente! Muitas vezes me sinto exaurido por estar tão dentro, tão implicado, fisicamente, nessa atividade da encenação, nesse campo de criação que é a encenação. A dramaturgia e a encenação são, para mim, zonas de interseção muito fortes, difíceis de separar, sobretudo para mim, que me coloco em uma perspectiva de escrever e de entender a escrita como algo muito ligado ao corpo, na medida em que eu busco escritas que, sim, têm muita influência da literatura. A escrita para a cena tem a ver com uma dimensão da oralidade, e a oralidade é a dimensão do corpo enunciativo. Esse corpo que inscreve a experiência da oralidade, o corpo memória. Então, nesse sentido, eu me vejo muito implicado fisicamente.
AOL: Aproveitando essa sua referência sobre a implicação do corpo, quero engatar uma outra questão. Assistimos a um vídeo, da série de entrevistas chamada “Conversas com Galpão[1]”, no qual você usa uma expressão sobre a qual ficamos muito interessados em saber do que se trata: acontecimento de teatro. Ao falar dela, você aponta uma distinção entre o diretor teatral, cujo modo de direção coordena a cena, e uma outra perspectiva como diretor, na qual você se coloca. Você chega a dizer que a dramaturgia é, ou deveria ser, uma máquina de acontecimentos de teatro.
M.A: É interessante abordar essa questão, porque eu a acho absolutamente fundamental. De um modo geral, o senso comum sobre o teatro comumente traz a ideia de representação, claro! Isso está inclusive na história do teatro, todos nós sabemos disso! Acontece que, quando a gente fala de representação, ao que exatamente a gente está se referindo? a que teatro? Nesse sentido, é preciso também que a gente abra para perspectivas outras, as de perceber esses fenômenos, ou essas atividades humanas que são sedimentadas pela história, não somente a partir da história do ocidente, mas também por outras perspectivas, pela história de outros povos. É evidente que o Ocidente inscreve e, digamos assim, de forma predominante, hegemônica; ele define para nós muitas coisas, entre elas, o que é o teatro, o que é representação. Mas existem outros modos de entender isso e de estudar e de pensar sobre isso. Em geral, a ideia de teatro está muito ligada a um certo entendimento de representação. É evidente que eu não sou contra nem ingênuo o suficiente para recusar toda e qualquer ideia de representação, naquilo que eu falo como artista, nem qualquer ideia de drama naquilo que eu faço como dramaturgo ou encenador. No entanto, eu busco, nos trabalhos que faço, incluir isso que seria a dimensão relacional, convivial, ou seja, incluir esse outro que é o espectador — ou isso que a gente chama de público. Aliás, esse é um conceito enrijecido, pois a gente fala “o público” como se fosse uma generalidade, como se fosse uma massa. No entanto, esse “o público” é formado por comunidades que se afinam mais ou menos, que se reconhecem entre si mais ou menos, por indivíduos, por sujeitos, que têm corpos, memórias, que têm inscrições sociais diversas.
Para mim, é muito importante pensar nesse campo relacional. Quando eu imagino uma peça de teatro que tem uma duração de duas horas, uma hora e meia, seja lá o que for, eu vou ao teatro e imagino que vou viver aquela uma hora e meia, duas ou três horas e, mesmo inconscientemente, percebo que aquilo é um ato, um rito. Isso está no corpo daquelas pessoas que nunca foram ao teatro, por ser uma reiteração tão realizada ao longo da história que, mesmo aquela pessoa que nunca teve condição, nunca quis ou nunca pode ir ao teatro, quando ela vai — mesmo inconscientemente —, ela leva um pouco desse condicionamento de que ela vai viver aquele tempo, aquela duração como algo que já está dado, com comportamentos já pautados, já cifrados, como códigos já decifrados. No entanto, na vida, nessa dimensão que a gente chama de realidade, ou que, no senso comum, chamam de realidade — existem muitas perspectivas para falar de real e realidade, né? —, mas, de um modo mais geral, as pessoas vão ao teatro para separar realidade de ficção. Esse é também o entendimento mais comum, a pessoa vai passar por ritos culturais que não irão afetá-la. É quase como um pacto coletivo — mais ou menos consciente — de não afetação, de não vivência de uma experiência, de um acontecimento, de um afastamento. Cada um se posiciona um pouco por aí.
E o que eu acho mais instigante, mais provocativo e motivador nas artes presenciais — não estou falando só do teatro, estrito senso, mas de todas as artes que envolvem a presença dos corpos, seja de quem faz como o do espectador, que também faz, porque todos os corpos, mesmo o do espectador, é um corpo que faz. Aí se trata de não se ter a priori a definição de quem é ativo e quem é passivo, de quem faz e quem não faz, quem dá e quem recebe — não tem esse pensamento cristão de dar e receber, não é isso. Existe algo que está sendo mobilizado numa perspectiva coletiva. Então isso responde um pouco ao que é o núcleo das minhas inquietações, das minhas pesquisas e tentativas… Eu tento estabelecer uma relação tanto das atrizes e dos atores com essa matéria, seja um texto, espaço, um campo dramatúrgico mais amplo, que envolve sonoridades, história, contexto político, o momento específico que cada um está vivendo, subjetividades, evidentemente, ou seja, todo um campo de materialidades que vão compor aquela experiência ético-estético que é uma peça. Aquele tempo de duração precisa ter textura de um acontecimento…
São acontecimentos que a gente reconhece no nosso corpo, que a gente faz parte deles, seja quando eu me desloco na cidade, seja quando eu fico confinado na minha casa, ou quando eu estou aqui conversando com vocês, eu me dou conta de que isso está acontecendo. Essa textura implica os corpos de determinada maneira. Sim, ela tem camadas representacionais, tem traços de representação em alguma medida. No entanto, quando a gente vai para o teatro, costuma se pensar que agora é preciso representar, como se a gente não estivesse lá, como se fosse um pacto de ausência coletivo, onde se emulam acontecimentos. Fixa-se aí um limite que, na minha opinião, é muito difícil de aceitar, porque é quase um pacto com a exclusão, com a ausência, como se todo mundo se colocasse em modo stand by durante duas horas: nada me afeta, eu não estou implicado em nada, saio e nada me aconteceu, eu me retirei do mundo. Chamaria isso de ficção? Não. Eu aprendi com a literatura, desde muito cedo, que a ficção é um lugar de vida intensa, é um lugar que ressignifica campos do real de um modo como poucas coisas fazem. Então, mesmo que eu trabalhe em uma perspectiva ficcional, por exemplo, em Nós[2] (2016), a peça do Galpão não é uma peça sobre o Galpão, nem são, necessariamente, histórias estritamente pessoais da vida de cada um. Claro que existem traços, todas as ficções são compostas também de elementos que vêm de algum lugar e, muitas das vezes, esse lugar é o real. Mas toda aquela composição que é o Nós, que nos chega de um campo da ficção, ativa aqueles corpos de atrizes e atores envolvidos naquilo; é uma sucessão de acontecimentos, desde os mais pequenos, imperceptíveis, como um copo que cai e derrama água, até acontecimentos mais simbolicamente significativos, quase arquetípicos, como a expulsão de um corpo dissidente de um ambiente coletivo, como a recusa de uma mulher mais velha, cujo corpo já tem restrições de deslocamento e de movimento. Então, essa ideia de acontecimento de teatro está ligada a uma vivência do tempo e da matéria dramatúrgica na relação com o tempo real, e não com o tempo da representação, porque o tempo da representação nos exclui um pouco da vida, é como se a gente estivesse olhando para um tempo que está fora da gente.
AOL: Como se tivesse um caráter de farsa?
M.A: Exatamente. A gente visita aquele tempo, mas, ao mesmo tempo, sai. Em Nós, por exemplo, o que eu tentei fazer foi dar textura de acontecimento real a todo ato representativo. Muitas vezes, por exemplo, a gente ouvia: “nossa, vocês estão improvisando, parece que vocês estão falando aqui agora”. Não, eles estão falando agora, mas para falar agora e ter essa noção de que estão improvisando, de que aquilo é uma fala que está nascendo, um texto que está nascendo naquele momento, existiu um trabalho de elaboração gigantesco: que tipo de linguagem esse texto vai ter, como nasce esse texto, de onde ele vem, qual é o processo criativo que gera esse tipo de texto com esse nível de oralidade que ele tem e como esses atores e atrizes se preparam, até quimicamente mesmo, para realizar aquilo de novo e de novo e outra vez e mais uma vez, sem que aquilo pareça uma mera representação, sem que pareça a execução de a prioris definidos. Eu sempre falo isso para os atores, pois trabalho com dispositivos e fico buscando e pesquisando como dar condição a eles de passar por uma extrema elaboração — técnica, inclusive — para buscar uma precisão tal que possibilite a cada um deles, a cada uma delas, no momento da peça, esquecer: fazer o exercício do esquecimento. Então, há uma extrema elaboração para ter confiança em esquecer e se lançar na experiência. Todo um arsenal de dispositivos que eu fico criando e trazendo e colocando no ensaio/estudos/ leituras tem a ver com isso.
AOL: Nesse sentido, você diria que é indissociável o ator do sujeito que está ali?
M.A: Um pouco, é um pouco indissociável, o sujeito não como imposição da subjetividade naquele ato, mas do contorno daquele indivíduo, da memória daquele indivíduo. Essa também é uma armadilha muito grande no teatro, muitas atrizes e atores têm esse vício de derramar, impor a sua subjetividade àquele fazer quando, na verdade, há uma negociação importante ali. Não se trata só disso, pois eles têm que lidar com muitas coisas que estão fora do seu contorno, fora dessa matéria subjetiva e que, em muitos casos, são mais importantes. Como você vai, por exemplo, realizar a mesma estrutura, se você derrama a sua subjetividade, e se se trata só disso, como você vai fazer de novo no dia seguinte? Tem que ter algum esteio estruturante que esteja fora de você, fora do sujeito, para negociar com esse sujeito.
AOL: Nessa conversa com o Galpão, você fala um pouco sobre a lida com a palavra e com as diversas dimensões da palavra, da materialidade da palavra e como acessar isso. E eu queria ouvir um pouco sobre como você entende essas dimensões e como você trabalha isso com os atores.
M.A: É, a palavra é um caso sério. Eu faço análise lacaniana, percebo o quanto isso age. É muito importante para mim esse trabalho da linguagem. Bom, eu tenho muita dificuldade de falar sobre isso agora. Acabei de fazer um trabalho e ainda estou mergulhado em uma criação que acabou de estrear, que se chama Sem palavras, e, apesar desse título, esse texto está repleto delas. Eu me sinto fazendo parte de um mundo no qual há uma tentativa frequente e, muitas vezes, bem-sucedidas, de apropriação das palavras para fins de violência, de exclusão, de impedimentos. Estou em uma sequência de trabalhos, desde 2012, 2013, dos quais os dois que fiz com o Galpão fazem parte, que decorrem de uma inquietação muito grande em relação ao lugar dos discursos, da palavra pública, dessa confusão entre público e privado. Essa é uma questão muito importante no trabalho da pesquisa e em tudo o que a gente fez para criar o Nós. E acho que a gente está vivendo hoje, não só no Brasil, mas com muita nitidez no Brasil, um assalto a nossa língua mãe. Eu acho que essa estratégia de se apropriar daquilo que é mais longínquo subjetivamente, e, ao mesmo tempo, tão fundante de cada um, tão ontológico, tão fundamental como a nossa própria língua, essa estratégia de tomá-la de assalto é muito violenta, e não é nova. Historicamente, a gente encontra outros momentos, na história do ocidente, e não tão longe, em que a língua e as linguagens foram a arma. Todos os estados de exceção se valem também de estratégias de linguagem. Veja a história do nazismo, das revoluções abafadas da América Latina e das contrarrevoluções patrocinadas pelo imperialismo norte-americano. Muito pouca gente se dá conta disso, mas, por exemplo, Porto Rico, em determinado momento, foi uma colônia dos EUA. Quando deixou de ser colônia e passou a ter uma representação na assembleia dos EUA, uma das primeiras coisas que fizeram foi impedir de falarem a língua local borinquen. Assim como na ascensão do nazismo, toda aquela heráldica, a maneira de reunir as pessoas, de promover imagens que eram publicizadas em espaços públicos, o modo como a multidão se organizava, gritava ou proferia frases de ordem ritmadas, palavras escolhidas para fazer determinadas saudações, tudo isso aponta para o uso da língua e das linguagens como estratégia de dominação e de extermínio. Estou muito afetado por isso como artista desde algum tempo.
As peças que eu criei nesse período, a primeira se chama PROJETO bRASIL[3]. É uma peça que estreou em 2014-15, mas que começou a ser criada a partir de uma pesquisa longa que fiz em uma viagem pelas cinco regiões do país. Pesquisando para essa peça, eu me debrucei, por exemplo, sobre a linguagem discurso. Então eu estudei o discurso público de toda sorte e, assim, criei uma peça que é uma sucessão de discursos verbais e não verbais. São dezoito discursos, alguns reais (dois são extraídos de acontecimentos reais). Um é o discurso que o Pepe Mujica fez, em uma ocasião, na assembleia da ONU, com a plateia quase vazia, como se estivesse proferindo palavras para ninguém. E, no entanto, eram palavras tão radicalmente importantes, proferidas nesse lugar de uma quase não escuta. O outro é uma sequência de discursos da então ministra da justiça francesa, Christiane Taubira, que é uma mulher negra, da Guiana Francesa, que conseguiu ser ministra da justiça da França, um dos cargos mais intocáveis de um país que se entende como um país branco e que nunca tinha sido ocupado por uma mulher, muito menos por uma mulher negra, e muito menos por uma mulher da França ultremer, a França não metropolitana, antiga colônia. Ela, em nome do governo francês, propôs o casamento entre pessoas do mesmo sexo, dando direitos parentais, ou seja, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Ela fez uma série de discursos, ao longo de vários meses, na assembleia, no senado, em defesa desse projeto que, finalmente, foi aprovado. O conjunto desses discursos, em minha opinião, são peças não só literárias, talvez até psicanalíticas, peças históricas para pensar o nosso tempo, para pensar quais corpos podem habitar determinados espaços, quem deve viver e quem deve morrer, discursos para pensar a necropolítica. Achei que valeria a pena visitar esses discursos. Então, fiz uma espécie de colagem não colagem… eu articulei o conjunto desses discursos e os coloquei na estrutura da peça. Mas de que maneira esses discursos reais lá estão? Eles estão não como representação; não coloco lá alguém fazendo o Mujica, alguém fazendo a Christiane Taubira. Eu tentei criar dispositivos que gerassem uma escuta coletiva. O acontecimento que está em jogo ali, no momento que a peça se dá, é uma convocação para ouvir essas palavras.
É como se a gente tivesse perdido a capacidade de ouvir determinadas vozes, determinadas falas e determinadas palavras, especificamente. Ou, ainda, é como se a gente tivesse que reaprender a escutar e reaprender determinados sentidos atribuídos a determinadas palavras. Eu tenho feito esse exercício de tentar restituir alguns sentidos e algumas palavras e de tentar atribuir outros significados e outros sentidos a palavras que têm sentidos que a gente não quer mais.
Eu fiz uma outra peça que vai nessa esteira, uma segunda parte, digamos, do PROJETO bRASIL. É uma peça chamada PRETO (2017), que é uma pesquisa sobre negritude, pretura, racismo e que pensa a palavra na perspectiva da transmissão e da oralidade. Eu a pensei como uma conferência de uma mulher negra, só que, em cena, não tem só uma mulher negra. Tem mais de uma, tem homens brancos, homens negros, têm corpos diversos e coexistentes. E a linguagem conferência, palestra, vai sendo atravessada por outras possibilidades. Muitas vezes essa conferência se transforma em outras coisas — diálogo, dança, disputa, ato de amor —, e ela vai se configurando e reconfigurando de muitos modos, mas sempre volta para a memória que aquilo que está acontecendo é uma conferência, é a fala pública de uma mulher negra. Em um dos primeiros momentos do processo criativo dessa peça, ainda longe de ela estar configurada como uma peça, de ser apresentada ao público, eu realizei, em Belo Horizonte, uma parte do seu processo criativo em um evento que se chamava “Polifônica negra”. Era um festival, uma mostra de processos criativos. Nesse momento, dentro dos ensaios, a gente realizou uma mostra pública na qual Grace Passô, uma das atrizes da peça, ficava falando a palavra macaca durante 15 minutos. Ela pronunciava essa palavra diante do público durante 15 minutos e, bom, aí ela saia. Isso foi no Teatro Espanca!, na sede do grupo Espanca!, que fica na rua Aarão Reis, perto do viaduto de Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte, um lugar com a presença de uma diversidade muito grande de gente. Essa ideia de restituir ou de retirar o estigma da palavra macaca, por exemplo, é uma das perspectivas dessa performance: desestigmatizar, dar a essa palavra outra escuta, outro corpo.
AOL: Isso é muito interessante, tem muita relação com a psicanálise.
M.A: Realmente. E isso foi feito publicamente. Na peça Nós havia uma questão muito fundamental, que era como eu percebia o mundo, os acontecimentos do mundo, como o movimento da história batia e me atravessava, atravessava o meu corpo e como eu reagia a isso que me afetava. Qual era o meu gesto artístico em resposta, em reação ou em diálogo? Esse era o princípio do trabalho, da pesquisa para o trabalho. Evidentemente, o que chega em cada um de nós são também palavras. O que se ouve? Quem se ouve? O que eu depreendo daquilo que eu recebo? Então chegamos em algo que é essa profusão, essa espécie de rumor, esse rumor social que eu fui trabalhar, com mais radicalidade, na peça Outros. Em Nós eu queria estabelecer estruturas de convívio e dessas estruturas fazer emergir temas urgentes. Mas eu não queria falar sobre esses temas. Em geral, às vezes eu me ouço falando isso, e eu tenho um certo incômodo, porque é quase como se eu quisesse fazer uma frase de efeito, mas não é. Talvez seja porque eu já falei sobre isso tantas vezes, que talvez eu precise achar um outro modo de falar disso. Eu não faço peças sobre um assunto, o PROJETO bRASIL não é uma peça sobre o Brasil, nem PRETO[4] é uma peça sobre o racismo, nem Nós é uma peça sobre a vida coletiva, não é isso. É a partir disso, de certo modo, é mais a partir disso do que sobre isso. Todas essas peças, de algum modo, fazem, ou querem fazer, as questões que são indesviáveis e lhes dar lugar, acontecer, emergir naquela estrutura dramatúrgica.
Em Nós, como isso se deu? Em uma polifonia. A construção daquela dramaturgia teve uma perspectiva da convivência, de corpos e de histórias diferentes. O Grupo Galpão está há quase quarenta anos junto. E são pessoas — eu falo isso sempre, inclusive em entrevistas — que são para mim um exemplo maior de uma espécie de laboratório de democracia, pois elas desenvolveram uma capacidade, com muito trabalho e exercício, de conviver na diferença por tanto tempo. Elas são pessoas inteiramente diferentes, em todos os sentidos — pensamento, ideologia, muitas vezes, como história, como memória, como geração, origem… Está lá a Teuda, com 80 anos, e o Júlio, com 50 e poucos. Entre eles há muitas diferenças, inclusive de classe social. Não é simples articular esse diálogo ao longo de tanto tempo. Que acordos são feitos ali? Eu acho um grande aprendizado conviver com o Galpão, eles têm tecnologias de convivência na diferença, de escuta e de respeito. Eles se respeitam. E não é preciso amar o outro para o respeitar, pode-se amar também, mas não precisa admirar profundamente para escutar. Tem uma coisa ali que é muito interessante e muito bonita.
AOL: Não é fácil não segregar, pois o outro pode portar algum detalhe que o distingue que pode torná-lo insuportável. E nem sempre é uma diferença radical, você concorda?
M.A: É difícil não segregar. Parece que a segregação está sempre na iminência de acontecer. A peça traz à tona tudo isso. No entanto, a palavra não diz, diretamente, as coisas importantes. Na peça, o que está sendo dito está por baixo da palavra. Eles estão ali conversando, aparentemente, sobre banalidades, falando ali uma bobagenzinha, trocando uma ideia, uma receita, falando de uma coisa que lembrou, de uma coisa que viu, do outro. Mas porque não é para falar sobre essas coisas, as coisas falam também. Os assuntos, eles mesmos falam, eles se falam através desses corpos. Eu quis criar ali atos fortes de convivência, onde essa polifonia pudesse ser articulada e todos esses assuntos viessem à tona, aparecessem pelas brechas. E fazê-los acontecer no outro, na realização de quem vê, de quem participa, de quem faz como espectador. São perspectivas diferentes de entender a palavra, mas sempre com essa inquietação e a consciência desse momento muito perigoso que a gente vive, de captura das linguagens, da manipulação, do império da mentira, tudo isso que a gente está vendo.
Você pode falar que qualquer coisa é verdade e qualquer opinião pode adquirir valor de pensamento e de verdade também. E de ideologia. Alguém diz: “É a minha opinião!”. Assim, por exemplo, diz que veado tem que morrer. Essa pessoa diz que tem direito a dizer isso, porque é a opinião dela, mesmo que isso cause a violência e a morte do outro.
AOL: Márcio, essa nossa conversa nos leva a um debate a que assistimos, com a sua presença e a da professora Helena Vieira[5]. Ela falou algo muito interessante a propósito da sua peça Sem palavras[6], na qual os atores entram em cena e incorporam, encarnam algumas cenas próprias do nosso cotidiano. Numa delas, aborda-se o uso que hoje fazemos dos recursos tecnológicos que permitem a nossa presença virtual no mundo. O seu texto não faz um juízo de valor, não diz que isso é algo bom ou mau, mas aponta a presença de uma exigência em se fazer ver no mundo virtual e que, muitas vezes, a isso se segue a angústia em não se saber se virão ou não muitos likes sobre o que foi publicado. A esse respeito, Helena Vieira observa que vivemos em um mundo no qual a palavra de ordem é a de estar em um estado de permanente excitação, de felicidade, em razão de “um discurso que nos impele a gozar sem intervalos”. Nesse ponto, ela alude ao título de sua peça Sem palavras e finaliza dizendo que “o teatro, por exemplo, pode ser um lugar de fazer cessar esse ruído”, por meio do que ela chamou de um “silêncio ativo”, um silêncio que “pode provocar a emergência de novas palavras”. Gostaria que você falasse sobre isso.
M.A: Eu acho isso de uma lucidez muito grande, Helena é uma pensadora extraordinária nesse sentido de se deslocar, de transitar entre saberes diversos e formular proposições que também inspiram deslocamentos na gente. Essa ideia do silêncio, por exemplo…. O silêncio entendido como acordo mútuo, digamos assim, ele se opõe nitidamente ao ato de silenciar — essa é uma distinção importante de fazer. Silenciar denota uma ação, justamente isso que você está dizendo. Eu tenho sempre que ocupar o meu tempo, eu estou sempre conectado, por isso, eu vou silenciar, ou, ainda, eu preciso ficar quieto. Então, vou fazer meditação, ou vou fazer um curso de ioga, vou aprender a ficar em silêncio, da mesma maneira que eu vou comprar um iPhone novo no Mercado Livre. Tudo no mesmo pacote de uma sociedade adoecida, deserotizada, profundamente deserotizada, desprovida do sentido erótico da alegria. E pressionada ao consumo de tudo e a uma fala incessante que ocupa todos os lugares possíveis. As pessoas desaprenderam a ficar quietas, em silêncio observando alguma coisa, mesmo entre os seus, ficar quieto ao lado de alguém. Ouvir simplesmente, para nada, só para ouvir — tirar a funcionalidade da escuta que implica ouvir para responder, ou, ouvir para aprender, para rebater, para reagir… Ouvir é em si, é uma condição. Mesmo quem, fisiologicamente, não escuta, percebe sons com o corpo, percebe algo que repercute. O som gera ondas que repercutem e chegam no corpo de quem tem impedimentos fisiológicos para ouvir. Então, acho que esse silêncio do qual a Helena fala não é o silenciar alguém ou a si mesmo, é ceder a uma percepção, a uma vivência, que a gente pode chamar de silêncio. O silêncio também não é algo natural, tudo soa… “ah, então vamos ficar em silêncio”… não. No teatro, por exemplo, o silêncio é algo que precisa ser criado, o mero fato de não ter nenhum som, não significa silêncio necessariamente. Muitas vezes o silêncio, no teatro, precisa ser criado por contraste, para que se tenha uma aparência de silêncio, por haver ruído antes. Entretanto, talvez o silêncio seja algo um pouco mais profundo, e não ausência de ruído ou ausência de som, ou de palavras, mas algo que é habitado, é uma matéria, uma textura, uma percepção que inspira a escuta que convoca a escuta. Então, opor o silêncio à palavra, ao som, à escuta, está fora disso. Mas o silêncio como perspectiva de percepção do que você ainda não sabe, como abertura, é algo muito fundamental para o meu trabalho, fundamental para reencontrar as palavras quando nós as perdemos.
AOL: Márcio, obrigada por compartilhar conosco ideias tão interessantes!