Almanaque on-line entrevista Margarida Elia Assad

Margarida Assad
Psicanalista, membro da EBP/AMP e professora aposentada da UFPB.

 

CAROLINA BOTURA. CABEÇA

 

ALMANAQUE ON-LINE: Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. Não são poucos os testemunhos dessa forma de laço, como vemos, por exemplo, nos grupos terapêuticos ligados às adições. Seguindo ainda com Miller, ele também destaca uma outra forma de enlaçamento social presente nos chamados grupos extremistas, que, mais recentemente, surgem também no Brasil, nos quais o que estaria em jogo seria a articulação entre a identificação e a pulsão de morte. Que leitura é possível extrair dessa “psicologia de grupo” contemporânea?

MARGARIDA ASSAD: A psicologia de grupo freudiana certamente está sendo renovada pela queda do patriarcado presente na atualidade. Mesmo na falta dos significantes para os Nomes-do-Pai, que sustentavam os ideais dos grupos, os laços sociais se fazem demonstrando que sua causa não é o amor ao Pai, mas uma falha irredutível, causa do inconsciente. Essa falha irredutível se introduz pela via da estrutura de linguagem, pelo Outro, tornando o corpo, objeto dessa marca, um ser destinado ao social, destinado a fazer laços. Assim entendo o aforismo lacaniano “o inconsciente é a política”, uma vez que, por política, a psicanálise entende esse laço irredutível que o corpo falante mantém com o social. E, por ser um laço irredutível, uma unidade perdida, resta ao falasser fazer, desse furo marcado em seu corpo, uma identificação para si mesmo. Laurent esclarece que seria uma identificação a “dar sentido” a essa “experiência fora-de-sentido inerente a todo falasser” (2016, p. 65).

Temos assistido no mundo uma nova configuração social, desenhada por grupos com diferentes identidades. Nem todos apresentam identidades de gozo articuladas à pulsão de morte. Alguns desses grupos se reúnem em torno de um significante que possa permitir que o laço social seja mantido, impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem. Marcus André propõe a identidade como forma de pertencimento a um grupo, o que o insere na cidade, destacando que no Brasil, em especial, a identidade salva vidas (VIEIRA, 2022, p. 65). Nesse sentido, precisamos fazer distinções sobre a interpretação que o discurso analítico pode fazer sobre a “psicologia de grupo contemporânea”. Alguns grupos e coletivos certamente se constituem numa lógica das paixões de gozo, que se radicalizam de forma feroz sobre a sociedade. Alguns são nomeados terroristas, pois seu desejo se expressa pela via da destruição e morte, como assistimos na depredação feita aos símbolos da República Brasileira no dia 8 de janeiro passado. Claro que nesses grupos existem diferentes identidades, das fascistas até os que imaginam que servem a um gozo imaginário, com valor de nomeação, como vimos no chamado grupo de “patriotas”, enrolados em bandeiras. Patriotas dá a eles um nome, uma identificação, que sustenta o vazio do não-saber quem são e, menos ainda, de seu desejo. Há muito a refletir sobre a formação moderna dos grupos. Nesses últimos, o que une tais indivíduos não é da ordem de um semblante, mas do puro real marcado pela vontade de morte no Outro, e não do Outro. Podemos pensar que há aí uma identificação construída sobre o que há no Outro de desejo de morte e que capitanearia, numa ordem de ferro, seus seguidores, satisfazendo sua vontade de gozo mortífera. Mecanismo semelhante à histeria moderna, na qual o sintoma é sintoma de um outro corpo, um sintoma em segundo grau (LAURENT, 2016, p. 28).

Fazer distinções sobre tais grupos é fundamental. Há grupos nos quais as identidades salvam e inserem seus participantes na cidade de forma civilizatória. E há grupos nos quais a identificação não se cristaliza na identidade, como diz Lacan1, podendo levar a um aumento da angústia do grupo ou levar ao pior, que seria a passagem ao ato na forma de destruição e morte pela absoluta identificação ao desejo de morte no Outro.

 

AOL: Ainda nesse tema sobre o discurso do mestre em nossa época, lembramos que a psicanálise aplicada é uma tentativa de diálogo com esse discurso. Hoje, um de seus pontos fundamentais seriam as classificações universalizantes próprias a uma psicopatologia que se apresenta como científica, cuja perspectiva se baseia, em última instância, na homogeneização do sintoma, reduzindo-o a um transtorno especializado. Nesse sentido, o que parece estar em questão é uma tentativa de enquadrar o gozo em um diagnóstico prêt-à-porter, ignorando, portanto, o efeito único e irredutível do encontro de cada sujeito com a linguagem. Diante disso, que diálogo se faz possível?

M.A: O discurso psicanalítico tem hoje uma tarefa da maior importância para o mundo contemporâneo. O discurso científico, ao tentar homogeneizar os sintomas, de forma a classificá-los por sintomas comuns a cada classe, replica o que vem ocorrendo na proliferação de grupos, em que se buscam nomeações que possam preencher o vazio das identificações. Temos hoje uma excelente demonstração dessa liquefação das identificações em identidades sem nenhuma relação com a singularidade do sujeito. Carolina Castelliano, da Defensoria Pública da União e secretária de Atuação no Sistema Prisional, afirmou, durante o UOL News, que muitos dos golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília, na maioria mulheres, apresentam sintomas de desconexão com a realidade e que elas próprias não entendem como praticaram os atos de violência. Foi criada uma identidade de grupo, ela diz, que eliminava a subjetividade de cada um: ao que o grupo determina, o sujeito adere. A pessoa se tornou o grupo, diz Carolina, “elas sentem falta do grupo quando são mantidas isoladas”. Essas observações da defensora pública nos ajudam a interpretar o que vem acontecendo com o sujeito moderno.

O neoliberalismo associado ao discurso capitalista vem oferecendo soluções às questões subjetivas para todos, indiscriminadamente. As famílias e as instituições sociais são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguir sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo. Hoje, por exemplo, temos formas diferentes de parentalidade que não assombram mais seus filhos, para usar um termo que Laurent isolou em Lacan: épater (assombrar, chocar). Cabe ao discurso analítico ofertar um diálogo com essas novas coordenadas do simbólico escutando as irrupções, as manifestações de angústia, fazendo frente, fazendo um judô (LAURENT, 2016, p. 36) com esses novos discursos. Laurent propõe que se investigue, nas novas formas do masculino e do feminino, “o que serve de pai na configuração dos gozos de hoje” (BARROS, 2022, p. 123). Podemos ficar com essa indicação, que pode orientar a prática dos analistas nesses grupos e coletivos, escutando de que forma a sexuação se mantém na ordem do dia definindo os sintomas contemporâneos.

 

AOL: No tocante à clínica, ela tem nos mostrado, nas últimas décadas, casos que se manifestam, predominantemente, sob formas de gozo, que convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Na sessão clínica de Angers, Miller interroga se essas novas formas como as psicoses podem se apresentar na atualidade, designadas, por fim, como psicoses ordinárias, não exigiriam uma nova posição do analista, propondo pensá-la sob a forma de uma neotransferência. Você pode nos esclarecer o que a particularizaria? E poderia nos dar alguma referência de sua clínica?

M.A: O último ensino de Lacan nos traz novas leituras para a transferência. Se a fala do analisando produz efeitos, não é certo que isso se deva exclusivamente à transferência, ou seja, que seria pela suposição de saber em análise que tais efeitos tenham surgido. A extensão feita por Lacan do significante à letra nos permitiu ler de outra forma o inconsciente em análise. Lacan reenvia, cada vez mais em seu ensino, a fala à escrita. Um escrito feito pela letra de gozo presente no acontecimento de corpo. Essa nova modalidade de leitura para o inconsciente exige que a prática do analista o leve a escutar, pela sonoridade de lalíngua, a fixação de gozo no que se diz. Escutar deixando-se ir além do que se diz, escapando à rotina de aparolaNesse sentido, a fineza da escuta analítica é estar à altura da interpretação feita pelo inconsciente sobre o trauma da linguagem. Isso promove uma nova leitura do conceito de transferência, levando-a ao estatuto de lalíngua, fazendo do analista um parceiro do corpo-intérprete. Podemos lembrar da paciente de Helenice Saldanha, citado em um texto recente da Correio (CASTRO, 2002, p. 90), quando a queixa de ser indigente ganha uma nova leitura a partir de se descobrir negra. Não se trata de um deslizamento de um significante a outro, mas de uma ruptura entre o simbólico e o imaginário, eclodindo um efeito real, um novo dizer que tem aí o estatuto de acontecimento de corpo.

Entrevista realizada por Letícia Mello, Márcia Bandeira, Patrícia Ribeiro e Renata Mendonça.

 


Referências 
ASSAD, M. “O impossível e o laço, o analista e a época”. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Analista: Presente. 2022.
BARROS, M. R. C. R. “Como viver a infância hoje? O que Lacan nos ensina sobre a sexuação na atualidade”. Latusa, 26. Rio de Janeiro, 2022, p. 123.
CASTRO, H. S. “Notas Sobre a Dimensão Política do Corpo”. Correio 87. São Paulo: EBP, 2022. p. 90.
LACAN, J. (1945). “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 213.
LAURENT, É. “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Entrevista à La Cause du Désir. Correio 87. São Paulo: EBP, 2016. p. 28.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 65.
UOL. “Golpistas presos alegam que não sabiam objetivo do ato no DF, diz defensora”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/19/golpistas-presos-alegam-que-nao-sabiam-objetivo-do-ato-no-df-diz-defensora.html.
VIEIRA, M. A. “O que se cristaliza em uma identidade”Latusa, 26. Rio de Janeiro: 2022. Seção Rio-EBP.

1. LACAN, J. O seminário, livro 24. Lição 12-11-1976. Citado por VIEIRA, 2022.