ALZHEIMER COMO RUPTURA DO LAÇO SOCIAL: UMA LEITURA PSICANALÍTICA[1]
GUILHERME CUNHA RIBEIRO
Médico e psicanalista, membro da EBP/AMP
guilhermecribeiro@outlook.com
Resumo: A partir do filme Meu pai, escrito e dirigido por Florian Zeller, este texto busca compreender as mudanças que ocorrem em portadores da doença de Alzheimer sob a ótica da psicanálise de orientação lacaniana. Essa doença neurológica se manifesta no campo da fala, onde são percebidas alterações no funcionamento significante, em especial na metáfora e na metonímia. As consequências são sentidas no discurso e em uma progressiva ruptura no laço social.
Palavras chaves: Alzheimer, psicanálise, laço social, discurso, Lacan
ALZHEIMER AS A RUPTURE OF THE SOCIAL BOND: A PSYCHOANALYTIC READING
Abstract: Based on the film My Father, written and directed by Florian Zeller, this text seeks to understand the changes that occur in people who suffer from Alzheimer’s disease from perspective of the Lacanian psychoanalysis. This neurological disease manifests itself in the field of speech, where alterations in signifying functioning are noticed, especially in metaphor and metonymy. The consequences are felt in the discourse and in a progressive break in the social bond.
Keywords: Alzheimer, psychoanalysis, social bond, discourse, Lacan
Utilizando a psicanálise de orientação lacaniana como sustentação teórica, este trabalho busca compreender o que acontece com um sujeito que apresenta a doença de Alzheimer. Não se trata de pensar a psicanálise como instrumento de tratamento, mas de usar alguns elementos de sua teoria na leitura e na interpretação do modo de presença do sujeito adoecido no laço social.
Sabemos que a medicina normatizou a área de conhecimento cognitivo comportamental como padrão de avaliação dessa condição médica por meio de testes de desempenho para diagnóstico e acompanhamento. Considero importante fazer outra leitura, que abra outra compreensão desse quadro tão dramático e frequente na vida dos idosos. A questão que se colocou desde o início foi entender como a doença de Alzheimer afeta o sujeito em sua relação com o laço social, tendo como pressuposto que é a linguagem que nos conecta com esse laço. Para Lacan, é o laço social o que o sujeito tem de mais real. No Seminário 20, ele aponta que, “no fim das contas, há apenas isto, o laço social”, para completar que esse “laço social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é, o ser falante” (LACAN [1973], p. 74). Foi a partir do campo da fala que procurei construir a abordagem das alterações que ocorrem na doença de Alzheimer, campo no qual se pode verificar como se dá a ancoragem do laço social na linguagem.
Para abordar a relação do sujeito em seu laço social, é importante partir da distinção entre fala e linguagem (BASSOLS, 2017), instituída por Lacan desde o “Discurso de Roma”. O campo da linguagem é a estrutura simbólica de significantes que constituem o universo do Outro e que operam em uma sincronia que antecede o sujeito. Já a função da fala trata da relação do sujeito com a palavra propriamente dita, na diacronia da cadeia significante. Distinto do campo da linguagem e da função da fala está o suporte orgânico da fala, dependente da plena função dos órgãos fonador e neurológico do corpo.
Para essa leitura, farei uso de alguns fragmentos da obra Meu pai, do diretor e dramaturgo Florian Zeller, que narra a estória de Anthony, portador de quadro demencial — que, apesar de não nomeado pelo autor como tal, tomarei como típico da doença de Alzheimer pela similaridade com os quadros dessa patologia. A doença do personagem está na fase em que se torna obrigatória a presença da família e de cuidadores, diante da progressiva dificuldade do sujeito em lidar com o que se passa ao seu redor.
O personagem, brilhantemente interpretado no cinema por Anthony Hopkins, mostra a progressiva destituição subjetiva e a ruptura do laço social, tão características dessa condição. Essa destituição se dá com o avanço das alterações neurológicas e com suas consequências na função da fala, bem como na relação com o universo simbólico e cultural do próprio sujeito. No filme, percebemos o comovente esforço de Anthony para entender seu cotidiano e se manter em conexão com as pessoas e com a vida. Tratando-se de uma obra que mostra de maneira arguta o quadro de sujeitos nessa condição, considerei-a um bom caminho para tentar entender as alterações da função da fala e da posição do sujeito no laço social que podem acontecer na doença de Alzheimer.
Passo então a descrever algumas alterações ocorridas com o personagem Anthony. Destaco sua dificuldade em compreender o momento que vive, o seu aqui e agora, que se mostra muito afetado pela doença. Essa alteração do aqui e agora se manifesta de várias maneiras, a saber, como dificuldades em distinguir o presente e o passado, que se misturam, bem como em localizar-se na morada atual, confundindo-a com a anterior; dificuldade para reter informações, perdendo objetos e esquecendo-se de acontecimentos cotidianos e fatos relevantes, como a morte da filha mais jovem, em um acidente; redução dos campos de interesse na vida, em uma espécie de encolhimento do campo de investimento libidinal; progressivas solidão e limitações para encontrar soluções em sua vida.
O que se mostra importante para este estudo é a redução de sua habilidade discursiva: os diálogos têm os campos de interesse reduzidos, concentrados na busca de uma melhor orientação no aqui e agora. Em função dessa redução da habilidade discursiva, suas defesas se modificam. Para lidar com a desorientação temporal, o personagem diz ter dois relógios: um no pulso e outro na cabeça. Pela dificuldade em entender o espaço onde vive, busca as características de sua antiga casa nos cômodos atuais. Já em outros momentos, apresentam-se defesas paranoicas, como quando acusa a filha de querer roubá-lo.
Outras vezes anda pela casa com expressão atônita, perdida. Em uma situação interessante, quando se vê diante de uma jovem garota, consegue usar de fantasias para se mostrar sedutor e simpático. Diz ter sido dançarino no passado, o que nunca aconteceu. Outra defesa que se dá ao longo de todo o filme — e que acontece com a maior parte dos portadores de Alzheimer — é o uso de lembranças antigas, acessíveis à fala, para dar conta do cotidiano.
Sobretudo se percebe o esforço comovente de Anthony, que parece perplexo, em muitos momentos, diante de sua progressiva inabilidade para se manter conectado com seus objetos e com as pessoas próximas. Penso que esse esforço seja para se manter no discurso que o conecta ao laço social. No entanto, aquilo que, no passado, fluía de maneira automática em sua vida, agora se mostra em uma progressiva ruptura.
Para tentar compreender o que se passa com Anthony e, de resto, com muitos portadores da doença de Alzheimer, parto do princípio de que, “mesmo quando se trata de transtornos orgânicos das funções implicadas na fala (…) as disfunções seguem leis simbólicas estruturais da linguagem” (BASSOLS, 2017). A hipótese que sustenta esse trabalho é que a afetação do real do corpo pela doença determina a presença de modificações progressivas na função da fala do sujeito, o que resulta em uma obrigatória tentativa de reposicionamento no discurso que sustenta o sujeito da enunciação no laço social.
Sabemos com Lacan que a função da fala comporta uma função de semblante, pois cada palavra é apenas um meio, como qualquer outro, para sustentar o laço social. Para dar conta dessa função de semblante, Lacan articulou o discurso com a maneira de associar o sujeito da enunciação com o laço social. Para ele, o discurso é uma estrutura necessária, “que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN [1969-70], p. 11). A estruturação dos discursos no laço se define a partir da incidência da linguagem para o sujeito, sendo que essa estrutura discursiva pode se manter mesmo sem palavras, sustentada por certas relações fundamentais que estão asseguradas com a linguagem. Pois é a linguagem que “instaura um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN [1969-70], p. 11).
Quais seriam então as alterações que podemos observar no funcionamento significante do personagem?
A evolução da doença no corpo altera o funcionamento da fala e seus efeitos de metáfora e metonímia (MILLER [1998-99], p. 23). O efeito metonímico se dá com o deslizamento do sentido, quando um significante se conecta a outro significante. Já o efeito metafórico ocorre quando há uma substituição de um significante por outro. O discurso funciona na medida da interrelação entre a metáfora e a metonímia.
Essa máquina de funcionamento significante funciona mal em Anthony e em muitos daqueles portadores do mal de Alzheimer. Tratando-se de uma patologia progressiva, a deterioração dos efeitos metonímicos e metafóricos aumenta com o avançar da doença. Durante o filme, vemos o sujeito se apresentar confuso e atônito, o que parece um indicativo de que, naquele momento, os significantes não deslizam metonimicamente, fazendo com que ele se desoriente, pois não há uma significação que relance o funcionamento significante.
Diante da dificuldade discursiva, com frequência Anthony é capaz de lançar mão de significantes e imagens que, mesmo fora do contexto vivido, o ajudam a se situar. Um exemplo do uso de significantes fora de contexto se dá quando ele recebe, em sua casa, uma jovem candidata à função de cuidadora.
Inicialmente ele não se dá conta da razão da visita e logo a associa à imagem de sua filha desaparecida, o que o ajuda a desempenhar um papel charmoso e sedutor. Ao associá-la à imagem da filha, ele pode sair da situação de desamparo, mesmo que tenha que usar uma significação fora do contexto daquele momento.
Uma outra defesa que se mostra presente para Anthony é a resposta agressiva e paranoica. Ele tem dificuldade de reconhecer o ambiente em que vive; insiste que ainda está em seu apartamento e, quando confrontado com a realidade por sua filha Anne, a acusa de querer roubá-lo, assim como acusa as cuidadoras de roubar seus objetos. No filme, essas situações se repetem, mas, a cada vez que acontecem, não se sustentam por muito tempo, ao passo que o personagem esquece o ocorrido e alivia-se o mal-estar. Essa defesa agressiva e paranoica parece estar relacionada a um problema no efeito metafórico, na medida da dificuldade em fazer um significante ser substituído por outro.
Podemos também perceber que, em certas situações, não há nenhuma defesa para dar conta do desamparo, como quando o personagem não consegue encontrar uma palavra ou imagem que o ajude a se situar. Nesse momento, ocorre uma interrupção da articulação significante com consequências diferentes a cada vez. Quando Anthony recebe a nova cuidadora durante seu café da manhã e não a reconhece, apesar de ter estado com ela no dia anterior, revela-se a falha no funcionamento significante. Isso gera uma ruptura discursiva — ele corre para seu quarto e não retoma o discurso.
Diante desse tipo de situação, o filme mostra uma maneira de ajudar a sair da ruptura momentânea. A interposição habilidosa de novos significantes por aqueles que estão ao seu lado pode permitir que o sujeito volte a apresentar o deslizamento significante. Mesmo que não seja sempre efetiva, essa oferta faz o efeito de uma espécie de prótese ad hoc, com funcionamento apenas evanescente.
Com o avançar da doença, torna-se mais difícil buscar palavras e imagens que deem conta do desamparo, como na última cena do filme, quando a habilidosa enfermeira o ajuda a se situar no discurso, permitindo que os significantes se articulem, mesmo com dificuldade. No entanto, os limites surgem a todo momento: ele não reconhece o funcionário que vai ao seu quarto diariamente, não se lembra do nome da enfermeira e chega a esquecer seu próprio nome. Diante da percepção de suas falhas, Anthony interpõe lembranças mais antigas, como a de sua mãe, confundindo-a com sua filha. Ao constatar a ausência de sua mãe, Anthony está diante do desamparo total: ele chora, mas ainda é capaz de elaborar sobre sua condição, dizendo que não sabe o que está acontecendo e que se sente como se estivesse perdendo todas as suas “folhas”. Aí constatamos que a função metafórica ainda está presente.
O discurso que não funciona
Em relação ao enlaçamento do real, do simbólico e do imaginário, Lacan aponta que é o enunciado desse enlaçamento que opera na fala durante a análise, pois esses termos emergem, e o fazer do analista é seguir esse discurso. Mas os outros discursos também estão situados a partir do real. O discurso do mestre, articulado ao funcionamento simbólico, é para que “as coisas caminhem no passo de todos”, o que faz frente ao real, “pois este, justamente, é o que não caminha” e o que “não cessa de se repetir para impor um entrave a essa marcha” (LACAN [1974], p.16), pois retorna sempre ao mesmo lugar. Já a função do imaginário reflete “o mundo como ele é — imaginário” (LACAN [1974], p. 16). Para situar o imaginário, é preciso que a função da representação seja reduzida e localizada onde ela está, ou seja, no corpo. O trabalho de Lacan com a imagem, desde o texto “Estádio do espelho”, conduz a entender o estatuto de real que a imagem assume, do poder da imagem como real. Esse poder confere um efeito de verdade que afasta o imaginário da ideia da imaginação, por isso sua função central na constituição subjetiva.
No caso do personagem Anthony, fica patente que algo não caminha, não há a fluência que se pode perceber quando a vida marcha de acordo com o discurso do inconsciente. Algo do real do corpo se impõe e impede que o discurso caminhe. Na medida do avanço da doença, esse real do corpo não cessa de retornar e interferir no processo discursivo, comprometendo a função simbólica.
Como fragilidade do enlaçamento simbólico, a função do imaginário se acentua como defesa a essa progressiva destituição do funcionamento significante, na tentativa de sustentar o discurso. Tomo o imaginário aqui como o próprio corpo do personagem, que reflete sua posição no mundo. É com o próprio corpo como imaginário que Anthony tenta se situar em seu aqui e agora. Ele busca elementos imaginários, seus objetos, sua casa para usá-los como suporte. Mas essa tentativa se dá em uma descontinuidade temporal: o “aqui e agora” de Anthony ocorre em uma fusão de presente e passado, impedindo que ele localize seu corpo na casa onde mora e que encontre os objetos com os quais se identifica — como seu relógio e o quadro pintado pela filha. É uma defesa que permite soluções temporárias, frágeis, na tentativa de se manter no discurso. Em um esforço de dar sentido a sua vida, na fragilidade de seu corpo e de seu enlaçamento discursivo, Anthony ainda se mostra capaz de fazer metáforas, na medida que o imaginário consegue temporariamente sustentá-lo no discurso.
No progresso e na solidão da doença, em uma cena comovente, o personagem demanda encontrar quem ele sabe que não faltaria com ele, que permitiria uma significação vinda do Outro: sua mãe. Florian Zeller, dramaturgo e diretor do filme, mostrou com sensibilidade a importância de os portadores do mal de Alzheimer terem ao seu lado alguém capaz de oferecer os semblantes necessários para que seu desamparo não seja completo.