O INCONSCIENTE E O CORPO POLÍTICO: A PSICANÁLISE HOJE[1] 

RICARDO SELDES
Psicanalista, AME da EOL/AMP
ricardoseldes@gmail.com

Resumo: O futuro da psicanálise é algo que está sempre em questão, pois está ligado ao lugar de onde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado, algo que exige a abertura para o desconhecido e não ao que já está categorizado. Nessa perspectiva, se indicações ao analista existissem, elas estariam ligadas a uma transmissão da psicanálise, que se faz de analisante a analista e pela transferência de trabalho, apresentando o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.

Palavras chaves: futuro da psicanálise; transmissão.

Interpretation: The Unconscious and the body politic: psychoanalysis today.

Abstract: The future of psychoanalysis is something that is always in question because it relates to how each person managed to do with their analyzed symptom, something that requires an opening to the unknown and not to what is already categorized. From this perspective, if analyst referrals existed, it would be linked to a transmission of psychoanalysis, which happens from analysand to analyst and through transference of work, and having Lacan’s desire, which is always alive and new, against the freezing standards of an experience that can’t help but be as alive as this desire.

Keywords: future of psychoanalysis; transmission.

 

Imagem: Fred Bandeira

 

Agradeço este convite por vários motivos: primeiro, pela amizade que tenho com vocês há muitos anos, pois não é novidade que eu gosto da Escola Brasileira de Psicanálise, e porque acredito que, nestes tempos em que existem tantos ataques à liberdade da palavra e o conseqüente ataque à psicanálise, os psicanalistas e, em particular, os de orientação lacaniana, têm que conseguir ficar mais unidos do que nunca.

Claro que, como o sangue não-todista corre em nossas veias, a pergunta que nos fazemos é: como podemos ser solidários com o futuro da psicanálise? Isso é algo que está sempre em questão.

Essa mesma proposta exige alguns princípios e alguns acordos que, como a verdade, nunca são definitivos, nem devem nos levar à burocratização da prática clínica ou da prática institucional, que são duas experiências subjetivas. Claro que o coletivo, o individual, as forças que fazemos juntos estão sempre em questão, mas pelo discurso analítico, desde o lugar aonde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado ou, podemos dizer, com seu “sinthoma”, na medida em que é sempre um arranjo.

Há alguns anos, em preparação para um dos Congressos da Associação Mundial de Psicanálise que aconteceu no Brasil, na Bahia[2], tive o prazer de fazer parte do Comitê de Ação junto com meus amigos Esthela Solano, Jésus Santiago e Marco Focchi. Na ocasião, o tema que escolhi foi o das indicações e contraindicações à psicanálise a partir de uma intervenção de Miller na International Psychoanalytical Association (IPA), na qual ele falou sobre as não-indicações à psicanálise, o que é uma forma de conceber a prática diferente daquela de muitos dos colegas da IPA.

O essencial poderia ser resumido dizendo que, com a psicanálise aplicada, não temos contraindicações, e podemos acrescentar: se, no passado, se falava das indicações para uma análise, era para localizar se uma determinada estrutura psíquica era adequada ou não. No tempo do falasser, quase todo mundo pode ser analisado.

Qual foi a principal contraindicação de Freud? Ele afirmou:

“Nos anos anteriores à guerra, quando a afluência de pacientes estrangeiros me tornou independente da simpatia ou antipatia de minha própria cidade, eu seguia a regra de não tratar pacientes que não fossem sus juris, ou seja, que não fossem independentes nas questões essenciais da vida.” (FREUD, 1917, p.610)

Sui juris é uma frase latina que significa, literalmente ‘em seu próprio direito’. Em Direito Civil, indica a capacidade jurídica para administrar seus próprios negócios. Mas, é claro, continua Freud: “Não é algo que todo psicanalista pode se permitir” (FREUD, 1917, p.610).

Freud assim se manifesta: “Os senhores perceberão, naturalmente, como as perspectivas de um tratamento são determinadas pelo meio social e pela condição cultural de uma família“ (FREUD, 1917, p.610). Freud mesmo teve que suportar abusos da família de uma paciente que foi retirada do tratamento por ter  revelado em análise segredos extraconjugais da mãe.

No início de um tratamento ainda não há um caso, mas há condições para que isso ocorra. Desde a primeira consulta, localizamos dados clínicos que nos permitam captar a decisão do sujeito. Estamos no limite do sujeito suposto saber, estamos nas provas que o analista, sutilmente, pede para que se permita que o sujeito suposto saber se instale.

Nos tempos atuais, tentamos trabalhar a inconsistência, ou seja, algo diferente da psicanálise construída na lógica das classes, a que permite dizer isso é ou isso não é. Assim como a primeira psicanálise foi erguida na lógica do para todo x, neste momento atual ela visa não a classe, senão a série, pois com ela temos a invenção, os arranjos e a abertura mais para o desconhecido do que para o que está categorizado.

Os trabalhos do IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise que investigou a prática sem standards, mas não sem princípios[2], estavam em andamento quando me detive sobre um Simpósio da IPA, do ano de 1967,[3] para pesquisar sobre como as regras técnicas, das quais Lacan nos dispensa, tentavam localizar o real que encontravam em sua prática. Nesse Simpósio descobri, em princípio, três períodos diferentes sobre as regras técnicas que interrogavam aqueles pontos limites, nos quais a experiência do real estava dentro ou fora da experiência analítica.

O esforço dos analistas das décadas de 1920 e 1930 se concentrou em conceituar o obstáculo que limita a intervenção analítica — não para retroceder, mas para tentar inventar uma maneira de ultrapassar o obstáculo. No segundo período, proliferaram as listas de contraindicações baseadas em traços de inadequação dos pacientes ao dispositivo. Também coincide com o que chamaram de um entusiasmo excessivo dos colegas para cuidar de pacientes decepcionados com a psiquiatria.

O terceiro e atual momento da IPA é aquele em que a psicanálise se desprende das regras — não em busca de desregulamentar os padrões e capturar a singularidade do gozo de cada pessoa, mas, ao contrário, para homogeneizar todos os gozos.

Para Lacan, não se trata de escolher os pacientes, mas de que eles possam dar forma de pergunta à sua demanda, que a problematizem. Estamos obrigados a saber o que se pede; mais precisamente, o que define a demanda é que nunca se sabe o que se deseja. Lacan pergunta: “O sujeito suposto saber de onde é suportada, definida a transferência é suposto saber o quê? Como opera? (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa). E acrescenta:

“Seria totalmente excessivo dizer que o analista sabe de que modo operar. O que seria necessário é que ele saiba operar convenientemente, ou seja, que possa se dar conta  do alcance das palavras para seu analisando, o que incontestavelmente ignora.” (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa)

Daí a indicação de não compreender. No lugar de técnicas e regras, que já vimos a que conduzem, colocamo-nos sob a noção de enfrentamento do real. Neste ponto, sabemos que não apostamos em interpretações padrão, mas que nossas interpretações são feitas sob medida.

O risco de assimilar a interpretação como formação do inconsciente é acreditar que ela é o que responde à associação livre, com a consequência de tomar a interpretação como associação do analista. Confundir interpretação com associação é pensar que o significante da interpretação preencheria um buraco nas associações do sujeito, supondo que o preenchimento desse buraco permitiria ao sujeito dar um passo. Partimos da ideia de que é a interpretação que vai ao encontro da transferência — não uma associação que proporciona ao sujeito a ligação com o S2, mas que opera no vetor de uma dissociação, de um corte na cadeia significante entre S1 e S2. Isso nos confronta com a dimensão do S1 sozinho.

Quando estamos nesse nível, podemos considerar que existem certas palavras que o sujeito distingue, que  lhe tocam; quaisquer palavras, inclusive palavras banais que  foram ditas a um terceiro e escutadas por acaso. Mas, se o sujeito as toma para si, elas adquirem um status de palavras primeiras, separadas, não binárias, como está na moda, pois a cadeia significante é binária. Visamos então o não binário para capturar, produzir, isolar o S1. O corte da interpretação produz uma separação significativa do S2 como se pode ver no andar inferior do Discurso do Analista.

Como evitar que a intervenção do analista, que denominamos, genericamente, de interpretação, não acrescente mais um significante à cadeia, mas a produção daquele S1? Vamos partir do mais básico, da idéia de que a psicanálise é uma oferta explícita de palavras: fale, estou ouvindo. O que está implícito é o não entendimento, sem limitar a curiosidade necessária ao que a palavra dita produz.

Entretanto, no momento em que o enquadramento analítico fica explícito ao estabelecer as regras do jogo, adiciona-se uma explicação: você associa, fala tudo, a mais plena bobagem, e aí eu vou interpretá-la. Alguns chamavam de devolver, termo de que nunca gostei, como uma espécie de reembolso; não há virtude em supor um dar e receber quando, muitas vezes, o que se impõe é o silêncio do analista.

Lacan vai propor no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), naquele momento de ruptura definitiva com a IPA, a função do analista como objeto, destacando, especialmente, a tensão que existe entre o inconsciente e a interpretação. Já não se trata do inconsciente como reservatório dos significantes do sujeito, pois, quando se trata do discurso do analista, é o inconsciente que interpreta. O que poderíamos acrescentar que não seja para redobrar essa interpretação?

Como dissemos antes, Lacan trará à tona a questão do fechamento do inconsciente, e há ai um paradoxo, pois ele nos dirá que esperamos esse efeito da transferência para interpretar, ao mesmo tempo em que a transferencia fecha o sujeito ao efeito de nossa interpretação. São os enganos do amor…

Isso não impedirá Lacan de avançar dizendo que a transferência é o amor que se dirige ao saber, o que implica que a interpretação não obtém seu alcance senão nos momentos em que o saber inconsciente é interrompido. E o que isso quer dizer?

Tentamos localizar uma erótica da presença do analista quando Lacan definiu a transferência como a atualização (no sentido do ato) da realidade do inconsciente como sexual.

Para entender isso, temos que fazer um pequeno loop porque, se o sujeito entra em jogo a partir do suporte fundamental que é o Sujeito Suposto Saber, isso não acontece simplesmente, sem que haja um porquê. Há uma causa anterior e Lacan aponta, de modo claríssimo, que, se há uma suposição de saber, isso se dá porque há um sujeito do desejo. Não é pouca coisa dizer isso. Se existe um suposto  saber, é porque o analista é o sujeito do desejo.

Disso decorre a dificuldade quando o Sujeito Suposto Saber é instalado em outra parte, em outra pessoa. Essa é uma estranha formulação, porque, nesse ponto, Lacan já não coloca mais  a análise como intersubjetiva. A torção que ele faz é percebida. Quando há amor de transferência isso remete ao narcisismo ou, como disse Freud, ama-se ser amado.

Mas que tipo de efeitos pretendemos? Os efeitos lacanianos são o que definem a experiência analítica como uma pesquisa clínica para encontrar os pontos onde se alcança a certeza, no encadeamento entre a cadeia significante e o gozo pulsional. Se existe um fenômeno lacaniano, isso implica que ele é escutado e, se existe, é porque ele é apresentado com um sentido. No entanto, o inconsciente tem mais a ver com o Witz. Esse é um princípio que nos leva a evitar a compreensão emocional dos pacientes.

Se indicações ao analista existissem, elas  indicariam aquele ponto em que a transmissão da psicanálise, que se faz de sujeito a sujeito e pela transferência de trabalho, apresenta o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.

Ao contrário da tarefa complicada e impossível de tentar homogeneizar os gozos, seja por decreto, seja por invasão, interrogamo-nos sobre algo que nos retira da lógica de um certo totalitarismo psicanalítico. Sabemos que o totalitarismo é uma esperança, a de reabsorver as decisões singulares, a multiplicidade da verdade. No totalitarismo só existe uma verdade, que é a enorme tarefa de estabelecer o reino do Um. No campo da política temos claramente o que Freud indicou em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). Na política cidadã, o totalitarismo tem boas intenções; a aspiração a um mundo de harmonia, todo mundo reconciliado, como algumas religiões o buscaram (na superfície, é claro). Mas ainda é uma ilusão que não se sustenta.

Não preciso explicar muito quando digo que, se falamos do sujeito do inconsciente, pensamos em desejo, e, quando colocamos a questão do falasser, estamos do lado do gozo e da pulsão, em que o sujeito é sempre feliz. Ele é feliz porque a pulsão é sempre satisfeita, direta ou indiretamente; do ponto de vista econômico, ela é satisfeita dolorosamente ou agradavelmente, do lado do prazer ou do desprazer. Esta tese corresponde a apontar que existem arranjos ou modos de gozo, como sugere Lacan, em Televisão (LACAN, 1974/2003), nos quais  o sujeito é sempre feliz na satisfação da repetição.

Assim, afirmamos que la urgencia dicha, como dizemos em espanhol, dita no sentido de falada — nos remete àquela estranha felicidade do silêncio das pulsões que podem atingir o mais mortífero.

Miller disse que afirmar que o sujeito é feliz é uma vociferação. Uma vociferação é uma exclamação que vem de uma voz muito alta. Não é uma afirmação, nem uma proposição. A  proposição sempre vem com sua suposta afirmação: é um fato sem valor de verdade ou falsidade. A vociferação, por outro lado, supera a divisão do enunciado e da enunciação, pois não suspende, nem se distancia de quem a pronuncia, mesmo quando não há outro que não se distancie de onde se pronuncia. Ela é, fundamentalmente, seu ponto de emissão.

Somos consultados, em várias ocasiões, devido à depressão:

“O que a tristeza tem de central é que ela é um saber; existe lucidez na tristeza, mas é um saber triste, por ser cortado da vida, separado do real do gozo. É um saber que se articula só, e que perdeu o vazio que o articularia ao gozo em si.” (LAURENT, 2000, p.88)

O analista é aquele que se orienta pela ética do bem dizer, que prescreve encontrar um acordo, uma harmonia, sim, mas se trata de uma certa harmonia entre o significante e o gozo. O problema da depressão é uma questão de saber, é fundamentalmente um saber triste, que não pode ser dito. Recebemos pacientes deprimidos, muitas vezes como uma emergência, moderados ou graves, que não conseguem colocar em discurso algo do não dito. Paradoxalmente, a chamamos de “a dita urgência”, aquela que se desfruta sem saber. A escuta da demanda de cada um marca uma virada, pois, para o discurso analítico, os fatos do desejo e a resposta do gozo são singulares.

Se a temporalidade da análise é a angústia, e isso vale também para a urgência, para aquele momento de perplexidade em que a palavra fica presa na garganta, como diria Chico Buarque. Temos a função operativa do desejo do analista que visa despertar um contorno de espera. Não de esperança, isso sempre complica. Podemos caracterizá-la como uma proposta que permite uma mistura de aborrecimento, nos momentos de agitação – o tédio está sempre à espera de Outra Coisa –  com a oferta de encontrar uma surpresa mais eficiente que a disjunção ou o desapego do Outro.

Freud descobriu  que o corpo do falasser fala. Mas também goza, especificou Lacan. É o que a psicanálise demonstra: não há gozo sem corpo e que uma análise não visa apenas decifrar a verdade, mas também o gozo produzido no sinthoma.

Na aula V do seminário Mais Ainda, Lacan dirá que “todas as necessidades do ser falante estão contaminadas pelo fato de estarem implicadas com uma outra satisfação – sublinhem as três últimas palavras – à qual elas podem faltar.” (LACAN, 1973, p.70)

Já sabíamos que não basta pensar na satisfação da necessidade para entender o que é satisfação, pois existe outra. Qual é o outro termo ao qual essa outra satisfação se somaria? Essa outra satisfação dará origem ao inconsciente, que se satisfaz no nível da linguagem, diz Lacan nessa aula do seminário Mais, ainda, na qual já está preparando seu conceito de falasser.

O inconsciente é o lugar da satisfação, e não apenas do que é interpretado ou decifrado.Nesse seminário, o salto é perceber que o significante não tem apenas efeitos de significação, mas também de gozo, ou seja, o significante não apenas mortifica o organismo do ser vivo, mas também produz gozo. E é com isso que temos que lidar na análise, que é, fundamentalmente, uma experiência de fala.

Isso é também, particularmente, verdadeiro para a interpretação que é o modo de intervenção do analista. A interpretação não é solicitada por seus efeitos de sentido, mas de gozo, por seus efeitos corporificados. Trata-se aí de colocar, junto à dimensão da verdade, a da materialidade do significante, ou seja, o som, o que nos leva à noção de lalíngua, na qual é o som, o fonema, que tem uma importância especial. Isso dá à interpretação uma cor especial, essa sua emigração da comunicação do saber para um grito, uma jaculatória, um uso do significante sem o uso do sentido, pois, o que importa é a sua consistência, “o que poderia fazer soar o sino do gozo de maneira conveniente para satisfazer-se com ele” (MILLER, 2011, p.268, tradução nossa).

E aqui estamos no ponto em questão: devemos separar o gozo da satisfação. Não haveria experiência analítica se o gozo fosse satisfatório. Somente a jaculação pode retificar, não o sujeito, mas o gozo para que possa ser concebido como satisfatório. Em outras palavras, temos um gozo que seria satisfatório e um outro que não.

Faço um curto-circuito para pensar no discurso da ciência que tende a ser universalista, pois não pode responder à questão que nos é colocada em consequência do que chamamos de a modalidade do gozo ou, pode-se dizer, o imperativo de gozo do qual cada um é escravo. E isso é em si uma resposta.

Pretende-se que o discurso científico ofereça respostas para o gozo, mesmo aquele  que vemos muito grosseiramente em nosso campo, que atua como um discurso científico, com suas extrações absurdas e estatísticas sugestivas.

 

Revisão: Beatriz Espírito Santo

REFERÊNCIAS: 
FREUD, S. (1917). Conferência 28, A terapia analítica. In: Sigmund Freud, Obras Completas, v. 13, Conferências introdutórias à psicanálise (1916-17), São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FREUD. S. (1921) Psicologia das massas e análise do eu. In: Sigmund Freud, Obras Completas, v. 15. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos – 1920-23, São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1974). Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1973). Aristóteles e Freud: a Outra satisfação, In: O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1977). Una práctica de charlataneria. In: O Seminário, livro 25: El momento de concluir, inédito.
LAURENT, E. (2000). As paixões do ser. Seminário da VII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise. Salvador, Bahia: Escola Brasileira de Psicanálise, 2000.
MILLER, J.A. (2011). El goce no miente, In: Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2020.

[1] Conferência pronunciada na Aula Inaugural do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 07 de março de 2022.
[2] IV Congresso, em Comandatuba, 2004: “A prática lacaniana da psicanálise: sem standard mas não sem princípios”
[3] IV Congresso, em Comandatuba, 2004: “A prática lacaniana da psicanálise: sem standard mas não sem princípios”
[4] Trata-se do 25º. Congresso da International Psichoanalytical Association (IPA), ocorrido em Copenhagen, sobre o tema “Tratamento Psicanalítico da Neurose Obsessiva”



DO NÓ COMO SUPORTE DO SUJEITO[1] 

Frederico Feu de Carvalho
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
fredericofeu@uol.com.br

Resumo: A partir do terceiro capítulo do Seminário 23, de J. Lacan, o texto se propõe a esclarecer a utilização do nó borromeano por Lacan e algumas de suas aplicações à clínica das psicoses. Nesse contexto, confere-se privilégio à noção de Sinthoma como suporte do sujeito.

Palavras-chave: Nó borromeano; Sinthoma; sujeito.

From the node as support of the subject

Abstract: Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.

Keywords: Borromean knot; Sinthome; Subject,

 

 

Imagem: Nelson de Almeida

O título desta intervenção, “Do nó como suporte do sujeito”, refere-se ao terceiro capítulo do Seminário 23, de Lacan, proferido no dia 16 de dezembro de 1975. Proponho retomar aqui essa lição acrescentando algumas reflexões sobre o tema do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais para o primeiro semestre de 2022, “O acontecimento de corpo político”, de forma a extrair consequências para nossa prática com as psicoses.

A clínica borromeana, se podemos chamar assim a clínica pensada a partir do paradigma dos nós, se conforma à psicose joyceana, assim como a clínica estrutural se conforma à psicose schereberiana. Mais do que abordar as formas ditas não desencadeadas da psicose, a clínica borromeana nos permite pensar formas de encadeamento não referidas ao discurso ou à norma social. Nesse sentido, podemos dizer que a psicose joyceana se refere à psicose funcional, ou seja, à psicose do ponto de vista de uma solução, uma invenção, uma armadura singular que suporta a existência de um sujeito. Chamamos de sinthoma essa armadura singular, a ser lida como cifra de gozo. Acredito que podemos formular assim a questão que nos ocupa este semestre: sem dúvida alguma, a política é capaz de produzir acontecimento de corpo. Isso ocorre toda vez que o sinthoma de cada um, na medida em que ele é suportado pelas marcas que uma cultura inscreve no corpo do falasser, é afetado pelo acontecimento político.

– I –

Um nó borromeano é um tipo de amarração de três anéis, traçado de forma com que cada anel mantenha sua independência com relação aos demais. Essa é a condição borromena. O nó borromeano, diz Lacan, é “o forçamento de uma nova escrita (…) e é também o forçamento de um novo tipo de ideia (…) que não floresce espontaneamente apenas devido ao que faz sentido, isto é, ao imaginário” (LACAN, 1975/76, p. 127). Há diferentes formas de se conceber a amarração borromeana, assim como diversas formas de reparar uma amarração que apresenta um erro, como em Joyce. Uma política do sinthoma seria aquela que se atém a essa diversidade e condições singulares. Isso implica, como diz Lacan logo no início dessa lição, “que tivéssemos na análise o sentimento de um risco absoluto” (LACAN, 1975/76, p. 44). Esse risco parece condizente com a clínica borromeana, assim como o cálculo interpretativo parece se adequar melhor à clínica estrutural. Trata-se do risco inerente ao manejo dos nós, na medida em que o ato analítico é capaz de amarrar, afrouxar, apertar ou desfazer uma determinada amarração sinthomática que suporta a vida de um sujeito.

Lacan deixa no ar essa advertência para se ocupar, em seguida, de uma exigência derivada do que poderíamos chamar de realismo nodal. Qual é o mínimo de elos possíveis para que ocorra a propriedade borromeana? Como vimos, a propriedade borromeana pode se dar entre três anéis, se eles estabelecem entre si um traçado específico e se eles se amarram uns aos outros, estabelecendo uma continuidade entre eles de forma que o corte de um libera os outros dois.

 

Mas como manter juntos três anéis que não se amarram entre si, que não se amarram borromeanamente, por serem descontínuos devido à heterogeneidade entre eles, como é o caso do Real, do Simbólico e do Imaginário? Aqui é preciso supor que Real, Simbólico e Imaginário não se enodam espontaneamente, que o nó borromeano não é uma formação natural ou uma criação ex-nihilo e que é necessário acrescentar um quarto anel para que a amarração borromeana aconteça. É o que distingue o sinthoma como invenção de um sujeito.

 

Vejamos o que diz Lacan no referido capítulo do Seminário 23:

“Para que alguma coisa, que é preciso dizer que seja da ordem do sujeito — uma vez que o sujeito é apenas suposto —, encontre-se, em suma, sustentada no nó de três, será que basta que o nó de três se enode, ele mesmo, borromeanamente a três? Não nos parece que o mínimo em uma cadeia borromeana é sempre constituído por um nó de quatro?” (LACAN, 1975/76, p. 49).

(…) “É sempre em três suportes, que nesse caso chamaremos de subjetivos, isto é, pessoais, que um quarto vai se apoiar. Se vocês se lembrarem do modo com que introduzi esse quarto elemento em relação aos três elementos, cada um deles supostamente constituindo alguma coisa de pessoal, o quarto será o que enuncio este ano como o sinthoma” (LACAN, 1975/76, p. 50).

O quarto anel, que nomeamos sinthoma, escrito com “th”, tem a propriedade de manter junto o que, por definição, está separado (RSI). Nessa perspectiva, quando se considera que Real, Simbólico e Imaginário não estão amarrados borromeanamente, mas soltos, não tendo relação um com o outro, é o sinthoma que faz a amarração borromeana e é nesse sentido que ele é suporte do sujeito.

– II –

O que significa dizer que o nó suporta o sujeito? Significa que o sujeito não existe sem relação com seu sintoma. Ou seja: ele não existe a não ser pelo sintoma que o suporta, o que faz do sintoma a unidade clínica fundamental e irredutível de todo falasser. Mas o sujeito desconhece o seu sintoma, que para ele pode ser um estorvo, um desarranjo, um imperativo de gozo que contraria seus ideais ou uma forma clandestina de existência. No melhor dos casos, o sujeito é uma resposta ao real do sintoma. É essa resposta do sujeito ao real do sintoma que Lacan vai escrever de forma distinta, recorrendo a uma grafia antiga, como “Sinthoma”. Essa resposta se limita a um saber-fazer com o seu sintoma, ou sintomas, com isso que não se pode recusar, na medida em que o sintoma é o que suporta um sujeito.

Lacan cunhou, em seu último ensino, o termo falasser para expressar a relação entre o inconsciente e o gozo cifrado do sintoma que se estabelece sobretudo nas neuroses. A abordagem estrutural das formações do inconsciente, que são em geral fugazes e ligadas à expressividade do desejo, é tributária da lógica do significante e comporta mal a lógica do sintoma, ou seja, aquilo que perdura, que insiste e resiste à interpretação e que parece não querer dizer nada a ninguém, sendo, antes, tributário do gozo do corpo. Nesse sentido, em uma análise, é o sintoma que nos conduz das formações do inconsciente ao real. Dito de outra forma: se o inconsciente supõe o Outro da linguagem, sendo “estruturado como uma linguagem” e, portanto, interpretável — e mesmo infinitamente interpretável —, o resíduo do sintoma, o seu núcleo duro, ex-siste ao inconsciente e é nesse sentido que ele tem a ver com o real.

A identificação ao sinthoma, como destino de uma análise, seria então uma identificação a esse resíduo do falasser e comporta um paradoxo, pois, se por um lado, o sujeito é suportado pelo sintoma, se ele é imanente e não transcendente em relação ao sintoma, por outro lado, o sintoma é sempre “estrangeiro” ao próprio sujeito. A identificação ao sinthoma não é uma condescendência ao sintoma, mas uma resposta possível ao seu núcleo real, àquilo que o ultrapassa e determina o seu modo de gozo.

Essa identificação comporta um forçamento, o advento de uma nova escrita, como a “metáfora delirante discreta” do paciente B., “Déf(ier D)ieu”, caso relatado na Conversação de Arcachon por de Jean-Pierre Deffieux (1998, p. 18) e debatido por nós no Núcleo de Psicose. Essa escrita é forçada porque ela é suportada pela letra do sintoma que podemos seguir, no relato do caso, desde a queixa inicial, “falta-me energia”, até a “centelha de vida” do laço com o analista. Mas a letra do sintoma, que fala com o corpo, permanece como tal, fora do sentido. Ela excede toda elucubração do saber. Um sintoma, isso se lê, e é só a partir dessa leitura — a ser distinguida da interpretação de uma formação do inconsciente — que temos uma ideia do que poderá ter sido esse acontecimento de corpo primordial que cifrou o sinthoma. É como um procedimento de leitura que Deffieux isola analiticamente o que faz suporte para B., tomando os elementos literais da cena traumática ocorrida aos 8 anos — o mês de março, o bordão, a madeira, a nudez — para verificar aquilo que o mantêm amarrado — o artesanato, a preocupação com o bem e o belo, o laço paterno, o exibicionismo do corpo —, mas também os pontos de ruptura que levam a novas amarrações.

Vale comparar com o caso Emma, que Freud explora no Projeto, igualmente a partir de uma cena aos 8 anos, em relação à solução encontrada (FREUD, 1895/1969, p. 463-468). Em Emma, a mediação do inconsciente resulta na construção de uma fantasia, anteparo frente ao real, que se torna possível pela extração do objeto olhar. De fato, o caminho da formação do sintoma na neurose supõe que a fantasia seja suportada pela letra do sintoma para que se possa constituir o semblante do objeto causa do desejo. Nesse fragmento freudiano, vale lembrar, a cena traumática se inscreve no inconsciente a partir de alguns significantes, como “riso”, “roupa” e “loja”, em torno dos quais a fantasia se constrói. A fantasia é uma fachada para a implicação do sujeito no sintoma, diz Freud, e o sintoma é o que resta após a travessia da fantasia, como “gozo puro de uma escrita” (MILLER apud LAURENT, 2016, p. 48). É o que leva Freud a dizer que a cena traumática ocorrida aos oito anos de idade, que podemos equivaler, nesse caso, a um acontecimento de corpo, modula a realidade sexual de Emma, levando-a a reencontrar a mesma cena aos doze anos de idade, como uma contingência da qual ela extrai o seu próprio gozo graças à reversibilidade da pulsão, que faz com ela se sinta desejada e olhada ao olhar e desejar.

Em B., de forma distinta, o exibicionismo do corpo nu, que Deffieux compara à “função da fantasia na pantomima do sujeito neurótico” (1998, p. 18), mostra que o sujeito mesmo está no lugar do objeto olhado, sem dele se separar. Essa pregnância maior do sintoma, na falta da mediação do desejo na fantasia, parece exigir então formas suplementares de amarração, como “a inscrição sobre o corpo de um fenômeno psicossomático, a psoríase, e uma metáfora delirante discreta” (DEFFIEUX, 1998, p. 18).

– III –

A concepção do nó borromeano de quatro anéis, à qual Lacan se aferra no referido capítulo do Seminário, Livro 23: O sinthoma, se refere sobretudo às neuroses. Nela encontramos uma vinculação mais estreita entre o sintoma e o inconsciente do que encontramos, em geral, na psicose. O inconsciente trabalha a partir da letra do sintoma; ele é uma elucubração de saber sobre o acontecimento de corpo político, no sentido que demos a essa expressão, ou seja, a radicalidade da incidência de um gozo que afeta o corpo do falasser, a fim de que esse acontecimento, que tem lugar na pólis — não há acontecimento de corpo autóctone, que não seja derivado da irrupção de um gozo que se apresenta como outro para um sujeito —, seja minimamente subjetivado como sintoma. Dessa forma, o real, ou melhor, o pedaço de real que cabe a um falasser, pode ser conjugado com o imaginário e o simbólico.

Não é o que acontece, por exemplo, na paranoia.

Na medida em que um sujeito enoda a três o imaginário, o simbólico e o real, ele é suportado apenas pela continuidade deles. O imaginário, o simbólico e o real são uma única e mesma consistência, e é nisso que consiste a psicose paranoica (LACAN, 1975/76, p. 52).

Lacan diz que a amarração que caracteriza a paranoia é o que define também a personalidade. “Paranoia e personalidade não têm, como tais, relação, pela simples razão de que são a mesma coisa” (LACAN, 1975/76, p. 52). Como podemos entender essa igualdade? Ela sugere que personalidade e paranoia se equivalem porque, em ambas, os três registros não se distinguem, como seria o caso da consistência, atribuída ao imaginário, do furo proveniente do simbólico e da ex-sistência própria ao real, como veremos adiante. O que nos leva a concluir que a personalidade mantém sua própria coesão a partir do artifício que podemos definir como uma exclusão do sujeito que seria suportado pelo sintoma. De fato, a estrutura paranoica se mostra, para todos os efeitos, impenetrável, como um bloco monolítico que tudo interpreta de forma rígida e especular, como reflexo da própria personalidade, sem nada querer saber do sintoma que a concerne.

Poderíamos conceber ainda, a partir de outras indicações de Lacan para além do Seminário 23 — embora jamais desenvolvidas por ele e, sim, por autores do Campo Freudiano, como Nieves Soria e Fabian Schejtman[2] —, outras formas de enodamento próprias das psicoses, como a parafrenia, a mania e a melancolia.

No caso da parafrenia, essa indicação de Lacan é extraída de uma apresentação de paciente ocorrida em 1975, portanto, contemporânea ao Seminário 23. Trata-se da paciente conhecida como Sra. B., que Lacan identifica a uma parafrenia imaginativa pelo fato de que ela se reduz a uma “pura vestimenta”, ou seja, a um puro semblante, sem a menor ideia do corpo que leva sob essa vestimenta, daquilo que poderia fornecer um lastro a esse ser de puro semblante. Certamente, essa referência ao corpo por baixo do vestido deve ser tomada em sua ex-sistência real, e não em sua dimensão de consistência imaginária, que seria, justamente, aquela de um corpo recoberto por um vestido. Essa configuração parafrênica poderia, assim, ser apresentada como uma interpenetração do simbólico e do imaginário que deixa solto o real.

Em relação à mania e à melancolia, as indicações de Lacan são aquelas que encontramos em Televisão (LACAN, 2003a), texto de 1974. Nessas estruturas clínicas, é o simbólico que permanece desligado, enquanto real e imaginário se interpenetram. Nesse texto, no capítulo em que Lacan analisa os afetos a partir da estrutura da linguagem, o desligamento do simbólico foi por ele referido ao rechaço do inconsciente. Tal rechaço equivale, no plano ético, a uma covardia moral. A diferença é que, na melancolia, o real predomina e submete o imaginário, como “pura cultura da pulsão de morte”, da qual falava Freud (1923/1969, p. 69), esmagando assim a imagem narcísica em que o Eu se sustenta, enquanto, na mania, é o imaginário que se sobrepõe ao real na forma da excitação maníaca, produzida a partir de um “retorno no real daquilo que foi rechaçado da linguagem” (LACAN, 2003a, p. 524).

 

A psicose de Joyce, por sua vez, pressupõe um lapso da amarração RSI, como indicado no desenho abaixo, à esquerda, do qual resulta a interpenetração entre o Real e o Simbólico que deixa solto o Imaginário. Essa seria a forma predominante dos enodamentos encontrados na esquizofrenia. No diagrama à direita, esse lapso se encontra corrigido por um quarto elo, que restabelece a amarração entre eles, configurando o sinthoma.

 

Mas essa correção só realiza em parte a propriedade borromeana. De fato, podemos dizer que, dessa forma, o Imaginário passa a se amarrar ao Simbólico e ao Real. Lacan identificou esse quarto elo ao Ego de Joyce, cuja consistência é dada por sua obra. Contudo, a independência entre RSI, a outra condição essencial à propriedade borromeana, não é verificada. A interpenetração entre o Simbólico e o Real persiste na forma peculiar da escrita de Joyce, que Lacan comparou a uma dissolução da linguagem, uma escrita que não diz nada a ninguém, que não fala ao inconsciente de ninguém, marcada pelo enigma e, por isso mesmo, capaz de fazer trabalharem os universitários. É por isso que Lacan vai dizer que Joyce era desabonado do inconsciente.

O paradigma Joyce abre um leque de pesquisas que torna possível pensar as psicoses sinthomatizadas, ou seja, psicoses nas quais uma amarração a partir de um quarto elo permite ao sujeito se sustentar pelo sinthoma, de forma que a psicose não se desencadeie. Resta saber em que essa forma de psicose se distingue da pré-psicose, aquela, por exemplo, que manteve Schreber estabilizado até os 50 anos de idade graças às suas identificações imaginárias.

Uma hipótese, apontada por Nieves Soria a partir de Fabian Schejtman (SORIA, 2008, p. 69), permite fazer a seguinte distinção: uma psicose sinthomatizada seria aquela em que a correção do lapso do nó, como apontou Lacan na conclusão do Seminário 23, ocorre no mesmo lugar onde ocorreu o lapso do nó. É o caso do Ego de Joyce, que se sustenta justamente da natureza de seu sinthoma. Essa solução se distinguiria de outras, supostamente mais frágeis, nas quais a correção não incide sobre o ponto do lapso ou a solução encontrada se apoiaria em identificações imaginárias que se dissolveriam frente a um apelo simbólico ao Nome-do-Pai, como ocorreu com Schreber.

– IV-

Vimos que a amarração borromeana pressupõe a independência, mas também a equivalência entre os registros Simbólico, Imaginário e Real, diferentemente da clínica estruturalista, que postulava a primazia do simbólico sobre o imaginário como condição para que o real fosse enquadrado. Essa eficácia do simbólico será relativizada pela clínica borromeana, assim como o valor da interpretação analítica, em direção a uma pragmática que busca discernir como o sujeito se arranja, como ele se vira para se sustentar com o seu próprio sintoma, ou seja, como ele se vira com o que, para ele, constitui essas três “subjetividades” denominadas Real, Simbólico e Imaginário, que, mesmo sendo equivalentes, não deixam de ser heterogêneas. Lacan caracteriza essa heterogeneidade da seguinte maneira:

“Não é por acaso, mas como resultado de uma concentração que seja no imaginário que eu coloque o suporte do que é a consistência, assim como faço do furo o essencial do que diz respeito ao simbólico e o real sustentando especialmente o que chamo de a ex-sistência” (LACAN, 1975/76, p. 49).

consistência atribuída ao Imaginário é o que resulta da “ideia de si mesmo como corpo”, ideia para a qual Lacan utiliza o termo “Ego”, o mesmo termo que ele utiliza para nomear o sinthoma de Joyce. Isso define uma relação de propriedade do sujeito com o seu corpo. De fato, o sujeito tem um corpo; ele não é um corpo. Mas isso é apenas uma crença. “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem”, diz Lacan. “Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN, 1975/76, p. 64). Portanto, a consistência imaginária, ou seja, “aquilo que mantém junto” o falasser e seu corpo, se refere a uma ideia, como a ideia de um saco, e é sustentada por uma crença. A propriedade borromeana atribuída ao sinthoma, no sentido do que mantém junto RSI, deve ser distinguida da consistência do Imaginário que mantém junto o falasser e seu corpo. Trata-se de uma consideração importante, especialmente se referida ao campo das psicoses, na medida em que a recomposição do imaginário pode vir a ser, em alguns casos, uma orientação clínica. Se tomamos o exemplo de Joyce, vimos que essa recomposição se faz por meio do sinthoma, ou seja, a escrita e a publicação de uma obra, o que implica tomar Joyce como um artífice de seu próprio sinthoma, na medida em que isso tem efeito de suplência do lapso que deixa solto o imaginário.

furo do Simbólico, por sua vez, advém da característica fundamental do significante, a de ser aquilo que representa um sujeito para um outro significante. Se partimos dessa definição, é o sujeito mesmo que aparece como esse furo, no sentido da sua falta-a-ser. O simbólico, portanto, ao qual se deu primazia quando a clínica lacaniana se orientava por uma busca da verdade, é sem esperanças, se quisermos nos apoiar nele para nos sustentar como sujeitos. Os obsessivos que o digam. Vale relembrar, no entanto, que Lacan distingue o furo do simbólico, que o “especializa” enquanto um sistema de linguagem marcado pelas substituições metafóricas e deslizamentos metonímicos, do que Lacan chama de “o verdadeiro furo”, Ⱥ, que ele situa fora do simbólico, na confluência do real com o imaginário, como veremos adiante. Não há Outro do Outro. Isso reduz o simbólico ao sentido imaginário, mesmo quando interpretamos uma formação do inconsciente seguindo as trilhas das leis do significante que herdamos de Freud. Essa condição não nos impede de fazer ciência, isto é, de utilizar a via lógica para nos orientar na busca da verdade no campo da realidade, para além do que almejamos como a consistência do imaginário que, como sabemos, nos engana o tempo todo, por ser essa crença sustentada por uma miragem. É o furo do simbólico, portanto, o que nos permite figurar a verdade dos fatos para além de uma crença subjetiva.

ex-sistência do Real, por sua vez, deriva primeiramente do fato de que o sentido está foracluído do Real (LACAN, 1975/76, p. 117). Na medida em que o sentido é o que enquadra para nós o campo da realidade, o real não diz respeito à realidade das coisas, como ocorre em relação à ciência, tampouco se confunde com o que poderíamos chamar de uma natureza humana, que não sabemos bem a que se refere, uma vez que ela é atravessada pela linguagem. Seria o real uma pura potência negativa? Lacan vai dizer que o fato de o Real não poder ser imaginado ou pensado não quer dizer que o Real seja um limite da experiência humana. Pelo contrário, o Real incide o tempo todo, no sentido de que ele é uma experiência cotidiana, a experiência de um acontecimento de corpo. O Real também não se atém ao Ⱥ, o furo do simbólico, que é o limite da imaginação humana. O que confere certa esperança em relação ao real é ele poder ser contido pelo nó borromeano para um sujeito. Se não fosse assim, não haveria como suportá-lo. O nó borromeano é o que permite ao falasser cernir um pedaço do real, para chamar de seu, podemos dizer. É nesse sentido que Lacan (2003b) aproxima o sinthoma do acontecimento de corpo. É por ser um acontecimento de corpo que o sinthoma tem a ver com um real, com um real que Lacan chama de “orientável”, mesmo que essa orientação exclua o sentido. A ex-sistência é uma forma de existência específica do nó. Vejamos o que diz Lacan sobre isso:

“Ao sistir fora do Imaginário e do Simbólico, o real colide, movendo-se especialmente em algo da ordem da limitação. A partir do momento em que ele está borromeanamente enodado aos outros dois, estes lhe resistem. Isso quer dizer que o real só tem existência ao encontrar pelo simbólico e pelo imaginário a retenção” (LACAN, 1975/76, p. 49).

– V –

Lacan retoma, na quarta parte do capítulo III do Seminário 23, que estamos examinando, o esquema do nó borromeano já trabalhado em seu Seminário 22, RSI. A planificação do nó permite estabelecer três campos de contato, cada um sendo o resultado da articulação de dois registros, com a concomitante exclusão do terceiro. O campo central, como sabemos, é preenchido pelo objeto a, que não aparece representado nesse esquema do Seminário 23. Lacan observa, em primeiro lugar, que a notação (Ⱥ) se refere ao axioma “não há Outro do Outro”, o que quer dizer que nada se opõe ao Simbólico. Por conseguinte, não há também J(Ⱥ), o gozo do Outro do Outro (LACAN, 1975/76, p. 54), a não ser no imaginário da paranoia, na medida em que essa estrutura clínica identifica o gozo com o lugar do Outro. É nesse espaço entre Imaginário e Real, que se escreve como Ⱥ, que Lacan vai localizar, como acabamos de observar, o que ele chama, no capítulo IX, de o verdadeiro furo, a ser distinguido da falta inerente à castração, que devemos situar em um outro campo, aquele do gozo fálico. Esse furo, ao qual não corresponde nenhuma ordem de existência, remete, por outro lado, àquilo que podemos chamar da inibição própria do Imaginário em relação ao Real. É a essa inibição que Lacan recorre, na elaboração desse seminário, para justificar as dificuldades e os erros cometidos por ele mesmo ao traçar imaginariamente os seus nós borromeanos, o que, para ele, é um índice do real do . Embora as diversas configurações dos nós tenham como suporte uma imagem, como essa que está agora diante de nossos olhos, a dificuldade de imaginação é patente quando se trata de seus entrelaçamentos, da mesma forma que as dificuldades de escrita dos nós. Nesse sentido, vemos que o nó não é o matema, essa escrita lacaniana clarificadora e reduzida à qual podemos associar uma espécie de mecânica que condensa uma série de relações entre o imaginário, o simbólico e o real.

O segundo termo evocado por Lacan nessa lição é o sentido, localizado por ele na confluência entre o imaginário e o simbólico. Esse campo mostra que o sentido atribuído ao simbólico está em continuidade com o imaginário, e não em oposição a ele. O máximo que podemos atingir pela via do sentido, como quando interpretamos, é alguma ordem de ficção, uma vez que o verdadeiro, em se tratando da análise e não da ciência, não pode ser dito com os instrumentos da linguagem. Disso, resulta o que Lacan chamou de juis-sens, o gozo do sentido, que é o gozo próprio da confluência do simbólico com o imaginário ao qual podemos relacionar o modo de satisfação do delírio, assim como o do trabalho do inconsciente. O que se opõe ao simbólico não é, portanto, o imaginário, como na clínica estrutural, mas Ⱥ. Por outro lado, o que se opõe ao sentido é o real.

Finalmente, temos o gozo dito do falo, que Lacan distingue aqui do gozo peniano:

“O gozo peniano advém a propósito do imaginário, isto é, do gozo do duplo, da imagem especular, do gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o corpo é o suporte imaginário. O gozo fálico, em contrapartida, situa-se na conjunção do simbólico com o real. Isso na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário, devido a essa própria fala, devido ao falasser” (…) Portanto, inscrevo aqui o gozo fálico contrabalançando o que concerne ao sentido. É o lugar do que é em consciência designado pelo falasser como poder” (LACAN, 1975/76, p 55.).

Lacan não desenvolve, ao menos nesse capítulo, a aproximação entre o gozo fálico e o poder, mas podemos supor que se trata de um destino possível a ser dado ao acontecimento de corpo político pelo sintoma. De qualquer maneira, é preciso sublinhar a distinção entre o gozo do sentido e o gozo próprio ligado à função de fonação que caracteriza o gozo fálico. O gozo fálico participa do real por ser um gozo “fora-do-corpo”, na medida em que está associado à fala, e é por isso que ele não se refere ao gozo peniano, o gozo próprio do corpo que concerne ao imaginário.

Resta saber em que consiste, propriamente falando, o gozo do sinthoma. Podemos deduzir que o gozo do sinthoma refere-se a um saber-fazer a partir do qual o sujeito pode ligar um pedaço do real ao semblante, uma vez que o semblante que permite enquadrar a realidade onde pisamos depende da amarração do real, isto é, de forma que um acontecimento de corpo, aquele que é próprio a um falasser singular, possa ser concernido.

É nesse sentido que se pode dizer que o gozo do sinthoma é um gozo possível que resulta de um tratamento do impossível. A clínica borromeana pode ser então concebida a partir de uma pragmática que concerne ao sintoma. Em suas várias facetas, se considerarmos as variedades e as exigências borromeanas das quais resulta essa possibilidade, poderíamos afirmar, de acordo com essa pragmática, que “é de suturas e emendas que se trata na análise” (LACAN, 1975/76, p. 71).

Proponho, para concluir, lembrar simplesmente em que consiste essa pragmática analítica Ela diz respeito às diferentes conexões do falasser que o sinthoma busca concernir como suporte do sujeito: o corpo, o laço social, o pensamento e o sexo.  

 


Referências
DEFFIEUX, J.-P. “Um caso nem tão raro”. In: Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998, p. 13-18.
FREUD, S. (1895) “Projeto para uma Psicologia Científica”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1969, vol. I, p. 381-533.
FREUD, S. (1923) “O eu e o id”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1969, vol. XIX, p. 13-85.
LACAN, J. (1975/76) O Seminário, Livro 23o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2007.
LACAN, J. “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003a, p. 508-542.
LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003b, p. 560-565.
SORIA DAFUNCHIO, N. Confines de las psicoses. Buenos Aires: Del Bucle, 2008.
SCHEJTMAN, F. Las dos clínicas de Lacan. Buenos Aires: Tres Haches, 2000.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

[1] Texto apresentado no  Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose da Seção Clínica  do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 29 de abril de 2022.
[2]  Conforme destacado por nós nas referências bibliográficas para este texto.



EDITORIAL- ALMANAQUE N 29

Daniela Dinardi

Imagem: Fred Bandeira

 

Caros leitores,

Apresentamos a 29ª edição da Almanaque on-line!

Animados pelo desejo de transmissão do trabalho de pesquisa produzido no IPSM-MG e pelos demais colegas da nossa comunidade analítica, nos dedicamos a recolher textos alinhados ao tema de investigação do Instituto neste primeiro semestre de 2022: “Acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje” é a bússola que nos orienta.

Instigante, esta pesquisa trouxe para os nossos espaços de discussão a relação que liga o analista à dimensão política e à subjetividade de sua época, nos impulsionando a refletir sobre a prática da psicanálise nos nossos dias face ao discurso do mestre contemporâneo. Se para Freud a política é o inconsciente, Lacan inverte essa lógica afirmando que “o inconsciente é a política”, abrindo assim novas vias de estudo e reflexão.

Abrimos a revista com Trilhamentos, em que, em uma orientação epistêmica, vocês encontrarão textos que percorrem os caminhos traçados por Freud e Lacan relacionados à nossa pesquisa.

Frederico Feu de Carvalho propõe retomar a lição “Do nó como suporte do sujeito”, do Seminário 23 de Lacan, acrescentando a ela algumas reflexões sobre “o acontecimento de corpo político” e o que dele podemos extrair para pensar a prática com as psicoses. Ricardo Seldes, nosso colega da EOL e convidado para a aula inaugural do IPSM-MG, pergunta sobre como ser solidário com o futuro da psicanálise em meio à tendência de homogeneização de nossa época. Philippe La Sagna, em seu texto “O discurso como saída do capitalismo”, indica que, no discurso capitalista, o falasser se vê submetido à condição de consumidor e objeto consumido. O discurso analítico, tal como esse autor localiza, seria a possibilidade de desvendar essa maquinaria do mais-de-gozar e de arejar os seus efeitos. Véronique Voruz, em “Interpretar o material humano”, sublinha um efeito da interpretação que toca na vergonha face ao falasser reduzido a “material humano”, com vistas a restituir sua condição de sujeito barrado. Gustavo Stiglitz, no texto “Psicanálise e política, uma amizade estrutural”, afirma que a psicanálise sempre esteve ligada à política. Articulando inconsciente e política, ele traz elementos para pensar no papel que a psicanálise tem no enfrentamento de uma sociedade previsível, na qual desejo, risco e amor se dissolvem diante do regime do Todo.

Na rubrica Entrevistas, nosso colega Sérgio Laia conversa conosco sobre as possíveis saídas para que o discurso psicanalítico possa se manter como aquele que faz objeção à universalização, ao apagamento do desejo e ao império do mais-de-gozar presente na atualidade. Nosso entrevistado também se refere às mudanças provocadas pelo movimento de globalização do mundo sobre o que chamamos de raça, fraternidade e racismo e nos esclarece sobre como a psicanálise pode intervir na política.

Em Encontros, reservamos para vocês os artigos de Tânia Abreu, Silvia Baudini, Anaëlle Lebovits-Quenehen, Fabián Naparstek e Rodrigo Almeida. As duas primeiras nos brindam com uma leitura aguda do que está em jogo no documentário Pequena garota, trazendo à discussão um tema que tem mobilizado o debate no campo freudiano, refletindo sobre as repercussões das questões trans sobre as crianças. No texto “Psicanálise e Política: quatro modalidades de uma relação”, Anaëlle Lebovits-Quenehen expõe seus pontos de vista sobre a posição do analista em relação ao político e diante da política a partir de diferentes aspectos. Fabián Naparstek discorre sobre “Psicanálise e política” e destaca que a política da psicanálise implica em abrir a via da palavra e da interpretação para que cada sujeito possa produzir sintomas singulares que não caminhe em direção à consistência ideal imaginária das identificações.  Em “Discursos de gênero e psicanálise: possíveis interlocutores”, Rodrigo Almeida privilegia alguns pontos dos “discursos de gênero” e de suas teorias, especialmente naquilo que os contrapõem à psicanálise, interrogando sobre de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para a leitura dos psicanalistas sobre a subjetividade de sua época.

Em Incursões, apresentamos textos dos colegas que estão presentes nos espaços de investigação do Instituto. Suzana Faleiro e Sandra Espinha, em seus respectivos textos, discorrem sobre como um analista pode permitir à criança separar-se do lugar de objeto para reinventar sua família em um tempo marcado por uma desordem simbólica e na vigência de discursos de remediação cognitiva e comportamental que não levam em conta o real. Ainda nesse contexto, Maria Rita Guimarães recorta alguns elementos das reflexões de Ian Hacking para subsidiar o debate sobre a biopolítica reinante fundada em protocolos e classificações, para deles extrair as consequências para a clínica psicanalítica, sobretudo, a clínica com crianças e com autistas. Maria Wilma S. de Faria, em “O acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje”, indaga sobre o que pode a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Ana Maria Lopes e Henrique Torres, em “Corpos anoréxicos e o avesso da biopolítica”, partem de seus estudos sobre a clínica da anorexia para ressaltar a importância de uma aposta nas invenções sintomáticas singulares que cada sujeito inscreve nas marcas de seu corpo, destacando a importância da escuta clínica, hoje tão fragilizada na prática médica. Elaine Maciel, em “O corpo: do clínico ao político”, aborda a noção de corpo em psicanálise articulada à sua dimensão clínica e à dimensão política. No artigo “Psicopatologia do racismo cotidiano: do corpo político ao acontecimento de corpo”, Luís Couto investiga os efeitos sobre os corpos oriundos da história política de segregação racial em nosso país, particularmente, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo.

No que ressoa como efeito de transmissão para os alunos do Instituto, De uma nova geração, temos os trabalhos de Giulia Campos Lage, com “A neurose na urgência subjetiva”, e de Paulo de Souza Novaes, com “Momentos de virada no ensino de Jacques Lacan: do inconsciente transferencial ao inconsciente real”. Tais trabalhos evidenciam o estatuto ético da psicanálise na relação do sujeito com seu inconsciente e com a sua época.

Por fim, agradecemos aos autores que, generosamente, contribuíram para esta edição; à equipe de publicação, pelo cuidado na pesquisa, tradução e revisão dos trabalhos; à colega e fotógrafa Cecília Velloso Batista, assim como aos fotógrafos Fred Bandeira e Nelson Martins de Almeida, o nosso muito obrigado pela cessão de tão lindas e impactantes imagens! Aos nossos leitores, fica o convite para a apreciação dos textos desta edição, na expectativa de que eles possam contribuir em um debate tão atual e caro a nós psicanalistas e, dessa forma, como conclamou o nosso colega Ricardo Seldes, “solidarizar com o futuro da psicanálise”.

Boa leitura!




Almanaque On-line Agosto/2022 – Nº 29 V. 16

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

DANIELA DINARDI

Animados pelo desejo de transmissão do trabalho de pesquisa produzido no IPSM-MG e pelos demais colegas da nossa comunidade analítica, nos dedicamos a recolher textos alinhados ao tema de investigação do Instituto neste primeiro semestre de 2022: “Acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje” é a bússola que nos orienta. [Leia Mais]

TRILHAMENTOS
DO NÓ COMO SUPORTE DO SUJEITO 

FREDERICO FEU DE CARVALHO

A partir do terceiro capítulo do Seminário 23, de J. Lacan, o texto se propõe a esclarecer a utilização do nó borromeano por Lacan e algumas de suas aplicações à clínica das psicoses. Nesse contexto, confere-se privilégio à noção de Sinthoma como suporte do sujeito. [Leia Mais]

 


 

O INCONSCIENTE E O CORPO POLÍTICO: A PSICANÁLISE HOJE

 RICARDO SELDES

O inconsciente é intérprete e, ao interpretar, cifra novamente tornando infinita a atividade interpretativa. Frente a esse excesso interpretativo do inconsciente que se impõe nas psicoses como nas neuroses — embora, nestas últimas, de forma mais velada e sutil —, este texto, na trilha das formulações de Lacan e Miller, argumenta que interpretar analiticamente é fazer frente a esse trabalho interpretativo infindável próprio ao inconsciente, de modo que a interpretação analítica vire pelo avesso essa interpretação infinita do inconsciente. A heresia em questão é sustentar a interpretação na contracorrente do inconsciente quando a concepção que, em geral, se tem da atividade analítica é de que ela o interpreta, ou ainda que, na clínica das psicoses, não se deve interpretar. [Leia Mais]

 


 

O DISCURSO COMO SAÍDA DO CAPITALISMO 

PHILIPPE LA SAGNA

Lacan aponta uma afinidade entre o discurso capitalista e o discurso da ciência, no qual o desenvolvimento do primeiro acompanha o segundo. Nessa aliança, a verdade passa a ficar envolta em brumas e o saber vira um objeto de mercado. O discurso capitalista se apresenta sob a égide do consuma-se e deixe-se consumir, sempre com um mais-de-gozo que se impõe ao sujeito contemporâneo. O discurso analítico tem a possibilidade de desvendar a maquinaria do mais-de-gozar e, ao fazer do objeto a causa de desejo, arejar os efeitos do mais-de-gozar. [Leia Mais]

 


INTERPRETAR O “MATERIAL HUMANO” 

VÉRONIQUE VORUZ

A autora correlaciona o estatuto do falasser, reduzido a material humano, e a interpretação analítica, na medida em que, alienado ao imperativo capitalista de consumo, o sujeito se deixa desabonar de sua honra. A autora sublinha que é sobre isso que a interpretação deve intervir, a fim de lhe restituir sua dignidade de sujeito barrado. [Leia Mais]

 


 

PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA AMIZADE ESTRUTURAL 

GUSTAVO STIGLITZ

O autor investiga a relação entre a psicanálise e a política e considera que Lacan tenha operado uma inversão na premissa freudiana. Se, para Freud, a política é o inconsciente, para Lacan, o inconsciente é a política. A partir daí, o autor delimita uma definição da política a partir da discussão sobre o final de análise, o que o conduz a abordar a política a partir de uma perspectiva não-toda. Por fim, se pergunta sobre qual seria a participação do psicanalista no campo político. [Leia Mais]

 

 

 

ENTREVISTA
ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA

SÉRGIO LAIA 

Há mais de trinta anos, em seu seminário O banquete dos analistas, Miller convocava os psicanalistas para uma tomada de posição diante do avanço de um discurso cujo cerne implicava o apagamento do desejo em favor de uma injunção ao mais de gozar.  Hoje, esse cenário se consolidou. [Leia Mais]

ENCONTROS
A INFÂNCIA É TRANS… 

TÂNIA MARIA LIMA ABREU

Este trabalho é fruto de uma pesquisa que tomou como eixo o documentário Pequena garota e as leituras que dele a autora pode fazer a partir de textos e vídeos com os quais dialogou. [Leia Mais]

 


 

PEQUENA GAROTA

SILVIA BAUDINI

A autora apresenta a sua leitura do documentário Pequena garota, que aborda a questão do transexualismo e sua incidência nos corpos das crianças. Sua análise o articula ao discurso de nossa época, o que lhe permite dizer que  se “na era vitoriana a histeria era a epidemia que explicava o impasse sexual da época, a causa trans é o que está em jogo hoje no impasse sexual de 2021”. [Leia Mais]

 


 

PSICANÁLISE E POLÍTICA: QUATRO MODALIDADES DE UMA RELAÇÃO

ANAËLLE LEBOVITS-QUENEHEN

A autora trata, neste artigo, da relação entre psicanálise e política, “em particular, a forma como um psicanalista se interessa pela política”. Para tanto, distingue diferentes modalidades dessa relação, assim como diferentes níveis de implicação do psicanalista com o político. Ainda de acordo com a autora, a conexão entre psicanálise e política aponta sempre “a não impedir” que o discurso analítico continue a existir, ou seja, cabe aos analistas “não cessar de fazer dos impasses que se encontram no mundo a ocasião de um avanço epistêmico sobre a base da necessidade ética”. [Leia Mais]

 


 

PSICANÁLISE E POLÍTICA 

FABIÁN A. NAPARSTEK

Neste artigo Fabián Naparstek parte de uma referência a Cervantes e Borges para, com as indicações de Lacan, abordar o laço entre psicanálise e política. Desse modo, o autor faz uma leitura da política envolvida no laço entre os analistas, na direção do tratamento, assim como na própria posição do analista no mundo, marcando uma orientação que vai contra os processos de segregação, propondo uma estratégia que segue, a cada época, uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro. [Leia Mais]

 


 

DISCURSOS DE GÊNERO E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS INTERLOCUÇÕES

RODRIGO ALMEIDA

O presente trabalho propõe uma articulação entre alguns pontos dos “discursos de gênero” e suas teorias no que eles se contrapõem à psicanálise, examinando de forma breve o discurso da psicanálise, sua prática e seu lugar no social. Posto isso, interrogamos de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para os psicanalistas na leitura da subjetividade de sua época.[Leia Mais]

INCURSÕES
“TÁ TUDO AO CONTRÁRIO”

A CRIANÇA, SEUS PAIS E A VIA DO EQUÍVOCO – SUZANA FALEIRO BARROSO

Através de aspectos teóricos e clínicos, o artigo discute as duas abordagens da família hoje, isto é, a via do disfuncionamento familiar protagonizado pelo discurso da ciência em contraponto com a via do equívoco orientada pelo discurso psicanalítico. [Leia Mais]


 

COMENTÁRIOS SOBRE O TEXTO “TÁ TUDO AO CONTRÁRIO”

A CRIANÇA, SEUS PAIS E A VIA DO EQUÍVOCO – SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA

O texto é um comentário do trabalho apresentado por Suzana Faleiro Barroso no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG. Ele faz parte da pesquisa desenvolvida em torno do tema “O falasser político: a criança e seus pais” e discorre sobre o que se revela nas novas configurações familiares como sendo a parte que retorna a cada falasser para fazer existir a função significante da família no lugar onde se impõe sua função de gozo. Trata-se de abordar a família a partir do real — a partir do Um do gozo no qual a civilização atual está imersa — e demonstrar com fragmentos clínicos como a psicanálise permite à criança separar-se do lugar de objeto para reinventar sua família frente à desordem simbólica que caracteriza a época atual e em oposição aos discursos de remediação cognitiva e comportamental que não levam em conta esse real. [Leia Mais]


UM CAMINHO POLÍTICO-IDEOLÓGICO PARA A HEGEMONIA DAS CLASSIFICAÇÕES E SEUS PROTOCOLOS RUMO ÀS NEUROCIÊNCIAS

MARIA RITA GUIMARÃES 

A partir da clínica psicanalítica, sobretudo a clínica com crianças e a clínica com autistas nela incluída, o que nos interessa acerca de protocolos e classificações? Debater a atualidade: há uma perda da bússola de orientação clínica porque se passou das decisões clínicas ao organismo das neurociências, ignorando ou tornando muda a palavra do sujeito. O texto tenta examinar as condições político-ideológicas desse percurso.  [Leia Mais]


O ACONTECIMENTO DE CORPO POLÍTICO E A PSICANÁLISE HOJE

MARIA WILMA S. DE FARIA 

O corpo falante testemunha o discurso como laço social e traz em si suas marcas enquanto corpo socializado. Tendo como referência o segundo ensino de Lacan, no que toca ao falasser político, o texto indaga o que pode hoje a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Interroga os sintomas contemporâneos que têm a toxicomania como paradigma, bem como as adições generalizadas, o uso excessivo de remédios, as instituições segregativas e a violência discriminatória exercida sobre usuários e dependentes de drogas e/ou em uso prejudicial de álcool. [Leia Mais]


PSICOPATOLOGIA DO RACISMO COTIDIANO: DO CORPO POLÍTICO AO ACONTECIMENTO DE CORPO

LUÍS COUTO

O artigo visa partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo. [Leia Mais]


O CORPO: DO CLÍNICO AO POLÍTICO 

ELAINE ROCHA MACIEL

A noção de corpo na psicanálise passou por redefinições ao longo da obra de Freud e do ensino de Lacan. Focaremos no último ensino de Lacan, em que o corpo é afetado por lalíngua. Um encontro traumático, derivado do choque entre língua e corpo, tendo como resultado um acontecimento de corpo e produção de efeitos de gozo. Um gozo fora do sentido, que se apresenta enquanto excesso e que deixa marcas no corpo, acontecimentos que são os sintomas. Esses sintomas manifestam-se de diversas maneiras na contemporaneidade. Trata-se de uma dimensão clínica articulada a uma dimensão política. [Leia Mais]


CORPOS ANORÉXICOS E O AVESSO DA BIOPOLÍTICA 

ANA MARIA COSTA DA SILVA LOPES E HENRIQUE OSWALDO GAMA TORRES

O presente artigo articula a anorexia e o avesso da biopolítica, da lógica cartesiana, dos protocolos universais. Investiga-se o para além da medicina baseada em evidências, que padroniza e normatiza protocolos. Não se propõe o avesso dos avanços propedêuticos e terapêuticos, mas a aposta de que o corpo escapa às identificações prontas, pois o gozo transborda, o sintoma que faz sofrer “traumatiza”. A aposta no singular da invenção sintomática, ao fazer vacilar a clínica médica, a psiquiatria, entre outros saberes, permite que o sujeito anoréxico apresente o corpo marcado para além do puro organismo, corpos afetados pela linguagem. Investiga-se a relação de cada falasser com seu inconsciente e suas respostas à biopolítica de nossos tempos. [Leia Mais]

 

DE UMA NOVA GERAÇÃO
A NEUROSE NA URGÊNCIA SUBJETIVA 

GIULIA CAMPOS LAGE

Frente à experiência em uma instituição psiquiátrica, constata-se a dificuldade em manejar a neurose na urgência hospitalar. Este texto visa buscar, na teoria psicanalítica de orientação lacaniana, formas de entender a urgência subjetiva, principalmente na neurose, e como poder viabilizar saídas que acolham a subjetividade em questão, evitando a institucionalização. [Leia Mais] 


 

MOMENTOS DE VIRADA NO ENSINO DE JACQUES LACAN: DO INCONSCIENTE TRANSFERENCIAL AO INCONSCIENTE REAL 

PAULO DE SOUZA NOVAIS

Este artigo busca apresentar um percurso relativo às elaborações sobre o conceito de inconsciente, partindo do momento em que o interesse de Lacan estava voltado para a relação transferencial com o analista e para suas interpretações decorrentes dos conflitos edipianos e do Nome-do-Pai, até chegar às últimas teorizações de que o falasser e o gozo do Um surgem na pena do psicanalista. O testemunho de passe de Alejandro Reinoso será tomado como bússola para ilustrar essas conceituações. [Leia Mais]




EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 28

A Revista Almanaque On-line é uma publicação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSMMG.

Periodicidade: Semestral

A reprodução ou a citação de fragmentos dos artigos é autorizada, desde que acompanhada das devidas referências ao autor, título, publicação (site Almanaque On-line), data da publicação e URL (link para a página).

A reprodução total do artigo é autorizada para fins exclusivos de pesquisa e ensino, desde que o autor seja previamente consultado, e desde que mantidas na reprodução as referências ao autor, título do artigo, título da publicação (site Almanaque On-line), data da publicação e URL (link para a página).

Contato:
ipsmmg@institutopsicanalise-mg.com.br

Sede:
Rua Felipe dos Santos, 588, Bairro de Lourdes, Belo Horizonte, Minas Gerais
CEP: 30180-160
Telefone: (31) 3275-3873
(31) 97510-4560

Diretoria do Instituto:

Diretora geral : Lilany Pacheco
Diretora Secretária- Tesoureira: Luciana Silviano Brandão Lopes
Diretora de Publicações: Patrícia Teixeira Ribeiro
Diretora de Seção Clínica: Cristiana Pittella
Diretora de Ensino: Paula Ramos Pimenta

Equipe de Publicação:

Beatriz Espírito Santo
Cecília Velloso Gomes Batista
Daniela Dinardi
Ernesto Anzalone
Giselle Moreira
Júlia Buére
Letícia Mello
Letícia Soares
Michelle Santos Sena de Oliveira
Patrícia T. Ribeiro- Coordenadora
Renata Mendonça
Tereza Facury

Conselho do IPSM:

Fernando Casula Ribeiro Pereira – Presidente
Ana Maria Costa S. Lopes – Secretária
Andréa Eulálio Ferreira
Andréa Maria Guisoli Mendonça
Cláudia Maria Generoso
Kátia de Olveira Mariás
Marcelo Quintão e Silva

Revisora:
Virgínia Junqueira

Web Designer:
mw.lima@uol.com.br




O INCONSCIENTE: DA CRIANÇA ATÉ O ADOLESCER, E MAIS[1]

CRISTIANE BARRETO
Psicanalista, membro da EBP/AMP
cristianebarretonapoli@yahoo.com.br

Resumo: O texto comenta o prefácio de Jacques-Alain Miller para o livro L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, de Hélène Bonnnaud. Para tanto, primeiro contextualiza o inconsciente freudiano, seguido das elaborações lacanianas do inconsciente estruturado como uma linguagem ao inconsciente real. Ressalta a importância da questão da defesa e de como perturbar a defesa na psicanálise com crianças. Por fim, por meio de de um fragmento clínico, discute a questão contemporânea do inconsciente frente ao sintoma de uma adolescente e os efeitos na família, bem como o lugar de uma análise.

Palavras chaves: Inconsciente, linguagem, criança, adolescente, famílias contemporâneas

THE UNCONSCIOUS: FROM CHILD TO ADOLESCENT, AND BEYOND.

Abstract: The essay comments on Jacques-Alain Miller’ s preface to the book L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, by Hélène Bonnoaud. To this end, it first contextualizes the freudian unconscious, followed by the lacanian elaborations of the unconscious structured as a language and the unconscious as real. It emphasizes the issue of the defense and how it is possible to disturb the defense in children’s analysis. Finally, through a clinical fragment, it discusses the contemporary issue of the unconscious  in the face of a teenager’s symptom and the effects on the family, as well as the place an analysis can have.

Keywords: unconscious, language, child, teenager, contemporary families

 

Desali, s/t

Em “O Inconsciente”, texto de 1915, Freud argumenta para justificar o seu conceito: “nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situados no corpo” (FREUD, 1915/1974, p. 201). Lacan (1996/2017, p. 12) elucida que “a questão diante da qual a natureza do inconsciente nos situa é, em poucas palavras, que algo pensa o tempo todo”.

O inconsciente pensa. Com essa elaboração, Freud desaloja a consciência e confere um estatuto fundamental aos pensamentos inconscientes, produzidos à margem e independentes dela, com seus atos típicos — os atos falhos, os lapsos, sonhos. “O inconsciente implica na hipótese do sujeito freudiano, que se separa de toda reflexividade da consciência”, pontua Laurent (2007, p. 91).

“O que é que chama atenção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem”, ressalta Lacan (1964/1990, p. 29), apontando que “o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do sujeito — donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo” (p. 32). Desde aí, o inconsciente é rastro de linguagem, não sem o que a escapa e, ao mesmo tempo, é motriz: a pulsão. Assim, o mundo experimenta, sempre com densa resistência, o “acontecimento Freud” (LACAN, 1969/2008, p. 183).

“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, definição lacaniana inaugural ao seu ensino, articula os recursos da sua época; servindo-se da linguística, substitui as noções de condensação e deslocamento como mecanismos pelos termos metáfora e metonímia. Para Lacan, o material do inconsciente é “linguageiro” (LACAN, 1996/2017, p. 12). Afirma que a expressão adotada por ele, “como uma linguagem”, não se refere “a uma espécie particular de linguagem, como por exemplo a linguagem matemática, a linguagem semiótica, ou a linguagem cinematográfica” (LACAN, 1996/2017, p. 12). “Linguagem é a linguagem, e só existe um tipo: a linguagem concreta — o francês ou o inglês, por exemplo — que as pessoas falam” (LACAN, 1966/2017, p. 12). Entende-se que a linguagem, com suas estruturas e mecanismos retóricos, “possibilitam o surgimento de um saber que se desprende da correspondência entre significantes” (CÁRDENAS, p. 217).

Nesse momento importante do ensino, Lacan (1996/2017, p. 13) prepara uma conferência de madrugada e acaba por definir, de forma poética: “O inconsciente é Baltimore ao amanhecer”. Encontra aí, segundo ele, a melhor imagem para representar o inconsciente. Lacan (1996/2017, p. 13) complementa, ensinando a ler tal frase: “Onde está o sujeito? É necessário situá-lo como um objeto perdido. Mais precisamente, esse objeto perdido é o suporte do sujeito e, frequentemente, é algo bem mais abjeto do que vocês gostariam de considerar”. Essa afirmativa, à luz da definição poética, como Laurent (2007) faz ver, foi um modo de Lacan dizer do Inconsciente introduzindo aí o seu objeto inventado, o objeto a.

Miller (2011, p. 4), ao comentar essa mesma frase, diz que sabemos tão pouco sobre o inconsciente, que “é inverossímil e muito arriscado definir o que quer que seja a partir dele: pelo contrário, é sempre ele, o inconsciente, que deve ser definido, porque não se sabe o que é”. Portanto, as definições lacanianas do inconsciente reenviam a uma exigência de esforço, esforço de poesia. Lendo Miller, Laurent (2007) dirá que fórmulas do tipo “O inconsciente é…” competem ao analista. Tanto formulá-las quanto engendrar, a cada vez, uma resposta.

Defini-lo como uma cidade ou compará-lo a esse espaço não é inédito a Lacan, mas certamente as cidades lacanianas não têm a profundidade, ou reservas e marcas que remetem à temporalidade das cidades em ruínas freudianas. Hieróglifos ou ruínas arqueológicas causam impressão de civilizações enterradas, soterradas, mas, fazendo justiça àquele que funda a psicanálise, Freud coloca a pulsão de morte no coração da civilização, das cidades que pulsam, e isso é o que permite Lacan elaborar o Inconsciente real.

Com Lacan, o inconsciente não é reservatório senão de gozo, e nasce no espaço de um lapso, ao mesmo tempo em que se o relança sob transferência. Seja no sonho, seja no lapso, seja no trabalho em análise, os pensamentos já estão ali, mas em potência ou em ato (LAURENT, 2007). Quanto ao sujeito do inconsciente, nos diz Laurent (2007, p. 107), respondendo à pergunta demarcada por ele mesmo, como chave para lermos a frase lacaniana que diz que o inconsciente “está em todos os lugares e não se prende a nenhum deles”: com elementos atemporais, o inconsciente avança, na nossa época, a céu aberto e um tanto turvo.

Miller (2013), no prefácio ao livro de Hélène Bonnnaud O inconsciente da criança: do sintoma ao desejo de saber, é enfático ao dizer tratar-se de um livro que vai ficar para a história. E por uma curiosa razão: pelo fato de os psicanalistas duvidarem que exista um inconsciente na criança. Cito Miller (p. 01): “É que os psicanalistas não estão muito seguros de que as crianças tenham um inconsciente digno deste nome”. Adjetivar o inconsciente como digno chama a atenção. Qual é a dignidade em questão? Miller nos lembra que “não há inconsciente sem recalque”, retomando a concepção de que o recalque começaria com o período de “latência”, assim sendo, só então poder-se-ia afirmar a existência do inconsciente. Antes desse período, portanto, comenta Miller, de certa forma, duvida-se disso. Mas de qual inconsciente estaria ele fazendo menção? E, principalmente, quem seriam esses analistas que duvidam da existência do inconsciente na criança? Seriam esses dignos do inconsciente freudiano?

Miller prefacia o livro de uma analista que atende crianças e é lacaniana e, por isso mesmo, tem outra noção do inconsciente. O inconsciente de Lacan é, sobretudo, o inconsciente de quem é atravessado por uma experiência de análise e que se dedica à sua formação permanente, sustentando supervisões e endereços de questões, também permanentes, em estudos e invenções endereçados a uma Escola cernida por um campo — o freudiano. O inconsciente de que se trata é “o inconsciente real, do inconsciente como o impossível de suportar” (Ibid.).

Miller reitera o que se transmite no Núcleo de Psicanálise com Crianças: “Há as formações do inconsciente, que se decifram, que fazem sentido. Mas há também o que faz furo (trou), o que faz excesso (trop), o que faz tropmatismo e troumatismo” (Ibid.).

Miller, então, retoma a questão sobre a defesa e de como perturbá-la. A defesa, pontua ele, com Freud, “não tem a estrutura de um recalque. Ela está antes dele. O falasser está aí diretamente, cruamente, confrontado ao real, sem a interposição do significante — que é cataplasma, unguento, remédio” (Ibid.). Para Miller, a pergunta fundamental que a prática coloca a um analista, também de crianças, é: “como perturbar a defesa?”.

Para muitos analistas, a questão da defesa não se coloca. Para esses, segundo Miller, a defesa estaria fora de alcance, pois conhecem do inconsciente apenas o simbólico, ou, ainda, em uma posição pior, aqueles que estariam no registro da “tonteria”, conhecendo apenas a concepção do imaginário. Miller, então, se serve nesse prefácio para sublinhar com destaque que um analista intervém com a criança quando a defesa ainda não está cristalizada.

Miller demarca que, do encontro com a linguagem, “o sujeito sai esmagado, enterrado pelo significante que o assola”. “Ele renasce, born again, do apelo feito a um segundo significante. Ei-lo entre-dois, recalcado, deslizante, ex-sistente, sujeito barrado e que se barra”.

Lembra-nos que o homem nasce acorrentado, por ser prisioneiro da linguagem, e que seu estatuto primeiro é o de ser objeto. Ser objeto “causa de desejo de seus pais, se ele tem sorte. Se ele não tem, é dejeto do gozo deles” (Ibid., p. 03).

Abre-se o flanco para uma discussão a respeito da criança objeto do mercado, do mundo capitalista. Pois, tal como observa, atualmente “os pretendentes a genitores (…) começam por um estudo dos custos antes de se colocar na tarefa de produzir um ser humano” (Ibid.). Miller exemplifica com a questão da natalidade francesa, que é próspera, e, segundo ele, isso se deve, em parte, às disposições do legislador. Posto que “a política é antes de tudo uma regulação das populações”, é “biopolítica”, como afirma Foucault. The baby business atinge no mundo atual o seu auge. Traz como exemplo a questão do “filho para todos”, fazendo menção a uma das reivindicações do movimento “casamento para todos” (defesa dos direitos do casamento gay). Numa outra vertente, podemos acrescentar e mencionar um dos costumes americanos: nos EUA, o grande planejamento, índice de “responsabilidade paterna” ou “familiar”, é prover uma gorda poupança, a um filho criança, que garanta seus estudos até a faculdade.

Retomando o subtítulo de um outro livro, o de Debora Spar How money, science, and politics drive the commerce of conceptions[2], para terminar seu prefácio com uma ironia tenaz (a meu ver, também dirigindo-se aos discursos liberais, ou pseudolibertários de direitos), convoca os políticos a dirigir um olhar corajoso para o real:

“Homens e mulheres políticos, o pior seria que vocês fechassem os olhos para continuar a sonhar com um mundo ideal no qual papai batalha e mamãe costura. Saibam dirigir um olhar corajoso para o real. Só então vocês terão a oportunidade de agir pelas liberdades” (Ibid. p. 03).

Esse é o ápice do prefácio, que assim se conclui. Entretanto, Miller, nesse pequeno e instigante texto, assinala o fato que todas as culturas estabelecem procedimentos destinados a fazer o sujeito nascer ou renascer através da imposição de um significante suplementar. “Gravam-se, cortam-se, perfuram-se, suturam-se, pedaços do corpo: circuncisão, batismo, infibulação (…). Mais tarde, todos os tipos de ritos de iniciação (…). São sempre manobras, fingimentos, falcatruas, com o significante”.

Com esse aspecto pontuado por Miller, introduzimos a questão da adolescência e das ofertas discursivas de que os jovens podem lançar mão, ora para responderem a um dano causado pelo encontro com o real traumático, ora para se danarem ainda mais. A presença de um trabalho em análise pode servir, ter a função de fazer um sujeito renascer por outra via, qual seja: oferecendo uma parceria real, que aposta na fala e nas invenções singulares.

Para enlaçar ao tema dos impasses de pais e filhos, percorremos, junto ao comentário desse prefácio de Miller, o caso clínico de uma adolescente: o caso Luma[3], sua invenção e sintomas, que parecem abalar as defesas familiares, ou melhor, tocam no princípio organizador da família — um pai de “coração partido” e uma mãe tomada de angústia frente à sexualidade feminina no enlace da questão histérica “sou homem ou mulher?”.

A família, com sua linguagem de família, é berço do falasser, que é filho do sintoma. Como escreveu Ceres Rúbio em seus apontamentos, o filho, filho do sintoma, advém de um mal-entendido sobre o estatuto do corpo, na inexistência da relação sexual; faz acontecimento, e a crise do mal-entendido reaparece na adolescência, fazendo, por sua vez, acontecimento, furo no berço adormecido do casal parental.

O que exaspera os pais de Luma? Aos doze anos, ela se fez passar por um rapaz de dezoito para namorar virtualmente uma menina também de doze anos.

A filha, tratada como “adulta desde bebê”, inteligente e dócil, encontra-se perdida na encruzilhada que se desenha na adolescência. Seus pais a tomam como uma mentirosa compulsiva. Tal passagem remete ao comentário de Roy (2021, p. 03), de que as famílias contemporâneas “sustentam os ideais familiares explorando a discrepância inevitável entre a ‘criança-perfeita’ e a ‘criança-terrível’, entre a criança-falo prometida pelo ideal e a criança-objeto, ser de gozo”. Marco da divisão de “uma mulher ou um homem quando eles se tornam ‘pai’ ou ‘mãe’” (Ibid.)[4]. A criança, no caso, essa adolescente, passa a exasperar, em cada um deles,

“a tensão entre a mais-valia que conta com o acesso a significantes mestres e o efeito de castração que, por sua vez, é registrado como perda, senão como falta. Ao não ser tomada por um dizer singular, essa divisão, então sentida como insuportável, é projetada sobre a criança, que assume os traços de um ser enganador”[5] (Ibid.).

As notas e o interesse da adolescente pela escola decaem; passa a não gostar do próprio corpo e a vestir roupas largas. Assim, inventa um personagem e pesquisa sobre a transexualidade e a hormonização. Apavorados, tiram dela o celular e o tablet, ou seja, as telas por onde ela experimentava construir suas perguntas e vivenciar sua fantasia, com os recursos da sua época, não sem recorrer aos semblants. Com o recurso ao imaginário como falasser, fez do seu corpo um objeto do jogo que inventava; uma matéria na cena do encontro virtual, na internet, para tratar seu gozo, percorrer uma posição sexuada. Lembrando que o termo imaginário, tal como Lacan (1975, p. 30) ressalta em RSI, “não quer dizer pura imaginação, já que da mesma forma, se podemos fazer com que o imaginário ex-sista, é que se trata de um outro Real”.

Para Lacan (1975, p. 30), “a consistência para o falasser, para o ser falante, é o que se fabrica e que se inventa”. Qual é o estatuto da invenção de Luma? Tratar-se-ia de saber como uma mulher responde ao ser abordada por um homem? Construir um saber sobre o que é uma mulher fazendo-se o homem?

Curiosamente, a novidade que “veio dar à praia”[6] na adolescência de Luma não traz algo tão inédito assim. A mãe conta que, aos quatro anos, Luma se recusava a usar a saia da escola e, aos oito, inventava personagens masculinos para os jogos on-line. A primeira manifestação da adolescência, como resposta à puberdade, faz retorno a um tempo pré-edípico, portanto, conturbado, não organizado pelo édipo, e o que se passa com Luma parece ilustrar bem esse estatuto.

O pai interpreta o fato como “doença do coração partido”, a mãe identifica o sofrimento da filha ao dela próprio. E qual seria esse? Para ela, só quando teve a filha nos braços cessou sua angústia frente aos impasses do feminino. E seu sintoma toca uma das insígnias do feminino, que culminou quando a filha tinha quatro anos, idade em que esta responde com a recusa de usar saias. Trata-se de uma literalidade corpórea do todo fálico, sem espaço ao não-todo.

Luma, no encontro com a analista, vai dizer é da sua solidão: “um vazio, uma dor no peito, um desespero que faz o coração disparar”. No seu cubículo, também imposto pela pandemia, experimenta uma escuridão, o tempo que “gira e não passa”, seu nada, ou “o vazio sufocante”, bom nome para cernir a insistência da demanda parental.

Roy (2021, p. 04) pontua que, na zona de alienação significante, oculta-se “o que circula como desejo e o que se deposita como gozo em jogo, para cada um dos parceiros”[7], nessa interseção em que o “processo de separação se funda, dos desmames da infância até as aventuras tumultuadas da adolescência”[8] (Ibid.). Na tentativa de separação dos pais, interpela-os e, de certa forma, evita perguntar-se “o que o Outro quer de mim?”, aspecto de maior angústia. Luma, com essa resposta, recusa uma demanda e, dessa forma, “não dar a eles o que ela não pode dar”, seu ser singular — passar a ser como eles queriam que ela fosse.  Ou, ainda, fornecer aos pais, com o seu sintoma, as respostas sobre o que fazer com um coração partido e com as insígnias do feminino.

Dessa maneira, dar o que não se tem, o amor, passa a fazer questão em análise. A “menina estranha”, que não quer mais ser parecida com os pais; a alienação, no entanto, segue seu curso sob a forma de acting-out. Luma edita, no seu mundo virtual, a questão do enlace e desenlace do mal-entendido do seu par parental?

Existe um real em jogo e é preciso ofertar um lugar de fala, para que ela reinicie seu jogo, dessa vez, com a analista. Tendo sido privada das telas, a impossibilidade do uso das redes para fazer suas ficções e laços interrompe o jogo fantasmático no qual buscava saber o que é ser uma menina de doze anos. Para a mãe, um acontecimento de corpo faz marca de gozo e de perda de insígnias do feminino, colocando no real a questão histérica por excelência — sobre ser homem ou ser mulher.

Para Lacan (1975/2007, p. 129), a todo instante criamos uma língua, a língua é viva, “na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”, o que faz com que exista apenas “inconscientes particulares”. O encontro com a analista e suas primeiras intervenções promovem efeitos. Roy (2021, p. 05) acentua que Lacan

“amplia o conceito de inconsciente freudiano, enfatizando aí, o traço de uma passagem: algo aconteceu, um relâmpago chegou. Um equívoco, não há nada mais próximo, no ser falante, para fazer signo do acontecimento contingente. Não são novas significações que se trata de isolar, mas, a partir de um equívoco (une bévue), na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”[9].

O significante “trans”, que a adolescente diz aos pais, se modifica para “pan” quando endereçado à analista, e ela põe-se a falar dos seus impossíveis de dizer, fazendo o tempo dessa travessia da adolescência em análise, construindo o saber e o caminho enquanto avança. Novos arranjos que permitam um fazer com o gozo atordoante, falar para poder, quem sabe, fazer-se por escrito — ela quer ser escritora. Ela passa a fazer poesia dos “exageros” e ser escritora do seu “intenso insuportável”. Com a licença poética da transferência.

Por fim, de volta ao começo (do texto), o que é o inconsciente faz ressonância à pergunta deixada como ponto de causa nodal a uma Escola, a saber: o que é um analista? O que é um analista de crianças e de adolescentes?

 


 

Referências
CÁRDENAS, M.-H. Inconsciente. In: Scilicet: As psicoses ordinárias e as outras – sob transferência. São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, 2018.
FREUD, S. (1915). O inconsciente. In: Volume XV, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1974.
LACAN, J. (1966). Acerca da estrutura como imisção de uma alteridade prévia a um sujeito qualquer. Conferência em Baltimore, 1966. Opção Lacaniana, n. 77, São Paulo, Edicões Eolia, 2017.
LACAN, J. (1969). O Seminário, livro 16: de um Outro a outro. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. (1975). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2007.
LAURENT, E. Cidades Analíticas. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2007.
MILLER, J.-A. Intuições Milanesas. Opção Lacaniana online nova série.
Ano 2, Número 5, Julho 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf Acesso em out. de 2021.
MILLER, J-,A. Prefácio. In: Bonnnaud, Hélène. L’Inconscient de l’enfant. Du symptôme au désir de savoir. (Trad. Cristina Drummond) Paris: Navarin Éditeur, 2013 (circulação interna).
ROY, D. Parents exaspérés: enfants terribles. Disponível em: https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Acesso em: set. de 2021.

[1] Comentário do prefácio de Jacques-Alain Miller para o livro L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, de Hélène Bonnnaud. Apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do IPSM-MG em 20/10/2021.21.
[2] Como o dinheiro, a ciência e as políticas impulsionam o comércio de concepções, tradução nossa.
[3] Caso apresentado e autorizado para estar presente neste texto, pela colega Ceres Rúbio, psicanalista participante da Seção Leste/Oeste (EBP-SLO) e do Bilboquê — Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Criança, Rede CEREDA, do Campo Freudiano.
[4] No original: “Ils viennent aujourd’hui soutenir les idéaux familiaux en exploitant l’écart inéluctable entre “enfant-le-parfait” et “enfant-le- terrible”, entre l’enfant-phallus promis par l’idéal et l’enfant-objet, être de jouissance. Cette division percute une femme ou un homme quand ils deviennent “père” ou “mère”.
[5] No original: “la tension entre la plus-value que fait espérer l’accès à ces signifiants-maîtres et l’effet de castration, qui lui, s’enregistre comme perte, si ce n’est comme manque. À ne pas être prise en charge par un dire singulier, cette division, alors ressentie comme insupportable, est projetée sur l’enfant qui prend les traits d’un être trompeur (…).”
[6] Trecho da música “A novidade”, de Gilberto Gil.
[7] “Dans cette zone d’aliénation signifiante, ce qui circule comme désir et ce qui se dépose de jouissance en jeu, pour chacun des partenaires
[8] “C’est en effet sur cette intersection que se fonde le moindre processus de séparation, des sevrages de la petite enfance jusqu’aux frasques tumultueuses de l’adolescence”.
[9] “Élargit le concept de l’inconscient freudien, en mettant l’accent sur la trace d’un passage: quelque chose a eu lieu, en un éclair c’est arrivé́. Une bévue, il n’y a pas plus proche, chez l’être parlant, pour faire signe de l’événement contingent. Ce ne sont pas de nouvelles significations qu’il s’agit d’isoler, mais, à partir d’une bévue, “le petit coup de pouce que chacun donne à la langue qu’il parle”.



AS TEMPORALIDADES DA MEDIDA PROTETIVA DE ACOLHIMENTO[1]

CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA NUNES
Psicanalista, graduado em Psicologia.
Analista de Políticas Públicas da Secretaria de Assistência Social de Belo Horizonte e
mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG.
h.oliveira@live.com

Resumo: O artigo trata da medida protetiva de acolhimento, utilizada como instrumento de proteção a crianças e adolescentes pelo Judiciário e pelas políticas públicas de assistência social. Nesse âmbito, o texto explora pontos de tensão entre esses campos no esforço de argumentar que questões em torno da temporalidade, bem como a penetração do discurso jurídico no espaço reservado à escuta dos sujeitos, ocupam posições centrais nesse debate. O desafio está em criar um intervalo para a escuta que propicie a dialetização entre a temporalidade cronológica, na qual opera o discurso jurídico, e a temporalidade lógica, mais própria ao sujeito.

Palavras chaves: medida protetiva de acolhimento; judicialização; políticas públicas de assistência social; temporalidade lógica.

The Temporalities of Foster Care

Abstract: This text discusses the foster care, used by the Judiciary and by public social assistance policies as an instrument to protect children and adolescents. In this context, the article explores points of tension between these two fields, considering that the various temporalities and the penetration of legal discourse in the space reserved for listening to subjects occupy central positions in this debate. The challenge is to create an interval for listening that provides a dialectization between the chronological temporality, in which the legal discourse operates, and logical temporality, more appropriate to the subject.

Keywords: foster care; judicialization; public social assistance policies; logical temporality

Desali, s/t

Durante a reabertura democrática, ao fim da ditadura empresarial-militar, afinado com as discussões mundiais sobre infância, o Brasil levou o tema da garantia de direitos de crianças e adolescentes como responsabilidade da família, da sociedade e do Estado para o texto da Constituição Federal de 88 (CF88) e, dois anos depois, para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA90). O Estatuto inaugura a chamada Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. Estes passam a figurar como sujeitos de direitos, cuja proteção passa a ser dever de todos. As políticas públicas organizam-se, assim, numa lógica de proteção e promoção de direitos.

Para tanto, o Estatuto estabelece um rol de medidas de proteção para garantir direitos a crianças e adolescentes que se encontrem em situação de risco ou de vulnerabilidade. Há uma gradação entre essas medidas — algumas bastante simples, como “matrícula escolar” (crianças cujo direito à educação tem sido negligenciado) e “acompanhamento temporário por serviços públicos de saúde e assistência social”; e outras mais complexas e incisivas, por exemplo, em casos extremos de violência contra a criança ou violação de direitos pela família, temos, justamente, a medida protetiva de acolhimento, que é a retirada da criança do seio familiar para ser enviada a serviços de acolhimento institucional, popularmente conhecidos como abrigos, ou serviços de acolhimento familiar de famílias acolhedoras, nas residências de famílias voluntárias.

A medida protetiva de acolhimento possui duas características fundamentais: é excepcional, ou seja, deve ser utilizada apenas quando todas as outras tiverem se mostrado ineficazes e incapazes de garantir proteção; e provisória. Temos aí dimensões temporais: deve ser a última de uma série e deve ser breve.

O Estatuto estabelece que, uma vez que uma criança tenha sido encaminhada a um serviço de acolhimento, todos os esforços devem ser realizados no sentido do retorno da criança para casa. Assim, a família deve receber apoio para que possa reposicionar relações intersubjetivas familiares e sociais, assim como ter garantido seu acesso às políticas públicas, acompanhamento sociofamiliar e proteção do Estado para, finalmente, receber de volta a guarda da criança. Segundo o Estatuto, a separação é um meio para a reintegração da criança à sua família. Nota-se aí o caráter paradoxal.

Apenas nos casos em que, mesmo depois desse trabalho com os pais, tios, avós e outros parentes, nenhum adulto desse núcleo familiar mostrar condições de haver a guarda da criança, é que esta fica, então, disponível para a adoção por uma família que se interesse por ela. A adoção é a última medida.

Importante tal contextualização para que tenhamos em mente que uma adoção pressupõe um tempo anterior a ela. Um histórico que envolve sujeitos, instituições, dispositivos, laços rompidos, antigos afetos e projetos sem sucesso…

As medidas protetivas de acolhimento se dão em dois campos: no primeiro, temos a Vara Cível da Infância e Juventude, na qual todo o processo legal e decisório sobre a guarda das crianças se desdobra; no outro, paralelo, a assistência social com os serviços de acolhimento, que contam com psicólogas e assistentes sociais. O trabalho destas últimas pode ser resumido em dois pontos: humanização do acolhimento das crianças e acompanhamento e atendimento a essas crianças e suas famílias, tendo em foco a possibilidade de reintegração familiar.

A relação entre esses dois campos (judiciário e assistência social) é bastante complexa. Embora sejam independentes (um judiciário e, outro, serviço do executivo municipal), a própria Política de Assistência Social coloca-se como estando em “estreita interface com o Sistema de Justiça” (CNAS, 2009. p. 37). Mas a relação não parece ser simplesmente essa. O que se nota é que o trabalho de acompanhamento às crianças e às famílias, que poderia, como tal, se configurar como a oferta de um tempo e um espaço, ou seja, um intervalo, para uma escuta desses sujeitos, está constantemente sendo atravessado por demandas judiciais.

Teríamos aí o risco da judicialização dos serviços de acolhimento (a penetração de uma lógica jurídica em um campo, a princípio, exterior àquele propriamente jurídico). Mas tal judicialização ainda pode se estender a um segundo tempo, pois, caso a profissional/técnica desses Serviços de Acolhimento esteja desavisada dessas tensões, pode acabar por veicular para a família um discurso que reitera deveres, normas, protocolos padronizados e generalizações. A família (que no processo é chamada de ) pode acabar sendo convocada a dar provas de ser uma boa família — noção que não passa de imaginarização de relações que são simbólicas e muito mais variadas e complexas. No fim das contas, isso seria veicular uma “medida” na qual nenhuma família cabe.

Quem diz a verdade? O abuso sexual realmente aconteceu? Essa mulher, com 4 filhos de 4 pais distintos, tem mesmo condições de ser mãe? Esse homem é um bom pai? Favor inquerir esta mulher sobre quem seria o pai da criança, porque esta tem o direito de ter o nome do pai em sua certidão de nascimento! Tem afeto?” são algumas das questões direcionadas aos Serviços de Acolhimento. Vemos que são questões que os desviam de seu objetivo — a reintegração familiar — e parecem interessadas em reintegrar, na verdade, certo saber à justiça — fazê-lo íntegro, completo.

Espero deixar claro que não se trata de condenar o uso da medida de acolhimento, mas de estar esclarecido a respeito de sua complexidade e até mesmo suas contradições.

Arrisco alguns comentários sobre esse trabalho de reintegração familiar articulando-o a partir da questão do tempo. Destacam-se três temporalidades que se atritam e tensionam: uma da lei ou do judiciário, outra da família e, por fim, uma da criança acolhida (NUNES; PENNA, 2021).

O processo de acolhimento no judiciário se pauta pela provisoriedade do acolhimento, que deve ser o mais breve possível. No sentido da celeridade processual, pautam-se prazos e demanda-se urgência dos serviços de acolhimento da assistência social. O tempo para esse processo na legislação diminuiu há alguns anos. Antes, o prazo máximo de permanência em acolhimento era de dois anos, agora, um ano e meio. Na lei, sempre esteve prevista a possibilidade de prorrogação desses prazos, mas a prática indica que essa possibilidade nem sempre é considerada ou não é considerada por todos. Os relatórios sobre a possibilidade de reintegração da criança à família eram semestrais, agora, trimestrais. Crianças que não são procuradas 30 dias após o acolhimento devem ser cadastradas para adoção. Assim, a pressa em responder[2] chega para os serviços de acolhimento (em especial, em casos de crianças acolhidas).

Claro, há uma exigência que o processo corra no menor tempo possível, pois, quanto menor o tempo em acolhimento, melhor para a criança, certo? Sim e não. O que fundamenta essa demanda de uma resposta rápida para concluir sobre o caso me parece uma problemática identificação operada nesse campo entre a velocidade da decisão judicial e o princípio do “melhor interesse da criança”. Algo aí fica fora do jogo, desconsiderado.

Outra temporalidade seria aquela experienciada pelas famílias. Elas vêm, invariavelmente, de um contexto de vulnerabilidades sociais extremas e historicamente cronificadas de situações violadoras. Não raro, é possível escutar desses sujeitos suas histórias que giram em torno de um mesmo núcleo e que se repetem uma e outra vez, mudando as gerações… Frente a essas questões, embora a demanda verbalizada pelas famílias seja também a de uma pressa na reintegração do filho, com sua escuta é possível cernir que é preciso um tempo estendido, para que se produza uma resposta, reorganização, implicação etc. O tempo da família (atravessada por suas questões singulares e também determinantes históricos, culturais, socioeconômicos) parece ser uma temporalidade não-apressada.

Uma terceira experiência de tempo seria a da criança ou do adolescente acolhido. O tempo aqui aparece nas chamadas fases do desenvolvimento, mas principalmente como demanda de retorno para a família no tempo mais breve possível, o sofrimento pelo tempo afastado do lar… Mas a própria criança não se beneficiaria se sua família tivesse um tempo não-apressado a seu dispor? Estamos de volta à questão do melhor interesse da criança. E aqui poderíamos perguntar: o melhor interesse da criança segundo quem?

Como representativo desses fenômenos, podemos lembrar alguns exemplos, como as Recomendações 04 e 05/2014 da 23ª Promotoria de Infância e Juventude de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Elas foram publicadas recomendando que os serviços de saúde, em especial as maternidades, comunicassem compulsoriamente à VIJ as situações de puérperas com histórico de uso de drogas, que não teriam realizado acompanhamento pré-natal adequado, que estariam em situação de rua e/ou que tivessem interesse em entregar seu bebê diretamente para a adoção.

Esses documentos motivaram muitos acolhimentos preventivos (desrespeitando o caráter excepcional já citado da medida de acolhimento). Vemos aí uma tentativa de antecipar-se às situações que supostamente seriam violadoras de direitos. Ou seja, não apenas saber sobre o melhor interesse da criança, mas saber a priori. É interessante notar que as Recomendações não foram recebidas como um recomenda-se, mas como cumpra-se — sinal da judicialização a que me referi anteriormente.

Não são raros os casos de decisões processuais jurídicas anteriores a uma conclusão sinalizada pelo trabalho com as famílias e crianças. Esses retornos para casa e até encaminhamentos para famílias adotivas fazem um corte abrupto antes que se esboce uma elaboração por parte da família.

As prescrições de prazos que instrumentalizam a urgência da temporalidade judicial está fundada sobre a linearidade suposta de um tempo cronológico. Nessa orientação, o processo judicial progride, protocolar, superando sucessivamente etapas anteriores, dirigindo-se sempre para seu desfecho. Mas diversa é a forma de tempo que se observa na experiência dos sujeitos (famílias e acolhidos).

No trabalho de escuta desses sujeitos, o tempo se inscreve por vezes como persistências, repetições, reincidências, pausas, movimentos que parecem cíclicos e prenhes de descontinuidades (esse é também o modelo do tempo histórico que, embora avance, faz reincidir e acirrar desigualdades sociais seculares). Um tempo lógico que irrompe onde se esperaria uma linearidade processual e cronológica.

Os casos nos quais os familiares fazem uso de drogas, lícitas ou ilícitas, são muito representativos disso. Iniciados os tratamentos, vemos sujeitos que se organizam e caminham em certa direção, mas acabam por vezes retomando o uso abusivo — reincidem, interrompendo o tempo linear de “avanço”. As recaídas, que são até esperadas nesse contexto, algumas vezes são lidas como atraso e como provas da incapacidade da família, que não conseguiria se reorganizar.

Não se trataria, portanto, apenas de fazer uma oferta de “mais” tempo, mas também de estar esclarecido que o tempo subjetivo acelera, regride, retorna, avança e desacelera. Essa temporalidade lógica do sujeito (diferente da cronológica prescrita na lei) não pode ser pré-estabelecida.

Fica o desafio de pensar como inserir um intervalo e tecer uma dialetização entre os tempos lineares e lógicos dessa cena para lidar com essas temporalidades, por vezes concorrentes. Uma temporalidade de urgência ameaça a possibilidade de um tempo para compreender, necessário para alguma elaboração.

Gostaria de finalizar com uma frase de Freud, no texto Sobre o início do tratamento (1913/2017), que demonstrava já estar avisado da impossibilidade de uma duração determinada a priori para uma análise. Segundo ele, ao ser interpelado com a questão de quanto tempo um tratamento durará, o analista deveria responder que primeiro se precisa conhecer o passo do andarilho, para depois poder calcular a duração de sua caminhada (p. 129).

 


Referências
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Resolução nº 145/2004. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS, 2009. 175 p.
FREUD, S. Sobre o início do tratamento. In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Trad. Claudia Dornbusch. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 121-147.
NUNES, C. H. O.; PENNA, P. D. M. O tempo da lei e as temporalidades singulares: impasses no acolhimento institucional de crianças e adolescentes. In: ANDRADE, M. C.; CARDOSO, J. S.; Curi, G. A. (org.) Transfinitos: inconsciente e tempo. Belo horizonte: Aleph – Escola de Psicanálise, 2021. (v. 18). p. 233 – 242.
Nota

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Direito da Seção Clínica do IPSM-MG, em 10/09/2021.
[2] A expressão intitula a Jornada Internacional do CIEN “A pressa em responder”, realizada em 27 de novembro de 2009.
psicanálse – acolhimento – lacan – psicanalise – psychanayse – psicoanálisis



FENÔMENO E ACONTECIMENTO DE CORPO[1] 

SÉRGIO DE CAMPOS
Psicanalista, Analista Membro da Escola. EBP/AMP
sergiodecampos1@gmail.com

Resumo: O autor trabalha a diferença entre os conceitos de fenômeno de corpo e acontecimento de corpo, o primeiro, um gozo que se inscreve como traumatismo e que poderá, ou não, ganhar o estatuto de acontecimento de corpo.  Para traçar essa diferença, explora as noções -indissociáveis- de corpo e gozo, dado que o corpo vivo surge como a persistência de uma letra de gozo, um corpo consequência de marcas, traços, inscrições e acontecimentos contingentes. Além disso, apresenta três exemplos de acontecimentos de corpo: em Schreber, na relação de James Joyce e Nora e em um fragmento de sua própria análise.

Palavras chaves: fenômeno, acontecimento de corpo, gozo, corpo, sinthoma

BODY PHENOMENON AND BODY EVENT

Abstract: In this essay, the author discusses the difference between the concepts of body phenomenon and body event. The first, a jouissance that is inscribed as a trauma and that may, or may not, gain the status of a body event.  To trace this difference, he explores the -indissociable- notions of body and jouissance, since the living body is the persistence of a jouissance letter – a body that is a consequence of marks, traces, inscriptions, and contingent events. Moreover, he presents three examples of body events: in Schreber, in James Joyce and Nora’s relationship, and in a fragment of his own analysis.

Keywords: phenomenon, body event, jouissance, body, sinthome

Desali. Noia summer please corona

 

É sempre oportuno precisarmos e diferenciarmos os conceitos de fenômenos de corpo e os acontecimentos de corpo. Nesse sentido, tem-se que a palavra fenômeno, de etimologia grega, deriva da palavra phainomenon — o nome do brilho —, portanto, tudo o que pode ser observado pelos nossos sentidos e descrito no plano do conhecimento.

Os fenômenos de corpo, por sua vez, são frequentes e comuns. Os campos da psicanálise estão repletos de fenômenos de corpo, desde as histéricas de Freud, como Ana O., Dora e Elizabeth von R., com os seus quadros somáticos, dissociativos e conversivos; passando pelos dismorfismos corporais, tais como a anorexia, a bulimia e a obesidade; alcançando os fenômenos psicossomáticos; e, por fim, os fenômenos de corpo que ocorrem nas psicoses, tais como as alucinações de todos os tipos e os delírios cenestésicos e hipocondríacos. Desse modo, podemos concluir que os fenômenos de corpo, assim como os acontecimentos de corpo, têm lugar tanto nas neuroses quanto nas psicoses.

Na segunda clínica, Lacan migra do paradigma de o isso fala para o isso goza e que o real do inconsciente é o corpo falante. Logo, o corpo não é mais derivado do estádio do espelho, da imagem do corpo, de sombras e de reflexos, mas da corporização da imagem, de uma imagem corporificada. Com fins de sair do dualismo de Descartes, Lacan propõe a substância gozante para unir a res cogitans e a res extensas, de sorte a produzir o corpo falante, resultando em uma mônada, como uma máxima do monismo, que ele traduz como mistério. Em seu último ensino, Lacan retira a relevância das estruturas clínicas ao propor o conceito de falasser. Os fenômenos de corpo podem ser lidos como sinais de que o UOM tem um corpo e que isso goza.

Seguindo a análise, os fenômenos de corpo podem ser fugazes, transitórios ou permanentes, via de regra são fora de sentido, como a famosa dor sem razão encarnada e permanente da fibromialgia, ou podem estabelecer uma relação de nexo causal, como no episódio no qual Dora é assediada pelo sr. K. Assim, a sensação de pressão no tórax (que Freud compreende como deslocada) no caso de Dora, logo após o sr. K. pressionar o seu ventre com o membro ereto. 

A corporificação ou incorporação

Na segunda clínica, Lacan dispensa suas referências concernidas ao estádio do espelho com a finalidade de usar o conceito de corpo como gozo. Lacan recorre ao texto de Freud “Bate-se numa criança”, em razão de que esse postulado não se produz pelo efeito de verdade, mas pelo efeito de gozo. Logo, como significação absoluta, a fantasia se desequilibra e se capta pelo contrário, não mais como efeito de verdade, mas como efeito de afeto. Portanto, o significante é incorporado como afeto, como um afeto de gozo.

O conceito de gozo é, portanto, indispensável para se cogitar algo sobre o corpo, visto que é necessário ter um corpo para gozar. Nesse sentido, ambos os conceitos são indissociáveis, pois apenas um corpo pode gozar. Se o significante não necessita se apoiar em um corpo, mas em uma letra, é necessário que o gozo se manifeste em um corpo (MILLER, 1998, p. 93).

Ademais, Lacan leva em conta o conceito de lalíngua como um furo disjunto da linguagem, que antecede à fala e ao vernáculo, uma vez que encarna o gozo e produz um corpo vivo. Assim, o corpo vivo surge como a persistência de uma letra de gozo e passa a ser condição para tal. Logo, o corpo é consequência de marcas, traços, inscrições e acontecimentos contingentes, frutos da junção entre lalíngua e os afetos que se incorporam.

Com a finalidade de debater sobre como se faz um corpo, é necessário levar em consideração o conceito de gozo. O parlêtre experimenta o gozo em si: tanto o gozo do Um como o gozo do Outro. Se, por um lado, o gozo do Outro é conectado ao Outro sexo, o gozo do Um é solitário e assexuado. Logo, a relação do gozo do Um ao gozo do Outro sexo é disfuncional, visto que “não há relação sexual”. Aqui, o axioma “não há relação sexual” denota que o gozo do Um é sempre solitário e ele se encontra com o gozo do Outro apenas sob o regime da contingência (MILLER, 2003, p. 275).

Miller destaca que o gozo do Um é parasitário e se manifesta de diversas formas, por diferentes meios. O gozo do Um é conexo ao corpo próprio e não faz par, pois é sempre o corpo que goza e o gozo como Um não depende de uma relação com o Outro.

A cada uma das tentativas, imaginário, simbólico e real se revelam como insuficientes, mesmo porque o objeto a se revela como um semblante. No Seminário 20, Lacan descobre que o objeto a não consegue dar conta do gozo, visto que ele é um falso real que, em si, é um semblante. Então, a conclusão de Lacan é que o gozo não se reduz ao desejo, nem ao falo, tampouco ao objeto a (MILLER, 2009, p. 274).

No Seminário Mais, ainda, Lacan coloca em questão o conceito de linguagem, que passa a ser considerado um conceito derivado, e não originário, em relação à invenção de lalíngua — que é a fala antes do seu ordenamento semântico, gramatical e lexicográfico. Assim, Lacan, ao questionar o conceito de fala e linguagem, afirma que não há linguagem como comunicação, apenas como gozo. No ensino de Lacan, o gozo era sempre secundário em relação ao significante. Entretanto, o gozo sendo conduzido a uma relação originária nesse Seminário, a linguagem, que era considerada primária, surge como secundária e derivada. O que Lacan chama de lalíngua é a fala como disjunta da estrutura de linguagem, que aparece como derivada e efeito dessa atividade primeira e separada da comunicação.

Desse modo, Lacan isolou o conceito de lalíngua aquém da linguagem, aquém dos efeitos de significação. Lalíngua serve para muitas coisas diferentes da comunicação. Então, Lacan a localiza no nível homogêneo ao do inconsciente e mais aquém da linguagem, a qual se expressa como gozo; ela é um significante que está reduzido ao Um — S1 — e não se articula ao S2 em sua função de representação de sujeito. Portanto, o significante não é funcional para a comunicação, mas é usado para gozar. Lalíngua está incluída no pensamento e permanece indecisa entre o fonema e a palavra (Ibidem, p. 334).

Se a finalidade da psicanálise é modificar o modo de gozo, cabe indagar como o significante opera sobre o gozo. Nesse sentido, a mutação de gozo é o objetivo do processo analítico, cujo par significante e significado constitui uma abordagem parcial do gozo. Em razão disso, Lacan inventou o conceito de lalíngua como um furo no âmbito da linguagem. Logo, a linguagem é o fruto de uma elucubração de saber, de modo que ela é uma construção a partir de lalíngua e orientada em direção à significação (Ibid., p. 271). Portanto, para dar conta do gozo, é necessário arrancar o efeito de significação e substituí-lo por lalíngua.

A partir disso, a fala como comunicação, o conceito do grande Outro, o Nome do Pai, o símbolo fálico se desfazem e se reduzem apenas ao estatuto de semblantes e acabam por ser reduzidos a uma função de grampo entre elementos disjuntos. O paradigma da não relação traduz a disjunção entre o significante e o significado, o gozo e o Outro e o homem e a mulher sob a fórmula de que “a relação sexual não existe”. Assim, todos os termos considerados primordiais na obra de Lacan e que eram denominados transcendentais — visto que condicionavam toda a sorte de experiências e princípios da prática e garantiam a grande conjunção e harmonia entre elementos como o Nome-do-pai, o Outro e o falo ficam reduzidos a conectores. Então, o que era da ordem transcendental se torna uma pragmática social. A figura que pode representar esse paradigma são dois círculos de Euler indexados pela disjunção, cuja intersecção é vazia e que é passível de ser conectada por intercessores variados capazes de fazer suplência, os quais Lacan denominou sintoma.

Vale dizer que o Seminário Mais, ainda radicaliza o conceito de não relação e que, portanto, faz vacilar o conceito de estrutura, já que ela nada mais é do que uma variedade de articulações e de relações, o que, em síntese, a não relação amplia e aprofunda uma mudança total de paradigma. Nesse sentido, o seminário abole o conceito de estrutura e outros tipos de relação e articulações.

Lacan abandona, então, o sistema de significação com a finalidade de dar conta do efeito de gozo, de modo que ele o substitui pelo nó borromeano, capaz de enodar os três registros (RSI). Para tal, Lacan coloca o inconsciente como um dejeto da elaboração freudiana, como inconsciente real. Ademais, a interpretação ganha uma nova abordagem fora do sistema de significação, como perturbação da defesa.

Se Lacan destaca que, no início, está o significante, no Seminário 20, ele segue seu caminho inverso, já que parte da ideia de que o gozo é um fato. Assim, há um retorno à Coisa, com a finalidade de reduzi-la ao objeto a e torná-lo manejável. O ponto de partida dessa perspectiva não é “a relação sexual não existe”, mas, ao contrário, é que Há Um. Há gozo. Até o seminário Mais, ainda, havia uma satisfação que advém do fato de falar para um analista e que isso produz efeitos de verdade. Agora, a perspectiva é outra, pois se parte da premissa de que há gozo como propriedade de um corpo vivo e que o gozo se relaciona unicamente ao corpo vivo. Enfim, só há psicanálise de um corpo vivo e que fala.

Lacan relata que o corpo falante “é o que merece ser qualificado de mistério”. A psicanálise se dedica à substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Logo, a passagem do isso fala para isso goza implica uma disjunção entre o gozo e o Outro, instaurando a não relação entre eles. Então, temos o gozo do Um-totalmente só, separado do Outro. Logo, todo gozo efetivo, todo gozo material é gozo Uno, quer dizer, gozo do corpo próprio. Enfim, sempre é o corpo próprio quem goza, por qualquer que seja o meio. O gozo, como tal, é gozo Uno. É o reino do gozo do Um. 

Fenômenos e acontecimento de corpo

O fenômeno de corpo é um gozo que se inscreve como traumatismo, como choque do significante, de maneira contingente. Em “La Conversación”, Miller (2016) destacou vários fenômenos anormais, paradoxais e insensatos, cuja persistência adquire a função de suplências à foraclusão do Nome-do-pai.

Miller nos adverte que é apenas quando um fenômeno de corpo adquire permanência e consistência e ordena a vida do parlêtre que ele ganha o estatuto de sinthoma e de acontecimento de corpoVale dizer que os fenômenos de corpo são um conjunto maior, no qual está incluído o conjunto menor dos acontecimentos de corpo. Logo, todo acontecimento é um fenômeno de corpo, mas nem todo fenômeno é um acontecimento. Então, se, por um lado, o fenômeno é algo frequente e comumente observado na clínica, por outro, o acontecimento de corpo é algo excepcional e raro.

Por tal motivo, é necessário aguardar um tempo para saber se aquele fenômeno terá alguma função sinthomática para, depois, defini-lo como acontecimento. O que Miller chama de sinthoma é a consistência dessas marcas, e é por isso que ele o reduz e o equivale ao acontecimento de corpo (MILLER, 2016, p. 110). Logo, o acontecimento é um choque inaugural do significante que se fixa sobre corpo, e desse encontro nascem marcas que reiteram gozo sem cessar em um acontecimento permanente (MILLER, 2013, p. 75).

Três exemplos de acontecimento de corpo

Como exemplo clínico de acontecimento de corpo, relato três exemplos: o primeiro exemplo é uma hipótese extraída das Memórias de um doente de nervos, de Daniel Paul Schreber; o segundo, da relação de James Joyce e Nora e o terceiro está relacionado a minha experiência de análise, relatada com detalhes no meu testemunho de passe. 

Schreber

O livro Memórias de um doente de nervos, de Daniel Paul Schreber, foi o objeto do principal trabalho psicanalítico de Freud sobre as psicoses, conhecido como o caso Schreber. O livro de memórias é uma descrição minuciosa do delírio do paciente e de sua relação com Deus. Schreber descreve detalhadamente uma teologia na qual ele é o pivô do interesse sexual de Deus. Toda a relação é de grande sofrimento, visto que ele é submetido, por capricho divino, a uma feminização, contra sua vontade. Apenas quando Schreber consente em ser mulher de Deus é que o delírio se apazigua. Entretanto, por que há esse consentimento? Já quase no fim do livro, surge um elemento sutil que quase nos passa despercebido. Schreber destaca que “devo confessar que em parte só depois de anos reconheci as verdades nelas contidas, ao passo que no início, pelo menos com relação a algumas delas, eu me conduzia de modo muito cético”.

A esse contexto pertence, entre outras, a locução: “Por mim — deve ser a senha”. Com essa senha, Schreber tem a convicção que deve abandonar qualquer preocupação com o futuro — confiando na eternidade — e deixar com que seu destino pessoal se desenvolva tranquilamente, seguindo o curso natural das coisas. “Na época, eu ainda não conseguia reconhecer como adequado o conselho de me livrar de tudo que me acontecia com um indiferente ‘Por mim’ ”. Schreber destaca que a senha “por mim” tem relação com outra frase: “Todo absurdo se anula”. Completa ainda que “Naquela época em que ainda ouvia das vozes essa frase, há muitos anos, e agora não as ouço mais, não conseguia me convencer, de sua veracidade” (SCHREBER, 1984, p. 303–304).

É bastante instigante destacar que o fenômeno elementar, como um fractal em seu devaneio — “como seria bom ser mulher no ato da cópula” —, já antevia todo o delírio de Schreber no qual ele se coloca como objeto de transitivismo da volúpia divina. Não entrarei em detalhes da complexidade delirante de Schreber, no entanto, o que ocorre é que, em determinado momento, surge uma senha que, como um grampo, produz o consentimento e todo o estancamento da produção delirante de Schreber.

Vale dizer que a pequena alocução “por mim”, concernida ao seu narcisismo, faz a função de grampo capaz de cessar a produção delirante e adiar por séculos o seu desígnio de se tornar mulher de Deus. Nesse momento, cabe indagar se essa alocução “por mim”, de modo paradoxal, consegue grampear o grande e complexo delírio de Schreber produzindo, como acontecimento de corpo, o desaparecimento das alucinações e sua estabilização psíquica. Enfim, é necessário destacar que há um antes e um depois do aparecimento contingente da senha “por mim”, que provoca um acontecimento de corpo de duração suficiente, porém, não eterna. 

Joyce e Nora[2] 

O encontro de Joyce e Nora vale constatar como improvável e contingente, de modo que cabe indagar a razão dessa união ter sido duradoura. Qual é o papel de Nora na relação com Joyce? Teria Nora a função de acontecimento de corpo para Joyce?

Nora tinha uma espécie de função de luva ao corpo de Joyce, embora, quando virada pelo avesso, o botão da luva impedisse um ajuste perfeito. Se Nora serve como uma luva para Joyce, é porque ela tem uma função reparadora de fixação/aperto (serrage), de invólucro ao ego defeituoso, de forma que ela une e ata o corpo de Joyce que lhe escapa (ARPIN, 2016, p. 127). Logo, Nora suplementava a função da escrita.

Inobstante a Joyce desdenhar de sua mulher, por ser “adoravelmente ignorante”, ele não a dispensava ao escrever em razão de dois objetos: o olhar e a voz. Joyce necessitava do olhar de Nora. Ele usava de um expediente para escrever: ao sentar-se à mesa em frente a um espelho, postava Nora sentada ou deitada atrás dele, de modo que ele se sentia olhado por ela e era possível olhá-la quando desejasse (Ibid., p. 133). O olhar de Nora ganha uma função fundamental na medida em que Joyce vai perdendo sua visão.

A voz de Nora, por sua vez, com um sotaque de Gallway, cuja pronúncia se aproximava do gaélico, tinha um papel relevante em virtude da musicalidade de sua língua, já que ela utilizava expressões e reviravoltas que jamais ouvira. “Sua voz oferece um contraponto que torna seu escárnio excitante, exasperante e terno ao mesmo tempo” (Ibid., p. 124).

Os dois não se desgarravam, fazendo a relação sexual existir. “Se ele está em algures, ela está por perto. Se ele vai a nenhures ela também irá por certo”. Entretanto, Nora não será a Beatriz de Dante ou a Madeleine de Gide, como musas inspiradoras e idealizadas (ARPIN, 2018, [s.p.]), tampouco Joyce faz dela a causa de seu desejo. Nora é uma matadora de homens, mas fica com o único homem que não morre de amores por ela (ARPIN, 2016, p. 137).

De acordo com Lacan, no Seminário 23, sua escrita singular teve função de ego para Joyce. Trata-se de ego, e não de eu, visto que ele não está concernido à imagem corporal, ao estádio do espelho, mas a uma corporificação da imagem. Então, haveria uma diferença entre as funções da escrita e de Nora, como sua parceira? Nesse caso, caberia indagar se a escrita teria um papel de sinthoma e, Nora, uma função de suplência, ou se ambos, escrita e Nora, desempenham a mesma função, que não existe uma sem a outra? É evidente que Nora tem a função de atar o corpo de Joyce, portanto, poderíamos nos autorizar a dizer que o encontro contingente com Nora teve um papel de acontecimento de corpo para Joyce?   

Fenômeno e acontecimento de corpo e final de análise 

Antes de abordarmos o acontecimento de corpo no final de minha análise, narrarei um breve episódio que destaco como fenômeno de corpo ocorrido na minha juventude. Era início dos anos setenta, talvez 1972, eu tinha aproximadamente quinze anos. Tinha um sonho, como quase todo jovem de minha geração: ter uma calça jeans da marca Lee. Era algo muito raro e caro. Juntei ao longo dos meses o pouco de mesada que recebia. Certa vez, quando supus ter a quantia, dirigi-me à Galeria Ouvidor, uma espécie de shopping center da época, onde havia algumas importadoras. Sempre ia a essas importadoras, mas nunca encontrei a calça Lee. Porém, um dia, ao chegar à loja, o vendedor me avisou que a calça Lee havia chegado e tinha o meu número. Entrei no trocador e a experimentei: perfeita!

No momento em que ainda apreciava o modelo justo ao meu corpo, comecei a escutar uma música que me deixou totalmente atônito e arrepiado da cabeça aos pés. Tirei a calça resoluto e a entreguei ao vendedor que, perplexo, não entendia a razão pela qual não compraria a calça Lee, tão desejada. Cruzei o corredor da Galeria Ouvidor, dirigi-me à loja de discos e perguntei: que música é essa? Blowing in the Wind, de um tal de Bob Dylan. Nunca tinha ouvido falar em Bob Dylan, mas fui tomado de assalto por aquela musicalidade expressa por uma espécie de lalíngua, acompanhada por uma gaita que parecia um gemido. Esse episódio deixou marcas de satisfação no corpo, porém, não o considero acontecimento de corpo, mas sim um fenômeno de corpo.

No que se refere às sessões que serviram de epílogo para o final de minha análise, destaco uma passagem que pode ser inscrita como acontecimento de corpo. Em razão de o filho ter entrado, contingencialmente, na briga do casal parental, o pai o teria puxado e carregado pelos cabelos e o exibido em público durante um conflito por ocasião da separação conjugal litigiosa. Depois desse acontecimento, inscrito como trauma, o menino queria passar despercebido, desaparecer diante do olhar do Outro. Defronte a isso, a angústia se tornou minha companheira e a inibição ocorria no plano social e intelectual.

Após um longo período de análise, o analista interrompeu a minha sessão e olhou-me bem fixo nos olhos, pela primeira vez em dezenove anos, com o semblante mais maroto do mundo. Sua cabeça arredondada estava incandescente, como o pôr do sol, desses que acontecem no inverno de Belo Horizonte, quando o sol beija a montanha no final do dia (CAMPOS, 2014, p. 30).

Esse acontecimento de corpo estabeleceu um divisor de águas em minha vida, entre um antes e um depois. Parece que o acontecimento de corpo tem o mesmo estatuto do trauma, na medida em que ele tem um tempo um como inscrição e, depois, um tempo dois, como acontecimento que guarda fidelidade ao tempo um. Antes, o sintoma me prendia em um gozo enigmático, expresso como uma espécie de debilidade mental. Estava suspenso, aéreo, com os pés fora do chão, como um espectador distante da vida, imerso em procrastinações, fantasias e devaneios, os quais serviam de mecanismo de proteção, defesa e fuga da realidade. Era como se o tempo tivesse sido congelado em razão da cena traumática.

Após a conclusão da análise, paulatinamente comecei a constatar uma estranha precipitação sinthomática. O evento da alucinose da cabeça em brasa do analista ocorrida no ocaso da análise, no fundo nada mais era do que a projeção da cabeça quente, puxada pelos cabelos pelo pai na cena traumática. A partir de então, houve um deslocamento radical da debilidade para uma espécie de loucura. Miller destaca que o fenômeno de corpo, quando ganha permanência, é designado acontecimento de corpo e tem o estatuto de sinthoma (MILLER, 2016, p. 110). A cabeça aérea, fantasiosa, débil e anestesiada se transformou em uma cabeça inquieta, arejada, incandescente, desassossegada e fervilhante, promotora de satisfação.

A partir de então, mergulhei de cabeça na Escola. Durante três anos aconteceram os depoimentos do passe; em seguida, foram dois anos como integrante do cartel do passe; depois vieram a participação do conselho da EBP e a presidência da EBP. Enfim, há mais de seis anos, de modo dedicado e ininterrupto, abracei o desejo incandescente pelos “Seminários por conta e risco”, de onde extraio a enorme satisfação de transmitir a psicanálise.

 


Referências
ARPIN, D. Gault, J-L., L’épouse de Joyce. L’Hebdo-Blog, n. 154, 2018.
ARPIN, D. James et Nora Joyce. Couples célèbres. Paris: Navarin, 2016.
CAMPOS, S. Passema: testemunhos de um final de análise. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. La Conversación. In: Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2016.
MILLER, J.-A. Conferencias porteñas, Tomo 2. Significante y goce. Buenos Aires: Paidos, 2009.
MILLER, J.-A. El primado de la práctica. In: La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. O osso de uma análise. Salvador: Biblioteca agente, 1998.
MILLER, J.-A. Sintoma y sinthome. In: Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013, p.67-75.
SCHREBER, D.-P. Memórias de um doente de nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 303-304.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Psicose em 17/09/2021.
[2] Fragmento relacionado ao encontro de Joyce e Nora, extraído do relatório apresentado no X Enapol, no qual participaram Anamaria Vasconcelos, Ana Martha Maia, Blanca Musachi, Eder Galiza, Fernando Casula, Gisele Sette Lopes, Glacy Gorski, Katia Mariás, Loren Costa, Marcela Brandão, Maria Wilma Faria, Marina Cursino, Michelle Sena, Ruskaya Maia, Sérgio de Campos, Sérgio Mattos, Viviane Lafayette.



RACISMO E IDENTIDADE: UM GUIA LACANIANO PARA ENTENDER A QUESTÃO[1]

ANDREA MÁRIS CAMPOS GUERRA
Psicanalista. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFMG
e do Programa de Pós- graduação em Psicologia da UFMG.
andreamcguerra@gmail.com

Resumo: O tema da raça reduzido à perspectiva imaginária, nega a articulação entre os três registros – real, simbólico e imaginário – na sua conformação. Numa lógica decolonial, retomamos a matriz inconsciente que articula toda forma de segregação, para problematizá-la, em seguida, a partir do esquema óptico de Bouasse, localizando a dimensão do Outro, cujos poder, saber, ser e gênero sofrem epistemicídio sistemático. Nesse diálogo, apostamos numa teoria e numa práxis psicanalíticas que abalem pulsionalmente essa estrutura hegemônica e normativa.

Palavras chaves: Psicanálise; Racismo; Colonialidade; Segregação; Gozo

Racism and Identity: a lacanian guide to understanding the issue

Abstract: The theme of race, reduced to an imaginary perspective, denies the articulation between the three registers – real, symbolic and imaginary – in its conformation. In a decolonial logic, we return to the unconscious matrix that articulates all forms of segregation, to then problematize it from Bouasse’s optical scheme, locating the dimension of the Other, whose power, knowledge, being and gender suffer systematic epistemicide. In this dialogue, we bet on a psychoanalytic theory and praxis that unsettles this hegemonic and normative structure.

Keywords: Psychoanalysis; Racism; Coloniality; Segregation; Jouissance.

Desali, s/t

 

A segregação em Psicanálise

A tese psicanalítica da segregação, enunciada em Freud, encontra no gozo seu articulador móvel segundo Lacan. Freud, a partir do narcisismo das pequenas diferenças, funda sua condição de possibilidade. O outro “merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, que eu possa me amar nele” (FREUD, 1930 [1929], p. 131).

Ele pinta um cenário ainda mais corrosivo. “Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que no máximo podem defender-se quando atacadas; pelo contrário são criaturas em cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade” (FREUD, 1930 [1929], p. 133). Sabemos que o resultado disso é o de que o próximo sirva de ajudante potencial e objeto sexual, sobre o qual agressividade, abuso, exploração humilhação, sofrimento, tortura e morte seriam destinos plausíveis.

Lacan introduz a distinção entre próximo e Outro. “O próximo é a iminência intolerável do gozo. O Outro é apenas sua terraplanagem higienizada” (LACAN, 1968-69/2008, p. 219). O gozo é por ele retomado como centralidade de uma zona proibida na qual o prazer seria intenso demais. Essa distribuição do prazer, no seu limite íntimo, é o que condiciona a proibição do que, em síntese, constitui o que é mais próximo, embora seja externo. Extimidade.

Lacan distingue Die Sachen – a coisa circunscrita pelo simbólico – e Das Ding – A Coisa em si, real. “É numa exterioridade jaculatória que se identifica esse algo pelo qual o que me é mais íntimo é, justamente, aquilo que sou obrigado a só poder reconhecer do lado de fora” (LACAN, 1968-69/2008, p. 219). Das Ding é introduzido por Freud exatamente pelo complexo do Outro – Nebenmensch. O mais próximo que não consigo situar: “onde existirá fora desse centro de mim mesmo que não posso amar, alguma coisa que me seja mais próxima” (LACAN, 1968-69/2008, p. 219). Miller colocará a radicalidade do gozo na matriz da segregação:

Sabemos que o estatuto fundamental do objeto é o de sempre ter sido roubado pelo Outro. Esse roubo de gozo é o que escrevemos como menos fi (-ϕ) que, como se sabe, é o matema da castração. Se o problema tem o ar de insolúvel, é porque o Outro é Outro dentro de mim mesmo. A raiz do racismo é o ódio de meu próprio gozo. Não há outra raiz a não ser essa. Se o Outro está no interior de mim mesmo em posição de extimidade, trata-se igualmente de meu próprio ódio (MILLER, 1985-1986).

Uma segunda distinção milleriana, agora entre ódio e agressividade, destaca que o ódio visa o real no Outro. Se a agressividade, especular, dirige-se ao objeto pela vertente do ideal [i(a)], o ódio radica na mais absoluta impossibilidade de especularização ou representação [-ϕ e S(A)].

Não basta questionar o ódio do Outro, pois isso colocaria justamente a questão de saber por que esse Outro é Outro. No ódio do Outro há, certamente, algo mais do que a agressividade. Há uma constante dessa agressividade, que merece o nome de ódio, e que visa o real no Outro. O que faz com que esse Outro seja Outro para que se possa odiá-lo, para que se possa odiá-lo em seu ser? Pois bem, é o ódio do gozo do Outro. É exatamente essa a forma mais geral que se pode dar a esse racismo moderno tal como o verificamos. É o ódio da maneira particular segundo a qual o Outro goza (MILLER, 1985-1986).

Em síntese: a segregação se define como ódio que visa o real do meu gozo, vivido extimamente como Outro no próximo.

Racismo, o Outro e o Gozo

No seminário 18, Lacan reafirma que “basta um mais-de-gozar para que se constitua um racismo […] o que nos ameaça quanto aos próximos anos” (LACAN, 1971/2009, p. 29). A noção de raça, como discurso em ação (LACAN, 1972/2003, p. 462-463), implica o vazio central do ser, de onde qualquer tentativa de sutura, seja ela real, simbólica ou imaginária, emana.

Laurent fala de um trauma vivido pelo avesso, um real impossível de ser absorvido pelo simbólico e vice-versa, um simbólico impossível de ser absorvido pelo real. Se “de fato, o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam, […] conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível” (LAURENT, 2014). Esse gozo implica o vazio central na estrutura do saber, que angustia e edifica defesas.

O racismo implica, assim, radicalmente, uma rejeição primordial no nível do simbólico que retorna como modo de gozo no real e se articula com efeitos imaginários. “A raça se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aquele com que se perpetua a raça dos senhores e igualmente dos escravos” (LACAN, 1972/2003, p. 462). Nesse plano RSI, onde se situa o Eu? “Sabemos que um espelho esférico pode produzir, de um objeto situado no ponto de seu centro de curvatura, uma imagem que lhe é simétrica, mas, sobre a qual, o importante é que ela é uma imagem real” (LACAN, 1961/1998, p. 679).

Lacan introduz o espelho plano no experimento óptico, de modo a elaborar um modelo teórico para “as relações do Eu Ideal com o Ideal do Eu” (LACAN, 1961/1998, p. 679), permitindo distinguir nela a dupla incidência do imaginário e do simbólico (LACAN, 1961/1998, p. 680-681). A montagem lacaniana que completará o aparelho será́ a introdução de um espelho plano, como constatamos abaixo.

Assim, não há uma unidade do Eu. O Eu se identificaria, no nível do i(a) com uma imagem real, articulada simbolicamente pelo Ideal de Eu, I(A), restando sempre não especularizável o objeto subtraído (- ϕ), ponto de ancoragem do gozo, resto matricial nos fenômenos segregatórios. O resultado é a imagem virtual, que comporta a imagem real – i’(a)-, refletida no espelho plano. Miller indica que o racismo advém exatamente da localização desse vazio que a interposição do espelho plano visa ocultar.

Certamente, ao se invocar as causas econômicas, sociais e geopolíticas, pode-se explicar um vasto campo desse fenômeno; mas resta, apesar de tudo, alguma coisa que faz pensar que ele não se dá somente nesse nível. Há um resto que poderíamos chamar de causas obscuras do racismo, e não é certo que seja suficiente protestar contra isso. Pode ser que protestar contra isso seja o mesmo que esconder o rosto e desviar o olhar do que está em questão (MILLER, 1985-1986).

A segregação toma forma de racismo no ponto mesmo dessa causa obscura que aloca como I(A) — espelho plano matricial da constituição de qualquer imagem de Eu no Ocidente – a branquitude como referente universal. Enquanto S1, o Branco equivalido ao Humano, coloca em marcha os discursos em ação (SESHADRI-CROOKS, 2002). Forjamos uma especularidade pretensamente universal de Ideal de Eu na composição do agrupamento humano ocidental, a partir da ilusão de que o Branco não é uma cor, uma raça, mas que, invisibilizado, é o próprio Humano.

A matriz decolonial do racismo

Essa forja nasce com a conquista das Américas e o nascimento da modernidade no ano de 1492 (DUSSEL, 1993). Até nosso século, esse espelho foi assentado com a argamassa do capital neoliberal, com a força militar estatal e tecnológica e o discurso do mestre imperial, fixando o Ideal como se ele fosse verdadeiramente universal e imóvel. Entretanto o real, não mais equivalido à estabilidade da natureza, deixou ver que eram semblantes que ali velavam o vazio central. “As categorias tradicionais que organizam a existência passam para o nível de simples construções sociais, votadas à desconstrução. Não é apenas o fato de os semblantes vacilarem, mas de eles serem reconhecidos como semblantes” (MILLER, 2016). O espelho plano, assim fixado, enquadra o gozo e invisibiliza a raça. Porém, branco não é sem cor. Daí a necessária distinção heideggeriana entre idêntico e mesmo com Miller:

Com efeito, se o gozo pode postular esse estatuto de Outro do Outro, eu diria que é na medida em que, tal como o colocamos em função na experiência analítica, ele aparece como o mesmo. Ele aparece como o invariável. Eu disse o mesmo, e não o idêntico a si. Quando falamos de identidade, de identidade a si, já alojamos a questão no registro significante, com os paradoxos e as dificuldades que ele comporta. Mas o gozo nos obriga a pensar um estatuto do mesmo, que não é o idêntico no registro significante. […] Dizemos o mesmo para não implicar os paradoxos significantes da identidade, para opor às variações do Outro, à alteridade que é interna ao Outro, a inércia do gozo (MILLER, 1985-1986).

Nessa partilha do gozo, o par sadismo-masoquismo deixa seu lastro histórico como ferida aberta que ganha nas cicatrizes fantasmagóricas da escravização o legado vergonhoso de nosso país e do assentamento devastador da modernidade no solo latino-americano.

O gozo maligno em jogo no discurso racista é desconhecimento dessa lógica. Ela está no fundamento de todo laço social. O crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito. Portanto, sempre o antiracismo é a reinventar para seguir as novas formas do objeto do racismo, se deformando à medida dos remanejamentos das formações sociais (LAURENT, 2014).

Na fuga além-mar do avanço muçulmano em seu território, a Europa criou o Norte e o Sul, abaixo do Equador, e inventou o Ocidente, colocando-se como seu centro. Os mapas-múndi — de antes e depois das grandes navegações — , testemunham a consolidação simbólica e cartográfica do Novo Mundo sob a estrutura do gozo imperial. Estamos bem longe da facilidade imaginária dos processos identitários. Trata-se do choque dos gozos. Daí a tentação de apelo a um Deus unificador pela egologia cartesiana como estratégia unificadora na conquista das Américas. Foram necessários quatro epistemicídios (GROSFOGUEL, 2016) para fundar violentamente essa nova gestão epistêmica, ontológica e ética das gentes:

  1. Contra os muçulmanos e judeus em nome da pureza do sangue em Al-Andaluz;
  2. Contra os povos indígenas nas Américas e depois na Ásia;
  3. Contra os africanos, aprisionados em seu território e depois vendidos e escravizados no território americano;
  4.  Contra as mulheres queimadas vivas sob a alegação de serem bruxas.

A dimensão central dessa composição do discurso colonial é a raça como seu constituinte necessário. “O que deve nos reter é o racismo como moderno. Isso não tem nada a ver com o racismo antigo. Trata-se de um racismo […] da época da ciência e, também, da época da psicanálise” (MILLER, 1985-1986). Quijano (2017) mostra que a substituição do sangue pela raça, institui a modernidade iluminista, racional e liberal que assenta uma nova lógica discursiva para nosso tempo. Seu nome é colonialidade. “Isso se encarnou sob a fachada – em geral humanitária – do colonialismo”, reforça Miller (1985-1986).

Conclusão

Classificar é identificar (MIGNOLO, 2017). A identidade, submetida a esse regime, não é simplesmente imaginária, mas conexão que garante o fio do poder e legitima um modo de gozo destrutor tomado como civilizatório. Assim define-se o lugar hierárquico de um corpo pela cor, pelo gênero, pela classe e se mantém o regime alteritário do estrangeiro pelo Estado Nação. “Quem classifica controla o sentido e quem é classificado tem que confrontar o sentido que lhe impõe a classificação” (MIGNOLO, 2017, p. 45).

O sistema não funciona per se. É dessa maneira lógica e material que se reduz a negritude ao identitarismo, que se nega a branquitude e seus privilégios invisibilizados, que se transforma o gozo sádico do plano real em queixa imaginária no plano virtual. Pelo movimento de ocupação da experiência racial, a psicanálise tem escutado e lido a necessidade de levantar o espelho plano e enfrentar o gozo branco – não invisibilizado na cor – que lhe subjaz. É uma porta aberta. Entra quem se implica.

 


Referências
DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do Outro. A origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
FREUD, Sigmund. Mal estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976 (Trabalho original publicado em 1930 [1929].
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas. Dossiê: Decolonialidade E Perspectiva Negra. Sociedade e Estado. 2016, 31 (1). https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003.
LACAN, Jacques. O saber do psicanalista, Lição I de 04/11/1971. (Seminário não publicado).
_____. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade”. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 (Obra original publicada em [1961]/1966).
_____. O aturdito. In: _____. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003 (Obra original publicada em 1972).
_____. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Seminário proferido em 1968-1969).
_____. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblanteRio de Janeiro: Zahar, 2009. (Seminário proferido em 1971).
LAURENT, Éric. Racismo 2.0. Lacan Quotidien2014, 371, s/p. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y subjetividad en América Latina. In: Castañola, M. A. e González (coord). Decolonialidad y psicoanálisis. Navarra: México, 2017.
MIGNOLO, Walter. Colonialidad y sujeción: classificación, identificación, desidenteficación, sociogénesis. In: Castañola, M. A. e González (coord). Decolonialidad y psicoanálisis. Navarra: México, 2017.
MILLER, Jacques-Alain. Racismo e Extimidade. Derivas analíticass/p, 2014. Disponível em: http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-2/o-entredois-ou-o-espaco-do-sujeito#_edn2).
SESHADRI-CROOKS, Kalpana. Desiring whiteness: a lacanian analysis of race. Londres: Routledge, 2002.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Psicose da Seção Clínica do IPSM-MG, em 17/09/2021.
psicanálse – acolhimento – lacan – psicanalise – psychanayse – psicoanálisis – corpo



O QUARTETO DE JACQUES LACAN[1][2] 

LEONARDO GOROSTIZA
Psicanalista, Analista Membro da Escola. EOL/AMP
gorostizaleonardo@gmail.com

RESUMO: Leonardo Gorostiza localiza algumas escansões, ao longo do ensino de Lacan, que antecipam e apontam para a mudança de ênfase operada, posteriormente, “da verdade para o real”, considerando as questões que essa mudança lança sobre a interpretação analítica. Desse modo, Gorostiza afirma que as noções de injúria, opacidade e jaculatória, juntamente com a de silêncio, constituem um quarteto — num sentido musical e que vai contra a ideia de “concatenação” — com o qual Lacan se orienta para desdobrar a questão: como é possível, com a palavra, influenciar o corpo, o gozo e o real?

PALAVRAS-CHAVE: injúria; opacidade; jaculatória; silêncio; interpretação.

JACQUES LACAN’S QUARTET

ABSTRACT: Leonardo Gorostiza locates in this text, somes scansions along Lacan’s teaching that anticipate and point to the change of emphasis “from truth to rela” that is later operated, and considers that this change raises questions about analytical interpretation. Gorostiza states that the notions of injury, opacity, ejaculation, and silence, constitute a quartet – in a musical sense and that goes against the idea of “concatenation”- through which Lacan unfolds the issue: how is it possible to reach the body, jouissance, and the real, with words?

KEY WORDS: injury; opacity; jaculation; silence; interpretation

Desali, s/t

 

Já nos primeiros tempos de seu ensino, Lacan declarou, de forma sutil, e não explícita — como faria em seu Seminário 21 —, que o primeiro significante, o S1, e o segundo, o S2, não fazem cadeia; disse per se que não se articulam. Ele intuiu muito precocemente essa problemática que mais tarde teria repercussões decisivas na prática da interpretação, indicando “Há em todo saber”, já concebido como coerência formal e articulação, “uma vez constituído, uma dimensão de erro, que consiste em esquecer a função criadora da verdade em sua forma nascente” (LACAN, 1985, p. 30). Ou seja, esquecer “o valor da intervenção simbólica, do surgimento da fala” (LACAN, 1985, p. 29).

Além disso, ali ele enfatizou — em uma leitura primorosa do diálogo platônico Mênon (ou da virtude) — que nós, analistas, não poderíamos esquecer a função criadora da palavra que opera nessa dimensão da verdade em sua forma nascente (LACAN, 1985). Verdade que, no contexto desse diálogo, se liga à virtude e à opinião verdadeira. Como é sabido, o que Sócrates enfatiza em resposta à pergunta de Mênon é que não há episteme da areté, ou seja, da virtude (LACAN, 1985). Em outras palavras, que a virtude — entendida como ação política e ligada à interpretação — corresponde à ortodoxia, a uma ação definida pelo fato de que o verdadeiro que há aí não é apreensível por um saber.

Embora Lacan tenha tido que percorrer um longo caminho para mudar a ênfase da verdade para o real, até chegar à formulação de que S1 e Snão fazem uma cadeia, e para sustentar que, para que a interpretação analítica tenha um alcance efetivamente real, será no significante isolado, somente no S1, onde ela deverá incidir, localizamos, no entanto, em seu ensino, algumas escansões que indicam o desenvolvimento de sua intuição original. Uma intuição da qual Jacques-Alain Miller disse certa vez: “Não há nada mais próximo ao que Lacan orquestra em seu último ensino do que a nota que ele faz ouvir em seu primeiro comentário sobre o Mênon” (MILLER, 2001, [s. p.], tradução nossa).

Desse ponto de vista, creio que se pode afirmar que as noções de injúria, opacidade e jaculatória, juntamente com a de silêncio, constituem uma espécie de quarteto — no sentido musical — com o qual Lacan repetidamente executa essa nota na tentativa de responder ao seu problema, que também é nosso: como com a palavra, com o significante, é possível influenciar o corpo, o gozo e o real. Assim, numa leitura mais avançada e renovada do Mênon, indicando a fixação de um significante ao corpo, ele virá a afirmar: “Do não-ensinável, eu criei um matema, por assegurá-lo fixão da opinião verdadeira — fixão escrita com x, mas não sem recorrer ao equívoco”[3] (LACAN, 2003a, p. 484).

Agora, situarei algumas escansões em seu ensino que, entendo, o levaram a propor, no contexto de questionar mais uma vez a interpretação analítica, se não será especificamente sua jaculação — e não o uso habitual das palavras — aquilo que poderia dar origem a um efeito de sentido real, ou seja, “um sentido isolável” que vai contra a ideia de “concatenação” (LACAN, 1975, p. 17, tradução nossa)[4].

A injúria e sua opacidade 

A injúria (do latim iniuria, ofensa ou malfeito a uma pessoa, in: sem; iuria: direito) é toda expressão proferida ou ação realizada para a desonra, descrédito ou menosprezo de outra pessoa. No direito penal, é considerada um crime contra a honra ou a boa reputação e é punível.

Mas, além disso, em seu outro significado e por extensão, também podemos falar de injúria no caso de danos materiais que alguém ou algo causa a uma coisa ou pessoa. Por exemplo, pode ser dito de alguém que foi espancado ou esfaqueado, que sofreu injúrias em seu corpo.

Assim, a palavra injúria reúne duas dimensões. Uma, a da palavra ou do significante, mas também a de um alcance real, de certa forma traumático. Acontece que a injúria ou o insulto é tanto a primeira quanto a última palavra (LACAN, 2003b), porque é a que procura, a que visa — uma vez que perde toda a significação — nomear o ser ou alcançar o real.

Lacan fala de injúria em vários pontos de seu ensino. Um deles está em um artigo intitulado “A metáfora do sujeito”, no qual ele lembra a cena das injúrias da criança que mais tarde se tornaria o Homem dos Ratos e nos diz da “dimensão de injúria onde se origina a metáfora” (LACAN, 1998d, p. 905).

A referência completa é a seguinte:

“A metáfora radical se dá no acesso de raiva, relatado por Freud, do menino ainda inerme, em grosseria, que foi seu Homem dos Ratos antes de se consumar em um neurótico obsessivo, o qual, ao ser contrariado pelo pai, interpela-o: “Du Lampe, du Handtuch, du Teller, du Teller, usw”. (“‘Seu’ lâmpada, ‘seu’ toalha, ‘seu’ prato… e assim por diante”). Com que o pai hesita em autenticar o crime ou o talento. Com o que nós mesmos entendemos que não se perca a dimensão de injúria onde se origina a metáfora. Injúria mais grave do que se imagina, quando ela é reduzida à invectiva[5] da guerra. Pois é dela que provém a injustiça, cometida gratuitamente contra qualquer sujeito, de um atributo com que um outro sujeito qualquer é levado a atingi-lo. “O gato faz au-au, o cão faz miau-miau.” Eis como a criança soletra os poderes do discurso e inaugura o pensamento.

Haverá quem se surpreenda por eu sentir necessidade de levar as coisas tão longe no que concerne à metáfora” (LACAN, 1998d, p. 905).

O que é que Lacan aponta aqui sobre levar as coisas tão longe em relação à metáfora? Que não se trata apenas da substituição de um significante por outro significante, a fórmula clássica da metáfora que fornece a matriz da interpretação analítica tradicional, mas uma substituição entre duas ordens heterogêneas, a substituição do ser, ou, por assim dizer, do real, por um significante. E como existe uma incompatibilidade radical entre as duas ordens, tal substituição — que Miller uma vez chamou de “metáfora heterogênea” — é necessariamente sempre injuriosa e… violenta.

É em um escrito anterior que Lacan associa a injúria a uma opacidade. Essa é a passagem em que ele comenta, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível de psicose”, o exemplo já clássico de uma apresentação de pacientes, “Porca!”, e onde ele explora de forma precisa a maneira pela qual o significante pode passar para o real. Vamos ver como ele o faz.

Depois de descrever o relato da paciente segundo o qual o amante da vizinha “havia-lhe dirigido” (LACAN, 1998b, p. 540) a injúria quando passaram um pelo outro, ele aponta que:

“No lugar em que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra se faz ouvir […] vinda no lugar daquilo que não tem nome [e] unindo-se em sua opacidade aos dardejamentos[6] do amor, quando, na falta de um significante para denominar o objeto de seu epitalâmio[7], ele emprega a intermediação do imaginário mais cru: “Eu te como, — Chuchuzinho!”. “Estás todo derretido… — gato!””. (LACAN, 1998b, p. 541).

Em outras palavras, tanto a injúria quanto a jaculatória do amor compartilham a mesma opacidade. A opacidade própria da pulsão, do gozo e do real. E ambos mostram como o significante, quando tenta alcançar o real, por sua vez, torna-se ou deve tornar-se opaco; em outras palavras, fora do sentido.

Digamos de passagem que Miller, ao comentar a cena das injúrias no Homem dos Ratos, aponta que o obsessivo também tem uma relação com o indizível e que é aqui que se situa a função da injúria na obsessão. “A injúria é lançada ao que há de mais querido”, e nisso supera o “amor crítico” (MILLER, 1985, [s. p.]), que está situado no registro do imaginário.

“Esta injúria é muito valiosa para o sujeito [refere-se ao Homem dos Ratos], é muito valiosa para que ele se sustente no mundo. Ele elabora ali um significante capaz de tocar o real do Outro, ao custo de que [o dito significante] perde toda a significação. É ele, o Homem dos Ratos, quem o elabora; é ele quem o formula. Isto é o que faz a diferença entre neurose obsessiva e psicose” (MILLER, 1985, [s. p.]).

Assim, é compreensível que Lacan conclui dizendo que o exemplo da “Porca!”

“[…] é aqui destacado apenas para captar no ponto essencial que a função de irrealização não é tudo no símbolo. Pois, para que sua irrupção no real seja indubitável, basta que ele se apresente, como é comum, sob a forma da cadeia rompida” (LACAN, 1998b, p. 542).

Ainda é cedo, é obvio, mas antecipo o que ele chamará mais tarde como seu S1, significante-letra, desde que se escreva sem nenhum tipo de sentido (LACAN, 2011); a injúria mostra afinidades com o real.

Antes de continuar, vale a pena destacar que Lacan também fala da opacidade em numerosas ocasiões. Enumeraremos algumas delas.

Por exemplo, no seminário contemporâneo “De uma questão preliminar…”, em seu Seminário 5, ele diz:

“Não há sintoma cujo significante não seja trazido de uma experiência anterior. […] é o significante do A barrado (Ⱥ) que se articula no complexo de castração, mas que não está forçosamente presente, nem sempre totalmente articulado. […] O que é isso, portanto a não ser essa vida apreendendo-se numa horrenda percepção dela mesma, em sua estranheza total, em sua brutalidade opaca, como significante puro de uma existência intolerável para a própria vida, a partir do momento em que ela se afasta dele para ver o trauma e a cena primária? É isso que aparece da vida perante ela mesma como significante em estado puro, que não pode, de maneira alguma articular-se nem se resolver” (LACAN, 1999, p. 477).

Em minha opinião, aludindo, ao que pouco antes chamou de “o significante enigmático do trauma sexual” (LACAN, 1998a, p. 522), Lacan indica que tal significante, aquele que tem afinidade com o real, aquele da injúria radical em que se assenta toda metáfora do sujeito, não estando articulado a outro significante, torna-se opaco e nos orienta a direcionar por essa via nossa elucidação do que chamará mais tarde de interpretação jaculatória.

Mas a palavra opacidade retorna em seus Escritos. Assim, em “Posição do inconsciente”, no contexto da caracterização da operação lógica da separação, ele aponta:

“Sem dúvida, o ‘ele pode me perder’ é seu recurso contra a opacidade do que ele encontra no lugar do Outro como desejo, mas restitui o sujeito à opacidade do ser que lhe coube por seu advento de sujeito, tal como ele se produziu inicialmente pela intimação do outro” (LACAN, 1998c, p. 858).

Penso que se pode deduzir dessa indicação que a opacidade tem duas faces: uma corresponde a uma falta radical, de um significante no Outro, que indica seu desejo; outra corresponde à pulsão, já que, nessa operação em que o sujeito vai responder com a perda, cede uma parte de seu corpo. Em ambos, um traço, o silêncio; mas um silêncio que também é de duas faces, que se desdobra: o silêncio da pulsão e o silêncio de um furo no simbólico que se conecta com um real.

E é essa dupla face de opacidade que ele retoma pouco tempo depois em sua “Resposta a uma pergunta de Marcel Ritter” (LACAN, 1976, [s. p.], tradução nossa). Ele afirma que o real pulsional não é o mesmo que o não reconhecido, o Unerkannte, ou seja, que o real pulsional não é o mesmo que o umbigo do sonho que reconduz ao recalque primário, ao Urverdrängt. No entanto, ele sugere que exista uma “analogia” entre os dois. Uma analogia que também gira em torno de sua opacidade. Vamos ver como ele disse.

Primeiro, ele diz que, em relação ao furo do inconsciente, que é o Unerkannte, “é aí também que a pulsão se opacifica completamente”. Então, “desde a origem, no reconhecimento do próprio inconsciente, existe a noção de que, de fato, o Real, propriamente dito, é um ponto de opacidade. É um ponto infranqueável, é um ponto impossível” (LACAN, 1976, tradução nossa). Finalmente, encontramos o termo novamente na conhecida fórmula de sua conferência “Joyce, o Sintoma”, quando ele caracteriza o “gozo próprio do sintoma” como “gozo opaco por excluir o sentido” (LACAN, 2003c, p. 566).

Deste último se desprende a opacidade, seja a da pulsão, a do recalque primário, seja a do gozo do sintoma, que é o que marca o limite do sentido. Portanto, podemos afirmar que a interpretação, quando já não remete mais à ideia clássica da tradução, supõe levar em conta a dimensão de opacidade constitutiva do parlêtre, que se opõe precisamente a uma suposta transparência de uma possível tradução.

Mas o que quer dizer opacidade? A definição mais simples é a do opaco como aquilo que impede a passagem da luz e impede de ver através de sua massa o que está por detrás. Sem dúvida, é uma noção que ressoa para um mais além do fundo, que o próprio Lacan colocou em seus Escritos, o debate do século das luzes. “É preciso [disse ele na contracapa original de seus escritos] haver lido esta coletânea […] para perceber que prossegue sempre o mesmo, […] pode ser visto como o debate das luzes” (LACAN, 1998e, [s.p]).

Como essa referência recorrente à opacidade deve ser entendida? Como uma indicação de que o Iluminismo, o século das luzes, que a Razão tem um limite que não deve ser ignorado, tampouco deve ser relegado à categoria do inefável. Precisamente aí reside essa sutil torsão pela qual Lacan, citando o poeta que quis dar a palavra às coisas, para fazer com que as coisas assumam a palavra — refiro-me a Francis Ponge —, sustentou até o final de seu ensino que a interpretação analítica, que está advertida da opacidade sobre a qual temos discorrido, deve se situar não no nível da razão, senão da réson.

Assim, ressoa de passagem como uma indicação de Miller em sua conferência “Uma fantasia”, em 2004, em Comandatuba. Ali, diante do “Tudo marcha”, próprio ao discurso hipermoderno, em minha opinião, congruente com o discurso do Capitalista, uma vez escrito por Lacan, que também elide o impossível, Miller propôs como divisa para a psicanálise de prática lacaniana a de um “Isso falha” (MILLER, 2004, [s. p.]), que não é nada mais que aquilo a que os sintomas dão testemunho, na medida em que são sinais da “não-relação sexual”. (MILLER, 2004, [s. p.]). Sintomas que, com a opacidade da diferença absoluta, ou seja, incomparável, e sua ligação com o impossível, constituem um limite fundamental à tirania do imperativo de transparência de nosso tempo (HAN, 2016).

Por isso, Miller também propôs que isso exigiria “elevar a interpretação à potência do sintoma”. Cito: “A poética da interpretação não é para ser bela […]. Ela é um materialismo (moterialisme) da interpretação. […] É preciso colocar o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma” (MILLER, 2004, [s.p.]).

Entendo que é por essa via que devemos talvez tentar reintroduzir a opacidade e o silêncio do impossível, essa opacidade que a outra opacidade e o outro silêncio, os da pulsão, podem velar. Porque, para a pulsão, com seu impulso constante que não conhece primaveras nem outonos, assim como para o discurso capitalista, aliado ao discurso da ciência, tudo marcha, tudo é bem-sucedido. Porque, no nível da pulsão, em que o sujeito é feliz, não há impossível, é pura realização. E é então nesse lugar, onde uma interpretação é elevada à potência do sintoma, que existe a possibilidade de introduzir o impossível (MILLER, 2012).

Essa seria uma forma de interpretar, tentando induzir, através de uma ressonância moterialista, um limite para o monólogo da apalavra, um limite para a pulsão. Nesse ponto, a injúria se encontra com a jaculação.

Silêncio e jaculação

Lacan refina o alcance da operação jaculatória em seu último ensino. Jaculação ou jaculatória é uma palavra que vem da religião cristã e designa uma breve oração ou invocação dirigida fervorosamente a Deus. Mas também, etimologicamente, vem do latim iacular, ou seja, “lançar”, que, por sua vez, deriva do iaculum, que significa “dardo”. Portanto, um uso da palavra que implica lançá-la, atirá-la. Poderíamos assim falar de violência da jaculação.

A que aponta a jaculação em sua equivalência estrutural com a injúria ou o insulto? Nomear o indizível do e no Outro. Ou seja, seu ponto de opacidade. É por isso que Lacan elogia, em seu Seminário 20, as jaculações que povoam os testemunhos dos místicos. “Essas jaculações místicas, não é lorota, nem só falação, é em suma o que se pode ler de melhor — podem pôr em rodapé, nota — Acrescentar os Escritos de Jacques Lacan, porque é da mesma ordem” (LACAN, 2008, p. 82).

Não são lorotas nem falação, pois um silêncio precisamente sempre acompanha a jaculação. Poderíamos até propor que haja um silêncio inerente à jaculação, na medida em que esta última, embora proferida, indica que é impossível dizer.

Assim, São João da Cruz sublinha a importância do silêncio no impulso místico: “Naquele sossego e silêncio da referida noite, bem como naquela notícia da luz divina, claramente vê a alma uma admirável conveniência e disposição da sabedoria de Deus” (CRUZ, 1960, p. 95). Uma espécie de harmonia musical que a alma chama “música calada, porque é conhecimento sossegado e tranquilo, sem ruído de vozes; e assim goza a alma, nele, a suavidade da música e a quietude do silêncio” (CRUZ, 1960, p. 95).

Como devemos entender essa equivalência que Lacan coloca entre seus Escritos e os testemunhos dos místicos? Arrisco uma resposta: porque em ambos os casos é uma questão de testemunhar uma relação com o impossível de dizer, o impossível de nomear.

Por exemplo, São João da Cruz reitera que termos — jaculações — como “‘Oh!’ e ‘quão’, […] cada vez que são ditos, revelam do interior mais do que tudo quanto se exprime pela linguagem” (CRUZ, 1960, p. 237-238). Ou Santa Teresa de Jesus, quando exclama: “Oh, Senhor […] quem teria palavras para fazer entender […] (D’ÁVILA, 2010, p. 208).

Mas se afirmamos que os Escritos de Lacan, que surgem de sua prática da psicanálise, e os testemunhos dos místicos são do mesmo registro, devemos nos perguntar qual é sua diferença. Ambos testemunham um furo, o do indizível, do silêncio do que escrevemos como S(Ⱥ). Os místicos provam, de alguma maneira, a experiência desse furo, mas também sua fascinação com ele, com o indizível. E por isso eles o leram como prova da correspondência e da harmonia da alma com Deus[8]. Considerando que, na psicanálise — os testemunhos de passe devem apontar a isso —, não se trata de um fascínio pelo indizível, pelo mistério, mas de fazer com ele, com o furo, um matema que o constate e localize, e isso ao preço do fora de sentido. “O caminho que deve ser percorrido”, salienta Miller,

“[…] vai do indizível ao matema ou, por que não, do indizível ao insulto. Não só o matema pode ocupar o lugar do indizível [mas também] o insulto nesta função: já não há mais palavras para dizê-lo completamente, supera qualquer limite, ele supera todas as possibilidades da linguagem, e então do tesouro da língua, como S(Ⱥ), um significante se solta para pegar o real. Somente a partir desta perspectiva o insulto e o matema são o mesmo” (MILLER, 2000, p. 128-129, tradução nossa).

Por essa mesma razão, o passe tem uma relação com o indizível e pode provar o furo e localizar sua opacidade, mas se trata de fazer dele matema e transmiti-lo, e não apenas se fascinar com o mistério.

Vemos, então, que o que chamei anteriormente de violência da jaculação pode ser tanto a interpretação proferida pelo analista — quando ele não opera como uma tradução, mas isola com sua intervenção um S1 que não faz cadeia — como um novo significante ou um novo uso de um significante inventado pelo sujeito, desvinculado do analisante. Tanto é assim que, na jaculação, o enunciado e a enunciação já não se diferenciam; isso nos permitiria falar de “o dizer da análise”. Um dizer jaculatório que se desprende da referência daquele que o enuncia.

Seja como for, em ambos os casos é uma questão de indicar tanto o que não existe — dizer de um impossível — quanto o que existe: um gozo opaco para excluir o sentido. Essa operação interpretativa — se podemos chamá-la assim — é caracterizada por Éric Laurent como o que pode fazer “ato de um novo olhar do aperto do nó em torno do acontecimento de corpo” (LAURENT, 2018, tradução nossa). Talvez essa seja outra forma de dizer o que acontece ao elevar a interpretação à potência do sintoma. Uma potência disruptiva que poderia obter, de um contraponto sonoro e do “ângulo da surpresa” (MILLER, 1996, p. 39, tradução nossa), toda a sua força.

Assim, numa análise, uma jaculação pode vir para retificar o gozo, e não apenas o sujeito; ou seja, o gozo opaco do sintoma pode ser concebido, vivido, como satisfatório (MILLER, 2011, p. 268). Mas para que isso seja possível, não há outro caminho senão, através do amor de transferência, recorrer ao sentido para resolver o gozo desvalorizado do sintoma (LACAN, 2003c). Desse modo, uma vez percorrido o caminho do esgotamento da transparência do gozo-sentido (jouissens), talvez possam ser constatadas ambas as opacidades: a opacidade do impossível, o Urverdrängt, e a opacidade da diferença absoluta. Para ele, o desejo do analista segue sendo o instrumento privilegiado para que, sem se deter no impasse da piedade imaginária, possa apontar com a jaculação ao mais digno do sujeito golpeando ao outro “de uma boa maneira” (MILLER, 1999, p. 105, tradução nossa), quer dizer, indicando reduzir o Outro ao seu real — o que o faz incomparável — e desprovê-lo de sentido (MILLER, 2014, p. 29).

Assim, o que propus chamar de quarteto de Lacan, composto pela injúria, a opacidade, o silêncio e a jaculação, quem sabe possa ser concebido como o conjunto de quatro instrumentos destinados a executar também uma “música calada”. Mas uma música calada que, além de toda aspiração mística, não aponta a nenhuma ideia de harmonia ou correspondência, senão a indicar o nó silencioso e opaco que se aninha no coração do parlêtre. Esse nó que, em algum momento, Lacan mesmo chamou “o nó do ininterpretável” (LACAN, 2003a, p. 338).

 

 

 Tradução: Rodrigo Almeida
 Revisão: Giselle Moreira

Referências
CRUZ, S. J. Cântico espiritual, chama viva de amor. Trad. Carmelitas descalças do convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Editora Vozes, 1960.
HAN, B-Ch. Sociedade da transparência. Petrópolis; Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2016.
LACAN, J. O seminário livro 22: R.S.I; lição de 11 de fevereiro de 1975. (Inédito)
LACAN, J. “Réponse à une question de Marcel Ritter”. Lettres de l’École Freudienne, n. 18, p. 7-12, 1976.
LACAN, J. (1954 – 1955) O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a. p. 496-533.
LACAN, J. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b. p. 537-590.
LACAN, J. “Posição do inconsciente no congresso de Bonneval” (1960, retomado em 1964). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998c. p. 843-864.
LACAN, J. “A metáfora do sujeito”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998d. p. 903-907.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998e.
LACAN, J. (1957-1958) O seminário livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. “O engano do sujeito suposto saber”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003a. p. 329-349.
LACAN, J. “O aturdito”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003b. p. 448-500.
LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003c. p. 560-566.
LACAN, J. (1972-73) O seminário, livro 20: mais, ainda. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, J. “A terceira”. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 62, p. 11-34, dez. 2011.
LAURENT, E. “La interpretación: jaculación”. Intervenção de 13 de outubro de 2018 no início das Conferências do Campo Freudiano em Bruxelas para a sessão Clinique de Bruxelles. Psicoanálisis Lacaniano, [s. l.], 13 out. 2018. Disponível em: https://psicoanalisislacaniano.com/la-interpretacion-jaculacion/. Acesso em: 4 nov. 2021.
MILLER, J-A. “Apología de la sorpresa”. In: MILLER, J-A. Entonces: “Sssh…”, Barcelona; Buenos Aires: Minilibros Eolia, 1996.
MILLER, J-A. Política lacaniana. Buenos Aires: Diva, 1999.
MILLER, J-A. El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, 2000.
MILLER, J-A. “Uma fantasia”. CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSICANÁLISE, 4., Comandatuba, 2004. Disponível em: http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html. Acesso: 4 nov. 2021.
MILLER, J-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J-A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. O real do século XXI. In:MACHADO, O., RIBEIRO, V. (Org.). Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
MILLER, J-A. Le désenchantement de la psychanalyse: lição de 14 de novembro de 2001. (Inédito).
MILLER, J-A. 1, 2, 3, 4: curso de Orientação Lacaniana, lição de 5 de junho de 1985. (Inédito).
TERESA D’ÁVILA, S. Livro da vida. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2010.

[1] Texto original publicado na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, [s. l.], ano XV, n. 28, p. 37-45, ago. 2020.
[2] Nota do autor: Este texto retoma e amplia algumas ideias expostas na conferência “La injuria y su opacidad”, que ocorreu em 2 de novembro de 2019 durante as VI Jornadas da Seção La Plata da EOL, intituladas: “Interpretar la violencia”.
Disponível em: http://www.eol-laplata.org/blog/index.php/conferencia-la-injuria-y-su-opacidad/.
[3] Para um desenvolvimento mais detalhado desta referência, ver GOROSTIZA, L., La fixión de la opinión verdadera. Disponível em:     http://www.revistavirtualia.com/storage/articulos/pdf/tEIGT0uFzyR92vgAN5Rhma9Qixmt2d6UOEHja08p.pdf.
[4] Retomado também por Éric Laurent em “L’interpretation événement”. In: La Cause du Désir, n. 100, 2018, p. 70.
[5] Invectiva: discurso oral ou escrito que contém uma censura violenta, áspera e dura contra alguém ou algo.
[6] N. T.: A tradução para o espanhol em que nos baseamos para esta versão em português, traz o termo “jaculatórias”, termo que acreditamos que colabore para a compreensão do texto.
[7] Epitalâmio: composição poética lírica para a celebração de um casamento.
[8] Mesmo que — como assinala Lacan em seu Seminário 20 — seja outra face do Outro, a face de Deus, como aquela que dá suporte ao gozo feminino, a experiência mística não deixa de fazer existir um Outro de harmonia e correspondência.
psicanálse – acolhimento – lacan – psicanalise – psychanayse – psicoanálisis – corpo