“EU NÃO SOU DE FALAR MUITO, EU DANÇO”[1] 

MÁRCIA MEZÊNCIO
Psicanalista, membro da EBP e AMP, mestre em Psicologia (Estudos psicanalíticos) pela UFMG |
marciasouzamezencio@gmail.com

Resumo: Comentário do filme Inocência roubada, narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma. Interrogam-se os efeitos, para o sujeito, da interpretação dada pelo discurso jurídico. Propõe-se que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo.

Palavras-chave: Interpretação, acontecimento traumático, gozo, responsabilidade.

I’M NOT MUCH OF A TALKER, I’D RATHER DANCE 

Abstract: Commentary on the movie “Les chatouilles”, a fictional narrative about an experience of child abuse suffered by the protagonist and her attempts to treat her trauma. The effects, for the subject, of the interpretation given by the legal discourse are questioned. It is proposed that what justice enforces is the subject’s responsibility of saying it, for leaving the silence and confessing the secret.

Keywords: Interpretation, traumatic event, jouissance, responsibility.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina. Tudo isso é, sempre, o gozo (LACAN, 1969-1970/1992, p. 68)[2].

Inocência roubada (2018) é um filme difícil de assistir. O tema é delicado e sabemos que não se trata de uma ficção, mas de uma narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma que faz sintoma em seu corpo para produzir uma medida que o sustente. O próprio filme, antecedido por uma peça teatral, Les chatouilles ou la danse de la colère, bem como a parceria amorosa, se insere na série de tratamentos que o sujeito empreende. Éric Metayer escreveu e dirigiu peça e filme juntamente com Andréa Bescond, de quem também é marido.

Difícil de assistir, difícil também de comentar, por abrir múltiplas vias que poderiam nos interessar e nos extraviar do tema proposto para nossa investigação, como a relação da menina com a mãe. Não me deterei nela, apenas registro sua relevância, bem como o impacto que nos provoca uma reação de indignação e incredulidade, mesmo advertidos da devastação estrutural presente nessa relação. Sem dúvida joga sua importância na forma como a criança não encontra recursos nem defesa em relação ao que lhe acontece.

No tocante ao nosso tema trabalho “A interpretação: da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”, a narrativa, grosso modo, aborda a interpretação do próprio sujeito através da dança — e de muitas atuações perigosas que colocam seu corpo em risco —, seguida pela interpretação da psicóloga, que investe no restabelecimento da verdade e na busca de reparação, e conduz ao final, à interpretação da justiça, passando pelo aparelho policial (queixa) e judiciário (julgamento e condenação). Aparentemente, essa última interpretação faz um ponto de basta e o sujeito se reconcilia com seu passado.

Em psicanálise, a partir do momento em que se formula uma demanda, não se pode deixar de interrogar a interpretação que ela veicula e não se pode tomá-la em sua literalidade. Tomando o filme sob a ótica da psicanálise, caberia então perguntar: de que forma a psicanálise poderia interpretar e responder sem transigir de seus princípios? Pode-se assinalar, no percurso apresentado pelo filme, o que teria enganchado o sujeito e lhe permitido avançar? Tratar-se-ia do alívio de falar? Ou da reparação da condenação? Que gozo se confessa ou se recusa? O sujeito, mesmo inocente, pode fazer-se responsável? Pelo menos daquilo que diz ou cala?

Les chatouilles, “as cócegas”, esse é o título original e remete à “brincadeira” proposta pelo abusador. Logo de cara, pareceu-me infeliz a versão do título para o português. Inocência roubada coloca um acento sobre a posição de vítima que, mesmo sendo um viés presente no filme, não será a nossa via para abordá-lo. A tradução literal, no caso, As cócegas, parece-me oferecer a possibilidade de se interrogar a ressonância desse significante sobre o corpo como marca do encontro traumático do sujeito com o sexual.

Resenha do filme, publicada em Lacan Quotidien 867, vai ao encontro dessa hipótese. Cito: “Quem não sucumbiu às cócegas (aux chatouilles) que lhe fez seu papai, seu titio, seu primo? É uma palavrinha da linguagem da infância, tal como “cosquinhas” (papouilles), ainda mais próxima de lalíngua, tão corrente e tão sugestiva”[3]. (LECLERC-RAZAVET, 2020). Também em português essa aproximação é possível, pois a lalíngua igualmente se serve da forma diminutiva, que, em geral, é utilizada para transmitir carinho ou intimidade. Algo do dizer que toca e ressoa no corpo, um dizer que faz acontecimento (MILLER, 2016, p. 28). Como afirma Miller em seu curso O ser e o Um (2011), o acontecimento de corpo é a “percussão” da língua sobre o corpo, é o traumatismo da língua e é da ordem de um real sem lei. Real sem sentido que surge do impacto das palavras sobre o corpo, que está na raiz do sintoma.

 

O filme

Diferentemente da fórmula das narrativas de histórias infantis “entrou por uma porta e saiu por outra”, vemos, no início do filme, a menina Odette entrando por uma porta (reencontraremos essa porta no final do filme) pela qual não a vemos sair. Do lado de fora, já adulta, apresenta-se seu primeiro encontro com a terapeuta e a primeira vez que fala sobre o abuso que sofrera na infância, dos oito aos doze anos, por parte de um amigo próximo de seus pais. Ela tem então por volta de trinta anos e, depois de vinte anos de silêncio, o trauma fez seu retorno ruidoso.

A dança é a paixão de Odette, para o melhor e para o pior. Percorre e costura a trama alternando-se com flashbacks de abuso, narrados em sessão, entre literalidade e fantasia. Em dado momento, em uma situação de trabalho degradada, sofre uma queda e um entorse no tornozelo. Desse acidente de trabalho, decorre um bom encontro com um osteopata, o amor se instala e, com ele, um apaziguamento provisório. Surgem melhores oportunidades de trabalho e o projeto de viverem juntos. Um desentendimento violento sobrevém ao encontro do casal com os pais de Odette e o sujeito cai, abandonado. Pela mãe, sempre excessivamente exigente, e pelo companheiro, desgastado pela sombra de um meio-dizer da parte de Odette: “escondendo as coisas de mim, você pode me perder. Estou sempre te esperando, sem saber se vai chegar e como. Não quero mais isso”, ele diz. A terapeuta a encoraja a falar com ele e também com os pais, revelar-lhes seu segredo e seu sofrimento, ao que ela se recusa inicialmente. Quando finalmente se decide a conversar com os pais, a mãe acusa a filha de mentir, coloca a atenção na gravidade da acusação e desconsidera a gravidade do fato. O pai se revolta, se culpa e pede perdão. É o que permite a Odette prestar queixa. Já a recusa da mãe em responder à sua demanda de amor precipita a demanda ao parceiro, que a acolhe. O abusador é levado ao tribunal e é condenado.

Na cena final, na última sessão, Odette enuncia seu desejo de ouvir da mãe uma palavra de acolhimento, um “eu sinto muito”. Entra novamente pela mesma porta do início e se “reencontra” com Odette menina, desenhando. Ela diz ter abandonado a menina que foi e a convida a seguir consigo resgatando o fio da vida: “Não sou uma morta-viva”. Se não pôde contar com a mãe, poderá contar consigo mesma.

 

Sair do nevoeiro: “Já falou com alguém?”

Ao final da primeira entrevista, a psicóloga diz que vai encaminhar Odette a um colega especializado: “a pessoa certa para ajudá-la”. Odette responde que é a primeira vez que falou sobre o que lhe aconteceu e que não vai falar com mais ninguém: “não sou de falar muito, eu danço”. Diante da terapeuta que quer encaminhá-la a um “especialista”, o sujeito recusa decididamente e a chama à responsabilidade pela escuta: “nunca falei antes com ninguém! Não vou falar com mais ninguém!”. A psicóloga também insiste no tratamento formal “para manter a distância”. Odette quer ser chamada pelo seu nome próprio. A psicóloga consente com a decisão do sujeito e assim se inicia o desenrolar das sessões, nas quais ela não conseguirá “se manter a distância”; pelo contrário, se faz presente, testemunha das rememorações, fantasias (no sentido de sonhos diurnos), construções, como também faz oposição ao risco em que Odette se coloca reiteradamente. Sua presença, fora de lugar e atrapalhada, ainda assim faz limite, o que permite ao sujeito dar contornos ao trauma. De certa forma dócil a se deixar ensinar pelo saber do sujeito, aceitando abandonar todo saber prévio, ela aposta na fala como terapêutica: “falar é o princípio da aceitação, do alívio da dor”.

Entendo que não se trata de se aferrar a esse efeito terapêutico da fala nem a seu oposto, de considerar que as palavras não são necessárias. Encontrei as duas vertentes nas críticas sobre o filme. Se há aquela que considera que a “narrativa inteira serve de preparação para a hora em que Andréa terá palavras para falar” (CARMELO,2018) e se decepciona com o recurso de encobrir a fala pela música e, ainda uma vez, pela dança, há, por outro lado, o elogio às

“escolhas artísticas das cenas do desfecho, pois opta por sensibilidade, pelo não dizer com palavras — estas não são necessárias. Odette não fala, Odette dança. Em cada movimento vemos sua história sendo expelida, as palavras que lhe foram roubadas, reprimidas, traduzidas na intensidade da sua arte” (TEISTER, 2019).

No que se refere ao “falar faz bem”, a prática da psicanálise esclarece que não se trata de qualquer palavra nem de qualquer jeito, pois, se as palavras parecem desnecessárias, isso se deve a que, do que se trata no trauma, estas são sempre inadequadas e insuficientes para dizer. As palavras faltam para dizer o real. Sabemos, com Freud e Lacan, que o encontro do sujeito com o sexo é traumático, é antes um desencontro, pois o fracasso é a regra. O silêncio é a marca do encontro com o real, Troumatisme, e não pode ser interpretado muito rapidamente.

“A prática da psicanálise ensina que não se trata de buscar o real como a verdade. A prática e a análise ensinam que é o real que nos encontra” (TARRAB, 2021) é o que Maurício Tarrab nos lembra perguntando “O que o sujeito encontra que há que fazer notar? O ponto de gozo da repetição”. Observa ainda que “fazer-se de buscadores da verdade, detetives do mistério do sofrimento sintomático”, diante do encontro com um impossível de curar, constitui uma nova ferocidade que “muitas vezes vem tomar o lugar da ferocidade curativa”. Também sabemos, com Lacan, que o sujeito não falará o trauma que é falado no sintoma. Do real, não se diz que é ininterpretável, indizível? Se o trauma se cala, o sintoma o repete e faz barulho. O que se pode, no après-coup, tentar apreender pela fala?

“Para o analista, não se trata de forçar que se diga tudo, tampouco de fazer uma promessa sobre o porvir. Trata-se de se oferecer como interlocutor, sustentando o que o sujeito possa dizer para circunscrever o acontecimento traumático na cena analítica” (URRIOLAGOITIA, 2020, p. 156).

Apesar de não esclarecida, algo da presença da psicóloga e pelo menos uma intervenção bastante precisa parecem ter operado e permitido ao sujeito circunscrever aquilo que toca o seu corpo. Recorto a cena em que a psicóloga vibra “porque está ficando mais concreto” (trata-se da narrativa não fantasiada de uma cena de abuso). Na sequência, Odette pergunta: “Por que ele continuava se estava claro que eu não gostava?”. A resposta é direta: “Porque é um estupro, vamos sair daqui”.

É uma forma de nomear que faz borda ao real, ainda que a orientação dada pela psicóloga seja de restabelecer a verdade e a fantasia seja tratada como uma fuga, como nas intervenções: “nos desviamos, vamos voltar” ou “vá devagar com o mundo da fantasia”. Em outro momento, ela admite que “contar na fantasia é um primeiro passo para contar na realidade”, mas sua referência segue sendo a verdade.

Vemos que o recurso à fantasia é decisivo para Odette. Na fantasia diz a seu amigo Manu: “Não consigo tirar isso da cabeça”. Ao que ele responde: “Então não tente! Conviva com isso (fais avec)! Uma lembrança não pode te comer viva! (em lugar de conviva com isso, podemos escutar: se arranje, se vire, faça alguma coisa com isso).

Questionando-me o que teria operado para que Odette saísse do silêncio que a mortificava, deparei-me com essa “autointerpretação”. Pensei que poderíamos aproximá-la do célebre aforisma “pode-se prescindir com a condição de servir-se (do Nome-do-Pai)”. Quanto a servir-se do pai, também em uma “lembrança fantasiada”, a menina apela ao pai para ensaiar um primeiro não ao abusador: “Meu pai vai chegar”.

Como fazer dessa lembrança que a assombra algo que vivifique seu corpo? Esse corpo agitado pela raiva (colère). Num workshop de dança, o professor diz que ela dança “sem técnica, mas com emoção. É o corpo de uma criança que sofre”, interpreta. “Sua dança é intensa, muito poderosa, mas você precisa sair do nevoeiro. Já falou com alguém? Não quer falar com alguém?”.

 

O que se confessa?

Para Serge Cottet (2014), há dificuldade na atualidade para defender a vigência da teoria freudiana do trauma, para a qual é necessário considerar a importância da presença do sexual na criança e que não haveria traumatizados se não houvesse satisfação associada. A criança a experimenta sem poder traduzi-la. O trauma é a marca indelével que fica, como um “eco na vida de uma primeira vez” (COTTET, 2014, p. 33). O fato de que a sociedade atual vê a criança como vítima potencial do adulto perverso não deixa espaço para incluir a satisfação própria da sexualidade infantil, reatualizada no segundo tempo do trauma.

A esse respeito, outra cena do filme é esclarecedora. Odette retorna de uma turnê — que lhe serviria para manter, segundo suas palavras, distância do passado ou para que o passado a esquecesse — devastada pelas drogas, pelas relações múltiplas e ocasionais e pela solidão. Na sessão, a psicóloga insiste: “faz bem falar sobre o que houve, confessar”. Ao que Odette responde: “confessar o quê, eu sou inocente!”. “Confessar não foi uma boa palavra. Revelar, contar a alguém”, corrige a psicóloga. Nesse diálogo temos mais uma “confusão de línguas”: a legenda traduz avouer (confessar) por contar, o que torna sem sentido a resposta “eu sou inocente”.

Para Odette, contar aos pais seria destruir a vida deles. Também não podia contar para o homem que ama que foi abusada quando criança, pois ele fugiria. “Já passou o tempo”, ela diz (de que tempo se trata? da sessão? da denúncia? da fala?).

Cabe perguntar, finalmente, a função e o efeito da apresentação da queixa e do julgamento (resposta do judiciário). Segundo Leclerc-Razavet (2020), a denúncia seria a chave do filme e tornar público possibilitou ao sujeito “sair da omertá, da vergonha, de uma posição de vítima, com a necessidade de elaborar sua própria resposta face a esse real que pode sempre ressurgir”.

Não se trata de esperar que a resolução do trauma seja a reparação outorgada pela justiça, mas de abrir o campo da responsabilidade através dela. O filme é fiel a seu tempo e se engaja na esteira do #metoo. O acusado é reincidente e é de outra vítima que se mostra o depoimento na cena do julgamento. No entanto, como nos lembra Clotilde Leguil (2017), “o sintoma não é formulado através de um (…) ‘nós, as vítimas’ (…). Ele se formula a partir de um eu remetido à própria opacidade (…) que escapa ao sentido comum”. O sujeito responde sozinho por ele.

É nesse sentido que Leclerc-Razavet (2020) conclui:

“Essa marca traumática de gozo deve ser ‘carregada’ pelo sujeito, uma vez reconhecida sua posição de vítima — um momento lógico inevitável. O que ele fará com isso? Isso é o que lhe pertence, para se afastar dessa posição de vítima, e assim recuperar seu desejo e seu orgulho”.

No julgamento, o abusador ainda declara: “Ela consentiu. Gostava, se oferecia. Eu deveria recusar? Não faz sentido”.

Se se poderia falar em consentimento nessa situação, seria de um consentimento, enfim, em dizer, em tornar público e sair do silêncio culpado de alguém que, em nome de preservar os pais, renovava a culpa, ainda que não tivesse, na ocasião dos abusos, os meios de dizer não. Leguil propõe o aforisma “ceder não é consentir”, que podemos parafrasear, em referência a um ditado bem conhecido, para sustentar que “calar não é consentir”, pois “o abuso é aqui o poder que faz calar o sujeito sem que ele o perceba” (LEGUIL, 2021).

O que se confessa, afinal? Hélène Bonnaud (2021) articula que

“Há, portanto, um gozo em calar-se que afeta a dominação do agressor, mas também a fala como segredo que mantém o pacto, tacitamente ou não. O segredo sela a relação do estuprador com a criança estuprada, uma condição ainda marcada pela culpa. Se então denunciar o segredo que protege o estuprador, permite não só liberar a palavra do segredo compartilhado, mas também da culpa ligada a ele. Sigilo e culpa formam uma parceria que aliena o sujeito ao Outro gozador, dando-lhe todo o poder e permitindo-lhe manter o vínculo perverso com seu objeto. (…) O segredo então traz muita depressão e culpa porque afeta a palavra que está aí, de fato, proibida e isso sob o pretexto de privacidade compartilhada”.

 

E o que diz a lei?[4]

A partir desses recortes, localizam-se os pontos de contato e os de separação entre psicanálise e direito. A interpretação jurídica, ao apontar para a responsabilidade do adulto, desresponsabiliza o sujeito (por seu gozo, ainda que de sua posição de vítima) sob o manto da incapacidade de discernimento, o que sinaliza a delicada posição em que a psicanálise se sustenta. Proponho que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo.

A reflexão sobre a sexuação das crianças, tema da recente Journée de l’enfant, na França, bem como a atualidade da questão trans, renova, para o direito, uma questão que gira em torno dos temas maioridade sexual, abuso de vulnerável, consentimento (referido à capacidade de discernimento) e prescrição. Temas que nos interessam diretamente em relação ao desfecho da ação judicial no filme que estamos comentando.

Deduz-se a maioridade sexual do limite de idade para a relação consentida com um menor de idade (os termos são da lei francesa): “com menos de quinze anos, o menor não está em condições de consentir em uma conduta sexual, ele será obrigatoriamente considerado como não consentindo” (FAYOL-NOIRETERRE, 2021). Considera-se a presunção de não-discernimento do estabelecimento desse limite. Cabia decisão do juiz sobre esse limite, que, para alguns, deveria ser obrigatório e não discutível. Essa modificação foi, de fato, incorporada à lei em abril de 2021.

Quanto à prescrição da punibilidade das infrações sexuais, contados a partir da maioridade da vítima, considerava-se o prazo de vinte anos para delitos e de trinta anos para crimes. O prazo é consideravelmente maior em relação aos demais crimes e ainda existe debate sobre a imprescritibilidade desses atos. Fayol-Noireterre considera que esse debate reflete uma sociedade “vitimária”, “onde as regras são definidas pelas supostas necessidades das vítimas de reconhecimento judicial, ou punição”. Esses prazos foram revistos e aumentados pela reforma de abril de 2021. E as punições, em sentido idêntico, tornaram-se mais duras[5].

Do filme, ecoa a questão: “a dor prescreve?”

 


Referências Bibliográficas:
BONNAUD, H. “Inceste et secrets de famille”. Lacan Quotidien, n. 910. 2021. Disponível em https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/01/LQ-910.pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
CARMELO, B. “A festa é minha, eu faço o que eu quiser”. 2018. Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-256702/criticas-adorocinema/. Acesso em: 05 mai. 2021.
COTTET, S. “Freud et l’actualité du trauma”. La Cause du désir. Paris: ECF, n° 86, 2014, pp. 27-33.
FAYOL-NOIRETERRE, J.-M. “Majorité sexuelle, consentement, prescription”. 2021. Disponível em: https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/majorite-sexuelle-consentement-prescription/. Acesso em: 03 mai. 2021.
INOCÊNCIA roubada. Dir. Andréa Bescond e Éric Metayer. França. 103 min. Cor. Les Films du kiosque. 2018.
LACAN, J. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LECLERC-RAZAVET, E. “Les chatouilles ou la danse de la colère”. Lacan Quotidien 867. 2020. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2020/02/LQ-867.pdf. Acesso em: 03 mai. 2021.
LEGUIL, C. “Ilusão do nós, verdade do Eu (Je): abordagem lacaniana da identidade”. Opção lacaniana online n. 22. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_22/Ilusao_do_nos_verdade_do_eu_(je).pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
LEGUIL, C. “Le consentement au nom de La familia grande.” In: Lacan Quotidien 910. 2021. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/01/LQ-910.pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
MILLER, J.-A. O ser e o Um. Curso de Orientação Lacaniana, 2011. Inédito.
MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. ScilicetO Corpo Falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: EBP, 2016, p. 19-32.
TARRAB, M. “Comentário sobre ‘A psicose e a máquina de interpretar’ em Belo Horizonte”. Almanaque online, Belo Horizonte, IPSMMG, n. 27, 2021.
TEISTER, T. “Inocência roubada: viagem dentro do trauma e da dor”. 2019. Disponível em: https://cinemacomrapadura.com.br/criticas/561915/critica-inocencia-roubada-2018-viagem-dentro-do-trauma-e-da-dor/Acesso em: 05 mai. 2021.
URRIOLAGOITIA, G. “O sonho traumático e a tiquêScilicet: O Sonho – sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. São Paulo: EBP, 2020, p. 155-156.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito do IPSMMG, em 14/05/2021.
[2] Agradeço a Ludmilla Féres Faria a lembrança dessa citação de Lacan.
[3] Essa tradução, como as demais de referências em francês, foi feita por mim.
[4] Recolhi algumas informações sobre a legislação francesa, no que se refere às infrações sexuais, no boletim eletrônico da jornada citada, publicado em 21 de janeiro, em artigo de autoria de Jean-Marie Fayol-Noireterre, magistrado. A lei francesa foi modificada em abril de 2021. Agradeço a José Xavier, advogado em Belo Horizonte, pela pesquisa sobre a legislação, bem como pela participação e esclarecimentos apresentados na discussão desse comentário na atividade do Núcleo de Psicanálise e Direito.
[5] O entendimento transmitido por José Xavier consoa com o comentário de J.-A. Miller quanto à docilidade do legislador ao clamor público. Se, por um lado, a extensão dos prazos de punibilidade é um avanço ao incluir a consideração do tempo subjetivo e ênfase na função reparadora da justiça, o endurecimento das penas responde mais a um anseio popular por vingança, acentuando, então, a função retributiva da justiça.



A PSICOSE E A MÁQUINA DE INTERPRETAR[1] 

Mauricio Tarrab
Psicanalista, Membro da EOL /AMP |
mauricio.tarrab@gmail.com

Resumo: Neste texto o autor retoma e comenta outra publicação de sua autoria, “A psicose e a máquina de interpretar”, e resgata a ideia de que o real, fora do sentido, coloca em funcionamento uma máquina de produzir ficções e que a própria psicanálise pode fazer funcionar essa máquina de produzir sentido. Ele ressalva, no entanto, que, com o ensino de Lacan, é possível ir além do campo ficcional, e é esse além que o autor desdobra em seu texto.

Palavras-chave: real, interpretação, psicose.

Psychosis and the interpreting machine

Abstract: In this essay, the author revisits and comments on another publication of his, “Psychosis and the interpreting machine”, bringing back the idea that the real, being outside of meaning, puts into operation a machine that produces fictions and that psychoanalysis itself, can make this machine of meaning production work. He points out, however, that with Lacan’s teaching, it is possible to go beyond the fictional field and it is this beyond that the author unfolds in his text.

Keywords: real, interpretation, psychosis.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Em razão do convite que me fizeram, voltei a ler, com certa distância, meu texto “As psicoses e a máquina de interpretar” (TARRAB, 2018) para retomar uma temática que sempre me pareceu apaixonante. O texto extrai consequências de uma pontuação de Jacques-Alain Miller.

Miller faz essas pontuações em formulações de Lacan, que ele espreme, retorce, desenvolve, combina, separa, mas, de onde, fundamentalmente, extrai consequências. Ler e escrever estão nesse “método” que Miller coloca em jogo. Lê-se a partir dessas pontuações e isso permite escrever algo novo. No argumento do semestre escrito por Cristiana Pittella, pude ver que trabalharão a partir da referência desse texto extraordinário de Miller, “Ler um sintoma” (2016), e, de fato, em uma série de Noites da Escuela de la Orientácion Lacaniana (EOL) que organizei com Silvia Salman, trabalharemos algumas pontuações, uma delas sobre a interpretação, e o que resta como um x mais além da interpretação freudiana.

O tema é tão fundamental que começou com a interpretação dos sonhos… mas é preciso centrar-se em um tema, fazer-lhe bordas, cercá-lo, para que a fuga de sentido não nos extravie. O que me atrevi a dizer nesse texto, que vocês tão amavelmente tomaram e que apresentei em uma Mesa Plenária no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise em Paris, é que “há uma máquina de interpretar” e que essa máquina de interpretar funciona porque há uma debilidade para afrontar o real. Parti de uma pontuação fundamental, que é a de que a debilidade chamada mental consagra o corpo falante ao delírio, ou seja, que o consagra à interpretação. Se a radicalizarmos, podemos dizer que não há outra possibilidade para o ser falante que delirar. O que faz também que, com isso, digamos que o delírio é normal. Uma formulação que Lacan extrai de Freud mesmo.

Lacan o diz de muitas formas, por exemplo, que é uma evidência fundamental em uma análise perceber que se fala só no semblante… e para isso não é necessário ser psicótico.

Então, o delírio, ainda que normal, e isso já está em Freud, está do lado da resposta ao real, que, como tal, é fora de sentido e é o que faz colocar em marcha essa máquina eficaz, às vezes infernal, às vezes tonta, de produzir sentido. Sejamos precisos… de produzir ficções. E essa ideia reabre o grande capítulo da psicopatologia, desde as psicoses à psicopatologia da vida cotidiana.

Penso que, a partir de um certo momento, pode-se ler o alcance do ensino de Lacan como um modo de comprovar se seria possível ir um pouco mais além do campo ficcional. Até chegar a formular a aspiração em termos condicionais sobre a possibilidade de um discurso que não fosse do semblante.

O que existe de ficcional na própria psicanálise impeliu Lacan até o final. Existem os discursos, sim, mas, no final, os discursos não são mais que uma articulação significante que governam as palavras e incidem nos corpos. Humpty Dumpty[2] sabia algo disso. Mas Lacan aponta para algo mais. Existem os discursos que giram, como ele diz, no Seminário 19: “o gozo, a verdade, o semblante, o mais de gozar, ali gira a coisa. E ali está este suporte, o que ocorre ao nível do corpo […] o ground” (LACAN, 1971-72/2012).

O ground está ali, em inglês, ground, o solo, o solo dos discursos é o corpo. E nesse ground passam coisas, ocorrem coisas nos corpos. Retomarei isso no final com algumas referências clínicas que me interessa compartilhar com vocês.

 

ground

Quando assinala que o “matérial-ne-ment” — só o material não mente —, Lacan define sua própria orientação até um ponto certo, firme, que é esse encontro entre o corpo e o significante que não só muda o corpo, mas que também muda o significante mesmo.

Por outro lado, com sua indicação no Seminário 23, de que é preciso “reduzir toda invenção ao sinthome” (LACAN, 1975-76/2007), ele assinala onde é que esse ground se corporifica e diz, ao mesmo tempo, que isso poderia se “encarnar” em uma prática possível, quando a psicanálise parecia encalhar na borda do desalento. A debilidade do saber, a debilidade do saber inconsciente, evidenciada como um fim de linha, força a passagem do inconsciente ao sintoma como única via praticável.

A própria psicanálise põe em funcionamento essa máquina ficcional. Se nos descuidamos, ela a estende em todas as direções e, então, em meio às “criaturas das palavras” que a psicanálise convoca, onde estaria o real? A questão deveria nos incitar, aos analistas, desde que tratemos de não nos perder na névoa dos semblantes e na circulação dos discursos. A pergunta se sustenta: onde está o real? É uma pergunta epistêmica, já que implica o saber e faz girar seu ensino, e é uma pergunta clínica, já que determina de outro modo a orientação da psicanálise, de sua clínica e de sua prática.

Onde está o real? No gozo? No corpo? Na irrupção do trauma? No furo do sexo? No umbigo do sonho? No escrito? No sintoma?… E isso, como se alcança? A prática e a análise ensinam que não se trata de buscar o real como a verdade. A prática e a análise ensinam que é o real que nos encontra.

Por isso digo que, ainda que as neuroses mesmas possam ser consideradas ficções dessa ordem, nada o ilustra melhor que os fenômenos intuitivos e interpretativos das psicoses, as ordinárias e as outras. E é nessa via que Lacan, muito cedo, formulou a ideia, um tanto descabelada, de que a psicanálise é uma paranoia dirigida. É uma paranoia porque, na análise, o analisante — não o analista, o analisante — não faz outra coisa que interpretar. O que lhe disse o analista, o que não lhe disse, porque esse tom ao dizê-lo, disse-me isso, mas queria dizer-me… porque esse ruído detrás do divã… Essa estrutura interpretativa faz aparecer na análise a dimensão do desejo do Outro, ou seja, de sua intencionalidade. E é um bom indicador sobre o momento que se atravessa na transferência localizar quando vocês interpretam a seus analistas. Prestem atenção e verão que não há muita escapatória. Lacan conservou o dispositivo freudiano e, ao mesmo tempo, não deixou de colocar “pedras no caminho”[3] nessa maquinária difícil de se deter.

O excesso de interpretação, tributário da fuga de sentido, fez Lacan mudar muitas vezes sua concepção de interpretação e o seu alvo. E agora, no ponto em que estamos, o termo interpretação já não nos convence, já não diz bem o que quer dizer a interpretação para a psicanálise que praticamos.

Tomei no texto essa frase preciosa de “Função e campo da fala e da linguagem”, que demonstra como o ensino de Lacan não é linear. Não segue a flecha do tempo. O que está no final retoma o que já estava no princípio como intuição e, também, como formalização porque é uma frase, de longo alcance, que indica uma formalização sobre a interpretação: “… e ainda o suspiro de um silêncio basta para suprir todo um desenvolvimento lírico” (LACAN,1953/1998). É uma indicação clara do que a interpretação lacaniana deveria ter de contradelirante. “O suspiro de um silêncio…” não há ali só um silêncio, que é todo um capítulo sobre a interpretação. Nesse “ainda o suspiro” está a presença mesma do psicanalista e de seu desejo.

A interpretação não necessitou esperar a psicanálise para se fazer um lugar, não só na psicopatologia, senão na própria cultura. E a psicanálise, desde “A interpretação dos sonhos”, se localizou nessa corrente cultural arriscando se perder na construção de uma ficção sempre interpretativa, risco que Lacan denunciou ao final de seu ensino.

Lacan produz uma ruptura também no campo da interpretação. Separa a psicanálise daquilo que a incluía em uma hermenêutica e, ao traçar os limites do campo freudiano, reconhece os limites de Freud como também segue a orientação secreta que acredita ler no próprio Freud: “O que ele realmente executa, ali, sob os nossos olhos fitos no texto, é uma tradução pela qual se demonstra que o gozo […] consiste propriamente nos desfiladeiros lógicos (…)” (LACAN, 1974/2003 p.514).

Isso muda as coisas para a interpretação que se quer “analítica”. O ternário edípico já não é causa, senão uma interpretação, mas a serviço do gozo. E quando se trata do gozo, não há uso comum nem sentido comum da interpretação, o que a situa sempre um pouco fora de toda regra. Sua função alusiva, ilustrada pelo dedo apontando para o alto de São João de Leonardo da Vinci, localiza o horizonte da interpretação mais além do marco do quadro, mais além do marco simbólico.

Alcançar, ou não, esse fora de sentido torna-se chave no ultimíssimo ensino de Lacan, que havia começado com a exaltação dos “poderes da palavra” e a promessa que oferece Ao plus-de-sens (mais-de-sentido). O devir da própria prática lacaniana evidencia que o sentido sempre está em fuga e que esse ponto fixo, que comanda a repetição, não se captura pelo sentido.

E direi que aqui nós topamos com a questão do ponto fixo, para dizê-lo, em termos de solo, do ground, o ponto onde poder-se-ia ficar de pé. Essa é a questão que justifica voltar a visitar Humpty Dumpty e, também, sobre o que as psicoses ensinam ao psicanalista. É o que afirma Fernando Casula quando recorta esta frase de Miller em A interpretação pelo avesso”: “o avesso da interpretação consiste em cercear o significante como fenômeno elementar do sujeito, como anterior a sua articulação enquanto formação do inconsciente, que lhe dá sentido de delírio” (MILLER, 1996, p. 98).

Subamos mais uma vez no muro com o famoso Ovo… Temos ali um divisor de águas para a interpretação: vamos do lado “histérico” com Alice, fazer com que as palavras signifiquem outra coisa do que se quer fazer significar. Temos claro que, ao interpretar, não nos privamos disso com os analisantes, mas isso tem um horizonte que não se alcança nunca. A fuga de sentido é incontrolável quando a máquina de interpretar vai por esse caminho, especialmente nas psicoses. O sujeito corre o risco de precipitar-se em uma sideração de sentido delirante que não se pode deter e que lhe resulta insuportável.

O outro caminho é o que indica o Ovo: trata-se de que há um mestre. Um mestre do jogo, com certeza, um mestre do discurso que decide sobre as palavras que podem ser ditas nesse discurso. Mas, também, e isso é uma modulação fundamental, um mestre que decide sobre os corpos.

Circundá-lo, localizá-lo, sublinhá-lo, “fazê-lo notar”, como diz Lacan em Estou falando com as paredes (LACAN, 1971-72/2011), aponta para a detenção do deslizamento infinito e pode permitir estabilizar as significações. Deter esse deslizamento e centrar o sujeito sobre os fenômenos elementares permite fazer com que o Outro gozador perca a consistência recolocando-o no lugar de um semblante e, eventualmente, permitindo reordenar a relação com o corpo, se é que se tem um corpo.

Éric Laurent sustenta que, na psicose, a interpretação do sujeito está baseada em uma certeza (em um ponto fixo) e que o sujeito psicótico “está pronto para impô-la ao mundo” (LAURENT, 2017, p. 19). Por essa via, o inconsciente a céu aberto da psicose não é mais que uma máquina interpretativa, cuja produção — delirante — não cessa de traduzir os significantes de lalíngua. E Laurent ensina que o analista deveria intervir no sentido de não permitir ao psicótico se deixar levar pelo movimento delirante e voltar a centrá-lo nos fenômenos elementares, os S1 isolados que a ele se impõem. O caso de Isabela, que eu menciono no texto, é um grande ensinamento para nós.

Laurent toma como exemplo o milagre do uivo, do caso Schreber. Imaginando um diálogo fictício, ele lhe perguntaria: “Você disse ‘uivo’, ‘milagre do uivo’? Diga-me um pouco mais. O que é um ‘milagre do uivo’?” (LAURENT, 2017, p. 21). Recorta o significante ‘uivo’, que nomeia um acontecimento de corpo, e convida o sujeito a falar sobre “como se defende do milagre mediante uma invenção particular” (Ibid.). Podemos ler no livro Conversações Clínicas de UFORCA (UFORCA, 2020) uma apresentação de pacientes realizada por Miller que coloca em ato essa orientação de maneira esclarecedora. Diferentemente de Humpty Dumpty, a psicanálise nos ensina que há um mestre mais além do significante.

 

O que responde e o que não responde

O inconsciente interpreta porque o inconsciente é essa parte do sintoma que responde, e isso permite a dialética cifração-decifração (LACAN, 1975-76/2007). Mas como tocar com a interpretação aquilo que não responde do sintoma e produzir uma ressonância que não seja de sentido? É o problema que traz à prática do analista a aspiração de Lacan de reduzir o sintoma a seu real. Estamos diante do que se pode decifrar do trabalho interpretativo do inconsciente e do que se pode captar do gozo opaco do sinthome. E como se capta isso? Miller dá o exemplo da alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos. Por que comparar a emergência do Um sozinho com uma alucinação, senão para dizer que, como isto está cortado de toda cadeia, não retorna tal como retorna o recalcado?

“Se há retorno, (…), não é na história, mas no real” (MILLER, 2009, p. 34). É uma emergência, uma intrusão, como o é uma alucinação. Por isso tem também o valor de ser prova de um real. Esse Um sozinho não se conecta ao Outro nem ao sentido. Não se decifra, pois é capturado, é testemunha dessa emergência. Talvez isso responda ao que, entre outras coisas, as psicoses ensinam à interpretação lacaniana.

“Se há retorno, (…), não é na história, mas no real” (MILLER, 2009, p. 34). E onde se pode capturá-lo, se não retorna como o retorno do recalcado? Às vezes, pode-se capturá-lo na análise, não como saber, sentido ou verdade, mas como acontecimento, como surpresa, para o analisante e para o analista. Muitos testemunhos de Passe testemunham essa contingência final em torno de um acontecimento de corpo como um pedaço de real. O acontecimento de corpo torna-se então — fórmula paradoxal — um fenômeno elementar que se pode ler. São requeridas, para isso, as chaves de leitura que o analisante pôde extrair ao longo de toda sua análise. Por vezes, um testemunho de passe consiste em apresentar essas chaves de leitura para ler o Um sozinho. Lê-lo é extrair desse real um sentido na encruzilhada do fora do sentido, do acaso e da história.

Mas voltemos à questão do Mestre. Lembrem-se do escrito “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (LACAN, 1958/1998), no qual se mostra claramente a intencionalidade política que Lacan dá ao tratamento analítico, pois não se trata somente da direção do tratamento, mas dos princípios de seu poder. E se estamos metidos nessa ordem política do tratamento, não podemos falar da interpretação sem situar a questão dos princípios de seu poder. Lacan mesmo o fez, de forma enérgica em sua época, para questionar, na psicanálise daquele momento, a intrusão não só do discurso universitário, mas, em especial, do discurso do mestre na psicanálise e na prática da interpretação que se encarnava como o analista mestre.

O que se passa hoje conosco é que estaríamos curados por Lacan ter escrito sobre isso em 1956? Podemos dizer que estamos curados, estamos a salvo de seguir encarnando, não somente o analista universitário, mas também o analista mestre?

A boa pergunta para o analista seria: quem é o mestre na psicanálise que eu conduzo? Como evitar essa pergunta sobre quem é o mestre? Por exemplo, se a evitamos, a resposta e o mestre do jogo em uma análise vão entrar de alguma maneira surpreendente e será o momento no qual iremos pedir uma supervisão. Assim, enquanto a coisa funcionava de uma certa maneira, há algo que, prontamente, entra em jogo e não se sabe o que fazer com isso. Sempre há que se buscar um mestre em um caso. E vocês sabem muito bem a importância que tem em uma análise capturar, por exemplo, um significante que seja uma chave de leitura, os efeitos que isso tem para um analisante.

Interpretar… é uma palavra aplicada a muitas coisas diferentes e, além disso, abarca campos tão variados que não é fácil saber o que dizemos ao usá-la. Por exemplo, aquele que toca um instrumento musical, interpreta uma obra, um ator ou uma atriz que interpreta um papel que está escrito, improvisa em alguma parte. Um compositor, nesse caso, um compositor e maestro muito próximo a mim, meu irmão, me explicava a importância que se tem justamente de interpretar o que o compositor esperava que fosse lido de sua partitura, quer dizer, aquilo que, alguma vez, teria escrito. Essa interpretação, ainda que se queira ser fiel, tem sempre algo que é agregado por parte daquele que interpreta. Existe a obra e existe a interpretação que, aquele que a executa, lhe agrega. Poderíamos delirar com isso e dizer que a interpretação faz a música existir, pois onde ela estaria antes de ser interpretada?

Uma vez me convidaram para dar um seminário sobre a interpretação em São Paulo e, quando cheguei, à noite, me levaram para escutar música numa linda sala, a sala São Paulo, para escutar um concerto de Rachmaninoff. Enquanto o ouvia, certamente pensava no que teria que dizer no dia seguinte. E como o contexto me provocava um pouco a questão, enquanto soava um violino espetacular, eu me perguntei por que usamos a mesma palavra para dizer coisas tão diferentes como o que fazemos em uma análise e como o que o violinista estava fazendo com sua arte naquele momento. E pensei que poderia haver uma vinculação que fosse mais além da mestria com um ou outro instrumento. Encontrei uma formulação da qual gostei. Pode-se dizer que aquele que executa um instrumento musical o faz, com maior ou menor mestria, de modo homólogo ao que o analista faz com sua leitura: ambos fazem escutar o que está escrito.

Pareceu-me uma boa fórmula para a interpretação analítica, com a condição de acrescentar que, em um e outro caso, o corpo está concernido, mais além das palavras. Havia uma canção que cantava Domenico Modugno, cantor italiano, que se chamava “Paroles”, palavras, tão somente palavras há entre os dois. Isso, poder-se-ia falar da situação analítica, na qual, supostamente, só há palavras entre os dois parceiros. E, entretanto, seguindo essa linha que percorro, o que há a dizer com todas as letras, para seguir a forte indicação de Humpty Dumpty, é que analisar, analisar-se, interpretar, não é um jogo de palavras. No primeiro lacanismo que conheci, tudo era jogo de palavras, até que chegou Miller com o Outro Lacan, nos anos 80, que permitiu abrir um campo novo, completamente mais além das palavras.

Ao longo de seu ensino, Lacan formula, de maneiras distintas, como pensar a estrutura da interpretação, ainda que não o faça de maneira explícita. Mas pode-se ler em muitos desenvolvimentos a ideia latente de que há um esforço de redução: “ainda o suspiro de um silêncio…”.

Nas conversas em Saint-Anne, publicadas como Estou falando com as paredes (LACAN, 1971-72/2011), Lacan fala da interpretação, em especial, na primeira dessas conversas, intitulada “Saber, ignorância, verdade e gozo”. Toma os quatro termos, um por um; em princípio, o saber, certamente o saber que não se sabe, o saber não sabido de que se trata em psicanálise, ou seja, o inconsciente. A importância da primazia do saber em psicanálise é o primeiro ponto disso que faço Lacan dizer, como estrutura da interpretação. O segundo ponto vai diretamente no tema da interpretação, ele diz:

“O segundo ponto, vocês não esperaram por mim para sabê-lo — dirijo-me aos psicanalistas pois ele é o próprio princípio do que vocês fazem, a partir do momento em que interpretam. Não há interpretação que não se refira à ligação entre aquilo que se manifesta de fala, no que vocês escutam e o gozo” (LACAN, 1971-72/2011, p. 26).

Podemos então ser inocentes como Alice e pensar que se trata de um jogo de palavras ou que, na transferência, que sustenta o laço analítico, trata-se só de palavras, mas aquilo com o que se encontrarão é que, o que dizem, concerne ao laço entre as palavras e o gozo. E algumas coisas na prática da análise, como no amor, é melhor sabê-las logo, então, para retomar Humpty Dumpty e contradizer um pouquinho sua arbitrariedade, o mestre, a quem ele se refere na análise, é o gozo.

Lacan diz que o laço entre as palavras e o gozo não apareceu em Freud de imediato, pois, ele disse, houve uma época do princípio do prazer em Freud — como também poderíamos dizer isso de Lacan, pois tampouco apareceu em Lacan no princípio —, uma época na qual tudo se resumia ao significante. Podemos explicar o caminho mais claramente freudiano de uma psicanálise dizendo que vai da ignorância de um saber que não se sabe e que faz sintoma à verdade que a interpretação revela, e que é a chave ética e curativa freudiana, e o que cai como saldo é um saber.

Claro — disse Lacan —, um dia Freud mesmo foi surpreendido pelo fato de que, mais além do sentido desse programa, havia outra coisa, a repetição, a insistência de um benefício de gozo que comanda a repetição: ali temos o mestre. O mestre é o que comanda a repetição e, por outra parte, poder-se-ia dizer que, se não houvesse repetição, o que interpretaríamos? Só a repetição permite situá-lo, então temos a insistência da repetição.

E ali Lacan formula seu terceiro ponto para essa estrutura da interpretação dizendo: “Se nossa interpretação nunca tem senão o sentido de assinalar o que o sujeito encontra aí, o que é que ele encontra? Nada que não deva ser catalogado no registro do gozo” (1971-72/2011, p. 28).

Assinalar o que o sujeito encontra. A estrutura mesma da interpretação lacaniana é assinalar, assinalar o ponto de gozo. Depois, o como o fazemos assinalar: se cortamos a sessão, sublinhamos, interrompemos, isso pode variar; o tema é assinalar.

O que encontra o sujeito que há que fazê-lo notar? O ponto de gozo da repetição. Essa é uma indicação maior para o praticante, em especial, é uma indicação contra essa nova ferocidade do praticante que, muitas vezes, vem tomar o lugar da ferocidade curativa; quero dizer que, quando na prática se passa da ferocidade curativa, é porque se tropeçou com o impossível de curar nos tratamentos que alguém conduz ou porque na própria análise tenha encontrado também esse impossível.

Muitas vezes se escuta, nas supervisões, uma nova ferocidade, que é a de fazerem-se buscadores da verdade, detetives do mistério do sofrimento sintomático, e Lacan vem agora dizer que se trata de “assinalar o que o sujeito encontra”. Recordem Isabela, “io sono sempre vista” (LACAN, 1962-63/2005, p. 86). Isso já implica, então, uma certa destituição do analista como mestre da interpretação.

Resta ainda o quarto ponto em Estou falando para as paredes, referido à interpretação. Ele se pergunta: “Onde é que isso habita, o gozo? Do que ele precisa? De um corpo” (LACAN, 1971-72/2011, p. 28).

Com isso, voltamos a encontrar a referência inicial de meu texto, a frase que tomei como ponto de partida a respeito do delírio e do corpo falante. O gozo habita no corpo e “os corpos estão capturados pelos discursos”. E sabemos que o corpo deve ser capturado pelo discurso para ser um corpo. Para regular-se como um corpo, para existir como um corpo, e para que alguém tenha a chance de ter um corpo. O que abre todo o capítulo do encontro, do mal encontro ou do desencontro entre os discursos e os corpos, que não poderei desenvolver com vocês, mas creio ser essencial para situar na clínica a problemática que vocês vão estudar este ano.

Então, temos saber, ignorância, verdade, gozo e um corpo onde se encarnam os discursos e, nesse caso, o que Lacan indica é que a interpretação deveria tocar o corpo. Quando, em relação à interpretação, se fala de ressonâncias, indica-se essa borda de onde se entrelaçam um saber não sabido, mas articulado, o inconsciente, as palavras, o fora de sentido, os gozos e os corpos. Quando alguém se analisa, supõe que não está falando às paredes, porque supõe — porque assim o interpreta — que há um Outro a quem lhe fala e, também, porque o analista se localiza ali na transferência. E sobre esse dizer, feito de palavras e atos, é que interpretamos. Em uma análise, circunscreve-se o discurso de tal maneira que pode-se dizer que, ao final, como o diz Lacan em Estou falando com as paredes (1971-72/2011), não é tão importante eu falar com ele, senão que falar com as paredes é seguir não suas palavras, mas o circuito da reflexão de sua voz. O analista pode bem ser essas paredes que contêm, em uma análise, o espaço onde o mais singular do analisante tenha a oportunidade de ressoar.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Renata Mendonça

Referências
LACAN, J. (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 253.
LACAN, J. (1974) “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1958). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1962-63) “O que não engana”. In: O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LACAN, J. (1971-72) Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte Anne. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
LACAN, J. (1971-72) O seminário, livro XIX: … ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LACAN, J. (1975-76) O seminário, livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAURENT, É. “A interpretação ordinária”. In: Arteira. Florianópolis: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina, n. 9, 2017. Disponível em: <http://revistaarteira.com.br/images/pdf/Arteira-9.pdf>. Acesso em 10 de julho 2021.
MILLER, J.-A. “A interpretação pelo avesso”. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 15, 1996.
MILLER, J.-A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2009.
MILLER, J.-A. (2016) Ler um sintoma. Disponível em: <http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br>. Acesso em: 22 junho 2021.
TARRAB, M. “La psicosis y la máquina de interpretar”, apresentado na Mesa Plenária do XI Congreso de la AMP “As psicoses ordinárias e as outras”. Barcelona, abril 2018.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 19 março de 2021.
[2] Humpty Dumpty é um ovo antropomórfico, filólogo e especialista em questões linguísticas. Para ele e seu raciocínio invertido, as palavras comuns significam o que quer que ele queira, enquanto nomes próprios devem ter significação geral. Disponível em: https://thebloggerwocky.wordpress.com/2011/05/28/humpty-dumpty-o-sabe-tudo-prosopagnostico/. Acesso em: 22 maio 2021.
[3] (N.T.) A expressão “pedras no caminho” em português equivaleria à expressão “palos en rueda” (paus na roda) em espanhol, indicando a colocação de obstáculos a algum movimento.



UMA INTERVENÇÃO POUCO ORTODOXA[1] 

MARÍA DE LOS ÁNGELES CÓRDOBA
Psicanalista membro da EOL/AMP |
angelescordoba2@gmail.com

Resumo: A autora faz uma leitura apurada do testemunho de Hilda Doolittle sobre a sua análise com Freud, presente no livro Por amor a Freud, no qual Doolittle se esforça para transmitir algo da experiência desse encontro de maneira vívida. A autora destaca a “atmosfera interpretativa” e o efeito do impacto do gesto e das palavras do analista sobre o corpo da analisante a partir de umas das intervenções freudianas relatadas por Doolittle — uma intervenção de exceção, pouco ortodoxa, que seguiu ressoando por muito tempo após o fim dessa análise.

Palavras-chave: Interpretação, corpo, corpo do analista, gozo.

AN UNORTHODOX INTERVENTION

Abstract: The author makes an accurate reading of Hilda Doolittle’s testimony about her analysis with Freud present in the book For love of Freud, in which Doolittle strives to convey something of the experience of this encounter in a vivid way. The author highlights the “interpretive atmosphere” and the effect of the impact of the analyst’s gesture and words on the analysand’s body, based on one of the Freudian interventions reported by Doolittle — an exceptional intervention, unorthodox, which continued to resonate for a long time, time after the end of this analysis.

Keywords: Interpretation, body, analyst’s body, jouissance.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

 Se não existisse a substância gozo, seríamos todos lógicos, uma palavra valeria como outra, não haveria nada parecido com palavra justa, a palavra que ilumina, a palavra que fere, somente haveria palavras que demonstram.
Entretanto, as palavras fazem algo muito diferente do que demonstrar, as palavras furam, emocionam, comovem, se inscrevem e são inesquecíveis. (MILLER, 2009, p. 249, tradução nossa).

 

Hilda Doolittle, em seu livro Por amor a Freud, quer transmitir algo da sua análise com ele. Podemos deduzir, da leitura de seu texto, o esforço para fazer passar algo da experiência desse encontro: “o impacto de uma língua, bem como o impacto de uma impressão, pode se tornar ‘correto’, se tornar ‘estilizado’, perder sua qualidade viva“ (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 33). “Não quero me envolver na sequência histórica rigorosa. Desejo lembrar as impressões, ou antes, desejo que as impressões me lembrem” (Ibid.).

Escolhe começar por uma intervenção cujo eco, cujo impacto sustenta sua vigência intacta por muito tempo após o fim da análise: “O próprio Professor é pouco canônico; ele bate com a mão, com o punho, no alto do encosto do antiquado sofá de crina… (…). O Professor disse: ‘O problema é — sou um homem velho — você não acha que valha a pena me amar’” (Ibid., p. 34).

Pergunto-me de que se trata essa intervenção. Para onde aponta?

Trata-se da tradução de uma verdade inconsciente? É uma via pela qual a própria mensagem retorna ao sujeito de forma invertida? Revela algo do impossível de dizer? Assinala algo do gozo que está ali em jogo na sessão analítica? A que ponto da estrutura se dirige, ao ponto de repetição ou ao de evitação? E a batida (da mão no encosto do sofá)? O que a batida toca? De que batida se trata? E essas palavras, de onde brotam? Por que são inesquecíveis para Hilda Doolittle?

 

O contexto da intervenção 

Interessa-me situar, em relação ao caso e a essa interpretação, o que Miller chama de “atmosfera interpretativa”, ou seja, o meio no qual a interpretação se produz e tem efeitos.

Hilda Doolittle foi analisante de Freud nos anos de 1933 e 1934. Ela introduz a intervenção que nos convoca relatando o que a levou, pela segunda vez, a retornar ao divã do “Professor”: soube do falecimento do analisante com quem cruzava nas escadas do consultório na entrada da sua sessão. “Voltei a Viena para lhe dizer que sinto muito” (Ibid. p. 28). Freud lhe responde: “Você voltou para tomar o lugar dele” (Ibid.), uma interpretação que parece apontar para localizar a posição do sujeito, pois Hilda Doolittle nos diz que ela andava sem rumo naquela época.

Também há algo que antecede as palavras ditas: Hilda Doolittle relata esse dizer de Freud: “Estive pensando sobre o que você disse, sobre não valer a pena amar um homem velho de 77 anos” (Ibid., p. 115). Ela deixou claro que tinha dito que temia que não valesse a pena, ao que ele respondeu com silêncio e um sorriso irônico.

 

Do efeito da interpretação

“Conscientemente, eu não percebia ter dito alguma coisa que pudesse explicar a explosão do Professor. E enquanto eu girava, encarando-o, minha mente estava distanciada o suficiente para me perguntar se aquilo era alguma ideia dele para acelerar o conteúdo analítico ou redirecionar o fluxo de imagens associadas. (…).

O impacto de suas palavras foi terrível demais — eu simplesmente não senti nada. Não disse nada. O que ele esperava que eu dissesse? Foi exatamente como se o Ser Supremo tivesse martelado com o punho no encosto do divã onde eu estava deitada. Por que, afinal de contas, ele fez aquilo? Ele devia saber tudo, ou não sabia nada. Ele devia saber o que eu sentia. Talvez soubesse, talvez fosse daquilo que se tratasse. Talvez, no fim das contas, fosse apenas um ardil, algo para me chocar, para quebrar alguma coisa em mim de que eu estava parcialmente consciente — algo que não iria, que não deveria ser quebrado. Eu estava ali porque não deveria ser quebrada” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34).

Recorto: primeiro, um efeito de perplexidade “simplesmente não senti nada”, um vazio, o encontro com algo inesperado.

É em um segundo momento que aparecem as primeiras interpretações da analisante, algo o chateou, era para acelerar a análise, um recurso para impressioná-la. Tal como Freud aponta em “Análise terminável e interminável” (1937/1980), o analista torna-se um homem estranho que dirige propostas desagradáveis e isso está em conexão com o choque dos mecanismos de defesa.

Algo que perturba: “O impacto de suas palavras foi terrível demais” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34). Algo que impacta o corpo e, portanto, tem valor traumático. Por que essas palavras impactaram desse modo? Nessas palavras se fez presente, de modo contundente, o corpo do analista, “ele bateu no meu travesseiro, ou no suporte para cabeça do velho divã (…)” (Ibid., p. 99).

Trata-se do analista-corpo que encarna algo do não simbolizável do gozo? Um impacto que a força a ocupar seu lugar? Ela nos diz que estava bastante afastada, que se recusava a entregar algo, e o efeito quase imediato foi deslizar-se novamente sobre o divã, “sorrateiramente”. A força a ocupar o seu lugar no próprio tempo da sessão.

Uma interpretação que ressoa no corpo, que faz com que essa seja uma intervenção de exceção. É surpreendente o estilo dessa intervenção, Freud acompanha com o corpo, com o golpe no divã, com um tom inédito, o seu dizer.

Chama a atenção a posição, a atitude de Freud como intérprete, tal como Miller assinala em seu texto “La palabra que hiere” (2009/2018). É a maneira que Freud se propõe como parceiro (partenaire) na experiência analítica. Lá onde Hilda Doolittle se evade, se esquiva, não ocupa seu lugar, Freud a faz presente presentificando-se.

E isso tem ressonâncias indeléveis. No começo de seu texto “Escrito na parede” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 26), nos conta o último contato que teve com Freud. Umas pequenas linhas que ele lhe escreveu em agradecimento por umas flores que ela lhe mandou, mas o detalhe é que ela não assinou o cartão. Freud responde: “Sem assinatura. Desconfio que você seja a responsável pelo presente. (…) Em todo caso, afetuosamente” (Ibid., p. 31). Essa correspondência a remete a essa intervenção pouco ortodoxa e aos seus efeitos; Hilda Doolittle continua a ler um aborrecimento (el enojo) na despedida, o eco do impacto daquelas palavras ressoa.

 

Tradução: Julia Buére
Revisão: Giselle Moreira

 


Referências:
FREUD, S. (1937/1980). “Análise terminável e interminável”. Ediçăo standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 23, p. 239-287.
MILLER, J.-A. (2009) “La palabra que hiere”. In: Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, año XIII, Buenos Aires: Escuela de la Orientación Lacaniana, 2018. p. 23-26.
MILLER, J.-A. Sutilezas analiticas. Buenos Aires: Paidós, 2009.
DOOLITTLE, H. (1956) Por amor a Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.

 


[1] Texto originalmente publicado na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, ano XIII, nov. 2018.



 A INTERPRETAÇÃO JACULATÓRIA[1] 

MARISA MORETTO
Psicanalista, membro da EOL/AMP
marisamoretto@fibertel.com.ar

Resumo: A autora traz nuances da discussão teórica sobre a interpretação jaculatória situando-a no limite da palavra quando já não é mais possível o desdobramento da cadeia significante e pergunta se tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toca o corpo e incide no campo do gozo. Ali, onde a palavra se apaga, estaria o impacto, o que faz ressoar outra coisa que não a significação. Para Miller, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna.

Palavras chave: Interpretação jaculatória, jaculação, ressonância, gozo.

JACULATORY INTERPRETATION

Abstract: The author brings nuances in the theoretical discussion about the jaculatory interpretation, placing it at the limit of the word, when the unfolding of the signifying chain is no longer possible, and asks if it would be an effect of meaning that, by its resonance, touches the body and it focuses on the field of enjoyment. There where the word is erased is the impact, which makes something other than the meaning resonate. For Miller, it is an interpretation that precipitates an “it is like this” ending the urge to continue seeking the eternal decipherment.

Keywords: Jaculatory interpretation, jaculate, resonance, enjoyment.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

O termo jaculatório, segundo o dicionário da RAE[2], designa uma oração breve e fervorosa. Seus sinônimos são: oração, prece, reza e invocação. Não só os cristãos a usam em suas preces. O Alcorão começa todas as suratas[3] com uma jaculatória.

Por que Lacan emprega esse termo, usado na cultura religiosa, para se referir à interpretação? Será porque a interpretação opera de maneira religiosa, ou é uma questão de fé, ou, talvez, de sugestão? É certo que também tem usos literários, aplica-se em sentido figurado a uma frase ou estribilho curto, repetitivo e sentencioso.

Entretanto, a expressão jaculatória é utilizada por Lacan não só em referência à interpretação, mas ao limite da significação, quer dizer, como cadeia rompida. Assim o li pela primeira vez em “De uma questão Preliminar a todo tratamento possível das psicoses” (LACAN, 1955-56/1998). Ali Lacan situa a opacidade nas jaculatórias do amor quando, diante da escassez do significante para chamar o objeto de seu epitalâmio[4], usa, para isso, o expediente do imaginário mais cru: “Eu te como… — chuchuzinho”. “Estás todo derretido… — gato!” (Ibidem, p. 541). Um significante que não faz cadeia expressando-se com crueza. Assim se expressam, a palavra de amor ou o insulto, diante da impossibilidade de significar de forma acabada.

Como adjetivo ele deriva do latim jaculari, que é: lançar. A jaculatória é lançada com fervor e tem entonação. Recordo, em analogia, o Homem dos Ratos quando, para insultar, expressava qualquer palavra despojada do enunciado. Desde muito pequeno, nos conta Freud, ao ser castigado por seu pai, uma ira se apodera dele e, como ainda não conhecia as más palavras, recorre então a nomes de objetos que iam lhe ocorrendo: “Eh, tu, lâmpada, lenço, prato! (FREUD, 1977, p. 208). O significante chega a um limite em que só é compreensível por sua dimensão de ato. Então, não se trata das palavras, mas do lançado. Modo que indica aquilo que não pode ser capturado pelo conceito, que não pode ser traduzido. Também em analogia em seu livro sobre o chiste, Freud se refere ao disparate, esses lançamentos que só em aparência são chistes, frequentes no balbucio infantil e também nas psicoses (FREUD, 1977, p. 148). Sem sentido, significantes que não fazem cadeia. Até aqui consideramos a jaculatória expressão que exterioriza o caráter nativo do sujeito com o significante, assim desenvolve Gorostiza em seu texto “O princípio do ininterpretável” (2014). Em seu texto “A interpretação-jaculação”, Laurent (2018) toma a aula do Seminário RSI (LACAN, 1975), de 11 de fevereiro de 1975, e faz referência ao dizer do analista: “Esse dizer do analista que põe em entredito as categorias linguísticas da enunciação e do enunciado. É a isso que Lacan pôde dar, entre outras, o nome de jaculação”. Vamos ao Seminário, Lacan situa:

“Antes de tudo se coloca a questão de saber se o efeito de sentido em seu real se sustenta no emprego das palavras — digo o emprego no sentido usual do termo — ou somente em sua jaculação. Muitas coisas, desde sempre, tem-lo feito pensar; mas deste emprego desta jaculação não se fazia a distinção. Acreditava-se que eram as palavras que as que produzem. Enquanto, se nos dermos ao trabalho de isolar a categoria do significante, vemos bem que a jaculação conserva um sentido, um sentido isolável.”

A palavra se apaga, a experiência não pode se traduzir, não obstante, o impacto está. De que sentido isolável se trata a diferença de uma palavra? Isso que lança e faz ressoar outra coisa que a significação. Quer dizer que não aponta para a continuação do desdobramento da cadeia significante. Tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toque o corpo e incida no campo do gozo?  Em “Sutilezas analíticas”, Miller dirá: “Uma análise é concebível onde uma jaculação pode retificar… o gozo, isto é, que possa ser concebido como satisfatório” (2011, p. 268).

Alguns anos depois, em “O ser e o Um” (2011), Miller não falará de jaculação senão de constatação ou delimitação a propósito da interpretação. Assinala que, tratando-se do gozo impossível de negativizar e já havendo dado várias voltas sobre as verdades mentirosas que se constroem da má maneira diante do real que não enlaça com nada, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna. Da mesma maneira que o insulto ou a palavra de amor no dizer do sujeito delimita, constata o impossível de seguir pondo em palavras, já que não há S2 que signifique adequadamente — no sentido da inadequação, do não enlace, enfim, do real —, a interpretação jaculatória delimita, constata isso mesmo, e seu efeito é um gozo que, ainda iterando e intraduzível, é satisfatório. Então — não sei bem como ocorreu a Lacan a jaculatória que tem usos religiosos —, vale a pergunta se, por acaso, essa constatação jaculatória não tem, dado seu alcance transferencial, um caráter de crença. Se se trata do que resta, de uma marca, de um fora-de-sentido, no dizer de Laurent, isso que terminou por apagar a falsa cantoria da crença no sintoma, isso é, então, uma questão de crença? Como transmitir uma constatação, como fazê-la passar de uma boa maneira, para não ficarmos sugestionados e repetirmos ferventemente HáUm![5] Cada trabalho de Escola é instrumento para tentar, um a um, não obstaculizar cada descoberta incomparável que cerniu o analisante via sua jaculatória.

No limite, então, a transmissão será compreensível em ato, um por um e a cada vez. Parafraseando Vicente Palomera, em sua conferência dada na noite preparatória das Jornadas Anuais do último três de outubro, “Estes traços são estes e não são outros os que se pôde isolar, faz-se algo com eles e isso se corporifica”.

A pergunta freudiana se renova: qual é a diferença essencial entre o analisado e o não analisado? (FREUD, 1977, p. 260). Pareceria que, naquele não analisado, tanto a palavra de amor quanto o insulto ou o disparate possuem o mesmo estofo que escutamos nos finais da experiência analítica. Entretanto, não é do mesmo modo que uma palavra de amor ou a injúria jaculam tentando cernir em ato um gozo opaco ao sentido, ou a criança que balbucia via disparate, ou o Homem dos Ratos lançando expressões ante a fúria pelo castigo paterno, que, como em alguns testemunhos de passe, o analisante isola certa marca que se corporifica de uma boa maneira, ou de maneira satisfatória, via interpretação jaculatória. Um analisado é alguém que passou pela crença no sintoma até apagar sua sede por esses sentidos que o faziam sofrer demais. A interpretação-jaculação tratará então de deixar “… o analisante ter confiança no sinthoma que ele inventou, enquanto puder” (GUÉGUEN, 2012). Constatação, então. Ou, melhor dizendo, “desembrulhar-se, mas sem tomar a coisa em conceito” (LACAN, 1977).

 

Tradução: Tereza Facury
Revisão: Beatriz Espírito Santo 

 


Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1909) “A propósito de um caso de neurose obsessiva”. In: Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. X, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD, S. (1905) “O chiste e sua relação com o inconsciente”. In: Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. VIII, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD, S. (1937) “Análise terminável e interminável”. In: Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXIII, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
GOROSTIZA, L. “El principio de lo interpretable”. In: Resonancias, Revista de Psicoanálisis del Nuevo Cuyo N°1, Grama ediciones, Buenos Aires, 2014.
GUÉGUEN, P-G. “La interpretación lacaniana”. In: Revista Psicoanalítica publicada em Barcelona sob os auspícios de La Escuela Lacaniana de Psicoanálisis. n. 64. Distribui: RBA Libros, S.A, 2012.
LACAN, J. (1955-1956) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 541.
LACAN, J. (1974-1975) O Seminário, livro 22: R.S.I. Aula de 11 de fevereiro de 1975. Inédito.
LACAN, J. (1976-1977) Seminário 24, aula de 11 de janeiro de 1977. Inédito.
LAURENT, E. “La interpretación-jaculación”. 2018. Disponível em: <https://psicoanalisislacaniano.com/la-interpretacio-jaculacion>. Acesso em: 24/05/2021.
MILLER, J-A. (2011) Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós. 2011.
MILLER, J-A. (2010-2011) “El ser y el Uno”. Aula de 11 de maio de 2011. Inédito.

[1] Texto originalmente publicado em: Somos todos religiosos? GOROSTIZA, L. [et al.]. Compilado por Ruth Gorenberg; Claudia Lazaro, 1ª ed.  Olivos: Grama Ediciones, 2020.
[2] Dicionário da Real Academia Espanhola. Disponível em: https://dle.rae.es/ (Nota do tradutor).
[3] N.T.: Sura, surata ou surat é o nome dado a cada capítulo do Alcorão.
[4] N.T.: Epitalâmio (do grego epithalámion – epi, sobre + thalamium, o tálamo, ou quarto nupcial) é um cântico nupcial de natureza religiosa, destinado a reivindicar para os noivos a bênção dos deuses, em especial de Himeneu, a divindade protetora dos enlaces matrimoniais.
[5] No texto original em espanhol: ¡Haiuno!



O QUE FAZ UM, MARCA[1][2]

Paula Husni
Membro da Escuela de Orientación Lacaniana EOl/AMP |
paulahus@gmail.com

Resumo: A autora faz referência ao encontro de Lilia Mahjoub-Trobas com Lacan e os efeitos de uma intervenção do analista que toca o corpo, ressoa e faz eco perturbando as defesas e inserindo um menos. Com seu corpo, o analista inscreve uma hiância ao se prestar a representar o não simbolizável do gozo. O analista advém no lugar do trauma ao provocar um vazio, o Um a menos que instaura a presença da falha da não relação sexual.

Palavras-chave: corpo, analista traumático, Um a menos, gozo.

What does one, signs

ABSTRACT: The author makes reference to the encounter between Lilia Mahjoub-Trobas and Lacan and the effects of an intervention by the analyst that touches the body, resonates and echoes, disturbing defenses and inserting a minus. With his body, the analyst inscribes a gap, as he lends himself to representing the non-symbolizable of jouissance. The analyst takes the place of trauma by provoking an emptiness, the One less he introduces the presence of the failure of the non-sexual relationship.

Keywords: body, traumatic analyst, One less, jouissance.

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

“Nada gera mais velocidade que aquilo que detém”
(MILLER, 1998, tradução nossa)

 

Em uma pequena nota, anterior ao começo do seminário “Los signos del goce” (MILLER, 1998), encontramos um esclarecimento a respeito dos diversos equívocos possíveis em torno do título desse seminário em francês — Ce qui fait insigne. Recorri a esse ponto para o título do meu comentário incluindo uma maiúscula ao Um.

É nesse mesmo seminário que Jacques-Alain Miller assinala que, diferente do hábito que indica sempre o mesmo, o que faz insígnia é o que faz que um não caminhe do parecido ao mesmo e abre o encontro com o que manca.

Penso que a intervenção escolhida do caso de Lilia Mahjoub-Trobas segue essa lógica apresentando um “encontro que pôs fim a uma série” (1995. p. 31) e produzindo um tropeço nesse caminho que ia do parecido ao mesmo. Efetivamente, prévio ao seu encontro com Lacan, relata oito tentativas malsucedidas, que não vão além da primeira entrevista ou de uma ligação telefônica. Todos sob um denominador comum: ninguém a cobra.

O que é que faz, do encontro com Lacan, Um que não faz série senão que a detém, descompletando-a?

Tomarei a intervenção a partir de seus efeitos: existe a experiência de um vazio que descompleta uma série e que persiste depois de ter deixado o analista. Isso verifica que o corpo foi tocado e que isso ressoa e faz eco; presença que perturba, que transtorna.

Proponho pensar que o que permite a operação de esvaziamento é a intervenção do analista no corpo representando o não simbolizável do gozo. É o vazio que instaura essa presença, o que retroativamente marca o Um a menos.

Lacan, no Seminário, livro 19: … ou pior (1971-72/2012), distingue o Um da série, da repetição, do Um que é marcado como tal a partir da inscrição de um vazio.

O Um que se repete faz série, contabiliza, mantém o corpo adormecido em um devir sincopado. A rasteira que subtrai interrompendo a contagem faz tropeçar e transtorna o corpo.

Nesse mesmo Seminário, estabelece que “o primeiro passo da experiência analítica é introduzir nela o Um, como o analista que se é” (LACAN, 1971-72/2012, p. 123).

E acrescenta: “Quando alguém me procura no meu consultório pela primeira vez (…) o importante é a confrontação de corpos. É justamente por isso partir desse encontro de corpos que este não entra mais em questão, a partir do momento em que entramos no discurso analítico” (LACAN, 1971-72/2012, p. 220).

Esse movimento se vislumbra muito bem em uma parábola do caso em três movimentos precisos:

“Não fez comentários quando lhe disse o que havia acontecido com aqueles a quem havia encontrado antes dele. Mas não manifestou nenhuma indiferença. Chegou um pouco mais perto — estava realmente muito perto” (MAHJOUB-TROBAS, 1995, p. 35, tradução nossa), afirma Lilia.

A mão é estendida junto com as frases: “Você me dará algo” e, depois, “Dê-me o que tem”.

No final do relato, situa-se bem esse ponto em que o corpo pode ser subtraído: “Vim ontem, mas você não pôde me receber, estava de cama. Como! — me disse —, claro que eu podia recebê-la!” (MAHJOUB-TROBAS, 1995, p. 35, tradução nossa).

Irei me deter no segundo tempo. Aquele que, junto com essa mão, desse corpo, instaura uma diferença com o resto da série, subtrai em ato, subtração no real. O que faz furo no saco para que haja Um (LACAN, 1971-72/2012).

“Você me dará algo” marca o instante que funda a inscrição de uma cessão de gozo. “Dê-me o que tem” é, por outro lado, uma frase que se presta ao equívoco. Para dar o que não se tem a quem não o é (LACAN, 1960-61/2010) é preciso, primeiro, instaurar uma hiância que produza um menos.

O sentido fica do lado do analisante, está claro. O analista dá um corpo a esse significante que o representa (LACAN, 2011).

A intervenção pode muito bem ser lida sob as coordenadas do analista traumático. Um analista que reduplica o efeito traumático da imersão do sujeito na linguagem já que “comporta, em seu centro, uma não-relação. (…) o analista ocupa o lugar da perda essencial do objeto. (…) ele consegue estar, ele próprio, no lugar do trauma” (LAURENT, 2004, p. 26).

O caso ilustra que, para que o analista advenha no lugar do trauma que descompleta o simbólico, deve se produzir uma hiância trazendo aquilo que não é do mesmo nível que a palavra: o corpo. Com seu ato, faz existir o que não existe (MILLER, 2003, p. 42) para fazer da falha estrutural da não-relação sexual um vazio que permita instalar a transferência a partir do Um a menos.

 

Tradução: Renata Mendonça
Revisão: Julia Buére

 


Referências Bibliográficas
LACAN, J. (1960-61) O Seminário, livro 8: a Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
LACAN, J. (1971-72) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LACAN, J. (1971-72) Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte Anne. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
LAURENT, E. “O trauma ao avesso”. InPapéis de Psicanálise, Belo Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, n. 1, v. 1, 2004, p. 21-28.
MAHJOUB-TROBAS, L. “El encontro com el Outro em la serie de los analistas”. In¿Conoce usted Lacan? Barcelona: Paidós, 1995.
MILLER, J-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J-A. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998.

[1]Texto originalmente publicado na Revista Lacaniana, n. 25, ano XIII, nov. 2018.
[2] Em português  se perde o uso deste equívoco homofônico, possível em espanhol, entre Insigne e Lo que hace Un, signa  do qual a autora se vale no título.



A INTERPRETAÇÃO LACANIANA: MEIO-DIZER, POESIA, ESTILO[1] 

JORGE ASSEF
Psicanalista, membro da EOL/AMP |
jorgepabloassef@hotmail.com

RESUMO: O autor recorre a uma citação de Éric Laurent referente a um episódio do início de sua análise com Lacan e, a partir desse exemplo, aborda as três vertentes do meio-dizer implicadas na estrutura da interpretação tal como propostas por Lacan: o equívoco, o enigma e os efeitos de estilo.

PALAVRAS-CHAVE: Interpretação, meio-dizer, enigma, citação, efeitos de estilo.

LACANIAN INTERPRETATION: HALF-SAYING, POETRY, STYLE

ABSTRACT: The author uses an Éric Laurent’ quote in which he refers to an episode from the beginning of his analysis with Lacan and, through this example, he addresses the three aspects of the half-saying proposed by Lacan: the misunderstanding, the enigma, and the effects of style.

KEY WORDS: Interpretation, half-saying; enigma, citation, style effects.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

“Nas entrevistas preliminares, apresentei a Lacan toda uma confusão de coisas pedindo, acima de tudo, para que não me aceitasse em análise, porque eu estava muito extraviado, era muito jovem e muito privilegiado em comparação com outros que não podiam demandar análise. Lacan concluiu essas entrevistas garantindo que a idade era perfeita para começar uma análise, meu extravio também, e que, quanto ao privilégio, eu não tinha nenhuma ideia do que dizia.

E ele disse uma frase cuja harmonia ainda ressoa e cujos múltiplos sentidos foram pouco a pouco se esclarecendo. Hoje transcrevo essa frase assim: todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que é a sua própria vida. Para isso não é necessário fazer uma análise. O que a análise realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A contração do tempo — que permite o conto — produz efeitos de estilo. A psicanálise te permitirá descobrir efeitos de estilo que podem resultar interessantes” (LAURENT, 1995, p. 37, tradução nossa).

 

As vertentes do meio-dizer

No Seminário 17, Lacan apresenta a estrutura da interpretação como um saber enquanto verdade e que, como tal, não pode mais que meio-dizer. Dessa forma, propõe duas vertentes desse meio-dizer: o enigma e a citação:

“Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso do psicanalisante, e que você, o intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo (…). Citação, por outro lado, tomada, às vezes tirada do mesmo texto, tal como foi enunciado. Que é aquele que pode ser considerado uma confissão, desde que o ajuntem a todo o contexto. Mas estão recorrendo, então, àquele que é seu autor” (LACAN, 1969-70/1992, p. 38).

Lacan também adverte que a estrutura do meio-dizer está na figura do oráculo, o qual “não revela nem oculta: (…) ele faz signo” (LACAN, 2003, p. 555).

Desde “O aturdito” em diante, o meio-dizer toca no equívoco:

“É unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. (…) Esse dizer, para que ressoe, para que consoe, outra palavra do sinthoma masdaquino, é preciso que o corpo lhe seja sensível” (LACAN, 1975-76/2007, p. 18).

Nessa última vertente da interpretação como meio-dizer, além do corpo, Lacan remete à função do escrito, dado que a interpretação que sabe jogar com o equívoco apela ao escrito na palavra e ao uso de lalíngua (LAURENT, 2016).

Em 1967, Éric Laurent consulta Jacques Lacan e a primeira intervenção de que Laurent se recorda nos permite localizar as três vertentes do meio-dizer que comentamos. Em primeiro lugar, encontramos uma das formas mais simples do equívoco, quando Lacan transforma as razões que o analisante supõe como contraindicações para seu tratamento (o extravio e a juventude) em condições ideais para começar uma análise. Em segundo lugar, aparece a citação quando Lacan retoma as palavras do analisante “demasiado privilegiado” agregando “você não tem nenhuma ideia do que diz com isso”, o que provoca um enigma. Por último, a intervenção adquire um tom oracular quando Lacan anuncia ao analisante que, com a psicanálise, descobrirá “efeitos de estilo”.

 

Convocar o estilo pela via da poesia

Quando Laurent retorna àquela primeira sessão com Lacan, afirma que a psicanálise é uma experiência narrativa (o que implica a escrita), localiza as condições do romance e do conto destacando a contração do tempo, mas principalmente para lembrar que, em 1977, Lacan precisou que os recursos do analista provêm da poesia:

“se o analista é poeta, o sujeito pode se converter nesse personagem essencial que é o vazio que circula pelo poema. A sessão breve, que prefiro qualificar de contraída, tem esse horizonte: fazer do sujeito o vazio do haiku[2] de sua enunciação” (LAURENT, 1995, p. 37, tradução nossa).

Em uma antiga conferência, J. A. Miller enumerava rapidamente as distintas faces da interpretação lacaniana — “fazer ressoar, fazer alusão, sobre-entender, fazer silêncio, fazer de oráculo, citar, fazer enigma, meio-dizer, revelar” — para explicar que é o inconsciente mesmo quem faz essa tarefa como ninguém e, portanto, a interpretação analítica deveria oferecer outro horizonte. Miller o designa assim: “revelar uma opacidade irredutível na relação do sujeito com lalíngua” (MILLER, 1996 apud ASSEF).

O que Laurent retoma da primeira interpretação de sua análise, quando Lacan lhe diz “a contração do tempo que o conto permite produz efeitos de estilo”, e a maneira como essas palavras o remetem à poesia e ao vazio, nos mostra que, já nesse momento, Lacan tinha como meta reduzir o sentido do romance até chegar em uma opacidade irredutível, porque, uma vez que o sujeito se encontra com essa opacidade, resta-lhe apenas uma saída: o que cada um pode inventar, também graças à análise.

Laurent destaca uma citação do Seminário 22 em que Lacan localiza um efeito de sentido real provocado pela interpretação: “(…) o que, no Seminário 22, designando um efeito de sentido real, é chamado de jaculação, torna-se, no Seminário 24, o significante novo” (LAURENT, 2018, p. 61). A propósito, Miller explica: “Quando se apela a um significante novo, trata-se, de fato, de um significante que poderia ter um outro uso” (MILLER, 2007/2014). Por essa via, estaria em jogo justamente a noção de estilo a qual Lacan apela na primeira entrevista de Éric Laurent.

Um ano antes daquele encontro, Lacan havia publicado uma nova edição dos seus Escritos e, no texto introdutório, escreveu “O estilo é o homem” e logo esclareceu: “Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si” (LACAN, 1966/1998, p. 11). Efetivamente, é disso que se trata!

 

Tradução: Giselle Moreira
Revisão: Tereza Facury

Referências
LACAN, J. (1966) “Abertura desta coletânea”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1969 – 1970) O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. (1975 – 1976) O Seminário, Livro 23o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 18.
LACAN, J. “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”. InOutros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 555.
LAURENT, É. “Cuatro observaciones acerca de la inquietude científica de Jacques Lacan”. In: Conoce usted a Lacan? Paidós, Barcelona, 1995.
LAURENT, É. “O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo”. InOpção Lacaniana. São Paulo, n. 13, 2016.
LAURENT, É. (2018) “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. InOpção Lacaniana, São Paulo. Tradução: Sergio Laia, Revisão: Vera Avellar Ribeiro, São Paulo, n. 79, julho/2018.
MILLER, J. A., “Entonces Sssh…”. In: Uno por Uno, Revista mundial de Psicoanálisis, Eolia, Barcelona, 1996. p. 8-12.
MILLER, J. A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014, p.145.

[1] Texto originalmente publicado na Revista Lacaniana, n. 25, ano XIII, nov. 2018.
[2]Haiku. Breve composição poética, de origem japonesa (também chamada hokku, haikai ou haicai) que se funda nas relações profundas entre homem e natureza e obedece à estrutura formal de 17 sílabas ou fonemas, distribuídos em 3 versos. Acessado em 30/06/2021: https://edtl.fcsh.unl.pt



ALMANAQUE ENTREVISTA JACYNTHO LINS BRANDÃO

 


Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, Jacyntho Lins Brandão lecionou língua e literatura grega de 1977 a 2018, foi diretor da Faculdade de Letras por duas vezes e vice-reitor da Universidade. Foi também professor visitante na Universidade de Aveiro, em Portugal, na Universidad Nacional del Sur, na Argentina e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. Atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Ouro Preto e membro da Academia Mineira de Letras.

Almanaque: Para todos nós que amamos textos, letras, escritos, seu trabalho é uma referência. De certa maneira, nós psicanalistas também trabalhamos com textos antigos, de certa forma bastante arcaicos: precisamos ler — ou mesmo decifrar —, no texto que escutamos do que nossos analisantes nos dizem, camadas de texto recobertas por outras camadas. Precisamos interpretar. Mas que diabos é isso? No Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, temos estudado o tema da interpretação ou as diferentes modalidades de intepretação: entre o sentido (ou uma determinada concepção de sentido) e o fora-de-sentido (idem). Assim, para começo de conversa e de maneira bem geral, dizendo a primeira coisa que lhe ocorrer, o que os textos antigos nos ensinam sobre a ciência e a arte da interpretação? E o que as poéticas e as retóricas antigas nos ensinam hoje sobre o vasto domínio da interpretação? 

JACYNTHO BRANDÃO: O que me ocorre logo, a partir de sua provocação, é que o que os textos antigos nos ensinam sobre a “ciência e arte da interpretação” é a dificuldade. Pelo simples fato de serem antigos, mas de um modo mais agudo ainda quando se trata de nossos antigos, como são os gregos. Sempre lembro para meus alunos que, tendo-nos acostumado já com a ideia de alteridade, costumamos pensá-la só numa dimensão espacial, sincrônica, esquecendo-nos de que os antigos são também nossos outros. Se o outro sempre representa uma dificuldade, o outro que é nosso impõe dificuldades maiores.

Vou dar um exemplo prático: quando estive como professor visitante em Portugal (na Universidade de Aveiro), a primeira coisa que perguntei a um colega, logo que cheguei, foi como é que o professor se dirigia aos alunos, com qual pronome, uma dúvida que eu não teria caso estivesse num país de língua estrangeira. Fiquei logo sabendo que o tratamento normal era “você”, mas não por algum tipo de igualitarismo, como no Brasil, mas porque essa é a forma de alguém mais importante dirigir-se a alguém menos importante, o que significa que um aluno jamais diria “você” a um professor — aliás, o torneio para eles é “o professor-doutor”. Entre o reles você e as formas de tratamento solenes, há outras gradações: se formos colegas, mas não tão íntimos para usar “tu”, um modo intermediário é usar o nome daquele com quem se fala — como numa vez em que cheguei a Coimbra e minha colega de lá perguntou-me: “o Jacyntho fez boa viagem”?. Então, é a mesma língua, mas não inteiramente própria, algo como minha língua outra. Manusear essa língua sem impropriedade ou ridículo acaba sendo mais difícil do que falar uma língua estrangeira, que sempre se fala como outro, tanto que minha solução foi dizer a meus alunos, no primeiro dia de aula, “vou falar brasileiro”, o que, reconheço, era um modo de me resguardar de minha falência em falar “português” assumindo minha alteridade mesmo no espaço de minha língua materna, restando então perguntar sobre o que seria “materno” no âmbito da língua (de um modo meramente lúdico, me ocorre que talvez o “português” seja meu idioma paterno, ao “brasileiro” cabendo a parte materna, a relação entre os dois sendo como disse Caetano Veloso: “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões” etc.).

Acho que são esses afastamentos que as diferenças entre outro e outro provocam que geram as dificuldades que geram a necessidade ou o desejo de interpretação. Eu não quero dizer diferença entre eu e o outro, porque, dependendo das ideologias, um dos dois seria tomado como referência, mas sublinhar esse “outro e outro” que deixa as coisas um tanto mais complicadas — “outro e outro” sendo como se diz em grego o que nós dizemos em português “um e outro”: állos kaì állos ou, como mais ênfase na diferença, héteros kaì héteros. Acho que não seria absurdo pensar que todo texto é uma alologia, enquanto é do outro, ou uma heterologia, porque do diferente. E por isso que todo texto é sempre difícil.

Chegando à última parte de sua pergunta: eu gosto do esforço de discernimento sobre os modos de ler um texto feito por Tzvetan Todorov no capítulo “Ler”, do livro Poética da prosa. Na ordem em que ele os apresenta (vou deixar de lado o último), o primeiro modo é constituído pela “leitura regressiva”, que se interessa pelo que há antes do texto, o autor, sua época etc., acreditando que nisso estaria uma chave para a compreensão. O segundo modo é o “comentário”, que se volta inteiramente para os elementos do próprio texto, com escrúpulo de introduzir nele algo estranho, até o limite das leituras parafrásticas. O terceiro modo é a “leitura poética”, que busca a compreensão do texto tendo em vista as categorias a que ele pertence, como os gêneros e modos, tecendo, portanto, uma leitura entre texto e teoria. O quarto modo é a “interpretação”, que produz um outro texto como resultado do encontro entre texto e leitor (ou ouvinte, pois uso “leitor” no sentido de recebedor, “texto” abrangendo tanto textos orais quanto escritos). Mesmo que Todorov chame de interpretação apenas um dos modos que apresenta, eu acredito que todos devem ser mobilizados na interpretação em sentido amplo, ou seja, estou querendo dizer que ler é sempre interpretar, porque ler implica sempre a relação texto-leitor que produz um novo texto. Os outros níveis, contudo, são importantes para controlar essa produção, que não pode se entregar ao aleatório, gerando interpretações equivocadas.

Maria Luiza Ramos contava um caso curioso a propósito do poema de Manuel Bandeira que começa assim “Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável)/ talvez eu tenha medo. / Talvez sorria, ou diga: / – Alô iniludível!”, dando o poema em aula e pedindo que os alunos interpretassem, um deles afirmou que a “Indesejada das gentes” era a sogra! É claro que, tendo em vista o poema, se trata de uma interpretação equivocada, que leva de “morte” a “sogra”, embora essa própria interpretação possa ser interpretada justamente no que tem de desviante — e estaria perfeita, por exemplo, num contexto cômico ou satírico, mas, na situação em que se deu a professora que ensina como interpretar, auxiliada pela teoria, apontaria um desvio de gênero, porque não se trata de comédia, etc.

Nós poderíamos pensar que o que pretendem as poéticas e retóricas antigas é tentar entender a produção do texto não propriamente para codificá-la, mas para exercer algum tipo de controle sobre sua recepção. Nesse sentido, a definição de tragédia por Aristóteles é modelar: depois de falar sobre com que ela se realiza (com palavras, música e espetáculo), o que encena (histórias elevadas) e como (através de atores), a definição atinge o ponto mais importante ao declarar que o efeito da tragédia, pela produção de medo e piedade, é a purificação (catarse) dessas emoções. Não basta, portanto, identificar os elementos próprios do gênero, seu efeito sendo o que faz com que seja isso ou aquilo. Esse modelo de definição poderia ser aplicado a outros gêneros — e o ponto de chegada, interessante para exercícios de elucubração de nossa parte, seria relativo aos efeitos: qual o da comédia? qual o da épica? qual o do romance? qual o das novelas da Globo? qual o das séries de detetive da Netflix? A codificação de que a tragédia deve produzir a catarse de medo e piedade tem um efeito explicativo, sem dúvida, mas também um efeito prescritivo em termos da recepção ao afirmar que o efeito da tragédia não pode ser o riso, ou a catarse de emoções através do riso, talvez porque medo e piedade implicam empatia, enquanto, para rir, é preciso distanciamento. São os efeitos descontrolados que atormentavam Platão a ponto de, mesmo admitindo que os poemas são belos e os poetas homens admiráveis, em especial Homero, não admitir sua presença na sua República.

A retórica também se elabora da perspectiva da produção-recepção, com um agravante com relação à poética: ainda conforme Aristóteles, nas suas duas modalidades políticas, a retórica da assembleia e a do tribunal, o efeito visado é o voto, decidido pelos membros da assembleia ou do júri a partir dos discursos que ouvem, ou seja, da interpretação do que lhes parece mais verossímil. Esse é um exercício de interpretação bastante radical, em vista do pouco tempo para firmá-la e de seu caráter irrevogável, ainda conforme Aristóteles, sendo por isso que ele afirma que os juízes erram muito (na Atenas democrática, os juízes eram os membros do júri, não havendo juiz profissional).

Então, modalizando esse conceito de “erro” de interpretação a que estamos sujeitos o tempo todo, é bom lembrar que errar é vagar e que erro é também errância, essa errância parecendo ser algo inerente aos discursos, na distância entre quem fala e quem ouve ou entre quem escreve e quem lê. É por errar sobre as novelas de cavalaria que D. Quixote se torna cavaleiro errante: e que erro genial! Todo leitor/recebedor é um tanto errante, talvez porque todo texto induza a isso. Por isso toda interpretação é difícil. Talvez isso decorra de uma pretensão de controlar os erros.

A.: Em seu percurso, você foi da Grécia à Mesopotâmia. O que esses deslocamentos, cada vez mais ao leste, cada vez mais para fora da Europa, nos ensinam?

J.L.B. Acho que essa pergunta me permite emendar a resposta com o que eu dizia antes sobre a errância. Eu já falei de quando estudei hebraico (e fui colega de seu pai). Meu interesse era muito linguístico — ter contato com uma língua que não fosse indo-europeia, o curso sendo de hebraico moderno — mas havia também um interesse cultural, que era menos chegar na Bíblia hebraica e mais nos comentários rabínicos, que praticam uma forma de texto diferente, em que a errância funciona como um elemento estruturante. Vou dar um exemplo tomado do tratado Bereshit Rabah: sobre a árvore do paraíso, a partir da pergunta “qual foi essa árvore da qual Adão e Eva comeram?”, segue a sucessão de pareceres: Rabi Meir disse: era trigo…; Rabi Samuel ben Isaac compareceu diante de Rabi Zeira e perguntou: é possível que ela seja trigo?… pois está escrito ‘árvore’; Rabi Zeira explicou: plantas de trigo cresciam algo como cedros do Líbano…; Rabi Judah ben Ilai disse: eram uvas…; Rabi Aba de Acco disse: era cidra…; Rabi José disse: eram figos…; mas de qual espécie de figueira? Rabi Abin disse: era a berath sheva…; Rabi Josua de Siknin disse em nome de Rabi Levi: era a berath ali…; Rabi Azariah e Rabi Judah ben Simon disseram, em nome de Rabi Joshua ben Levi: Deus nos livre, o Único-Santo-Abençoado-Seja-Ele não expôs ao homem a natureza dessa árvore e não a exporá no futuro. E assim termina a passagem. Para cada uma das interpretações há uma explicação (que deixei de lado), todas usando o método hermenêutico de confrontar o texto com o próprio texto, isto é, explicar uma passagem com outra da própria Bíblia. Mas o que quero ilustrar é como o acúmulo de opiniões configura uma sintaxe errante, nesse caso chegando ao gran finale de que Deus não revelou a natureza da árvore nem a revelará no futuro, o que faz parecer que toda elucubração anterior era vã, mas a prova de que não era está em que se conserva como um conjunto de interpretações tão valiosas quanto a última.

Eu diria que meu caminho para o Oriente, que é uma errância, foi preparado pelos gregos, que, da Antiguidade até hoje, sempre foram e são muito orientais, as descobertas dos textos cuneiformes do Oriente Médio escancarando isso e derrubando aquela ideia do “milagre grego” brotado do nada. O que me atrai na história das culturas são a contaminações, os processos de troca mútua e seus resultados, então, para mim, é muito mais atraente uma visão dos gregos não como uma espécie de princípio inaugural (e puro) de algo (o Ocidente), mas como parte de todo tipo de contatos e confluções no espaço do Mediterrâneo oriental. Mais interessante isso se torna porque, ainda que redescobertas no século 20, os próprios gregos nunca se furtaram a referir suas relações com o Oriente: conforme Heródoto, foram os fenícios que inventaram o alfabeto, Tales aprendeu geometria no Egito, onde também Pitágoras foi iniciado nos mistérios etc. — ao que se pode acrescentar que, segundo Luciano, o próprio Homero não seria grego, mas babilônio, não se chamando Homero, mas Tigranes, e tendo recebido aquele nome só depois de ter sido tomado como refém pelos gregos, pois em grego ‘refém’ se diz hómeros. Mesmo que essa explicação, dada pelo próprio Homero, esteja num texto ficcional (mais exatamente um texto de autoficção), não deixa de ser sugestiva enquanto faz do fundamento da Grécia (de seu educador, como afirmava Platão) nada menos que um bárbaro e, mais ainda, conhecido não por seu nome próprio, mas por um apelido que, na verdade, era só um nome comum. Veja-se quanta errância!

O trato mais íntimo com a literatura babilônica só iniciei há pouco tempo, faz uns dez anos, implicando estudar a língua acádia, que é da mesma família que o hebraico (e o aramaico e o árabe), para traduzir o poema de Gilgámesh, fazer traduções sendo também um investimento a que eu tinha me dedicado pouco até então. Fazer essa tradução foi uma experiência de alteridade muito intensa, pois eu não queria domesticar a diferença que um texto assim apresenta, enquanto antigo e enquanto “oriental”. Quando o cuneiforme foi decifrado e se começou a conhecer a produção em acádio, a tendência foi classificar os textos em categorias reconhecidas na nossa experiência. Assim, Gilgámesh foi identificado com Nemrod, personagem referido do Gênesis bíblico, e o poema sobre ele foi classificado como epopeia, que é um gênero grego. Gregos e hebreus serviram de critério para a recepção dessa literatura muito mais antiga que ambos, nesse processo de classificação por retrospectiva, que constitui ao fim e ao cabo uma tentativa de controle da recepção. O poema intitulado Enuma elish, para falar de um outro exemplo, recebeu o título de Relato caldeu de Gênesis, que já de início o relaciona com o livro bíblico, embora seja, em sua maior parte, uma teogonia, mais próxima de Hesíodo que da Bíblia.

Não quero dizer que essas aproximações não sejam legítimas e se façam até naturalmente, só desejo sublinhar que uma recepção que se pretende mais cuidada deve ter consciência delas ao aproximar-se do diferente, para não reduzir tudo à mesmice do mesmo. Como a tradução implica fazer justamente a passagem de uma língua outra à língua própria, a cada passo impõe a questão de como não domesticar inteiramente o outro. Vou dar um exemplo: há no poema de Gilgámesh uma expressão difícil de verter, ana dūr dār, porque dūru significa ‘para sempre’ e dāru ‘eternidade’, havendo aí um jogo iterativo, algo como ‘pela eternidade de para sempre’, sublinhado também pela aliteração sonora (ana é a preposição). A solução dos tradutores vai de “for all eternity” (Andrew George), que dá conta do sentido, mas perde o estilo, a “por los siglos de los siglos” (Joaquín Sanmartín), que preserva o estilo, mas lança mão de um lugar comum excessivamente marcado (a alguém que diz ‘pelos séculos dos séculos’ só falta acrescentar ‘amém’!). Demorei um tanto a achar minha solução, que no final me agradou bastante em sua simplicidade: “de era em era”, tanto porque mantém o estilo quanto porque usa termos neutros e respeita uma concepção diferente de organização do tempo, uma organização por eras, como usavam os babilônios, as principais sendo a era antediluviana e a pós-diluviana.

Eu gostaria de que o acesso a essa produção médio-oriental, sobre a qual o fato de ser mais antiga que a de hebreus e gregos lança naturalmente um ar de respeitabilidade, representasse uma experiência forte para o leitor, experiência de contato com a diferença provocando mudanças de percepção do mundo. Basta lembrar que essa produção admirável esteve por séculos enterrada nos desertos do Iraque, que é lá que ela foi escrita, naquele lugar que o Ocidente olha com desprezo. Há um poeta iraquiano contemporâneo, Khalid Al-Maaly, que põe em xeque essa mentalidade ao intitular seu livro Eu sou da terra de Gilgámesh (o livro foi traduzido do árabe para o português por Mamede Jarouche). Isso é importante para evitar que se idealize esse Oriente descolando-o de onde ele se encontra e continua, como em geral aquela Grécia fundadora do Ocidente terminou por ser algo fortemente idealizado, saqueado dos próprios gregos, como se eles não se encontrassem e continuassem lá.

A.: Recentemente, em 2018, você escreveu um belíssimo artigo sobre uma citação e um lugar comum de Lacan (agalma e sicut palea). Mas tenho aqui, diante de mim, um livro que você organizou em 1984, intitulado O enigma em Édipo Rei, que foi o tema do I Congresso Nacional de Estudos Clássicos. Você lembra que Édipo Rei continua sendo “inspiração e ponto de partida para a arte e a ciência” e lembra a equivalência freudiana entre o Oedipouskomplex (complexo de Édipo) e o Kernkomplex (complexo nuclear) afirmando, com Freud, que o “Édipo é o nosso cerne”. Não sem nos lembrar de nosso dilaceramento, da dimensão do enigma e, um pouco depois, da polifonia… Fala-se muito, desde algumas décadas, da necessidade de ir além do Édipo. Em que ponto estamos? Fomos além? Se você me permite lembrar uma expressão que aprendi em um de seus cursos, somos, realmente, “pós-antigos”? Por outro lado, que papel a psicanálise tem ou teve, se é que teve, no seu percurso?

J.L.B.: Essa pergunta tem tantos aspectos que nem sei se consigo respondê-la. Então vou tomar o que me parece o fio que os amarra, que é essa perspectiva da temporalidade e da transmissão da cultura. Acho que isso está inscrito tanto no uso de “ágalma” e “sicut palea”, por Lacan, quanto no uso de Édipo por Freud, algo que se retoma e se ressignifica, a cultura sendo esse procedimento constante de ressignificação. Enquanto está viva isso acontece, de modo que cada etapa tem seu pré e seu pós. Nesse sentido, torcendo um pouco sua pergunta, poderíamos dizer que a psicanálise é muito pós-antiga. Estou querendo dizer com isso que é claro que a descoberta do inconsciente é um salto espetacular, que muda nossa percepção de mundo, mas também que ela resulta de uma acumulação de experiências e conhecimentos, que é o antigo desse pós.

Eu conheço pouco de psicanálise, embora ser professor de grego me tenha permitido conviver com psicanalistas, e eu gosto especialmente de tratar de assuntos encomendados, pois sempre comportam um desafio, mas sempre tive o cuidado de ficar na esfera de minha competência. Nisso, aprendi como é diferente falar das coisas em lugares diferentes, pois os diálogos que isso gera são diferenciados. É claro que há textos de Freud que são obrigatórios para um helenista, como o primeiro, sobre a interpretação de sonhos, em que Édipo aparece, de par com Hamlet. Gosto muito de “O tema dos três escrínios”, da análise da Gradiva de Jensen, para lembrar de alguns textos. Mas não me aventuro nos trabalhos mais especializados, interessando-me mais pelo “Freud pensador da cultura”, como no título do livro do Renato Mezan.

A.: Finalmente, o que Jacyntho leitor (filólogo, helenista, paleógrafo) ensinou a Jacyntho escritor (ficcional) sobre a verdade e a ficção? 

J.L.B.: Essa é uma questão de longa duração que nos vem dos gregos. As Musas, que são deusas e que, segundo uma concepção ingênua, deviam falar sempre a verdade, começam o poema que ensinaram a Hesíodo sobre a origem dos deuses (a Teogonia) com a afirmativa de que “sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autênticas/ e sabemos, quando queremos, proferir verdades”. Esse é um ponto de partida perturbador: deusas que sabem mentir e só em alguns momentos dizem verdades — mas os deuses gregos sabem fazer isso. Acho que isso mostra como a verdade sempre se apresentou, entre os gregos, como problema, o único indício a respeito dela sendo a verossimilhança, que é o que as Musas dizem que fazem normalmente, porque não está na esfera delas a simples mentira, mas essa mentira semelhante a coisas autênticas (pseúdea etymoisin homoîa). É por isso que é preciso sempre testar os discursos, porque não se conta com algo externo — um deus ou um rei — que avalize a verdade do discurso. Na filosofia, na história, na retórica esse foi um motor constante: testar o lógos para problematizar as verdades aparentes, muitas vezes jogando lógos contra lógos, como na assembleia e no tribunal.

Esses discursos sobre discursos (filosofia, história, retórica) têm como horizonte a poesia, que era o que havia antes de todos, distinguindo-se dela porque postulam certos modos de verdade. Luciano de Samósata, que é o autor que foi assunto de meu doutorado, tem uma perspectiva interessante. Segundo ele, antes de tudo, um escritor (se quisermos, um intelectual) deve ser amigo da verdade, autônomo, sem pátria, sem rei, pois de outro modo não gozaria de liberdade intelectual; mas quem goza de “liberdade pura” é só poeta, pois a liberdade do historiador tem seu limite nos acontecimentos que ele narra, a liberdade do retórico tem seu limite nas situações em que ele profere seus discursos, e a liberdade do filósofo tem seu limite na concordância do que ele diz e do que ele faz. Então, só poetas, pintores e sonhos gozam de liberdade pura, essa expressão remetendo ao vinho que os bárbaros tomavam puro, mas os gregos costumavam tomar misturado (ou temperado) com água. Filósofos, historiadores e rétores tem, portanto, uma liberdade temperada; poetas, como pintores e sonhos, a pura liberdade, a qual, por ser pura, faz supor que seu discurso seja mais inebriante que os outros.

O ficcionista faz isso. Convida o leitor (ou ouvinte) para mergulhar num lógos que ele conduz baseado no que chamamos de verossímil, mas os gregos chamavam de eikós, semelhante, adequado, conveniente — o que faz com que a “verossimilhança” (para usar o nosso termo) dependa não exatamente de um verdadeiro a que ela se assemelhe mais ou menos, mas à cena discursiva com que ela convém. O princípio que orienta a ficção seria então um princípio de consequência (akolouthía). Como exemplifica Luciano, se um poeta afirma existir um homem com dez braços e dez pernas, então ele será consequente se mostrar como esse homem pode lutar com dez inimigos ao mesmo tempo, brandindo dez lanças etc. É interessante que é justamente por isso que Aristóteles afirma que a poesia é mais filosófica que a história, pois esta, a história, se ocupa do particular, o que aconteceu, enquanto o poesia se ocupa do que poderia acontecer, ou seja, do universal, de acordo com regras de necessidade e semelhança. Mas Luciano, em Das narrativas verdadeiras, diz que escreve não sobre o que aconteceu nem sobre o que poderia acontecer, mas sobre o que não poderia acontecer, ou seja, ele avança mais uma etapa enveredando pelo inverossímil. Isso depende do pacto que ele celebra explicitamente com o leitor logo de saída: o confessar que tudo o que dirá é mentira, só numa coisa sendo verdadeiro, ao confessar que mente.

Para não me alongar mais, explorar as formas de ficção talvez nos ensine mais sobre o verdadeiro que muitos tratados, considerando que, conforme o Sócrates de Platão (portanto, uma personagem), a busca da verdade se assemelha a crianças perseguindo andorinhas: quando estão a ponto de pegá-las, elas escapam. Não quer isso dizer que não haja nada de verdadeiro, pois o mundo está aí lançado sob nossos olhos, em sua verdade crua, e somos seres no mundo que não nos fornece de antemão a razão das coisas, mas significa que alcançar essa verdade mundana é difícil, o que nos leva de volta ao tema da dificuldade. São desafios que a linguagem nos permite encarar. E, de novo com Platão, vale a pena lembrar que “as coisas belas são difíceis”. Falar de dificuldade leva a isto: a falar de beleza.

Entrevista feita por Gilson Iannini.




NÃO SEM OS CORPOS[1] 

BERNARD SEYNHAEVE
Psicanalista. Membro da ECF e da NLS (AMP) |
seynhaeve.bernard@gmail.com

Resumo: O autor sustenta o lugar determinante que Lacan dá à presença dos corpos em uma análise: o do analista e do analisante. Em seu ultimíssimo ensino, compreende-se que a interpretação segue o rastro do falasser considerando que a função do inconsciente se completa pelo corpo — não pelo corpo simbolizado nem pelo corpo imaginário, mas pelo corpo que tem em si algo de real. Portanto, para além da decifração, o que uma interpretação visa é perturbar a defesa, fazer ressoar o corpo afetado por lalangue. Para tanto, não basta se ver ou se falar; a presença física também faz parte da interpretação.

Palavras-chave: Interpretação, corpo; gozo, sinthoma, lalangue.

NOT WITHOUT BODIES

Abstract: The author sustains the determining place that Lacan gives to the presence of bodies in an analysis: that of the analyst and the analysand. In his last teaching, it is understood that interpretation follows the trail of the speaking being, considering that the function of the unconscious is completed by the body, not by the symbolized body, nor by the imaginary body, but by the body that has something real in it. Therefore, beyond deciphering, what an interpretation aims at is to disturb the defense, to make the body affected by lalangue resonate. Therefore, it is not enough to see or speak, the physical presence is also part of the interpretation.

Keywords: Interpretation, body, sinthome, jouissance, sinthome, lalangue..

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

Tento avançar com as questões que me tocam.

Gostaria de tentar precisar por que uma psicanálise lacaniana necessita, exige a presença dos corpos: o do analisante e o do analista.

Isso pode parecer evidente à primeira vista, mas não é. Dessa forma, uma questão que eu não esperava surgiu num grupo da New Lacanian School (NLS). Um colega disse: “Você verá, senhor, que um dia haverá AEs que terão feito suas análises por Skype”. Essa questão, que é política, coloca-se em nossa Escola, a NLS. Aqueles que estiveram em Tel-Aviv na Assembleia Geral de 2019 se lembram de nosso debate acerca do uso da internet (Skype) na cura.

Uma outra questão se coloca para mim na perspectiva de nosso próximo Congresso, que acontecerá em Gante, em junho de 2020[2], sobre a interpretação nos tempos do falasser, e não mais nos tempos do sujeito. Essa questão leva em consideração o ultimíssimo ensino de Lacan, que visa perturbar a defesa.

A defesa é esse “dispositivo psíquico” que Freud, desde o começo de sua obra, postula como sendo uma “defesa primária”, que bloqueia aquilo que chamou de  “ameaças de desprazer” (FREUD, 1895/1980, p. 486) e que chamamos, com Lacan, de “o real do gozo”, o impacto da língua sobre o corpo. Para o último Lacan, a interpretação visa perturbar a defesa na medida em que cuida de não desfazer o nó de lalangue e do corpo, mas de fazê-lo ressoar.

O que seria, portanto, um corpo impactado pela língua?

 

Da necessidade da presença dos corpos

Freud, no fim de sua vida, estava com esta constante: a análise é interminável. Para o ultimíssimo Lacan, uma análise pode se concluir na medida em que o falasser encontra um saber-fazer com seu sinthoma, isto é, com o impacto da língua sobre o seu corpo. Se a interpretação visa perturbar a defesa, é na medida em que tenta tocar esse real do corpo que se goza.

Mas pergunto: para tocar esse real, a presença dos corpos, do analista e do analisante, é necessária?

Salientamos, a respeito disso, duas intervenções de Jacques-Alain Miller. A primeira é retirada de sua entrevista ao jornal Libération, em 1999.

“A tecnologia desenvolve modos de presença inéditos. O contato a distância em tempo real se tornou comum ao longo do século. Quer seja por telefone, agora celular, internet, videoconferência. Isso vai continuar, multiplicar-se, será onipresente. Mas será que a presença virtual terá, afinal, um impacto fundamental sobre a sessão analítica? Não. Ver-se e falar-se, isso não faz uma sessão analítica. Na sessão dois estão ali juntos, sincronizados, mas eles não estão ali para se verem, como demonstra o uso do divã. A co-presença em carne e osso é necessária, nem que seja para fazer surgir a não-relação sexual. Se sabotamos o real, o paradoxo desaparece. Todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, tropeçarão aí” (MILLER, 1999, tradução nossa).

A segunda é extraída de sua intervenção no texto publicado “Uma fantasia”, no Congresso da AMP em Comandatuba, em 2004. “O inconsciente é corporal?” (MILLER, 2005, p. 17). O efeito de interpretação se deve ao uso das palavras ou a sua jaculação? Além do mais, é preciso colocar o tom. Aqueles que tiveram a oportunidade de relatar as interpretações de Lacan sempre as repetem com o tom de Lacan. “A poética da interpretação (…) é um materialismo da interpretação. (…) É preciso pôr o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma” (Ibid.).

 

O que é um corpo?

Visto que se trata de delimitar o que constitui a junção do corpo e da língua, o que é, portanto, um corpo? O que é um corpo falante, o corpo dos seres falantes, o falasser?

Na apresentação do tema do X Congresso da AMP, em 2014, Miller apontou que se pode, sem dúvida, apreender o corpo como imaginário: “(…) encontramos a seguinte equivalência formulada por Lacan: o imaginário é o corpo. E (…) seu ensino, em seu conjunto, testemunha a favor dessa equivalência” (MILLER, 2014). Mas ele acrescenta que Lacan, ao final de seu ensino, enuncia outra coisa: o corpo “é um mistério” (Ibid.). Ele diz isso no Seminário: livro 20: mais, ainda: “o real (…), é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente” (LACAN, 1985, p. 178).

Tentemos especificar esse mistério. J.-A. Miller nos convida para fazer uma distinção entre o que chamamos um corpo e uma massa, um saco de órgãos, ou seja, entre o corpo e a carne.

“Na distinção entre o corpo e a carne, o corpo se mostra apto para figurar, como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante. (…) O que faz mistério, mas permanece indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para dizê-lo em termos cartesianos: o mistério é sobretudo o da união da fala com o corpo. Por esse fato de experiência, pode-se dizer que ele é do registro do real” (MILLER, 2014).

O ser falante tem, portanto, um corpo e o utiliza como um instrumento para falar. O que faz mistério é a própria amarração da língua e do corpo, é que UOM (LOM) (LACAN, 1975/2003) possa fazer uso de seu corpo para falar. E isso não se explica, é um mistério, isso faz furo no saber e, consequentemente, dá relevância ao registro do real.

Por outro lado, o falasser goza desse uso. O ser falante se goza de fazer uso de seu corpo enquanto falante. Portanto, não há somente o corpo que se imagina, há também o corpo que se goza. E esse gozo, o gozo do se gozar, é autoerótico, autístico, como precisa Lacan. A percussão da língua e do corpo faz furo (trou), ele diz mais, faz troumatisme (LACAN [1973-74], aula de 19/2/1974).

A esse “corpo marcado por acontecimentos de gozo, por traumas de lalíngua, virão, em seguida, efeitos inconscientes de sentido, assimilados por Lacan a efeitos de saber” (LAURENT, 2016, p. 57), especifica Laurent. “O gozo se experimenta: ‘isso se sente’. E é após essa prova pelo gozo que se produzem os efeitos de saber próprios aos efeitos significantes sobre o corpo” (Ibid.), “é preciso, de início, ter um corpo, condição para que o gozo (…) venha se inscrever nele” (Ibid.).

No começo de seu ensino, Lacan desenvolveu as consequências de sua tese da primazia do simbólico. O sintoma era então considerado um retorno do recalcado inconsciente velando a verdade do sujeito, e a interpretação analítica consistia em tentar revelar a verdade oculta dos sintomas e do desejo inconsciente do sujeito.

Nesse contexto, Lacan revisitou os conceitos freudianos — o inconsciente, a transferência, o sintoma e também a interpretação — à luz do simbólico enfatizando a palavra, a linguagem e a letra. Essa tese de Lacan implica que existe um Outro, com O maiúsculo, que é correlativo ao conceito de fala. Isso implica também que a linguagem seja estruturada, ou seja, que “os significantes estão em relação entre si sob duas espécies, a da combinação e da substituição, o sentido aparece como um efeito dessa combinação e dessa substituição” (MILLER [1995-96], aula de 31/1/1996, tradução nossa). A interpretação, nesse caso, não é um problema. Ela se ocupa dos significantes. Ela responde à questão do Che vuoi?, Que queres?, e mesmo que seja sobre o desejo, ela continua a ser uma questão de sentido. Mas se, ao início de seu ensino, Lacan relia Freud definindo o inconsciente como sendo estruturado como uma linguagem, à medida que seu ensino progride, ele extrairá as consequências desse arranjo do corpo com a linguagem, isto é, do corpo que se goza. Portanto, as coisas mudam, observa J.-A. Miller.

Para que a amarração da linguagem e do corpo aconteça, é preciso que UOM (LOM) faça de seu corpo um instrumento de fala, UOM (LOM) fala através de seu corpo; para falar, é preciso ter um corpo do qual se servir; UOM (LOM) deve consentir em ter um corpo para que a amarração se produza. E é esse nó entre linguagem e corpo que constitui seu sinthoma. Esse nó é sólido. A principal consequência dessa tese será orientar a cura analítica em direção a esse nó, em direção ao real do gozo produzido por essa amarração para fazê-la ressoar.

Lacan muda, então, o vocabulário, como observa J.-A. Miller. Ele não utiliza mais os conceitos freudianos de inconsciente, sintoma e recalque, mas fala de falasser, sinthoma e verdade mentirosa. Passa-se da linguagem à lalangue, da palavra à aparola (apparole), ou seja, ao aparelho de gozo, do sujeito do inconsciente ao falasser.

Para ilustrar essa mudança, J.-A. Miller toma de Michel Leiris um pequeno exemplo através do qual ele inicia sua “Regra do jogo”, três pequenas páginas que narram uma experiência de criança.

“Então, Michel Leiris é uma criancinha que ainda não sabia ler nem escrever, ele brinca com seus soldadinhos. Um soldadinho cai. Ele deveria ter se quebrado, mas não se quebrou. E Leiris diz: ‘foi tamanha minha alegria que me expressei dizendo: ‘flismente’ (reusement)!’. Mas é felizmente (heuresement) que ele deveria ter dito, sua mãe disse a ele. O pequeno Michel, quando estava indo tudo bem, acreditava que se dizia ‘flismente’ (reusement). Ele então descreve minuciosamente o quanto ficou surpreso: para ele, reusement era muito mais expressivo que heureusementReusement é, sem dúvida, uma pura jaculação (…), uma jaculação de gozo que encontra seu significante adequado. Mas agora se produz (…), como diz Leiris, ‘um rasgo no véu, uma explosão de verdade’. Ele descobre que há um sentido da palavra, um sentido na língua e que ele deve dizer felizmente (heureusement), como todo mundo. Sente-se que isso é único, que ele será capaz de escrever interminavelmente sua própria ‘Regra do jogo’. A regra do jogo é, justamente, que é preciso dizer como todo mundo (que nos endereçamos ao Outro com O maiúsculo) e que, nesse momento, a palavra se encontra inserida em uma sequência de significações precisas (numa estrutura gramatical, lexical, sintática) e que aquilo que era antes, era realmente uma ‘coisa minha’ — ele diz. Esse pequeno exemplo impressionante, Leiris o desenvolve um pouco mais adiante. Há um segundo fragmento de ‘A Regra do jogo’ que começa com estas palavras: ‘Quando ainda não sabemos ler’. Ele tenta capturar o que seria a linguagem antes de começarmos a escrever e a ler. Ele se pergunta o que são as palavras quando as apreendemos apenas pela audição” (MILLER, 1995-1996, aula de 17/1/1996, tradução nossa).

 

Lalangue não é uma estrutura, ela é sem Outro, ela não obedece às regras gramaticais e sintáticas. Ela não se endereça ao Outro, ela é para si mesma “o que se sabe, consigo”, como diz Lacan em seu último escrito (LACAN, 1976/2003, p. 567). Ela não é um querer dizer ao Outro, “ela não é o sentido, mas o gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996, tradução nossa).

 

O que é uma interpretação no sentido do ultimíssimo Lacan?

No seminário O objeto da psicanálise, Lacan retoma, como observa Laurent (2020), as primeiras frases de seu primeiro seminário ([1953-54], 2009, p. 9) sobre a ação do mestre zen:

“todos sabem que o exercício Zen tem alguma relação, mesmo que não saibamos bem o que isso quer dizer, com a realização subjetiva de um vazio. (…) o vazio mental que se trata de obter e que seria obtido nesse momento singular, brusquidão que sucede à espera que se realiza às vezes por uma palavra, uma frase, uma jaculação, até mesmo uma grosseria, uma zombaria, um pé na bunda” (LACAN, 1965-66, aula de 15/12/1965).

O mestre zen coloca, portanto, seu corpo aí.

O analista também coloca seu corpo em jogo, a interpretação analítica é, ela mesma, um arranjo de lalangue e do corpo do analista. J.-A, Miller esclarece:

“Tudo está ligado ao acontecimento, um acontecimento que deve ser encarnado, que é um acontecimento de corpo — definição de sinthoma dada por Lacan. O resto, digamo-lo, é uma roupagem — uma roupagem necessária, na maioria dos casos. Mas o núcleo (da análise) (…), é esse instante, o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p. 76,  tradução nossa).

Mais adiante, com relação ao sinthoma, J.-A. Miller assinala também:

“Há um nível de defesa que é mais tortuoso, mais paradoxal (…). Do ponto de vista do singular, do ponto de vista do sinthoma, como o que há de singular em cada um, não vejo como evitar dizer — bem que eu gostaria —, não vejo como evitar ao menos passar por essa proposição a fim de aferi-la: o inconsciente (transferencial), ele mesmo, é uma defesa — sim —, o inconsciente é uma defesa contra o gozo em seu status mais profundo, que é seu status fora de sentido” (MILLER, 2009, p. 77, tradução nossa).

“A orientação para o singular”, ele continua, “não quer dizer que não decifremos o inconsciente. Ela quer dizer que essa exploração encontra necessariamente um obstáculo, que a decifração se interrompe no fora de sentido do gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).

Mas, “do lado do inconsciente”, ele avança,

“há o singular do sinthoma, onde isso não fala a ninguém (o monólogo do falasser/parlêtre, o autismo do sintoma). Razão pela qual Lacan o qualifica de acontecimento de corpo. Não se trata de um acontecimento de pensamento (…). É um acontecimento de corpo substancial, aquele que tem consistência de gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).

E, uma coisa importante a se lembrar, é que a interpretação que produz sentido, saber sobre o sintoma, não se relaciona com o acontecimento de corpo, com o sinthoma.

J.-A Miller assinala, então, o lugar determinante que Lacan dá à presença e, mais especificamente, ao corpo do analista no segundo tempo da análise:

“o ponto de vista do sinthoma consiste em pensar o inconsciente a partir do gozo. Pois bem, isso tem consequências para a prática, especialmente para a prática da interpretação. A interpretação não é apenas a decifração de um saber, é fazer ver, é elucidar a natureza de defesa do inconsciente. Sem dúvida ali onde isso fala, isso goza, mas a orientação para o sinthoma enfatiza o seguinte: isso goza ali onde isso não fala, isso goza ali onde isso não faz sentido. Como Lacan pôde convidar o analista a ocupar (anteriormente) o lugar do objeto pequeno a, em seu Seminário O Sinthoma, ele formula: O analista é um sinthoma. Ele é suportado pelo não-sentido, então perdoamos-lhe suas motivações, ele não se explicará. Preferirá, antes, dar-se ares de acontecimento de corpo, de semblante de traumatismo. E terá muito a sacrificar para fazer jus a ser, ou a ser considerado um pedaço (bout) de real” (MILLER, 2009. p. 79, tradução nossa).

J.-A. Miller nos dá aqui uma indicação precisa sobre o que seria a interpretação em uma cura orientada para o sinthoma.

Prosseguirei com dois exemplos clínicos em que a intervenção do analista toca o mais íntimo, o mais singular do ser do analisante, a saber, o sinthoma que orientou e decidiu seu destino. Recorrerei a excertos de dois testemunhos, os de Monique Kusnierek e de Bernard Porcheret, que me tocaram profundamente, me marcaram pessoalmente e que, no que concerne a essa articulação do corpo e de lalangue, são claros e precisos.

Aqui está o que Kusnierek diz:

“A sessão acabara de terminar. Ela saía do consultório de seu analista, estava no corredor, ele fazia sombra e, de repente, ela ouve atrás dela um barulho de um bicho feroz. Ela não acredita em seus ouvidos. Ela se vira para verificar com seus olhos o que havia ouvido. É quando vê seu analista que gesticula como um bicho feroz pronto para se lançar sobre sua presa. Ela fica surpresa e ri.

Que essa pantomima barulhenta fez interpretação, suas consequências o provam. A analisante entendeu, antes de tudo, que, na relação transferencial, não havia apenas uma demanda de amor e um abandono, mas também uma pulsão oral, que fazia sentir a sua presença.

Ela, então, começa a buscar como pensar isso em termos de transferência, como integrar essa pulsão, devorante, à única coisa que ela vinha fazer em análise, que era falar, isto é: colocar em jogo a relação que ela tinha com o saber, expor-se, cair sobre o que ela não sabia.

Ela encontrou, então, uma fórmula que lhe pareceu ideal e que estava no limite do que ela poderia elaborar sobre o que era, para si, o fato de falar. Foi a seguinte fórmula: ‘Se não estou à altura, então me morda!’.

Esse ‘me morda!’ era, sem dúvida, a fórmula de um imperativo pulsional. Ela entendeu, então, que essa era a motivação louca que a levava a cada semana à análise e que esse imperativo estava articulado nela à divisão gerada pelo próprio fato de falar (…).

Essa interpretação é sem palavras. Consiste apenas em um som e um gesto. Comporta um som, um barulho de bicho feroz, um ‘grr’, como uma espécie de núcleo da fala que, de repente, se faz ouvir. E, ao mesmo tempo, um gesto igualmente intempestivo se faz ver, o do bicho feroz pronto para lançar-se sobre sua presa.

A interpretação (…) (produz) uma montagem cênica que se inspira muito diretamente no pesadelo. Essa montagem é usada para trazer à cena da transferência a devoração. A devoração torna-se um semblante, uma peça com a qual se joga.

Essa interpretação do analista diz respeito ao próprio analista como parceiro do sujeito. O analista se faz surgir na cena como um bicho-papão, como o Outro convocado pela montagem pulsional do sujeito. E, de repente, essa montagem na qual se fabricou um Outro fantástico acaba se revelando ser apenas uma farsa burlesca. É o que, depois de ter a surpresa, fez essa analisante rir.

Isso a levou, posteriormente, a tirar uma série de conclusões.

O analista, ao se fazer de bicho feroz, ou seja, reduzindo o Outro da fantasia ao seu semblante, realizou, de fato, o que o terceiro sonho anunciava: a castração do grande Outro” (KUSNIEREK, 2002, p. 23-36, tradução nossa).

Eis aqui um curto trecho de testemunho de Bernard Porcheret que, em seu relato, evidencia seu fascínio pela morte, o que se inscreve em toda a sua história. Aqui está, como ele a chama, “a interpretação decisiva”:

“No caminho em direção à porta de saída, eu tiro meu casaco do cabide. Silêncio, nenhum barulho de maçaneta para ir chamar o analisante seguinte. Viro-me, o analista, contingência da interpretação, neste dia, está vestido com um terno escuro, daqueles que vestimos para momentos solenes. Na penumbra do corredor, atrás da porta da sala de espera, ele fica de frente para a parede, congelado, imitando o agente funerário. Siderado (…).

Na rua, a alguns metros de distância, leve, eu rio. Um dizer surgiu: fôlego. Algumas palavras, como se saídas de um buraco, se escrevem. Um salto aconteceu na saída do tobogã. A interpretação fez cair o significante mestre agente funerário, sob o qual eu estava esmagado. Imitando-o, em silêncio e sem olhar, o analista me separa dele. Eu era aquele olhar se olhando, aquela voz que se invocava. Quebra. Eu era aquela boca à qual eu me oferecia como alimento para domesticá-la. A pulsão enoda a sexualidade no inconsciente e a morte” (PORCHERET, 2012, p. 63, tradução nossa).

 

Para pontuar minha intervenção

Cito novamente J.-A. Miller.

“E correlativamente à noção de interpretação como perturbação, algo como o falasser (parlêtre) deve ser introduzido, uma noção da ordem do que Lacan denomina que vai mais além do inconsciente. (…) e (o) que se inscreve nesse lugar: ele o chamou de falasser, no qual a função do inconsciente se completa com o corpo, mas não pelo corpo simbolizado, o corpo imaginário, senão com o que o corpo tem de real.

Assim, a interpretação como perturbação mobiliza algo do corpo, exige ser investida pelo analista e, por exemplo, que ele forneça (…) o tom, a voz, o sotaque. Até o gesto e o olhar.

Pensando nessa interpretação como perturbação, recordava uma observação de uma passante (Kusnierek)[3] que referia, como AE, à sua cura e o que havia sido para ela o ponto de viragem.

Tal como o contava, essa interpretação não foi todo um discurso: ela estava num longo corredor escuro depois da sessão e, enquanto ia-se, viu-se levada a se virar, pois o analista lhe dirigia uma mensagem que, tal como ela a descreve, era feita de uma espécie de pantomima de devoração acompanhada de um vago rosnado, algo como um Grrr…! (…). Como se assinalava muito precisamente, isso acontece (…) fora, na saída (no corredor), já que a posição padrão não permite a operação da visão, o olhar, etc. (…) (Há aí) uma forma de colocar o corpo (…). Não se pode trazer a pulsão oral ou a pulsão anal, mas podem-se trazer, por outro lado, as pulsões especificamente lacanianas, que são a pulsão escópica e a pulsão invocante.

E a interpretação como perturbação conta especificamente com essa contribuição. Em todo caso, um dia seria necessário apreender que o que falha na noção de decifração é que, na análise, é preciso que um e o outro coloquem o corpo” (MILLER, 2011, p. 136, tradução nossa).

Para terminar, evocarei um momento do Colóquio organizado pela UFORCA em 2011, em Montpellier, acerca do Seminário, livro 23: o sinthoma.

Éric Laurent foi convidado para comentar um texto apresentado por Alfredo Zenoni, que citava uma frase de Lacan no Seminário, livro 21: os não-tolos erram, dita em 1973, dois anos antes do Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007). A frase era a seguinte: “o que você faz sabe o que você é” (LACAN, 1973-74, aula de 11/12/1973, tradução nossa). A frase completa está assim:

“Isso (a que) responde o discurso analítico é o seguinte: o que você faz, longe de ser o fato da ignorância, é sempre determinado, determinado já por alguma coisa que é saber, e que chamamos o inconsciente. O que você faz, sabe (sabe, s.a.b.e), sabe o que você é: sabe de você!”

Tal debate merece ser seguido detalhadamente:

É. Laurent: Alfredo Zenoni isolou uma frase do Seminário XXI: “O que você faz sabe o que você é”. Nesse caso, o que você faz é antes tomado na dimensão daquilo que o inconsciente o faz fazer ou daquilo que o inconsciente, como saber, faz de você.

J-A. Miller: Sim, mas há aqui uma espécie de materialismo do tipo: o que você faz, desde que você tenha um comportamento que se repete, bem, você é isso (…). Você está atrasado. Você está atrasado e, portanto, você é um retardatário. Você está o tempo todo atrasado, por causa disso ou daquilo, é um ato falho, mas no fim das contas você é um retardatário (…).

J-A. Miller: O psicanalista (ele também) é só o que faz. É isso. Ou seja, ele coloca seu corpo em jogo.

Deduzo desse debate que, uma outra forma de dizer que “o psicanalista não pode se conceber a não ser como um sinthoma”, é dizer “o psicanalista, é o/isso que ele faz”. Isso quer dizer que ele está presente com seu corpo, e sua interpretação implica sua presença física.

Uma interpretação, segundo Lacan, visa, portanto, perturbar a defesa. Visa colocar “um limite ao monólogo autista do gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996 – tradução nossa). E ela não pode ser considerada sem a presença dos corpos. Ela visa fazer ressoar no corpo algo que toque essa articulação do corpo e da língua. Ela não implica necessariamente um enunciado, nem uma enunciação (LACAN, 1974-1975, aula de 11/2/1975). Os meios utilizados para fazê-lo são diversos, mas para que ela faça acontecimento, é preciso que o analista faça semblante do sinthoma do analisante — e é difícil ver como isso seria possível por Skype. Isso remete ao modo como o mestre zen o faz.

 

Tradução: Letícia Mello
Revisão: Michelle Sena

Referências Bibliográficas:
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KUSNIEREK, M. “Une interprétation sans parole”. InQui sont vos psychanalystes?. Paris: Seuil, Champ freudien, 2002, p. 23-26.
LACAN, J. (1953-54) O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
LACAN, J. (1965-1966). Le séminaire, livre 13: l’objet de la psychanalyse. Inédito.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. (1973-74) Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Inédito.
LACAN, J. (1974-75) “Le Séminaire, livre XXII: R.S.I.”, aula de 11 de fevereiro de 1975. Ornicar?, n. 4, p. 95-96.
LACAN, J. (1975). “Joyce, o Sinthoma”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACA, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
LACAN, J. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LAURENT. É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.
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MILLER, J-A. (1995-1996) L’orientation lacanienne. La fuite du sens. Inédito.
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PORCHERET, B. “La pulsion est vorace”. InLa cause du désir, n. 83, dez. 2012, p. 60-64.

UFORCA. Journée UFORCA pour l’UPJL, Autour du Séminaire XXIII, 21 e 22 de maio de 2011. Montpellier, 2011. Inédito.
[1] Texto originalmente publicado na revista Quarto, n. 126. Belgique: ECF, dez. 2020. pp. 40-45
[2] Trata-se do Congresso da NLS “A interpretação: da verdade ao acontecimento” que deveria ter ocorrido dias 27 e 28 de junho de 2020, mas foi cancelado por causa da pandemia.
[3]Trata-se do testemunho de Monique Kusnierek, evocado anteriormente.



A INTERPRETAÇÃO E ALÉM[1]  

SOPHIE MARRET-MALEVAL
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana/AMP |

Resumo: A prática analítica se estabelece entre o que se lê e o que se escreve, ancora-se numa decifração que não visa o sentido e se regula pelo corte que separa S1 e S2, bem ali onde a palavra mostra o seu limite.

Palavras-chave: interpretação, leitura, escrita, inconsciente

INTERPRETATION AND BEYOND

Abstract: The analytical practice is established between what is read and what is written, anchored in a decipherment that does not aim at meaning and is regulated by the cut that separates S1 and S2 right where the word shows its limit.

Keywordsinterpretation, reading, writing, unconscious

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

“O de que se trata no discurso analítico é sempre isto — ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa”. Esse enunciado de Jacques Lacan aparece na terceira lição do Seminário Mais, ainda, intitulada “a função da escrita” (LACAN, 1972-73/2008, p. 43): quase da ordem do óbvio, ele lembra que a experiência analítica tem sua origem na interpretação, ou seja, em um uso do significante. Suas implicações são, entretanto, maiores quando Lacan precisa a distinção entre letra e significante abrindo-se para uma prática de interpretação que vai além do alcance freudiano.

 

O que se lê e o que se escreve

“No discurso analítico de vocês, o sujeito do inconsciente, vocês supõem que ele sabe ler” (Ibid., p. 43), continua Lacan, mas ele acrescenta: “Só que, o que vocês ensinam a ler, não tem, absolutamente, nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito” (Ibid.). A experiência analítica é, desde então, situada entre a leitura e a escrita. A leitura é aqui colocada em relação ao significado, “o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante” (Ibid., p. 39), enquanto a escrita é referida à letra. Lacan revisita os termos da linguística saussuriana afastando-se da abordagem do significante como “imagem acústica do signo”. Ele descarta a noção de referência que religaria a linguagem a uma realidade pré-discursiva lembrando, aliás, que “os homens, as mulheres (…) não são mais do que significantes” (Ibid., p. 38): “A palavra referência, na ocasião, só se pode situar pelo que constitui como liame o discurso. O significante como tal não se refere a nada, a não ser (…) a uma utilização da linguagem como liame” (Ibid., p. 36). Ele privilegia, então, a noção de “discurso”, da linguagem como laço, no qual se localizam dois efeitos: o significado de uma parte (“O significado é efeito do significante. Distingue-se aí algo que não passa de efeito do discurso […], quer dizer, de algo que já funciona como liame” [Ibid., p. 39]), a letra e a escrita de outra (“A letra, radicalmente, é efeito de discurso. […] É que, o que eu digo anteriormente ganha sentido depois” [Ibid., p. 41]), mas também “tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um certo efeito do discurso que se chama a escrita” (Ibid., p. 40). A impossível escrita da relação sexual se segura, por um lado, ao que “Um homem procura uma mulher (…) a título do que se situa pelo discurso” (Ibid., p. 38), quer dizer, que ele não goza do corpo de sua parceira como tal, mas que o gozo parte dos traços sobre o corpo, do significante fálico, e que ela depende do objeto que a causa, assim como Lacan o precisa no início desse Seminário. Por outro lado, ela se segura à inexistência do significante de A mulher, que torna impossível a escrita de uma relação lógica entre os sexos (ou seja, entre dois significantes se o segundo existisse).

A letra é efeito de discurso. Lacan situa sua função na barra entre o significante e o significado, sem a qual “nada, dos efeitos do inconsciente, tem suporte” (Ibid., p. 40). “A barra é precisamente o ponto onde, em qualquer uso da língua, se dá a oportunidade de que se produza o escrito” (Ibid., p. 40). Se seguirmos a lógica desse capítulo, dois eixos vêm à tona. A primeira: o que se lê, o significado como efeito do significante e que se baseia de uma ausência de relação com o significante, o que se materializa pela barra da arbitrariedade saussuriana, do qual é deduzida também a impossível escrita da relação sexual, que se situa no registro dos efeitos do discurso corrente, do laço entre os significantes. O segundo: o que se escreve, o que não é para ser compreendido, e “parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual” (Ibid., p. 40), o que marca também a materialidade da barra.

 

Uma outra leitura

Dar “uma leitura outra que não o que significa” ao “que se enuncia de significante” (Ibid., p. 43) não pode mais se orientar, portanto, a uma prática de interpretação que visaria à verdade, à reabsorção da barra, do que se escreve. A prática da interpretação convoca, sobretudo, a inexistência da relação sexual, que não cessa de não se escrever. O enunciado convida para uma compreensão quase literal. Trata-se de se abrir a outra leitura que não uma prática de sentido, que leve em conta os efeitos da barra. Quando Lacan aponta ainda a disjunção entre leitura e escrita, ele parte da constatação de um hiato entre o que se enuncia da construção na prática analítica e as letras com as quais ele convida para escrever a teoria (nesse caso, S(Ⱥ), a e Φ). O que se pode escrever sobre isso está além do sentido. Se ele permanece movido pela esperança de um apoio possível na matemática para escrever a teoria analítica, nesse momento, ele faz, no entanto, claramente aparecer, situando a escrita como efeito de dizer, uma outra dimensão da prática analítica, aquela do sentido, sensível no que se escreve sobre isso. A práxis analítica se situa entre o que se lê e o que se escreve, entre a abordagem da inexistência da relação sexual e a incidência da letra. A ênfase é deslocada sobre a função de borda de certos significantes que apontam em direção ao objeto, como Lacan o evoca alguns meses mais cedo em “Lituraterra” (LACAN, 2003).

Assim ele indica, no capítulo seguinte:

“Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria, e por uma curvatura que não poderia nem mesmo ser mantida como sendo como a das linhas de força, aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na alíngua, o que a fratura” (LACAN, 1972-73/2008, p. 50).

Ou seja, a letra que ele indica que ela “revela (…) a gramática”. Uma concepção da interpretação se deduz disso que não negligencia a referência à escrita porque, sublinha, “recusar-se à referência à escrita é proibir-se aquilo que, de todos os efeitos da linguagem, pode chegar a se articular” (Ibid., p. 50). Por um lado, é necessário visar o que se pode articular, por outro, como ele aponta, “Esta articulação se faz naquilo que resulta da linguagem o que quer que façamos, isto é, um suposto aquém, e um além” (Ibid., p. 50). Isso quer dizer que o uso da letra nos leva à via do real, de acordo com as coordenadas que ele dá anteriormente: o objeto a e a inexistência da relação sexual.

“Se trata de ler o quê?”, ele precisa ainda um pouco mais longe, “nada, senão os efeitos desses dizeres. Esses efeitos, bem vemos no que é que isto agita, comove, atormenta os seres falantes” (Ibid., p. 51). É preciso ainda que a leitura desses efeitos sirva “a dar uma sombra de vidinha a esse sentimento dito de amor” (Ibid., p. 51). Ele precisa “outra leitura” que ele convoca: trata-se de fazer uso dos efeitos dos ditos para “civilizar” o gozo pelo amor, que é o que permite “fazer sentido”  (MILLER, 2004, inédito, tradução nossa), mas também de visar um desejo vivo. “É preciso que, por intermédio desse sentimento, isso chegue (…) à reprodução dos corpos” (LACAN, 1972-73/2008, p. 51-52).

 

Interpretação pelo avesso

Para esse fim, Lacan sublinha de que uso do sentido depende o discurso analítico:

“com efeito, um discurso como o analítico visa ao sentido. (…) O que o discurso analítico faz surgir, é justamente a ideia de que esse sentido é aparência. Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isto só pode ser para dar razão do seu limite. Não há, em parte alguma, última palavra, se não for no sentido em que última palavra é nem palavra, caluda — já insisti nisto. Sem resposta, nem palavra, diz em algum lugar La Fontaine. O sentido indica a direção na qual ele fracassa” (Ibid., p. 85).

Ele precisa além disso: “o gozo só se interpela, só se evoca, só se suprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência” (Ibid., p. 99). É por isso que a prática lacaniana continua sendo prática do significante.

No entanto, Jacques-Alain Miller nos lembra que “O tempo da interpretação ficou para trás. Isso Lacan sabia, mas não o dizia: ele o deixava entender e só agora começamos a ler” (1996, p. 96) especificando que “a interpretação não é outra coisa que o inconsciente, a interpretação é o próprio inconsciente” (Ibid., p. 96), o que quer dizer que “o inconsciente fica (…) inteirinho na defasagem (…) que se repete no que quero dizer ao que digo” (Ibid.), a interpretação analítica vem em segundo lugar. Não obstante, ele fala “o inconsciente quer ser interpretado. Oferece-se para tanto. Se não o quisesse, se o desejo inconsciente do sonho não fosse, em sua fase mais profunda, desejo de ser interpretado (…), desejo de fazer sentido, não haveria analista” (Ibid., p. 97). Ele sugere compreender a interpretação como decifração. “Mas, decifrar é cifrar novamente. O movimento para somente numa satisfação” (Ibid.). Uma prática do sentido que não ficaria “a serviço do princípio do prazer” (Ibid.), ou seja, que visa o sinthoma, o ponto de conexão entre linguagem e gozo, deve-se, portanto, distinguir de uma interpretação do inconsciente. Ele propõe uma outra via, aquela da “interpretação pelo avesso”, que “na outra via o S2 fica retido, para não ser acrescido ao objetivo de cercear S1. Trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, com os quais delirou em sua neurose” (Ibid., p. 98). Convém apoiar-se sobre uma “decifração que não produz sentido” (Ibid.) sobre o corte que separa S1 e S2, lá onde a palavra designa o seu limite e conduz pela via do objeto, como uma janela sobre os limites do dizer. É ainda pela via de uma leitura que visa o que se escreve que se alcança o que não cessa de não se escrever, a inexistência da relação sexual na medida em que resulta de uma precisão das coordenadas do sintoma, ou seja, do que cada um goza.

Podemos ainda enfatizar como, ao destacar a leitura do único sentido para pontuar os limites, Lacan abria a via para a prática analítica das psicoses. J.-A. Miller e É. Laurent lembram que o inconsciente interpreta muito particularmente na psicose e que se trata, na maioria das vezes, de visar os pontos onde o sentido se interrompe, de “estabilização da metáfora”, ou seja, como propõe Laurent, de introduzir vírgulas, de isolar, de separar os significantes (LAURENT, 2005, tradução nossa). Como tantos grampos de gozo, os significantes podem igualmente servir a fins de nomeação e permitir uma amarração, uma resolução[2] desta pelo sentido.

 

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Letícia Mello

Referências:
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, É. “Interpréter la psychose au quotidien”. In: Mental, n° 16, out. 2005, p. 17, 19 & 20-24.
MILLER, J.-A. “A interpretação pelo avesso”. In: Opção Lacaniana, n° 15, abril 1996, pp. 96-99.
MILLER, J.-A. “L’orientation lacanienne. Pièces détachés”. Ensino pronunciado dentro do quadro do departamento de psicanálise da universidade de Paris VIII, lição de 24 novembro 2004, inédito

[1] Texto originalmente publicado em: La Cause du Desir, no. 80, 2012.
[2] Jacques-Alain Miller precisa assim a função da nomeação: “Se o nó como suporte do sujeito segura, não há necessidade alguma do Nome-do-Pai: ele é redundante. Se o nó não segura, o Nome exerce a função de sinthoma. Na psicanálise, ele é o instrumento para resolver o gozo pelo sentido” (MILLER, “Nota passo a passo”, em Jacques Lacan, O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 238).



Almanaque On-line Agosto/2021 V. 14 Nº 27

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

MICHELLE SENA

Esta edição tem como tema Interpretação: um dizer que toca o corpo. A partir da continuidade do trabalho desenvolvido pelo IPSM-MG no segundo semestre de 2021 e seguindo a trilha do Almanaque 27, a temática da interpretação continua provocando ressonâncias que, nesta edição, serão abordadas evidenciando seus efeitos sobre o corpo. [Leia Mais]

TRILHAMENTOS
DA ESCUTA DO SENTIDO À LEITURA FORA DO SENTIDO: NOSSA SANTA INTERPRETAÇÃO

SILVIA BAUDINI

Em um primeiro momento dessa conferência, a autora trabalha as noções de transferência e interpretação quando sustentadas pelo simbólico e pelo analista alojado em uma posição de prestígio pelo suposto saber, para, em seguida, pensá-las em um mundo onde essa suposição tem praticamente desaparecido e o simbólico não é o registro predominante. Através de alguns fragmentos de casos, a autora nos conduz por uma clínica onde o Outro não existe e na qual a leitura do fora do sentido pode dar lugar a invenção de uma nova escrita. [Leia Mais]


INTERPRETAÇÃO HERÉTICA E ACONTECIMENTO DE CORPO NAS PSICOSES

SÉRGIO LAIA

O inconsciente é intérprete e, ao interpretar, cifra novamente tornando infinita a atividade interpretativa. Frente a esse excesso interpretativo do inconsciente que se impõe nas psicoses como nas neuroses — embora, nestas últimas, de forma mais velada e sutil —, este texto, na trilha das formulações de Lacan e Miller, argumenta que interpretar analiticamente é fazer frente a esse trabalho interpretativo infindável próprio ao inconsciente, de modo que a interpretação analítica vire pelo avesso essa interpretação infinita do inconsciente. A heresia em questão é sustentar a interpretação na contracorrente do inconsciente quando a concepção que, em geral, se tem da atividade analítica é de que ela o interpreta, ou ainda que, na clínica das psicoses, não se deve interpretar. [Leia Mais]


 

A INTERPRETAÇÃO E ALÉM

SOPHIE MARRET-MALEVAL

A prática analítica se estabelece entre o que se lê e o que se escreve, ancora-se numa decifração que não visa o sentido e se regula pelo corte que separa S1 e S2, bem ali onde a palavra mostra o seu limite. [Leia Mais]


 

NÃO SEM OS CORPOS

BERNARD SEYNHAEVE

O autor sustenta o lugar determinante que Lacan dá à presença dos corpos em uma análise: o do analista e do analisante. Em seu ultimíssimo ensino, compreende-se que a interpretação segue o rastro do falasser considerando que a função do inconsciente se completa pelo corpo — não pelo corpo simbolizado nem pelo corpo imaginário, mas pelo corpo que tem em si algo de real. Portanto, para além da decifração, o que uma interpretação visa é perturbar a defesa, fazer ressoar o corpo afetado por lalangue. Para tanto, não basta se ver ou se falar; a presença física também faz parte da interpretação. [Leia Mais]

 

ENTREVISTA

ALMANAQUE ENTREVISTA

JACYNTHO LINS BRANDÃO

Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, Jacyntho Lins Brandão lecionou língua e literatura grega de 1977 a 2018, foi diretor da Faculdade de Letras por duas vezes e vice-reitor da Universidade. Foi também professor visitante na Universidade de Aveiro, em Portugal, na Universidad Nacional del Sur, na Argentina e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. Atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Ouro Preto e membro da Academia Mine ira de Letras. [Leia Mais]

ENCONTROS
A INTERPRETAÇÃO LACANIANA: MEIO-DIZER, POESIA, ESTILO

JORGE ASSEF

O autor recorre a uma citação de Éric Laurent referente a um episódio do início de sua análise com Lacan e, a partir desse exemplo, aborda as três vertentes do meio-dizer implicadas na estrutura da interpretação tal como propostas por Lacan: o equívoco, o enigma e os efeitos de estilo.[Leia Mais]


 

O QUE FAZ UM, MARCA

PAULA HUSNI

A autora faz referência ao encontro de Lilia Mahjoub-Trobas com Lacan e os efeitos de uma intervenção do analista que toca o corpo, ressoa e faz eco perturbando as defesas e inserindo um menos. Com seu corpo, o analista inscreve uma hiância ao se prestar a representar o não simbolizável do gozo. O analista advém no lugar do trauma ao provocar um vazio, o Um a menos que instaura a presença da falha da não relação sexual. [Leia Mais]


 

A INTERPRETAÇÃO JACULATÓRIA

MARISA MORETTO

A autora traz nuances da discussão teórica sobre a interpretação jaculatória situando-a no limite da palavra quando já não é mais possível o desdobramento da cadeia significante e pergunta se tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toca o corpo e incide no campo do gozo. Ali, onde a palavra se apaga, estaria o impacto, o que faz ressoar outra coisa que não a significação. Para Miller, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna. [Leia Mais]


 

UMA INTERVENÇÃO POUCO ORTODOXA

MARÍA DE LOS ÁNGELES CÓRDOBA

A autora faz uma leitura apurada do testemunho de Hilda Doolittle sobre a sua análise com Freud, presente no livro Por amor a Freud, no qual Doolittle se esforça para transmitir algo da experiência desse encontro de maneira vívida. A autora destaca a “atmosfera interpretativa” e o efeito do impacto do gesto e das palavras do analista sobre o corpo da analisante a partir de umas das intervenções freudianas relatadas por Doolittle — uma intervenção de exceção, pouco ortodoxa, que seguiu ressoando por muito tempo após o fim dessa análise.[Leia Mais]

INCURSÕES
A PSICOSE E A MÁQUINA DE INTERPRETAR

MAURICIO TARRAB

Neste texto o autor retoma e comenta outra publicação de sua autoria, “A psicose e a máquina de interpretar”, e resgata a ideia de que o real, fora do sentido, coloca em funcionamento uma máquina de produzir ficções e que a própria psicanálise pode fazer funcionar essa máquina de produzir sentido. Ele ressalva, no entanto, que, com o ensino de Lacan, é possível ir além do campo ficcional, e é esse além que o autor desdobra em seu texto. [Leia Mais]


 

“EU NÃO SOU DE FALAR MUITO, EU DANÇO”

MÁRCIA MEZÊNCIO

Comentário do filme Inocência roubada, narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma. Interrogam-se os efeitos, para o sujeito, da interpretação dada pelo discurso jurídico. Propõe-se que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo. [Leia Mais]


 

POR QUE AS MÃES DE HOJE NÃO INTERPRETAM?

MARGARET PIRES DO COUTO 

Investigam-se os embaraços dos pais, especialmente do Outro materno, em traduzir o mal-estar das crianças, o que os leva a recorrer cada vez mais ao saber da ciência por meio dos inúmeros especialistas da criança. Partindo da premissa que uma primeira interpretação é fundante do sujeito e que a dificuldade em interpretar a criança responde à inexistência do Outro, discute-se como o discurso analítico instala o Outro retirando a criança da solidão de seu gozo. Com essa operação de restituição do S2, a cadeia significante se produz com importantes efeitos de mobilidade para criança. [Leia Mais]


 

A INTERPRETAÇÃO ENTRE A ESCUTA E O QUE SE LÊ

TEREZA FACURY 

A autora elege o texto de Miller “Ler um sintoma” para abordar o tema da interpretação. A leitura de um sintoma implica em uma defasagem entre a escuta e a leitura que se faz sobre o dito do sujeito. Para esclarecer essa diferença, aborda um caso relatado por Guilherme Ribeiro no Núcleo de Psicanálise e Medicina e o testemunho de passe de Gustavo Stiglitz: “Aqui hay gato encerrado. Sobre el fenômeno psicossomático”[Leia Mais]


 

O QUE CABE AO ANALISTA NA INTERPRETAÇÃO HOJE?

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA

Este texto trata do lugar que ocupa a interpretação hoje na clínica psicanalítica a partir do último ensino de Lacan. Busca-se elucidar os deslocamentos teóricos-clínicos produzidos na prática da interpretação com o recurso de vinhetas clínicas. Da escuta do sentido do sintoma à leitura do fora de sentido, destaca-se que a interpretação opera entre o ser da falta e a fixidez do gozo, entre o saber ler e o bem-dizer do sintoma. Assim, espera-se que do encontro com o analista possam advir saídas para o sujeito lidar com o que é da ordem de seu mal-estar. [Leia Mais]

DE UMA NOVA GERAÇÃO
NEUROSE OBSESSIVA: UM DIALETO CONTEMPORÂNEO?

MARCELA BACCARINI PACÍFICO GRECO

Este trabalho parte de um comentário feito por Lacan em 1978 para investigar como o discurso do mestre contemporâneo e suas incidências podem privilegiar apresentações sintomáticas que se aproximam daquelas de que se vale a neurose obsessiva. Trata-se de discutir como determinados aspectos dessa forma de organização subjetiva, que foram apontados por Freud e retomados por Lacan, podem ser cotejados com a fenomenologia dos novos sintomas provocados pela decadência da ordem simbólica. Por fim, objetiva-se, também, levantar uma questão sobre a direção do tratamento nesses casos. [Leia Mais] 


 

O REAL DO INCONSCIENTE E A GAIA CIÊNCIA: SABER FAZER COM LALÍNGUA

BERNARDO MARANHÃO

Este artigo discute o trecho de “Televisão” em que Lacan faz menção à gaia ciência, o saber alegre dos trovadores medievais. O que se pretende interrogar é em que medida esse saber pode ser tomado como um referencial, entre outros simultaneamente possíveis, para a interpretação analítica, num contexto em que o inconsciente é concebido, com Lacan, como “o mistério do corpo falante”.[Leia Mais]