Editorial Almanaque #34

 

Lilany Pacheco
Diretora Geral do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG)
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: lilanypacheco@yahoo.com.br

 

Escrever o editorial de Almanaque On-line n. 34 não foi tarefa fácil, dada a riqueza desta edição. O pensamento que me ocorreu ao ler a revista foi o de que o leitor pode tomar diferentes trilhas de leitura, tendo em vista seu interesse momentâneo, ou o ponto em que ele se encontra em seu percurso como estudioso da psicanálise. Este editorial oferecerá apenas uma – mas você pode escolher sua trilha e me dizer sobre ela quando nos encontrarmos.

Os textos de Kafka e Ansermet poderiam ser um ponto de partida para aqueles que iniciam agora seu percurso aproximando-se de um acontecimento literário no qual o escritor criativo dá voz às preocupações do pai em relação àquilo que poderia ultrapassá-lo no tempo em relação aos seus filhos e aos filhos de seus filhos. Ocupado a descrever a existência de um objeto que subsiste ao espaço e ao tempo, Kafka permite a Ansermet interpretar:

Até onde se pode voltar quanto a origem? O que precedeu a criança é infinito: toda criança é de fato proveniente das contingências que precederam sua concepção. Ela poderia ter nascido em um outro tempo, em um outro lugar, de uma outra mulher, de um outro homem, de um outro óvulo, de um outro espermatozoide.

Ser falado por um Outro, antes mesmo de seu nascimento, como ensinou Lacan, mostra que o sujeito passará de um exílio a outro, dado que para sempre o sujeito continuará sua tarefa de separar-se da premissa de que o desejo é desejo do Outro.

Voltando ao início, o texto de Ram Mandil, apresentado na Aula Inaugural do IPSM-MG e na Abertura das atividades do semestre da EBP-MG, oferece um percurso rigoroso sobre o corpo do primeiríssimo ao ultimíssimo ensinos de Lacan, destacando o momento privilegiado do lançamento do Seminário 14, A lógica do fantasma, no qual Lacan afirmará que “o Outro é o corpo”, passando assim de uma concepção do Outro como tesouro dos significantes ao Outro como substância, ponto de partida para as concepções do corpo como superfície e furo. Destaca-se, do texto de Ram Mandil, não apenas o rigor com que nos apresenta esse percurso, mas também a generosidade com a qual mostra que a psicanálise pode ser um guia de leitura para os sintomas contemporâneos e o quanto as contribuições de Lacan para a psicanálise colocam os psicanalistas à altura de nossa época.

Leitores privilegiados de Lacan, os textos de nossos colegas Musso Greco, Samyra Assad e Ilka Ferrari mostram de que modo o tema proposto para Almanaque On-line n. 34 foi apropriado por cada um deles.

Musso Greco, em seu texto, explicita que os restos “de um discurso, letras, traços que desenham o corpo falante, bordas de gozo, sobras das identificações, decantações” tocam o corpo do ser falante.

Samyra Assad, por sua vez, lembra-nos de uma passagem de Graciela Brodsky extremamente esclarecedora: “Quando não sabemos que nome dar a esse sujeito que não se relaciona com os significantes, e sim com o corpo, o chamamos de parlêtre”. Tal percurso pode ser acompanhado na leitura de seu texto, no qual ela recupera, dos relatos de passe, o momento em que, na experiência analítica, cada analista encontrou e formulou a opacidade do corpo próprio que cada um habita.

Ilka Ferrari localiza o marco para a abordagem dos efeitos do encontro do significante com o corpo no que Lacan apresentou no Seminário Mais, ainda e no que Miller ajudou a elucidar, ou seja, o mistério da união da fala com o corpo. Assim, retomando Lacan, Ilka destaca que:

Na impossibilidade de definir o que é a vida, ele se perguntou o que ela quer, ofertando a resposta de que ela quer durar, não acabar, se transmitir. Considerou-a muda, impossibilitando que se saiba o que é estar vivo, mas nela deixando falar o saber de que, na existência, há corpos vivos e gozosos […], mortificados e vivificados pela entrada do significante nesse circuito.

Monica Campos nos oferece o testemunho privilegiado da 30ª Conversação Clínica do IPSM-MG, elucidando que, através dos casos discutidos, percebeu-se que a análise de uma criança permite a experiência de um trabalho com o trauma da linguagem em seu avesso, sobre como se conectar e se separar, talvez vislumbrando o que não tem relação. Ou seja, no tratamento de uma criança, é preciso dar a ela a chance de uma possível construção de seu próprio fantasma.

Por fim, os textos de Patrícia Guimarães e Mariah Casséte, alunas do Curso de Psicanálise do IPSM-MG, causam alegria por demostrarem de que modo o estudioso da psicanálise pode articulá-la a diferentes campos de conhecimento, de modo a enriquecer cada um deles, sem que se perca a fronteira entre ambos. O texto de Maria Casséte recorda que Freud nos convida a buscar, na experiência, na ciência ou na arte, meios de avançar sobre o “enigma da feminilidade”. Assim, ela vê, no filme Persona, de Ingmar Bergman, uma excelente fonte para essa busca, ao apresentar a interação entre uma atriz que se absteve da fala e uma enfermeira que usa a fala como investigação. Já Patrícia Regina Guimarães, médica, assinala a importância e o efeito que a falha epistemo-somática tem para o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo, retomando a seguinte afirmação de Lacan: “Se o médico deve continuar a ser alguma coisa que não a herança da sua função antiga, que era uma função sagrada, é a meu ver, prosseguir e manter em sua própria vida a descoberta de Freud”.

E, se você ainda não sabe do lançamento da Coleção Almanaque Impresso, ou se já sabe e já comprou seus exemplares, vale a pena a leitura do que inspirou a Diretoria do Instituto a criar essa Coleção, cuja edição primorosa ficou a cargo de Luciana Silviano Brandão Lopes, a quem agradeço efusivamente pelo trabalho.

Agradeço ainda aos autores que colaboraram com seus escritos para este número, principalmente a François Ansermet pela gentileza com a qual autorizou imediatamente sua publicação para esta revista. Por fim, sinceros agradecimentos à artista Tatiana Bicalho, cujas fotos escrevem corpos nesta edição de Almanaque On-line n. 34.

 




Almanaque On-line – MARÇO/2025 – Nº 34

Corpos, palavras e restos

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Almanaque On-line – Agosto/2024 – Nº 33

O único e o específico na experiência analítica

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O que é a psicose ordinária?

Fabiana Peralva Lima
Psicóloga da rede de
Saúde Mental de Belo Horizonte e Betim
faperalvalima@gmail.com

Jacques-Alain Miller, propõe em 1998 uma nova forma de pensar a clínica das psicoses. Do binarismo neurose/psicose, pelo qual Freud e o estruturalismo da primeira clínica lacaniana se guiavam, Miller avança trazendo outras orientações com o auxílio das elaborações da segunda clínica de Lacan que, na perspectiva da lógica borromeana, respalda a ideia da constituição da realidade psíquica a partir das amarrações dos registros Real, Simbólico e Imaginário.

Se antes o diagnóstico estrutural possuía definições e contornos bem delimitados sob a referência do Nome-do-Pai enquanto ausência ou presença desse significante fundamental, na segunda clínica lacaniana esses contornos já não são tão precisos e a pluralização dos Nomes-do-Pai tornou-se uma importante baliza na orientação do tratamento.

Conversações clínicas pautadas em casos que apresentavam, para o analista, dificuldades e limitações na definição diagnóstica apontavam para algo novo na clínica psicanalítica. Casos em que não se reconheciam sinais claros de uma neurose e nem tampouco sinais positivos e evidentes de psicose, como alucinações e delírios, faziam ruído à época. Foram três valiosos encontros na França cujas elaborações culminaram na definição do termo “psicose ordinária”, em oposição às psicoses extraordinárias e clássicas nas suas apresentações.

Em 1996, Miller proporcionou o Conciliábulo de Angers sobre o tema “Enigma e Surpresas nas Psicoses”. Em 1997, na Conversação de Arcachon, o debate sobre os casos raros e inclassificáveis e, em 1998, lança, na Convenção de Antibes, o conceito de psicose ordinária, uma construção teórica a partir da prática clínica.

Diferentemente das categorias clássicas determinadas nos manuais de psiquiatria, o termo “psicose ordinária” não pretende ser uma nova categoria nosológica rígida e bem definida. Além disso, exige uma escuta atenta do analista para os sinais e indícios discretos que se manifestam de forma insidiosa e gradativa. É a clínica da tonalidade, dos detalhes, das invenções e da singularidade (MILLER, 2012, p. 422). Novas formas de desencadeamento, novos fenômenos corporais e novas formas de transferências são também identificadas, impactando um novo olhar sobre a direção do tratamento. A atenção aos arranjos singulares do sujeito como defesa contra a desordem do Real e do gozo tornam-se mais relevantes.

Miller (2012), em seu texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, informa que não criou um conceito e nem um novo diagnóstico, mas sim uma noção, um significante dentro do campo vasto das psicoses, com possibilidade de construção no transcorrer dos tempos. Além disso, adverte sobre o cuidado e o perigo para que o termo não se torne “um asilo para ignorância” (MILLER, 2012, p 412-413): “Inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno deste significante (MILLER, 2012, p. 401).

Sérgio de Campos (2022) em seu livro Investigações lacanianas das psicoses: As psicoses ordinárias, relata que a psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão até que se defina o tipo clínico da psicose em questão. Considera que não se trata rigidamente de uma psicose não desencadeada e nem de uma pré-psicose. A utilidade clínica em reconhecer um caso de psicose ordinária seria identificar e preservar as amarrações do sujeito que evitaram o desencadeamento da doença no sentido mais positivo do termo.

E quando suspeitar de um caso de psicose ordinária? Miller elabora alguns indícios no que se refere a relação do sujeito no campo social, corporal e subjetivo.

Lacan (1955-56/1998, p. 565) evoca, no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, a célebre frase sobre “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”, e Miller (2012) se utiliza dela para caracterizar um indício presente na psicose ordinária. E acrescenta: “A desordem se situa na maneira como vocês experimentam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu corpo e no modo de se relacionarem com as próprias ideias” (MILLER, 2012, p. 411).

A afinidade de um estado melancólico às psicoses ordinárias no sentido do sentimento de vida do sujeito é tratada no texto “A junção íntima do sentimento de vida”, de Sophie Marret-Maleval. Ela cita autores como Miller e Jean-Claude Maleval e considera o estado pré-melancólico como uma “bússola diagnóstica preciosa da psicose ordinária” (MARRET-MALEVAL, 2017, p. 4), uma vez que também se manifestam sob índices discretos e podem, através da superidentificação a uma norma social, indicar uma forma de suplência de uma psicose ordinária, evitando o desencadeamento psicótico.

Miller traz a ideia de uma tripla externalidade. A externalidade social se refere à relação do sujeito com sua realidade social. Quando essa identificação social é negativa, há um desenquadre em sua função social por um desligamento gradativo e progressivo em relação ao Outro social. Nota-se um empobrecimento dos laços sociais e afetivos, ocasionando um prejuízo das trocas simbólicas com o mundo. O sujeito não consegue se estabelecer satisfatoriamente no trabalho, nas relações com a família e com amigos. Há também casos de identificação social positiva, ou superidentificação, quando há um investimento rígido e intenso em sua posição social, por exemplo, um trabalho, apropriando-se de uma identificação imaginária como forma de suplência.

Na externalidade corporal, nota-se um estranhamento em relação ao corpo, o Outro corporal. Em algum momento, algo do corpo se desfaz, torna-se alheio e faz-se necessário que o sujeito recorra a artifícios, grampos para apropriar-se do próprio corpo. Os sintomas e as nomeações podem ser suporte na construção de um corpo.

A externalidade subjetiva evoca uma experiência de vazio, de um estado melancólico, de uma identificação real com o objeto enquanto dejeto. Há grande dificuldade de subjetivar a existência e significantizar o gozo.

A perspectiva das novas formas de desencadeamentos, de conversão e de transferência são também orientadores na identificação e direção do tratamento na psicose ordinária, sob os nomes de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferência.

Os desencadeamentos clássicos se dão de forma abrupta a partir do encontro com Um pai, cujo efeito, em função da foraclusão do significante do Nome-do-Pai que inscreve a castração simbólica, é a impossibilidade de responder provocando um furo. Com isso, irrompem os fenômenos psicóticos, como as alucinações auditivas, as produções delirantes e os fenômenos de linguagem. Lacan (1955-56/1998, p. 584), em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, destaca:

Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito.

É a falta do Nome-do-pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabiliza na metáfora delirante. […]

É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’.

A noção de neodesencadeamento propõe um avanço na maneira de interpretar o desencadeamento que está mais associada ao desligamento do sujeito com o Outro proveniente do desenodamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário. Os novos desencadeamentos não apontam para o surgimento de sintomas produtivos, mas de fenômenos sutis, discretos, plurais e dispersos. Conforme afirma Sérgio de Campos (2022, p. 143), “emergem como descarrilamentos íntimos, desconexões entre o eu, o corpo e a pulsão”. Trata-se de desencadeamentos mais referidos à ausência da significação fálica, sendo esta o significante do sexo e da vida.

A partir do conceito de conversão como um sintoma inscrito no corpo com caráter decifrável, Miller (2012) cria a noção de neoconversão para caracterizar os fenômenos corporais em cena nas psicoses ordinárias. A neoconversão inscreve o gozo no corpo impossível de significar, portanto indecifrável e não articulado a um saber, provocando um sentimento de vacuidade. Diante disso, é necessário que o sujeito encontre saídas para constituir um corpo através de próteses que podem ser objetos, tatuagens, dimorfismos corporais, sintomas e outros.

As neotransferências são novas formas de pensar a relação entre o analista e o paciente no contexto da segunda clínica lacaniana. Se, no conceito de transferência, no que tange às neuroses, o analista é um suposto saber do inconsciente, e, nas psicoses, o saber está do lado do sujeito psicótico, na neotransferência é proposto uma posição diferente do analista, uma transferência apoiada em lalíngua. Lalíngua é o furo e a raiz da linguagem, lugar esvaziado do sentido e aquém da articulação simbólica. Trata-se de um traumatismo resultante do encontro com a linguagem. Desta forma, é necessário que o analista aprenda a ler essa língua indecifrável do sujeito e se habilite em saber fazer com o que é exposto. Da sua posição de nada saber através de um vínculo frouxo com o paciente, o analista tem a função de limitar o gozo invasivo do Outro, descompletando-o, além de favorecer a amarração dos três registros.

E, por fim, é importante destacar a relação da contemporaneidade com a psicose ordinária. Na sociedade hipermoderna, em decorrência do enfraquecimento do Nome-do-Pai, testemunhamos a falência dos ideais e de um significante-mestre na sua função organizadora. Se, antes, a existência da função mítica do Pai, enquanto exceção à castração, propiciava a consistência de um conjunto de todos sujeitos castrados, hoje vivemos a era da multiplicidade, das variadas formas de gozo e do enxame de significantes-mestre, levando à necessidade de avanços nas elaborações teóricas. Sob a perspectiva topológica borromeana, talvez possamos inferir sobre uma invasão do Imaginário sobre o Simbólico devido a uma inconsistência de referenciais simbólicos na modernidade. A pluralização dos Nomes-do-Pai vem como um novo paradigma e é nesse contexto que surge o termo psicose ordinária. Diante disso, os casos se apresentam de forma ordinária levando a considerar os indícios singulares dos sintomas e dos modos de gozo, além da multiplicidade de suplências que funcionam como se fossem um Nome-do-Pai.


Referências
CAMPOS, S. de. Investigação lacaniana das psicoses: As psicoses ordinárias. Vol. 2. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1955-56).
MARRET-MALEVAL, S. A junção íntima do sentimento de vida. Opção Lacaniana online nova série, ano 8, n. 23, jul. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/A_juncao_intima_do_sentimento_de_vida.pdf. Acesso em: 09 jun. 2024.
MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. In: BATISTA, M. do C. D.; LAIA, S. (Orgs.). A psicose ordinária: A Convenção de Antibes. Tradução de José Luiz Gaglianoni et al. Belo Horizonte: Scriptum Livros/Escola Brasileira de Psicanálise, 2012, p. 399-428.



A anorexia: corpos não aprisionados pelo discurso

Sandra Maria Espinha Oliveira
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
sandra_espinha@uol.com.br

Introdução

A anorexia, por se constituir como um sintoma fora do discurso, desvela o que se encontra no cerne da estrutura do sintoma como um gozo irredutível ao significante. Ela responde ao modelo de sintoma introduzido no último ensino de Lacan como um modo de gozo, um significante sozinho, uma letra, que fixa o gozo e não entra na estrutura da metáfora, abstendo-se de passar pelo Outro.

Aprendemos com Freud e Lacan que a entrada no discurso se dá ao preço de uma perda de gozo. No Seminário 10, para definir a operação primordial que permite a constituição do sujeito dividido, Lacan opõe à noção de traço, que transforma o corpo em significante, a noção de corte, que separa um resto que é gozo, um resto-órgão: o objeto a elaborado como uma extração corporal, à qual ele vai reduzir a dialética da causa. É a libra de carne, “pedaço carnal arrancado de nós mesmos” (LACAN, 1962-63/2005, p. 237), que é aprisionada na dialética significante e fica irrecuperável para sempre. Em torno do vazio deixado por essa perda estrutura-se o funcionamento pulsional. Sem essa cessão libidinal do objeto, “o gozo que o sujeito experimenta permanece inserido no corpo, ele luta para entrar em um laço social, para encontrar um lugar na lógica de um discurso” (COSENZA, 2024, p.63).

Os impasses nesse processo de cessão do objeto a como condição de entrada no discurso e no seu funcionamento simbólico foram analisados por Laurent e Miller (2005), à luz do último ensino de Lacan, a partir das mutações operadas no discurso do mestre tradicional pelo discurso capitalista, no qual o empuxe ao gozo sem limites tornou-se um imperativo que impregna o laço social e revela, em seu avesso, o declínio da função paterna.

Com a fórmula I < a, Miller e Laurent escrevem esse declínio do Ideal e definem o gozo contemporâneo como um gozo autístico, sem Outro, fora da lei da castração simbólica. Os sintomas contemporâneos são soluções alternativas ao sintoma freudiano em resposta a uma falha no processo de inscrição simbólica do gozo ou à sua impossibilidade, estando mais próximos da elaboração lacaniana do sinthoma e de sua concepção do inconsciente real, que fundam a clínica psicanalítica em torno do gozo que escapa ao significante.

 

Lacan escreve a mutação operada pelo discurso do capitalista sobre o discurso do mestre antigo e o apresenta como um pseudodiscurso que recusa a castração e prescinde do laço social, deixando de lado as coisas do amor. O mais singular do sujeito, seu mais-de-gozar, encarna-se nos objetos de consumo, que assumem a prevalência sobre suas referências identificatórias, apagam sua divisão e o deixam à deriva. Os efeitos de estrago produzidos revelam-se nas patologias do excesso nas quais, ao se tentar restituir o gozo ao corpo, o que se assiste é à sua ruína.

Lacan aborda o vínculo devastador do sujeito anoréxico com seu corpo a partir de uma “recusa do Outro” e por uma economia de gozo sem perdas que gira em torno do objeto nada (COSENZA, 2018, p. 22). Incluída entre as novas formas de sintoma, também chamados sintomas sociais ou patologias do excesso (COSENZA, 2024, p. 14), a anorexia aponta para a necessidade de se retomar a clínica psicanalítica a partir do real do gozo que se encontra no cerne do sintoma concebido como modo de gozo singular do sujeito.

A anorexia como fracasso da sintomatização da puberdade nas formas neuróticas

Os relatos dos casos das formas neuróticas da anorexia, que têm seu início na puberdade, isolam os fatores estruturais antecedentes à escolha da solução anoréxica como defesa frente aos impasses que uma jovem pode encontrar para se instalar numa posição sexuada como mulher e na dialética do desejo entre os sexos, decidindo-se pelo isolamento autístico do gozo assexuado que esse sintoma oferece. Entre o caminho da adolescência como sintomatização da puberdade, que supõe a passagem pela castração e pela perda de gozo, o caminho escolhido pode ser o da recusa do Outro como resposta ao estrago constituído pela relação com um desejo absoluto encarnado pelo Outro materno.

O sujeito se apresenta sem recursos diante de uma demanda esmagadora, ilimitada, desse Outro parental, que Lacan descreve como aquele que confunde seus cuidados com o dom de seu amor. Em suas primeiras elaborações, Lacan concebe a anorexia como a encarnação radical da irredutibilidade do desejo ao registro da necessidade e aborda a recusa anoréxica do alimento como uma demanda ao Outro de um signo de amor, um signo de sua própria falta.

Frente às dificuldades para separar-se de seu Outro absoluto, o sujeito encontra na solução anoréxica um tratamento do corpo constituído por uma disciplina radical destinada a exercer um domínio sobre si mesmo que acaba por se estender sobre o Outro. Trata-se de uma ação típica da posição anoréxica de controlar o Outro e de angustiá-lo, tornando-se para este “um objeto impossível de alimentar” (LA SAGNA, 2006, p. 67). A complacência perfeccionista do sujeito anoréxico em relação aos ideais parentais, que implica um “sim” indiscriminado à demanda do Outro tomada como uma ordem a ser executada, é acompanhada por um “não”, igualmente indiscriminado, da recusa anoréxica.

A anorexia se configura como uma tentativa de resposta a uma relação insustentável com o Outro, sobretudo com o Outro materno, uma tentativa imaginária de separação através da recusa do alimento, que por não funcionar como uma separação simbólica, acaba por reafirmar a onipotência desse Outro. A mãe se mantém como um Outro não castrado, onipresente, do qual é impossível se separar para que o sujeito faça a experiência de sua própria falta como irredutível ao campo do desejo materno. Na anorexia impera uma lei superegóica absoluta, sem desejo, ou como um “desejo puro” sem Outro, que se transforma em vontade absoluta de autodominação e em pulsão de morte (COSENZA, 2018, p. 130).

Em suas últimas elaborações, Lacan (1973-74 apud COSENZA, 2018, p. 130) muda a maneira de conceptualizar a relação da anoréxica com o saber ao realçar a tese de que “no cerne da relação do sujeito com o saber inconsciente não haveria desejo, mas horror ao saber” (COSENZA, 2018, p. 134). Ele acentua a recusa do saber inconsciente como o que causa horror ao sujeito anoréxico, que pode se deixar morrer para não encontrá-lo. O saber que absorve a anoréxica é um saber dessubjetivado, ancorado no regime alimentar que sustenta sua solução patológica e a deixa imobilizada e não dividida, servindo para encobrir o encontro com o horror ao saber ligado à estrutura do inconsciente como furo no real, sem garantia (COSENZA, 2018, p. 134).

A anoréxica faz com o Outro o mesmo que ela faz com o alimento, ou seja, ela o recusa. Seu discurso estereotipado em torno da alimentação eclipsa sua subjetividade e a afasta do laço social. A recusa do Outro tem como efeito o fechamento do inconsciente e se traduz por um saber congelado e vazio. A solução anoréxica tende a eliminar o intervalo entre os significantes de maneira holofrástica para excluir o enigma do campo do saber e ali colocar uma certeza absoluta, fora do significante, uma petrificação do gozo representada pelo nada (COSENZA, 2018, p. 313-314).

A recusa anoréxica coloca em jogo uma manobra de separação que não se produz a partir da assunção da alienação constitutiva do sujeito no campo do Outro, mas vai contra ela.  Para descrever essa pseudosseparação, que se manifesta no afastamento do sujeito do laço social, Domenico Cosenza destaca que a anoréxica sonha com uma separação sem perdas, uma separação imaginária que não coloca em questão a economia real do gozo que aprisiona o sujeito nas malhas do Outro e não passa pela castração simbólica (COSENZA, 2018, p. 192).

Em “Complexos familiares”, Lacan (1938/2003) localiza uma “recusa do desmame” na base da anorexia, associando o declínio da imago paterna a patologias ligadas a uma separação malsucedida do objeto materno caracterizada pela busca de um gozo pleno e nostálgico que reconstituísse a experiência primária de reencontro com a imago materna. Mais tarde, ele formulará que a anoréxica “come nada”, como uma prática que, pela recusa do alimento, produz um gozo afirmativo autodestrutivo. Não se trata, aqui, do mais-de-gozar que caracteriza a satisfação discursiva do neurótico, que é uma satisfação parcial ligada a uma perda. O gozo do nada na anorexia é um gozo ilimitado, sem perda, gozo do Um sem Outro, fora da significação fálica. O sujeito anoréxico se recusa a aceitar a perda de gozo causada pela inscrição simbólica de seu corpo no campo do Outro. Ao fazer da castração uma privação, a anoréxica positiva o gozo perdido no desmame (SORIA, 2016, p. 29). O gozo fica encapsulado no corpo e fora do discurso.

Na anorexia, a recusa do gozo recupera-se libidinalmente como gozo da recusa, como uma satisfação presente na autodestruição, na presentificação da pulsão de morte no corpo. A recusa é o modo de gozo específico da anorexia. O objeto nada funciona como defesa contra o gozo invasivo do Outro, mas também como causa de não-desejo, causa de um gozo sem limites que devasta o corpo e o faz conviver com a morte.

Para Lacan, o privilégio da imagem do corpo próprio supõe uma falta. A imagem é um véu que cobre o vazio introduzido pela castração e não se sustenta sem uma carga libidinal por ela regularizada (MILLER, 2008, p. 21). Quando o gozo pulsional não está regulado pela castração, como na anorexia, ele surge na imagem como um excesso e perturba a percepção do corpo próprio, provocando sua dismorfopercepção, tratando-se de um gozo que, no caso das mulheres, vai além de sua medida fálica. Quando a mascarada fálica como um modo de tratar o feminino — como uma forma de fazer um ser com o nada — falha, estamos no campo do não-todo do gozo feminino. Se o fálico não drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher (LACAN, 1958/1998, p. 739), se ela não sofre da ameaça da castração, ela pode construir seu ser despojando-se do ter (LAURENT, 1999). É desde essa posição feminina que se pode fazer uma relação entre o nada essencial da feminilidade e o dar a ver “nada do corpo” para a anoréxica, o que não significa ausência de véu, mas a presença do véu do horror. Ao contrário da mascarada fálica, que suscita o desejo, o véu do horror recusa o desejo e remete à encarnação da morte no corpo, que convoca a satisfação da pulsão escópica. A tentativa de negativizar o gozo pela via do imaginário falha e o excesso que surge na imagem é signo de um real não delimitado pelo significante.

É esse excesso de gozo retido no corpo que a anoréxica trata com o controle rígido de seu peso e que lhe retorna como culpa e horror. O temor de ganhar peso e a alegria de ser magra revela o caráter egossintônico do sintoma anoréxico, que remete ao fracasso da equação corpo = falo, à qual responde a falicização da magreza nas formas anoréxicas de tipo histérico.

No último Lacan, a ampliação do conceito do inconsciente como real abre a possibilidade para intervenções do analista sobre esse real, sem que elas levem necessariamente à abertura de sua dimensão simbólica, embora a aposta de que o sintoma se dialetize esteja sempre presente. Nessa dimensão do inconsciente como S1 sozinho, a operação do analista é uma operação sobre a defesa, orientada pelo real, e não pelo recalque, abrindo-se, por essa via, a possiblidade de distintos usos do psicanalista (EIDELBERG; SHEJTMAN; SORIA, 2004, p. 44).

Nessa perspectiva, o analista deve se colocar na posição de um objeto que se deixa manobrar pela transferência, sem que esta seja uma operação passiva. Ele deve evitar o fracasso que constitui o deciframento do sentido frente a um sintoma reduzido ao sem sentido do gozo. Suas intervenções, orientadas pelo real do gozo, devem visar a introdução de uma surpresa interna ao próprio discurso do sujeito, com o fim de fazer vacilar as certezas que alimentam o gozo do sintoma e separar o sujeito do lugar de objeto do gozo do Outro. É através da experiência analítica, sob transferência e sob os efeitos de escanção das intervenções do analista, que, tratando-se de uma estrutura neurótica, pode-se restituir à palavra o seu poder de isolar, na história significante do sujeito, os núcleos de sem sentido em torno dos quais o sintoma anoréxico se estruturou.

No que se refere ao real em jogo no sintoma, o manejo da transferência, tanto com o sujeito, quanto com seus pais, visa produzir efeitos analíticos identificáveis por uma cessão do gozo ao poder alienante da fala. O encontro com o real da angústia, que pode ativar uma demanda analítica no sujeito e sintomatizar a angústia dos pais (COSENZA, 2018, p. 350), deve, no entanto, ser calculado com delicadeza.

A anorexia na estrutura psicótica de tipo melancólico

Nas formas psicóticas da anorexia, a recusa do Outro pode conjugar-se com um Outro que recusa. “Ser a recusa do Outro” pode tornar-se o programa pulsional do sujeito, revelando-se em passagens ao ato autodestrutivas e em operações de desligamento do Outro que o deixam à deriva. Na falta de que o desejo da mãe seja metaforizado pelo Nome-do-Pai, o sujeito pode encontrar, no ponto devastador de sua relação com o Outro materno, seu ser de dejeto.

Se o mito freudiano do pai primevo dá conta da passagem do pai vivo ao pai morto, significante, a presença real do alimento na solução anoréxica pode ser um índice de que o pai não se tornou um significante para o sujeito. Ele pode se identificar com o objeto perdido em uma posição melancolizada, quando o amor pelo objeto se refugia no eu e o ódio entra em ação sobre esse objeto, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento (FREUD, 1917/2010 apud FERREIRA, 2014, p. 124). Frente à foraclusão do Nome-do-Pai e a consequente não extração corporal do objeto, que se manifestam na mortificação extrema do corpo e na fragmentação estrutural da imagem, a solução anoréxica pode ser lida como uma identificação com o pai primevo como detentor de um gozo ilimitado, como formulado por Freud (1914-15/2000).

O “comer nada” torna-se uma operação de nada ceder ao Outro para reter na boca o gozo primário não incorporado pela estrutura significante, em uma regressão nostálgica em direção à fusão com esse primeiro objeto mítico de satisfação que é a mãe como Das Ding e “fator de morte” (LACAN, 1938/2003, p. 41).

As referências ao estranhamento que causa o olhar-se no espelho, em que o sujeito encontra sempre uma distorção, revelam o retorno, na imagem, da retenção no corpo do objeto não extraído do corpo do Outro. O que se presentifica na imagem é o eu sem seu revestimento narcísico e identificado ao objeto, é o próprio olhar do sujeito como objeto não separado do olhar de seu Outro primordial, que encarna em seu corpo a ferocidade sem limites do supereu. Há sempre algo em excesso a ser eliminado do corpo e que visa destruir o elemento estranho, Unheimlich, da imagem corporal (COSENZA, 2024, p. 184-185), mortificando-a. É o gozo da vida que retorna ali aonde o recurso à imagem não é suficiente para aprisioná-lo. O real inominável de seu ser de dejeto retorna no espelho e pode ser nomeado através de autoinjúrias.

O amor ao pai transforma-se em um ódio de intensidade desmedida, acompanhado por sentimentos de rancor e vingança. A perda do lugar de onde o sujeito se via como amado retorna como puro ódio voltado contra si mesmo, que pode forcluir o amor. O sujeito se identifica com o furo deixado pela ausência do pai e passa a dirigir contra si mesmo o ódio àquele que o abandonou, encarnando o supereu que trata sadicamente o sujeito como um objeto (FREUD, 1917/2010). Quando o eu perde o revestimento narcísico, i(a), que um S1 lhe fornecia como suplência, evidencia-se o seu estatuo de objeto a como dejeto, como buraco no simbólico, equivalente à forclusão do Nome-do-Pai, buraco por onde se esvai a libido corporal. O que surge é esta dor profunda, uma tristeza profunda, que torna a vida vazia e sem sentido. A sombra do objeto recai sobre o eu (FREUD, 1917/2010).

Destaca-se, nas formas anoréxicas ligadas a uma estrutura psicótica de tipo melancólico, a posição da analista, que, pela permanência de sua presença, não deixa cair o sujeito e o coloca ao abrigo de seu empuxo autodestrutivo. O analista não deve recuar frente à gravidade do sintoma e não responde a esta pela angústia nem pela indiferença, mas manejando a transferência de forma a evitar se instalar no lugar desse Outro cruel que maltrata o sujeito, favorecendo a abertura de caminhos para outros pontos de estabilização paralelos a um sintoma alimentar de dimensões mais reduzidas.

Conclusão

Um amor que não contempla a dimensão da falta produz uma distorção radical da relação da mulher com o não-todo do gozo feminino que pode, então, transformar-se no sem limites do gozo anoréxico. No último Lacan, o não-todo do gozo feminino será generalizado pela afirmação de que não-todo real do gozo do falasser se resolve pelo Nome-do-Pai. Para além da sexuação edípica, Lacan propõe uma sexuação fundada sobre o real da estrutura, ali onde “não há Nome-do-Pai, a menos que cada sujeito o coloque no lugar” (SKRIABINE, 2006, p. 58, tradução nossa) através da lei particular que cada um encontra em seu sinthoma.

O Nome-do-Pai como sinthoma vai mais além do pai freudiano e define-se como função de nomeação, que não é comunicação, nem laço com o Outro, mas laço entre o sentido e o real. Como sinthoma, ele é uma invenção que faz manterem juntos, para cada sujeito, um por um, os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário, e permite fazer consistir uma realidade sem existência, na qual se desenvolve o laço social no campo dos discursos (SKRIABINE, 2006). Fazer consistir uma realidade que não tem nenhuma existência intrínseca, uma vez que ela não é senão um véu tecido de imaginário e de simbólico que recobre o real, é necessário para que o ser falante se proteja do real insuportável que se esquiva do significante e da imagem (SKRIABINE, 2006). À essa generalização da forclusão do Nome-do-Pai, introduzida pelo gozo feminino, vai corresponder uma clínica orientada pelo real e pela singularidade do gozo sinthomático.

A recusa anoréxica pode encobrir uma estrutura clínica e dificultar o estabelecimento de um diagnóstico estrutural, que só pode ser feito sob transferência e pode exigir um longo tempo de tratamento. Ela não é redutível a uma estrutura, mas existe como formas singulares de anorexia nas diferentes estruturas clínicas, exercendo “funções diferenciadas para o sujeito em relação às exigências específicas que a estrutura comporta para ele” (COSENZA, 2018, p. 169).

 

1. Texto apresentado na 29a Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG em 29 de junho de 2024. As referências aos casos clínicos foram extraídas do presente texto aqui publicado. Nossos agradecimentos à autora pelo desafio de uma nova escrita.

Referências
COSENZA, D. A recusa na anorexia. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2018.
COSENZA, D. Clínica do excesso: derivas pulsionais e soluções sintomáticas na psicopatologia contemporânea. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2024.
EIDELBERG, A.; SHEJTMAN, F.; SORIA, N. La manobra de la transferencia y los usos del psicoanalista en anorexias y bulimias. In: EIDELBERG, A. et al. Cómo tratan los psicoanalistas las anorexias y bulimias? Buenos Aires: De Bucle, 2004.
FERREIRA, M. de F. A dor moral na melancolia. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
FREUD, S. Neuroses de transferência: uma síntese. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2000. (Trabalho original redigido em 1914-1915).
FREUD, S. Luto e Melancolia. In: Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, Vol. 12, 2010, p. 128-144. (Trabalho original publicado em 1917).
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. 1973-74. (Trabalho inédito).
LACAN, J. Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 734-745. (Trabalho original publicado em 1958).
LACAN, J. Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1938).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LAURENT, E. Posições femininas do ser. Buenos Aires: Tres Haches, 1999.
LA SAGNA, C. D. L’anorexie vraie de la jeune fille. La Cause freudienne, n. 63, jun. 2006.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
MILLER, J.-A. imagem do corpo em psicanálise. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 52, p. 17-27, set. 2008.
SORIA, N. Acerca de la anorexia melancólica. In: Psicoanalisis de la anorexia y la Bulimia. Buenos Aires: Del Bucle, 2016.
SKRIABINE, P. La clinique différentielle du symptôme.  Quarto – Revue de psychanalyse, n. 86: L’invention sinthomatique, p. 58-64, abr. 2006.



O único e o específico na experiência analítica

Maria Wilma S. de Faria
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretora da Seção Clínica do IPSM-MG

A psicanálise, diferentemente de outros campos de saber, traz em seu arcabouço uma especificidade, na medida em que não trabalha com categorias e não se ocupa de generalizações, uma vez que o real da experiência analítica é o que se tem em vista. Orientamo-nos pela prática analítica, na qual se visa o caso a caso, e isso aponta para o fato de que o conhecimento em psicanálise é construído de maneira única frente a uma impossibilidade de enquadramento, de totalização ou de generalização. Cada sujeito deve se apresentar ao longo do tratamento com o seu sintoma, sua forma singular e única de lidar com o real impossível de suportar.

Pensando o específico na experiência analítica, é interessante perguntarmos: quais são os significados dessa palavra? Segundo o Dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001), o específico é: “próprio de uma espécie; peculiar; destinado ou pertencente exclusivamente a um indivíduo ou a um caso, uma situação; especial; exclusivo; próprio; inerente”. Tal definição cai como uma luva, na medida em que, na especificidade, encontramos aquilo que é da ordem também de uma unicidade, o mais próprio de cada falasser, algo que poderíamos localizar como sendo o sinthoma. Para Miller (2013, p. 133), “o sinthoma é o singular em cada indivíduo”. “O singular ‘como tal’, não se parece com nada: ele ex-siste à semelhança, ou seja, ele está fora do que é comum” (MILLER, 2009, p. 35).

Se o singular de cada falasser nos aproxima dos últimos tempos do ensino de Lacan, podemos também nos servir da particularidade, uma vez que esta abraça as categorias e as estruturas clínicas presentes no primeiro tempo de seu ensino. Não se trata de rejeitar os tipos clínicos que herdamos de Freud, de Lacan e da clínica psiquiátrica clássica, mas de saber que um caso nunca realiza o seu tipo: “Que os tipos clínicos decorrem da estrutura, eis o que já se pode escrever, embora não sem flutuação” (LACAN, 1973/2003, p. 554). O Homem dos Ratos, enquanto caso paradigmático, serve como modelo para ilustrar a neurose obsessiva; porém, nem todos obsessivos são como Ernst Lanzer. Cada obsessivo opera de acordo com seu gozo de maneira única, em que pese o fato de que, como falasser, ele esteja também em articulação com o particular e com o universal dessa categoria. Assim, “os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).

A clínica psicanalítica preconiza o Um-sozinho que habita cada ser falante em sua redução e dimensão de real. Se a loucura passa a ser generalizada e está posta a cada ser falante, a psicanálise de orientação lacaniana nos convida ao rigor, no sentido de sustentar o estabelecimento de um diagnóstico diferencial do qual não se pode abrir mão. A construção do diagnóstico diferencial é fundamental na condução de um tratamento, é a bússola orientadora para o manejo de um caso perante as especiais maneiras dos sujeitos se estruturarem psiquicamente, de saberem fazer com seu sintoma e de se inscreverem no laço social. Há, além disto, desse tratamento possível do único e específico em cada sujeito, algo que insiste em não se inscrever e que resta como irredutível. Fazer desse resto uma invenção é o que cabe a cada ser falante, independentemente de sua estrutura. Assim, valer a prática da psicanálise é um princípio ético.

A prática psicanalítica de orientação lacaniana tem também como específico fazer existir o sujeito! Procuramos localizar, em cada caso, o “divino detalhe”, a forma de funcionar do falasser. Interessa à psicanálise o para além das multiplicações contemporâneas de tipos clínicos que proliferam por todos os lados – anoréxicos, bulímicos, toxicômanos, hiperativos, deprimidos. Tais apresentações sintomáticas são compatíveis com a nossa época, pelas quais o discurso da ciência, com seu pragmatismo de adaptações, prescrições e intervenções, busca reduzir o corpo ao organismo, desconhecendo, assim, sua dimensão pulsional e de gozo.

“O que Lacan chama de sinthoma é, por excelência, o conceito singular, cuja extensão é tão somente o indivíduo” (MILLER, 2009, p. 38)”. Assim, não é possível comparar ninguém a não ser a si mesmo, de tal sorte que a singularidade de cada caso compreende o que é incompreensível e incomparável. O instante de ver está relacionado ao singular do caso; assim, desde a primeira entrevista, a forma como se localiza o nome de gozo do falasser tem a ver com esse instante de ver, com como cada analista “encarna” (MILLER, 2009, p. 40) sua presença e faz do encontro um acontecimento de corpo.

O discurso do analista, portanto, diferentemente dos outros discursos, é o único que exclui a dominação, uma vez que, em seu lado superior esquerdo, há um elemento que é “causa de desejo”: ali o analista se faz semblante e o saber se encontra apenas enquanto suposto. O discurso analítico nada tem de universal, não é para todos, e sim “para o Um-sozinho” (MILLER, 2022).

É também único da psicanálise de orientação lacaniana, enquanto ética, o não recuar, o não retroceder do ato analítico, da arte da escuta, de “seguir” o falasser em suas pequenas grandes invenções, do desafio do analista se oferecer como objeto, sempre resto e causa, para que uma transferência opere, permitindo um endereçamento. Enfim, é uma arte, e trata-se de, “do ponto de vista singular, fazer reinar um deixar ser: deixar ser aquele que se entrega a você (analista), deixá-lo ser na sua singularidade” (MILLER, 2009, p. 36).


Referências
HOUAISS, A.; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 553-556. (Trabalho original publicado em 1973).
MILLER, J-A. O inconsciente e o sinthoma. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 55, 2009.
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J.-A. Todo mundo é louco – AMP 2024. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 85, p. 8-18, dez. 2022.



Editorial Almanaque#33

Maria Rita Guimarães

 

Se Machado de Assis se ocupou, em 1890, segundo dizem, de escrever uma linda ficção sobre a invenção dos almanaques, na qual lhes dá o estatuto de “oficina da vida”, parece ser que essa estranha palavra, cuja etimologia ainda é discutida, evoca um movimento. Ou vários, simultâneos e/ou sucessivos, ao longo do Tempo, personagem lindamente escolhido por Machado de Assis em seu conto e escrito dessa maneira, com a letra T maiúscula. Outro exemplo de movimento, acompanhado de almanaque, tomamos de Wassily Kandinsky (1912/2013, p. 22), quando este escreve para Paul Westheim:

amadureceu em mim o desejo de compilar um livro (uma espécie de almanaque), em que artistas exclusivos deveriam contribuir como autores. […] A separação daninha de uma arte da outra, de “arte” em relação à arte popular, à arte infantil, à “etnográfica”, às sólidas paredes erigidas em meio às coisas que a meus olhos estavam intimamente relacionadas – tudo isso tirou de mim a paz.

Almanaque, a publicação on-line do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, neste seu número 33 homenageia Kandinsky, veste-se com a capa do livro ao qual fez referência como desejo, ainda como um projeto: Almanaque “O cavaleiro Azul”. Foi um projeto fulgurante, faísca apagada pela primeira guerra mundial dois anos após seu primeiro número, mas suficiente para incendiar, no movimento de renovação, a história da arte moderna até nosso tempo.

A revista Almanaque, em seu surgimento, tal como falou Simone Souto na conversa mantida conosco, possibilitou o movimento de espalhar pela cidade, pelas instituições existentes em Belo Horizonte naqueles idos, um forte laço: a psicanálise lacaniana e o Instituto, recém-criado. O compromisso com esse movimento mantém-se até nossos dias. Uma memória que faz a ligação do passado a um farol que ilumina o futuro. Você certamente se interessará em conhecer esse passado em Encontros.

A partir do número 33, a revista Almanaque estará muito circulante. Cada um de seus leitores a terá na palma da mão, tal como o antigo tabloide de cartas enigmáticas estampadas, que era impresso e perambulava pela cidade!

Traz uma versão descarregável: você poderá baixá-la e levá-la no celular, exatamente onde a guardou, para leitura posterior. Mas estamos confiantes de que você também a visitará no site https://institutopsicanalise-mg.com.br/publicacoes/almanaque, seu lugar de referência. Outra novidade é que, na versão PDF, suas páginas estão numeradas.

Uma revista sem índice propõe uma novidade? Não sabemos; mas, isso sabemos, é que desejamos que você a percorra, que se sinta encorajado a examiná-la. E – quem sabe? – , num outro momento poderá até nos dizer algo sobre a revista, até mesmo se a falta de índice “fez falta”.

Também importa assinalar que, entre o tempo de trabalho no IPSM-MG e seus efeitos, a publicação trará, a cada número, um conteúdo que revisitará o tema pesquisado na Seção Clínica e nas demais atividades já realizadas, focando a luz em pontos obscuros. Neste número, no ritmo dessa proposta, um título orientará a leitura dos textos que já apresentam o que se extraiu do semestre anterior: o único e o específico na experiência analítica.

Três colegas foram convidados e aceitaram nos dar a mão no e em Trilhamentos, do que sugere e provoca o título. Já exploramos, pesquisamos e vivenciamos os termos que o compõem?

Maria Wilma Faria inicialmente toma a trilha da sinonímia, buscando nos informar qual acepção da palavra, afinal, pode corresponder ao “específico” de que falamos no campo da experiência analítica. Encaminha a questão examinando-a entre o primeiro e último ensinos de Lacan, fundamentando a necessidade clínica de “saber que um caso nunca realiza o seu tipo”.

Frederico Feu, sem conhecer o texto de Maria Wilma, começa seu escrito dialogando com ele, explorando a distinção entre o caso clínico e o tipo clínico. Logo, lança-nos a proposição seguinte:

Gostaria de propor, no âmbito de nossa discussão no IPSM-MG, que a distinção entre o “único’” e o “específico” não recobre inteiramente aquela entre o caso único e o tipo clínico, especialmente se remetemos o “único” ao “Um”, marca de gozo original do falasser.

Para conhecer a argumentação formulada pelo autor a respeito de sua proposição, aceite o convite que ele nos faz e recolha o esclarecedor ensinamento que o texto nos traz.

Sérgio de Castro concentra-se no termo “Único”. Apoia-se no que foi escrito por Jacques-Alain Miller na contracapa Seminário 19 para nos trazer à reflexão a relação do Único ao Um-dividualismo moderno:

Se, por um lado podemos, ao Um-dividualismo, localizá-lo na rigidez autorreferida dos identitarismos atuais, por outro, podemos constatar que basta que se inicie uma análise para se verificar que há uma dimensão do Outro em cada um que faz voar pelos ares tal aprisionamento.

Em relação ao único e específico, o que nos aporta o texto “A histeria rígida: a existência da neurose hoje”? Esse rigoroso trabalho de Simone Souto, apresentado na Aula Inaugural do IPSM-MG e na abertura da atividades da EBP-MG em março de 2024, ajuda-nos a buscar os elementos à pergunta levantada, assim como nos traz pontos fundamentais ao estudo do tema proposto para a 27ª Jornada da EBP-MG … e as neuroses continuam existindo. Leitura imprescindível, a autora nos traça um percurso desde a histérica freudiana até a histérica de hoje. E o que se pode dizer da histérica de nosso tempo? Nas palavras de Simone Souto:

por mais que a histérica hoje apresente o sintoma sustentado no falo como significante do gozo impossível de negativizar, ela não deixa de demonstrar que o que lhe é dado como gozo é sempre aquele que não deveria ser, é sempre um gozo que não convém se comparado ao único gozo que conviria: aquele relativo à relação sexual que ela visa a atingir. Sendo assim, ela se recusa a ser o sintoma de outro corpo, do corpo de um homem, ou seja, aquilo de que ele goza. Portanto, em seu sintoma, ela goza do significante como Um-sozinho, como um corpo que se goza, mas se recusa a fazer passar esse gozo por um outro, colocá-lo à prova na relação com o parceiro.

Ainda na rubrica Encontros, atualiza-se um antigo tema, melhor dizer, um antigo debate, através de uma pergunta, já tornada clássica, feita por Silvia Tendlarz, colega da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) – a quem renovamos nossos agradecimentos pela autorização para a publicação, aqui, desta entrevista – a Éric Laurent: “O senhor encontra alguma especificidade na análise com crianças?”. A resposta vem, esclarecedora e orientadora, no sentido clínico: “Claro, a especificidade está na divisão entre o sintoma e o fantasma”.

Outro dado que surpreende é a observação – conhecida, porém pouco comentada – de Laurent:

Isso faz com que no movimento psicanalítico existam tensões entre aqueles que praticam análise com crianças e aqueles que não praticam. Muitas vezes essa separação encobre a diferença de sexos: são as mulheres aquelas que se ocupam das crianças, e os homens não. Há poucos homens que se ocupam disso – embora dependa dos países. Essa oposição é falsa e pode produzir dentro da sociedade de psicanálise a realização da diferença entre os sexos.

O que se conversou poderia se acompanhar por uma interrogação. Efetivamente, perguntar pelo que, na Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, realizada a cada semestre, se trabalhou, debateu e foi transmitido através dos casos clínicos, é assunto que toca a comunidade analítica. O texto aqui publicado nesta rubrica dá provas disso. Sem os casos clínicos – retirados em razão da confidencialidade –, podemos acompanhar o desenvolvimento teórico realizado por Sandra Espinha, sobre “A anorexia: corpos não aprisionados pelo discurso”, texto que é, aliás, uma ótima referência para a preparação ao próximo XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, a se realizar em novembro deste ano.

Por fim, De uma nova geração comparece no Almanaque trazendo uma pergunta:  O que é a psicose ordinária? A pergunta de Fabiana Peralva Lima justifica-se com o seguinte parágrafo:

Conversações clínicas pautadas em casos que apresentavam, para o analista, dificuldades e limitações na definição diagnóstica apontavam para algo novo na clínica psicanalítica. Casos em que não se reconheciam sinais claros de uma neurose e nem tampouco sinais positivos e evidentes de psicose, como alucinações e delírios, faziam ruído à época. Foram três valiosos encontros na França cujas elaborações culminaram na definição do termo “psicose ordinária”, em oposição às psicoses extraordinárias e clássicas nas suas apresentações.

Deixamos o convite: vamos à leitura deste Almanaque 33?


Referências
ASSIS, J. M. M. de. Como se inventaram os almanaques. In: Obra completa. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. (Texto originalmente publicado em 1890).
KANDINSKY, W.; MARC, F. (Eds.). Almanaque “O cavaleiro Azul” (Der Blaue Reiter). Organização de Jorge Schwartz; tradução de Flávia Bancher. São Paulo: Editora Edusp / Museu Lasar Segall, 2013. (Texto originalmente publicado em 1912).



Entrevista com Éric Laurent: Crianças em análise1

Éric Laurent
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
Membro da ECF, EBP, EOL, NEL, NLS
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ericlaurent@lacanzan.net

Silvia Tendlarz: O senhor vê alguma diferença entre a análise de crianças e a análise de adultos?

É. Laurent: Em princípio eu diria que não há diferença entre a análise de crianças e de adultos, mas, por outra parte, sim, há diferença entre crianças e adultos. Houve uma tendência, desde o aparecimento da análise de crianças nos anos 20, em Viena – tanto no grupo de Anna Freud, quanto no grupo de Melanie Klein –, de separá-las da análise de adultos, com o argumento de que o desenvolvimento e do manejo da palavra no adulto e na criança concretizavam essa diferença. O desenvolvimento da análise do jogo ou a difusão da técnica da análise dos desenhos – os desenhos foram mais utilizados por Anna Freud e o jogo por Melanie Klein – propuseram algo como uma técnica nova que necessitaria de praticantes especializados. Isso faz com que no movimento psicanalítico existam tensões entre aqueles que praticam análise com crianças e aqueles que não praticam. Muitas vezes essa separação encobre a diferença de sexos: são as mulheres aquelas que se ocupam das crianças, e os homens não. Há poucos homens que se ocupam disso – embora dependa dos países. Essa oposição é falsa e pode produzir dentro da sociedade de psicanálise a realização da diferença entre os sexos. Não há diferença entre a análise de crianças e adultos pois, qualquer que seja a idade, o sujeito desde o início está estruturado da mesma maneira. Isso significa que o manejo da língua não tem nada a ver com a estruturação do sujeito como estruturado pelo significante. Na concepção lacaniana, o fato de que a criança fale, fale muito pouco ou fale de maneira fragmentada, não a impede de estar situada na linguagem como tal. Ainda que haja um dizer sem palavras da criança, este está estruturado como um dizer. É precisamente porque Lacan situa de maneira radical o sujeito na linguagem o que permite abordar a criança da mesma maneira. O desenvolvimento da aprendizagem da língua não significa uma melhor localização na língua. A posição radical de Lacan de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem permite considerar que, fale ou não, o sujeito está completamente definido por sua localização. Em segundo lugar, durante muito tempo algo que se esqueceu do ensino de Lacan é que nem tudo é o inconsciente na experiência da psicanálise. Desde Freud, por um lado, está o inconsciente, e, por outro lado, está o Isso (que não está estruturado como uma linguagem). Em “O outro Lacan”, J.-A. Miller enfatiza sobre esse aspecto que não foi muito bem-visto durante anos, todo esse aspecto de examinar o Isso e da localização correta da pulsão durante a análise, que foi uma preocupação constante em Lacan e que foi tomada de distintas maneiras segundo a época de seu ensino até a formulação do objeto a. Isso tem muita importância para a criança. Devemos distinguir de maneira correta a posição da criança. A diferença entre a criança e o adulto é que a criança tem pais que a apresentam ao analista, e que esses pais não estão mortos para ela. A criança manifesta com seus sintomas a verdade do que é o discurso familiar sobre ela (discurso de idealizações, o que se espera dela, em que lugar está exatamente). Esse discurso sobre ela não é o essencial, o essencial é a verdade, o ponto de gozo que há em tudo isso. Em seu sintoma, manifesta a articulação entre o pai e a mãe, o que foi o desejo que produziu essa criança. A criança é produto ou é dejeto de um desejo. Lacan dizia que a maneira pela qual o psicanalista pode intervir mais facilmente é quando há essa manifestação sintomática na criança. O protótipo disso é a fobia. Os casos mais interessantes publicados foram sempre casos de fobia: o caso do Pequeno Hans, o caso de Richard de Melanie Klein, o caso de Piggle de Winnicott. Os casos mais desfavoráveis são quando a criança não é sintoma da família, mas quando ela se apresenta como o objeto do fantasma da mãe. Nisso há que se distinguir o fantasma e o sintoma como registros distintos da experiência. No sintoma o que predomina é a fixação de uma metáfora, o gozo que há em palavras congeladas, em ditos que desempenham um papel no destino da criança, ou, como dizia Freud, o sintoma organizado pelo núcleo superegóico. Mas quando a criança é o objeto do fantasma da mãe, o que predomina é um gozo que não se articula à cadeia significante, um gozo que resiste à interpretação analítica como tal. É muito mais difícil conseguir modificar a posição da criança e permitir que ela se coloque de outra maneira no discurso da família. Esses são os casos de psicose, de autismo. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que do lado do sujeito como tal, relacionado à presença do Outro da palavra que já está no mundo quando se nasce, a criança está na mesma posição que o adulto. Mas, em relação ao objeto da pulsão, ao Isso e ao gozo, há diferenças entre a criança e o adulto.

Silvia Tendlarz: O senhor acredita que também nas crianças acontece a neurose de transferência?

É. Laurent: Sim. As crianças têm transferência. Esse foi o debate entre Anna Freud e Melanie Klein, e foi Melanie Klein quem o abordou de uma maneira satisfatória dizendo que a transferência da criança e do adulto são iguais, e que devem ser tratadas da mesma maneira. Em termos lacanianos, há na criança a possibilidade do Sujeito Suposto Saber. Qualquer pessoa que recebe uma criança em análise vê muito bem como a criança situa algo do saber no lugar do analista, o que permite a transferência. Sujeito Suposto Saber do que foi dito anteriormente para essa criança em análise e mesmo antes que essa criança iniciasse a análise. O analista é a testemunha de que em algum lugar há um suposto saber de tudo o que foi dito. Nesse sentido, existe a estrutura da transferência nas crianças.

Silvia Tendlarz: O senhor encontra alguma especificidade na análise com crianças?

É. Laurent: Claro, a especificidade está na divisão entre o sintoma e o fantasma.  O caso em que a mãe se articula ao pai produzindo o sintoma como clara articulação do desejo da mãe em relação à posição do pai, ao Nome-do-Pai, é diferente de quando essa articulação não ocorre e o desejo da mãe fica articulado ao gozo da mãe sem essa mediação. Situar bem essas coisas é uma particularidade da análise das crianças. Também há outra particularidade que é o fato daquele que conduz o tratamento deixar-se cegar pela questão do desenvolvimento. Um adulto está supostamente desenvolvido, o que é uma suposição. O fato de que a criança esteja se desenvolvendo, que haja processos de maturação, dá a ilusão de que a estrutura não está constituída, que será constituída. Ainda que seja verdade que a criança experimenta seu corpo, os objetos de seu corpo que pode entregar ao outro, objeto oral, anal – que são os mais conhecidos –, o olhar e a voz, não podemos pensar que tudo se explicaria por uma fase do desenvolvimento. Essa tentação sempre foi um perigo: reduzir a posição do analista, as dificuldades da análise das crianças, ao ponto de vista do desenvolvimento. Há um ponto de vista lacaniano do desenvolvimento da criança que é a localização própria do corpo, da articulação do sujeito com seu corpo próprio.

Silvia Tendlarz: E quanto ao final de análise?

Laurent: Como lhe disse anteriormente, há os finais de análise de crianças de fato e os finais de análise que devem ocorrer. Há grande quantidade de casos em que se vai ao analista de crianças para obter um alívio do sintoma, o que pode se reduzir a um deslocamento do sintoma. Mas deslocar o ponto de vista do que era insuportável já não é tão ruim. O que seria um final de análise da criança não estaria do lado do sintoma, mas do lado do fantasma. Há poucas análises de criança que podemos considerar como terminadas; nem a análise do Pequeno Hans, nem a de Piggle, nem a de Richard são análises terminadas. Creio que é algo que há que se produzir. Contudo, há um paradoxo: poderíamos falar de análise terminada depois do encontro com o que é o gozo sexual como tal; o paradoxo seria de que, neste momento, uma criança deixa de se definir como criança. No momento no qual se poderia verificar que há uma análise terminada, é o momento em que a criança desaparece e o que há é o que se chama adulto, alguém que se enfrenta com o gozo sexual como tal.

Tradução: Beatriz Espírito Santo

Revisão: Maria Rita Guimarães


1 Nossos sinceros agradecimentos a Silvia Elena Tendlarz pela autorização para publicação desta entrevista em Almanaque n. 33. A entrevista encontra-se publicada no blog da autora, disponível em: https://www.silviaelenatendlarz.com/entrevista-a-eric-laurent/.