TRANSFERÊNCIA E PRESENÇA DO ANALISTA[1]

FRANK ROLLIER
Psicanalista. Membro da ECF/AMP
frollier@wanadoo.fr

 

Resumo: Neste texto, Frank Rollier traz a discussão sobre a importância da  presença dos corpos (analista-analisante) e seus efeitos relativos ao trabalho na transferência e de abertura ao inconsciente. As terapias a distância produzem uma exacerbação dos semblantes, uma profusão de sentidos, conectadas ao projeto político do discurso cientificista sob o qual a relação sexual possa se escrever. A “presença real” do analista é a aposta ética da psicanálise de poder tocar pedaços do real pulsional e do resto, o objeto a.

Palavras-chave: terapias a distância; psicanálise; transferência; “presença real”; objeto a.

Abstract: In this article, Frank Rollier raises an important discussion about the presence of the bodys (analyst-analysand) and its effects on the work in transference and on the opening to the unconscious. Remote therapies produce and exacerbation of the countenance and a profusion of meaning that are conected to the political project of the cientific discourse under which the sexual relation can be written. The “real presence” of the analyst is the ethical bet of psychoanalysis on being able to approach something of the remainder, of object a.

Keywords: remote therapy; psychoanalysis; transference; “real presence”; object a

 

Imagem: Jayme Reis

A internet oferece uma profusão de terapias a distância, através de vários dispositivos produzidos pelo discurso cientificista: chat on-line, webcam, fone 3D de realidade virtual, psi-robô… que esvaziam a presença real do corpo para reduzi-lo a uma voz, frequentemente associada a uma imagem. Elas se assentam sobre a sugestão e vão, portanto, na direção contrária da abordagem analítica que pressupõe, por um lado, que o analisante desloque seu corpo até o consultório do analista e, por outro lado, que o saber esteja do lado do analisante, como o ilustra a decifração da mensagem da tossezinha pela paciente de Ella Sharpe no Seminário de Lacan sobre o desejo (LACAN, 2016, p. 151–169).

Na China, foi dado um passo adiante com a oferta de sessões ditas psicanalíticas por Skype (GUYONNET, 2017, p. 26), que fazem cada vez mais sucesso.

Se as psicoterapias, mesmo em suas formas mais grotescas, permanecem presas ao sentido e podem se contentar com uma escuta que coloca à distância a presença dos corpos, não se excluem, contudo, possíveis efeitos de transferência. E isso com relação à psicanálise, que, por sua vez, visa a abertura do inconsciente?

A selvageria da ideologia “cientificista” 

Desde 1949, Heidegger identificou a invasão da ciência pela técnica. Denunciou o apresamento da natureza e a opôs à technè, que, em grego, designa “um desvelamento que produz a verdade”.

A ciência não foi estabelecida por Lacan como um dos quatro discursos, em que cada um representa uma modalidade diferente de laço social. Entretanto, estando hoje intimamente ligada ao discurso do mestre capitalista e ao discurso universitário, a ciência se converte em um cientificismo que passou a ser uma modalidade de laço social com a finalidade manter o sujeito em continuidade com o objeto mais-de-gozar. Ao mesmo tempo, o cientificismo contemporâneo enuncia que se pode saber sempre mais e que nada é impossível. Judith Miller (2013, p. 311) falava da “selvageria desta ideologia” cientificista que, pretendendo ao universal, ao Um, tem como efeito a abolição dos sujeitos.

biopolítica, descrita por Michel Foucault desde os anos setenta, hoje faz parte de nosso cenário. Fora da presença de qualquer terapeuta, o discurso capitalista visa ajustar os comportamentos às ofertas do mercado para que o consumidor esteja sempre zen ou positivo. Nessa mesma veia, o self care (LACAZE-PAULE, 2014) garante seu médico particular ao alcance do smartphone, e os robôs eróticos possibilitam um encontro sexual sem passar pela presença do corpo do outro. A exacerbação narcísica que acompanha esse impulso para a adicção se reforça frequentemente em um eu não quero saber nada disso que reduz o inconsciente e a transferência à classificação de conceitos obsoletos. A crença no Outro é abalada, a palavra é desvalorizada e considerada supérflua se ela não se refere a uma técnica suposta imediatamente eficaz e ao menor custo. Ora, a manipulação dos corpos a partir da linguagem permite oferecer uma grande variedade de técnicas supostamente terapêuticas que prometem harmonia evitando, cuidadosamente, tudo o que poderia confrontar o sujeito com a castração. Assim, o site “Psicoterapia On-Line” destaca que “quem consulta não perde tempo no transporte (…). Quando há uma necessidade urgente de comunicar alguma coisa, ele pode fazê-lo a partir do lugar onde se estiver (…) A liberdade e a flexibilidade assim produzidas (…) lhe permitem descontrair sem se sentir observado”.

A “presença real” do analista 

Freud, em 1912, falando das “emoções amorosas secretas e esquecidas” (FREUD, 1980), às quais a transferência confere um caráter de atualidade, conclui que “é impossível liquidar alguém in absentia ou in effigie” (Ibid.).

Essa questão da presença é abordada por Lacan desde seu primeiro seminário. Para ilustrar o fato de que a transferência se produz “justamente porque ela satisfaz a resistência” (1986, p. 51-52), Lacan testemunha que, em alguns casos, “no momento em que ele parece pronto para formular alguma coisa de mais autêntica (…) do que jamais pôde atingir até então, o sujeito (…) se interrompe (para dizer) — eu realizo de repente o fato da sua presença” (Ibid., p. 52 ).  A transferência se manifesta aqui pela “atualização da pessoa do analista” (Ibid., p. 54), a percepção de sua presença, que Lacan nota como um sentimento que comporta uma parte de mistério e que nós “tendemos incessantemente a apagá-lo da vida” (Ibid.).

No seminário sobre a transferência, ele indica que, paradoxalmente, é o “próprio lugar em que somos supostos saber que somos convocados a ser, e a ser, nada mais, nada menos, que a presença real, justamente na medida em que ela é inconsciente” (LACAN, 1992, p. 333). Lacan insiste sobre essa “presença real” silenciosa do analista que, in fine, só está aqui como “isso — isso, justamente, que se cala, e que cala no sentido em que falta a ser” (Ibid.). Se a transferência repousa sobre o saber suposto atribuído ao analista, não é, no entanto, com seu ser que ele opera, mas a partir de sua falta-a-ser; trata-se, para ele, de sustentar um “lugar vazio” (Ibid.) de tal forma que “o sujeito possa recuperar o significante faltoso” (Ibid., p. 337). Através de sua presença, o analista é seu “próprio sujeito no ponto onde ele se desvanece, em que é barrado” (Ibid., p. 334).

Essa noção da “presença real” será retomada no Seminário XI, em que a invenção de Lacan do conceito do objeto pequeno a dará a ele uma nova coloração. Ele dedica uma sessão à “A presença do analista” (LACAN, 1988, p. 119–120) e começa evocando o lançamento de um livro epônimo de Sacha Nacht (1963), cacique da SPP, que sustenta que o médico deve manifestar uma “presença gratificante” (Ibid., p. 201), consistindo em “uma disponibilidade constante, um acolhimento incondicional, uma paciência ilimitada” (Ibid., p. 3) e ainda “uma atitude profunda de dom autêntico” (Ibid., p. 85 ) e uma “bondade incondicional” (Ibid., p. 188). A essa avalanche de boas intenções, Lacan retruca qualificando esse livro como “pregação lacrimejante” e de “intumescência cerosa” (LACAN, 1988, p. 121).

A internet não era então imaginável; portanto, não é a ausência do encontro de corpos que Lacan repudia, mas os analistas que se representam na transferência mais como um afeto do que como um amor autêntico — eine echte Liebe (Ibid., p. 119) —, que invoca o inconsciente como instinto ou mesmo reduz a transferência a trocas de inconsciente a inconsciente.

Para Lacan, uma recusa do inconsciente, essa “tendência” que se manifesta ocasionalmente deve logicamente “ser integrada no conceito de inconsciente”, pois ela somente traduz “um movimento do sujeito que só se abre para tornar a se fechar, numa certa pulsação temporal” (Ibid., p. 121.). E — este é o ponto crucial — a presença do analista “é ela própria uma manifestação do inconsciente” (Ibid.), inseparável de seu próprio conceito. Lacan acrescenta que “a presença do analista é irredutível, como testemunha” (Ibid., p. 122) de uma perda total. É, de fato, através dessa presença real de corpos que a função de um objeto perdido pode se revelar: esse objeto é o objeto pequeno a que “causa radicalmente o fechamento que comporta a transferência” (Ibid., p. 128). O objeto pequeno a está, portanto, no cerne dessa questão da presença, que, para Lacan, não está ligada ao ser nem a uma virtude particular do analista, mas à irrupção do objeto de gozo na transferência, essa irrupção sendo o “meio (…) pelo qual o inconsciente torna a se fechar” (Ibid., p. 125).

Lacan fala também da “presentificação dessa esquize do sujeito, realizada aqui, efetivamente, na presença” (Ibid., p. 126. ), o que ele opõe à “parte sã do eu do sujeito” sobre a qual a psicanálise americana está focada apelando “ao bom-senso” do paciente para fazê-lo “notar o caráter ilusório de tais condutas no interior da relação com o analista” (Ibid. p. 125–126). Ora, é exatamente essa parte sã “que fecha a porta (…) ou as janelas” enquanto “a bela com quem queremos falar está lá detrás, que só pede para reabri-los” (Ibid. p. 126).

Ele considera, em seguida, o paradoxo freudiano segundo o qual o analista deve esperar a transferência, ou seja, o fechamento do inconsciente para começar a interpretar. Ignorando as críticas da ortodoxia que o reprovam por querer “intervir na transferência” (Ibid., p. 123.), Lacan adianta que é precisamente “neste momento que a interpretação se torna decisiva” (Ibid., p. 126.) e que, assim, o analista “apela a reabertura do postigo” (Ibid.) tratando a transferência como um “nó górdio” (Ibid., p. 129).

Nas lições seguintes, Lacan precisa como o objeto a faz o “papel de obturador” (Ibid., p. 138) no fechamento do inconsciente. Jacques-Alain Miller comentará sobre esse enfoque no fechamento mais que sobre a abertura, notando que esse momento testemunha “da interferência da sexualidade no inconsciente sob a espécie do objeto a” e que é justamente nesse fechamento que “o mais real do inconsciente surge” (MILLER, 2012). O que Lacan indica nesse mesmo Seminário XI, aí avançando, é que “a transferência (é) a atualização da realidade do inconsciente” (LACAN, 1988, p. 142), realidade que é sexual (Ibid., p. 144), pulsional. É a essa dimensão sexual do ser vivo que a presença do analista dá corpo e é ela que a ausência dos corpos permite ignorar.

Podemos, então, reler o seminário A transferência a partir do Seminário XI e medir o caminho percorrido por Lacan: ele anunciou ali que “somos convocados a (…) ser nada mais (…) que a presença real (…) na medida em que esta é inconsciente” (LACAN, 1992, p. 333). Podemos ouvir essa presença real agora como aquela do objeto pequeno a, que o analista visa encarnar para seu analisante.

“Fazer surgir a não relação sexual”

No Seminário O sinthoma, doze anos após o Seminário XI, Lacan diferencia com precisão o inconsciente do real, que é desprovido de sentido. A função do real se distingue daquele pelo fato de que “o inconsciente não deixa de se referir ao corpo” (LACAN, 2006, p. 131), esse corpo que o falasser “adora” e que assinala basicamente a dimensão imaginária que é sua “única consistência” (Ibid., p. 64).

Isso nos permite lembrar o óbvio e dar um passo a mais: a presença real do analista não é certamente aquela de sua imagem, mas aquela que, segundo a expressão de J-A. Miller, relendo o último Lacan, permite à “palavra considerada como pulsão” (MILLER, 2014) se desdobrar. O dispositivo do divã está ali exatamente para eliminar, tanto quanto possível, essa presença imaginária dos corpos. A pulsão está localizada fora do corpo imaginário. O analista, entretanto, poderá ocasionalmente utilizar seu corpo para interpretar a partir de sua posição de objeto a. Éric Laurent propõe que, jogando “com o acontecimento de corpo, com semblante de trauma” (2016, p. 16), ele poderá, assim, tocar o gozo.

J-A Miller nos especifica que “levar seu corpo à sessão”, “deitar-se no divã, é se tornar puro falante, experimentando a si mesmo como corpo parasitado pela palavra” (FAVEREAU, 1999), mas que “ver-se e falar-se, isso não faz uma sessão analítica (…) É necessária a co-presença em carne e osso apenas para fazer surgir a não-relação sexual” (Ibid.), esse real ao qual o falasser não cessa de se confrontar e de responder através da formação de sintomas.

A propósito do “bom uso do sinthoma” na prática da psicanálise, ele assinala que, do ponto de vista da singularidade de cada um, “a sessão analítica tende a se reduzir ao instante” (MILLER, 2009), a um evento que deve ser encarnado, especificando que, com alguns pacientes psicóticos, o encontro com o terapeuta “pode, no limite, precisar somente de um aperto de mão e de um ‘Tudo bem?’ — ‘Tudo bem’ (…). Necessita simplesmente de um coração batendo, da encarnação da presença” (Ibid.).

J-A. Miller acrescenta que “todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, tropeçarão nisso” (Ibid.) quer dizer sobre o “fora-de-sentido da relação sexual” (LACAN, 1953), esse furo no simbólico que causa o fracasso ao qual o falasser está fadado. E ele conclui que “quanto mais a presença virtual se torna comum, mais preciosa será a presença real” (FAVEREAU, 1999).

Nas terapias a distância e, consequentemente, com a Skype-análise, a ausência de corpos faz sintoma do nada querer saber disso que falha e disso que se perde, da dimensão pulsional como fundamento da relação com o Outro (MILLER, 2000). Essas terapias que colocam em cena uma presença virtual são, elas próprias, um sintoma (GUYONNET, 2017) da recusa do impossível.

Lacan assinalou a importância das entrevistas preliminares, da “confrontação de corpos” (LACAN, 2012). A ausência de corpos, de seus deslocamentos na sessão, abre mais para o mundo dos semblantes do que para o encontro do real pulsional e do resto, o objeto a. Mas é precisamente o projeto político do discurso cientificista que não haja resto e que a relação sexual possa se escrever. Então, como se situa hoje a psicanálise nesse contexto de arrebatamento pelas tecnociências? Isso que Lacan denunciou em 1964 como um obscurantismo, “muito característico da condição do homem de nosso tempo de pretensa informação” (LACAN, 1985. P. 122–123), não perdeu nada de sua atualidade.

A psicanálise “permite se desintoxicar da overdose de saberes e da conexão”, escreve Éric Laurent (2020). Ela também é o lugar onde o sujeito tropeçará sobre o impossível e, assim, encontrará os pedaços de real com os quais ele não cessa de se “confundir” (MILLER, 2000). 

Vinheta clínica

Após anos de tratamento, um paciente vem por causa de uma impotência sexual antiga que, diante do horror da castração feminina, o faz fugir de suas parceiras. Contudo, ele se apega mais firmemente à negação dessa castração, o que evita que se confronte com a sua.

Um dia, a sessão se torna o lugar de um pequeno drama na transferência. Ele anuncia que não suporta mais que o analista se cale, que não responda às suas súplicas para salvá-lo de seu mal-estar. “Isso não é humano!”, diz ele. Ele faz a experiência dolorosa da solidão radical do sujeito e, ao longo dessa sessão, põe-se a gritar, a bater na parede ao lado do divã, depois se levanta e sai do consultório com uma grande cólera. Com esse acting out, ele repete na transferência aquilo que acontece com ele a cada tentativa de penetrar uma mulher, o que me permite, em seguida, interpretá-lo: diante do furo, ou seja, da ausência de significante para representar o Outro sexo, surge a angústia e ele se esquiva.

A consciência repentina do silêncio do analista levou ao surgimento do objeto, seguido do fechamento do inconsciente quando ele deixa a sessão. O analista encarna, desse modo, esse resto que o sujeito não controla, esse “resíduo não imaginado do corpo” (LACAN, 2005), como diz Lacan, este a/- φ cujo encontro tem um efeito de divisão sobre ele.

Na sessão seguinte, ele pode dizer do desejo de que a parceira tenha algo para lhe dar. O que ele espera é castrá-la desse ter imaginário e privá-la de seu gozo para que ele não perca nada na relação sexual.

É somente na transferência, corpos presentes, que ele pode tocar esse real que é um ponto impossível.

A presença real do analista, que é sustentada pela colocação em ato de seu desejo, permanece, mais do que nunca, uma aposta ética e política.

Tradução: Letícia Mello
Revisão da tradução: Letícia Soares

Referências
FAVEREAU, É. Le divan. XXIe siècle. Demain la mondialisation des divans? Vers le corps portable. Par Jacques-Alain Miller, Libération, 3 julho 1999 in https://www.liberation.fr/cahier-special/1999/07/03/le- divan-xx1-e-siecle-demain-la-mondialisation-des-divans-vers-le-corps-portable- par-jacques-alain-m_278498. Nossa tradução.
FREUD, S. (1912b). A dinâmica da transferência. Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XII, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
GUYONNET, D. “La Skype analyse en Chine. Quand le divan fait symotôme”, La Cause du désir, n. 97, novembro 2017, p. 26. Nossa tradução
LACAN, J. (1953 – 54) O seminário livro I, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1986, p.51 – 52.
LACAN, J. (1959 – 59) O Seminário, Livro VI, O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016, p. 151 –  169.
LACAN, J. (1960 – 61) O seminário, livro VIII: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992, p. 333
LACAN, J. (1960 – 61) O seminário, livro VIII: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992, p. 333.
LACAN, J. (1962-1963) O seminário livro X A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,. 2005, p. 71
LACAN, J. (1964) O Seminário, Livro XI: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 119 – 120.
LACAN, J. (1971-1972) O seminário livro XIX …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p. 220.
LACAN, J. (1973) Televisão In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 512.
LACAN, J. (1975 – 76) O Seminário, livro XXIII – O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006, p. 131.
LACAZE-PAULE, C., “Self-made-care”, Lacan quotidien, n. 412, 28 de junho 2014, http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2014/06/LQ-412.pdf
LAURENT, É. Gozar da internet. In  http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet Consultado em 07/12/2020.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 16
MILLER, J. “Scientisme, ruine de la Science”, Scilicet “Um réel pour le XXIème siècle, 2013, Paris, p. 311. Nossa tradução
MILLER, J. Coisas de fineza em psicanálise. Orientação Lacaniana III. Seminário inédito, aula de 17/12/2009.
MILLER, J-A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. El ultimíssimo Lacan – os cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2014.
MILLER, J-A., A teoria do parceiro. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.
NACHT, S. La présence do psychanalyste, Paris, PF, 1963.
[1] Retomada de uma conferência em Tel-Aviv em 11 de maio de 2018, no seminário Nouage du GIEP-NLS.



A PRESENÇA REAL E A FUGACIDADE DO CORPO[1] 

CATHERINE LACAZE-PAULE
Psicanalista. Membro da ECF/AMP | lacazepaule@gmail.com

Resumo:  Catherine Lacaze-Paule aborda a atual experiência de confinamento para refletir sobre suas repercussões na clínica psicanalítica praticada virtualmente. Nesse contexto, ela indaga quais seriam “as condições para que um encontro seja real, para que uma presença se faça sentir, para que ela se experimente”. A autora se serve da expressão lacaniana “presença real” enodada ao desejo do analista e, dessa forma, dá um passo além dos termos — presencial, a distância — que o discurso corrente faz uso.

Palavras-chave: confinamento, presença real, objeto a

Abstract: Catherine Lacaze-Paule addresses the current experience of confinement to reflect on its repercussions in the psychoanalytic clinic practiced virtually. In this context, she asks what would be “the conditions for a meeting to be real, for a presence to be felt, for it to be experienced”. The author makes use of the Lacanian expression “real presence” that is rooted in the analyst’s desire and, in this way, takes a step beyond the neologisms — in person, at a distance — that current discourse makes use of.

Keywords: confinement, real presence, object a

Imagem: Jayme Reis

 

 

Durante o confinamento, experimentamos os corpos ausentes, a distância. Percebemos que as noções de proximidade, de distância, de fronteira entre si mesmo e do outro eram insuficientes para dar conta da presença. O próximo, o distante, a distância social, o blurring — neologismo inglês para designar a ausência de fronteira entre o privado e o profissional — , o FOMO (fear of missing out[2]) — medo de perder algo nas redes sociais — ou o FOGO (fear of going out) — medo de sair de casa, que parece ser uma nuance da agorafobia — são os novos sintagmas que testemunham novas doenças ligadas à presença e aos efeitos das relações com o outro, com o exterior, com o vizinho próximo, com o íntimo e com o êxtimo.

Para atenuar a ausência, o digital se impôs nas vidas inserindo-se profundamente. Dois termos passaram para a linguagem comum para circunscrever esse efeito, o “presencial”[3] e o “a distância”. Com a tecnologia digital, tivemos acesso à possibilidade de “nos ver” sem estar de forma presencial, “nos ouvindo” ao nos conectarmos, nos aproximarmos, mas a distância. Toda vez que o objeto a é tocado, o ver se impõe em detrimento do olhar, e a imagem especular torna-se o reflexo de si mesmo. A ausência do corpo que não se enlaça, sem lastro, sem fazer mais uso da palavra, perde-se, esvazia-se de sentido e gozo. Consequentemente, efeitos de “fadiga”, de “corpo cansado” e mesmo de “lassitude”, por vezes se fazem sentir. Nossos encontros se digitalizam. Nossos encontros se virtualizam. Nós tocamos a presença?

Sem a presença dos corpos, sem a confrontação dos corpos, a presença se faz mais enigmática, mas necessária. Será sempre assim? Quais são as condições para que um encontro seja real, que uma presença se faça sentir, que ela se experimente? Como se produz o sentimento da presença?

As sessões analíticas não escaparam desse problema e atestam em que a análise é indissociável de uma certa relação aos corpos presentes. O que a ausência dos corpos revelou é que o corpo escapa. Lacan evoca a fugacidade (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 229) do corpo em O seminário 8: a transferência. Introduzamos o equívoco da fuga, dos corpos ausentes e dos corpos que escapam para interrogar o que é a presença real. Esta é aquela que se faz “em carne e osso”?

A expressão presença real (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 240) aparece pela primeira vez no seminário sobre a transferência, em diversas ocasiões e, também, como título de capítulo. É através de sua negatividade, sua negação, que frequentemente essa noção é apreendida. Nesse seminário, é sob a forma do insulto. O insulto à presença real que Lacan localiza na clínica de uma neurose obsessiva feminina. Seu sintoma consiste em ver, sem que se trate de uma alucinação, no lugar da hóstia, os órgãos genitais masculinos. Esse insulto à dimensão sagrada do dogma religioso católico é como um insulto feito à Eucaristia. Lacan se baseia nele para evocar a noção de presença real. Segundo São Tomás de Aquino, a presença real é substância. Ela não serve para designar uma coisa visível pelo “olho corporal”, mas sim a realidade inteligível de um ser. A presença real nomeia o corpo de Cristo. Ela não é perceptível através de nenhum dos sentidos nem pela imaginação, mesmo quando o vinho e o pão (a hóstia) dão forma imaginária para recobrir essa substância. Lacan se serve desse termo para dar conta da função do grande Phi, a função do falo, o que simboliza a ausência e a presença que ele designa como presença real. O grande Phi simboliza, ao mesmo tempo, a significação e seu além, o intervalo entre dois significantes, como presença vazia, como não relação entre dois significantes (S1//S2). “Pois ao signo que há para dar [pelo psicanalista], falta significante” (LACAN, 1960 – 1961 / 1999, p. 232).

Em cada intervalo se abre para o sujeito a questão do desejo do Outro, e algo do desejo se manifesta, mas nada que seja significável. É por isso que o obsessivo se dedica a conjurar o intervalo entre dois significantes toda vez que este se apresenta diante de si. Assim, no tratamento, a função que o falo simbólico ocupa em seu lugar “é que não é simplesmente signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960 – 1961/ 1992, p. 244).

O falo, além de sua representação de órgão, além de toda representação ou possível significação, tem um status de signo. Mas esse signo é presença real que o analista, em seu desejo e seu corpo, pode encarnar em carne e osso.

Os objetos a são alojados no analista, ele os encarna. Distingamos com o ensino de Jacques-Alain Miller: o começo do tratamento, momento em que a idealização é apenas a máscara do objeto a, é a etapa da revelação. Esta é seguida pela repetição: a análise que perdura. Enfim, o terceiro tempo, aquele da estagnação, o da gaiola do sintoma, sua inércia. Aquele do gozo bem real. De acordo com os momentos, os objetos da demanda e do desejo são sublinhados, acentuados, marcados ou, ao contrário, reduzidos a zero, subtraídos pelo analista. O manuseio do objeto é o que funda o buraco real na linguagem e, ao mesmo tempo, o que o simboliza e o que cobre a falta sob seus vários disfarces. Quer o olhar seja firme, quer seja fugidio, aqui, o corpo do sujeito é, acima de tudo, o do narcisismo, reduzido à imagem. Seja na idealização da verdade, seja do discurso e do significado, o analista encarna o Outro como lugar dos significantes e da verdade. Por outro lado, através de seu silêncio, ele indica a presença do gozo. O seu silêncio, ou sonoridade, é o que convoca o objeto voz. A voz que não é sonora, que não é aquela da vocalização, mas a que surge cada vez que o significante cai sobre o que não pode ser dito, sobre o que é indizível. É a voz que se assemelha ao que despenca, ao que cai do corpo quando o significado se perde e foge. A palavra, sem o eco produzido pelo silêncio do analista, esvazia-se de significado e de gozo.

Da mesma forma, o corpo do sujeito, como sustentação do brilho fálico ou depositado no divã como uma casca, se confronta com o corpo vivo do analista, para além do que é, com o que existe. A presença real do corpo do analista como suporte é também aquela que convoca o presente do dizer. “Trata-se da oposição do que chamarei de dizer do presente ao presente do dizer” (LACAN, 1957 – 1958/ 1999, p. 65), distingue Lacan em O seminário 5as formações do inconsciente. Ele especifica que não é simplesmente um jogo de palavras, mas que a atualidade do presente permite localizar a atualidade do falante no nível da mensagem, enquanto o presente do dizer abre o espaço à metonímia ou ao que se ouve. Acrescentamos: o que é lido a partir do que é dito, o que se goza de dizer. Quando o psicanalista é presença, ele é, ao mesmo tempo, apoio velado de um desejo — Che vuoi? — e suporte, através do objeto a em presença, do gozo.

Pois, quando o desejo do analista se faz suporte de uma presença real como impossível, ele pode também encarnar, fazer interpretação de um evento de gozo singular. Se o significante não é tudo, a presença real enodada ao desejo do analista é o index do real do gozo do corpo. Com a presença real, Lacan nos coloca na via da sessão analítica como objeto topológico, um real que não é produzido pelo impossível, mas pelo nó, pelo manuseio do nó.

Tradução: Luciana Silviano Brandão
Revisão: Giselle Moreira

Referências:
LACAN, J. (1957–1958) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1960–1961) O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

[1]
 Publicado originalmente em: lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2020/09/ironik-42-Habeas-corpus.pdf
[2] Cf. “Le confinement et le fomo, fear of missing out sur les réseaux sociaux”, disponível em www.nova.fr.
[3] Esse adjetivo qualifica uma maneira de funcionar em situação real, no tempo presente, sem intermediário nem mídia interposta. Se opõe ao “virtual” ao “a distância”. Geralmente utilizado no contexto profissional. Disponível em www.linternaute.fr.



PSICANÁLISE E ESQUECIMENTO: PONTUAÇÕES SOBRE ESTES TEMPOS ESTRANHOS

HENRI KAUFMANNER
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP |
kaufmanner@gmail.com

Resumo: Partindo da pergunta lançada por Lacan ao final do seminário XI, sobre uma possível impostura da psicanálise, pergunta-se o que o conduziu a traçar uma distinção entre a religião, a ciência e a psicanálise sob a perspectiva da ideia de esquecimento. Sublinhando como o avanço do discurso da ciência em nosso tempo, com sua oferta indiscriminada de objetos de consumo, provocou o tamponamento da falta do sujeito barrado e afetou “gravemente essa distinção entre esses campos em sua relação com o esquecimento”, faz-se recordar que, nesse mesmo seminário, Lacan já alertava quanto aos efeitos da chamada mass media, algo que hoje podemos traduzir como a era das tecnociências, aí implicada a virtualidade das nossas relaçõesDiante desse cenário, o que nos é exigido é a audácia da invenção.

Palavras-chave: psicanálise, religião, ciência, esquecimento, mundo virtual

Abstract: Starting from the question raised by Lacan at the end of seminar XI about psychoanalysis possible imposture, we ask what led him to make a distinction between religion, science and psychoanalysis through the idea of “forgetfulness”. Underlining how the advancement of the science discourse in our time, with its indiscriminate offer of objects of consumption, has caused the tamponing of the lack of the barred subject, and has “greatly affected this distinction between these fields and their relation to forgetfulness”. In the same seminar, Lacan had already warned us about the effects of the so called mass media, that today we can translate as the era of the technosciences implicating in the virtuality of our relations. In this scenario, the audacity of the invention is what is required of us.

Keywords: psychoanalysis, religion, science, forgetfulness, virtual world.

 

Imagem: Jayme Reis

 

Proponho pensar os desafios que se impõem à psicanalise nestes tempos estranhos tomando como eixo alguns pontos que me parecem centrais, desenvolvidos por Lacan (1985) ao longo do seminário XI. Nesse seminário, realizado após sua excomunhão, Lacan intenta constituir um viés científico para a psicanálise. Após a formulação do objeto a, no seminário sobre a angústia, ele se esforça por ir além de Freud, além do pai, deslocando-se da transcendência do simbólico ao acontecimento de corpo.

Vale ainda ressaltar que tal desenvolvimento se faz em torno da lógica da alienação e separação, que repercute as relações do sujeito com o objeto nesse momento do ensino de Lacan.

Religião, ciência e psicanálise

Ao concluir o seminário, em sua última lição, Lacan interroga: como nos garantir que não estamos numa impostura?

Na sequência, destaca a religião como impostura, pelo menos se tomada a partir das referências suscitadas no século XVIII, século do homem do prazer, do homem das luzes. Lacan acentua que não basta sair do registro da crença para se temperarem seus efeitos de alienação, a simples descrença diz, não é suficiente para superar os efeitos sobre o ser do sujeito (LACAN, 1985, p. 256). O descrente, portanto, não experimenta necessariamente essa queda na representação significante, esse vazio do saber da operação de separação.

A ciência, por sua vez, seria indiferente a essa questão. De maneira distinta da religião, não se situa no campo da alienação. É num ponto preciso no campo da separação que se sustenta o lugar do cientista. Sendo assim, “o corpo da ciência, só conceberemos seu porte ao reconhecermos que ele é, na relação subjetiva, equivalente ao que chamei aqui de a minúsculo” (LACAN, 1985, p. 257).

Já a psicanálise vai além da ciência, embora tenha como esta o ponto de partida cartesiano. Como consequência desse mais além, ela é, por mais das vezes, aproximada e, por que não dizer, confundida com a religião.

A única maneira de abordar esse problema, diz Lacan, é que a religião, como modo de “subsistência do sujeito que se interroga, se distingue por uma dimensão que lhe é própria e que é marcada por um esquecimento” (LACAN, 1985, p. 257). A religião teria como recurso resgatar esse mais além como operatório e mágico através do sacramento, na medida em que este tem como função encobrir a operação de separação pelo esquecimento.

Em contraposição, é justamente nesse esquecimento que a psicanálise opera. Diferentemente da religião e tributária das mesmas origens da ciência, a psicanálise se ocupa desse furo, dessa hiância presente nas relações do sujeito com o Outro[1]. Não há nada para a psicanálise esquecer, pois, para ela, não está implicado nenhum reconhecimento, nem mesmo da sexualidade, já afirmava Lacan.

Podemos abordar essa questão por um outro viés, apoiando-nos em Miller em seu texto “Triângulo dos saberes” (2017, p. 261). Miller situa a psicanálise na falha que se apresenta entre a retórica e a ciência. Com o avanço da lógica do consumo, não parece demasiado pensar que o discurso do capitalismo oblitera a falha, o que repercute como dificuldade para a psicanálise se assentar, na medida em que se exclui o encontro com o furo. A prática com os adictos é pródiga em exemplos dessa dificuldade.

Podemos assim diferenciar estes três campos: a religião no campo da alienação; a ciência, indiferente e que subsiste no campo do objeto, tomado aqui enquanto materialidade; e a psicanálise ocupando o furo. Lembremos que o objeto é uma consistência lógica que apenas eventualmente ganha materialidade, o que nos permite perceber a distinção entre o real da ciência, que retorna sempre ao mesmo lugar, e o real da psicanálise, que é contingente.

Quais seriam as consequências do avanço do discurso do capitalismo sobre a distinção entre esses campos?

A oferta abusiva e indiscriminada de objetos de consumo, de uma materialidade insistentemente renovada dos gadgets, cristaliza-se numa espécie de curto-circuito, representado por Lacan na relação direta do objeto tamponando a falta do sujeito. Isso afeta gravemente essa dintinção entre esses campos em sua relação com o esquecimento. Esse curto-circuito produz como que uma diluição deles mesmos. Assim, o esquecimento da religião, a indiferença da ciência e o furo, objeto da psicanálise, se apresentam não mais tão facilmente dissociados.

A profusão imaginária de objetos em nossos tempos, sobretudo com o advento do mundo virtual da internet e redes sociais, invade os campos de existência do ser recobrindo a falha, onde a singular experiência do falasser incidiria.

Vimos acompanhando, ao longo da pandemia, como que religião e ciência se imiscuem; testemunhamos os fenômenos que vão do negacionismo ao misticismo mais fanático. Não deixa de causar perplexidade acompanhar, por exemplo, a resposta da medicina e sua desorientação neste momento particular do mundo, em que não encontra mais suporte na ciência. Impressiona também a forma como os fármacos passaram a ocupar o lugar de objetos devoção, de utilização política ou mística.

Transferência e sacrifício

É bem conhecida a afirmação que, para operar com a transferência, cabe ao analista fazer valer o semblante do objeto, que, no seminário XI, Lacan articula como causa do desejo. Por essa via, acontece a captura amorosa na medida em que o sujeito se oferece ao Outro na busca do encontro do desejo. Mas, na medida em que o objeto é um semblante, um encobrimento do furo, o que o sujeito acaba encontrando na análise é a falta do Outro, que o remete à sua própria falta.

Ilumina-se, assim, a afirmação de Lacan, inspirada na obra de Appolinaire, de que não basta ao analista se fazer de Tirésias, é preciso que ele tenha mamas. Não basta a mera presença do analista, a presença de seu corpo, é preciso que ele faça reinar o semblante do objeto para que a pulsão seja assim capturada em seu percurso. O semblante não é sem o furo, ele toca algo desse real que captura a pulsão. Cito Lacan (1985, p. 261):

Quero dizer que a operação e a manobra da transferência devem ser regradas de maneira que se mantenha a distância entre o ponto desde onde o sujeito se vê amável — e esse outro ponto em que o sujeito se vê causado como falta por a, onde esse vem arrolhar a hiância que constitui a divisa inaugural do sujeito.

Inspirado nas elaborações freudianas, Lacan sempre indicou como importante para o surgimento da psicanálise esse distanciamento que Freud fez da hipnose, na qual o Ideal do eu e a imagem ideal se sobrepõem. Descolada da hipnose a transferência analítica, constituiu-se um novo estatuto para a dimensão amorosa presente na relação do sujeito com o Outro.

Não seria então uma mera coincidência que, na última lição do seminário XI, Lacan tenha feito um rápido comentário sobre os efeitos, já por ele observados, da chamada mass media. Ali, muito antes do advento do mundo virtual, a produção excessiva e oclusiva do objeto a partir dos recursos tecnológicos da época já era motivo de alerta, por Lacan, da presença planetária invasiva da voz e do olhar. Como também não é de causar estranheza que, logo em seguida, ele se ocupe do tema do sacrifício.

Lacan faz uma crítica contundente à precariedade das leituras dominantes que tentam explicar o nazismo e o holocausto. Ressalta a ressurgência da oferenda a deuses obscuros de um objeto de sacrifício, situação sob a qual poucos sujeitos poderiam deixar de sucumbir, tratando-se de uma “captura monstruosa”.

Denuncia que a crítica histórica a esses fenômenos é tomada por certo fascínio pelo sacrifício[2]. Diz, contudo, que um olhar corajoso para esse mistério revelará que “o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro”, que é então chamado por Lacan de “Deus obscuro” (LACAN, 1985, p. 266).

Discorrendo sobre esse tema, Zaloszyc (1994) retoma a passagem bíblica do Êxodo, de quando Deus fala a Moisés: “Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; porém a minha face não se verá” (XXXIII/23).

Segundo Zaloszyc, da forma como Deus fala a Moisés, pode-se depreender que este somente teria acesso ao que Deus lhe depusesse: seus mandamentos, seu texto, suas prescrições. Moisés jamais alcançaria os fins em jogo naquilo que Deus lhe apresentava. Ele poderia apenas supor o sentido em jogo no texto divino, supor o saber desse que se apresenta a ele com seus mandamentos (ZALOSZYC, 1994, p. 10). Constata-se, assim, que houve um encontro de Moisés com uma dupla face de Deus. Não lhe é possível alcançar as razões de Deus. Depreende-se assim que, mais além do saber, encontra-se o impossível de alcançar do desejo do Outro. Aí se encontra sua dimensão obscura. Essa obscuridade não há como ser reduzida pelo saber. Por mais que possamos constituir um Outro do saber, por detrás deste, inevitavelmente, encontraremos uma obscuridade. Por mais explícita e concreta que seja a fala do Outro, o desejo em jogo nos escapa. O desejo do Outro é sempre uma opacidade.

Uma novidade se apresenta então para a psicanálise. Ela se encontra diante de uma nova modalidade de apresentação do gozo. O avanço do discurso do capitalismo nos enreda à experiência de uma captura monstruosa, o sacrifício à dimensão obscura do desejo do Outro.

As neo-divindades

Ao comentar o ultimíssimo Lacan, Miller (2010, p. 126) discorre sobre a mudança de rumos por ele efetuada deslocando-se da noção de simbólico, e, portanto, de sentido, na medida em que este se articula na cadeia significante para valorizar o que seria da materialidade da palavra e sua relação com o corpo — que Lacan busca expressar no conceito de lalangue. Tal moterialité pode, a princípio, parecer estranha, pois, ao afastar o sentido, Lacan parece aproximar o real da psicanalise do real da ciência ao nos apresentar algo que retorna sempre no mesmo lugar, um contraponto à contingência com a qual lidamos em nossa prática.

No esforço de exemplificar essa materialidade da palavra, Miller recorre à experiência que, naquele momento, já era bem comum — recorrer ao Google (MILLER, 2007). Quando fazemos uma busca, assinala, esta não é feita por intermédio de uma frase, tampouco uma prece. Trata-se apenas de um sinal, uma letra, uma cifra, e vamos de encontro a esse “deus virtual”.

Na busca do saber, encontramos essa neodivindade incapaz de qualquer deciframento e que opera somente com a materialidade das palavras.

Com o Presidente Schreber, avant la lettre, aprendemos que esse Deus, esse Outro caprichoso não entende nada dos homens, somente os conhecendo em sua superficialidade, e que seu afastamento resultava numa humanidade de homens feitos às pressas. O Deus Google, contudo, apesar da materialidade superficial que nos oferece, contrariamente ao Deus de Schreber, fala muito, responde muito, é logorreico. “Ele alinha ainda mais a velocidade e a quantidade… no lugar do infinito, ele coloca a totalidade” (MILLER, 2010, p. 127).

O Google, lembra Miller, é, antes de mais nada, um avatar. Trata-se de uma empresa bilionária que busca a totalidade das cifras sem poder decifrá-las. Mas, nessa busca, produz uma demanda de saber insaciável, e assim recolhe globalmente as demandas de cada um que utiliza seus mecanismos de busca para seu próprios ganhos econômicos.

O GAFAM, acrônimo que representa as gigantes da tecnologia digital (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), povoou o mundo virtual e, com isso, nossas vidas, por meio de seus múltiplos avatares que, diferentemente das mamas de Tirésias, da ordem do semblante, são criações imaginárias que nos remetem ao simulacro. O sacrifício para encontrar o desejo do Outro reduz todos a objetos de consumo. A obscuridade do Outro assumiu novas formas nas redes sociais. Não se trata de uma captura amorosa, mas de uma captura monstruosa. Do amor ao sacrifício, a psicanálise se vê diante de um circuito aditivo, no qual o semblante é substituído pelo simulacro.

Partimos da materialidade das palavras com o Google e hoje chegamos também à materialidade das imagens, estáticas ou em vídeos, provocadas pela disseminação meteórica das redes sociais. A dimensão do sacrifício se explicita quando nos deparamos com os relatos de mortes em decorrência da busca da selfie mais original ou exótica. Desalojadas da vergonha, as imagens proliferam e se multiplicam em dimensões planetárias na busca pelo encontro do like, simulacro do desejo do Outro. Se nos atentarmos para a própria estrutura da selfie, perceberemos que é uma imagem que tem como função sua simples exibição. São imagens que, de forma circular, se fecham sobre si mesmas. Não precisam do Outro nem mesmo para sua produção. São imagens que, por sua padronização, não representam aquele que saca as fotos; elas se fazem descoladas do corpo. Distribuídas a partir de uma tensão exibicionista, acabam por serem esquecidas. No novo mundo virtual, os falasseres sacrificam sua própria representação, sua diferença, abrindo mão de sua singularidade através das oferendas que prometem encontrar esse desejo obscuro. Os simulacros assim produzidos se oferecem ao esquecimento. O mundo virtual e as redes sociais, mais além do Google, transformaram-se em portais de busca em que se busca sempre a mesma coisa — mesma coisa que não há como encontrar.

A pandemia

Esta realidade aumenta a importância de esclarecer, no último ensino de Lacan, esse desvio em direção a uma dimensão material da palavra. Tal desvio aparentemente deslocaria a psicanálise do encontro com o real da contingência. Essa aparência se desfaz na medida em que o que está em jogo nesse “mesmo”, designado por Lacan como lalangue, incide sobre Um corpo. Essa incidência produz ressonâncias, acontecimentos contingentes de corpo.

A experiência religiosa, com seus dogmas e sacramentos, exalta, por intermédio da crença, um único caminho para o tratamento desses acontecimentos de corpo. Convoca todos os seus seguidores ao esquecimento. Como vimos, a ciência, em seu lugar de indiferença, sempre se ocupou da materialidade da experiência. Indiferente ao gozo, foraclui o sujeito, que cai no esquecimento. No mundo virtual, presenciamos a oferta infinitizada ao desvario do gozo de forma aditiva. Neste mundo de avatares e realidade ampliada, reina também o esquecimento. A experiência singular do falasser, a afetação de seu corpo não interessa à voracidade capitalista de GAFAM. Vivemos a chamada cultura do cancelamento.

A pandemia do coronavírus afetou diretamente a experiência de corpo de cada indivíduo em nosso mundo. Sua disseminação globalizada afetou o adormecimento provocado pela cultura do cancelamento. A ameaça de morte trazida pelo vírus levantou o véu do esquecimento produzindo, num primeiro momento, angústia e perplexidade. O infamiliar do encontro com o vírus trouxe o furo novamente à cena. O não saber como experiência dominante a partir da eclosão da pandemia, seguido das diversas medidas de contenção social para evitar a propagação do vírus, num primeiro momento, desalojou o saber indiferente da ciência e convocou cada falasser a ter que se haver com o fazer com seu corpo. Presenciamos, com esse anúncio da morte, a proliferação das lives, um significante bem apropriado ao momento, um esforço momentâneo diante do despertar do próprio esquecimento.

Foi diante dessa realidade que nós psicanalistas passamos a realizar atendimentos via remota, on-line. Trata-se de um momento preciso, uma janela de oportunidade para a presença do analista diante do desamparo provocado pelo retorno dos corpos àqueles que “viviam” ultimamente de seus avatares. Foi um momento, um lapso de tempo no qual a angústia precipitou a busca de sentido. Com o avanço dos recursos científicos para lidarmos com o vírus e do negacionismo místico político religioso, vemos um esvaziamento dessa solução: as lives também começam a cair no esquecimento.

A aposta da psicanálise

Ainda no seminário XI, Lacan esclarece a dissimetria entre Freud e Descartes. Ela não se dá pelo fato de que haveria uma certeza fundada no sujeito. A diferença é que, no que diz respeito ao inconsciente, diz Lacan, o sujeito está em casa.

Na elaboração de Descartes, é preciso um Deus não enganador para que esse encontro com o real possa se assegurar da verdade. A verdade colocada assim, nas mãos do Outro, abriu o campo para o avanço da ciência e suas fórmulas.

O que Descartes não sabia, afirma Lacan, e que nós sabemos, é que o inconsciente pensa antes de entrar na certeza.

O que se trata para os psicanalistas não diz respeito a um Outro enganador, mas a um Outro enganado. Lacan distingue o sujeito da certeza, fundamental ao pensamento cartesiano, daquilo que, naquele momento, ele situava como procura da verdade. Descartes apreende seu “eu penso” a partir da enunciação do “eu duvido”. Não de seu enunciado, que carrega tudo desse saber a pôr em dúvida. Já Freud, segundo Lacan, dá um passo a mais quando integra, ao texto do sonho, o “colofão da dúvida”. Em Freud, a dúvida faz parte do texto. Isso faz com que Freud nos mostre, coloque sua certeza apenas na existência da cadeia significante, ressalta Lacan.

Ele retorna a essa questão ao falar dos deuses obscuros e da grande dificuldade de se recusar ao sacrifício. Afirma que, diante do sacrifício eterno, ninguém pode resistir, a não ser que se sustente em uma fé muito difícil. Diz que, nesse campo da fé, somente Spinoza teria conseguido formular de uma maneira plausível do que se trata. Para ele, Spinoza, acusado de panteísta, na verdade defendia que a universalidade de Deus somente poderia ser pensável através da função significante. Só assim se alcançaria um distanciamento sereno.

Como vimos, a psicanálise opera no esquecimento, no furo, a partir de como ele aparece nas enunciações do sujeito. Convocar a fala favorece o surgimento dos tropeços, dos equívocos, das ressonâncias e, consequentemente, da significação singular para cada  falasser, desse efeito absolutamente singular de lalangue sobre o corpo, reverberações da pulsão que não se deixam capturar e que insistem em não se fazerem esquecer.

Sustentar nossa prática neste mundo que advém exigirá a audácia da invenção. O mundo virtual veio para ficar. É inquestionável que nossos atendimentos on-line produzem efeitos, mas é inquestionável também que essa nova realidade interroga nossos dispositivos. Como faremos neste futuro que se avizinha é uma pergunta já presente e que temos tido a chance de exercitar durante a pandemia. Abrir espaço para que o falasser possa se haver com um pouco de sentido em sua existência, suportar a contingência num mundo onde reina a obscuridade totalitária do saber, fazer valer o semblante onde domina o simulacro são questões com as quais estaremos envolvidos nos próximos anos, mais intensamente do que já estamos. Enfim, creio que nossos problemas apenas começaram. Mas é animador saber, por exemplo, que o Pix, dispositivo bancário recém criado no Brasil, que tem como intenção a unificação digital de todas as trocas financeiras no país, já vem sendo utilizado como meio de flerte por seus usuários. É bom comprovar que, de fato, a pulsão insiste em não se deixar esquecer.


Referências
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MILLER, J-A. “O triângulo dos saberes”. In: Opção Lacaniana Online. Ano 8, nº 24. Nov. 2017. Disponível em <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_24/O_triangulo_dos_saberes.pdf> Acesso em: Janeiro de 2021.
ZALOSZYC, A. Le Sacrifice au Dieu ObscurNice: Z’éditions. 1994.
MILLER, J-A. Perspectivas do seminário 23 de LacanRio de Janeiro: Zahar. 2010.

[1] Era como Lacan se referia na época.
[2] O que se mostra presente na própria discussão em torno da denominação Holocausto, que carrega em si a ideia do sacrifício, em contraposição com a denominação Shoáh, que traz consigo a noção de extermínio. Não podemos deixar também de assinalar a importância de não se deixar esquecer como uma palavra de ordem repetida insistentemente quando se trata das lembranças do nazismo e da Shoáh.



EDITORIAL – ALMANAQUE Nº26

Tereza Facury

 

Imagem: Jayme Reis

 

 

Bem-vindos à 26ª edição da revista Almanaque Online, do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.

Esta edição foi preparada em meio a um cenário mundial de devastação, causada pela pandemia da covid-19, seja do ponto de vista econômico, seja do social, o que afetou sobremaneira os laços sociais das mais variadas formas. As relações entre as pessoas passaram a ser norteadas pelo significante “cuidado” no tocante aos seus corpos, uma vez que o outro se tornou um potencial e arriscado hospedeiro do vírus.

Diante de tal contexto, a saída apresentada foi a realização de atendimentos on-line utilizando os dispositivos que nos são ofertados pela tecnologia. As expressões “atendimento presencial” e “atendimento a distância” se incorporaram ao nosso cotidiano.

Desse modo, variados dispositivos tecnológicos hoje oferecidos tornaram-se cada vez mais importantes e, até mesmo, imprescindíveis em determinados momentos para garantir a continuidade do nosso trabalho.

Frente a tal situação, fomos instigados a pensar sobre essa importante mudança em nossa prática, e o resultado aqui se apresenta nos artigos de colegas que nos trazem seus questionamentos e reflexões — alguns amparados em vinhetas clínicas —, aos quais muito agradecemos pela generosidade e pelo que podem nos orientar em um tempo no qual resta ainda tanta coisa por compreender.

Na rubrica Trilhamentos, Henri Kaufmanner, em seu texto “Psicanálise e esquecimento”, propõe pensar os desafios que a psicanálise nos impõe nestes tempos estranhos. Seu ponto de partida é a pergunta, lançada por Lacan ao final do seminário XI, sobre uma possível impostura da psicanálise e seus desdobramentos, tal como a  leitura lacaniana  que distingue a religião, a ciência e a psicanálise sob a perspectiva da ideia de esquecimento e as consequências do avanço do discurso da ciência sobre essa distinção.

O texto “Analista essencial”, de Irene Accarini, destaca a importância da voz nos atendimentos on-line, uma voz substancial, cheia de substância gozante, que, mesmo à distância, encontra seu lugar. Dando continuidade a alguns trabalhos já existentes, sua reflexão se detém no vínculo particular que existe entre a voz e a presença do analista com o inconsciente na experiência analítica.

Em “A presença real e a fugacidade do corpo”, Catherine Lacaze-Paule aborda o confinamento dos corpos imposto pela pandemia e seus efeitos nos atendimentos virtuais nos quais eles se encontram ausentes. Sua reflexão levou-a a discorrer sobre a “presença real do analista”, um tema crucial para a teoria lacaniana.

“Transferência e presença do analista” é o título do artigo que nos indica os eixos que Frank Rollier tematiza em seu texto de forma clara e precisa para abordar o uso dos dispositivos eletrônicos pela psicanálise como um recurso em tempos de pandemia. Uma pergunta orienta o seu trabalho articulada aos modos distintos pelos quais se orientam as práticas psicoterápicas e a psicanálise ao se valerem do atendimento remoto.

Em Encontros temos dois textos que tratam do atendimento on-line com crianças. Prerna Kapur, em seu texto “Não é uma brincadeira de criança”, aborda os impactos do confinamento sobre seu trabalho clínico a partir de uma vinheta na qual relata seu “estranho encontro” com o lugar que lhe foi dado por uma criança durante uma sessão por meio de videochamada.

A psicanalista Renata Teixeira escreve sobre como seu trabalho com crianças foi afetado neste tempo de pandemia, levando-a a recorrer, de forma inédita para ela, ao mundo digital, principalmente aos jogos, como uma ferramenta possível para a continuidade do tratamento.

Gustavo Dessal nos traz, em Entrevista, suas percepções e elaborações sobre o que tem extraído de sua experiência e de suas pesquisas sobre o uso dos dispositivos on-line nos atendimentos. Entende ser este um momento de grande desafio para a psicanálise por estarmos diante de uma inflexão no modo de acolhermos as demandas de tratamento no que se refere ao chamado setting de atendimento.

Em Incursões, Suzana Faleiro e Lilany Pacheco nos apresentam os pontos abordados na XXIV Conversação Clínica do IPSM-MG, em novembro de 2020, discutindo o uso dos dispositivos virtuais para sustentar a prática analítica com crianças e adolescentes durante a quarentena. A direção do tratamento, o manejo da transferência e o desejo e a presença do analista são os aspectos privilegiados nessa discussão.

Na rubrica De uma nova Geração, Nayara Paulina Rosa discorre, em “Racismo, corpo e trauma na clínica psicanalítica”, sobre a incidência dos efeitos psíquicos do racismo contra pessoas negras no âmbito da identificação imaginária valendo-se da teoria do estágio do espelho.

Derick Teixeira introduz o tema a ser explorado pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental neste semestre e, por meio de uma leitura cuidadosa, nos conduz a percorrer alguns pontos de mudança na teoria lacaniana decorrentes de uma promoção do corpo e da escrita no interior da clínica psicanalítica, tornando possível elucidar os efeitos de uma interpretação que não se pauta apenas no sentido, mas também no furo, no vazio semântico, no efeito de sentido real.

Queremos, por fim, agradecer a todos que colaboraram com esta nova edição, autores, equipe editorial e, em especial, ao artista plástico Jayme Reis, que, generosamente, permitiu que nos valêssemos de suas belas imagens para enriquecer nossas páginas. Jayme Reis é mineiro de Itabira, artista plástico autodidata premiado em diversos salões no Brasil e no exterior, que também possui obras em coleções de várias galerias de dentro e fora do país.




Almanaque On-line Março/2021 V. 14 Nº 26

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

TEREZA FACURY

Bem-vindos à 26ª edição da revista Almanaque Online, do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
Esta edição foi preparada em meio a um cenário mundial de devastação, causada pela pandemia da covid-19, seja do ponto de vista econômico, seja do social, o que afetou sobremaneira os laços sociais das mais variadas formas. As relações entre as pessoas passaram a ser norteadas pelo significante “cuidado” no tocante aos seus corpos, uma vez que o outro se tornou um potencial e arriscado hospedeiro do vírus.  [Leia Mais]

TRILHAMENTOS
PSICANÁLISE E ESQUECIMENTO: PONTUAÇÕES SOBRE ESTES TEMPOS ESTRANHOS

HENRI KAUFMANNER

Partindo da pergunta lançada por Lacan ao final do seminário XI, sobre uma possível impostura da psicanálise, pergunta-se o que o conduziu a traçar uma distinção entre a religião, a ciência e a psicanálise sob a perspectiva da ideia de esquecimento. Sublinhando como o avanço do discurso da ciência em nosso tempo, com sua oferta indiscriminada de objetos de consumo, provocou o tamponamento da falta do sujeito barrado e afetou “gravemente essa distinção entre esses campos em sua relação com o esquecimento”, faz-se recordar que, nesse mesmo seminário, Lacan já alertava quanto aos efeitos da chamada mass media, algo que hoje podemos traduzir como a era das tecnociências, aí implicada a virtualidade das nossas relaçõesDiante desse cenário, o que nos é exigido é a audácia da invenção. [Leia Mais]


 

A PRESENÇA REAL E A FUGACIDADE DO CORPO

CATHERINE LACAZE-PAULE

Catherine Lacaze-Paule aborda a atual experiência de confinamento para refletir sobre suas repercussões na clínica psicanalítica praticada virtualmente. Nesse contexto, ela indaga quais seriam “as condições para que um encontro seja real, para que uma presença se faça sentir, para que ela se experimente”. A autora se serve da expressão lacaniana “presença real” enodada ao desejo do analista e, dessa forma, dá um passo além dos termos— presencial, a distância — que o discurso corrente faz uso. [Leia Mais]


TRANSFERÊNCIA E PRESENÇA DO ANALISTA

FRANK ROLLIER

Neste texto, Frank Rollier traz a discussão sobre a importância da  presença dos corpos (analista-analisante) e seus efeitos relativos ao trabalho na transferência e de abertura ao inconsciente. As terapias a distância produzem uma exacerbação dos semblantes, uma profusão de sentidos, conectadas ao projeto político do discurso cientificista sob o qual a relação sexual possa se escrever. A “presença real” do analista é a aposta ética da psicanálise de poder tocar pedaços do real pulsional e do resto, o objeto a. [Leia Mais]


O ANALISTA ESSENCIAL

IRENE ACCARINI

Neste artigo, a partir de uma reflexão sobre as sessões analíticas a distância, a autora relaciona as noções da presença do analista e do objeto voz considerando que a experiência do inconsciente, desde Freud, é marcada pela forma com que a palavra afeta o corpo. Tendo em conta as mudanças impostas na rotina de todos pela pandemia do coronavírus, a autora relata efeitos subjetivos no que diz respeito à forma com que atos anódinos tornam-se atos de consciência constante e reflete sobre a prática da psicanálise enquanto restituidora da dimensão do inconsciente neste contexto de consciência exacerbada. [Leia Mais]

ENTREVISTA

Gustavo Dessal

Nos traz, em Entrevista, suas percepções e elaborações sobre o que tem extraído de sua experiência e de suas pesquisas sobre o uso dos dispositivos on-line nos atendimentos. [Leia Mais]

ENCONTROS
TECH-NO-ME, TECH-TO-ME

RENATA TEIXEIRA

A autora aborda, neste artigo, como a irrupção da pandemia do novo coronavírus afetou sua prática clínica com crianças e adolescentes e a faz se interessar pelo mundo dos jogos digitais como uma ferramenta possível para a continuidade do tratamento via dispositivos eletrônicos. A partir de alguns extratos clínicos, localiza como o analista pode se fazer presente, mesmo que virtualmente, acompanhando as invenções e os laços de cada sujeito. [Leia Mais]


 

NÃO É UMA BRINCADEIRA DE CRIANÇA

PRERNA KAPUR

Neste artigo, a autora aborda os impactos do confinamento sobre seu trabalho clínico com crianças. Sem os objetos que circulam nos atendimentos presenciais, questiona-se sobre como seria possível dar continuidade aos atendimentos por plataforma de vídeo. Utiliza fragmentos de um caso clínico para pensar a presença do analista e como, para alguns sujeitos, áudio e vídeo podem servir como recurso para novas invenções e laços. [Leia Mais]

INCURSÕES
PSICANÁLISE ON-LINE COM CRIANÇAS

SUZANA FALEIRO BARROSO

O artigo reúne pontos abordados na XXIV Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, em novembro de 2020. Discute o recurso aos dispositivos virtuais para sustentar a prática analítica com crianças durante a quarentena; articula-os aos aspectos da direção do tratamento, o manejo da transferência, o desejo e a presença do analista; aborda algumas vinhetas da clínica do unheimlich a partir dos relatos de crianças e adolescentes em análise e, por fim, verifica como o discurso analítico é aquele que pode acolher os efeitos do encontro com o estranho junto às crianças e adolescentes. [Leia Mais]


 

COMENTÁRIO AO TEXTO DE SUZANA BARROSO NA XXIV CONVERSAÇÃO CLÍNICA DO IPSM-MG

LILANY VIEIRA PACHECO 

Suzana descreve, assim, as condições de possibilidades para a constituição do lugar do Outro pela operação de mutação do Real em significante [Leia Mais]

DE UMA NOVA GERAÇÃO
UM RETRATO DO PSICANALISTA QUANDO ARTISTA:  A INTERPRETAÇÃO NO ÚLTIMO ENSINO DE LACAN

DERICK DAVIDSON SANTOS TEIXEIRA

No prefácio à edição inglesa do seminário 11, Lacan escreve que “a psicanálise, desde que ex-siste, mudou”. Sabe-se que essa mudança decorre, principalmente, de uma promoção do corpo e da escrita no interior da psicanálise. Da escrita poética chinesa à obra de James Joyce, passando pelo corpo tomado por uma satisfação pulsional que escapa à articulação significante, Lacan reformula a interpretação analítica.  O presente texto trata dos desdobramentos da interpretação na fase final do ensino de Lacan. Faremos um breve percurso pelo tema do “moterialismo” e da emergência da letra na psicanálise. Nessa via, elucidamos os efeitos de uma interpretação que não se pauta apenas pelo sentido, mas que faz valer, também, um furo — a realização de um vazio semântico —, um efeito de sentido real. [Leia Mais] 


 

RACISMO, CORPO E TRAUMA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA

NAYARA PAULINA FERNANDES ROSA

O presente artigo discorre brevemente sobre a incidência dos efeitos psíquicos do racismo contra negros no âmbito da identificação imaginária a partir da teoria do estádio do espelho. Fragmentos de casos clínicos ilustram a proposição de que, no momento em que o sujeito é nomeado negro pelo outro, se dá conta de que esse significante conjuga a representação de todas as imagens com as quais aquele que foi nomeado branco não deseja se identificar. Ao ser classificado como negro, o sujeito é fixado em uma espécie de “inferioridade epidermizada”. A escuta desse tipo de sofrimento — que envolve corpo, cultura e palavra — envolve a sutileza na evocação da singularidade da experiência traumática aliada à assertividade de não se recuar na luta antirracista, compreendendo-a como causa que concerne a também a nós, analistas de orientação lacaniana.[Leia Mais]




Almanaque On-line Agosto/2020 V. 14 – Nº 25

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

PATRÍCIA RIBEIRO

É com enorme satisfação que lhes apresentamos a 25ª edição do Almanaque Online, cujos trabalhos abordam um tema que nos foi inspirado pelo XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, O feminino infamiliar, dizer o indizível. Neste número, trataremos do infamiliar nos laços sociais indagando como ele se insere nessa dimensão das relações dos sujeitos com o Outro. Por essa razão, e como não poderia deixar de ser, esta edição contempla também o momento atual, marcado por essa absoluta infamiliaridade na qual vivemos em decorrência da pandemia do novo coronavírus. [Leia Mais]

TRILHAMENTOS
BARTLEBY, O REAL

GUSTAVO DESSAL

O autor se apoia no conto “Bartleby, o escrivão”, de H. Melville, para desenvolver a noção de estranho a partir da singularidade do personagem principal e indica como a presença dessa opacidade real participa de toda a existência e da própria humanidade. Sua análise é dividida em três tempos e perspectivas — ironia, dimensão ética e tragédia — e destaca a posição subjetiva de Bartleby frente ao laço social. Bartleby representa esse real excluído da dimensão simbólica, que não cessa de se escrever, não sem consequências, e, ironicamente, expõe a inutilidade essencial da existência e sua condição de semelhança que afeta a todos. [Leia Mais]


 

O INFAMILIAR FREUDIANO

MARINA LUSA

Como se construiu, em Freud, o conceito de Unheimlich? Quais caminhos Freud pega emprestado para apreender esse inapreensível que, entretanto, marca nossa experiência? O texto propõe uma arqueologia desse conceito, assim como o contexto e as referências que Freud trabalhou para fazer emergir, na psicanálise, o infamiliar, que, por si só, faz ressoar o movimento das profundezas com as quais o sujeito se confronta. O estudo de Ernest Jentsch (1906), Schelling e a decifração do conto de Hoffmann, “O homem da areia”, são alguns dos pontos que Freud vai com, contra e/ou além para a investigação desse fenômeno angustiante. [Leia Mais]

ENTREVISTA

Entrevista com Santuza Teixeira

Almanaque entrevista Santuza Teixeira, mineira de Belo Horizonte. Graduada e mestre em bioquímica na Universidade de Brasília, fez doutorado na Universidade de Lausanne, na Suíça, e pós-doutorado na Universidade de Iowa, nos EUA. Professora e pesquisadora do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, atua no departamento de Bioquímica e Imunologia coordenando pesquisas em genômica e parasitologia e no desenvolvimento de vacinas. Em dezembro de 2019, foi eleita membro titular da Academia Brasileira de Ciências. [Leia 

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ENCONTROS
OS DIAS DO UNHEIMLICH FAMILIAR

MARIANA SCHWARTZMAN

Esta crônica relaciona a epidemia do coronavírus e suas consequências na vida cotidiana ao conceito freudiano de infamiliar [Unheimlich] e ao conceito de extimidade, proposto por Jacques-Alain Miller. Esses conceitos são abordados enquanto uma chave de leitura possível do momento atual e de seus efeitos infamiliares em cada sujeito, na sua relação com o que lhe seria mais familiar: sua casa. [Leia Mais]


 

CONFINAMENTO FAMILIAR: FAMÍLIAS, QUESTÕES CRUCIAIS

HÉLÈNE BONNAUD

A crônica de Hélène Bonnaud explora a relação entre a pandemia do coronavírus e o confinamento dos sujeitos em casa. Consequentemente, a angústia diante da incerteza que acomete a todos irrompe diante desse real. As novas rotinas domésticas e laborais, a convivência aumentada com a família, a aposta midiática na prática de meditação e o aumento de divórcios são alguns efeitos deste momento que são ressaltados e examinados pela autora. Pela evidente amplificação do sentimento de solidão, a autora propõe um paralelo entre isolamento e solidão, levando em conta, contudo, as diferenças entre os dois. [Leia Mais]

INCURSÕES
A PSICOSE, O INFAMILIAR E O INTRADUZÍVEL

FREDERICO FEU DE CARVALHO


O infamiliar é trabalhado por Freud como a emergência no campo da realidade de algo íntimo e secreto, que deveria permanecer oculto, e que é experimentado em seu oposto, ou seja, como algo estranho — infamiliar. O surgimento de alguma coisa que produz essa inquietante estranheza modifica, por um momento, nossa percepção da realidade. É possível se perguntar, por meio dessa palavra-conceito expressa por Freud, quais relações aproximativas podem ser feitas entre o infamiliar, o sentimento de estranheza e a “perda da realidade” na psicose. [Leia Mais]


 

O FEMININO INFAMILIAR: DIZER O INDIZÍVEL

ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que não pode ser interpretado. Um fragmento clínico elucida como que, no mais íntimo de cada língua familiar, existe uma língua estranha, estrangeira, cujo encontro retorna, segundo Freud, como “inquietante estranheza”.[Leia Mais] 


 

O ESTRANHO FAMILIAR: UMA LEITURA A PARTIR DE FREUD

JEANNINE NARCISO

Este texto apresenta um ensaio de Freud, no qual aparece um novo significante, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia e aponta o esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro. Retoma-se a questão com Miller ao dizer que, para Lacan, o “infamiliar” resulta na noção da extimidade. Aborda-se a relação do sujeito com a linguagem como o que faz furo no real. [Leia Mais]


 

O INFAMILIAR E O OUTRO MAU

IVAN VITOVA JUNQUEIRA

O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada com uma populacão encarcerada, que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico há mais de seis anos, e no qual se tenta articular os sentimentos de angústia e terror que surgem nos atendimentos ao conceito freudiano de infamilar, assim como ao conceito de dejeto, proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”. A partir desses conceitos, é possível pensar se esses sujeitos podem estar identificados ao objeto “a” enquanto dejeto Real. [Leia Mais]

DE UMA NOVA GERAÇÃO
O HOMEM E UMA MULHER E O IMAGINÁRIO

LÍVIA SERRETTI AZZI FUCCIO

Este trabalho busca localizar as disjunções da histeria e da feminilidade no diário de Anaïs Nin (1931–1932/1986). Para tanto, serão demarcados três posicionamentos: (I) a posição de Anaïs diante de June, ao elegê-la como A mulher; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs, como o semblante do homem ideal; e (III) o diário como sintoma da elaboração do que fazer diante da não relação sexual. [Leia Mais] 

 


 

UM MÍSTICO PARA A NOÇÃO DE GOZO FEMININO

RODRIGO SANTOS DA MATTA MACHADO

São João da Cruz apareceu em meio à psicanálise lacaniana como um instrumento de auxílio na transmissão do saber psicanalítico. Surge, portanto, nesse contexto, como um exemplo de místico prestigiado por Lacan, que o tinha como uma pessoa dotada. Investigaram-se a obra e biografias de São João da Cruz buscando conhecer algumas importantes facetas da sua vida para melhor aplicação desse exemplo nas elaborações da tábua da sexuação. As facetas poética e mística de São João da Cruz foram úteis em importantes transmissões do psicanalista. [Leia Mais]




Expediente Almanaque – Nº 25

A Revista Almanaque On-line é uma publicação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSMMG.

Periodicidade: Semestral

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Diretoria do Instituto:

Diretora-Geral: Maria José Gontijo Salum
Diretora Secretária-Tesoureira: Márcia de Souza Mezêncio
Diretora de Publicações: Patrícia Teixeira Ribeiro
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Equipe de Publicação

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Revisora:

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Web Designer: mw.lima@uol.com.br




Expediente Almanaque On-line Março/2020

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O INFAMILIAR E O OUTRO MAU

 

 

IVAN VITOVA JUNQUEIRA
Psiquiatra e psicanalista praticante, coordenador da Reunião Clínica no Complexo Penitenciário da Parceria Público Privada em Ribeirão das Neves
ivanvitova@hotmail.com

 

Resumo

O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada com uma populacão encarcerada, que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico há mais de seis anos, e no qual se tenta articular os sentimentos de angústia e terror que surgem nos atendimentos ao conceito freudiano de infamilar, assim como ao conceito de dejeto, proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”. A partir desses conceitos, é possível pensar se esses sujeitos podem estar identificados ao objeto “a” enquanto dejeto Real.

Palavras-chave: horror; ser falante; dejeto; infamiliar; Outro mau.

Abstract: This article is based on a research done with an incarcerated population that receives psychological and psychiatric treatment for more than six years in wich is made an attempt to articulate the feelings of anguish and terror that emerge in their stories to Freud’s concept of the uncanny, as well as the concept of psychic litter proposed by Miller in his text “Salvation through the litter” Through theses concepts it is also possible to think if those subjets could be identified to object “a” as a waste of the Real.

Keywords: horror; speaking being; waste; uncanny; Other bad.

 

 

Coletoras – Barbara Schall

 

“O horror, o horror”[1]

 

Em “O infamiliar” (1919), Freud coloca que o psicanalista, em uma investigação estética — que se ocupa, de preferência, dos sentimentos belos e grandiosos —, pode se interessar aí por um domínio específico, por algo comumente deixado de lado, negligenciado pela literatura especializada: os sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos. Freud coloca também que algo desse domínio é o “infamiliar”, que diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, seguro de que essa palavra coincide com aquilo que angustia e na espera de que exista um determinado núcleo que justifique a utilização desse conceito. Passa, então, a investigar o que seria esse núcleo comum que permitiria diferenciar, no interior do angustiante, algo “infamiliar”. Observa diversos fatores a partir dos quais o angustiante se torna assim infamiliar — como o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração — e conclui que este é o familiar doméstico que sofreu um recalcamento e dele retorna. O prefixo de negação “in-”, nessa palavra, é a marca do recalcamento, ou seja, o infamiliar designaria algo correlato ao retorno do recalcado, fonte de angústia para o ser falante.

Miller, digamos, retornando à investigação estética pela via dos “sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos” (FREUD, 1919, p. 31), em “A salvação pelos dejetos” (2010), retoma o mito de Hércules, que, como a humanidade, teria se situado diante de uma escolha entre duas vias: “E, como por uma escolha forçada, se poderia dizer que a humanidade tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita, a da salvação pelos dejetos” (MILLER, 2010, p. 1).

(…) o que é o dejeto? É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é informe. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa (MILLER, 2010, p. 1).

Ou seja, a descoberta freudiana primeiramente foi, como se sabe, a desses dejetos da vida psíquica, do mental − que são o sonho, o lapso, o ato falho e, mais além, o sintoma, enquanto decifrável. Poderíamos dizer então que o mecanismo de recalcamento, nesse caso, marca comum, enlaça o infamiliar aos dejetos da vida psíquica.

Retornando a Hércules e à escolha da humanidade, falemos de uma parcela desta que, ao que parece, escolheu a via do vício, ou seja, a do dejeto. Mais especificamente, trata-se de uma população encarcerada (CPPP Ribeirão das Neves, MG), com a qual trabalhamos há mais de seis anos. Trata-se de parte dos cerca de três mil detentos, encaminhada para atendimento psicológico e psiquiátrico e como casos para supervisão e construção na reunião clínica devido ao intenso sofrimento mental decorrente do encarceramento. Nessa população, as características mais marcantes são a precariedade simbólica e uma história que se repete: desamparo familiar, abandono precoce da escola e início também precoce do uso de drogas e envolvimento com tráfico, roubo e homicídio. Nessa clínica, em geral, o sofrimento emerge sob a forma do horror quando o ser falante vislumbra a possibilidade de abandono, de ruptura da relação com a companheira, percebida como uma maldade proposital. Emerge também quando o ser falante crê que o Outro da instituição de uma “ordem rija” (LACAN, 1950, p. 131) o persegue e o prejudica intencionalmente, de algum modo. Nesses casos, na impossibilidade de matar esse Outro, o ser falante evolui com ideias de autoextermínio ou passa ao ato na tentativa de enforcamento. Nesses momentos, a direção do tratamento, construída pela equipe clínica em conjunto com a segurança, tem como base operar como o Outro mínimo na construção da relação transferencial com o ser falante em sofrimento, ou seja, construir um Outro que não abandona, que faz barra à pulsão de morte e lhe abre espaço para colocar em palavras o que o aterroriza. Para isso, muitas vezes é necessário colocá-lo em cela especial no setor de saúde, sob vigilância ostensiva para evitar um suicídio, o que, às vezes, não ocorre por um triz. Em geral, vão acontecendo os atendimentos quando é possível ir construindo, na relação transferencial, um Outro menos persecutório, o que abre para a possibilidade de outros modos de amarração para o ser falante além da identificação ao criminoso.

Nesse trabalho clínico, um a um, quando da emergência do aterrorizante, do que suscita angústia e horror, perguntamo-nos se podemos identificar, aí, o infamiliar enquanto dejeto marcado pelo mecanismo de recalcamento. Para tentar responder a essa questão, é necessário nos aprofundarmos no estudo de características comuns dessa clínica precária do simbólico, que são a passagem ao ato, a desconfiança em relação ao Outro, a vontade de gozo e a ausência de sentimentos de culpa ou responsabilidade pelos atos que motivaram a prisão.

Diferentemente do texto de Lacan de 1950, “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, onde este percebe o ser falante encarcerado como “sujeito culpado” e com “esperança de se integrar num sentido vivido” (p. 131), Miller (2011), em “La experiência de lo real em la cura psicoanalítica”, enlaçando o último ensino de Lacan a Freud, desenvolve a articulação entre os termos caráter e resistência, no qual o primeiro está designando elementos de personalidade do ser falante, que, apesar de patológicos, se expressam de modo consciente, sem culpa e como modo de gozo.

No capítulo “A patologia da conduta”, Miller (2011) constrói a articulação entre sintoma e caráter, desde suas origens. Cita, como os pós-freudianos, que,

(…) a partir da noção de sintoma localizado, necessitaram introduzir o caráter, que é o conceito que serviu, quando a patologia se apresentou de alguma maneira assintomática, mas afetando o comportamento, a conduta do sujeito, o conjunto de sua vida… O conceito de caráter foi o instrumento conceitual para estender a neurose para mais além do sintoma. Para Alexander, Glover, Jones e outros, o sintoma freudiano é um enclave na personalidade do sujeito que sofre. Com respeito ao caráter, sem dúvida, a questão é convencê-lo de que está doente, na medida em que sua conduta caracterial lhe dá satisfação (MILLER, 2011, p. 138).

Em relação à satisfação, Miller, citando os três tipos de caráter de Freud, presentes em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), mais especificamente no capítulo “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”, coloca que

(…) a origem comum é a relação do sujeito com o lust, com o prazer ou o gozo. Então no caráter está em primeiro plano a satisfação, a befriedigung. E Freud nomeia caráter ao que no sujeito não se satisfaz com o sintoma, o faz parecer como um modo de satisfação da pulsão, que não mobiliza o sintoma como mensagem ao Outro (MILLER, 2011, p. 119).

Continua, em relação a outra característica dessa clínica, citada anteriormente, a passagem ao ato, que

(…) o caráter se caracteriza pelo fato de que no lugar dos sintomas se tem ações, atos afora na vida… Com o caráter apontaram para algo mais arcaico que o sintoma, anterior ao estágio de sua formação, onde a pulsão se satisfaz na ação, que o substitui. Por isso o caráter se apresenta como patologia da conduta (MILLER, 2011, p. 140).

Miller continua apontando que o caráter é, então,

(…) um.a instância, uma formação, um objeto, algo com que se cruza no trabalho analítico e que precisamente o obstaculiza de uma maneira que lhe é própria. E porque, se seguirmos Freud, se inscreve no trabalho analítico como obstáculo, penso que é legítimo inscrever o caráter como experiência do real na cura analítica. Simplesmente e conforme as indicações freudianas, localizaria o termo caráter como diferente do sintoma. O sintoma é decifrável e o caráter se apresenta como o que não se deixa ler, onde não há intencionalidade inconsciente (MILLER, 2011, p. 112-113)

A partir daí, Miller desenvolve como Lacan, apoiando-se em artigos de Jones e Abraham sobre a ideia da base pulsional do caráter, caminha para a questão do caráter como defesa e de como isso afeta o trabalho psicanalítico como interpretação: se o caráter representa uma resistência ao trabalho psicanalítico como interpretação, é porque “interessa ao que Freud denominou no Eu e o Isso de defesa” (Miller, 2011, p. 135), referindo-se ao inconsciente não recalcado. Defesa que difere do sintoma, por este estar diretamente conectado ao Real, à pulsão e ao gozo.

Após essas observações, podemos retornar à questão sobre o que suscita a angústia, o horror e o aterrorizante nessa clínica específica do ser falante encarcerado. Tratar-se-ia do infamiliar enquanto dejeto marcado pelo recalcamento, a saber, um dejeto enlaçado à ordem simbólica?

Na nossa experiência, o horror parece emergir no ser falante quando este se aproxima de uma experiência singular, descrita por Miller em “Efeito do retorno à psicose ordinária” como uma das externalidades índices de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida (2010, p. 18). Seria a experiência da identificação ao objeto “a” enquanto dejeto real, na qual o ser falante “vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo” (MILLER, 2010, p. 18), podendo chegar ao suicídio. Em outras palavras, poderíamos dizer que o que causa horror é a aproximação da possibilidade de o ser falante ocupar o lugar de objeto de gozo do Outro. Mais especificamente, de um Outro que Miller nomeou “Outro Mau”: “trata de um Outro que quer meu mal e também de um Outro que goza do mal que faz” (2011, p. 74). Situação essa que emerge quando o ser falante perde suas defesas — no caso, o enlaçamento à imagem e ao modo de gozo do bandido, que pode se defender do Outro que quer gozar dele — ou, em outras palavras, quando tem perturbado o seu caráter enquanto defesa e modo de gozo explícito do ser falante.

Poderíamos concluir questionando se, nessa população específica de nossa pesquisa, que escolheu a “via do vício”, o mais comum seria a emergência do horror — não como índice de retorno do infamiliar, enquanto dejeto articulado ao recalcado, mas como índice de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida — quando o ser falante se aproxima da identificação ao objeto enquanto dejeto real e, ainda: não seria também essa a situação de boa parte dos seres falantes fora do sistema prisional, na nossa civilização atual?


Referências
FREUD, Sigmund (1916). “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 325.
FREUD, Sigmund (1919). O Infamiliar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Autêntica, 2019, p. 29-115.
LACAN, Jacques (1950). “Premissas a Todo Desenvolvimento Possível da Criminologia”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.131.
MILLER, Jacques-Alain (2011). La experiência de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, p. 109-145.
MILLER, Jacques-Alain (2011). Quando el Otro es malo. Buenos Aires: Paidós, p. 74.
MILLER, Jacques-Alain (2010). “Efeito do Retorno à Psicose Ordinária”. Opção Lacaniana Online ano 1 – número 3 – Novembro de 2010.
[1] Coronel Walter E. Kurtz, personagem interpretado por Marlon Brando no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla, 1979, baseado em Heart of Darkness, de Joseph Conrad.



O ESTRANHO FAMILIAR: UMA LEITURA A PARTIR DE FREUD

JEANNINE NARCISO
Psicóloga e psicanalista, especialista em Saúde Mental. Membro da EBP-MG/ AMP. jannarciso31@gmail.com

Resumo

Este texto apresenta um ensaio de Freud, no qual aparece um novo significante, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia e aponta o esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro. Retoma-se a questão com Miller ao dizer que, para Lacan, o “infamiliar” resulta na noção da extimidade. Aborda-se a relação do sujeito com a linguagem como o que faz furo no real.

Palavras-chave: infamiliar, familiar, angústia, linguagem, extimidade.

The familiar stranger: a reading from Freud

Abstract: This text presents the essay by Freud in which a new signifier appears, which concerns the terrifying, causes anguish and points to the fading of the domains between the familiar and the foreign. This text resumes the question raised by Miller once more, when he states that for Lacan, the “Unheimliche”, results in the notion of “extimité”. The work addresses the subject’s relationship with language as being what makes a hole in reality.

Keywords: Uncanny, familiar, anguish, language, ex-timate.

Coletoras – Barbara Schall

 

O Estranho em Freud

O encontro com o texto de Freud se deu em três diferentes traduções, a saber, “O estranho”, “O inquietante” e “O infamiliar” — tradução esta de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares —, cujas particularidades aparecem em cada percurso de tradução. No ensaio, entre outras obras, Freud cita Hamlet, texto de Shakespeare sobre o qual a tradutora comenta: “traduzir Hamlet se mostra uma tarefa para sempre inacabada, infinita, aberta a novas interpretações, compreensões, traduções, como é praxe de sua leitura, da fruição elíptica de nosso solilóquio mais insuspeito ao longo da vida: amor e morte, amor e morte” (BEBER, 2019, p. 6).

Freud e o infamiliar

Segundo Iannini, em Freud (2019), Das unheimliche é uma palavra e um conceito; a palavra-conceito é o título do escrito de Freud. E mais: é o nome de um sentimento aterrorizante, um domínio desprezado pela pesquisa estética e o efeito da leitura de certos contos fantásticos. Para Iannini, o que Freud pretendia era convocar o psicanalista a não perder de vista o real que a palavra unheimliche recorta. Assim, entrega um significante novo e intraduzível, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia. A equipe tradutora optou por traduzir unheimliche, do alemão, por um aparente neologismo, “infamiliar”, e mostra que essa tradução causa problema. “’O infamiliar’ mostra que o muro entre as línguas não é intransponível, mas que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (FREUD, 2019, p. 40). “É uma marca visível da impossibilidade da tradução perfeita” (FREUD, 2019, p. 42).

A palavra unheimliche, usada por Freud, é formada pelo prefixo de negação un, um índice de castração, e o adjetivo heimliche, que exprime aquilo que é “familiar e íntimomas que pode evocar o que é secreto e desconhecido” (FREUD, 2019, p. 205) e deriva do substantivo Heim (lar, morada).

Em Freud (2019), Iannini aponta como fundamental, no ensaio freudiano, o movimento de descentramento subjetivo, de esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro:

como respondemos àquilo que um estrangeiro nos aporta, especialmente quando este algo é absolutamente familiar e doméstico para ele, mas claramente exótico e ameaçador, pelo menos da perspectiva de nossa suposta integridade identitária, que resiste a assimilar o estrangeiro. Os nexos profundos entre tradução e política não tardam a aparecer (FREUD, 2019, p. 102).

O infamiliar

Para Freud (2019), o termo é peculiar. Relaciona-se com o que é assustador, com o que provoca medo e horror; é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho e, há muito, familiar. Mas, ao mesmo tempo, o infamiliar seria algo do qual nada se sabe. Freud consulta vários dicionários para buscar encontrar algum novo significado para além da equivalência infamiliar (não conhecido).

O efeito infamiliar pode ser criado, na literatura, nos contos que colocam o leitor diante da incerteza “se ele tem diante de si, uma determinada figura, uma pessoa ou um autômato” (FREUD, 2019, p. 1012). Dessa maneira, o leitor fica com uma incerteza intelectual diante de algo que não sabe como abordar de fato. No conto “O homem da Areia”, E.T.A. Hoffmann estabeleceu essa manobra psicológica. O tema “O homem da Areia”, aquele que arranca os olhos das crianças, foi considerado por Freud como central no conto. Portanto, não é Olímpia, a boneca aparentemente viva, que causa o efeito infamiliar do conto nem as elucubrações fantasísticas do jovem estudante Natanael.

O sentimento do infamiliar será provocado pela figura do Homem da Areia, que deve roubar os olhos e substitui o temido pai, de quem se espera a castração. Na experiência psicanalítica, aparece a angústia da criança de se machucar ou de perder os olhos — que aparece também nos adultos. Tanto que existe o dizer sobre aquilo que se protege como a “menina dos olhos”. O medo de ficar cego é correlativo à angústia de castração, assim como, no mito de Édipo, há o ato punitivo de cegar a si mesmo.

Freud investiga vários fatores que provocam o efeito infamiliar, e alguns desses provêm de fontes infantis e de fases específicas do desenvolvimento do Eu. No tema do duplo, o Eu se forma e instâncias singulares aparecem: a “consciência moral” — contrapondo ao restante do Eu, que serve de censura psíquica — e, nos casos patológicos, o delírio de se ser observado.

O fator da repetição do mesmo, outra fonte do sentimento do infamiliar, aparece nos sonhos e nas situações de desamparo. Freud conta algo que aconteceu com ele em uma quente tarde de verão, enquanto caminhava pelas ruelas de uma cidadezinha italiana, acabou voltando, por três vezes, a um mesmo trecho, onde haviam mulheres maquiadas debruçadas nas janelas das pequenas casas. Nesse momento, ele diz ter experimentado o sentimento do infamiliar e ficou feliz por ter renunciado a fazer outras descobertas. A repetição involuntária pode derivar da vida anímica infantil e exprime a compulsão à repetição, ligada à natureza das pulsões.

Freud propõe a aproximação de casos que validariam a hipótese do infamiliar apresentando a história clínica de um neurótico obsessivo que quer ocupar um quarto em uma clínica, mas este está ocupado por outro paciente, e então diz: “que ele morra de infarto” (FREUD, 2019, p. 1200). Dias depois, isso ocorre. Para o paciente, foi uma vivência “infamiliar”.

Nesse ensaio, Freud ainda cita outros fatores a partir dos quais o angustiante se torna infamiliar. Na sequência, faz duas observações consideradas essenciais. Em primeiro lugar, que “todo afeto de uma moção de sentimento — de qualquer espécie, transforma-se em angústia por meio de recalques — este angustiante é algo recalcado que retorna” (FREUD, 2019, p. 1230).

Em segundo lugar, aponta que “o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliaruma vez que esse infamiliar nada tem de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento” (FREUD, 2019, p. 1230).

O infamiliar no mundo em que a gente vive

Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/2010) diz que, se os avanços tecnológicos não tivessem acontecido, o filho não deixaria a cidade natal, o amigo não viajaria para longe e não precisaríamos dos meios de comunicação para acalmar a nossa inquietude. Na atualidade, a aviação comercial possibilitou cruzar os oceanos. Mas, ainda hoje, ser um estrangeiro, ser um imigrante, traz algo do infamiliar. Para Bassols, “É o estrangeiro (…) que encarna, para cada um, um gozo estranho, segregado, alheio (…) que nós, psicanalistas, designamos às vezes como ‘o real’, sempre inquietante” (FREUD, 1930/2010, p. 6).

Afinal, como o infamiliar se apresenta no mundo em que a gente vive? A família moderna apresenta um estatuto extremamente reduzido; a redução das solidariedades familiares deixa o sujeito desatado da sabedoria tradicional. Nos casos atendidos na clínica, aparecem a família da época da ciência e também a da época da psicanálise, em um mundo onde o discurso da ciência dessubjetiva o significante e introduz a universalização, desatando o sujeito da sabedoria tradicional. E o real do trauma, por sua vez, irrompe na modalidade temporal das urgências. É o tempo do inconsciente real, um inconsciente sem recalque, ou com pontos em que o Nome-do-pai (NP) não incidiu, de onde advêm os fenômenos que não obedecem às leis da linguagem e cujo conteúdo que retorna não poderá ser historiado pelo sujeito.

Desde Freud, os psicanalistas não deixam de pensar o sujeito na sua relação com a linguagem. Lacan chama de falasser a relação do falar com o ser: “a linguagem está ligada a alguma coisa que faz furo no real. Aliás, a linguagem come o real” (LACAN, 2007, p. 31). Portanto, uma pergunta é formulada: como se dá o encontro de uma criança que imigra com o infamiliar da linguagem? Brousse (2007) considera que o bebê não nasce falando, mas é exposto à alteridade da linguagem e será um sujeito falante quando souber as palavras e puder devolvê-las ao Outro. Para o psicanalista, o encontro com a história de vida de uma criança se dá a partir da entrevista inicial com os pais e será no a posteriori que se verá como cada criança ressignificará o vivido.

Vejamos como esse encontro ocorre atualmente: quando imigra, no primeiro ano de vida, a criança tem seu nome próprio — Tainá[1]. Lacan (2007) diz que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer mais que um S1. Se dirige rumo S2, onde se “acumula o que concerne ao saber” (LACAN, 2007, p. 86). A pronúncia do nome da criança, de origem indígena, causa a preocupação dos pais. No entanto, o que provoca a angústia é a irrupção do real, que advém com o seu primeiro adoecimento, quando começa a ir à creche. Ou seja, quando o infamiliar emerge, o encontro com aquilo que é invasivo convoca, no pai, a tentativa de dar um sentido, lançando mão do simbólico, para lastimar contra os malditos microrganismos — vírus e afins — e ao custo de uma vida social[2].

Quando outra criança se muda de país enquanto está aprendendo a falar, normalmente rompe com as rotinas com as quais tinha intimidade. Após algum tempo, quando convocada, a criança não consegue falar com desenvoltura sua língua materna nem a segunda língua, mas, ao seu modo, diz do medo de ficar sozinha. Miller (2011, p. 15) vai dizer que “intimidad es estar calentito” [3] e que, do lado íntimo, está o interior mais pessoal.

Ao imigrar, uma criança tem que aprender uma terceira língua, que possui certa dificuldade, mas pode não mostrar interesse em participar das aulas nem progredir na seriação escolar. Tal dificuldade pode impedir o acesso à universidade, despertando a angústia dos pais.

O infamiliar faz surgir a angústia mobilizando o sujeito quando o gozo invasivo emerge e deixa aparecer o que é da ordem do real. O infamiliar, para Freud, toca o limite entre o interno e o externo. Para Lacan, resulta na noção da extimidade, isso que é o mais interior sem deixar de ser exterior (MILLER, 2011). Segundo Miller (2011), a extimidade, o falar “do Outro de dentro”, aponta para a questão da imigração, termo considerado relativamente novo, contemporâneo da revolução industrial. O sujeito, ao vivenciar a perturbação de estabelecer-se em um país estrangeiro, faz cálculos “para saber se deverá abandonar sua língua, suas crenças, suas vestimentas, sua forma de falar, se trata do fato de saber em que abandonará o Outro gozo” (MILLER, 2011, p. 55). Em psicanálise, ser um imigrante é o estatuto do sujeito. “O sujeito como tal definido por seu lugar no Outro, é um imigrante… O problema do sujeito precisamente é que este país estrangeiro é seu próprio país” (MILLER, 2011, p. 43).

Na modernidade, com o objeto a que “es tan êxtimo al sujeito como al Otro” (MILLER, 2011, p. 22), no zênite, com o declínio do NP, temos duas vias para pensar a angústia trazida pelo infamiliar. Segundo Sérgio de Castro (2020), na via da angústia de castração, temos um unheimliche passível de ser interpretado e que traz a marca do NP, apreensível pela linguagem. O sujeito sustentado pelo NP poderá decodificar, compreender um certo mal-estar, lançando mão do simbólico. Na via da angústia lacaniana, quando o objeto se presentifica, quando falta a falta, aparece um unheimliche, um real que remete ao campo do gozo, que tem algo de invasivo. O sujeito, sem a sustentação fálica e sem a mediação simbólica, pode se ver sem a possibilidade de dar um sentido àquilo.


REFERÊNCIAS
BASSOLS, M. O bárbaro: Transtornos de linguagem e segregação. Opção Lacaniana online, São Paulo, n. 25/26, 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/texto2.html. Acesso em 30 out. 2019.
BEBER, Bruna. (2019), Hamlet. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
BROUSSE, Marie-Hélène. (2007) Objets ètranges, objets immatériels: pourquoi Lacan inclut la voix et le regard dans la série des objets freudiens? Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 59, n. 2, p. 287-293, dez. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672007000200017. Acesso em 8 abr. 2020.
CASTRO, Sérgio de. Seminário ministrado em Montes Claros – MG em 13 fev. 2020.
FREUD, Sigmund. (1919). O Estranho. In: Obras completas, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990.
FREUD, Sigmund. (1919) O Infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019): Seguido de “O homem da areia” de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte, MG: Editora Autêntica, 2019.
FREUD, Sigmund. “O Inquietante”, In: Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. (1930) “O Mal-estar na civilização”, In: Obras completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HOFFMANN, E.T.A. ”O homem de areia”, In: Contos Fantásticos do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O sinthomaRio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ,2007.
MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011.

[1] Nome fictício.
[2] Este texto foi escrito antes de a OMS declarar a pandemia do coronavírus, em 11 mar. 2020.
[3] “Intimidade é estar quentinho” (tradução nossa).