Ódio, Uma Paixão Do Ser

TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY

 


LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

Freud, em “Pulsões e seus destinos” (1915), fala sobre o amor e o ódio tendo como pontos de partida suas relações com o tempo e com a origem. Eles têm origens diversas e andam em um descompasso temporal, sendo o ódio anterior ao amor.

 

Em Lacan, as paixões do ser se inscrevem no momento em que ele define o sujeito do inconsciente como falta-a-ser, motor que conduz o sujeito a buscar, no outro, aquilo que pode lhe conferir um sentido diante de uma significação sempre aberta.

 

O ódio, como uma das paixões do ser, diz respeito à operação de constituição do sujeito através do mecanismo da Austossung, a expulsão como o ponto de partida da configuração do ser. Movido pelo princípio do prazer, aquilo que é desagradável é expulso, configurando-se de um modo radical no dito do sujeito “isso não sou eu”. Do outro lado, temos a introjeção da experiência prazerosa que constitui o “isso sou eu”.

 

Ódio, o mais antigo

 

Em “Pulsões e seus destinos”, Freud nos diz que o amor e o ódio

 

(…) não surgiram da cisão de uma entidade originalmente comum, mas brotaram de fontes diferentes, tendo cada um deles se desenvolvido antes que a influência da relação prazer-desprazer os transformasse em opostos” e que “O ódio enquanto relação de objetos é mais antigo que o amor (1915/1976, p. 160-161).

 

Ele se refere a “uma fase mais elevada da organização sádico-anal pré-genital, [em que] a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia em dominar, para a qual o dano ou aniquilamento do objeto é indiferente” (Ibid.).

 

Freud não supõe pura e simplesmente uma anterioridade do ódio em relação ao amor. Ele parte do momento em que o eu só ama a si mesmo e permanece indiferente para com o mundo. O odiar atinge seu objetivo quando a fase puramente narcisista cede lugar à fase objetal, assim, prazer e desprazer significam relações entre o ego e o objeto, motivo de uma instabilidade essencial e sempre presente no eu, motor para uma relação mais permeável entre dentro e fora, descrita por ele da seguinte maneira:

 

O mundo externo é decomposto agora em uma parcela prazerosa, que [o sujeito] incorpora em si, e em um resto, que lhe parece estranho. Do seu próprio eu, ele extraiu uma parte que expeliu para o mundo externo e que passa a sentir como hostil (Ibid., p. 159).

 

Só depois de estabelecida a organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio.

 

Essa passagem aponta para uma expulsão fundadora, a Austossung, primeiro intercâmbio do sujeito com o mundo, que se baseia na expulsão de um excesso inominável.

 

Como aproximar essa expulsão mítica e estrutural dos fenômenos do ódio?

 

Para melhor situar as relações entre dentro e fora, Lacan insiste na importância de discernir os registros imaginário e real. A operação mítica de constituição do sujeito se dá sem a interferência do simbólico. Imaginário e real participam da constituição de um corpo que goza e, sem o alcance do simbólico, se constitui como um gozo que não segue o modelo do Ideal do Eu (SILVA, 2019). Dessa forma, o imaginário não consegue estabilizá-lo.

 

Esse corpo permanece no real, marcado por uma relação entre o eu e o outro que se constitui como uma espiral em que a possibilidade de vacilação da percepção quanto à unidade encontra-se sempre presente. É o que, no Seminário 2, Lacan nomeia ‘desarvoramento’ (LACAN, 1954-1955). O recurso à alteridade que o sujeito utiliza deixa como legado uma tendência à rivalidade e à inveja.

 

Essa tal rivalidade seria o fundamento do ódio? Lacan afirma que há uma dimensão imaginária do ódio, uma vez que a destruição do outro é um polo da relação intersubjetiva. Contudo, o ódio não se satisfaz com a destruição do adversário, o que aponta para uma presença suplementar. Aqui, Lacan destaca uma diferença entre simplesmente vencer, destacar-se no eixo imaginário e frustrar o sujeito no seu ideal no sentido de uma formação egoica, eu ideal (LACAN, 1953-1954, p. 316).

 

O desaparecimento do outro, objeto do ódio do sujeito, pode não representar uma solução eficaz. Pelo contrário, a presença imaculada da sua ausência pode eternizar o ódio. Humilhar e degradar publicamente o outro pode ser uma forma de destituição mais eficaz para o sujeito do que derrotar esse outro: mais vale a sua abjeção.

 

Para Lacan, no Seminário 1, o ódio, assim como o amor, é uma carreira sem limite (1953-1954, p. 316). Há um ilimitado em questão, uma presença suplementar que se constitui como gozo, que estabelece uma relação entre as figuras simbólicas abstratas e o campo concreto das relações. O gozo tende a evocar esse ponto de alteridade interna, de presença êxtima, de erro.

 

A distinção entre o ódio dito estrutural, constitutivo do sujeito, e o ódio manifesto no comportamento muito nos auxilia na nossa prática clínica.

 

O Erro enquanto uma figura de linguagem

 

Lacan, no Seminário 1 (1953-1954, p. 300-301), articula as três paixões às três figuras de linguagem: erro, ambiguidade e engano. Ele aproxima o ódio do erro vinculando-o à denegação, a ambiguidade à condensação e o engano ao lapso. Para Lacan, é no tecido simbólico que a emergência da verdade pode ser verificada. A palavra se afirma verdadeira justamente por ser enganadora. Na emergência de certo tipo de contradição, encontra-se uma passagem da errância subjetiva habitual para a materialização de um erro sem lugar e singular.

 

A denegação freudiana nos ensina que, quando um significante veicula uma impropriedade, quando se apresenta como não podendo estar ali, algo do ser comparece nesse regime de não ser, de não poder ser.

 

A figura do erro constitui uma prerrogativa capaz de possibilitar uma passagem do ódio como rompante, como fenômeno, como excesso, para algo mais apreensível na linguagem, para a ex-sistência, que, como tal, é sempre complicada. A ex-sistência é um nome para um excesso particular ou singular.

 

Marcus André, em seu livro A ética da paixão, trata o erro como aparição na fala de algo não planejado, de uma presença insensata que introduz a dimensão da verdade. “O erro diz respeito a um significante que é o ‘não pode ser” (2001, p. 174). Pode provocar o desprezo, a depreciação, a necessidade apaixonada de exclui-lo da série, de eliminá-lo. Esse é o fundamento do ódio. Um significante que, de alguma maneira, extrapolaria o próprio exercício corrente do simbólico.

 

Lacan nos diz que o ódio é um sentimento lúcido pressupondo, portanto, sua ligação com o saber, enquanto a dificuldade em reconhecer o ódio manifesto na relação ao outro pode ser uma manifestação da ignorância, como uma das paixões do ser. Dessa forma, o sonho do amor universal pode levar à ignorância quanto à irredutibilidade do ódio, que nunca se reduz a zero. O trabalho de análise pode possibilitar ao sujeito encontrar alternativas e saídas próprias.

 

 

 


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1915) As pulsões e seus destinos. Obras completas de Sigmund Freud. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
FREUD, S. A Negativa. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIX, 1976.
LACAN, J. (1954-1955) O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro:  Ed. Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1953-1954) O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:  Ed. Jorge Zahar, 1986.
SILVA, R.  “O ódio estruturante”. Boletim Enapol: OCI 1.
https://IX.enapol.org/boletim-oci-1/
VIEIRA, M. A. A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro:  Ed. Jorge Zahar, 2001.
VIEIRA, M. A.; SILVA, R. (org.) Ódio, segregação e gozo. Subversos e ICP/RJ. 2012.

TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY
Psicanalista, mestre em Psicologia (UFMG) | Rua Teixeira de Freitas 478, sala 706 | (31) 3225-5322 | 9 9985-7888 | terezafacury@gmail.com



Brumadinho: Um Crime Em Acontecimento!

RODRIGO CHAVES

 

 LAMA -RICHARDSON PONTONE

 

Almanaque: “Acontecimento” é nosso tema de trabalho neste número do Almanaque e o entendemos como uma experiência que inaugura um antes e um depois. Você considera o rompimento da barragem de Brumadinho no estatuto de acontecimento? É uma experiência que inaugura um antes e um depois para a população e a cidade?

 

Rodrigo Chaves: Com certeza. Não sei se o conceito a ser utilizado é o de acontecimento ou se é o de crime, de tragédia humana absurda, mas com certeza tem um antes e um depois. É crime, que com certeza muda, traz transformações muito profundas na vida de uma comunidade, de um território. Ocorreram mudanças afetivas e mudanças culturais muito grandes em tão pouco tempo. Percebemos mudanças culturais, nas relações de afeto entre as pessoas, mas não é um crime que aconteceu. É um crime em acontecimento.

Se a palavra é essa, ele está acontecendo, a tragédia está em andamento. Temos como exemplo o caso de uma pessoa que, no primeiro momento, queria muito encontrar o corpo do familiar para poder sepultá-lo e, logo em seguida, era tomada por uma atitude de negação, acreditando que o familiar estivesse vivo. De alguma forma, o luto nem pôde começar, porque nem se sabia se o familiar desaparecido estava vivo ou não.

 

A: Como foi organizada a estrutura da Rede de Saúde Mental de Brumadinho após o rompimento da barragem?

 

RC: Nós fomos capazes de dar uma resposta imediata. Fizemos na Saúde, como um todo, um esquema de plantão tanto nos hospitais gerais da microrregião e região metropolitana – para receber os feridos, prestar os primeiros socorros – quanto na saúde mental, junto a equipes locais (adulto e infantil) e profissionais da Coordenação Estadual, da FHEMIG, dos municípios vizinhos, do CRP, da Força Nacional do SUS e de outros parceiros. Mas isso só foi possível porque Brumadinho tem um SUS bem organizado.

É um local que tem 100% de cobertura do Programa de Saúde da Família e uma equipe de saúde mental estruturada dentro da necessidade do município. A cidade já contava com o CAPS e com o CAPS infantil. E, em razão dessa necessidade, ampliamos toda a rede de saúde mental, aumentando a capacidade do CAPS; credenciamos o CAPS infantil e criamos mais equipes que trabalham no território, chamadas de intermediárias. Isso foi aprovado e está sendo financiado pelo Ministério da Saúde. São quinze profissionais, cinco em cada equipe, que acompanham os casos mais próximos nas unidades básicas, para que o CAPS fique efetivamente com a crise e com a urgência. Estruturamos plantões de saúde mental nos postos da zona quente e na sede. Era preciso que a população tivesse a certeza de que, se fosse necessário, estaríamos lá. Fundamentalmente, é preciso dizer do trabalho territorial anteriormente desenvolvido pela saúde mental e aprofundado pós-rompimento da barragem. O SUS que conhece e sendo reconhecido pela comunidade.

 

A: E como foi a resposta da comunidade?

 

 

RC: Diferente do que esperávamos. No primeiro momento, não apareceu ninguém.

As famílias ficaram fechadas dentro de casa, sem ter certeza do que estava acontecendo, ansiosos esperando uma notícia. Aparentemente só saiam de casa duas vezes por dia, uma de manhã e outra à tarde, a hora em que saía a lista dos bombeiros, para saberem se tinham encontrado alguém ou se alguém tinha mudado de lista, de desaparecido para encontrado ou dado como morto. Em seguida, voltavam para suas casas. E isso persiste, ainda, em muitos casos.

 

A: Como você avalia isso? Uma perplexidade?

 

RC: Logo após o rompimento da barragem, as pessoas ficaram circulando pela cidade tentando fazer contato com familiares, procurado saber se alguém tinha notícias. Em seguida tivemos uma pane e, segundo alguns relatos, os telefones param de funcionar, e não se conseguia comunicar. As pessoas ficaram esperando notícias do seu familiar, mas, diante da falta de notícias, a expectativa era de que ele ainda estaria vivo e não dava notícias por causa da pane que paralisou os telefones. Em seguida, a população ficou na expectativa de que viria uma enchente, de que a lama viria ocupar toda a cidade, e então eles foram para as partes altas da cidade. Mas isso não aconteceu. A lama parou nas proximidades da cidade, entre a barragem e a cidade. Acumulou ali uma lama gigantesca, uma montanha de lama que segurou a água. O rio que passa pela cidade foi interrompido por algum tempo pela lama e começou a baixar o nível de água. Muitas pessoas desceram para a beira do rio e foram acontecendo coisas inusitadas, por exemplo um ajuntamento de pessoas olhando para o rio, paralisadas ali, dias e dias e dias ali, olhando para ver se algo vinha. Porque, nas primeiras semanas, os números eram imprecisos. Eles olhavam ao longe, no rio, na esperança de que o rio trouxesse algo, de encontrar pessoas, ou mesmo fragmentos dos corpos. Era muito ruim.

 

A: O rio passou a ter outra conotação para a população?

 

RC: Sim, ocorreu também o “balé dos peixes”. Os peixes saltavam da água e as pessoas começaram a descer à beira do rio para pegar os peixes com as mãos. Ou seja, ao mesmo tempo em que se esperava que chegasse alguém, um corpo, uma notícia, o que se vê são pessoas pegando os peixes com as mãos. Me pergunto: o que faz o ser humano agir dessa forma? O rio e seus peixes eram um complemento alimentar utilizado normalmente por eles, pela pesca. Mas, naquela situação, eles desciam para pegar os peixes devido à facilidade, pois os peixes saltavam após a água baixar de nível. Isso é muito estranho, pois, ao mesmo tempo em que pegavam os peixes, aguardavam algum familiar, amigo, algo que pudesse ser trazido pela enchente. E também corriam o risco de serem levados, caso a enchente aumentasse. E foram muitas pessoas que fizeram isso.

É um movimento dúbio que aparece também em relação à Vale. Muitas pessoas estão recebendo dinheiro, muito dinheiro, o que nos leva a refletir que isso suspendeu o luto não de quem teve a perda do familiar, mas do resto da comunidade que não teve a perda direta mas estava em luto pelos amigos, pelos vizinhos, pelo crime, pelo chocante da tragédia…

 

A: Quais são as outras percepções sobre esse primeiro tempo, pós rompimento da barragem?

 

RC: Tivemos também uma invasão de imagens – dos tratores, da lama, dos bombeiros, mas não se viam pessoas sendo resgatadas. A cada minuto que passava, ficava mais difícil disso acontecer. Me parece que, após as primeiras setenta e duas horas, os bombeiros falaram que não tinham mais expectativa de encontrar pessoas com vida. Depois de alguns dias, eles anunciaram que iriam entrar com maquinário pesado, e isso estraçalhou as famílias, estraçalhou as pessoas. A compreensão de que os corpos já haviam sido dilacerados no momento da chegada da lama ainda não era corrente. Esperava-se ainda pelos corpos dos familiares, e não fragmentos. O uso de máquinas jogava por terra mais essa esperança.

Essas pessoas foram muito invadidas. A cidade foi invadida, foi invadida por voluntários, por serviços de saúde de todas as espécies, por gente fazendo pesquisa, por tudo o que vocês imaginarem. Chegavam ônibus de psicólogo, um ônibus de assistente social… Colocavam a plaquinha e saiam. Invadiram a cidade inteira. Independentemente de como a pessoa tinha sido atingida, eles batiam na porta da casa o dia inteiro. Não tinha um espaço para o sofrimento, não tinha um espaço para que a família pudesse sentir a dor da perda.

 

A: Qual é a perspectiva de passagem do tempo para essa população?

 

RC: A missa de sétimo dia, celebrada pelo arcebispo de Belo Horizonte, me parece que não estava muito cheia. Poderia ter sido uma marcação temporal para essa tragédia, mas algumas pessoas disseram “eu não vou à missa para quem eu não sepultei”, “eu não reconheço a morte”, “eu não sepultei ninguém”. Na missa de trigésimo dia, tivemos as mesmas falas. Uma pessoa que tinha perdido os familiares deu um testemunho em uma rádio, e quando o repórter perguntou para ele “e agora? como é começar do zero?”, ele respondeu “eu não sei onde é o zero, eu não achei o zero ainda”.

Então, para alguns, o tempo não começou a contar ainda.

 

A: Isso afeta a elaboração do luto…

 

RC: Sim, há um tamponamento, uma suspensão do luto. Inclusive isso aparece muito em relação à Vale. Escutamos no CAPS falas como “eu ouvi lá no supermercado pessoas comentando que foi bom que aconteceu, porque a vida está mais fácil agora”. Porque eles estão recebendo dinheiro, muitos estão recebendo dinheiro, então as pessoas estão podendo fazer a compra do mês e muitas outras compras não habituais. E essa cidade, que é bastante solidária, bastante afetuosa, começa a perceber essa divisão de opiniões entre as pessoas que acham que a Vale tem que voltar logo e as pessoas que estão muito magoadas, com muito sofrimento.

Nesse sentido, tem algumas coisas que estão muito diferentes. Essa questão financeira é muito delicada. As crianças! Podemos fazer a mesma comparação com o sentimento das crianças: para elas estão sendo ofertados, lá no Parque da Cachoeira, brinquedos a que elas nunca tiveram acesso ao mesmo tempo em que o irmão está desaparecido na lama. Isso já nos primeiros dias. É aquele sentimento ambivalente: estou feliz, mas estou triste, porque estou aqui brincando, uma coisa superlegal, mas meu irmão não chega.

E muitos são tomados pela culpa, como um paciente que chega procurando ajuda e fala que está insone, que está deprimido, chorando muito e, em seguida fala “não entendo por que isso está acontecendo; eu não perdi ninguém, eu não fui atingido, minha esposa está vindo trabalhar todos os dias, a lama não chegou na minha casa”. E completa “eu não estou sendo homem o suficiente, eu não podia estar desse jeito”.

Ora, todo mundo na cidade foi atingido, é óbvio que cada um vai se impactar de uma maneira. Em uma reunião de equipe, um técnico da área da saúde pergunta “e se todo mundo surtar? como vai ser?”. E a resposta que dei foi “não, isso não vai acontecer”. É claro que, nessas situações, muitos de nós vamos adoecer, inclusive da equipe; já estamos adoecidos. Mas não é assim, nesse processo de adoecimento metal, não adoece todo mundo.

Há essa coisa do “todo mundo”, da “tragédia coletiva”, mas, na hora que você recebe as pessoas, uma a uma, você percebe como é pessoal; como a vivência é de cada um mesmo. Ela tem esse caráter coletivo, de um crime, de uma tragédia coletiva, social. Fazemos política pública para “todo mundo”, mas, na hora do cuidado, se cuida muito individualmente. Temos casos em que o sofrimento retorna nos sonhos, e o sujeito não para de sonhar com a lama.

 

A: Isso tem a dimensão do trauma. É uma tentativa de elaborar o que aconteceu?

 

RC: Sim. Hoje, tem uma parcela da população que eu acho que é das pessoas que estão envolvidas – muito sofridas, mas envolvidas no processo de agrupamento. Eles estão se agrupando, excluem pessoas entendidas como aquelas que estão fazendo política partidária, política de uma determinada associação. Eles querem ser solidários uns com os outros. São grupos de pessoas que perderam familiares e se reúnem para discutir com advogados, com a promotoria, com a própria Vale. Há uma definição de que tudo tem que partir da população, assim como todas as estratégias de cuidado, e nós temos que partilhar isso com eles. Montamos nossa estratégia de trabalho a partir dessa premissa.

Talvez seja do início de uma retomada, uma retomada de reorganização de vida, de volta às ações, mas é uma retomada muito marcada. Não tem perspectiva de fim. Infelizmente eu não vejo assim, de que nós vamos, dentro de três anos, por exemplo, superar isso. É difícil fazer uma elaboração de uma coisa que não se fechou, não tem nada se fechando. As pessoas continuam por sepultar seus mortos, por entender o que aconteceu, e essa coisa de ter um sentimento muito ruim em relação a algo externo, não sei se permite uma elaboração. Quanto isso vai dificultar? Porque a cidade é muito dependente do minério e da Vale, que vai continuar existindo ali.

Hoje a comunidade não tem preocupação de que possa acontecer isso de novo, porque já aconteceu, já não tem mais barragem para romper. Os moradores de Macacos, de Barão de Cocais, estão vivenciando isso. Isso é uma situação absolutamente perversa.

 

A: Passados poucos meses, quais sintomas podem ser destacados e relacionados com esse crime em acontecimento?

 

RC: Há indicadores de que os adoecimentos vão aumentar, por exemplo a questão da violência doméstica, a questão do uso de álcool, a questão das tentativas de autoextermínio, quadros de ansiedade severa, a questão da depressão na infância. Estamos percebendo isso agora, com três meses, quase três meses. Esse fluxo está começando a chegar mais efetivamente, antes estava muito disperso.

 

 

 


Rodrigo Chaves
Entrevista com Rodrigo Chaves, Coordenador de Saúde Mental do Município de Brumadinho- MG, por Alessandra Rocha, Giselle Moreira e Ludmilla Féres Faria



Diante Da Escalada Dos Perigos, A Psicanálise?

JEAN-DANIEL MATET

 

A invenção freudiana sobreviveu a todos os desastres do século XX, mas nada garante que será assim nos tempos que virão. O que foi demonstrado é que o desejo do analista resiste, por meio de sua transmissão original através de sua própria experiência, enquanto houver sujeitos divididos por esse saber que lhes aflige, lhes faz suportar a existência humana ao preço de sintomas; enquanto houver mulheres e homens que acreditem no inconsciente. Se algumas condições foram reunidas para que essa invenção (LACAN, 2003, p. 29-90) viesse à luz, outras permanecem necessárias para que ela se desenvolva. A liberdade de pensamento é uma delas, assim como a liberdade de circular e de encontrar livremente seus concidadãos, a liberdade de exercer a profissão de psicanalista. Essas condições estão reunidas hoje na Europa, mas estarão amanhã? Em 1933, os livros de Freud foram queimados em praça pública pelos nazistas, e mesmo que a prática da psicanálise “não tenha sido proibida na Alemanha hitlerista, ela foi interditada aos analistas judeus” (SOKOLOWSKY, 2013, p. 265). As declarações de Freud reunidas por Laura Sokolowsky fazem pensar que ele não dava crédito ao futuro da psicanálise, principalmente quando a segurança de Berlim caiu por terra e os nazistas e seus colaboradores tomaram o Instituto de Berlim. Outro acontecimento foi o desaparecimento de Ferenczi na Hungria, o que não permitiu o desenvolvimento esperado da psicanálise, da mesma forma como nos EUA (mas ali por razões de orientação). Entretanto, em nenhum momento, Freud considerou a causa perdida, empenhando-se em encontrar a resposta à altura da urgência do momento, particularmente com seu Moisés, ou, ainda, com “Análise finita e infinita”. Sua idade não foi motivo de abstenção, pelo contrário, na medida de suas forças, contribuiu para sustentar o que podia ser sustentado.

 

A pulsão de morte

A Primeira Guerra Mundial foi, para Freud, o encontro com um real que perturbou sua percepção das relações humanas e teve uma grande repercussão sobre sua própria teoria. O nacionalismo alemão de sua juventude (FREUD, 1987, p. 199) e o orgulho pelo engajamento de seu filho Martin na guerra, seguido de Ernest, não se estenderam por muito tempo diante do massacre de uma jovem geração de homens, mesmo que seus próprios filhos tenham sobrevivido. A angústia, durante quatro anos, de não saber se os veria novamente, a morte de pessoas próximas, transformou Freud radicalmente, que tirou daí as consequências na teoria e na prática do pós-guerra. Suas preocupações sobre a morte orientaram textos maiores, tais como “Luto e melancolia”, “As pulsões e seus destinos”, “Além do princípio do prazer”. Em 1915: “De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores” (FREUD, 1969, p. 327). Por isso Freud vai “tentar dar um sentido à impensável destruição generalizada da qual é a testemunha” (KAMIENIACK, 2008), construindo sua metapsicologia. É sua concepção da sociedade e da cultura que se encontra perturbada pelas terríveis consequências da guerra. Como as nações de cultura podem cometer tais crimes de massa? Ele tentará responder retomando Gustave Le Bon e dará, nos textos O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização, a ideia de que a cultura não dá nenhuma esperança de coexistência pacífica entre os humanos, sempre prontos a empregar a agressividade do narcisismo e das pulsões.

 

No coração do ser

Jacques-Alain Miller demonstrou como Lacan soube ler Freud acerca dessas questões sublinhando seu silêncio editorial durante a Segunda Guerra Mundial e destacando a importância desse período para aquele que soube intervir face o antijudaísmo que se abateu sobre sua família. À sensibilidade frente ao antissemitismo, Freud, que desde muito jovem sentiu na violência contra seu pai, fará assumir o fato de ser judeu, como dirá ao pai do pequeno Hans. Ele dá indicação do que a psicanálise deve enfrentar, ainda que tenha havido avanços no processo de a “tornar laica”. Não negligenciemos que ainda hoje as redes sociais dão voz a comentários cuja virulência antissemita ainda é dirigida a Freud e a seus descendentes. Por essa razão, as consequências do projeto nazista de exterminar massivamente os judeus da Europa continuam sendo aquilo com o que a psicanálise e os psicanalistas nunca poderão negociar. Que Lacan tenha feito uma referência aos campos de concentração em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967” reforça ainda mais essa exigência.

 

Ao dar seu seminário na rua Ulm, na École Normale Supérieure, nos degraus do Panthéon durante a greve da Sorbonne, e legalmente criar o departamento de Vincennes não sem se endereçar aos estudantes “enraivecidos” no local, Lacan nos mostrou que defender a extensão da psicanálise exige sair do consultório e se juntar ao real dos transbordamentos sociais para perceber algo que diz daquilo que é o gosto do momento, até mesmo o desgosto.

 

Ele sustentou essas consequências para a psicanálise, e seu seminário O avesso da psicanálise formaliza as modalidades do discurso que afetam aquele que se analisa e as passagens possíveis ou impossíveis de um ao outro (mestre, histeria, universidade, psicanálise). Percebe-se uma constante necessidade de se reformular os conceitos com os quais trabalhamos, com o objetivo de mantê-los ativos no real que tentamos abordar e na experiência do tratamento, para reduzi-lo a um matema transmissível e, assim, entender esse real que ruge e ameaça o mundo. Vê-se assim que a atualidade tem esta frase da “Proposição”: “Nosso futuro dos mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação!” (LACAN, 2003, p. 263).

 

Uma exigência

 

Lacan localizou um pouco antes o que se tornou uma exigência e que o levou a se separar da IPA, não por sua própria vontade, mas assumindo posições que deram uma chance à psicanálise freudiana de se reinventar: “Eis onde nos demitimos daquilo que nos faz responsáveis, ou seja, da posição em que fixei a psicanálise em sua relação com a ciência, a de extrair a verdade que lhes corresponde em termos cujo resto de voz nos é alocado” (LACAN, 2003, p. 257).

 

Ao terminar os Escritos por “A ciência e a verdade”, Lacan lançou um sinal decisivo. J.-A. Miller foi capaz de nos transmitir sua força e nos conduzir através da construção da AMP, e, ainda mais, a não dar importância aos golpes daqueles que são facilmente fascinados pela ciência e desejavam esquecer as consequências de seus posicionamentos. Seja pela invasão da prática avaliadora, seja utilizando as miragens do imaginário e da genética, o respeito que essas disciplinas impõem apenas se mantém quando deixam um lugar para a palavra. Esse ainda é e sempre será o papel do movimento dos Fóruns, hoje europeus.

 

O fim da democracia libera[1]

 

Não importa sua duração: dois séculos para a democracia ateniense, cinco para o Império Romano, mil anos para a república vienense, os sistemas políticos mudam. A alegria econômica ou o regime das liberdades de seus povos nada mudaram. Desde a última guerra mundial, vivemos na Europa e na América do Norte em um sistema que garante globalmente as liberdades individuais e promete um futuro de desenvolvimento econômico para seus habitantes com mais ou menos intervencionismo para corrigir o excesso do mercado. Depois de menos de um século, essa “democracia liberal […] poderia de fato estar chegando ao fim” (MOUNK, 2018, p. 364). O fim da União Soviética e de seus vassalos, ao marcar o fim das “democracias populares”, abriu a era de uma liberdade da qual eram privados, sem democracia. O autoritarismo que prevalecia retornou mascarado por um populismo travestido pelo sufrágio universal, uma força que tende a ser ouvida na Europa (Polônia, Hungria, Áustria, Itália, etc…). As vociferações do presidente Trump, dos EUA, mal escondem sua ambição nesse domínio, e mesmo que as instituições americanas enquadrem seus excessos, isso ainda respinga em outros países do mundo (Filipinas, Venezuela e ameaças no Brasil). Essa disjunção entre democracia e liberdades individuais é perceptível nos sistemas em que a potência do mercado exige, para a sua expansão profunda, um ataque às liberdades individuais – ou, pelo contrário, deseja restringir a satisfação da reivindicação dos povos – e também nos sistemas em que as oligarquias se instalam para controlar a sociedade civil em benefício dos seus interesses econômicos ou ideológicos (Erdogan, na Turquia, por exemplo). Ocasionalmente, as manifestações de massa permitiram limitar essa evolução (contra a presidência corrupta da Coreia do Sul ou contra o partido polonês Direito e Justiça, em 2007). Os chefes de Estado que devem suas eleições às promessas “populistas” têm, frequentemente, uma visão a curto prazo que lhes permite assegurar uma reeleição, por uma redistribuição saudável em um primeiro tempo, e, em seguida, é a hora dos sacrifícios com a privação das liberdades democráticas para assegurar a perenidade de um regime desligado de todas as realidades (o exemplo da Venezuela é surpreendente a esse respeito). Inútil convocar o grau de cultura dos povos ou a anterioridade de seu sistema democrático: o equilíbrio conseguido entre liberdade e democracia é ameaçado quando as dificuldades complexas do mundo real conduzem as personalidades políticas a fazer proposições simples e a curto prazo para tratá-las. A qualificação de demagógico é insuficiente para qualificar os comportamentos políticos que conduzem ao desastre, como a história não tão antiga demonstrou na Europa ocidental. Sob o pretexto de satisfazer as reivindicações do povo, os partidos da França tornaram-se movimentos ou agrupamentos, prontos a tomar as pesquisas de opinião como a realidade dos desejos de um povo ou de uma nação. Nem a pena de morte teria sido abolida nem o aborto, legalizado, sem a força de convicção de um Robert Badinter ou de uma Simone Veil. Foi, contudo, necessário que um presidente eleito tivesse a coragem de dizer que ele era fiador dos interesses do povo francês e obter o aval da representação parlamentar. Veremos desaparecer essas equações que nos permitem falar de democracia liberal (no sentido anglo-saxão, e não somente do lado do liberalismo econômico) sob o golpe das palavras de ordem tão absurdas quanto injustas sobre a imigração ou o aumento da insegurança?

 

A mola de tudo isso é o medo instilado nos habitantes de um país ao brandir ameaças que afetam sua existência, por mais pacífica e isolada que ela seja. Basta observar as regiões nas quais os extremos (direita e esquerda) fazem suas melhores pontuações eleitorais na França para compreender esse amálgama entre as reais dificuldades econômicas e sociais e os discursos de medo ou de ódio que constituem as reivindicações que sustentam os regimes autoritários até mesmo as ditaduras (TONDELIER, 2017).

 

 

Combater

 

A ciência, à medida que amplia seu conhecimento e seu domínio da realidade do nosso planeta (bem como dos seres vivos), exige sempre mais meios econômicos e liberdade de ação. Por definição, sob o modelo do experimentador que não se inclui em sua experiência, como Lacan o demonstrou, os atores do mundo científico contemporâneo que atuam supostamente pelo interesse de todos, para o seu desenvolvimento, às vezes são, a contragosto, os profetas de um mundo que caminha para a destruição. As questões dos orçamentos de pesquisa demonstram que, frequentemente, as promessas de resultados ocupam a dianteira da cena, e isso sem dar informações completas sobre o que é visado. A maneira como são solicitadas as doações nos grandes setores de pesquisa (da medicina à ecologia) se assemelha, por vezes, às promessas de startups em busca de investidores. O avesso dessas promessas revela ser os medos que elas veiculam quando os resultados dessas investigações ou dessas pesquisas não se realizam.

 

A meteorologia e a ecologia doutrinária também fazem crescer o nível de apreensão dos riscos (lembremo-nos dos milenaristas). Os medos das crianças, como nossa clínica o demonstra, nutrem a angústia do adulto que se exprime na clínica pós-traumática. O terreno é, então, propício para que a mola desses medos seja ativada e oriente os votos em direção às proteções prometidas ou à designação de um bode expiatório: o emigrante será o escolhido, como se cada um devesse compartilhar diretamente seu prato com aquele que foge dos horrores da guerra e da miséria.

 

Então, não são os movimentos da população que ameaçam a liberdade ou a democracia, mas o medo que dela se pode sentir.

 

A experiência da psicanálise nos confronta com a exigência de achar os recursos para viver com os outros, mesmo com aqueles que não escolhemos, como os pais ou ascendentes, e até mesmo para nos mantermos afastados sem desconhecer as razões devastadoras que teríamos para fazê-lo. Ela nos ensina a não ignorar os processos de segregação (SIDON, 2102) que ameaçam, sem parar, as coletividades humanas e a medir a parte que nos é devida.

 

As diferentes associações, os CPCTs, reunidos na FIPA, continuam sendo observatórios excepcionais dessas manifestações do real no social, desses sintomas contemporâneos que não conduzem necessariamente a encontrar um psicanalista. Indicadores dos limites também daquilo que é esperado dos efeitos da fala em nossa sociedade.  Que as Jornadas da ECF das Escolas da AMP tenham um grande sucesso público testemunha o que é esperado do ponto extremo da experiência quando se trata do testemunho dos AE. Os atentados de 2015 mostraram a fragilidade de nossas construções, mas também sua vitalidade, quando, no ano seguinte ao cancelamento, um público ainda maior esteve presente nas Jornadas da ECF.

 

O mais íntimo que se mistura a essa performance pública no passe continua a ser uma ferramenta maior para interpretar não somente a Escola de psicanálise que o acolhe, mas também o mundo que o envolve. A esse preço, a psicanálise tem um futuro, mas não sem combater os germes do ódio, sempre prontos a se expressar. As declarações de amor não são suficientes.

 

 

 

Tradução: Luciana Silviano Brandão Lopes
Revisão: Ana Helena Souza e Márcia Mezêncio

 

 


Referências
FREUD, S. (1900) “O material infantil como fonte dos sonhos”.  In: Obras completas de Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p. 199.
FREUD, S. (1914-1916) “Reflexões para os tempos de guerra e a morte”. In: Obras completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV. p. 327.
KAMIENIACK, J-P. “Mort et travail de pensée chez Sigmund Freud”. InLe Coq Héron, 2008, nº 195.
LACAN, J. “Os complexos familiares”, InOutros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003. p. 29-90.
LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967”, InOutros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.
MOUNK, Y. (2008) Le peuple contra la démocratie, Paris: Ed. L`Observatoire, 2018. p. 364.
SIDON P. Le discours universel comme refus de la segregation. Les débats de l´observatoire, soirée du 8 janvier 2012 [www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2012/01/Observatoire-Sidon.pdf].
SOKOLOWSKY, L. Freud et les Berlinois. Rennes: PUR, 2013. p. 265.
TONDELIER, M. Nouvelles du Front. Paris: Éditions Les liens qui libèrent, 2017.
[1] MOUNK, Y. Le peuple contre la démocratie.

JEAN-DANIEL MATET
Psicanalista membro da Escola da Causa Freudiana e da Escola Lacaniana de Psicanálise



Os Acontecimentos Têm Um Rosto?

GUY BRIOLE

 

LAMA –RICHARDSON PONTONE

 

O que você vê quando me vê? Eis aí uma questão para todos, mas a quem, no mais íntimo da interrogação sobre si, se encontra reanimado quando a invasão traumática permanece ligada a um outro, a outros, àquilo que sua imagem, seu rosto, reenvia a cada um.

 

Essa é uma questão que coloca com determinação Primo Levi, em busca de reencontrar o que teria podido dar conta, “restituir o fundo de um ser humano” (LEVI, 1989. p. 32); um mais além disso que pode dizer um documentário, a história. Ele se encontrou um dia, “diante dos traços de um homem do outro lado” (Ibid.), alguém que teve que testemunhar, diante dos tribunais, sobre o que fez ou viu em Auschwitzuma pequena vila tranquila (Ibid. p. 31.). Encontrou muitas semelhanças consigo, idade, formação, trabalho na mesma fábrica; ele, no interior do arame farpado e, o outro, livre, voluntário nesse emprego: “Era quase eu, um outro eu mesmo do avesso” (Ibid. p. 32). Ele se interessava por tudo o que pudesse aprender desse químico alemão, como se ele houvesse podido aprender qualquer coisa sobre si mesmo. Mas, no final das contas, ele jamais pode reencontrá-lo: “Eu experimentava uma repugnância complexa na qual a aversão não era senão um dos componentes” (Ibid. p. 37). Ele permaneceu com essa questão lancinante: o que há dele em mim?

 

Também se interroga infinitamente para saber por que não podia reconhecer o rosto do SS que comandava o campo de Auschwitz e que, entretanto, estava lá presente todas as manhãs, ao chamado com os outros SSs. É que, escreveu, eles “eram todos parecidos, seus rostos, suas vozes, suas atitudes: todos deformados pelo mesmo ódio, a mesma cólera” (Ibid. p. 109.), mas também, acrescenta, por sua “inclinação à obediência curvada” (Ibid. p. 111). Lacan sublinha bem isso: o que se passa entre dois sujeitos excede o laço discursivo e traz consigo, antes de tudo, “o perfil, a projeção, a silhueta”. Certamente ele o diz do lado disso, de que nós “adoramos em um ser amado” (LACAN, 1973, s/p.), mas nós o entendemos também para aquilo que abominamos naquele que nos odeia.

 

Levi avança em sua reflexão sobre o outro nele mesmo nos contando uma história, a de um jovem herdeiro de muitas gerações de fabricantes de espelho. Jamais eles se desviaram da tradição que obrigava a repetir exatamente os mesmos espelhos planos, esses supostamente capazes de dar a verdadeira imagem – mesmo se ela for virtual – do mundo e, particularmente, do rosto dos humanos. Desde sua juventude, se dedicou a aprender bem sua profissão, mas, sem que seu pai soubesse, concebeu espelhos bem mais inventivos, que transformavam a realidade à qual cada um se habituava, e se angustiava quando era preciso retornar às imagens do mundo compartilhado! Mas sua esperança secreta era de realizar um Mimet, um espelho metafísico! Seria um espelho que, fora das leis da ótica, reproduziria sua imagem tal como ela fosse vista por uma pessoa que estivesse à sua frente (Cf. LEVI, 1989, p. 67)! Seria suficiente, para tanto, colar esse espelho na face da pessoa à frente e ver-se ali, como o outro supostamente o veria. Ele se deu conta de que essa imagem não tinha nada em comum com a imagem que cada um se gaba de ter no olhar do outro. Assim, foi um fracasso para ele e para seu negócio; ninguém queria se ver de um modo diferente daquele que se pensa!

 

O rosto, é o acontecimento

 

Com Levinas, a experiência de um outro toma a forma do rosto. Não aquele da plástica nem dos traços, que não são senão a “máscara” (LEVINAS, 1995. p. 44), mas aquele que leva o que se encontra na alteridade e que marca, impacta, por sua vulnerabilidade e seu desnudamento (Cf. Ibid.). Com o rosto, a dimensão que se apresenta ao sujeito não é aquela que está em jogo nas relações sociais, mas, de imediato, o que se coloca como uma questão ética (Cf. LEVINAS, 1991. p. 191). O rosto é “uma presença viva, ele é expressão”, isso que leva Levinas a precisar que o “rosto fala” (LEVINAS, 2000, p. 61). Se a manifestação do rosto é aqui apresentada como um discurso, é, entretanto, um discurso sem palavra na manifestação da exterioridade.

 

A alteridade, esse face a face, em que se pode manifestar “a epifania do rosto” (Cf. LEVINAS, 1991, p. 192.), é esse despertar ao outro homem, sua proximidade. Mas esse em-face do rosto do outro inclui a não-in-diferença que faz com que cada um seja responsável por aquilo que o outro se tornará, por essa “morte invisível que encaramos no rosto do outro” (Ibid.) e que é também “minha responsabilidade” (Ibid.). Essa colocação faz daquele que se deixaria tomar pela indiferença o cúmplice da morte desse outro, ao deixá-lo morrer sozinho.

 

O cara a cara – mais precisamente no cara a cara – que confronta o rosto do outro é uma forma do insuportável da relação com o outro, porque isso que ele apresenta vai, in fine, além do que ele dá a ver nesse imediato, o limite do outro, sua morte. Ao ver no rosto do outro sua morte, eu não posso senão ver a minha. Assim, o reconhecimento do outro, sua acolhida, é, em si, um acontecimento e coloca, desde o início, “minha responsabilidade por ele” (Ibid. p. 113) e que “todo outro é único” (Ibid. p. 114), e, nesse sentido, a alteridade é assimétrica. Entretanto, um certo apagamento se produz por algum contorno próprio ao sujeito, que faz com que, apesar de cada um ser único, esses outros se movam em um mesmo espaço onde todos se parecem. A introdução da menor diversidade é aí rapidamente insuportável, a não ser que se encontre um significante para localizá-la, absorvê-la e fazer com que, de novo, no escoamento uniforme do tempo, tudo seja contido. O acontecimento, por seu caráter de surpresa, inscreve-se como ruptura e não encontra muito frequentemente uma primeira resolução senão quando colocamos nele um rosto. Não há nada pior do que uma ameaça sem rosto, cada uma podendo incluir eles todos. Nosso ambiente é saturado de rostos, em um mundo de imagens que nos invade e que faz com que um acontecimento seja, mais que nunca, marcado, colado a um rosto. Sublinhemos, aí, um ponto de coincidência com o que sustenta Levinas na sua concepção mais global do rosto: seu contexto não tem a ver com o sentido, mas com o fato de que ele está lá, surgido dele mesmo. Então, podemos avançar que o rosto é o acontecimento por excelência. Para além desse em si, o rosto, um rosto, se encontra enlaçado por cada um a um acontecimento. A extensão vai além do outro, e podemos escrever que um acontecimento tem o rosto do inferno, do Apocalipse, do horror, da guerra, ou, em contraponto, do amor, da paz, etc.

 

Acontecimento, contingência e responsabilidade

 

Com Lacan, um acontecimento, um acontecimento humano, é o que se passará, ou não, amanhã. Isso depende da contingência, de um futuro que pode advir. Que se possa dizer que haja uma parte previsível na contingência que pode surpreender. Entretanto, os acontecimentos humanos são tanto mais previsíveis quanto mais eles dependem da repetição. Lacan os relacionará a um fenômeno de estrutura (LACAN, 1973, s/p.).

 

O acontecimento, como indica a sua raiz latina – evenire –, é o que pode acontecer. De fato, um acontecimento é o que advém ou não em uma data e em um lugar determinados. Ele não apresenta uma característica neutra e se distingue do curso uniforme dos fenômenos da mesma natureza. Que se produza sempre alguma coisa depende da repetição, e não do acontecimento, pois o acontecimento é inesperado; ele é efeito de surpresa. Ele advém de uma ruptura, de uma descontinuidade temporal em uma cadeia. O acontecimento é datável, memorizável. Ele não tem sempre as mesmas causas, senão ele não seria mais um acontecimento. Por seu caráter excepcional, ele se reveste de uma importância determinante para o indivíduo ou a coletividade.

 

Tomado no seu sentido absoluto, ele se define por situações significativas que acontecem a um homem. Nesse sentido, ele é um efeito que se refere ao homem, e “não existe acontecimento sem indivíduo concernido” (GUYOTAT, 1984. p. 219-222). Essa é uma noção “antropocêntrica”, e não um dado objetivo (Cf. BASTIDE, 1968, p. 159-168). Para retomar a questão do rosto em seu laço com o acontecimento, o efeito a considerar não está no rosto em si – mesmo se ele se apresenta marcado pela tristeza, alegria, hostilidade, reprovação, doçura… –, mas na relação entre dois rostos, nisso que faz encontro e que escapa ao sujeito. Isso é tão mais evidente quando o rosto desse outro que advém concretamente nesse acontecimento não é habitual ao que constitui a passagem do tempo: um agressor, um desconhecido, um surgimento do real na natureza ou na tecnologia, mas também um familiar que se encontra em um estado que faz dizer que não o teríamos reconhecido!

 

Isso permanece no domínio da experiência, e nós devemos distinguir o fato do acontecimento, que existe realmente. Ele é tido como um dado do real, e não da experiência. O fato se inscreve em uma duração que pode ser explicada pela ciência, por exemplo pelo fato histórico, pelo fato sociológico. A elaboração científica do fato tenta reabsorver a dimensão única, singular do acontecimento, para torná-lo “expressão regular das regularidades” (Ibid.).

 

O acontecimento é isso que produz um efeito de surpresa, é também o que pode ameaçar um equilíbrio individual ou social. Também, o homem tenta não se deixar surpreender e inventa, para isso, uma ciência, aquela dos acontecimentos. Mas, que o acontecimento possa encontrar uma referência em uma ciência histórica ou prospectiva, tanto quanto na mitologia, em Deus, não indica que uma reconstrução secundária venha ocorrer. Para que um acontecimento, que surge do exterior da subjetividade, seja um acontecimento para um sujeito, é necessário que este último responda diferentemente da passividade. Caso esse acontecimento seja compartilhado, o sujeito deve atuar de modo que lhe ocorra perguntar-se sobre o fato de que esse acontecimento é isso que acontece com ele.

 

O acontecimento traumático: o acidente

 

Foi Aristóteles que pôs em evidência a noção de acidente, à qual ele deu destaques diferentes na evolução de seu pensamento. É na Física que o que é acidente ganha o sentido do que é raro e fortuito, escapando, então, e em parte, às categorias lógicas (Cf. VAN AUBEL, 1963, p. 400). Até então, na filosofia aristotélica, o acidente se opunha, na dimensão ontológica, à substância e à essência em uma perspectiva lógica. Se o acidente toca qualquer coisa do sujeito, ele não diz o que é. Nesse sentido, “é preciso admitir uma certa alteridade entre o sujeito e o acidente” (Ibid., p. 389).

 

O acidente é referido ao outro; é o que existe não em si mesmo, mas em um outro. Ele é essa parte fortuita, improvável e impensável que, no fluir dos acontecimentos, causa o mal encontro, a tiquê (Cf. LACAN, 2008. p. 57), o acaso infeliz. Mas isso pode ser também a evocação da fatalidade, do nada imotivado, como causalidades deslocadas desse sinistro imprevisível. É o acidente que, no acontecimento, é traumático[1].

 

A contingência faz com que o acidente, tanto quanto o acontecimento, seja o que acontece, mas que também poderia não ter se produzido. A contingência se opõe à necessidade que faz com que o acidente seja, antes de tudo, coincidência, e não responde nem a leis gerais nem a fatores de constância. O contingente é o incalculável nos efeitos que produz o acidente sobre um sujeito: é o que faz encontro.

 

Um acontecimento traumático concerne sempre um sujeito. Ele comporta, ao mesmo tempo, uma parte de real que depende do acidente, o indizível do encontro, e uma parte de subjetividade na qual o sujeito está engajado.

 

Se o acontecimento traumático é necessário para produzir seus efeitos em qualquer um, ele não é suficiente. Não é a intensidade do acontecimento, na referência a uma quantificação, que o faz traumático. É muito mais a especificidade que ele adquire para o sujeito a quem concerne. Assim, pode-se dizer que o acidente é único. Ele não o é em referência à repetição, mas é no sentido de que ele é Um para um sujeito: esse acontecimento, e não um outro. Ele é para um sujeito, e não para todos, entre todos os que atravessam a mesma experiência. Ele toma então, para aquele que se encontra traumatizado, uma dimensão de inefável, de incomensurável, de irredutível.

 

Escritura, alteridade, trauma 

 

Em “O instante de minha morte” (Cf. BLANCHOT, 2002), oito páginas fulgurantes, escritas aos 87 anos, sobre fatos ocorridos 50 anos antes, Maurice Blanchot faz aparecer a aresta viva da marca que deixa o traumatismo no sujeito: ele pode revivê-lo anos depois com a mesma precisão, como se acabasse de acontecer naquele instante. Colocado diante de um pelotão de execução, ele se mantém em pé nesse face a face com a morte e com o olhar desse jovem tenente SS, que vai decidir sobre o instante do fim. Nesse instante, o jovem homem “experimentou então um sentimento de leveza extraordinária. Um tipo de beatitude. [..] O encontro da morte com a morte?”. Ele percebe, ali, o nascimento de uma “amizade sub-reptícia” (Ibid. p. 11) com a morte. Ele foi poupado enquanto tudo ao seu redor foi devastado, e o jovem SS lhe fez sinal para desaparecer. Ele não compreende, permanece esse rosto que o condenava e esse olhar que o agraciou. Enquanto ele se sentia, por uma fração de segundo, “liberado da vida” (Ibid. p. 15), ei-lo aí, agora, sob o peso da morte, enquanto ser vivo. Como se a morte fora dele pudesse, doravante, apenas chocar-se com a morte nele. “Eu estou vivo. Não tu estás morto”, conclui o jovem homem que acrescentava que restava o sentimento de leveza sob uma forma precisa: “o instante de minha morte doravante sempre em iminência” (Ibid. p. 17).

 

Para Blanchot, “a palavra não é suficiente para a verdade que ela contém” (BLANCHOT, 1949. p. 315). Nós, da nossa parte, diríamos que ela não é suficiente para limitar os efeitos do real revelado pelo encontro traumático. A escritura, como muito frequentemente, vem como suplência a esse fracasso da função da palavra; ela limita as devastações do real encontrado.

 

Para Blanchot, a escritura participa do olhar pelo fato mesmo de que a leitura coloca em jogo o escópico. É preciso, quando a palavra falta, que o corpo entre em jogo. Com a escritura, é pela vertente do olhar que o corpo se encontra implicado. Essa relação que Blanchot estabelece entre o olhar e a escritura é original e se encontra frequentemente na clínica pós-traumática. Esse olhar persiste em olhar o sujeito, seja nos sonhos traumáticos, seja nos olhares cruzados ao acaso dos encontros com os pequenos outros. Cada rosto pode conter o olhar daquele que te olhou no momento em que te salvou a vida.

 

Para todos aqueles que encontraram a via da escritura para tentar limitar os efeitos do trauma e que não podem mais escapar a essa passagem pelo escrito, se coloca um infinito da escritura. Está sempre a ser retomada. Quando o escrito pode encontrar um destinatário, um leitor, eis aí o autor reenviado a uma profunda solidão. A solidão que, agora, é escrever se tornou incessante. A solidão daquele do qual pensamos ser o mestre das palavras; tanto mais aquele do que para quem é preciso “escrever sem perturbar o silêncio” (Ibid. p. 66). Pois, sublinha muito justamente Blanchot, a maestria será de poder parar de escrever, salvo que: “escrever não tem seu fim no livro” (BLANCHOT, 1969, p. 624). Mas aí está: a escritura do real é também da ordem do impossível. O incessante é isso que não cessa de não se escrever. É uma das definições do real, tanto quanto aquela que o traumatismo revelou.

 

O apagamento do acontecimento

 

Em sua introdução à Scilicet, Lacan define a psicanálise como aquilo que ela nunca deixou de ser: “um ato ainda por vir” (LACAN, 1968, p. 9). Nós podemos colocar essa definição de Lacan em tensão com Blanchot, que fala de um “livro (sempre) por vir” (BLANCHOT, p. 303 et sq.), a escrever. Produz-se qualquer coisa que não se inscreve, que toca nisso que não se apaga: o trauma. Esse acontecimento que, ele, é suscetível de um verdadeiro apagamento.

 

Todo encontro traumático é superinvestido ao ponto de, algumas vezes, ocultar completamente toda implicação subjetiva. A escuta do sujeito deve se ater a extrair sua posição em relação a isso que se apresenta a ele como produto do acaso. Ocorre, para além de todos os recursos imaginários e identificatórios – do herói à vítima –, que a via pessoal, ética, os leva a retomar esse acontecimento de vida em uma análise. A psicanálise põe ênfase na “ética do bem dizer” e visa, através do trabalho de transferência, a fazer com que as questões levantadas pelo acontecimento se tornem questões colocadas pelo sujeito. Fazer do arbitrário de um acontecimento uma questão que, restituída em sua hystoire, faça com que o trabalho na transferência lhe permita abordar a questão do real de outra maneira, na sua relação ao ôntico.

 

 

 

 

 

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Ana Helena Souza

 


Referências
BASTIDE, R. “Sociologie de la connaissance de l’événement”. In: BALANDIER et al. (s/dir.): Perspectives de la sociologie contemporaine. Paris: PUF, 1968.
BLANCHOT M. Le Livre à venir. Paris: Gallimard.
BLANCHOT, M. L’entretien infini. Paris: Gallimard, NRF, 1969.
BLANCHOT, M. L’ instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002.
BLANCHOT, M. La Part du feu. Paris: Gallimard, 1949.
GUYOTAT, J. “À propôs de la notion d’evénement”. InAnnales Médico-Psychologiques. v. 142, nº 2, fev. 1984.
LACAN, J. Introduction à Scilicet. Paris: Lyse, nº 1, 1968.
LACAN, J. Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Aula de 11 de dezembro de 1973. Inédito.
LACAN, J. Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Aula de 13 de novembro de 1973. Inédito.
LACAN, J. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LEVI, P. Le Fabricant de miroirs. Paris: Liana Levi, 1989.
LEVINAS, E. Altérité et transcendence. Paris: Fata Morgana, 1995.
LEVINAS, E. Entre nous: essai sur le penser-à-l’autre. Paris: Grasset, 1991.
LEVINAS, E. Totalité et infini: essai sur l’extériorité. Paris: LGF, 2000.
VAN AUBEL, M. “Accident, categories et prédicables dans l’oeuvre d’Aristote”. InRevue Philosophique de Louvain, t. 61, nº 71, ago. 1963.
 [1] Desenvolvi muitas vezes os pontos que vão seguir em outros trabalhos. Eles são retomados aqui pela sua precisão incontornável ao acidente traumático.

GUY BRIOLE
Psicanalista membro da Escola da Causa Freudiana e da Escola Lacaniana de Psicanálise



Editorial Almanaque nº22

MICHELLE SENA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE BELO HORIZONTE

Está no ar o Almanaque 22!

Em consonância com o tema do próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana – IX ENAPOL, esta edição conta com textos que abordam três paixões: ódio, cólera e indignação. Nossa intenção é alavancar essa pesquisa e iniciar os debates sobre essas paixões, sempre presentes na vida psíquica e tão em pauta na contemporaneidade.

Em Trilhamentos contamos com textos precisos sobre duas dessas paixões: o ódio e a cólera. No trabalho de Gil Caroz, o ódio será abordado a partir das perspectivas fálica e não-toda fálica, em sua relação com o ideal de amor universal proposto pela religião e também pela via de sua (des)localização do ilimitado do gozo feminino. Por Jean-Daniel Matet, a cólera será discutida em torno de suas diversas cores e nuances. Partindo desse afeto que toca o corpo, a reflexão sobre essa paixão irá percorrer o seu tratamento na vertente filosófica, a sua importância na vida psíquica infantil e em casos clínicos.

Na rubrica Entrevistas, conversamos com Juliana Flores sobre o CURA – Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte, festival que promove a pintura de laterais de edifícios no centro de Belo Horizonte. Nessa entrevista, para além da relação da arte com a cidade, Juliana nos sinaliza a forma com que as reivindicações artísticas tomam forma durante o festival e nos apresenta uma reflexão sobre o ‘pixo’ como uma das formas da indignação. Em seguida, temos a entrevista realizada com Damasia Amadeo Freda sobre as novas configurações da relação dos jovens com o desejo de saber e os efeitos das tentativas de normatização, sendo um desses um certo bloqueio ao acesso das saídas inovadoras que a arte poderia proporcionar.

Em Incursões, temos textos resultantes das discussões realizadas nos espaços de investigação do IPSM-MG e do CIEN no último semestre. Orientados pela queda do Nome-do-Pai, pela ascensão ao zênite do objeto a[1] e também reverberando sobre o ódio e a indignação, os trabalhos abordam como o que é ineliminável da dimensão pulsional se apresenta nas toxicomanias; em conversações com professores; em um dos episódios da série Black Mirror e também em uma leitura da pulsão de morte pela via da violência na civilização.

Na rubrica Encontros, o tema da cólera será apresentado via um trecho de estudo de Jean-Pierre Vernant sobre uma ficção grega clássica. E, por fim, em De uma nova geração, contamos com dois trabalhos, produzidos por Giselle Mattos e Graciana Guimarães, alunas do IPSM-MG.

Desejamos aos leitores que desfrutem esses preciosos trabalhos como uma preparação para o IX ENAPOL e que pontos de interesse surjam e possibilitem debates necessários sobre esse tema tão atual. Acompanhando os textos apresentados, vocês encontrarão as belíssimas fotografias dos murais pintados durante as edições do CURA[2], equipe à qual agradecemos por enfeitar nossa cidade e nosso Almanaque 22.

Boa leitura!


 

[1] Miller, J.-A. “Uma Fantasia”. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. nº 42, fevereiro 2005.
[2] Crédito das imagens: Área de Serviço.



Almanaque V. 13 – Nº 22 1º semestre de 2019

Em consonância com o tema do próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana – IX ENAPOL, esta edição conta com textos que abordam três paixões: ódio, cólera e indignação. Nossa intenção é alavancar essa pesquisa e iniciar os debates sobre essas paixões, sempre presentes na vida psíquica e tão em pauta na contemporaneidade. Leia mais.

TRILHAMENTO
Conhecer seu ódio – GIL CAROZ

As cores da cólera – JEAN-DANIEL MATET

ENTREVISTA
Pixo é protesto, é indignação – JULIANA FLORES

Entrevista Damasia Amadeo de Freda – DAMASIA AMADEO DE FREDA

INCURSÕES
A violência na civilização – Sandra Maria Espinha Oliveira

Parque de Justiça – Urso Branco: um Campo de Distorção da Realidade. – José Honório de Rezende / Giuliana Alves Ferreira de Rezende

Desmontagem da pulsão na toxicomania: a prevalência do objeto – LUÍS FERNANDO DUARTE COUTO

Para além do encanto pelas palavras, a indisciplina dos professores – VIRGÍNIA CARVALHO / BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE / ANA LYDIA SANTIAGO

ENCONTROS
Sobre a cólera de Aquiles – JEAN-PIERRE VERNANT
DE UMA NOVA GERAÇÃO
Primeau, Joyce, Wolfson e as falas impostas – GISELLE GONÇALVES MATTOS MOREIRA

O que a histérica quer saber? – GRACIANA GUIMARÃES




A Violência Na Civilização

SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Em O mal-estar na civilização, Freud anuncia que a civilização abriga em si seu obstáculo mais poderoso: a inclinação para a agressão como ineliminável à natureza humana e principal derivado e representante da pulsão de morte. Freud afirma a impossibilidade de erradicar essa “maldade constituinte do humano” e descreve a evolução da civilização como uma luta entre Eros e a Morte.

 

A violência, como uma manifestação atual desse mal-estar humano, assume formas extremas e invade a totalidade da vida social. Seu incremento não anula seu caráter atemporal e inerente à civilização. Freud fez do assassinato do pai primevo o fundamento da sociedade dos irmãos e da lei da proibição do incesto, e suas análises sobre a guerra ensinam que “a violência é a civilização” (BROUSSE, 2017, p. 10).

 

Freud e a guerra

 

Os horrores da Primeira Guerra Mundial levaram Freud a interpretar a cultura, seu mal-estar, o futuro de suas ilusões e a psicologia de suas massas. Em Reflexões sobre os tempos de guerra e morte, ele destaca como o progresso científico não moderara a violência, dotando-a, pelo contrário, de armas que ampliavam seu alcance. Mais tarde, em Por que a Guerra?, ele afirma que uma comunidade se mantém unida pela força coercitiva da violência e pelas identificações que ligam seus membros entre si. Freud propõe uma evolução da civilização que vai da violência ao direito. A lei, que, originalmente, era a dominação pela força bruta de um único indivíduo, passa a representar a união do grupo, sem deixar de ser violência pronta a se voltar contra quem a ela se opor. Sua teoria das pulsões estabelece que as ações humanas “surgem da ação confluente ou mutuamente contrária” de Eros e Thanatos, reafirmando que “de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens” (FREUD, 1932, 254).

 

Da psicologia dos grupos ao mal-estar na civilização

 

Segundo Miller, Psicologia dos grupos é uma teoria política que introduz o Outro sob a forma do Ideal do eu e mostra o poder apaziguador do significante mestre na coesão amorosa da humanidade. O mal-estar na civilização, por sua vez, corrige essa teoria ao testemunhar o fracasso da identificação simbólica e do amor fundado nessa identificação para resolver o problema do gozo e ao fazer surgir, nesse lugar, a figura do supereu (MILLER, 2010, p. 15-17).

 

Nesse percurso “do amor à morte” (MILLER, 2010b), trata-se do destino do gozo pulsional na ordem social. É pela via do amor que Freud constrói, em dois tempos, o conceito de supereu: no primeiro, não há supereu, mas dependência do amor do Outro e, no segundo, o supereu é a introjeção do Outro que sabe e do qual nada pode ser escondido, resultando na culpa universal.

 

Para Miller, essa gênese do supereu a partir da introjeção simbólica do Outro é retomada por Freud do lado do gozo, em um confronto direto entre as pulsões e o supereu, quando afirma que este se nutre da satisfação pulsional à qual se renunciou por amor. Quanto mais se renuncia ao gozo, mais se goza dessa renúncia e mais culpado é o sujeito, sendo o gozo a face cruel das exigências do supereu. Não há renúncia no nível do gozo, pode-se experimentá-lo diretamente ou através de sua renuncia. Formula-se a crueldade sádica do supereu e conclui-se que as exigências da consciência moral se sustentam de exigências pulsionais. Toda moral, ao tentar eliminar o mal, só faz revelá-lo. Freud se detém, então, diante da mais elevada exigência moral da civilização, o mandamento “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, e enuncia que é “porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo” (FREUD, 1929, p. 132-133).

 

Para Lacan, o que detém Freud é a presença dessa maldade profunda que habita em cada um: “E o que é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o do meu gozo, do que não posso me aproximar?” (LACAN, 1988, p. 227).

 

A violência do significante e a lógica lacaniana do laço social

 

Em sua origem, a psicanálise é confrontada com uma violência que Freud interpretou como crime a partir da lei, fundando a família e a sociedade nos crimes do parricídio e do incesto, com os mitos de Édipo de Totem e tabu, ambos regidos pela interdição paterna. Lacan, por sua vez, formalizou o Édipo a partir das leis da linguagem com o conceito de metáfora paterna. Ele fez do Nome-do-Pai o operador simbólico, que ordena as relações do sujeito com a linguagem, e do objeto a, um conceito que permite deslocar a castração e o recalque do interdito paterno para a própria linguagem. Com Lacan, a castração é deduzida da linguagem como uma violência inerente ao significante, expressa no axioma da fantasia “bate-se numa criança”. Bater “é o modo de funcionamento do significante sobre o corpo, o que bate no corpo é o significante” (BROUSSE, 2017, p. 24).

 

Suporte da língua e de suas formas de satisfação pulsional, o significante é a primeira violência exercida sobre o corpo (BASSOLS, 2018). O gozo proveniente do encontro contingente entre as palavras e o corpo faz irrupção no campo do simbólico como um gozo que lhe escapa. Lacan assinala esse ponto onde reina a violência: “Acaso não sabemos que nos confins onde a fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali mesmo sem que a provoquemos?” (LACAN, 1998, p. 376). O domínio da violência começa onde se rompe o pacto simbólico da palavra, e a pulsão aparece como pura pulsão de morte.

 

No campo do significante, Lacan diferenciou o efeito de sentido, resultante da articulação significante, do efeito de gozo, correlato da ex-sistência do S1 sozinho, fora do sentido, fora da lei, que opera onde não há representação. O S1 sozinho não é um significante do discurso universal nem do discurso do inconsciente, mas um significante impossível de negativizar, que tem valor de real, que não é do Outro, mas do Um (MILLER, 2003, p. 11). O gozo se inscreve a partir do Um sozinho como uma satisfação singular, surgida do que não se partilha, do gozo do corpo próprio, gozo autoerótico que dispensa o Outro. “O corpo ‘se goza’ sozinho e [por isso] o encontro com o sexual faz furo, troumatisme” (SOLANO-SUAREZ, 2018, p. 16) constituinte de uma forclusão generalizada.

 

No fim do seu ensino, Lacan inverte sua perspectiva inicial, a do Outro, para centrar-se no mais singular a cada um. O essencial passa a ser o Um do gozo, que não tem contrário, segundo a máxima lacaniana de que, no nível da pulsão, “o sujeito é sempre feliz”. Para Miller, passa a haver “apenas percursos, arranjos e regimes de gozo” (MILLER, 2011, p. 11).

 

A lógica do laço social será construída a partir desse troumatisme, dessa primeira rejeição pulsional decorrente da entrada no universo simbólico, rejeição estrutural do gozo, presente como uma alteridade radical interna ao Outro e suporte das singularidades de gozo que não são universais nem universalizáveis, mas inclassificáveis. “Todo conjunto humano comporta (…) um gozo deslocado, um não saber sobre o gozo” e, nessa lógica, “o crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de aniquilar aquele que encarna o gozo que eu rejeito” (LAURENT, 2014).

 

Lacan propõe um regime de laço social que não passa pela identificação a um traço comum, mas funciona como um “corpo que faz laço com outros corpos, para além das identificações, por uma experiência de gozo comum” (LAURENT, 2017, p. 39). Freud parte da ‘interdição’ paterna, e Lacan constata que é ‘impossível’ gozar do corpo do Outro, o comum sendo a discórdia entre o corpo e o Outro, que não existe. O que existe é o corpo afetado pela linguagem, na medida em que a palavra condiciona seu gozo. Nesse nível, o Outro é o corpo. Nenhum discurso é capaz de capturar esse gozo opaco às tentativas de significação do Outro, pois a supremacia do Um provém da própria linguagem e configura um núcleo de solidão ineliminável. Não há universal que elimine o trauma implicado no gozo ou apazigue a discórdia entre o corpo e o Outro.

 

Esse furo no fundamento de todo laço social, constituído pela ‘extimidade’ do gozo, implica um impossível que se traduz como ódio ao gozo do Outro suposto subtraí-lo do sujeito. Se o Outro é Outro dentro de mim mesmo, em posição de ‘extimidade’, esse ódio ao gozo do Outro é o ódio ao meu próprio gozo (MILLER, 2010c, p. 43). “Nada concentra mais ódio do que esse dizer onde se situa a ex-sistência” (LACAN, 1985, p. 164), cujo suporte é o Um da diferença absoluta. A essência da violência é essa rejeição primordial do gozo, que designa o real do Outro. As violências são tentativas, sempre falidas, de recuperar o que foi expulso e perdido, de alcançar esse Outro gozo (HOLGUIN, 2016, p. 60).

 

A violência e a época

 

Com o modelo edipiano de regulação do gozo, referido ao interdito paterno, Freud interpretou a sociedade disciplinar de sua época e fez da neurose uma norma. Lacan reconheceu essa função do Pai freudiano na estrutura da sexuação masculina como a matriz de uma relação hierárquica constituída como um todo incompleto. Segundo Miller, a sociedade da globalização deixou de viver sob esse regime paterno e cedeu à inconsistência do não-todo feminino, em que nada existe em posição de interdito e um ’enxame’ de possibilidades é introduzido, “uma constelação de significantes, mais do que uma unicidade do significante-mestre” (MILLER, 2011b, p. 15). Um S1 passa a valer tanto quanto qualquer outro, e esse enxame de S1s sozinhos, correlatos da inexistência da relação sexual, faz da norma edípica um regime de gozo entre outros.

 

Na clínica do Um sozinho, o sintoma torna-se o regime próprio do gozo que não pode ser negativizado, “o sujeito experimentando-o necessariamente” como uma satisfação substitutiva no lugar de uma satisfação não interditada, mas impossível de ser alcançada: a da relação sexual, que não existe. Essa metaforização do gozo na língua permite soluções que prescindem da função paterna e se dão com os recursos do sintoma numa articulação direta entre gozo e significante, ligada ao corpo (DRUMMOND, 2018). O sinthoma torna-se o equivalente da função do pai: “um operador de consistência que mantém juntos o corpo, a palavra e o real” (SOLANO-SUAREZ, 2018, p. 16). O Outro que não existe tem um corpo como lugar do gozo e ponto de inserção do aparelho significante de onde o discurso se origina como laço social, não havendo discurso que não seja do gozo.

 

Lacan dá conta do modo singular do funcionamento do significante sobre o corpo pela presença de um gozo infiltrado em toda comunicação humana e confirma a tese de que não há comunicação, mas mal-entendido. A prática analítica passa a depender do real tal como ele advém em cada época (LACAN, 2011, p. 19).

 

Para M-H Brousse, a violência é um significante mestre da civilização atual, quando a articulação entre castração e NP deixou de funcionar em termos de sentido. Para ela, essa ascensão da violência à posição de S1 deve-se à ascensão atual da categoria do real. A violência não é mais capturada pelos significantes que lhe davam o sentido do sacrifício, da culpa, do castigo, mas surge sem a lei e constitui um sentido mínimo dado a esse real (BROUSSE, 2017, p. 18-19).

 

Brousse observa que, na fantasia “bate-se numa criança”, a atribuição do gozo ao pai, que dá sentido de amor ao bater, permite que seja por amor que o gozo condescenda ao desejo. Hoje, quando esse Outro responsável pelo gozo desfalece e o gozo deixa de ser-lhe atribuído, passamos da heterossexualidade ao autoerotismo generalizado. Verifica-se uma dissociação entre o gozo do corpo e o amor pelo Outro e, como consequência, uma impossibilidade de localizar esse real.

 

Brousse isola dois novos tratamentos dessa marca do gozo no corpo, que não passam pelo pai: o tratamento pelo ego e o tratamento pela crença na fantasia. No tratamento pelo ego, recorre-se à imagem mais que ao significante para fazer-se um corpo à medida. São práticas de corte com o gozo que implicam a passagem da violência ao imaginário do corpo sem recurso ao Outro: o corpo tatuado, o corpo cortado ou escarificado, o corpo customizado. Quanto à crença na fantasia, fortalece-se seu uso público. A fantasia passa de simbólico-imaginário a real. Apaga-se seu uso como marco da realidade, e esta é invadida pela fantasia. O sujeito identifica-se com o objeto de gozo em uma posição masoquista e, a propósito da violência, transforma-se em vítima (BROUSSE, 2017b, p. 27-28).

 

Vivemos a contradição de uma época na qual o respeito às diferenças convive com um processo de homogeneização cuja magnitude faz desaparecer a categoria do Outro e dá lugar a uma subjetividade embotada pelo gozo, de narcisismo crescente e desejo minguante, surgida na passagem do direito ao gozo à obrigação de gozar (BARROS, 2016, p. 97).

 

Essa era pós-patriarcal nasce com o capitalismo que, ao operar pela destituição da autoridade, se torna paradoxalmente um poder totalitário sem precedentes, abrigado no interior das democracias mais liberais. Com a ajuda da ciência, o Um tirânico do capitalismo não se limita a tirar a vida, mas a produz, administra e controla. Nunca o poder teve tanto poder como agora, sendo tanto mais poderoso quanto mais prescinde da autoridade, isto é, quanto mais acéfalo ele for. A obediência sem autoridade está implícita na fórmula do discurso capitalista que faz pensar que o objeto de gozo cura a divisão subjetiva. O supereu é a verdade desse sujeito consumidor que não necessita obedecer a uma autoridade, pois sua exploração é uma autoexploração. Ele obedece aos imperativos do supereu, purificado e aperfeiçoado pela destituição da autoridade paterna (BARROS, 2016, p. 102).

 

A permissão de gozar não muda nada quanto à estrutura do gozo, da mesma forma que não faz falta o pai que interdita para explicar seus excessos. Interessa-nos o que Miller destaca no texto Crianças violentas sobre a violência como pura irrupção da pulsão de morte, quando esses Erzats do gozo, que são a fantasia e o sintoma, não operam e, mais além do ódio e do amor, a maldade do Outro se realiza.

 

A essa desordem no real, característica da época, a psicanálise faz valer o real sem lei e fora do sentido como o lugar no qual cada Um pode alojar seu sintoma, sua solidão e seu exílio próprio à linguagem. Nessa desordem do mundo, a psicanálise lê o não-todo e separa o real sem lei de toda tentativa de retificação subjetiva de massa. Ela opera a partir do “há Um” como o que jamais constituirá um conjunto unificado. Ela vai contra o universal e a dominação, preferindo sempre o Outro ao Um. Seu uso do simbólico é antissegregativo e se opõe à homogeneização promovida pela união da ciência com o mercado, permitindo que cada um encontre a solução para o traumatismo do significante e fazendo valer a verdadeira autoridade, a do significante mestre, que transcreve no simbólico a divisão do sujeito face à pulsão. É, ainda, orientando-se por esse real que ela resiste às tentativas que visam segregá-la ou reduzi-la a uma terapêutica, indo contra a diferença absoluta e a dignidade do sujeito que ela promove.

 

 


REFERÊNCIAS
BARROS, M. Obediencia sin autoridad: o sadismo nuestro de cada día. Violencia y radicalización, Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016, p.95-102.
BASSOL, M. “Acto de violencia”. Rayuela, n. 4, agosto 2018.
Disponível em :
http://www.revistarayuela.com/es/004/template.php?file=Notas/Acto-de-violencia.html
BOUSSE, M-H. “Violencia en la cultura”. Bitácora lacaniana, Buenos Aires, Grama Ediciones, número extraordinário, p. 9-20, abril 2017.
BOUSSE, M-H. “Violencia en las famílias” In: Bitácora lacaniana, Buenos Aires, Grama Ediciones, número extraordinário, p.21-36, abril 2017b.
DRUMMOND, C. “Que nomeação advém da queda do falocentrismo” In: Polifonias #4, Boletim do XXII Encontro da EBCF, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em:
encontrobrasileiro2018.com.br/16908-2/
FREUD, S. Reflexões para o tempo de guerra e morte (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIV), p. 310-341.
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1929). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI), p. 75-171.
FREUD, S. Por que a guerra? (1932). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXII), p. 237-259.
HOLGUIN, C. M. “Por que nos odiamos? La brutalidad opaca de la vida” In: Violencia y radicalización, Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016, p.55-62.
LACAN, J. (1954) Introdução ao comentário de Jean Hypolite In: Escritos, rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 370-382.
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LACAN, J. (1974) “A terceira” In: Opção lacaniana. São Paulo: Eolia, n. 62, p.11-34, dezembro 2011.
LAURENT, É. “Racismo 2.0” In: Lacan cotidiano, 371, 2014. Disponível em:
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MILLER, J-A. “Crianças violentas” In: Opção lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 77, p.23-31, agosto 2017.
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SOUTO, S. “Descontinuidade do Édipo, continuidade do gozo” In: Curinga, Belo Horizonte, n. 44, p. 145-149, jul./dez. 2017b.
VERAS, M. “En la multitud estamos siempre solos”. IX Jornadas da Nel, outubro 2016, Guayaquil, Equador. Disponível em:
http://ix.jornadasnel.com/template.php?file=Textos-Videos-y-Entrevistas/Textos/16-08-29_En-la-multitud-estamos-siempre-solos.html

Sandra Maria Espinha Oliveira
SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA Analista praticante (AP) EBP/AMP Rua Santa Rita Durão, 321 / 407 (31) 3227-7527 (31) 99973-2680 sandra_espinha@uol.com.br



Entrevista Damasia Amadeo De Freda

DAMASIA AMADEO DE FREDA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE
NOVEMBRO/2018

DAMASIA

CIEN MINAS: O CIEN, em sua especificidade, consiste em apreender, via conversação, o ponto de real ao qual se está confrontado nas diversas disciplinas diante do esforço de normatização. Você salienta em vários textos que os jovens, atualmente, apresentam um “não sabe por quê” que não é proveniente de uma verdade oculta no sintoma. Esse “não sabe por quê” parece se referir a uma desorientação pela ausência de coordenadas identificatórias sólidas. Qual é o desafio que os adolescentes colocam para a prática do CIEN atualmente?

 

DAMASIA FREDA: O que é possível extrair da clínica com adolescentes e crianças para o CIEN, a partir da particularidade que encontrei – o “não saber o que se passa” –, é acompanhado de uma grande preocupação por parte das escolas e de instituições sociais. Há uma imensa preocupação por parte dos agentes sociais em relação a certos sintomas que crianças e adolescentes apresentam. Essa preocupação por parte dos agentes, por não saberem o que fazer, leva à proposição de uma normatização via protocolos dentro das escolas. Isso é uma tendência da sociedade, é uma tendência dos governos também: a normatização de incluí-los, crianças e adolescentes, dentro de protocolos de comportamentos, devido a essa desorientação que há também entre os adultos, por não saberem, por não entenderem determinadas condutas nas crianças nos adolescentes. E, atualmente, em minha prática institucional, na universidade, onde temos centros de atenção às crianças e adolescentes, o que mais me chama a atenção é a quantidade de demandas das escolas pelo que se chama de hiperatividade ou síndrome de déficit de atenção nas crianças, por lhes atribuírem uma falta de atenção, uma falta de concentração associada a uma hiperatividade. Ou que essa hiperatividade faz com que não possam se concentrar nas tarefas que se acredita serem as centrais. É importante notar que crianças vistas com base nessa catalogação não apresentam essa hiperatividade no consultório nem distração às perguntas que são feitas. Há uma normatização. Colocam-se nomes em mudanças que se apresentam na cultura, mudanças de gerações, mudanças que ocorrem com a entrada no novo milênio. Crianças que chegam a partir do ano 2000 são hoje os adolescentes tardios. Para os que nascem em 2010, 2011, por exemplo, temos que pensar que as configurações são muito distintas. Já são nascidas no mundo virtual, nas novas tecnologias; têm uma facilidade e destreza para manejar os aparatos eletrônicos que a maioria dos adultos não tem. Isso faz com que tenham uma relação distinta com o conhecimento, muito diferente da imagem que tínhamos. Há muitas informações que podem buscar simultaneamente. Apresentam, assim, uma capacidade de atenção muito distinta daquela que se pretende, de que prestem atenção ao professor ou ao educador, a essa figura do saber. Esse problema faz com que o professor ou o educador, como agente do saber, como sujeito suposto saber, como chamamos nós, psicanalistas, já não funcione mais. A instituição escolar é primitiva para essas crianças e adolescentes.

Há que se considerar que há uma mudança de paradigma no século XXI e que as crianças são os protagonistas que encarnam esse novo paradigma, e, nesse sentido, estão mais adiantadas que nós, adultos, que pertencemos a uma geração anterior. Nesse sentido, creio que os adultos estão mais desorientados que as crianças.

 

CIEN MINAS: Então a desorientação está mais do lado dos adultos, dos educadores?

 

DAMASIA FREDA: Em relação a isso, sim. Além disso, creio que – isso é uma hipótese – se há uma desorientação ou se há condutas que manifestam alguns adolescentes que respondem a uma desorientação, os adultos não estão mais orientados que eles. Essa desorientação está localizada numa ruptura que existe entre a cultura e a sociedade no século XIX e no século XX, sede dessa transição até uma nova configuração social. Antes havia o que era chamado de instituições sólidas, a ideia de Pai ou de qualquer figura de autoridade para, de alguma maneira, representar essa figura patriarcal, como chamam algumas correntes. Desde a psicanálise – não só a psicanálise, mas a sociologia, a história, a antropologia –, classificaram o século XX como o século em que essa figura da autoridade foi desaparecendo, abrandando, se dessolidificando para que passássemos ao que chamamos de uma sociedade líquida. Essa é uma hipótese e continua sendo, de alguma maneira. Essa noção que nós, na psicanálise, chamamos de Pai. Freud chamou de Pai essa ideia central, o núcleo central do Complexo de Édipo, que podia ser descoberto a partir do sintoma, desarticulando-o e descobrindo as condições edípicas de cada um, cujo fator principal era o Pai. Lacan, cujas ideias seguimos, traz o significante Nome do Pai. Tudo isso é o que foi desarticulado durante o século XX, chegando a sua forma mais contundente no século XXI. Minha ideia, minha hipótese, é a de que a desorientação, ou, dizendo de forma afirmativa, a orientação dada pelo Pai, foi perdida. A perda dessa bússola deu lugar a uma desorientação. Observamos mais essa desorientação nos adolescentes, mais que nos adultos e mais que nas crianças. Por que mais na adolescência que em outras faixas etárias? Porque, como Freud dizia, seguramente com razão, na infância, recorria-se ao Pai como elemento, sobretudo, de identificação. Para Freud, o Pai era a primeira figura de identificação; a primeira forma de identificação era com a figura paterna, ou com o Pai como noção. Por outro lado, Freud destacava em seus outros textos que o adolescente se separava do Pai para eleger outro – os professores, tutores, enfim, os orientadores de seu futuro –, para concluir a etapa da adolescência e passar à vida adulta. Se essa noção de Pai está afetada desde o início, na adolescência, por haver essa passagem de uma figura a outra, se a figura orientadora está afetada, nos deixa nessa desorientação. Essa era minha ideia. Essa desorientação manifestada no “não sei o que me passa, não sei o que faço aqui… o que se passa comigo não tem nenhum sentido digno de ser tratado pela palavra…” se faz presente também nos agentes envolvidos com os adolescentes, porque não sabem o que fazer com eles. Então estamos todos desorientados, devido a essa crise. O orientador, essa noção de Pai, não é mais regulador das famílias, dos governos. Não encontramos mais isso.

 

CIEN MINAS: Recentemente, no CIEN Minas, em uma conversação com professores, educadores e familiares, ficou evidente o recurso à medicalização de crianças e adolescentes como saída para impasses enfrentados no campo da educação: os professores dizem que não sabem mais o que fazer com problemas que são da família, e os familiares, por sua vez, dizem que estão solitários, sem apoio. Em outra conversação com profissionais do campo do Direito, é marcada a situação na qual, primordialmente, pré-adolescentes e adolescentes, quando adotados, são devolvidos, como mercadorias, porque não “agradam” as famílias adotivas. Uma pré-adolescente considerada insuportável faz uma peregrinação por algumas famílias. Como trabalhar com esses impasses na conversação?

 

DAMASIA FREDA: Primeiro, a medicalização de crianças e adolescentes e, depois, a adoção de adolescentes que são devolvidos como objetos de mercadoria. O que chama mais atenção é como é natural para as famílias medicar as crianças, por exemplo, dar um sedativo para que não incomodem à noite; como as famílias consideram normal medicar uma criança ou adolescente porque um neurologista indica por considerar que haja um déficit de atenção. É consequência do progresso da ciência a forma quase planetária que assumiu o sistema capitalista, no qual o que se ambiciona como objetivo a ser alcançado é a mercadoria. Se há algo que designa um valor humano, algo que designa uma pessoa, já não é o que se sabe, a autoridade que se impõe, mas sim os objetos que tem. Daí as pessoas passam a ser mercadorias. Isso se vê muito claramente nas adoções. Os pais, quando vão adotar, querem uma criança com determinadas características, como objetos. As tecnologias já permitem manipular os genes não para evitar doenças, mas porque pessoas querem ter filhos com determinadas características, como objetos. Isso faz com que eu possa devolver uma criança, como um produto num supermercado, porque não me satisfaz, porque não funciona.

 

CIEN MINAS: Em seu livro El adolescente actual você comenta sobre a conversação no subtítulo “La conversación y lá lengua desarticula”. Você diria que, na atualidade, os adolescentes continuam falando entre si, mas numa falação sem se dirigir ao Outro, de forma desarticulada em relação ao Outro?

A conversação poderia propiciar ao adolescente fazer uma nova articulação com algum Outro?

 

DAMASIA FREDA: Sim. Não digo que não. Os adolescentes conversam entre eles ou não, na medida em que conversam com os aparatos eletrônicos, conectados com muitos outros adolescentes. Teríamos que ver essas conversações também, já que hoje em dia predominam as conversações virtuais, e não a conversação com grupos de amigos.

 

CIEN MINAS: Teria um efeito distinto quando um analista convida para um espaço de conversação?

 

DAMASIA FREDA: O que creio é uma ideia, porque também sou docente, na universidade, de alunos que também são adolescentes, de uma adolescência prolongada, porque são jovens. Creio que há uma crise de desejo de saber como a academia o propõe, tal como Freud considerava. O bom encontro com um professor era determinante para Freud. O desejo de saber, nesse sentido, está muito modificado. Os adolescentes atuais têm uma relação distinta com o saber. Eles sabem. Não é que eles não saibam, mas têm uma relação diferente. Necessitam do Google para saber as disciplinas, para saber história, geografia. O problema não é que não saibam; é que há uma ruptura com o Outro encarnado como figura de saber, como tesouro de saber. Se nós procurarmos a conversação para rearticular isso, não me parece ser recomendável, porque o paradigma está mudado. Me parece que é mais positivo entender como os adolescentes interpretam a sociedade contemporânea do que como os interpretarmos.

 

CIEN MINAS: Nossa última pergunta é sobre o projeto que vimos ali da rua Sapucaí, que é o CURA, sobre os grafites. O modo como o adolescente se apresenta no mundo muitas vezes passa por algo marginal, fora da Lei. A pichação, diferentemente do grafite, é vista como algo marginal, fora da Lei. O que você poderia nos dizer sobre a manifestação dos adolescentes em relação a esses dois modos de agir na cidade, tanto a pichação quanto o grafite?

 

DAMASIA FREDA: A pichação, diferentemente do grafite, sempre foi uma manifestação política dos jovens e adolescentes com um compromisso social que os adolescentes atuais não mostram. As pichações estavam sempre relacionadas a manifestações políticas de oposição, reivindicação… já o grafite é uma arte. Não posso dizer muito dos murais da cidade de BH, que são charmosos e me encanta que se cubram enormes paredes de edifícios. São grafites. Recordo-me do caso de um adolescente que fazia grafites. É claro que os grafites têm essa característica de utilizar os muros, as paredes. Quando entra o município, o governo, perdem o encanto (risos). Recordo que o adolescente me relatava que saía de noite com amigos para procurar espaços diferentes, entre eles, vagões de metrô. Havia trechos com leis muito específicas, que diziam que não poderia, que proibia grafitar os monumentos históricos e os patrimônios da humanidade. Respeitavam determinados espaços. A arte é sempre transgressora; não é possível fazer arte quando sou incapaz de inovar, fazer algo novo. A transgressão – e a arte é isso também – é instalar uma Lei nova, uma nova regra dentro desse movimento artístico. Quando está muito normatizado, é difícil que a criatividade surja. A arte é, sobretudo, liberdade de expressão.

Na ditadura militar argentina, os comandantes decidiram pintar de branco os troncos das árvores até um metro e meio de sua altura. Então, eram todas iguais.

Aqui se passa o contrário. Na paisagem da cidade há essas figuras enormes, diferentes… esse vestido, por exemplo. Creio que é um tema interessante que o Brasil perceba se os grafites e as pichações continuarão existindo. Seria bom tirar fotografias. Os grafites nos dizem se a cidade transpira arte ou não. Pessoalmente, me encantam os grafites e as pichações de jovens e adolescentes no Brasil e, sinceramente, espero que não as pintem de branco.




Pixo É Protesto, É Indignação

JULIANA FLORES

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

ENTREVISTA SOBRE O CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE DE BELO HORIZONTE – COM JULIANA FLORES

POR LUDMILLA FÉRES FARIA E MICHELLE SENA

 

JULIANA FLORES

 

ALMANAQUE: O que é o CURA?

JULIANA FLORES: O CURA – Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte – é um festival de arte urbana, esta que é inserida dentro da arte pública. Na arte pública, todas as linguagens são possíveis – esculturas, instalações, pinturas, murais, grafites. Porém, o CURA tem o foco, até o momento, na pintura.

ALMANAQUE: De onde partiu essa iniciativa?

JULIANA FLORES: O CURA surgiu de um desejo de duas produtoras culturais (Janaína Macruz e eu) e uma pintora (Priscila Amoni) de criar um festival de pintura de empenas, que são essas laterais cegas dos edifícios. É raro uma cidade que tenha tantas grandes empenas como Belo Horizonte. Essas laterais podem ser vistas como inúteis, um legado cinza, mas, para nós, são grandes telas à espera de uma obra. Com isso, também queríamos colocar Belo Horizonte no circuito mundial de street art, fomentar a cena e promover a cidade, que tem excelentes artistas, como uma cidade potente dentro da arte urbana.

Depois veio a ideia de um ponto único de contemplação: primeiro, porque Belo Horizonte tem vários mirantes, pela sua geografia. E, segundo, porque convivemos com arte urbana, com grafite, com ‘pixo’ no dia a dia e muitas vezes vemos, mas não paramos para contemplar. Então, para nós, fez sentido criar um espaço, assim, de fruição artística, de contemplação, de respiro: para você parar, olhar, observar e apreciar. Foi daí que surgiu a ideia de fazer esse mirante de arte urbana na Rua Sapucaí. E, pelas nossas pesquisas, é o primeiro mirante de arte urbana do mundo. Iniciamos o trabalho do festival em julho de 2015; a primeira edição aconteceu em julho de 2017; houve uma edição especial também em dezembro desse ano e, a última edição, em novembro de 2018.

 

ALMANAQUE: Por que o nome CURA?

JULIANA FLORES: O CURA é o nome do festival: Circuito Urbano de Arte. É uma brincadeira com a palavra ‘cura’. Eu, por exemplo, não acredito que a arte cure a cidade, acho que o que cura a cidade é a justiça social, a educação, outras coisas.

O que nós queríamos era criar um circuito pelo qual as pessoas pudessem andar a pé pelos murais, ou de bicicleta; fazer esse passeio no Centro para apreciar os murais, que hoje são dez. Ou seja, a ideia era a de incluir as pessoas. Embora depois tenhamos percebido que é um festival que também exclui muito. Se BH tem, pelo menos, cinquenta artistas ótimos, que poderiam pintar no CURA, até hoje só cinco pintaram. Salvo a Empena de Letras[1], em que foi possível inserir um número maior: foram 21 artistas.

Essa exclusão deu início às reivindicações. A Empena de Letras, por exemplo, foi da galera do grafite raiz, artistas que fazem letra, que fazem vandal. Aqueles que muitas vezes são artistas de periferia, que pintam a periferia de Belo Horizonte, mas que também têm um espaço no festival. Junto com essa, tivemos outras reivindicações. Uma reinvindicação muito legítima foi a das mulheres negras, das artistas, que perguntavam: Por que a mulher negra está sendo representada, mas não é autora?

 

ALMANAQUE: E de que forma vocês abordaram essas reivindicações?

JULIANA FLORES: Nossa resposta foi discutir essas reivindicações no festival. Então, assim como temos a curadoria do festival, da pintura das empenas, temos a curadoria da programação[2], que é onde vamos discutir esses temas.

Nesse sentido, convidamos vários artistas para debater sobre a ausência de negrxs nas artes e sobre a participação das mulheres nas artes visuais para falar da história do grafite. Achamos muito relevante discutir sobre a Empena de Letras, pois a letra não é um grafite menor nem se confunde com o ‘pixo’, e, para nós, é importante valorizar os grafite-writers, que fazem a arte fundadora do grafite. É uma postura política e estética colocar letra no festival.

Também percebemos a importância de fazer uma galeria de arte urbana para fomentar o mercado, porque BH tem ótimos artistas, mas alguns deles, que até então só tinham pintado no muro, puderam vender pela primeira vez as suas obras. Foi quando surgiu a Fluxo Galeria de Arte Urbana, que acontece junto à programação do festival.

 

ALMANAQUE: Como foi a escolha das pinturas?

JULIANA FLORES: A ideia foi fazer uma coleção que tivesse diversidade, que representasse vários estilos que estão na cena. Nessa edição tivemos a Empena de Letras, pintada por 21 artistas; a empena pintada por Criola[3], que tem seu trabalho marcado pelas cores vibrantes e pela pesquisa de matrizes africanas; a empena pintada pela artista argentina Hyuro[4], um dos principais nomes do muralismo contemporâneo, que abordou a questão da liberdade feminina; e também uma empena feita pelo Comum[5], com stencil[6], em que temos o chamado “jeguerê”, que é a imagem de quatro pichadores fazendo uma escada humana para pichar no alto.

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE BELO HORIZONTE

 

ALMANAQUE: Duas empenas foram pichadas durante o festival. Quais os efeitos disso para o CURA?

JULIANA FLORES: O fato de termos duas empenas pichadas trouxe o ‘pixo’ para o centro das nossas discussões.

A primeira pichação feita na Empena de Letras foi muito simbólica, porque foi feita na faixa vermelha, acima de toda a obra. Dentro do universo do ‘pixo’, é como se ele tivesse quebrado a empena, no sentido de que “eu fui maior do que esses vinte artistas que estão embaixo de mim. Eu que fui no vandal, quebrei esses vinte artistas que foram convidados pelo festival”. Em menos de 24 horas nós apagamos o ‘pixo’ da Empena de Letras e isso deu uma repercussão. Essa empena tinha curadoria de dois artistas e também o artista que estava esperando sua vez, e pintaria no lugar onde foi feito o ‘pixo’. Se os três decidiram que queriam continuar com o plano e apagar, a gente respeitou. Pela primeira vez eu percebi que a cidade ficou do lado do pichador. Porque, quando um festival grande apaga o ‘pixo’, e é um festival de arte, as pessoas começam a refletir: “Uai, mas ele está reivindicando o espaço dele”, “mas por que vocês estão apagando, se vocês valorizam as intervenções urbanas?”.

Após esse primeiro ‘pixo’ ter sido apagado, o mesmo pichador foi para a empena ao lado. Também foi muito simbólico, pois o que está representado nessa empena é o chamado “jeguerê” e uma gaivota. A gaivota é o símbolo do ‘pixo’: significa que se chegou muito alto, como um “salve”, dizendo que se está lá em cima. Novamente, o pichador, no vandal, pichou acima, mostrando que chegou mais alto, acima da gaivota. Esse ‘pixo’ não foi apagado.

 

ALMANAQUE: O que é o ‘pixo’?

JULIANA FLORES: Para mim é um grito de “eu existo”, um grito de “eu estou aqui”, um grito de “eu estou reivindicando um lugar que não me foi dado, mas eu vou ocupar esse lugar”. E o CURA não deu espaço nessa edição para o ‘pixo’, e não sei também se temos que dar, se interessa para um pichador pintar com balancinho, seguro de vida e autorização.

 

ALMANAQUE: O ‘pixo’ é vandal?

JULIANA FLORES: O ‘pixo’ é pichar onde você não pode pichar. É protesto, é indignação… é uma mensagem, é um grito! Então será que faz sentido fazer empena de ‘pixo’? Como seria uma empena de ‘pixo’? Simbolicamente é muito mais forte o pichador ganhar a parede dele, ou seja, ir lá e pintar sem autorização nenhuma, garantir o seu “lugar”, do que ser convidado pelo festival. Se ele estivesse na Empena de Letras como convidado, saiba que não teria a mesma repercussão que ele ter ido lá e pichado o topo. Não teria mesmo.

O ‘pixo’ também é aparecer, porque são pessoas que estão invisíveis na sociedade e picham grande, picham alto, picham uma empena maravilhosa: eles estão sendo vistos. Pra eles é muito importante serem vistos, isso que é o ‘pixo’. Então, no CURA inteiro, o pichador que mais chamou atenção foi o que fez o vandal, e não os que participaram com cinto de segurança, com balancinho, com seguro de vida.

É uma guerra que não é de armas, mas existe uma disputa na cidade, disputa por território.

 

ALMANAQUE: De que forma a questão do ‘pixo’ foi abordada nas edições anteriores do festival?

JULIANA FLORES: Na edição de aniversário da cidade, duas das empenas escolhidas tinham ‘pixos’ icônicos. Quando mostramos na internet, começaram os comentários contra. Eram ‘pixos’ difíceis, em que as pessoas arriscaram a sua vida, e isso, dentro do ‘pixo’ é valorizado: o risco. Isso gerou um debate e a participação de todos os artistas[7] e pichadores das empenas[8].

Em uma delas, a ideia foi fazer uma textura inteira. Eram quase 2.000 m2 de empena, a maior empena do CURA, só com ‘pixo’. Então são duas mulheres nuas dançando (representa uma homenagem às bruxas de antigamente, que tinham o poder e o conhecimento sobre o próprio corpo, que seriam as feministas de antigamente) em uma textura inteira de ‘pixo’. Eu acho que ficou uma empena maravilhosa. É uma das minhas preferidas. Mas, quando essa estética do ‘pixo’ é absorvida por um mercado – querendo ou não, o CURA representa mercado, um lugar institucional, por mais que seja um festival de arte de rua –, é ‘pixo’ ou é um trabalho de arte com a estética do ‘pixo’? Não sei dar essa resposta.

 

ALMANAQUE: O que representa o vestido pintado no mural da Hyuro?

JULIANA FLORES: É um voal e é muito delicado. A Hyuro tem uma arte muito feminista, mas muito sutil. Não é todo mundo que lê o feminismo dos murais dela. Essa obra se chama O que fica e fala sobre as mulheres que fizeram aborto ilegal. Na Europa, o cabide tem a mesma conotação, o mesmo símbolo das agulhas de crochê na América Latina: as mulheres na América Latina abortavam com agulha de crochê. Na Europa elas abortavam com um cabide; abriam um cabide e se fazia um instrumento de aborto. Ela, ao pendurar um vestido num cabide, tá falando disso… ela tá falando de aborto.

 

ALMANAQUE: Como podemos pensar a política no festival?

JULIANA FLORES: Este ano achamos importante levantar bandeiras. O que foi feito no material produzido pela nossa equipe de comunicação, que abordava a diversidade religiosa, a questão LGBT, a criminalização das drogas, a questão feminista.

É um trabalho político. A gente viu que não dava pra fingir que não tem que pensar em política. Ao contrário, num momento como este que a gente vive, a gente precisa marcar a posição sim, assumir posições… Eu acho que quem se excluir das discussões, ficar em cima do muro, não quiser criar desconforto, vai se arrepender no futuro. Não dá pra fingir que não tem nada acontecendo, então a gente quis ser político sim.

 

 


https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/11/08/interna_gerais,1004227/confira-as-atividades-gratuitas-do-cura-para-esse-fim-de-semana.shtml
[3] Edifício Chiquito Lopes – Rua São Paulo, 351. 30m de largura X 45,50m de altura.
[4] O que fica. Amazonas Palace Hotel – Avenida Amazonas, 120. 26,50m de largura X 40m de altura.
[5] Edifício Satélite – Rua da Bahia, 478. 8,65m de largura X 65,70m de altura.
[6] Stencil é uma técnica que usa máscaras de recortes de papel aplicadas no vazado. Na empena foram usadas mais de 500 máscaras.
[7] Milu Correch e DMS.
[8] Edifício Príncipe de Gales – Rua Tupinambás, 179, Centro. Artista: Davi Melo Santos; e Garagem São José – Rua dos Tupis, 70, Centro. Artista: Milu Correch

JULIANA FLORES
LUDMILLA FÉRES FARIA MICHELLE SENA



As Cores Da Cólera

JEAN-DANIEL MATET

 

Encolerizado

 

 

Ficar vermelho, branco ou preto de raiva; cólera quente ou fria. Adjetivos não faltam para dar conta dos signos dessa emoção particular que é a cólera. Eles tentam descrever uma fenomenologia do que afeta o corpo tomado por aquilo que o domina. Paroxística ou permanente, rara ou frequente, a crise de cólera recobre realidades clínicas muito diversas. Alguns homens ou algumas mulheres dizem que apenas a experimentam raramente, enquanto ela se apresenta como sintoma ou traço de caráter em outros.

Manifestações de angústia, uma impulsividade ou uma passagem ao ato podem ser tomadas por cólera, o que, às vezes, são. Todavia, a propensão de alguns criminologistas em interpretar toda passagem ao ato, até o crime (BORTEYROU X., BRUCHON-SCHWEIRZER M., SPIELBERGER C. D., s/d), como a expressão de uma cólera da qual eles fazem uma hipótese que constantemente aparece forçada, em detrimento de uma clínica mais refinada.

A inibição ou sua ausência pode dar conta dessas diferentes modalidades, de desencadeamentos violentos, e se declina de maneiras diferentes no neurótico, no psicótico ou no perverso. O interpretativo, exposto a fenômenos discretos de parasitação linguageira, pode responder, aqui, por aquilo que aparece como uma cólera permanente, na qual seus próximos são as vítimas. A hostilidade persecutória do ambiente, as redes sociais, as informações de rádio e televisão do mundo podem alimentar uma cólera permanentemente envernizada por passagens ao ato. As notícias locais diárias de bebês fustigados ou violências domésticas testemunham isso.

 

A revolta

 

Cólera na primeira página! A imprensa nacional faz, com gosto, manchetes sobre a cólera de tal grupo social, tal categoria profissional, tal lobby. Os pesquisadores; os profissionais de saúde, do petróleo; os pais de crianças autistas e até os psiquiatras ou os psicanalistas podem protestar, se manifestar, gritar contra a injustiça ou o assassinato, e é o significante “cólera”, entre desespero, tristeza e revolta, que vai se impor. A cólera está na moda, ao ponto do que se designa não ser necessariamente a experiência autêntica do que a cólera experimentada faz sentir.

Desde sempre, esse afeto é objeto de comentários, de tentativas de precisar seu sentido, de condená-lo ou defendê-lo em nome da moral, da religião ou da ética. É necessário deixar que ela se exprima como liberação salvadora da inibição ou, pelo contrário, refreá-la contra o desastre que ela pode provocar ao redor do “encolerizado”?

Da cólera dos deuses ou do Deus que dominava os homens, a cólera passou ao registro do afeto; aqui ladeiam a tristeza, o ciúme, a alegria, e tentativas de precisá-la e defini-la não faltam. Descartes (1990) fez dela uma paixão entre o ódio e a indignação. Sêneca denunciou sua inutilidade e reclamou seu banimento, de tanto que ela oprime o gênero humano (vício nocivo à alma), opondo-se a Aristóteles (os peripatéticos), que a considerava necessária, aguçando a coragem e dando-lhe fôlego. São Tomás distingue em toda paixão um elemento formal; é o movimento do apetite sensitivo e um elemento material, é a mudança que se opera no corpo decorrente do movimento do apetite. Na cólera, o movimento do apetite sensitivo é de vingança.

Para Spinoza, a cólera é a consequência imediata do ódio, ele mesmo causado por diferentes sentimentos negativos, como a sensação de ser ameaçado, uma ofensa, uma humilhação, etc. E enquanto desejo de causar um mal àquele que, antes, nos fez dele padecer, ela é, por sua vez, causa de violência, de conflito, logo, retornando como ódio e cólera. Ele opõe à cólera a animositas, não a animosidade no sentido de cólera ou da hostilidade durável contra uma pessoa, mas de um “ardor, firmeza, coragem”. Com a generosidade, ele faz da animositas uma das virtudes fundamentais, ou forças da alma (SPINOZA, 1993). Para lutar contra tudo o que pode nos destruir, Spinoza opõe à cólera cega a coragem da animositas, “desejo que leva cada um de nós a fazer um esforço para conservar seu ser na virtude dos mandamentos únicos da razão” (SPINOZA, 1993a).

Michaux (1963, p. 131) e Artaud (1976, p. 47-46) a quiseram poética – Podemos escrever em estado de cólera? –, debruçando-se sobre as relações entre a cólera e a literatura. Mas é possível ser um artista missionário da cólera coletiva? Uma versão romanesca da cólera é levada à incandescência por Musil e Nizan (BOYER-WEINMANN, s/d).

Erguendo-se contra uma neurofisiopatologia nascente da cólera, que inscreve hoje as emoções em um sistema límbico e demonstra que a estimulação hipotalâmica desencadeia a cólera, Jean-Paul Sartre dota a cólera de uma eficácia pragmática, e mesmo criadora, ao fazer dela uma emoção mutante relacionada com o medo (SARTRE, 2000). Roland Barthes, que se dizia pouco sujeito à cólera, descreveu em seu Seminário sobre o Neutro – “o Neutro definido como aquilo que contraria o paradigma… O paradigma sendo a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido” (BARTHES, 1977-1978, p. 31) – a cólera como o antineutro. Ele nos dá três versões: a cólera como fuga (recusa de uma situação de espera, de uma situação transferencial – médicos, dentistas, bancos, aeroportos); a cólera como higiene ou como utilidade (teatralizar sua cólera para controlar o não-controle); e a cólera como fogo (que remete a um ardor, a um desejo, como a cólera do ciumento, ou a uma ira, como a cólera de Deus).

 

A cólera justa

 

Algumas cóleras parecem justas, como as de Freud, ao enfrentar fisicamente os antissemitas que insultaram sua família (LÉVY, 2008, p. 135-154). A cena é relatada por Martin Freud. Depois de um primeiro aviso, que permitiu a Freud dizer a seus filhos que aquela situação ameaçadora se repetiria, o grupo antissemita foi para cima deles, e Freud se lançou, bengala em punho, para os dispersar, o que conseguiu fazer. Como não evocar aqui a lembrança do pequeno Sigmund, vendo seu pai humilhado por um ato antissemita? A cólera que se apossa dele é equivalente à passagem ao ato daquele que não se deixa aviltar e coloca a covardia do lado do agressor. A cólera reclama um castigo que parece muito frequentemente como justo, e, por essa mecânica, cultivada até a ambiguidade, a cólera social se exprime por colocar a justiça e a legitimidade do seu lado.

Uma exposição recente no Instituto Húngaro em Paris sobre O tempo dos asilos me lembrou a reação de Freud, interpretando o atraso para responder a Istvan Hollos, que lhe enviara um exemplar do seu Recordações da Casa Amarela. O antissemitismo o havia expulsado desse lugar original de responsabilidade pela loucura, em que a produção sintomática, artística dos psicóticos, era valorizada. A cólera de Freud na carta a I. Hollos (FREUD, 1984, p. 23-28), apresentada na Ornicar? em 1985 e retomada por Jacques-Alain Miller em seu curso em 2008[1], é objeto de uma sessão de autoanálise:

 

Mesmo apreciando seu tom caloroso (…), encontrei-me, contudo, numa espécie de oposição que não era fácil de compreender. Tive finalmente de confessar que a razão era que eu não gostava desses doentes; de fato, eles me deixam encolerizado, eu me irrito por senti-los tão distantes de mim e de tudo o que é humano. Uma intolerância surpreendente, que faz de mim um mau psiquiatra.

 

J-A. Miller nota que, por meio dessa carta de Freud, é o recalque que é visado nele, seu não-quero-saber-nada-disso acerca da psicose. Freud é surpreendido por um afeto, cuja mola não compreende. A confidência de J.-A. Miller, nessa ocasião, sobre a função dos encontros semanais do curso, sobre seu combate a sua resistência em admitir – a cólera, por vezes –, faz parte desse não-quero-saber-nada-disso.

 

A cólera-sintoma

 

As crises de cólera das crianças pequenas aparecem como manifestações de afirmação, de oposição à frustração, daquilo que exige delas sua perda de autonomia em relação aos pais. Elas podem tomar configurações diversas, endereçar-se à voz grossa paterna, ao corpo a corpo materno ou, ao contrário, ter força de apelo dessa voz ou dessa proximidade perdida ou jamais encontrada. A cólera pode aparecer como uma passagem inevitável num processo de individuação e de separação ou para arrancar-se da Hilfslosigkeit freudiana, da imbecillitas descrita por Santo Agostinho e retomada por Lacan várias vezes. O fort-da é uma resposta a essa cólera da impotência da criança pequena que mostra, assim, sua capacidade de mobilizar o simbólico para fazer face a ela.

As crises de cólera podem se sistematizar em função do peso que têm na economia familiar, e reencontramos aqui a conjuntura descrita por Lacan na sua “Nota sobre a criança” (LACAN, 2001, p. 373). A dimensão agressiva ou passiva da pulsão é colocada em jogo no exercício da cólera infantil e modela sua expressão sádica ou masoquista na fantasia em germe. Passaremos ao largo de uma parte nada negligenciável da questão ao não evocar as consequências das cóleras parentais, da sua ausência ou seu excesso. Indicação de um limite transposto pela exigência todo-poderosa da criança ou confissão de impotência parental que a cólera pode tentar apagar.

 

Hans

 

O jovem Hans sabia algo sobre isso e o testemunhou junto a Freud, por intermédio de seu pai, pela manobra para provocá-lo e para tentar ativar o agente da castração. Hans diz a seu pai que ele fica encolerizado, o que este refuta. Hans insiste. Hans, longe de seguir as afirmações, quer de Freud, quer de seu pai, traça sua via. O próprio Freud sublinha: “Hans segue seu próprio caminho e não chega a lugar nenhum quando queremos desviá-lo”. Trata-se de “deixar o garotinho exprimir seus próprios pensamentos”. A sequência da análise mostrará que Hans, longe de ter medo do pai, o chama, ao contrário, para estar presente e o convoca em sua cólera: “Por que você fica encolerizado?” pergunta ele a seu pai, ao que este responde: “Mas não é verdade”, e Hans lhe lança este apelo: “Sim, é verdade, tu ficas encolerizado, eu sei disso. Isso deve ser verdade” (FREUD, 2003, p. 351). Como nota Lacan, “é a chave da observação […]. Trata-se de que o pequeno Hans encontra uma suplência para este pai que se obstina em não querer castrá-lo” (LACAN, 1994, p. 365). Se, num primeiro tempo, a suplência é a fobia, Hans, na sequência da sessão de 30 de março, graças a Freud, mas também apesar de Freud, prossegue na sua elucidação da fobia e procura diferentes soluções para suprir a carência do pai e fazer entrar a mãe no sistema significante, para fazer dela um elemento equivalente aos outros, suscetível ele também de entrar na dialética significante.

 

Élise

 

Desde sempre, Élise se dizia sujeita a arrebatamentos passionais. Encontrar um analista foi para ela a tentativa de limitar sua aspiração a essa forma de vida que a fazia sofrer. Ela oscilava entre uma vida de razão, sem paixão, que era sem sabor, e as paixões, que a torturavam. A visão de uma satisfação autoerótica de seu parceiro tinha exacerbado a sua divisão sob o golpe de cólera que ela não sabia como apaziguar. O fio de suas associações a conduziu a evocar os berros que acompanhavam seu furor de vencer os combates esportivos que encarava e dos quais fizera sua profissão. Era como uma segunda natureza, que mal se distinguia de seu desejo de lutar com um parceiro que ela procurava sem parar. A trama de um cenário fantasmático veio à luz por meio de um sonho, repetido da infância, de castração das zonas erógenas de um parceiro que a fazia evocar um irmão. A visão do pênis ereto a colocara numa cólera que alimentava, reconstituía seu cenário fantasmático.

Essa cólera de menina indicava sua reação completamente freudiana ao constar o pênis no menino. Penisneid sem dúvida, mas também questionamento sobre essa emoção específica que as qualidades características do pai não puderam apaziguar. O nascimento dos filhos também não havia estabilizado a oscilação, e a cólera se transmutara em traço de caráter que obscurecia seu cotidiano familiar.

Mais do que uma emoção ou um afeto diante da impotência de sustentar um desejo, a cólera, em seu caráter repetitivo, à flor da pele, pode se tornar um estilo, um modo de reação à confrontação do Outro e, nessa medida, um sintoma.

Do mesmo modo que o afeto depressivo assume aspectos diferentes em relação à estrutura do sujeito – melancolia – ansiedade-depressão – fadiga – desmoronamento – abandonar-se –, a cólera se manifesta de diferentes maneiras: não está presente num bom número de passagens ao ato? O crime das irmãs Papin dá um exemplo disso. É uma forma de mau humor, cólera permanente a mínima, que toca no real, nos diz Lacan, enquanto aquilo que não convém (LACAN, 2001a, p. 527).

 

Melancolia

 

Em alguns casos clínicos, Freud constata que a autodepreciação não tem nenhuma relação com a situação real, e resulta disso que a autocrítica do melancólico não é marcada pela vergonha; o sujeito busca cobrir-se de vergonha, mas não a sente. Além do mais, ele não esconde sua desestima, exprime-a para todas as pessoas a seu redor – e às vezes numa ladainha incessante.

Suas autocríticas são, na verdade, destinadas a outrem, quer dizer, a um objeto perdido, mas por um mecanismo de identificação de queixas que caem sobre o eu do sujeito. Eis porque quando o sujeito busca rebelar-se contra o objeto, gritando-lhe sua cólera quando o insulta, ele se insulta e se desvaloriza a si mesmo. “A sombra do objeto tombou assim sobre o Eu” (FREUD, 1968, p. 156). Essas pessoas estão em rebelião e é por isso que quebram as pernas daqueles a seu redor.

 

Cavilhas e furos

 

As definições da cólera dadas por Lacan pertencem à primeira parte de seu ensino. Em outras palavras, a cólera testemunha aquilo que do real se coloca em oposição aos empreendimentos do desejo. Recentemente, uma colega me liga para mencionar que está dando continuidade a uma atividade que começamos juntos, mas que, sendo ela a responsável, mudou tudo para chegar à situação em que precederá de minha intervenção. Um afeto de cólera me submergiu, ocasionando algumas dificuldades para manter a calma que geralmente acompanha nossas relações de trabalho. Reconheci nela o caráter das raras cóleras que me afetam. A tradução física desse afeto o distingue radicalmente daquilo que dá irritação, da reação revoltada ou da indignação frente a uma situação que parece injusta ou contrária à sua opinião.

Uma primeira definição é dada por Lacan no Seminário VI, O desejo e sua interpretação (LACAN, 2013, p. 172): um afeto fundamental como a cólera não é nada além disso; o real que chega no momento em que fizemos uma belíssima trama simbólica, em que tudo vai muitíssimo bem, a ordem, a lei, nosso mérito e nosso bem querer. Percebemos de repente que as cavilhas não entram nos furinhos. É esse o reino do afeto da cólera, retomado em A ética da psicanálise: “como uma reação do sujeito a uma decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real. Em outras palavras (…) – é quando as pequenas cavilhas não cabem nos furinhos” (LACAN, 1986, p. 123).

Que o afeto seja do corpo, Lacan o retoma de Freud, corpo como lugar do Outro. O corpo é o “lugar do Outro” (LACAN, 2001b, p. 409), é o lugar onde o simbólico toma corpo para ali se incorporar, mas esse lugar tem por propriedade o gozo. A estrutura é o efeito de linguagem sobre o gozo. E o efeito primeiro é de perda: “de afeto, há apenas um, e é o objeto a” (LACAN, 2001a). Único afeto que não engana, a angústia: “Na angústia, (…) o sujeito é afetado pelo desejo do Outro. Ele é afetado por isso de uma maneira que devemos chamar de imediata, não dialetizável. É aí que a angústia está, no afeto do sujeito, o que não engana” (LACAN, 2005, p. 70).

Os diferentes exemplos expostos, pela diversidade de sua ocorrência e de seu desencadeamento, mostram que a cólera, no caso do semblante, se desdobra sobre um fundo de eu-não-quero-saber-nada-disso e não evita o logro, a menos que encontre a angústia no “encolerizado” ou no seu parceiro, dando-lhe, assim, sua bússola.

Se o mistério do falasser é que ele fala sem saber o que diz, como foi recordado quando do último congresso da AMP, fazendo do inconsciente freudiano o mistério desse corpo falante, é bem o nó da linguagem, do corpo e do inconsciente que a cólera sublinha ao lhe dar suas diferentes cores.

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Letícia Soares

 


Referências
ARTAUD, A. “L’ombilic des limbres” (1925) In: Œuvres complètes, Paris: Gallimard, 1976, p.46-47.
BARTHES, R. Le Neutre: notes de cours au Collège de France (1977-1978), Paris: Seiul, p.31.
BORTEYROU, X. BRUCHON-SCHWEIRZER M., SPIELBERGER C. D., “Une adaptation française du STAXI-2, inventairede colère-trait et de colère-était de C. D. Spielberger” In: L’encéphale, disponible sur internet.
BOYER-WEINMANN, M. “Thymotique d’une ordinaire: em quoi la colère est-elle littérairement féconde?” In: Fabula, Les colloques.
DESCARTES, R. Les Passions de l’âme. Paris: Le Livre de poche, 1990.
FREUD, S. Deuil et mélancolie. Paris: Gallimard, 1968, p. 156.
FREUD, S. “Lettre à Istvan Hollos” In: Ornicar?. n 32, 1984, p. 23-28.
FREUD, S. “Analyse d’une phobie d’un petit garçon de cinq ans” In: Cinq psychanalyses. Paris: PUF, 2003, p. 351.
LACAN, J. Le Séminaire, livre VII: l’éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 123.
LACAN, J. Le Seminaire, livre IV: La relation d’objet. Paris: Seuil, 1994, p. 365.
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LACAN, J. Le Séminaire livre VI: Le désir et son interprétation. Paris: La Martinière / Le Champ freudien, 2013, p. 172.
LÉVY, D. “La canne de Freud at autres moments de colère” In: Che vuoi?, n 29, 2008, p. 135-154.
MICHAUX, H. “Mouvements de l’être intérieur”, “Difficultés” (1930) In: Plume, précédé de Lointain intérieur. Paris: Gallimard, 1963, p.131.
SARTRE, J-P. Esquisse d’une théorie des émotions. Paris: Le livre de poche, 2000.
SPINOZA B. Éthique III. Paris: Garnier-Flammarion, 1993.
SPINOZA B. Éthique IV. Paris: Garnier-Flammarion, 1993a.
[1] MILLER, J.-A., “L’orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse”, enseignement prononcé dans le cadre du Departement de psychanalyse de l’université Paris VIII, cours du 26 novembre 2008, inédit.

JEAN-DANIEL MATET
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana. MILLER, J.-A., “L’orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse”, enseignement prononcé dans le cadre du Departement de psychanalyse de l’université Paris VIII, cours du 26 novembre 2008, inédit.