Paradoxal Virilidade

FABIAN FAJNWAKS

 

VIRILIDADE – DAVID HOCKNEY OLYMPICS POSTER 1984.

Nossa época parece ter incorporado a ideia de que a virilidade não passa de uma impostura, e se Jacques Lacan fazia valer, em 1958, que a ‘parada viril’ não é sem apresentar algum traço da feminilidade, hoje é a própria virilidade que parece se apresentar sob um estatuto paradoxal, até mesmo ‘impossível’ (COURTINE, 2011, p. 7). Talvez mesmo: paradoxal, uma vez que impossível. Lá onde Lacan apontava o efeito de redobramento produzido pela parada viril de se vestir com uma máscara que feminiza o macho, para “representar o macho”, nossa civilização do empuxo-ao-gozo perdeu todo o respeito para com todo semblante, particularmente o semblante fálico, donde essa constatação de “impossibilidade” ou de “paradoxo”. Essas são as palavras que voltam na escrita de um historiador como Jean-Jacques Courtine, para quem a emancipação das mulheres e a liberalização dos costumes minaram o antigo privilégio da virilidade; e essa mudança de regime na civilização produziu o efeito paradoxal de que, “no início do século XX, a virilidade parece se dissociar do corpo masculino do qual ela foi por tanto tempo o emblema, a mercadoria, performance, travestilidade ou paródia, como soube discernir Judith Butler” (COURTINE, 2011, p. 10). Basta seguir o destino que a moda, a publicidade, a indústria cosmética e a cirurgia estética imprimiram no corpo da mulher, nele explorando completamente o paradoxo sublinhado por Lacan, sem que isso perturbe mais ninguém.

 

O direito à satisfação sexual generalizada, a obsessão erétil, a difusão maciça da pornografia, juntamente com a medicalização das falhas genitais, teriam contribuído para uma disseminação de uma cultura da impotência. A virilidade pós estudos do gênero e pós-queer seria, então, uma virilidade fundada sobre a fraqueza: “Como compreender então, pergunta-se o historiador, que uma representação baseada sobre a força, a autoridade e o domínio tenha terminado por parecer frágil, instável e contestada?” (COURTINE, 2011, p. 10). O homem aparece, a partir de então, marcado por um signo de impotência, e os emblemas da virilidade teriam migrado para outro lugar.

 

Essas constatações coincidem com o que a experiência de uma análise ensina: que a virilidade articula um impossível, que está na ausência de uma inscrição do corpo falante no tipo de gênero ao qual ele corresponde. Se as identificações e a relação a um tipo de gozo lhe permitem dar uma solução a esse furo que a sexualidade implica, essa solução se declina sobre um fundo de ausência de um escrito que lhe daria um ser sexuado, ser que, portanto, não cessa de não se escrever. Não surpreende que as observações da época coincidam com as de uma análise, porque agora a análise aborda a experiência do falasser do lado do gozo, para além de todo Ideal e de todo semblante. Exceto que, aqui, em que a época verifica que o homem se apresentaria desprovido de todo semblante, sobretudo fálico, a análise deixa a um homem a possibilidade de se orientar pela relação a um desejo.

 

Angry white men

 

Sabe-se pelos jornais que existe, principalmente nos EUA, uma vasta homem-osfera, que se desenvolveu na internet nos últimos anos, furiosamente misógina, muito irritada contra o gênero feminino e com o feminismo triunfante, e que espera restabelecer o lugar anteriormente ocupado pelo povo masculino. Esses “homens de verdade” viram, na vitória de Donald Trump, uma revanche e um progresso para a causa masculina, contra o antimacho Barack Obama (Cf. LESNE, 2017). É como se o retorno de compensação do discurso sobre a paridade social e familiar tivesse dado lugar à reivindicação dos verdadeiros valores machos e ao movimento “masculinista”. Warren Farrell, autor do O mito do poder masculino, antigo professor na Universidade Rutgers, em Nova Jersey, e ex-militante feminista, talvez constitua o melhor exemplo desse movimento de contrapeso: ele foi eleito três vezes para o Departamento Nacional de Defesa das Mulheres (NOW[i]), no fim dos anos de 1970. Defensor do direito das crianças de contar com ambos os pais após os conflitos relacionados aos divórcios e também com a presença incondicional desses junto aos filhos, atraiu a ira das feministas mais radicais, antes de se tornar abertamente inimigo delas, no momento da publicação de um livro sobre as desigualdades sociais no qual sustenta que os homens têm melhores salários do que as mulheres, mas que elas gozariam de uma vida mais equilibrada, forçando, assim, a ideia de que ganhar mais não implica necessariamente em mais poder.

 

De acordo com W. Farrell, os homens brancos se sentiram incompreendidos quando Hilary Clinton falou sobre a igualdade de salários e se voltaram massivamente para Trump, que soube captar essa parte importante do eleitorado branco, com seu discurso neomachista e discriminatório. Hoje, os homens brancos se sentiriam fracos, não tendo mais a impressão de fazer parte das estruturas de poder, e estariam, então, duplamente fracos, já que as outras minorias os considerariam privilegiados. Eles esperam, assim, que se reconheçam seus ‘sofrimentos’ e que se dê a eles o poder de que gozavam antigamente.

 

Livrar-se do carcan fálico

 

Tomo emprestado de Bruno Halleux o termo carcan[ii] para dizer o quanto, em meu caso, eu idealizava a virilidade e seus semblantes: tendo crescido cercado por mulheres, eu manifestava certo sarcasmo diante da impostura viril, uma vez que eu a via como uma enganação. À maneira do famoso aforisma nietzschiano, atrás dessa impostura eu só via a comédia de um Ideal… Que era também a minha! Pois esse olhar irônico escondia uma certa idealização dessa posição viril associada ao ‘porto fálico’, uma vez que eu me defendia de querer ser o falo do Outro, sob a forma do idiota. Rapidamente, a análise me permitiu desmascarar essa posição que estava na origem das minhas inibições e de meus sintomas e me desalojou dela. Mas isso não me satisfez e eu me lancei à conquista desse Ideal, de ‘superidentificar’ com aquele que tem o falo. No momento em que eu começava a me liberar da posição infantil, na qual eu estava aprisionado, eu me trancava em uma nova jaula: aquela do homem surdo a toda sensibilidade feminina e, até mesmo, às demandas legítimas de abrigar seu ser em minha castração, divisão que eu guardava para mim, deixando a parceira em sua desorientação.

 

Eu me tornava, então, o ator de meu próprio Ideal, dessa vez, viril! Para quebrar essas defesas, precisei, inicialmente, isolar o traço de castração presente nas ‘demandas loucas’ das mulheres da minha família que, para além da minha fantasia fundamental, faziam apelos no sentido de tudo dar ao Outro – verdadeiros cantos de sereias aos quais eu havia respondido amarrando-me ao mastro das inibições, ainda que fosse ao preço de renunciar ao meu desejo. Uma vez que a demanda foi esvaziada desse excesso de gozo, eu pude escutar a demanda de uma mulher e condescender a lhe dar um lugar, ao renunciar ao narcisismo que me protegia desse chamado de medusa. O mais-de-virilidade que eu acreditava assim obter se esvaziou e, com ele, o conteúdo angustiante que lhe dava consistência, revelando, no mesmo movimento, seu caráter de defesa. O Outro que queria minha castração perdeu sua consistência, e eu pude fazer uso do jogo de semblantes que me solicitava como homem, menos viril, certamente, mas ainda mais seguro, podendo, agora, dar sua falta para reconfortar o ser evanescente de sua parceira.

 

Uma análise feminiza um homem, permitindo-lhe estar o mais próximo, mesmo que homem, de uma mulher. Se, para aceder a esse efeito de feminização, ele deve renunciar ao fantasma da castração, assim como ao Ideal de virilidade, que o mantém em sua posição fálica, esse efeito de feminização permite que ele se afirme, mais ainda, em uma posição desejante, para além dos semblantes viris que estão a serviço de sua defesa. Verdadeira posição masculina para além de toda fraqueza ou impotência sintomática entoadas pela época. Se ele perderá de novo, a partir daqui, talvez possa ele perder melhor?

 

Talvez seja esse o verdadeiro ganho de uma análise e a verdadeira subversão que ela introduz em relação ao triunfo da vacuidade contemporânea no que diz respeito aos semblantes. Ali, onde a nossa civilização trata a virilidade como uma mera máscara, com seu efeito curioso de feminização (LACAN, 1966, p. 695), uma análise permite situar o real em jogo na fantasia do falasser, autorizando-o a se desidentificar com as posições que o impediam de aceder a uma posição desejante e, também, aos semblantes que lhe permitem articular seu desejo.

 

 

L’homme au carcan4L’HOMME AU CARCAN4

 


Referências:
COURTINE. J.-J. “Impossible virilité”. In: CORBIN A., CORTINE J.-J., VIGARELLO G. (s/dir.), Histoire de la virilité, Vol. III, Paris, Seuil, 2011.
LACAN, J. A significação do falo (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.
LESNE, C. “Les monologues du pénis”, Le Monde, 15 de janeiro de 2017. Disponível na internet.
Tradução: Jorge Mourão
Revisão: Maria Bernadete de Carvalho

FABIAN FAJNWAKS
Psicanalista, AE da Escola da Causa Freudiana e Escola de Orientação Lacaniana – fabian.fajnwaks@orange.fr



O Avesso Da Ficção Masculina

ROSE-PAULE VINCIGUERRA

ROSE – YAYOI KUSAMA

 

Na relação entre os sexos, os homens sempre representaram o sexo forte em relação ao desejo. Mas não é assim tão simples. Interroguem-se!, pede Lacan. Diante de um corpo de mulher, um homem é “embaraçado”, perturbado, bloqueado. Não que ele não saiba demonstrar, às vezes, brilhantemente, aquilo de que é capaz, mas isso é ao preço de ultrapassar inibição ou angústia; em todo caso “embaraço”, que assinala que uma barra é colocada sobre o sujeito, há um excesso. Resumindo: diante de uma mulher, um homem não saberia, “literalmente”, o que fazer.

 

De onde poderia vir o mal-estar masculino? O discurso amoroso clama pela unidade dos amantes, unidade perdida que os amantes desejariam reencontrar. Engano! Platão percebeu bem quando criticou, no Banquete, o mito de Aristófanes, do animal com dois troncos, cujas duas metades teriam sido para sempre separadas por Zeus e buscariam se unir novamente. Muthos no lugar onde o logos fracassa! A loucura desse mito nunca mais foi revista, dirá Lacan; o corte irremediável entre o homem e a mulher aconteceu. Mas isso não encerra a questão para Platão e ele resolve o embaraço do dois pelo três, pois é em direção ao Bem que, no amor, os dois tendem.

 

Freud faz, ele também, referência a esse mito de Aristófanes, mas se ele nomeia Eros a pulsão de vida, é para fazer a hipótese de que a substância viva, de início “explodida em partículas”, foi reagrupada “de maneira cada vez mais abrangente” e assim “mantida” (FREUD, 2005, p. 282). Mas essa é uma hipótese especulativa, e Freud confessa não saber em qual medida crê nisso.

 

Em contrapartida, quando se trata de homens e mulheres, ele não crê no Um do discurso amoroso; o que não impede que ele o comente. Mas que haja complemento entre eles, que o feminino seja o passivo do qual o homem será o ativo, nada é menos seguro.

 

Seguramente que um homem fique embaraçado pelo corpo de uma mulher, Freud o sabe. Analisando as perturbações da função sexual masculina, ele chega a dizer que “a impotência psíquica” (FREUD, 1969, p. 61) caracteriza a vida amorosa do homem civilizado atual. A pressão da educação certamente não está aí por acaso, mas Freud considera, nessa questão, sobretudo a insuficiência do interdito edipiano e a incapacidade dos fantasmas de se separar dos objetos sexuais primitivos, mesmo através da substituição. A mãe contamina a mulher, seja como objeto idealizado, respeitado, mas intocável, seja como um objeto rebaixado. De todo modo, a mulher vem sempre em substituição à única, à primeira, e por isso a satisfação não será, jamais, certa. Faltará sempre alguma coisa! Qualquer que seja a condição de desejo exigida no fantasma, ainda que narcísica! Não “estar familiarizado com a representação do incesto com a mãe ou a irmã” (FREUD, 1969, p. 61) permanece no horizonte dos embaraços da castração para um homem, quando se trata de abordar uma mulher. Em certos aspectos, ela permanece como tabu. Sem fusão dos sexos, portanto, mas um ideal: a convergência em uma mulher da corrente afetiva e da corrente sensual pode existir, à condição de que haja castração.

 

Lacan lê essa questão de modo um pouco diferente. É a partir da falta própria ao sexo feminino que o phallus se torna objeto simbólico, mas o significante fálico como significante do desejo não é de nenhum sexo, é um terceiro na relação dos sexos. Ainda assim, o homem deve, imaginariamente, colocar que ele o tem. Entretanto, ele não pode assumir os atributos de seu sexo senão “através de uma ameaça, ou até mesmo sob o aspecto de uma privação” (LACAN, 1998, p. 692). “Ameaça” do Outro edipiano ou “privação” por um pai real! Há aí uma “antinomia interna”. A solução mais comum aos homens é, então, dividir-se entre duas mulheres: aquela da demanda e aquela do desejo. Mas será que isso faz do homem menos embaraçado para com uma mulher? Apegado que ele é, como Ulysse, ao mastro phallus, ele experimenta o corpo de uma mulher sempre como estrangeiro. Esse corpo, próximo do ponto obscuro da Coisa, não fascina o desejo senão na medida do símbolo fálico que o separa desse gozo impossível da Coisa.

 

Retornando a essa “ficção viril, que poderia mais ou menos traduzir-se assim: ‘a gente é aquele que tem’”, Lacan tem esta fórmula: “Não há nada de mais satisfatório que um tipo que jamais enxergou além da ponta do nariz (…). Essa ficção simplória, devo dizer, está seriamente em via de revisão. Desde algum tempo se percebeu que isso é um pouquinho mais complicado” (LACAN, 1967, p. 319). Como, então, atravessar a ilusão desse ideal de potência?

 

De fato, a dificuldade de um homem, na sua abordagem no corpo de uma mulher, deve-se à particularidade de seu gozo. Mais precisamente, à detumescência do órgão correlativa ao momento do gozo sexual, que constitui um limite em relação a um gozo infinito, que seria mortífero. Há aí, com efeito, uma perda, uma subtração de gozo que se opera. Diferentemente do que ocorre com uma mulher, que, a ela, “não lhe falta nada”. E contrariamente ao que se poderia pensar até aqui.

 

Com efeito, não se trata aqui de ameaça de castração, mas de perda, de uma “perda de vida que lhe é própria, por ele ser sexuado” (LACAN, 1998, p. 863). Essa parte perdida do vivo marca a relação da sexualidade com a morte.

 

O que desaparece assim, para um homem, só o objeto dito a, por Lacan, um objeto de “separtição”, de partição interna do corpo, pode fazer reparação. Esse objeto é exterior ao campo do Outro, mas é ele que é eleito, positivado e deslocado sobre o corpo de uma mulher. Fazendo isso, um homem sempre “satisfaz” uma mulher (LACAN, 2004. p. 210).

 

Mas, que uma mulher queira gozar dele, e eis aí a angústia: é o seu ser que ela quer, ela quer castrá-lo! (Cf. LACAN, 2004, p. 21).

 

Assim, também, forjam os homens o fantasma de um masoquismo feminino (Cf. LACAN, 2004, p. 222), qual seja, o de um objeto sempre pronto a gozar de ser objeto de gozo, o que repararia a perda e lhes reasseguraria.

 

Se um homem não pode gozar senão do gozo do órgão, o orgasmo, enquanto tal, não é, entretanto, sem angústia. Mas esse tempo de angústia não está ausente da constituição do desejo! (Cf. LACAN, 2004, p. 204). Desse gozo fechado, a angústia pode, com efeito, produzir um objeto causa do desejo (Cf. MILLER, 2004). Mas é necessário, ainda, para que um homem experimente esse desejo por uma mulher, que essa angústia seja velada (Cf. MILLER, 2004)! E, aí, é ao amor que é preciso se reportar para fazer “condescender” o gozo a esse desejo.

 

Essa questão é algo trágico? Ou cômico? Lacan tende para o cômico: “é quando um homem é mulher que ele ama” (LACAN, 1979, p. 9). Comédia do falo, seguramente! O homem avança desprovido de potência, e isso o feminiza. Mas também comédia da psicose! Um homem apaixonado cria e crê em “A Mulher como sendo todas as mulheres” (LACAN, 1975, s/p.). Assim fazendo, “ele aspira por qualquer coisa que é o seu objeto” (LACAN, 1979, p. 9) e crê na relação sexual. Infelizmente, nós não sabemos o que é a mulher, essa “desconhecida dentro da caixa” (LACAN, 1967, p. 319), e, se A mulher não existe, não há significante para estabelecer a relação sexual.

Entretanto, prossegue Lacan, “é na qualidade de homem que ele deseja, ou seja, ele se sustenta de alguma coisa que na verdade é propriamente a ereção” (Idem). É que, através do seu fantasma, ele sonha com perversão, mas, qualquer que seja esse sonho, ele não pode gozar senão de partes do corpo do outro. Nada em seu gozo que lhe dê relação ao Outro sexo e constitua o corpo do Outro.

 

Assim, o gozo sexual faz barreira à relação sexual, que não existe, ao mesmo tempo em que lhe faz suplência. Há dois sexos. Uma bipartição que escapa certamente, mas sem que haja, entre esses dois sexos, contradição. Isso seria muito simples! E sem que haja, portanto, três! É preciso resolver, no impossível, o dois dos gozos. É assim que eles vivem e se comunicam! E é assim que o mal-entendido continua.

 

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Luciana Andrade

 


Referências
FREUD, S. “Le moi et le ça” (1923), In: Essais de psychanalyse. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 2005.
______. “Sur le plus general des rabaissements de la vie amoureuse” (1912), In: La vie sexuelle. Paris: PUF, 1969.
LACAN, J. “A significação do falo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. Le Seminaire, livro XIV: La logique du fantasme. Aula de 9 abr. de 1967.
______. Le Séminaire, livro X: L’Angoise (1962-1963). Texto preparado por Jacques-Alain Miller. Paris: Seuil, col. Champ Freudien, 2004.
______. Le Séminaire, livre XXV: Le moment de conclure. Aula de 15 nov. 1977, Ornicar?, nº 19, 1979.
______. Le Séminaire, livre XXII: “R.S.I”. Aula de 21 jan. 1975, inédito.
MILLER, J.-A. “La psychanalyse et l’évaluation”. Aula proferida em contexto do Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, em 2 de junho de 2004.

ROSE-PAULE VINCIGUERRA
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana. AE,AME da ECF rosepaule.vinciguerra@orange.fr



Entrevista Com Antônio Teixeira Por Márcia Mezêncio, Maria Das Graças Senna E Ludmilla Féres Faria

ANTÔNIO TEIXEIRA

ENTREVISTA

NEM MESTRE NEM JOKER: O DESTINO DA CARTA EM DERRIDA E LACAN 

 

Almanaque: Alguns autores consideram que Derrida, ao elaborar críticas pontuais e certeiras à leitura lacaniana de “A carta roubada”, se precipita ao generalizar essas críticas ao conjunto da obra de Lacan, mais especificamente aos Escritos. O que pode nos dizer a respeito dessa afirmação? Pode-se dizer que o texto “O carteiro da verdade”, de Derrida, apresenta uma vertente contra Lacan?

 

Antônio Teixeira: Não há dúvida de que “O carteiro da verdade” seja uma crítica veemente de Derrida a Lacan; tem-se ali uma carta expressamente dirigida a seu destinatário, e é nesse sentido que o texto-missiva de Derrida provoca entre nós, lacanianos, um visível efeito de comoção. Sentimo-nos afetados pela crítica de Derrida a Lacan, como se isso exigisse de nós um posicionamento em defesa de nosso mestre, coisa que de fato se sucedeu. Não faltaram intervenções da parte de autores lacanianos destinadas a expor os equívocos de Derrida, com vistas a salvaguardar o valor da doutrina de J. Lacan. Eu creio, contudo, que hoje em dia não caiba mais socorrer Lacan. O valor e a coerência de sua doutrina estão mais do que estabelecidos, Lacan dispensa nosso socorro. No lugar de tomar partido de Lacan contra Derrida, eu preferiria aqui expor a temática que essa polêmica mobiliza, pois acredito que uma abordagem mais desapaixonada, menos afetada pelo dever de defesa, talvez nos permita melhor localizar o que estava em questão no tratamento psicanalítico de um texto literário, no que diz respeito a seu endereçamento significante.

A bem da verdade, se de fato considerarmos de saída o que significa a abordagem psicanalítica de uma ficção literária, encontramos motivos para localizar, em “O carteiro da verdade”, não apenas uma vertente crítica, mas também um elogio aberto de Derrida a Lacan. Antes de Lacan, o que até então normalmente se encontrava na psicanálise da literatura, paradigmaticamente ilustrado na vasta psicografia de Edgar Alan Poe por Marie Bonaparte, era uma prática de desnudamento das motivações inconscientes do autor, por meio de uma busca pelo sentido oculto de suas elaborações ficcionais. Valendo-se de dados biográficos, a psicanálise, ali, visava o desvelamento alegórico das supostas determinações fantasmáticas do autor sob o conteúdo manifesto do texto literário, ora fazendo da carta roubada um substituto do pênis materno originalmente perdido, ora interpretando o pagamento em ouro a Dupin pela rainha como uma representação simbólica da restituição do falo que o ficcionista tenta recuperar ao longo da trama. Pois nada disso se dá na leitura lacaniana do texto de Poe, reconhece J. Derrida. Nada de psicografia, nada de carta-pênis, nada de papai-rei, nada de mamãe-rainha, nada de filhinho Dupin. Sobretudo nada de hermenêutica, nada de busca pelo sentido oculto. Em Lacan, escreve elogiosamente Derrida, a lógica do significante interrompe esse semanticismo ingênuo, num “estilo feito para frustrar o acesso um sentido unívoco, determinável além da escritura”.

E, de fato, ao lermos o texto de Lacan, raramente dimensionamos a diferença que sua leitura produziu sobre o que se fazia antes, porque, de certa maneira, nos habituamos ao que originalmente se deu de modo inabitual nessa diferença. Se hoje as interpretações alegóricas de uma Marie Bonaparte nos fazem bocejar, é porque Lacan nos formou num novo tipo de leitura que recusa o semanticismo ingênuo que até então vigorava na interpretação psicanalítica do texto literário. Lacan dispensa a via hermenêutica fazendo-nos notar, desde as primeiras páginas de seu texto sobre a carta roubada, que o sentido do que motiva o delito se encontra eliminado da narrativa. O problema se limita à busca pela devolução do objeto-carta, cujo conteúdo semântico não tem lugar no desenrolar da trama. O que conta são os deslocamentos, são as mudanças de posição da carta como significante puro, e não o significado que se lhe possa atribuir.

Armado da perspectiva estruturalista, Lacan, ali, nos convida a detectar, no texto de Edgar Alan Poe, o modo pelo qual uma ordem simbólica autônoma, ou seja, independente dos significados circunstanciais do contexto, vem constituir a posição do sujeito. Interessa-lhe, sobretudo, destacar a primazia do significante nessa determinação subjetiva, tal como se ilustra nos efeitos gerados pela posse do significante-carta sem que esteja em questão o conteúdo da mensagem epistolar. O módulo intersubjetivo da ação assim se repete na forma dos três olhares que se supõem um ao outro, no interior dessa ordem simbólica afetada pela carta roubada, e que se alternam em função da circulação do significante que a carta materializa:

  1. o olhar que nada vê, representado pelo rei, no primeiro momento, e em seguida pela polícia;
  2. o segundo olhar, que vê que o primeiro não vê e que se engana por crer encoberto o que expõe, encarnado pela rainha e depois pelo ministro;
  • e, finalmente, o terceiro olhar, que vê que o primeiro não vê e que vê o que se encontra a descoberto justamente para ser escondido: o ministro e, em seguida, Dupin.

Percebe-se, assim, que cada personagem se determina como um olhar em função do deslocamento promovido pela circulação do significante-carta que, a cada um, afeta não pelo que significa, mas pelo que comporta de suspensão da significação. O rei e a polícia, sustentações icônicas do discurso em sua ordem fálica, ali encarnam a imbecilidade do olhar que nada vê. Diante do falo, que o rei e a polícia encarnam, na forma do significante que prescreve a ordem das significações, o olhar inteligente se diferencia em sua capacidade de ler entre as linhas (inter-legere), o que se oculta nos intervalos das significações prescritas. Já a imbecilidade do rei se encarna na cegueira do olhar, que não percebe a carta exposta sobre a mesa, porque somente enxerga as significações codificadas, assim como a estupidez realista da polícia consiste em não perceber, como diz Lacan, que o que se oculta é algo que falta em seu lugar simbólico. Incapaz de escrutar o simbolicamente oculto no empiricamente exposto, ela se exaure inutilmente no esquadrinhamento interminável das ocultações reais.

Por oposição, pois, ao rei, ícone precário destinado a dar permanência à lei fálica, a rainha desestabiliza essa permanência por ocupar o lugar do feminino cujo ser se funda fora da Lei, materializado na posse da carta. Se a estática da estrutura simbólica se define como um sistema regrado por suas leis internas, sua dinâmica supõe a existência de algo no interior da estrutura que suas regras não alcançam, e que a coloca em movimento. É preciso – se me permitem ser repetitivo – que algo da estrutura escape às regras da estrutura para que a experiência da estrutura possa se realizar. Isso quer simplesmente dizer que não haveria conto da carta roubada se a carta voadora não viesse justamente encarnar esse ponto de fuga do feminino que afeta o sujeito ao mobilizar a estrutura, desestabilizando as significações codificadas de sua apresentação estática. Interessante, então, notar que todo aquele que se vê afetado por esse ponto de fuga que mobiliza a estrutura necessita permanecer imóvel para escapar de suas leis, fazendo crer que tudo continua parado em seu lugar, como se ilustra na situação da rainha que, ao se encontrar de posse da carta diante da chegada do rei, fica paralisada, sem esboçar nenhum movimento. Ela permanece estática, na simulação do controle que o olhar do ministro alcança, ao perceber o ponto de geração do movimento fora do movimento gerado, na forma paralisante da inação. O destino da carta móvel, assim, se revela por seus efeitos paralisantes sobre seu detentor. É por esse motivo que agora, ao cair em posse da carta, desse signo do feminino que escapa à vigília da ordem fálica, não por acaso, o ministro – observa Lacan –, por sua vez, se feminiza, mantendo-se imóvel à sua sombra. No lugar de ocultar ativamente a carta, ele a esconde deixando-a a descoberto aos olhos da polícia, como a rainha o fizera aos olhos do rei. Mas a posse da carta o entorpece, numa espécie de negligência blasée, fazendo-o também se expor, agora aos olhos do detetive Dupin, na atitude reveladora de sua inação.

A sequência é de todos conhecida. Ocultando o olhar sob óculos verdes, Dupin, em pouco tempo, divisa, em visita ao ministro, no seu apartamento, a carta desdenhosamente abandonada no consolo da lareira, dando a impressão de que se tratava de um documento sem valor. Havendo esquecido propositalmente sua tabaqueira no apartamento, ele ali retorna a pretexto de recuperá-la para, sigilosamente, se apropriar da carta e substitui-la por uma outra, após ter preparado um incidente na rua visando distrair a atenção do ministro. E, para se retirar, finalmente, do circuito simbólico da carta, nota ainda Lacan, Dupin se neutraliza fazendo-se remunerar, ou seja, trocando a carta pelo seu valor equivalente em dinheiro, significante cujo efeito é justamente o de produzir a aniquilação de toda significação. Mas sejam quais forem os desvios da carta, ela ainda assim segue, no dizer de Lacan, o trajeto significante que a conduz a seu destinatário, que é o lugar antes ocupado pelo rei, ou seja, o lugar da significação fálica que a rainha necessita preservar para não permanecer como pura deslocalização, mesmo dela escapando.

Para retomarmos, então, a crítica de Derrida a Lacan, necessitamos considerar justamente o fato de que, para o filósofo, diferentemente do psicanalista, a linguagem não comporta, por necessidade própria, nenhum endereçamento determinado. A linguagem, no entender de Derrida, seria um puro jogo dispersivo, em que só contam relações de diferença e efeitos de disseminação que a carta voadora materializa. Nesse sentido, qualquer destinação que se busca extrair da linguagem será sempre uma destinação forçada, pois é somente na medida em que um poder exterior se impõe à linguagem que ela passa a comportar uma destinação.

O sintoma desse forçamento ideológico da linguagem, aos olhos de Derrida, se verificaria nos efeitos de neutralização do narrador do conto que ele aponta na leitura de Lacan. Ao isolar as duas cenas dos três olhares que comentamos anteriormente, Lacan teria desconsiderado a figura do narrador como quarto termo, com vistas a emoldurar triangularmente a cena do Édipo na qual se inscreve o destino da carta. A exclusão do quarto termo, longe de ser um dado acidental, implicaria, no seu ponto de vista, uma decisão semântica a serviço do esquema da interpretação psicanalítica: Lacan teria colocado de lado o jogo dispersivo da narrativa, concebendo o enredo ficcional sem dar lugar ao ficcionista, como se a ficção estivesse naturalmente destinada a ser o depositário da verdade edipiana em sua prescrição falocêntrica. Somente assim, ele conclui, o seminário conseguiria mostrar que existe um único trajeto da carta, que sempre chega a seu destinatário.

Ora, existe, como todo lacaniano bem sabe, na visão de Derrida, uma concepção que ancora a linguagem no campo da escritura, por ele tomada como lugar em que a articulação dos elementos significantes não se encontram submetidos à autoridade prescritiva da fala. Sua ideia, interessante em vários aspectos, é que, em nossa tradição logocêntrica, fundada por Platão, a potência do discurso se encontra determinada por sua referência à fala do rei-pai, sem a qual o logos perderia sua unidade e se dispersaria nos jogos textuais. Por oposição ao logos fonocêntrico ordenado pela assistência do pai, o apelo à escritura rejeitada pelo rei, na mitologia de Fedro, responde a um desejo de orfandade e subversão parricida que visa restaurar seus efeitos de disseminação. Na medida em que aquilo que nos chega através de um documento escrito não depende da presença de quem o profere, Derrida entende que a escritura nos permitiria emancipar da autoridade da enunciação, dando livre curso aos efeitos dispersivos da narrativa textual. Motivado por esse desejo parricida, a Derrida interessa a desconstrução da tradição fonocêntrica para abrir espaço ao pensamento da escritura que dela foi excluído. Onde dominava o rei-pai do discurso, ele nos propõe substituir o deus Toth, da escritura egípcia, que ali funciona não como uma autoridade prescritiva do sentido, mas ao modo de um Joker, ou carta neutra, que dá jogo ao jogo na partida de baralho. Flutuante e cambiante de valor, conforme a sequência em que está inserido, “sujando”, como diz Sérgio Laia, “os conjuntos de naipes com sua imparidade”, o deus Toth da escritura nunca está presente na ordenação do texto. Sua propriedade, prossegue Derrida, é sua impropriedade, sua indeterminação que permite a substituição e a expansão contínua dos jogos de narrativas num espaço aberto.

Em sentido contrário, portanto, ao projeto anunciado por Lacan de inscrever a psicanálise no campo ordenado da fala e da linguagem, Derrida propõe pensar o inconsciente freudiano na cena da escritura. O que permitiu a Freud, no seu entender, desalojar o sujeito do eu e da consciência, para concebê-lo como efeito de processos inconscientes, seria justamente o gesto que separou o pensamento da fala e de seu registro co-extensivo da presença. Dissociado da intenção que preside a fala, esse inconsciente estruturado como uma escritura diria respeito não a uma significação que inesperadamente se encerra em um significante à parte de frase, como Lacan propõe com a operação de capitonage, mas a uma rede de traços diferenciais gerados por excitações psíquicas que, por sua vez, se abrem para novos traços excitatórios. Os múltiplos sentidos seriam produzidos pelas diferenças que, na experiência psicanalítica, se produzem por meio da prática de associação livre, cuja função seria justamente a de relançar a cena psíquica da escritura em seu processo de diferir. No lugar, portanto, do ponto de estofo de Lacan, temos o espaçamento de Derrida, em que os traços geradores de sentido se dispõem num campo sucessivamente expandido pelo seu próprio diferir, sem que nenhuma destinação nos autorize a conter os efeitos subjetivos de sua disseminação. Qualquer esforço de se restabelecer um centramento da linguagem, do qual um dos nomes seria a concepção lacaniana do endereçamento fálico da carta, não mais seria, no entender de Derrida, do que uma tentativa de reabilitar a velha tradição metafísica da presença e do logos fonocêntrico que ele tanto se empenha em desconstruir.

E de fato podemos dizer que Lacan não abre mão da ideia de destinação da carta, em referência ao lugar da lei ocupado pelo rei no conto da carta roubada. Mas em vez de exaltar o falocentrismo dessa determinação régia, na forma, digamos, de uma significação eminente, Lacan, em todo momento, nos conduz a ver que essa função, longe de corresponder a uma significação ideal, comporta, conforme dizíamos no início, estruturalmente uma cegueira, sendo antes própria “para se tornar símbolo da mais enorme imbecilidade”. Lacan em nenhum momento idealiza a representação da lei, ainda que a tome como ponto de destinação. Ele nos mostra que, embora o significante fálico coloque como significante a parte que representa o sujeito para os demais significantes, gerando os efeitos de significação, o que dá eficácia a esse significante em posição de exceção não tem nada a ver com um suposto valor elevado, no sentido de uma plenipotência imaginária que certa deriva durkheimiana da psicanálise atribui à função paterna. O que Lacan descobre, em seu retorno a Freud, é que a função de exceção do significante fálico se deve antes ao fato de ele ser, como o pobre rei do conto da carta roubada, um significante vazio, insignificante, o significante do que resta do significante quando já não comporta mais nenhuma significação.

Ao desconstruir, portanto, o logocentrismo referido à exceção do pai, sem perceber seu vazio no estatuto de puro semblante do significante fálico, Derrida termina, como nota Sérgio Laia, por exaltar o anti-pai, representado pelo Joker na apologia da transgressão que se expande na fuga de sentido do texto. No fundo, Derrida só faz permutar uma eminência por outra contrária, talvez tão estúpida e banal quanto a primeira: ao se irromper contra a ordenação da unidade da fala pelo significante fálico, sua apologia da disseminação textual parece destinada a finalmente idealizar como regra o regime contemporâneo do que hoje chamamos de pós-verdade, referido por Lacan, em La chose freudienne, ao ‘mercado mundial da mentira’. E, ao que tudo indica, o espectro do Joker parece hoje se encarnar nas figuras de Trump e – liberanos domine – Jair Bolsonaro, curingas ególatras e gozadores forjados nos jogos publicitários dos spin doctors, tanto mais terríveis quanto carentes de pontos de basta, incapazes de encadear em sua fala própria, sem o suporte de texto do teleprompter, qualquer significação minimamente coerente.

 

Almanaque: Quais consequências podemos extrair da querela Lacan e Derrida em torno do conto “A carta roubada” de Edgar Allan Poe?

Antônio Teixeira: As consequências são múltiplas, mas essa pluralidade não se pulveriza. Ela se localiza no fato de que, no nível de nossa prática clínica, não se pode conceber a psicanálise como uma experiência de pura dispersão, coisa que se lê, por exemplo, na tese, contestada com veemência por Lacan, no Seminário 11, de que a interpretação esteja aberta a todos os sentidos. Embora o sujeito não seja mestre do sentido que enuncia, nem por isso deixa de haver uma lei que ordena e localiza os efeitos da estrutura simbólica a partir justamente da instância significante, que escapa ao sentido. Mas eu gostaria particularmente de abordar, a respeito dessa função de localização e endereçamento aqui discutida, a importância que Lacan dá a posição inaugural ocupada por seu texto sobre “A carta roubada” na sequência do conjunto de seus Escritos. Existe ali uma decisão topográfica, um esforço de localização relacionado ao endereçamento dirigido ao leitor que ele visa constituir, através de seus Escritos, ao se colocar tardiamente como autor de uma obra.

Para não me delongar demais, eu irei resumir dizendo que o projeto de se constituir como obra, através da publicação da coletânea de seus Escritos, desde o início, se colocou, para Lacan, como efeito do cálculo de uma decisão. Quero, com isso, salientar que fazer-se obra não deriva, para Lacan, de um voluntarismo particular. Se ele a obra consente, é, antes, contrariado, em razão de uma escolha forçada, de uma decisão determinada pela força de um cálculo circunstancial.

O que estava em questão por ocasião da publicação dos Escritos, no final de 1966, eram os efeitos da ainda recente fundação da Escola Francesa de Psicanálise, criada em 1964, da qual Lacan assumiria explicitamente o encaminhamento tanto institucional quanto ético, político e epistêmico. Lacan estava em vias de estabelecer a unidade dessa orientação quando consentiu em publicar a coletânea selecionada de suas intervenções escritas. Sua escolha forçada pela obra se ligava, naquele momento, ao imperativo ético de restituir o sistema de pensamento em que o texto freudiano, deturpado em sua apropriação instrumental pelo contexto da ego-psychology, voltasse a revelar sua necessidade própria. A refundação da doutrina freudiana como um sistema dotado de necessidade interna implica, antes de tudo, separar a unidade da doutrina de sua disseminação circunstancial, apartando o campo das proposições necessárias da teoria dos enunciados sem necessidade das opiniões.

Nessa perspectiva, assumir a dimensão de obra, em seu sentido propriamente moderno, significa instaurar, em meio à disseminação geral da cultura, a unicidade do uma doutrina autônoma que desse múltiplo se diferencia, ali introduzindo uma superfície de refração. A obra tem por função separar, em seu endereçamento doutrinal, o corpo dos enunciados teóricos do contexto cultural que dissipa o pensamento na pluralidade inconsistente das opiniões. Centrada num sistema de nomeações que confere ao conjunto dos enunciados uma forma reconhecível, a obra realiza essa unicidade mediante a associação do nome do autor com o título materializado na publicação. O conceito gestado no interior de uma obra afirma-se, assim, como um conceito de autor, via de regra definido por um nome próprio, embora tal autoria possa também ser referida a uma coletividade reunida em torno de determinado paradigma. É nesse sentido que falamos do inconsciente freudiano, do engajamento de Sartre, do habitus de Bourdieu, da mais valia de Marx; como também podemos nos referir à lógica de Port Royal, à álgebra comutativa de Bourbaki, e assim por diante.

Importa, porém, lembrar que nem toda produção autoral se determina como obra, se dermos a esse termo seu sentido específico. É possível ser autor de artigos ou mesmo de livros sem ser necessariamente autor de uma obra, como de fato acontece na grande maioria dos trabalhos a que chamamos de monografias. Distintamente do autor de obra, o autor de monografia geralmente publica seus textos em periódicos destinados à difusão do saber já articulado a um determinado campo doutrinal. Embora Jean-Claude Milner reserve o termo “monografia” aos artigos relacionados à atividade científica, como aqueles que se publicam nos periódicos de física ou de biologia, a mim parece mais exato aplicar essa denominação a todo saber produzido no campo de uma prática discursiva previamente constituída. É nesse sentido que podemos chamar de monografias os artigos divulgados, por exemplo, numa revista de arte ou de crítica literária, sem que seu conteúdo resulte necessariamente de algum tipo de atividade científica. A monografia é a produção que se realiza no endereço já constituído por um paradigma ou sistema de pensamento.

A esse respeito, vale salientar que Lacan soube consentir com a monografia no período em que o contexto o permitia. Ele não somente publicou diversos escritos monográficos, ao longo de sua vida, como também dirigiu uma importante revista – La psychanalyse – destinada a esse tipo de divulgação. Se Lacan aceitou tardiamente adotar o desvio pela obra com a publicação dos Escritos, em 1966, foi por considerar que o contexto absorvera a psicanálise, transformando-a numa prática de gerenciamento de almas que terminou por dissipar o endereçamento específico da doutrina freudiana.

Durante certo tempo, eu acreditava ver uma singularidade no fazer-se obra de Lacan. Lacan não construiu um escrito destinado a realizar-se como obra, como foi o caso da Traumdeutung freudiana, a qual seguia canonicamente as normas de revisão bibliográfica, recolocação do problema, estabelecimento de hipóteses e, finalmente, fundação de uma nova perspectiva para tratar o objeto assim constituído. Agradava-me, nesse sentido, pensar que a obra de Lacan teria algo que se aproxima do ready-made de Marcel Duchamp. Assim como uma roda de bicicleta se converte em obra de arte pelo gesto calculado de deslocamento de sua posição na percepção social da mercadoria, transportando-a para a sala de exposição de um museu, o conjunto das monografias de Lacan parecia ter-se convertido em obra pelo simples gesto que as encadernar num volume intitulado Escritos. Uma inconfidência de Derrida, aliás, parecia confirmar minha hipótese. Ele nos relata que Lacan lhe havia confessado, logo após publicar seus Escritos, que seu temor não era de que o conteúdo de seu livro fosse criticado ou mal compreendido. Ele, na verdade, temia que os Escritos se desencadernassem, que a costura da encadernação não suportasse o volume de artigos; ele receava enfim que a obra perdesse sua unidade material e se espalhasse. Encantava-me interrogar esse fenômeno, para pensar a ideia desse objeto-livro como uma obra constituída pelo gesto de encadernação de textos monográficos.

Mas minha hipótese não era correta. Por indicação de Gilson Iannini, estudei a pesquisa historiográfica de Jorge Baños Orellana, El escritorio de Lacan Orellana, 1999, em que ele nos demonstra que os Escritos nada tinham de um ready-made. Para preparar sua obra, Lacan não se contentou em transportar seus escritos monográficos para o interior de um volume encadernado. Ele, na verdade, se fechou num hotel de Paris, onde permaneceu de março a outubro de 1966, relendo seus textos, reescrevendo-os e reexaminando as provas a serem enviadas para a edição final. Conforme os procedimentos de análise genética evidenciam, houve ali, durante esse período, um grande trabalho de transformação, destinado, sobretudo, a reelaborar o estilo texto final. Caberia então, finalmente, se perguntar por que motivo o trabalho sobre estilo se coloca, para Lacan, na transição da monografia para a obra fundadora de um endereçamento doutrinal.

Como já disse em outro momento, não me compete dissertar aqui sobre o vasto problema do estilo em Jacques Lacan, sobretudo porque já existe, a esse respeito, uma referência inultrapassável: o livro de Gilson Iannini, que hoje circula em sua segunda edição. A questão da estilística interessa-me tão somente como ponto sobre o qual se apreende a função unificante relativa ao endereçamento do autor, pois é dessa função que depende a unicidade da obra que diferencia a doutrina da disseminação geral da cultura, conferindo sua autonomia própria. Por longo tempo se supôs que o autor da obra só seria apreensível no que ele tem de único, ou seja, naquilo que somente ele poderia dizer através do estilo. Por isso, o estilo foi considerado, pela crítica literária representada sobretudo por Sainte-Beuve, como a ponte que nos conduz à unicidade do autor.

Havia, por conseguinte, uma espécie de devoção religiosa ao estilo, como se nele estivesse depositado o selo de garantia da obra. Sendo a obra a expressão da unidade da doutrina, o autor seria sua função unificante, a função do Um que só poderia ser captada a partir do estilo como marca do íntimo do autor em primeira pessoa na obra, cabendo à crítica literária o trabalho de seu desvelamento. Porém, Lacan já desconfiava dessa solução que consiste em buscar na relação do autor com o estilo o princípio de unificação da obra. Seu programa de retorno a Freud é contemporâneo de um movimento crítico destinado a desconstruir precisamente, em sentido contrário, o culto ao autor como princípio de ordenação do texto. Atento a tudo o que se passava a sua volta, Lacan não desconhecia o surgimento, a partir dos anos 60, de uma corrente crítica representada tanto por M. Foucault e R. Barthes quanto, mais tarde, por Derrida, que associava a importância conferida à figura do autor a uma visão individualista da obra nos termos burgueses da mercadoria e do patrimônio intelectual. Para Barthes e para Foucault, essa primazia dada ao personagem autoral seria apenas uma ficção historicamente datada do homem moderno, determinada tanto pela produção do prestígio pessoal do indivíduo com a ideologia da Reforma quanto pela necessidade capitalista de se unificar o produto do pensamento na forma-mercadoria. Para Barthes, o autor deveria deixar de ordenar a unidade da obra, dando espaço à dispersão de uma verdade impessoal do leitor, não comandada pela figura do eu. O que conta é o que o leitor entende e não o que o autor quis dizer.

Por sua vez, Foucault, ao meditar sobre a ideia do autor como princípio de ordenação da obra, revela-nos seu constrangimento em se constituir ele próprio como autor ao ser convocado a escrever o prefácio da 2ª edição de seu livro História da loucura. Foucault se sentia particularmente incomodado por entender que, no prefácio, o autor é chamado a prescrever o sentido do que foi escrito. Por isso, ele nos conclama a tomar suas palavras não como proposições unificadas pela função autoritária do autor, mas acolhidas na fragmentação dispersa que tanto interessa a Derrida: “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e ser levado para além de todo começo possível […]. Em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, o ponto de seu desaparecimento possível” e blá-blá-blá…

A bem da verdade, por mais irresistível que seja a modéstia de Foucault, não podemos ceder a esse devaneio no campo da psicanálise. Estamos cientes do que ocorre quando se entrega o texto à apropriação irresponsável do leitor anônimo, conforme se viu na deturpação sofrida pela doutrina freudiana em sua recepção pelo contexto americano. Seja qual for a derrisão contemporânea do autor, não podemos deixar de interrogar sobre o que queriam dizer seus fundadores. Por isso, interessa-nos meditar sobre o que o próprio Lacan tinha a dizer sobre a obra que ele nos endereçava, em 1966, e aqui retomamos finalmente o tema da carta roubada.

Ora, o prefácio, como dizia constrangidamente Foucault, é o lugar em que o autor vem dizer como se organizam seus enunciados. O prefácio é o que, na obra, mais se assemelha a uma carta em que o autor tenta explicar ao leitor como ele gostaria de ser lido. Vale, então, salientar que, para nossa felicidade, Lacan nos endereçou, em seus Escritos, esse primeiro prefácio, curtíssimo e luminoso, que se coloca na porta de entrada de sua obra, intitulado “Abertura desta coletânea”.

Lacan o inicia a partir, precisamente, de um comentário sobre a questão do estilo, evocando a célebre fórmula endereçada por Buffon à Academia Francesa de Letras, por ocasião de seu laureado: o estilo é o próprio homem. É importante ali notar que, no lugar em que o culto do estilo reverencia o personagem do autor, na figura eminente do grande homem que ordena sua obra, Lacan nos convida a meditar sobre o que há de jocoso nessa figura do grande homem, aqui representada por Buffon em seus trajes burlescos. Ao se colocar como autor de uma obra, Lacan, diz-nos Jacques-Alain Miller, não se deixa enredar pela fantasia falocêntrica do grande homem que Derrida tanto critica. O ridículo dessa fantasia estilística do grande homem, aos olhos de Lacan, é não entender que o estilo depende não da eminência do autor, mas do laço que o constitui em seu endereçamento ao Outro, na forma da mensagem que lhe retorna invertida. Nesse sentido, Lacan concebe o estilo não como uma entrega autoral da obra pronta a um leitor admirativo já presente, mas como meio de construção da obra através do leitor não dado, porém criado pelo seu endereçamento. A questão do estilo diz, portanto, respeito a quem vem a ser o leitor que ele faz existir.

Pode-se ver que a questão do ‘quem’ é aqui particularmente sensível, uma vez que o estilo tradicionalmente se abordava, conforme vimos anteriormente, como marca do íntimo do autor em sua obra, na primeira pessoa. Mais importante, porém, do que a crítica de Foucault e de Barthes ao culto ao autor, a grande subversão que interessa a Lacan vem não do pós-estruturalismo, mas do escritor Marcel Proust, grande herege que abalaria as fundações da Igreja do estilo ao denunciar como impostura o trabalho de Sainte-Beuve. É indispensável ler, a esse respeito, O escritor sem Igreja, de J.-C. Milner, do qual eu retomo aqui os argumentos. Para demonstrar a impostura de Sainte-Beuve, Proust escreveria, em 1919, os Pastiches et mélanges, conjunto hilário de versões pseudoautorais de um mesmo assunto, em que se evidencia que a figura do estilo, supostamente advindo do íntimo na primeira pessoa do singular, na verdade não comporta indexação pronominal.

Os pastiches têm por tema comum o affaire Lemoine, notícia que circulou nos jornais nos anos de 1908 e 1909, a propósito de um escroque chamado Henri Lemoine, que, ao pretender haver descoberto o segredo da fabricação do diamante, recebeu uma soma considerável do senhor Julius Werher, enganando-o com experimentos falseados. Os pastiches de Proust relatam o caso Lemoine no estilo de Balzac, Flaubert, Sainte-Beuve, Michelet, entre outros, seguindo uma narrativa indistinguível dos autores referidos. Mas os pastiches não são apenas um anedotário destinado a nos fazer rir. O que Proust ali questiona é justamente o quem referido ao estilo, mostrando que ele não comporta vínculo natural com a primeira pessoa ao ser realocado na prosa romanesca de maneira indistinta. Mas o que acontecia quando Proust escrevia, sem que ele soubesse, provoca J.-C. Milner, é que, no mesmo período em que ele redigia seus pastiches, a psicanálise já havia modificado a estrutura do íntimo, desfazendo sua indexação pronominal na primeira pessoa do singular. O Inconsciente freudiano se encontra precisamente referido ao íntimo que desconhece a repartição pronominal entre o Ich, o Du e o Er, permanecendo indeterminado no pronome neutro como Das Es.

Ciente dessa indeterminação pronominal do íntimo, a questão do estilo que interessa a Lacan não se coloca como marca inconfundível do íntimo do autor na primeira pessoa, conforme pretendia a tradição da crítica literária, mas, como diz Gilson Iannini, enquanto objeto indeterminado que afeta o leitor, transformando-o em sua intimidade. Tal indeterminação, aliás, vem a ser o que confere a eficácia ao significante-letra que circula no conto de Edgar Alan Poe: a carta, cujo conteúdo não é jamais explicitado pelo discurso que a cerca, afeta intimamente a todos que caem em sua possessão. Cabe ao leitor, profere Lacan, dar à carta sua destinação, estando esconjurada toda eminência do “maître à penser” na obtenção do efeito escolhido. Pois o que se revela como verdade precária da ordem fálica, ilustrada na paródia do “roubo da mecha”, com a qual ele finaliza seu prefácio-abertura, é o objeto que divide intimamente o sujeito no apagamento justamente de toda referência ao ideal. Sem glamourização do mestre ou exaltação do Joker, o objeto a, que Lacan ainda não havia formalizado por ocasião de seu escrito sobre “A carta roubada”, aparece nesse prefácio-carta como algo que se destina a seu leitor, convocando-o a se haver com a verdade de uma satisfação íntima que dele cobra uma transformação. É nesse sentido que seis escritos conduzem o leitor “a uma consequência em que precisa colocar algo de si”.

E de fato é impossível, eu dizia em outro momento, ler diletantemente os Escritos, na farsa do erudito movido pelo ideal que dele se serve para aumentar seu cabedal de cultura. Em meu caso, para acessá-los, foi-me necessário conservar, por longo tempo na estante, o objeto-livro inacessível, fascinante e estranho, até que suas páginas se abrissem vagarosamente, no ritmo de minha própria modificação íntima.

 


 

ANTÔNIO TEIXEIRA

Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (AMP) amrteixeira@uol.com.br




Biblio – A Queda Do Falocentrismo

ALINE

Catálogo de textos: Sobre “A queda do falocentrismo”

 

Almanaque

 

BRIOLE, Guy. La feminización del mundo. Córdoba: Babel Editorial, 2013.

 

BROUSSE, M. H. Las feminidades: el Otro sexo entre metáfora y suplencia. In: MILLER, J.-A. et al. (Org.). Del Édipo a la sexuación. Buenos Aires: Paidós, 2001.

 

GOROSTIZA, Leonardo. Entrevista a Leonardo Gorostiza a propósito da feminização do mundo. Radio Lacan, 2014. Disponível em: http://www.radiolacan.com/pt/topic/418/3

 

MILLER, J.-A. et al. (Org.). Del Édipo a la sexuación. Buenos Aires: Paidós, 2001.

 

MILLER, J.-A. La naturaleza de los semblantes, Buenos Aires; Paidós, 2001.

 

MILLER, J.-A. Capricho y voluntad. In: ______. Los usos del lapso (2000-2001). Buenos Aires, Paidós, 2004, p.159-182.

 

MILLER, J.-A. El campo pulsional. In: ______. El Outro que no existe y sus comités de ética (1996-1997). Com colaboración de Éric Laurent. Buenos Aires: Paidós, 2005, p.369-390.

 

MILLER, J-A. Sobre o Gide de Lacan, Opção Lacaniana online, n. 17, jul. 2015. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero17/texto1.html>

 

MILLER, J-A. Sobre o Gide de Lacan, Opção Lacaniana online, n. 18, nov. 2015. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero18/texto1.html>

 

MILLER, J.-A. A era do homem sem qualidades. Asephallus, n. 1, abr. 2016. Disponível em: <http://www.isepol.com/asephallus/numero_01/traducao.htm>

 

MILLER, J. A. Bonjour Sagesse. Virilités La Cause du Désir – Revue de Psychanalyse, n. 95, abr. 2017, Paris. Buenos dias sabiduria. Boletin de la Federacion de Bibliotecas del Campo Freudiano , nº 14, junho ,1996. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/263010719/Jacques-Alain-Miller-Buenos-Dias-Sabiduria-Colofon-14.

 

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LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. In: Opção lacaniana, São Paulo, Edições Eólia, n. 23, dez.1998, p. 16.

 

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LACAN, J. (1960). Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 734-745.

 

LACAN, J. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 807-842.

 

LACAN, J. (1973) O aturdito. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 448-497.

 

LACAN, J. (1962-1963). O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

 

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LACAN, J. (1971). O Seminário, livro 18: de um dicurso que não fosse do semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

 

LACAN, J. (1972). O seminário. Livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

 

LAIA, Sérgio. Meninos e meninas não são (ainda) homens e mulheres. XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2016. Disponível em: <https://www.encontrobrasileiro2016.org/sergiolaia>

 

LAURENT, Éric. Semblantes e sinthoma. In: ______. A psicanálise e a escolha das mulheres. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.

 

LAURENT, Éric. O sujeito da ciência e a distinção feminina. In: SANTOS, T. C.; SANTIAGO, J.; MARTELLO, A. (Orgs.). Os corpos falantes e a normatividade do supersocial. Rio de Janeiro: Companhia de Freud/FAPERJ, 2014.

 

SINATRA, Ernesto. @s nov@s adit@os: a impolosão do gênero na feminização do mundo. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2013.

 

SORIA, Nieves. ¿Ni neuroses ni psicosis? Buenos Aires: Del Bucle, 2015.

 

WÜLFING, Nathalie. Nenhuma Mulher no século 21 (No Women in the 21st Century). XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise MG, 2017. Disponível em: <http://jornadaebpmg.blogspot.com.br/2017/10/lincs-6-5o-que-se-escreve.html> . (Trabalho original de 2013).




O Saber Absoluto E O Declínio Do Viril

MÔNICA CAMPOS SILVA

ROSE-PAULE – MICHEL TRPAK

Em 27 de junho de 1994, Miller apresenta, em seu seminário Lacan e o saber do século, uma aula sob o título “Kojève, a sabedoria do século”. A ideia de Miller era combinar o anseio de falar de Kojève e de seu artigo “O último mundo novo”, articulando-o ao Seminário IV de Lacan, “A relação de objeto”.

 

Nessa lição, Miller parte de um problema apreendido por Kojève, ou seja, o mundo novo é, com e pós Napoleão, um mundo do saber absoluto, chamado por ele de “verdadeiro mundo novo”. Kojève vê, nas novelas de Françoise Sagan[1], entre elas Bom dia, tristeza, o que são as consequências do saber absoluto na relação sexual.

 

Assim, Miller inicia sua articulação apontando que, em “O último novo mundo”, Kojève inscreve três nomes do pai, estando, na origem desses, Napoleão na batalha de Jena[2]. O primeiro nome seria Hegel, o filósofo. O segundo seria Sade, que, segundo Kojève, tem esse lugar pois é a partir de sua libertação que se compreendeu que, no novo mundo livre, tudo deveria acontecer no privado. Sade é, então, o herói do privado, um dos faróis deste novo mundo. Sob o terceiro, Miller deixa, naquele momento, em aberto.

 

O leitor acompanhará, nessa lição, o percurso de Miller quando retoma essa discussão para destacar o contraponto que Lacan estabelece, no Seminário 4[3], ao final de sua análise sobre o pequeno Hans, entre legalidade e legitimidade, esclarecendo que Hans está na legalidade por se interessar pelas meninas, mas que isso acontece de uma forma passiva, não tendo nada de viril em sua posição. Segundo Miller, Lacan faz do pequeno Hans um paradigma da relação sexual da geração de 1945. Segundo Lacan, esses jovens esperam que a iniciativa venha do outro lado, que venha das damas, colocando como exceção Dom Juan, como o que não deixava para o outro sexo tomar a iniciativa. Entretanto, para Lacan, esse personagem, ao buscar o falo feminino – e sem encontrá-lo –, se depara, ao final, com o pai.

 

Miller nos mostra como as novelas de Françoise Sagan situam para Kojève a figura contemporânea das relações sexuais, ou seja, a época do saber absoluto como correlata do declínio do viril ou, como ele diz, “encontramo-nos em um mundo sem homens”, restando apenas um “certo sorriso”.

 

Em “Bonjour, sagesse”, a tese de Miller em que o declínio e o desaparecimento do viril não são possíveis de serem pensados sem o declínio do pai é problematizada com a pergunta sobre o que é a desaparição do viril. Para o autor, é o que fica da fórmula da sexuação masculina ao anularmos a parte esquerda da fórmula, restando simplesmente o “todos juntos”, fórmula da igualdade, o todo da democracia. Como consequência, o dano causado à função paterna e, portanto, o declínio do pai, explica o sentimento de desaparição do viril. Miller lembra Lacan em 1938, em Os complexos familiares, quando este sinaliza o declínio da imago paterna como provocador de uma crise psicológica que faz surgir a psicanálise.

 

Diante das questões levantadas, Miller nos anuncia o terceiro nome do pai pós-Napoleão. Seria Brumell[4], que se junta a Hegel e Sade no nascimento do novo mundo. O que dá esse lugar a Brumell? Para Miller, o que se admira em Brumell é a aventura de um homem só, capaz de produzir um império com sua opinião, fazendo-se único. Como figura excepcional, Brumell teria sido a inspiração para a construção do personagem de Dom Juan, sendo comparado a Napoleão principalmente no fascínio que provocava, pelas maneiras e elegância e pelo domínio da compostura.

 

Miller propõe verificar a relação entre Brumell e o aparecimento do dandismo. Segundo ele, antes havia o belo e, com Brumell, surge o dandismo, apontando que a diferença entre eles é que, no belo há a intenção de agradar; no dandismo, a finalidade reside mais em assombrar, surpreender, do que em agradar, ou seja, desagradando, se fascina ainda mais. Por essa via, Miller utiliza-se de Baudelaire em sua descrição do dandismo como o último flash de heroísmo em decadência, para marcar a resistência heroica do dândi diante do discurso moderno, como uma forma de sabedoria moderna para resistir ao mal-estar na civilização.

 

A partir da literatura francesa da época, Miller revela a presença de uma recusa do heroísmo, ou seja, sob a continuidade aparente do gênero trágico, observa-se uma verdadeira revolução dos costumes, uma revolução cultural. Miller constata que a desvirilização está aí desde o século XVI, antes de Napoleão.

 

Ao estabelecer uma sequência – o cavaleiro, o cortês e o dândi -, Miller inclui a figura do analista, assinalando que este tem algo a ver com o dândi, pois, em seu discurso, ocupa o lugar de causa. O analista seria o semblante que faz tremer os semblantes.

 


 

Referências
BAUDELAIRE, C. O pintor da vida Moderna. Brasil: Autêntica Editora, 1 ª Edição, 2010.
KOJÈVE, A. (1984) Le dernier monde nouveau Françoise Sagan. Disponível em: www.association-freudienne.be/pdf/bulletins/7-BF1_BIBLIOTHEQUE.pdf?phpMyAdmin=0k39wA0M-rYtTueZFUi-nHQMKb1.
LACAN, J. (1938) Os complexos familiares. Brasil: Zahar Editora, 1987.
LACAN, J. (1956). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
MILLER, J.-A. “Buenos días, sabiduría”. Colofón, 14 jul. 1996.
SAGAN, F. Bom dia, tristeza. Brasil: Livraria Cultura, 2007.
[1] Françoise Sagan (1934–2004), escritora francesa.
[2] As batalhas de Jena (ou Iena) e Auerstedt ocorreram em 14 de outubro de 1806 pelo controle dessas cidades localizadas no interior da Prússia e, na época, sob o governo dos Hohenzollern, oponentes aos exércitos de Napoleão Bonaparte.
[3] “O pequeno Hans se situa numa certa posição apassivada, e, qualquer que seja a legalidade heterossexual de seu objeto, não podemos considerar que ela esgote a legitimidade de sua posição. Ele alcança aí um tipo que não vai lhes parecer estranho em nossa época, o da geração de um certo estilo que conhecemos, o estilo do ano de 1945, daqueles encantadores rapazes que esperam que as iniciativas venham do outro lado – que esperam, para dizer tudo, que se lhes tirem as calças” (LACAN, 1956/1995, p. X).
[4] George Bryan “Beau” Brummell (1778–1840), figura icônica na Regência da Inglaterra e, por muitos anos, o árbitro da moda masculina. Era amigo íntimo do Príncipe Regente. Brummell é lembrado como exemplo preeminente do dândi e possui toda uma literatura fundada em seu estilo.



Almanaque V. 11 – Nº 19 1º semestre de 2017

Eis aqui o Almanaque, o 19º de nossa série. Nossos textos foram cuidadosamente selecionados pelos integrantes da equipe de publicação desta revista eletrônica do IPSM-MG, a partir dos movimentos do Campo Freudiano. Neste número, você, leitor, encontrará material sobre o tema do XI Congresso Mundial de Psicanálise, “As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência”, e sobre o tema do VIII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL) “Assuntos de família, seus enredos na prática”. Acreditamos que a fluidez da internet possibilite que essas discussões reverberem e provoquem a participação de vários. Leia o editorial…

TRILHAMENTO

Psicoses, ordenadas sob transferência – MIQUEL BASSOLS

Clínica lacaniana da psicose – ANGELINA HARARI

Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos – YVES VANDERVEKEN

Catálogo de textos: Sobre as psicoses ordinárias e as outras – Almanaque

ENTREVISTA

Entrevista com Juliana Mota (Instituto Raul Soares – FHEMIG) Do confinamento ao manejo clínico – ALMANAQUE ON-LINE

INCURSÕES

A família contemporânea e o real do sexo – SUZANA FALEIRO BARROSO

O real na família contemporânea – Questões sobre o incesto – LUCIA MELLO

Os Filhos dos toxicômanos – MARIANA FURTADO VIDIGAL

The wolfpack: entre filmes e lobos – GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR

ENCONTROS

Assuntos de família no discurso toxicomaníaco: impasses – CASSANDRA DIAS FARIAS

O escabelo de François Augiéras: escritura e pintura do corpo do de-lito (de-leito) – PHILIPPE LACADÉ

DE UMA NOVA GERAÇÃO

De onde vêm as mães? – MAGDA H. B. CASAROTTI

“O Sujeito do gozo” na psicose – NÚBIA APARECIDA FERREIRA DE MELO




Entrevista Com Juliana Mota (Instituto Raul Soares – FHEMIG) Do Confinamento Ao Manejo Clínico

ALMANAQUE ON-LINE

 

STONE

ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA JULIANA MOTA[1] (INSTITUTO RAUL SOARES-FHEMIG)

 

Almanaque (A): Agradecemos, em nome do Almanaque, a sua disponibilidade e gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre a história do Instituto Raul Soares e de seu trabalho aqui.

 

JULIANA MOTA

Juliana Mota (J.M.): Atualmente ocupo a gerência tecno-assistencial do Instituto Raul Soares, o que equivale à direção clínica desse hospital – um hospital que tem quase cem anos.

O Raul Soares foi criado em 1922 para ser especificamente um lugar de formação na psiquiatria – por isso não se chama hospital, mas Instituto. O Raul tem uma tradição, uma importância fundamental nos anos 60 e 70. A partir de 1970, com os ventos que vieram da Itália – da Reforma Psiquiátrica, da Reforma Sanitária do país –, começa a criação de um projeto sanitário, ou seja, a Reforma Psiquiátrica é fruto da Reforma Sanitária porque ela tem como eixo fundador a questão do pensamento do SUS, a lógica do SUS. É nesse cenário que um grupo de psiquiatras, fundamentais na história da psiquiatria no Brasil, como Francisco Paes Barreto[2], Antônio Beneti[3], Antônio Simoni[4] – falecido ano passado –, João Batista Magro[5] e Célio Garcia[6] – que não era psiquiatra, mas estava junto nesse trabalho –, começaram a discutir, a partir das denúncias de Hiram Firmino[7], a situação dos hospitais psiquiátricos de Minas Gerais. Esse grupo faz um movimento capital no Estado de Minas Gerais para se pensar os rumos da formação dos jovens psiquiatras. Nesse momento também começa a discussão sobre o perfil do trabalhador de saúde mental, sendo a Saúde Mental criada nessa época. O hospital fundou a primeira residência de psiquiatria no Brasil – que completa 50 anos em 2018. Com todas as suas oscilações e problemas, ele se torna um lugar de formação clínica.

É também nesse momento que começam a surgir as instituições de psicanálise em Belo Horizonte – o Círculo Psicanalítico[8], o Colégio[9]. Esse grupo de analistas e psiquiatras são também os preceptores de residências. Então, o Raul tem essa história na formação de psiquiatras, em que analistas ministram cursos desde a sua fundação. Depois tivemos uma segunda geração de psiquiatras, Ana Marta Lobosque[10] e Miriam Abou-Yd[11] que, transferidas com o texto analítico e com o texto da reforma psiquiátrica, continuam a propor uma transformação no sentido da formação desses trabalhadores de saúde mental. Nesse sentido, o discurso analítico é acolhido no Raul e passa a ter espaço em nossas discussões, assim como o discurso da clínica psiquiátrica e da reforma psiquiátrica.

Há seis anos, criamos a primeira residência multidisciplinar em saúde mental da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG). Essa segunda residência possui uma vaga para cada categoria: psicologia, terapia ocupacional, enfermagem e assistência social. Trata-se de uma residência do Instituto Raul Soares, da rede FHEMIG[12], mas chancelada, atualmente, pela Faculdade de Ciências Médicas, sendo o Instituto Raul Soares o executor.

 

A: Nesse percurso, como foi a deshospitalização no Instituto Raul Soares?

 

J.M.: Tínhamos, como todos os hospícios criados em 1920 – e que atravessaram os anos 30 e 40 –, moradores. Durante um tempo, ficamos com 17 moradores. Em 2015 conseguimos deshospitalizar dez pessoas. Alguns moravam aqui há dezessete, outros há treze, outros há cinco, seis anos. Fora as internações judiciais, em que tínhamos pacientes aguardando há mais de três anos. Pois, pegamos o contexto da reforma, mas também uma época em que as pessoas ficavam aqui por internação compulsória judiciária[13]. Em alguns casos, o juiz não dava definição do caso e o paciente ia ficando. Em outros, o juiz estipulava o tempo, determinava “vai ficar três anos”, e a pessoa permanecia por três anos. Mas, enfim, hoje temos cinco moradores no hospital, todos eles em processo de saída para as residências terapêuticas[14].

E, ainda, sobre as internações compulsórias, que não acontecem só no Instituto Raul Soares, mas também no Hospital João XXIII[15], entre outras instituições, o procurador da FHEMIG e a coordenação de Saúde Mental do Estado de Minas Gerais iniciaram uma discussão com os juízes e os promotores das comarcas explicando as dificuldades causadas por esse tipo de internação, que não é clínica, e temos tentado encontrar outras soluções. Atualmente, as sentenças começam a vir sem tempo, e a decisão do tempo de permanência passa a ser apenas clínica. É claro que temos ainda problemas em algumas comarcas.

Devemos lembrar que o Instituto Raul soares recebe pacientes de todos os lugares do Estado. Esses pacientes podem chegar sozinhos, vir encaminhados pelo Centro de Saúde. Quando o paciente chega, o trabalho da equipe é verificar a possibilidade de encaminhá-lo para rede de saúde. Estamos trabalhando na dimensão do ato, isto é, a equipe escuta, acolhe, maneja, conversa com a rede e, se possível, encaminha. Mas a diferença é que operamos a partir de um encaminhamento clínico, respeitando o território geográfico, mas, sobretudo, tendo como ponto norteador a clínica. Esse é o orientador da direção clínica atual. Sem o argumento clínico, o paciente não sai do Raul. A equipe precisa sustentar seus encaminhamentos para além da lógica da rede administrativa da saúde mental. Ela deve criar uma rede clínica para cada um desses sujeitos, que serão encaminhados. E é bom constatar que a rede funciona, a rede acolhe. Temos dados estatísticos que sustentam essa orientação.

 

Urgências subjetivas: novas formas de sintoma

 

A: Qual é o perfil hoje do Instituto Raul Soares? Como funciona? O que funciona aqui, já que não é mais internação?

 

J.M.: Não somos mais o lugar de confinamento. Se ainda tem um ou outro paciente que fica um tempo a mais, é porque ainda está no processo de discussão com as localidades a que pertencem. Hoje o Raul é um local de passagem, um lugar breve, de urgência. Nesse sentido, um dos nossos indicadores de eficiência é reduzir as internações para sete a onze dias, no máximo, numa crise. É claro que isso funciona melhor na cidade de Belo Horizonte. A Grande BH e algumas regiões do Estado, por serem mais desamparadas de dispositivos para acolher, ainda internam muito.

 

A: O fato de as internações serem curtas – você disse de sete a onze dias –aumenta o número de retorno?

 

J.M.: Não. Acontece às vezes, mas acho que a instituição, o corpo clínico, tem trabalhado e manejado melhor o caso na porta de entrada. Tentamos não deixar entrar mais. Fechamos uma enfermaria e a transformamos em Centro de Acolhimento à Crise. Hoje a urgência se transformou; colocamos uma equipe de acolhimento e uma equipe horizontal, ou seja, uma equipe que acolhe e uma equipe que acompanha os pacientes que estão na observação, todos os dias. E, mais ainda, essas equipes se reúnem diariamente, às dez horas, para discutir os casos que chegaram nas últimas 24 horas e os manejos que vão se fazendo com a rede. Estamos equipando essa porta de entrada para esse pensamento de urgência.

 

A: Como é essa crise? Essa urgência?

 

J.M.: Temos dois pontos. Um é uma urgência subjetiva, quando o sujeito chega com um sintoma muito embaçado. Poderíamos dizer que são essas novas formas de corpo, de muito uso de substância, uma posição muito pouco discursiva, em que é necessário introduzir o tempo. Então, o Centro de Acolhimento à Crise vem para introduzir uma hiância, para que seja possível algo do sujeito aparecer, para que alguma intervenção possa ser feita. Esses encaminhamentos devem ser clínicos e não de triagem. Essa é uma diferença fundamental.

Temos também o outro tipo de caso, aqueles que chegam principalmente do interior, de lugares mais desamparados, apresentando os sintomas clássicos da descrição psiquiátrica, de manual de psiquiatria – os que deliram, que têm essa configuração nosológica, psicopatológica, muito clássica da história dos manuais. Essas pessoas, quando chegam, muitas vezes, já estão catatônicas, o que não vemos mais na nossa cidade. São sujeitos que vão se afastando e a família vai deixando, vai dando um jeito, acostumando com aquilo. Esses casos, as catatonias, as anorexias psicóticas – que chegam e que já têm um tempo de evolução –, são do interior, não são da cidade. A não ser que venha direto do Laboratório de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas, que nos encaminha por uma questão de segurança. Mas esses quadros de lenta evolução, essas esquizofrenias clássicas, não posso dizer que são de Belo Horizonte, salvo exceções.

Temos também as internações compulsórias, que já falamos, e que não se encaixam nessa prática. Elas vêm a partir de uma demanda da família ao judiciário. Em alguns casos, o juiz interpreta que há um perigo e encaminha para o Raul. Atualmente também recebemos muita demanda do sistema prisional, visando a retirar os presos dos presídios – aqueles portadores de sofrimento mental – e trazer para o hospital. Essa é uma conversa delicada. Primeiro, pelas medidas de segurança a serem seguidas pelo sistema prisional, que são incompatíveis com o trabalho de uma equipe de saúde de um hospital. Segundo, porque acreditamos que alguns casos possam ser tratados dentro do próprio sistema prisional, desde que bem articulado com a rede de saúde mental do município. Esse é um ponto que também estamos trabalhando com as diretorias das unidades prisionais.

 

A: Você chegou a falar de casos como “casos embaçados”. Podemos pensar nesses casos como casos de psicoses ordinárias[16], tal qual proposto por Jacques-Alain Miller? É claro que é um diagnóstico difícil de ser dado, porque o sujeito apresenta uma loucura discreta, de pequenos índices de foraclusão, mas você poderia dizer que chegam casos com esse diagnóstico?

 

J.M.: Nas nossas discussões e nas supervisões de casos temos aqueles que são apresentados como impasses nas discussões clínicas para vários profissionais da instituição. São casos de sujeitos que chegam desenlaçados. Pessoas muito solitárias, que já moram sozinhas, com muitas passagens ao ato, com situações de isolamento preocupantes e/ou andarilhos de população de rua silenciosos.

 

A: Como que esses casos chegam, uma vez que não têm o desencadeamento, ou seja, não têm a urgência que levaria a buscar um hospital psiquiátrico?

 

J.M.: Eles chegam pela urgência da tentativa de suicídio, por um ato ou por alguém que nota algum perigo a acontecer. Na verdade, são casos em que não ocorreu um desencadeamento no sentido clássico ou casos em que não temos uma abundância do sintoma, mas uma presença do ato, do isolamento ou de um laço tênue com o Outro. São, por exemplo, quase sempre devastados pelo alcoolismo, pelas drogas, por um retraimento social radical percebido pelas pessoas mais próximas. Ou mulheres que moram sozinhas, que já tiveram uma projeção na cidade, trabalharam com a moda, com arte ou com a escrita. Essas pessoas têm se internado aqui com frequência, o que nos preocupa. Parece-me que se trata de uma “perda da habilidade” de lidar com o outro. Trata-se de um desligamento gradual. Tem uma dimensão da errância muito presente, como tentativas de entrar nesses campos do Outro. Eu não sei se essa é uma boa palavra, mas ela sempre me ocorre quando discutimos isso: “perda da habilidade” para lidar com o outro. Pois é necessário ter uma habilidade para lidar com o significante que vem do Outro. Os tempos mudaram, os significantes da contemporaneidade são outros. A mesma coisa ocorre com os jovens que chegam aqui, também há uma falta dessa habilidade. São sujeitos solitários que chegam nas urgências psiquiátricas.

Eu me lembrei de um caso em que trabalhei, o caso da Mademoiselle B., um caso de parafrenia que Lacan entrevistou na apresentação de paciente de Saint-Anne, que tem esse ponto da errância. Não digo que são parafrênicos, mas acho que a errância é um acontecimento da pós-modernidade. Essas pessoas que vão utilizando das portas de entrada dos serviços de saúde para tentar algum laço, experimentar uma possível inscrição. É uma errância, que mais parece ser uma tentativa de se enlaçar ao Outro, mas que não se sustenta. Podemos dizer que hoje é essa a clínica com a qual trabalhamos no Raul.

Mas, retomando o ponto da psicose ordinária como uma possibilidade de pensar os casos em que o diagnóstico não fica muito esclarecido, lembro-me de escutar as pessoas dizendo que havia uma loucura que era uma loucura neurótica. Casos que chegavam ao hospital como uma loucura extraordinária, de certo enlouquecimento do sujeito, mas que não eram quadros de psicoses. Chama à atenção a questão diagnóstica, discutida por Miller nesse texto[17] sobre a psicose ordinária, ou seja, o que se torna ordinário é a psicose. A neurose, por ser extraordinária, tem que ser diagnosticada. E no campo da psicose, se assim foi definido, é preciso estabelecer um diagnóstico. Pode até ser uma parafrenia, mas há a necessidade de se fazer uma referência diagnóstica de que psicose se trata.

O ponto fundamental é essa configuração nova da clínica, que é uma psicose que não vem mais tão bem apresentada nos fenômenos elementares. Mas que tem uma posição no campo do Outro que interroga e não nos tranquiliza para liberar o sujeito. É a gravidade do desligamento. Para mim, essa é a gravidade do desligamento, essa capacidade do sujeito se desligar do Outro.

 

A: Nos casos de toxicomania, você disse que, quando esses casos chegam, os profissionais do Raul estão preferindo reencaminhar. Mas podemos pensar num link entre a droga e a psicose ordinária? Falar da função da droga nesses casos?

 

J.M.: Sem dúvida. Acho que a droga, como a melancolia – não a melancolia, mas uma posição melancólica –, como uma crise exacerbada de alguma coisa que não se sabe o que é, isso tudo é uma apresentação. O que precisamos é ter um tempo para poder localizar onde é que o sujeito está ali. Quando eu falo da toxicomania, não é “chegou craqueiro”, “chegou toxicômano”, e mandamos embora para o Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) ou para o Centro Mineiro de Toxicomania (CMT-FHEMIG). É no sentido de que, ao se localizar essa forma de gozo, nos interrogamos se é um caso para permanecer no Raul, já que existem outros dispositivos operando com outros tipos de estratégias muito mais refinadas que a nossa para esses casos – por exemplo, o CMT, que também recebe os sujeitos em crise. Mas eles não funcionam 24 horas como o Raul e o Galba Velloso. Então, se é um caso de uso devastador da droga, que coloca o sujeito em risco, eles ficam; não tem jeito. Nós somos o local da crise.

 

Ação lacaniana: uma parceria FHEMIG e IPSM

 

A: Hoje temos uma parceria entre o Instituto Raul Soares e o Instituto de Saúde Mental de Minas Gerais, instituição do Campo Freudiano. Qual o objetivo dessa parceria para o Raul? De que forma ela acontece, na prática?

 

J.M.: Eu assisti à apresentação da dissertação de mestrado, na qual Renato Diniz[18] fazia parte da banca, na Faculdade de Medicina, sobre a história do Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), mais especificamente sobre a participação do CMT no movimento da Reforma Psiquiátrica. Ele foi muito preciso ao destacar que não é possível separar, em Minas, a reforma psiquiátrica e a presença dos psicanalistas. Ele afirma que só foi possível fazer essa reforma porque tinha psicanalistas no protagonismo, e, por outro lado, que os psicanalistas só puderam entrar nas instituições operando com o discurso analítico, porque tinha uma reforma que acolhia o discurso analítico. Então, esse ponto é fundamental: a relação histórica entre a Reforma Psiquiátrica, a mudança no trabalho e também a mudança política com o portador de sofrimento mental e a inserção da psicanálise na cidade, o que Miller chama de ação lacaniana[19].

Nesse sentido, a parceria entre o Instituto Raul Soares e o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental (IPSMMG), assim como a Escola Brasileira de Psicanálise, já é antiga. Sempre estivemos presentes nas discussões do Núcleo de Psicose. E, agora, tornamos essa parceria institucional, através de um termo de parceria, inclusive. Começamos a conversa com o IPSM-MG sobre a importância do trabalho clínico e sobre a formação tanto dos alunos do instituto quanto dos profissionais da rede estadual, pois é o objeto nosso cotidiano. Essa clínica tem mudado e é necessário pensar novas formas de manejo. Assim, essa parceria estendeu-se para outras instituições da rede estadual FHEMIG: Centro Psíquico da Infância e Adolescência – CEPAI, Centro Mineiro de Toxomania – CMT, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena e Hospital Galba Velloso. Queremos que essa parceria se estreite, porque ela produz boas coisas. É um casamento que produz textos e artigos, produz seminários, produz fóruns clínicos, produz trabalhos para as Jornadas. Vejam esta entrevista! É uma em que posso explicar o projeto da urgência, pensar a psicose ordinária nas portas de entrada. Essa parceria possibilita, entre outras atividades, a presença de psicanalistas, docentes do IPSM, nas discussões de casos clínicos e nas apresentações de pacientes – estas, sempre conduzidas por um psicanalista de fora da Unidade Hospitalar –, assim como no planejamento de seminários teórico-clínicos. Destacamos que essas práticas promovem um avanço na condução do tratamento e na formação dos jovens analistas do IPSMMG.

Gostaria de concluir ressaltando a disposição para o trabalho clinico institucional das equipes atuais do IRS, que acolhem e trabalham a partir do caso e de seu caminho pela Rede. É o caso que orienta, e a atual Direção Clínica do Instituto Raul Soares obedece à direção indicada pelo caso e organiza, a partir dele, seu projeto clinico assistencial.

 


[1] Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise, Gerente Assistencial do Instituto Raul Soares.
[2] Francisco Paes Barreto. Psiquiatra, psicanalista, membro da EBP e da AME. Pertenceu ao quadro de preceptores da Residência de Psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[3] Antonio Benetti. Psiquiatra, psicanalista. Pertenceu ao quadro de preceptores da Residência de Psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[4] Antonio Simoni. Psiquiatra, psicanalista. Pertenceu ao quadro de preceptores da residência de psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[5] João Batista Magro. Médico e psicanalista.
[6] Célio Garcia. Psicanalista, membro da EBP, professor aposentado da UFMG.
[7] Autor de “Nos porões da loucura”, obra que denunciou a situação trágica dos hospitais psiquiátricos em Minas Gerais.
[8] Instituição Psicanalítica de Belo Horizonte
[9] Instituição Psicanalítica de Belo Horizonte Fundada nos anos 80.
[10] Ana Marta Lobosque. Psiquiatra, pertenceu ao quadro de preceptores da residência de psiquiatra do IRS-FHEMIG.
[11] Miriam Abou-Yd. Psiquiatra, pertenceu ao quadro de preceptores da residência de psiquiatria do ISR-FHEMIG. Foi coordenadora de Saúde Mental das secretarias municipal e estadual de MG.
[12] FHEMIG – Fundação Hospitalar de Minas Gerais.
[13] Internações ordenadas por ordens judiciais.
[14] Residências terapêuticas, serviços residenciais que recebem usuários de os serviços de saúde mental para moradia.
[15] Hospital João XXIII. Hospital de urgência da rede FHEMIG.
[16] Psicoses ordinárias – termo introduzido por Jacques Alain Miller no final dos anos 90.
[17] MILLER, J.-A. Lições sobre a apresentação de doentes. In: ______. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p.138-149.
[18] Renato Diniz. Psiquiatra, psicanalista e preceptor da residência de psiquiatria do IRS-FHEMIG.
[19] MILLER, J-A. Conclusão do PIPOL V. Site Enapol: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento/Conclusion-de-PIPOL-V_Jacques-Alain-Miller.html



Catálogo De Textos: Sobre As Psicoses Ordinárias E As Outras

ALMANAQUE

Catálogo de textos: Sobre as psicoses ordinárias e as outras

 

A Equipe do Almanaque elaborou uma seleção de referências sobre o tema do próximo Congresso AMP – “A psicose ordinária e as outras, sob transferência” -, que se realizará em Barcelona em abril de 2018.

A fim de orientar os estudos e produções acerca do tema, esta bibliografia percorre textos clássicos de Freud, escritos e seminários de Jacques Lacan, bem como a produção de autores contemporâneos de orientação lacaniana como Jacques-Alain Miller, Éric Laurent, Jean Claude Maleval, e outros.

Boa leitura!

 

Associação Mundial de Psicanálise-Comitê da Escola Una. (2017). PAPERS 7.7.7 Rumo à Barcelona 2018: As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência. Disponível em: https://congresoamp2018.com/wp-content/uploads/2017/05/PAPERS-7.7.7.-N%C2%B01-Portugu%C3%AAs.pdf

Alvarenga, E. (1999). Estabilizações. Revista CURINGA, n. 14. Belo Horizonte:EBP-MG, p.18-23

Alvarenga, E. (2000). Psicoses freudianas e lacanianas. Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, n. 28.

Alvarenga, E. (2016). O imaginário, o inconsciente e o corpo falante. Derivas Analíticas, n. 4. Disponível em: http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-3/universal

Arenas, A. (2006). A angústia: assunto topológico. Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, n. 45.

Batista, M.C.D.; Laia, S. (Orgs). (2010). Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum.

Batista, M. C. D. e Laia, S. (Orgs). (2012). A psicose ordinária: a convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum.

Beneti, A. (2006). Psicoses cínicas. Papéis de Psicanálise: As pequenas invenções psicóticas. Belo Horizonte: IPSM–MG, Ano. 3, n. 2, p. 25-30.

Beneti, A. (1996). Interpretação na psicose ou manobras na transferência? Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, n. 15, p. 89-95.

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Brodsky, G. (2011). Loucuras discretas – um seminário sobre as chamadas psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Scriptum.

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Em Direção A Uma Generalização Da Clínica Dos Signos Discretos

YVES VANDERVEKEN

 

Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos[1]

YVES VANDERVEKEN

 

“A psicanálise muda. É um fato” (MILLER, 2016, p. 26). Essa é a constatação que Jacques- Alain Miller faz, em seu texto de apresentação do tema do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que aconteceu no Rio de Janeiro em abril de 2016.

 

De uma transformação do inconsciente…

 

Essa constatação traz, ou mesmo se deduz, de uma transformação do inconsciente. Jacques Lacan a havia antecipado em seu ensino. Ele acabou por abandonar o termo inconsciente para substitui-lo pelo neologismo falasser – em condições melhores de representá-lo. Essa transformação tem sua origem na mudança de época e daquilo que decorre como mutação da estrutura do Outro. Ora, é justamente no Outro que o sujeito encontra as coordenadas de seu inconsciente.

 

É a questão do recalque que se encontra no cerne mesmo dessa mutação. Nascida na época vitoriana, em um contexto de quintessência da repressão sexual, a psicanálise se pratica hoje em um contexto de liberação dos costumes, do direito ao gozo e de um acesso generalizado à pornografia. Para além do complexo de Édipo, que ele não deixará de desconstruir ao longo de seu ensino, não é à toa que Lacan isolará a estrutura mitológica de Hamlet na medida em que ela se distingue daquele. A distinção entre o Édipo e Hamlet diz respeito justamente à questão do recalque. Lacan insiste: lá onde o Édipo não sabia, onde as coordenadas de seu crime eram recalcadas e não sabidas, Hamlet, ele sabe. É nesse ponto de distinção que Hamlet aparece como sendo mais propício do que o Édipo a incarnar a estrutura da questão neurótica de hoje. O importante é perceber a que se refere esse saber revelado, essa é a questão a ser delimitada. Eu usarei esta conferência[2] para isolar essa resposta, como ponto final.

 

Mas digam-me: inconsciente, recalque, complexo de Édipo, não são justamente nessas referências que se fundamentam as distinções entre nossas grandes estruturas clínicas – e a partir das quais situamos a orientação do tratamento?

 

Sem dúvida, nossa prática se orienta, a partir de hoje, menos pela questão do recalque e de sua suspensão em termos de verdade revelada do que pelo impacto do significante sobre o gozo do corpo enquanto tal.

 

…E de seu impacto

 

O que acontece, nesse contexto remanejado, com as nossas referências e categorias clínicas? As coisas devem ser novamente definidas, os contornos devem ser constantemente redesenhados. Isso é tudo, menos simples. É nesse contexto que orientarei esta conferência de abertura do ano de trabalho da London Society da New Lacanian School.

 

Trataremos aqui de questões clínicas e das dificuldades que podemos encontrar nessa clínica a partir de nossas referências clássicas. Através do que se apresenta como questões diagnósticas, colocam-se também questões muito concretas.

 

Em psicanálise, além do diagnóstico enquanto tal, apoiamo-nos em referências clínicas diferenciais. Por que? Justamente porque elas são determinantes para orientar nosso ato e a direção do tratamento.

 

Somos classicamente formados para saber que o tratamento de um sujeito psicótico não se orienta como o de um sujeito neurótico. É por isso que nossas referências diagnósticas importam, mesmo que, ao desenharmos grandes linhas estruturais, configurações precisas das coordenadas subjetivas, elas não digam nada sobre o que representa a singularidade de um sujeito.

 

É um paradoxo lógico que sustentamos, diante do qual não recuamos: duas verdades opostas podendo ser verdadeiras ao mesmo tempo. Tudo depende do ângulo pelo qual abordamos o real em jogo. Foi apoiando-se em um tal paradoxo que Lacan pôde dizer que nada se parece menos com um neurótico obsessivo – uma categoria geral e universal – do que um outro neurótico obsessivo – uma singularidade absoluta. É o que torna a relação entre o singular e o universal ao mesmo tempo tão necessária, mas também tão precária.

 

A abordagem do real clínico por um viés pode ser radicalmente diferente de sua abordagem por um outro, sem que um anule, no entanto, o outro – assim como a segunda tópica freudiana não anula em nada a primeira, ou, ainda, o último ensino de Lacan não põe um fim ao seu primeiro.

 

J.-A. Miller não hesita em nos convidar a fazer “remendos” a partir dos diferentes tempos dos ensinos freudianos e lacanianos porque eles nos permitem tomar conhecimento, visto que são verdadeiros, de um real que a verdade só consegue alcançar por partes.

 

Nessa perspectiva, nós nos permitimos, por exemplo, apoiar-nos, ao mesmo tempo, em uma clínica binária, descontinuísta, e em uma clínica continuísta, tomada por um outro ângulo. Fazemos as duas; às vezes até as duas ao mesmo tempo. As duas são importantes, cabe a nós precisá-las.

 

O binário neurose clássica ou psicose desencadeada: sua eficácia, um limite

 

Por um lado, apoiamo-nos em uma clínica diferencial que se baseia no binário neurose/psicose. Podemos reduzi-la a esse binário, pois a categoria de perversão está sujeita à contestação. Ela está caindo em desuso, devido ao fato de que as coordenadas da nossa época são, enquanto tais, perversas, e sem contar, voltaremos a isso, com a natureza perversa em si da sexualidade do falasser.

 

Esse binário clínico oferece uma base inestimável. Mas ele é também rígido e restrito. Ele repousa sobre “um ‘ou isso, ou aquilo’ absoluto” (MILLER, 2015, p. 3). Foi preciso que constatássemos que toda uma parte da clínica não entra nessa dicotomia neurose clássica/psicose desencadeada, se radicalizamos as coisas. Nem sempre é fácil decidir a partir dessa referência diagnóstica, e isso, às vezes, depois de vários anos de análise.

 

Essa dimensão não satisfatória, não discriminante do binário clínico neurose/psicose, é abordada há vários anos em nosso Campo Freudiano, através do que podemos chamar de um verdadeiro programa de pesquisa. O sintagma “psicose ordinária” encontra sua origem nessa dificuldade. Ele encontra aí sua origem, para ultrapassá-la. Ele é oriundo – ou melhor, construído – por J. -A. Miller a partir do último ensino de Lacan.

 

O impasse borderline

 

A “psicose ordinária” é uma resposta à categoria borderline, tão desenvolvida no mundo anglo-saxão, essa categoria borderline sendo, ela mesma, uma tentativa de resposta a essa mesma dificuldade clínica. Entretanto, lá onde a categoria borderline supõe uma terceira estrutura clínica (nem neurose, nem psicose) – o que só faz multiplicar os impasses das estruturas clínicas –, o sintagma “psicose ordinária” insiste em fazer fundo ao binário neurose e psicose – para finalmente subvertê-lo, ou mesmo ultrapassá-lo. Um pouco sob a modalidade de um “prescindir dele, servindo-se dele” (LACAN, 2007, p.132), é precisamente o que Lacan acabará por dizer do Nome-do-Pai.

 

Classicamente, J.-A. Miller indica que havia uma certa diferenciação “supostamente absoluta entre a neurose e a psicose” (2015, p. 4). Se não fosse uma, seria a outra, e vice-versa. Essa dimensão de diferenciação absoluta apoiava-se em um verdadeiro “credo lacaniano” [dixit também J.-A. Miller]: aquele da foraclusão do Nome-do-Pai.

 

A função do Nome-do-Pai se apoia naquilo que hoje é comumente definido sob o sintagma ordem simbólica. Os padres da Igreja, assim como todos os tipos de conservadores, retiveram apenas essa dimensão do ensino de Lacan, a ponto de se referirem a ela para tudo. Ora, é importante compreender o que esse Nome-do-Pai recobre no ensino de Lacan.

 

Lacan percebeu sua carência, precisamente na psicose desencadeada. Foi a partir daí que ele elaborou o conceito da foraclusão. Do que se trata? J.-A. Miller situa novamente a hipótese que conduz a ela em seu texto “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária” (MILLER, 2015) que pode constituir em si um argumento para nosso próximo congresso da New Lacanian School.

 

A hipótese do Nome-do-Pai

 

Lacan parte da experiência de que, nos primeiros tempos da chegada do infans ao mundo, há uma vivência de um sujeito às voltas com um espaço desorganizado, movente, não estruturado, onde predomina a experiência subjetiva do corpo fragmentado, inteiramente submetido às forças pulsionais e às significações fora de sentido. É um mundo em que o eu do sujeito e o Outro estão indistintos. Lacan não desistirá nunca dessa hipótese de partida da subjetividade humana. Ele situa a prematuridade do filhote do homem como sua causa.

 

Nessa configuração e no classicismo do mundo à moda antiga, a mãe, ou seu substituto, vinha sustentar essas características, já que ela era supostamente a figura do primeiro representante encarnado desse Outro. O desejo da mãe era a manifestação primária, para o infans, dessa força pulsional e da figura desse Outro desorganizado, pulverulento, ilegível e fora de sentido. Um mundo, uma experiência de gozo fora de sentido e enigmática habitavam a figura do Outro materno. É uma experiência subjetiva precisamente idêntica àquela encontrada pelo sujeito psicótico depois de seu momento de desencadeamento.

 

No segundo tempo desse desenvolvimento, Lacan situa a entrada do simbólico nesse mundo, como vindo para organizá-lo, para colocar ordem nesse imaginário e nesse gozo sem rédeas. O simbólico vem regulá-los, pelo menos para definir suas leis e seus interditos. Essa figura supostamente natural, que surge como terceiro entre este, o infans e esse Outro desregulado, e que nessa construção supunha-se organizar o que está desorganizado por natureza, quem mais poderia ser, nesse caso, senão o pai, enquanto representante da lei e de sua suposta ordem simbólica?

 

É a ideia de que há um Outro desse Outro primeiro, que tem como função vir dominá-lo, limitá-lo, definir sua organização e, principalmente, dar-lhe um sentido, torná-lo legível. Trata-se da função ordenadora do Nome-do-Pai, sob a condição de que ele venha nomear e organizar o desejo supostamente desorganizado da mãe. Ele se faz de destinatário, isto é, ele vem se definir como o que causa o desejo materno, e desde então lhe dá sentido. É uma operação de metáfora, que Lacan chamará de paterna. É uma operação metafórica, a partir do momento em que ela vem dar sentido a um x, uma incógnita situada no cerne do desejo, enquanto gozo. Essa é a formalização que Lacan dá ao complexo de Édipo freudiano.

NP

DM

Essa operação produz um efeito. A operação do simbólico, ao organizá-lo, estanca o desencadeamento pulsional. Supõe-se que essa operação o limite. Nesse sentido, ela produz um efeito de perda, tanto quanto de localização. É o que quer dizer “a castração”, ou, ainda, “o menos phi”, “uma subtração de gozo” (MILLER, 2015, p. 6), lá onde, na psicose, ela se apresenta como não localizável, não limitada, e desde sempre “em excesso”. O órgão peniano se faz o depositário e o representante desse gozo a partir daí regulado por uma lógica fálica. Ele é o órgão precisamente apto a encarnar esse gozo marcado por um mais ou um menos. Ele tem seu significante: o falo.

 

É uma construção, se nós a separarmos – a modernidade obriga – dos atores que são a mãe e o pai, extremamente robusta e clinicamente pertinente, pelo menos enquanto função e estrutura. Uma parte do gozo é interdito, passa sob a barra, instalando o recalque, uma perda e a limitação do gozo.

 

É precisamente essa função que o Presidente Schreber tenta restabelecer, depois de seu desencadeamento que desorganiza todas as significações do mundo e sua relação com o corpo. Ele tenta restabelecê-la de um outro modo, que nós diremos delirante, a fim de tecer novamente e dar um outro sentido aos fenômenos que o assaltam, no ponto em que a significação paterna se mostra foracluída. A causa desses fenômenos é, daí em diante, Deus (nova figura de um pai), ele próprio tornando-se o objeto de gozo desse Deus. Toda uma nova construção complexa elabora e determina as vias em condições de explicar, e legíveis para ele, o que ele experimenta como fenômenos de gozo desenfreado e não localizável falicamente. É seu trabalho de elaboração, assim como de interpretação. É por isso que Lacan qualifica essa operação de metáfora delirante, na medida em que ela vem suprir a foraclusão da metáfora paterna, e isso precisamente na linha freudiana, que já compreendia o delírio como uma tentativa de cura.

 

A carência paterna neurótica

 

Eu dizia que essa construção era robusta. No entanto, ela não conduzirá Lacan a uma religião do pai. E isso por várias razões.

 

Lacan só constrói a lógica da metáfora paterna na medida em que ela se revela, digamos, a céu aberto, sem recalque, como faltante, ou mesmo carente, na psicose desencadeada. Mas, logo depois que sua construção é feita como não operando na psicose, Lacan se encarrega de demonstrar, pela clínica, a generalização da carência da metáfora paterna em relação ao gozo, e isso para todo o campo da clínica: a saber, que nem tudo do gozo passa pelo crivo fálico e pela lógica da metáfora paterna, que nem tudo do gozo se deixa negativar.

 

É o que demonstra o neurótico Pequeno Hans. Em seu próprio corpo, em relação à vida de seu órgão peniano, a significação paterna e fálica, não consegue explicar o Krawall que aí se manifesta. Ele também tem que recorrer a uma construção paliativa: o significante fóbico, na medida em que ele vem em seu socorro para poder significá-lo.

 

É também nessa falha que se situa o que produz o encontro traumático de Hamlet. Bem além da morte real de seu pai, é justamente com a parte do desejo de sua mãe que não responde, ou melhor, que excede e transgride a lei do pai, que ele se debate. É o traumatismo eletivo do neurótico obsessivo: o encontro da mãe com sua feminilidade que não se reduz ao materno, se articula com a relação ao pai. Lacan zomba do esforço de Hamlet, que ele considera patético, em querer fazer entrar o desejo de sua mãe não referido ao pai no nível da decência. É o encontro com esse ponto que mergulha Hamlet no luto do pai, bem além de sua morte, e precisa do apelo de todo o jogo simbólico – o trabalho dito de luto – para fazer face à sua carência encontrada no buraco que perfura, no limite fálico, o gozo feminino. Ele construirá para si uma fantasia pessoal, em condições de responder sua própria versão da coisa: a saber, que nenhuma palavra vale e que há, desde então, “algo de podre” (SHAKESPEARE, 1995, p. 547) no mundo – eu acrescento: no mundo suposto da ordem simbólica. É o grande segredo que Lacan acabará por revelar aos próprios psicanalistas: a saber, que “não há Outro do Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 322) em posição de normalizar o gozo, de conseguir dar-lhe um sentido.

 

A compensação generalizada

 

Em uma outra vertente, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose, que só se revela por seu desencadeamento, conduz à dedução lógica de que outra coisa, antes, ficava no lugar, como uma bengala, uma compensação; assim como a metáfora delirante indica ao mesmo tempo que alguma outra coisa pode exercer essa função depois.

 

A metáfora delirante, a psicose compensada e não desencadeada, assim como a fobia de Hans ou a fantasia de Hamlet, demonstram seu caráter de construção ou de tentativa de construção simbólica sobre o real, que faz objeção a eles. Nesse contexto, toda construção simbólica, na medida em que visa a dar sentido a alguma coisa profundamente fora de sentido, tem a estrutura do delírio e do religioso. Para dizê-lo de maneira mais leve, isso relega a significação paterna e fálica do gozo a uma significação possível, dentre outras. Ela perde então sua primazia. É o que a clínica demonstra.

 

O fim do ordinário neurótico?

 

Isso interroga a neurose. Em setembro de 2015, o Kring voor Psychoanalyse van de NLS iniciava em Gand um ciclo de conferências sob o título “A neurose de hoje é assim tão ordinária?”[3]

 

A neurose tinha, no início do ensino de Lacan, uma conexão com a normalidade; pelo menos a psicose derivava dela. Essa última era uma variação, pelo modo da carência, da estrutura considerada como fundamental da neurose, da normalidade e maturação que encarnava o complexo de Édipo. No tempo da potência dos grandes discursos da tradição – o pai é isso –, que são finalmente tantas prescrições ensinadas e transmitidas para saber como fazer com o gozo, com a sexualidade, com o ser homem e mulher, etc., a neurose era considerada como a normalidade. Nesse sentido, ela era o ordinário. Certamente, a neurose era o preço a pagar pela lei do pai e pela tradição, com toda a série de sintomas que tornaram necessárias e conduziram à invenção da psicanálise. Mas nós tínhamos então prescrições para saber fazer com o gozo, que retiravam mais ainda sua força do fato de que eles imitavam o dito e o suposto natural. Por seu próprio desvio, em nossas referências clínicas, dizia-se que a psicose não enganava. A psicose era clara: na medida em que não era “normal”, não era “ordinária”, ou ainda não era “típica”.

 

Desde o início da sequência do ensino de Lacan, a perspectiva mudou radicalmente.

 

Inicialmente foi a clínica que levou a demonstrar a natureza essencialmente perversa, sempre não ordinária, sua dimensão “nunca a boa” e “nunca a necessária” da sexualidade humana. É o que o retorno do recalcado do sintoma neurótico dizia, significava, ou mesmo gritava, de algum modo.

 

Hoje, a desconstrução dos grandes discursos, sob o efeito conjugado da ciência, do capitalismo, da democracia – e ousemos acrescentar, da psicanálise – acabou por desnudar sua natureza de semblantes. Foi justamente sua única natureza de tradição que foi revelada, em relação a uma sexualidade que, no ser humano, não é de forma alguma natural ao passar pela linguagem. O grande edifício falocrático da lei do pai, que é tudo, menos igualitário e democrático, foi contestado e rejeitado por toda parte. Ora, a rejeição ao pai é precisamente o que constituía o elemento determinante da psicose (MILLER, 1987).

 

A lei do pai, que dá acesso ao gozo num contexto de interdição, aparece desde então como uma modalidade, dentre outras, de tratamento do gozo. Digamos ainda: um modo de gozar, particular, onde isso se goza da interdição, outros modos podendo ser possíveis.

 

O ordinário da foraclusão generalizada

 

A psicose ordinária é um sintagma que nasceu dessa mudança de perspectiva. Ele faz da neurose um caso inteiramente particular sobre um pano de fundo, em que a estrutura da psicose domina e é primeira. O ordinário se traduz em termos de foraclusão generalizada na medida em que falta no Outro o significante que venha significar o gozo, e isso, para todo ser falante.

 

Mesmo que ela continue a se fundamentar no binário neurose/psicose, entramos aqui para nos orientar numa abordagem clinica mais continuísta.

 

Poderíamos representar essa nova perspectiva clínica como uma curva de Gauss. Em uma de suas extremidades, está a psicose desencadeada com todos os seus fenômenos de desconexão, fenômenos de corpo e do significante. De acordo com as nossas primeiras referências clinicas, é uma dimensão que, quando a encontramos, não nos engana. Mas, na outra extremidade dessa hipotética curva de Gauss, temos também alguma coisa que, particularmente na atualidade, não engana: a neurose. É o que me ensina minha experiência de psicanalista. O ordinário, se vocês quiserem, torna-se de algum modo um “entre-dois”. Nas duas extremidades do campo clinico, vocês estão no extraordinário, vocês estão no claro, no binário. O ordinário diz respeito a um registro mais difícil: o da tonalidade, dos indícios, em que as oposições são menos formais.

 

O que não engana na neurose

 

O efeito da mudança nos discursos nos obriga a uma afinação do conceito de neurose. Em “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária”, J.-A. Miller (2015) é claro. A neurose é algo preciso, muito construído. Ela traz nela algo que não engana. É nesse sentido que ela traz, como ele diz, uma assinatura. Ele utiliza outros termos: é uma formação que apresenta uma estabilidade, uma constância. Há uma repetição da neurose. Em termos estruturais, de arquitetura geral se vocês quiserem. J.-A. Miller precisa o que é necessário ter para estar na presença desta construção tão singular que é uma neurose: ele fala mesmo de “critérios”. Eu o cito:

 

Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: de uma relação ao Nome-do-Pai — não um Nome-do-Pai — vocês devem encontrar algumas provas da existência do menos fi, da relação à castração, à impotência e à impossibilidade; é preciso ter — para utilizar os termos freudianos da segunda tópica — uma diferenciação nítida entre o Eu e o Id, entre os significantes e as pulsões, um Supereu claramente traçado. Se não há tudo isso e outros sinais, então não se trata de uma neurose, é outra coisa (MILLER, 2015, p. 13-14).

 

Isso é forte! É preciso se curvar a isso, a essa disciplina e a essa precisão. Não estou certo se tiramos sempre todas as consequências clínicas disso.

 

Aliás, a imagem da curva de Gauss não é aqui satisfatória. O “entre-dois”, nessa lógica, deve ser situado ao mesmo tempo, de um lado. Se não for uma neurose, é uma psicose – a compreender, já que isso se apoia no binário, que não é uma neurose.

 

Sob o efeito da desconstrução dos discursos da tradição – o Nome-do-Pai sendo colocado na categoria de um dos semblantes dentre outros –, tende-se a generalizar a dimensão encontrada na clínica de um semblante compensatório que possa funcionar.

 

A categoria epistêmica da psicose ordinária…

 

Retornemos ao campo clínico. No registro da psicose ordinária, como a psicose não está desencadeada, já que ela não é nítida e não é uma neurose, é preciso supor que alguma coisa faz função ou serve como Nome-do-Pai, na medida em que ele estabiliza e enlaça os diferentes registros – do corpo e do significante – sem que seja o Nome-do-Pai. Um outro elemento, não típico, exerce essa função.

 

J.-A Miller constata que

 

Isso introduz uma mudança de estatuto para o Nome-do-Pai. Nos textos clássicos de Lacan, utiliza-se o Nome-do-Pai enquanto nome próprio. Quando se pergunta: “O sujeito tem o Nome-do-Pai ou há a foraclusão do Nome-do-Pai?”, utiliza-se logicamente o Nome-do-Pai como nome próprio, o nome próprio de um elemento particular que é chamado o Nome-do-Pai.

Seguindo a ideia da ordem simbólica delirante, pode-se dizer que o Nome-do-Pai, não é mais um nome próprio, mas um predicado definido na lógica simbólica.

Um tal elemento funciona como um Nome-do-Pai para o sujeito. Esse elemento é o princípio que ordena seu mundo. Isso não é o Nome-do-Pai, mas tem essa qualidade, essa propriedade (MILLER, 2015, p. 8).

 

Podemos então ter um quadro clínico que pode se assemelhar a uma neurose, apesar de não ser uma. É precisamente nesse singular entre-dois – que não é, portanto, um – que é convocada e deve ser desenvolvida toda uma fineza e uma riqueza clínica. Longe de se constituir como uma zona indefinida, de um não-saber, isso obriga e produz um apelo na direção de um refinamento cada vez maior de nossas referências clínicas. Inversamente ao que não está nítido, ou de uma zona onde tudo cabe, há uma convocação a um maior rigor. É precisamente aí que todo o saber da distinção clínica é convocado.

 

…E seu apelo a um saber clínico renovado

 

É um programa de pesquisa, um work in progress. As indicações de clínicas diferenciais que J.-A. Miller abre em seu texto são um recurso muito precioso. Nesse registro em que a clareza dos traços do grande binário clássico psicose desencadeada/neurose está ausente, somos confrontados com a necessidade de produzir distinções que não pertencem ao registro dos grandes traços, mas do detalhe, da distinção fina. J.-A. Miller utiliza ainda outros termos que tentam descrever o que é exigido aqui: é uma clínica dos “pequenos indícios variados” (MILLER, 2015, p. 5). Não estamos, nesse campo circunscrito pelo sintagma “psicose ordinária”, no registro de uma “definição rígida” (MILLER, 2015, p. 2). Não é uma clínica da categoria “objetiva” (MILLER, 2015, p. 4), é uma clínica da “categoria epistêmica” (MILLER, 2015, p. 5) que está à procura de uma “sinalização[4]”. Resumindo, é uma clínica do registro dos “signos discretos”! Anuncio aqui o que está em jogo e a envergadura do título do próximo congresso da New Lacanian Scholl: “Signos discretos nas psicoses ordinárias. Clínica e tratamento”. Ele acontecerá este ano, no começo de julho e também pela primeira vez em Dublin – cidade cujo laço com a psicanalise lacaniana é evidente através de James Joyce, cuja figura está precisamente na origem de uma nova abordagem da clínica e do sintoma para a psicanálise lacaniana.

 

É interessante notar que, em francês, o termo “discreto” (discret) comporta uma dupla significação das mais interessantes, que não “passa” pelo inglês. Ele significa o que não se mostra facilmente, o que é pequeno, o que não é evidente – quase escondido -, mas ele comporta também a significação, em outros registros, daquilo que determina, aquilo que dá a assinatura e decide.

 

Partir da não-relação

 

Resultado de uma necessidade clínica que o sintagma “psicose ordinária” tenta delimitar, essa lógica clínica dos signos discretos, das “tonalidades” a encontrar e precisar se inscreve em uma lógica que nos cabe ampliar. Por causa da mutação da estrutura dos grandes discursos, é uma lógica que acaba por concernir o conjunto do campo da clínica. Situo aí a envergadura do próximo congresso da NLS.

 

Nós escorregamos, oscilamos, entramos em um contexto de binaridade, em uma clínica que se inscreve também, pouco a pouco, em um registro continuísta.

 

É um registro de distinção clínica que acompanhada de um traço geral, comum a todo ser falante, que é experimentado por todos. Em seu texto, J.-A. Miller aponta esse traço comum como uma discordância. Uma discordância experimentada por todos, no registro ou na relação com o ser, com o sentimento de ser. Para se referir a esse traço, ele lança mão de uma expressão originada nos primeiros tempos do ensino de Lacan, que diz respeito precisamente à psicose desencadeada: “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565). Trata-se de um sentimento de alguma coisa que não vai bem, que não se encaixa, não anda como deveria. De fato, se fizermos referência aos termos mais tardios de seu ensino, veremos que se trata de uma “não-relação”. Essa não-relação resulta da conjunção ou do encontro do registro do corpo, portanto, do imaginário, e o registro do significante, o simbólico. Esse encontro estrutural provoca uma “desordem”, que produz uma não-relação – nos deparamos com o encontro dos registros imaginário e simbólico que serviam de base para a construção edipiana, tomada aqui de outra maneira. Sim, mas se a não-relação é experimentada por todos, em que modalidade ou tonalidade ela se declina? Em que registro, por exemplo, ela se manifesta mais eletivamente?

 

Essa última questão permite situar uma primeira distinção: entre histeria e obsessão. J.-A. Miller (2015, p. 9-10) precisa: o sujeito histérico experimenta essa desordem, mais precisamente, na relação com seu corpo, e o sujeito obsessivo mais eletivamente na sua relação com as ideias.

 

Sim, mas – precisão suplementar necessária – quando essa discórdia se inscreve prioritariamente no registro da relação identificatória narcísica com o corpo próprio, quando essa relação não é ”suficientemente boa” (MILLER, 2015, p. 4), quando ela se manifesta pelo sentimento de não ter corpo, quando a relação com o corpo se inscreve em uma dimensão de “derrota” (MILLER, 2015, p. 4), isso tudo faria parte do campo histérico e do sentimento de vazio que os sujeitos podem experimentar em si, ou isso denotaria uma relação com o “buraco psicótico” (MILLER, 2015, p. 4)? O que, nesse último caso, revela que nenhuma marca da identificação simbólica grampeia o corpo, e denota, dito de outro modo, uma disjunção total dos dois registros do corpo e do significante.

 

Do mesmo modo, quando nos situamos no registro da relação discordante com o pensamento, podemos nos perguntar se o sujeito mantém uma relação muito erotizada com o pensamento, se ele está sobrecarregado por seus pensamentos de forma obsessiva – o que J.-A. Miller lembrava recentemente (Bosquin-Caroz, 2015), que ele apresentava então uma estrutura extremamente construída, decorrente de um edifício muito complexo, como para o Homem dos ratos e a análise estrutural que Lacan (2008) desenvolve sobre ele em O mito individual do neurótico? Ou, ainda, podemos nos perguntar se isso vai até o sentimento de que seu pensamento, de uma forma ou de outra, é influenciado, por exemplo? Ou se ele acontece de maneira autônoma, nas modalidades do automatismo mental? Ou ainda se ele é habitado pelo sentimento de ser manipulado por um Outro exterior ao sujeito – o que faz parte então precisamente do registro psicótico?

 

O prescindir, se servir do binário clínico – Da tonalidade nos registros clínicos

 

Mesmo em relação ao fato de que ainda resta uma grande oposição entre o corpo e o significante, tudo isso exige uma localização mais precisa. Nem sempre é simples decidir, exatamente quando isso não se apresenta de uma forma nítida, quando, por exemplo, uma amarração não típica dos registros evocados “vela” (MILLER, 2015, p. 4), “dissimula” (MILLER, 2015, p. 9) ou compensa os efeitos potencialmente maiores e excessivos.

 

Quando é esse o caso, é então a dimensão da “tonalidade”, da “intensidade” (MILLER, 2015, p. 9) que é exigida. É um manejo muito delicado. J.-A. Miller situa alguns registros onde ela pode ser delimitada. Eles são apaixonantes. Sua delicadeza exige que eles sejam desdobrados, refinados. O que produz, em contrapartida, um novo enriquecimento das distinções clínicas.

 

Um primeiro registro útil deve ser situado no nível da inscrição e do laço social do sujeito. Por esse registro, não se trata de promover a inserção social, do mesmo modo que também não se trata de erigir sua rejeição como ideal. Mas, com relação a esse registro, o que poderia ser lido nele de particular em um dado sujeito? Mais precisamente, que indícios poderiam ser lidos na maneira como ele se identifica com sua função social? Mais precisamente ainda, que tipo de “relação negativa” o sujeito manteria com ela? Aqui também há um desacordo para todos. Mas de que tipo seria ele? Seria na modalidade de uma rebelião – toque histérico? Seria na modalidade “autônomo”, do tipo “não tenho nada a ver com isso, não pense que eu acredito nisso, isso não me interessa nem um pouco, mas tudo bem…” – assinatura mais obsessiva? Ou ainda, a não inserção seria mais forte? A impossibilidade de se inscrever seria mais forte e de que tipo? Sob que coordenadas? A dificuldade de se inscrever em um laço social seria impossível, ou ela seria necessária e iria de ruptura em ruptura, até o extremo de ter que romper todo laço com o outro – assinatura esquizofrênica? Uma dificuldade relacional conduziria à necessidade de tomar distância a cada vez, até, às vezes, de maneira vital, ter que colocar vários quilômetros entre as coisas – esse número de quilômetros sendo, literalmente, proporcional à distância subjetiva que o sujeito precisa para não ser capturado pelo Outro? Que facilidade teria o sujeito com a ruptura, lá onde certos neuróticos se fixam por anos, e têm uma angústia diante da ideia de qualquer mudança? Ou, ainda, no outro extremo da tonalidade identificatória, esta seria completamente fora da dialética? Ela apresentaria uma inserção imediata sem discordância, ou ainda uma identificação completa e total com a função – o que poderia não produzir um déficit, mas justamente uma competência multiplicada nessa ocasião? Essa identificação com a posição social seria justamente a amarração atípica que permitiria ao sujeito psicótico dar a si mesmo um ser, uma posição no social, um eu e uma imagem, da qual só perceberíamos a medida “compensatória” quando a perda desse apoio real não fosse superável pelo sujeito e pudesse conduzir ao desencadeamento ou ao desligamento psicótico?

 

Temos aqui variedades que somente o binário neurose/psicose no quadro da presença ou não do Nome-do-Pai, nem sempre pode ser identificado. Antes de tudo, a ausência da função Nome-do-Pai somente se deduz a partir desses traços e da dimensão de intensidade que apresentam.

 

A mesma fineza do detalhe deve se mostrar necessária na relação com o corpo, com o sentimento de estranheza que se pode manter com ele. Nós já o evocamos brevemente. Como o sujeito habitaria, sempre de maneira mais ou menos ruim, seu corpo? Quanto a esse corpo, essa discordância apresentaria uma dimensão acabada, localizada, bordejada? Seria uma parte do corpo – o pênis, por exemplo – que escaparia ao controle e ao comando e seria objeto de todas as disfunções? Ou então ele não seria jamais atingido por elas e, portanto, não estaria submetido ao vai e vem do desejo? Essa discordância se deveria a um sentimento de impotência localizada, com relação, por exemplo, a um funcionamento ideal e idealizado? Ela seria então marcada por essa função própria do menos, do menos-phi em que se situa o registro do binário neurótico da impotência e do impossível? Ou então seria todo o corpo que escaparia? A localização seria mais fluida? As lágrimas, por exemplo, estariam ligadas a um acontecimento, fosse ele acompanhado de um sentimento de vacuidade, ou então tivesse ele um caráter radicalmente imotivado? Em resumo, J.-A. Miller diz isso de uma maneira muito bonita: é uma discordância submetida a uma imposição, no limite que impõe o menos-phi da estrutura exigida pela neurose, ou então a falha é não marcada por esse limite e apresenta uma característica muito mais insondável?

 

Os detalhes podem se multiplicar e se entrecruzar ou podem ainda se acumular. J.-A. Miller toma o exemplo da marca real no corpo, que pode constituir uma compensação à não-inscrição, à falta de marca simbólica, à não-amarração do simbólico na relação com o corpo. Não é simples elucidar o alcance disso, ainda mais com a mudança de época e o enfraquecimento justamente da força de marca de inscrição dos discursos da tradição. Alguns rituais tradicionais, por exemplo, constituíam as marcas do corpo inscrevendo-as em um registro social e dando-lhes função, eu diria, de corpo. Vemos, hoje, na era da queda desses grandes marcadores, a utilização generalizada, “democratizada”, das marcas reais no corpo: piercings, tatuagens, etc., às vezes, mesmo que raramente, nos lugares mais sensíveis deste. De que eles seriam marca? Lá onde – certamente de maneira errada – elas eram consideradas muito rapidamente como signos de psicose, não faz ainda muito tempo. Lá também é a tonalidade que informa. Seria em um registro do limitado? Ou então carregaria uma outra característica, que dá corpo ao sujeito psicótico, lá onde ele não dispõe de nenhum outro grampo para ele?

 

A questão da dialética, ou ao contrário, de uma fixidez ou insistência estranha, se coloca igualmente no nível da identificação com o objeto dejeto. Seria a relação com a falta ou com a falta da falta? A autodesvalorização, por exemplo, seria a máscara de um narcisismo e de um ideal bem enraizados, em relação aos quais o sujeito teria um jogo dialético – o que não o impediria de sofrer por isso – isso se inscreveria novamente em uma dimensão de falta, de limitação? Ou então o sujeito estaria, sem dialética, inteiramente identificado com essa falta que ele encarna? Ele chegaria até mesmo a ser, realmente, na relação com o corpo e com sua forma de se vestir, um verdadeiro dejeto? Isso aconteceria em um registro onde a tonalidade é menos marcada? Além disso, como essa identificação não dialética se manifestaria? Como tal ela conseguiria se velar-desvelar por uma afetação, uma higiene, uma forma de se vestir específica que carregaria essa marca?

 

O que aconteceria ainda, por exemplo, no registro da culpa? De que ordem e intensidade seria ela em relação a suas manifestações extremas? De tipo neurótico, ou ainda insondável, identificando-se com falta e com o objeto que acabo de evocar? Como no caso de Franz Kafka, por exemplo, na medida em que a culpa acontece, entretanto, e precisamente com ele em sua relação com o pai. Com que tipo de figura de pai o sujeito teria que se haver?

 

O que dizer da relação com a linguagem? Em sua clínica generalista, Lacan terminará por dizer que ela é um parasita para todos. Sim, mas de que forma e em quais modalidades para cada um, no singular?

 

A lista não termina. O continente é imenso. Tanto para os registros como também particularmente no seio mesmo da cada entidade clínica. J.-A. Miller toma o exemplo na psicose:

 

Vejam a diferença entre um bom paranoico, fino e musculoso, que se construiu verdadeiramente um mundo para ele e para outros, e o esquizofrênico que não pode sair de seu quarto. Nós nomeamos tudo isso psicose.

Quando se trata de uma paranoia, o make-believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido. […] Mas, há algumas, como o gênero paranoia sensitiva, que mencionei anteriormente, que não são claras, desde o início. Foi apenas após três anos de análise que o analista percebeu que alguma coisa não estava certa, que o sujeito construía, cada dia, sua paranoia. Há também os esquizofrênicos socialmente desconectados, enquanto os paranoicos são socialmente, totalmente conectados. Algumas grandes organizações são frequentemente dirigidas por psicóticos em potencial, cuja identificação é super social. O campo das psicoses é, portanto, imenso (MILLER, 2015, p. 16).

 

Sem dúvida, não é à toa que ele toma o exemplo da amplitude do campo clínico no registro da psicose, a neurose sendo provavelmente mais específica, mais “extraordinária” e, portanto, mais precisa e circunscrita.

 

O que não se distingue

 

A lista é infinita. Eu a fecharei – e isso é crucial – somente por um contraexemplo. Um registro a propósito do qual J.-A. Miller insiste que justamente ele não é pertinente, que ele não é “discreto”, no sentido de determinante, com relação às distinções clínicas: a saber, o registro da sexualidade. Não se pode basear um diagnóstico clínico apoiado nas práticas sexuais enquanto tais precisamente porque é o lugar eletivo da não-relação, em que a normalidade, o ordinário, não existem no ser falante. O ordinário, o natural, em termos de sexualidade, é o instinto. Ele é, por natureza, desregulado no ser falante. Não há “vida sexual típica” (MILLER, 2015, p. 19). É um ponto para se recordar sempre: se as práticas sexuais podem revelar, ou mesmo permitir refinar, as distinções clínicas, estando colocadas em relação aos elementos dos outros registros percorridos (relação ao corpo, etc), elas não o podem per se (por elas mesmas).

 

O ensino com o qual rompemos

 

As “pequenas chaves” (MILLER, 2015, p. 13), outro nome dos signos discretos, devem ser precisados a cada vez naquilo que podemos ler deles da relação própria para cada sujeito, tomado em sua singularidade.

 

Essa estreita fineza exigida, levada ao extremo de sua lógica, nos conduz a um mais-além da clínica binária, hierarquizada. Ela não a anula enquanto tal, mas pode fazê-la passar para segundo plano; ou mesmo, ela desloca o ângulo do modo pelo qual podemos considerá-la.

 

A clínica se orienta, assim, mais na direção da lógica dos nós borromeanos, que interessou Lacan em seu ensino tardio, a partir precisamente de J. Joyce. É uma lógica que tira todas as consequências da desorganização inicial dos campos da subjetividade humana que nós havíamos evocado como estando na base da concepção lacaniana da psicose. Lacan é levado pela clínica a generalizá-los. A mudança de estatuto no Nome-do-Pai que evocamos, de se encontrar “reduzido” a uma modalidade dentre outras, de amarrar os três registros com os quais Lacan dividiu, desde o início de seu ensino, o campo da subjetividade humana, é o que leva a isso. A lógica é invertida. É o campo da psicose extraordinária que revela o estatuto inicialmente solto e independente dos registros. Eles certamente encontraram uma modalidade típica, socialmente compartilhada, decorrente da tradição, de se atar: o modo neurótico e edipiano. Pelo fato de ser típico, ele poderia ser pensado como ordinário, e mesmo “natural”. Essa tipicidade foi diminuída e contestada até o osso.

 

O campo imenso que não diz respeito a isso, o vasto campo que nós tentamos capturar pelo registro da psicose ordinária, a psicose dita compensada e não desencadeada, o registro no qual outras amarrações se revelam eficazes, constitui o ensino de uma outra lógica com a qual devemos abrir um espaço.

 

A abordagem não é mais tanto a de se identificar o que é deficiente em relação a um standard e a uma norma suposta – de fato inexistentes. Deve-se tentar apreender e delimitar o modo flexível e em movimento pelo qual cada sujeito, em sua singularidade, se vira ou não para enodar e ligar o real que constitui a não-relação sexual, com o corpo – o imaginário – e o significante – o simbólico –, como nós começamos a fazer nas declinações dos registros clínicos. Essa amarração é, por exemplo, típica, singular ou inexistente?

 

Para dizer de outra maneira, citando J.-A. Miller, nosso trabalho é, antes de isolar e “de captar sua maneira particular, insólita, [no sentido próprio de cada um e a nenhum outro semelhante] de dar sentido às coisas, de dar sempre o mesmo sentido às coisas, de dar sentido à repetição em sua vida” (MILLER, 2015, p. 8). Isso significa, se quiserem, delimitar seu “delírio privado”, o que, em uma época, foi isolado por Lacan pelo termo fantasia fundamental, na medida em que daria o algoritmo do ser do sujeito.

 

O fenômeno clínico, ou o anti-DSM

 

Nessa lógica, o diagnóstico, particularmente o binário neurose/psicose, é grosseiro, no sentido de que ele é uma ofensa precisamente à fineza exigida. Ele é demasiado espesso, é muito abrangente. Essa lógica nos conduz menos às classificações do que ao isolamento do “fenômeno clínico” enquanto tal. Retornamos, assim, aos “signos discretos” do congresso da NLS, no ponto que podemos considerar que ele só é estreito na medida em que ele escapa às classificações conhecidas e toca na singularidade absoluta.

 

J.-A. Miller precisava, durante a última reunião da FIPA em Paris (BOSQUIN-CAROZ, 2015, p. 4-5), que os relatos clínicos de G. de Clérambault são os modelos: a saber, uma precisão rica de todos os recursos da língua, em sua dimensão literária, no ajuste do fenômeno clínico, até poder tentar dizer, e reduzir, em uma ou duas frases, o que faz o osso e a depuração para cada sujeito. É uma abordagem em que o diagnóstico não é mais dito. Ele se deduz em cada oportunidade, sem mais.

 

Observemos que são os recursos de que a psiquiatria clássica dispunha e sobre os quais ela se apoiava. Ela os perdeu em sua biologização desenfreada. A psicanálise se tornou sua depositária. Ela também tem a tarefa de reinventá-los a partir de suas próprias referências.

 

A captura por um dizer aproximado do fenômeno clínico, na medida em que ele é próprio a um sujeito, é o avesso mesmo, radicalmente, da referência do DSM. Aqui, é a singularidade absoluta que está em questão. No DSM, trata-se de um corte e de um corte e de um desfiar, por um recenseamento estatístico acéfalo de sintomatologias standards e quantificáveis.

 

Em direção a uma nova orientação do tratamento

 

Concluirei por destacar a ponta do que J.-A. Miller disse a respeito em sua apresentação do congresso da Associação Mundial de Psicanálise – referência com a qual fiz a abertura dessa conferência.

 

Uma nova inflexão de ângulo está aí ainda presente, a partir do ultimíssimo ensino de Lacan, aquele que antecipava as consequências clínicas das figuras do Outro de hoje.

 

Se a psicanálise muda, diz J.-A. Miller, é porque ela “deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera” (MILLER, 2016, p. 26). Ele precisa: não é que a ordem simbólica tenha vacilado, mas que a verdadeira mutação que ela sofreu foi o desvelamento de que ela não passa de uma articulação de semblantes, de simples construções sociais, cada dia mais votadas à desconstrução.

 

É precisamente isso, como para o ser falante de hoje, que Hamlet sabe, lá onde para Édipo era não sabido. É a natureza da dimensão de semblante do pai e de sua própria ordem que lhe é des-velada. Doravante, tudo é apenas semblante. É o que faz a errância – a época e seus errantes – do ser falante de hoje e faz também dele, fundamentalmente, um não-tolo.

 

Foi a psicanálise que veio recolocar que tudo é apenas semblante. Que existe um real, fora de sentido: aquele da não-relação, a respeito do qual o ser falante se encontra em uma posição de debilidade que o destina, em sua busca de sentido, ao delírio.

 

A esse respeito, J.-A. Miller prossegue – eu o cito brevemente, isso merece evidentemente ser desdobrado –

 

Enquanto a ordem simbólica era concebida como um saber regulando o real e lhe impondo sua lei, a clínica era dominada pela oposição entre neurose e psicose. Agora, a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas lhe é subordinada. […]

Disso resulta, se assim posso dizer, uma declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres (MILLER, 2016, p. 31).

 

Aquele que fez uma análise sabe que a respeito do real, não há nenhuma normalidade que valha – nenhum “ordinário” não é conveniente.

 

J.-A. MILLER isola um ternário que “repercute”, ele diz, aquele clássico dos registros real, simbólico, imaginário: delírio, debilidade, tapeação (duperie).

 

A única via que se abre mais além é, para o falasser, fazer-se tolo [dupe] de um real, quer dizer, montar um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crê sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é. A debilidade é, ao contrário, a tapeação [duperie] do possível. Ser tolo, tapeado por um real – que ostento – é a única lucidez aberta ao corpo falante para se orientar (MILLER, 2016, p. 31).

 

Eu acrescento: é o que se chama se fazer tolo de seu inconsciente. Uma nova definição de uma orientação do tratamento resulta disso. Ela é, contrariamente àquela que se fundamentava em nossas referências clínicas binárias, transestrutural: “Analisar o falasser demanda jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio [a decifração do inconsciente no tratamento] de maneira que sua debilidade ceda à tapeação do real” (MILLER, 2016, p. 31-32). É a esta escola que nós devemos tentar nos situar.

 

Tradução e revisão: Márcia Bandeira e Márcia Mezêncio

 


Referências
BOSQUIN-CAROZ, P. “Compte rendu de la Journée casuistique du 28 mars 2015”, Après-midi casuistique-Dossier des textes des CPCT et associations apparentées (FIPA). Paris, documente interne, abr. 2015.
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MILLER, J.-A. “Sur la leçon des psychoses”. In: Actes de l’École de la Cause Freudienne XIII, ECF. Paris, 1987.
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MILLER, J.-A. “Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016 – O inconsciente e o corpo falante”. In: AMP, Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo, EBP, 2016. p. 19-32.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1995, vol. I, p. 529-619.
YVES VANDERVEKEN – Psicanalista em Bruxelas, AME, membro da ECF e da AMP. Foi presidente da NLS. E-mail: yves.vanderveken@skynet.be
[1]Tradução da versão publicada na Revista Mental n. 35, Paris, jan/2017, p. 13-33. Uma primeira versão deste texto foi publicada no Quarto, Revista de Psicanálise publicada na Bélgica, no 112/113.
[2]Um primeiro esboço desta conferência foi feito em Gand, em 24 de setembro de 2015, sob o título, A clínica binaria e seu além. Ela se deu na abertura de um ciclo de conferências do Kring voor Psychoanalyse van da NLS sobre o tema: “é a neurose de hoje sempre tão ordinária?” Ela foi retrabalhada em sua versão aqui publicada, para a conferência de abertura do ano de trabalho da London Society da NLS, que aconteceu em Londres, em 10 de outubro de 2015.
[3]Cf. Programme de l’ACF-Belgique 2015-2016 en ligne, p. 30-31. http://www.ch.freudien-be.org/WordPress/wp/content/programme-adf-belgique-2015-2016.pdf
[4]NT: Em francês “signalétique” de acordo com o Petit Robert, significa “conjunto dos elementos de uma sinalização”, ou seja, uma referência, um descritivo, um identificador.

YVES VANDERVEKEN
Psicanalista em Bruxelas, AME, membro da ECF e da AMP. Foi presidente da NLS.



Clínica Lacaniana Da Psicose

ANGELINA HARARI

 

YVES KLEIN

 

Clínica lacaniana da psicose

ANGELINA HARARI

 

Tema abordado em dissertação em que se interessou mostrar o percurso de Lacan no tocante à psicose, isto é, o que se passou entre a marca estruturalista recebida de Clérambault e a clínica universal do delírio. Adotamos como fio condutor o conceito não deficitário da psicose. Nessa ótica, a retirada do índice negativo da psicose une o percurso de Lacan dos anos 1930, em que sua abordagem encontra eco no meio surrealista, à inversão ocorrida nos anos 1970, quando propõe a foraclusão generalizada como modelo do núcleo real de todo sintoma, servindo-lhe a topologia do nó borromeano para reformular o conceito de estrutura (HARARI, 2006). Para dar conta de entendermos o último ensino de Lacan, James Joyce, eleito como o paradigma de sua última clínica, nos obriga a nos debruçarmos ainda mais sobre a psicose. O conceito de sinthome coincide com a definição estabelecida para o sintoma psicótico: interseção entre simbólico e real por fora do imaginário, na qual um elemento do simbólico, sozinho, não encadeado, desloca-se para o registro do real como letra.

 

Quando abandona a clínica mecanicista, privilegiando a abordagem não deficitária da psicose, enfatizando a clínica universal do delírio, Lacan visaria a uma prática da psicanálise sem a ficção dos universais conforme o “ultimíssimo ensino em que a universalização do significante é o que impede que a singularidade de um sujeito seja circunscrita na fala” (VORUZ, 2017).

 

Nessa vertente, introduzir o tema do XI Congresso da AMP e abordar a psicose ordinária, não sem as outras, tem como objetivo somar-se ao esforço contínuo de elucidação da prática lacaniana que, quando não se trata de abordagem via casuística ou via discussão de uma apresentação de pacientes, ou, ainda, via o Ensino do passe, exige demonstração de fundamentos.

 

Partiremos da Conferência no Rio, de Jacques-Alain Miller, “Habeas corpus”, isolando as seguintes referências: o objeto a – como aporte e solução encontrada por Lacan durante muitos anos; o objeto a – degradê, como uma modelagem do gozo no modelo significante, e o parlêtre por natureza. Do percurso que vai do objeto a como o aporte lacaniano, por excelência, sua degradação para abrir a via ao parlêtre por natureza (MILLER, 2016).

 

A clínica lacaniana da psicose contribui igualmente para o tema do fim de análise, e a psicose ordinária veio relançar através de uma das soluções assinaladas por Jacques-Alain Miller: a psicose em análise (ANSERMET, 2017).

 

Às questões “como enlaçar o simbólico, caracterizado pelo efeito de sentido, com o real sem sentido?” e “como enfocar a disjunção radical entre o real como impossível e o sentido?”, Lacan responde que “o efeito de sentido a ser exigido do discurso analítico não é imaginário ou simbólico; é preciso, portanto, que seja real” (LACAN, 1974-5).

 

O efeito de sentido ex-siste, e nisso ele é real

 

Nessa frase de Lacan, o ponto notável é que o discurso analítico exige um efeito de sentido que seja real. De um lado, a experiência analítica se inicia ao dar sentido ao sintoma; o pivô da ação analítica é a oferta de sentido. O sujeito do inconsciente surge da experiência como sujeito representado no entre dois significantes de uma cadeia. De outro lado, pouco a pouco isso dá lugar ao parlêtre/falasser, e não se trata mais “de sentido, mas de gozo-sentido” (LACAN, [1973] 2003).

 

Um efeito de sentido que seja real não é simples nem automático de se obter, e nesse ponto podemos partir do trabalho de J.-A. Miller, o de elucidação do ensino de Lacan e, mais precisamente, seus comentários em “L’Être et l’Un” (MILLER, 2011), ao evocar o esvaecimento do sujeito suposto saber como correlativo do des-ser. Segundo ele, há o desvelamento da negação da essência e do sentido do sujeito suposto saber. É a ideia de um nó que se constrói efetivamente ao formar cadeia da matéria significante, pois essas cadeias não são de sentido, mas de gozo-sentido, que se encontra em “Televisão” (LACAN, [1973] 2003). Isso explica por que o termo “sujeito” é substituído por parlêtre/falasser, que inclui o corpo, o que é mais coerente com a noção de gozo: “não há sentido sem gozo, não há desejo sem pulsão, e a raiz do Outro é o Um” (MILLER, 2011). Isso não é acompanhado de um novo sentido para o que diz respeito à castração – o que faz cessar as embrulhadas do sentido –, pois o sintoma não se abranda com sentido. É próprio do gozo resistir ao sentido. É preciso um uso lógico capaz de secar o sentido.

 

Para Lacan, a relação do efeito de sentido com o real só é de exterioridade inicialmente, pois essa exterioridade supõe o nó projetado em uma superfície plana; se se serve dele (do nó), é para nos introduzir à noção de ex-sistência e deduzir que o efeito de sentido ex-siste, e nisso ele é real. A cisão do ser e da existência leva Lacan a fundar o Um que ex-siste face ao Outro (A) que não existe, sendo que o nó é plano, acrescenta ele, porque pensamos só horizontalmente. Pode ser que exista uma construção cuja consistência não seja imaginária, e isso implica que haja um furo, o que, por sua vez, nos conduz à topologia do toro. No derradeiro ensino de Lacan, a exaltação do furo tem por função dar existência ao puro “não existe”, o que nos ajuda a situar-nos no espaço do ultrapasse (MILLER, 2011).

 

Quais são as incidências disso na prática? Por essa perspectiva, o esvaziamento de sentido deve ser obtido como um saber haver-se [ou no coloquial: saber se virar, savoir y faire] com os restos sintomáticos. Retomo aqui a proposição de JAM a respeito dos dois regimes do passe: o da verdade e o do saber. O passe do sinthome como “extensão conceitual do fantasma” coloca o acento na verdade mentirosa. Então, a verdade é mentirosa ao se confrontar com a irredutibilidade do sinthome e fracassar na absorção desses restos sintomáticos. Nesse sentido, o passe-saber destaca mais claramente os limites do simbólico.

 

Falar da praxis lacaniana do passe deve necessariamente incluir o ultrapasse, tal como foi nomeado por Miller. Isso está relacionado ao acontecimento de corpo: é precisamente o gozo que se mantém para além da resolução do desejo (MILLER, 2011). Os restos sintomáticos provenientes da assunção do interdito são da ordem da existência, diferentemente do desejo, que está no âmbito do ser.

 

A renúncia à ontologia no passe foi inicialmente concebida por Lacan como deflação do desejo. Em seguida, ele ultrapassou esse limite ao articular seu “Há o Um”. Desse modo, ele inaugura o primado do Um em detrimento do primado do Outro da fala, que é necessária para o reconhecimento do sentido. A partir de então, o corpo aparece como Outro do significante (MILLER, 2011).

 

Com o sinthome, pendemos para o campo existencial; é para ele que Lacan nos conduz quando renuncia à sua ontologia, que era regida pela noção de ser e de “falta-para-ser”; topar com os limites do simbólico levou Lacan a considerar de outro modo o real em jogo na experiência analítica.

 

O passe, conforme o regime da verdade, “evoca antes que uma demonstração de saber, uma satisfação, uma experiência de satisfação” (MILLER, 2011). De todo modo, para além da nomeação ao título de AE, é a relação ao furo, conforme aponta Miller, que se situa no âmbito do real. É, portanto, no espaço do ultrapasse, no qual o sujeito fala para si mesmo, sem comunicação possível, que se faz da práxis lacaniana do passe um real existencial.

 

Retomaremos um ponto do texto Habeas corpus (MILLER, 2016), no último parágrafo do apartado virada (tournant) lacaniana, em que se afirma que essa virada só será concluída no “Seminário 20”, (LACAN, [1972/3] 1985) momento que Lacan arromba a fechadura para degradar o objeto a, colocando-o como falso semblante.

 

Uma modelagem do gozo no modelo do significante

 

Para Miller, o saber sobre o gozo talvez seja o único saber psicanalítico que temos sobre a vida, sobre o que é o ser vivo. E acrescenta que ‘gozar’ do corpo vivo seria tudo o que podemos saber (MILLER, 2004). Apoia-se, para tanto, em Lacan, quando formula que “(…) não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso goza” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

É distinta a relação do significante com o corpo no início do ensino de Lacan, com a tese segundo a qual linguagem é corpo; corpo aí fica entendido como materialidade da fala e da linguagem.

 

O corpo como substância gozante, que é introduzido na década de 1970, diz respeito ao corpo vivo, à substância do corpo na medida em que há gozo do corpo: “Isso só se goza por corporificá-lo de maneira significante” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

Só podemos afirmar ter havido uma conversão de perspectiva quando Lacan passa a situar o significante no nível da substância gozante: “O significante á a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo?” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

Inicialmente, em Lacan, a materialidade do significante é inanimada, materialidade da linguagem, e até a satisfação é própria do simbólico: a elaboração de uma satisfação semântica. Um gozo, sem o corpo vivo, tem uma satisfação significante: a satisfação pelo reconhecimento, emprestado da fenomenologia de Hegel (MILLER, 2004).

 

Entender que seria possível uma satisfação significante da pulsão é o modo como Lacan torna simbólica a pulsão freudiana, solidária da noção de corpo mortificado. Mas não é o significante, da sustância gozante, tornando-se o corpo, recortando o corpo até fazer surgir o gozo.

 

São duas vertentes que Lacan introduz: a do corpo vivo e a do sujeito do inconsciente. Da reunião dessas vertentes, desse binário, surge o falasser (parlêtre) (MILLER, 2004), o que o faz postulando ‘sua’ hipótese: “Minha hipótese é a de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante” (LACAN, [1972/3] 1985).

 

O objeto a “natural”

 

Até o “Seminário 10: a angústia”, conhecia-se somente o corpo como essencialmente implicado na formação do eu, o corpo visual. Podemos afirmar que o corpo que faz sua entrada, sob o modo do objeto a, na constituição do próprio sujeito do inconsciente, é o corpo erógeno, o corpo das zonas erógenas, das zonas de borda, sem limite, que se sobrepõe ao corpo do Outro (MILLER, 2005).

 

Para Lacan, o sinal, termo que Freud designou para a angústia, é distinto da situação traumática. A originalidade de seu aporte reside no fato de ter enunciado com maior exatidão que o que Freud refere como o perigo que a angústia sinaliza e está ligada ao caráter cedível do momento constitutivo do objeto a, a angústia-sinal.

 

Se, por um lado, o perigo sinaliza o objeto caracteristicamente cedível, por outro, sinaliza que a angústia não é mensagem. Essa separação do objeto incide sobre o corpo libidinal, que não é o corpo visual, que implica o corpo do Outro.

 

O caráter cedível caracteriza o objeto a e Lacan faz da angústia um operador da separação, por isso ela não é mensagem, é um afeto único.

 

E, por sua vez, em entrevista a uma revista italiana, quando responde à questão do que é a angústia para a psicanálise, vai dizer que “é algo que se situa fora do corpo, um medo, mas nada que o corpo, espírito incluído, possa motivar. É o medo do medo, em suma” (LACAN, 1974).

 

De 1963 a 1974, do “Seminário 10” à entrevista, há um percurso do objeto a no ensino de Lacan, desde sua emergência como pura extração corporal até sua sofisticada forma de pura consistência lógica. E, para entendermos esse avanço, J-A Miller (MILLER, 2005) aponta que, mesmo sendo pura extração corporal, a fisiologia do objeto a se desenvolve, ou seja, o objeto a tem sob o significante da topologia uma consistência topológica, desde quando emerge (MILLER, 2005).

 

O intuito é tensionar as vertentes topológicas e de extração corporal do objeto a no “Seminário 10”, uma vez que as posições da angústia e do que é o objeto a são intercambiáveis (LACAN, [1962-63] 2005). Para tanto, é importante localizar, no “Seminário 10” [1962/63], qual é o lugar de corte do qual emerge o objeto a.

 

No capítulo IX, temos:

 

O corte que nos interessa, o que deixa seu traço, num certo número de fenômenos clinicamente reconhecíveis, e que, portanto, não podemos evitar, é um corte que, graças a Deus, é muito mais satisfatório para a nossa concepção do que a cisão da criança que nasce, no momento em que ela vem ao mundo.

 

Cisão de quê? Dos envoltórios embrionários.

 

Basta-me remetê-los a qualquer livrinho de embriologia datado de menos de cem anos para que vocês percebam que, para terem uma ideia completa do conjunto pré-especular que é o a, deverão considerar os envoltórios como um elemento do corpo da criança. É a partir do óvulo que os envoltórios se diferenciam, e vocês verão com que formas o fazem, de maneira muito curiosa – deposito bastante confiança em vocês, depois de nossos trabalhos do ano passado em torno do cross-cap (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Embora a referência aí seja o corpo, mais exatamente uma referência do corpo da embriologia, o corte, ou o momento cedível, não se confunde com nenhuma substância. Os envoltórios a partir do óvulo, que se diferenciam com formas curiosas, aproximam-se mais da topologia, ou seja, de uma forma mais oca.

 

No último capítulo, Lacan retorna a isso ao se referir à marca do a, quanto ao momento de sua constituição, e propõe o grito como algo que o lactante cede: “Ele cede alguma coisa, e nada mais o liga a isso” (LACAN, [1962-63] 2005). Grito que coincide com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser o sujeito. Lacan chega até a afirmar que o grito é o próprio âmago do grande Outro, o ponto de partida do primeiro efeito cedível.

 

Se a angústia foi escolhida por Freud como sinal de algo, Lacan fala da própria aspiração do lactante como um momento de perigo: “Foi a isso que se deu o nome de trauma do nascimento – não existe outro – o trauma do nascimento, que não é a separação da mãe, mas a própria aspiração de um meio intrinsecamente Outro” (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Tanto a cisão dos envoltórios quanto o grito são exemplos dos momentos cedíveis na constituição do objeto a, exemplos que promovem a desnaturalização e dessubstancialização do objeto a. Não é por acaso que o exemplo dado do objeto a e de sua separação seja o prepúcio na circuncisão, exemplo de uma prática claramente cultural. O pequeno a se faz assim, quando se produz o corte, seja qual for, quer o do cordão umbilical, quer o da circuncisão (LACAN, [1962-63] 2005).

 

Desunir a função do objeto e sua substância permite vislumbrar a estrutura do mais de gozar sob a forma do objeto que a pulsão contorna, presença de um oco, de uma vacuidade a ser ocupada por qualquer objeto.

 

Para Miller, “o Seminário 10 é a via de acesso ao objeto a como nada. É o objeto nada que pode se tornar a causa do ato, ato que comporta sempre um momento de suicídio, um momento de morte do sujeito” (MILLER, 2004). É o objeto a desnaturalizado, topológico, que permitirá ao próprio analista inscrever-se na mesma série que o objeto a nada.

 

Apesar de afirmar a desnaturalização do objeto a topológico, verificamos que Lacan ainda está preso à separação entre inconsciente e pulsão, presente no início de seu ensino. Na Conferência do Rio, Miller afirma que

 

O objeto a, ao mesmo tempo faz parte da armadura da fantasia, está no âmago da pulsão e tem certas propriedades significantes. Notadamente, ele se apresenta por meio de unidades, é contável e enumerável, já é, portanto, um gozo. Se ele é mais-de-gozar, é um mais-de-gozar que já é um degradê (dégradé) do gozo, uma modelagem do gozo no modelo do significante. (MILLER, 2016)

 

“Parlêtre/falasser por natureza”

 

O último ensino contrapõe o corpo vivo ao corpo morto, coloca em questão o próprio termo sujeito, como falta-a-ser, substituindo-o por parlêtre/falasser, o sujeito mais o corpo. Assim também o conceito de Outro é posto em questão. O Outro está aí representado por um corpo vivo.

 

Há um paradoxo inevitável do corpo humano: ser vivo e, ao mesmo tempo, falante. Por mais corporal que seja o homem, ele é também feito sujeito pelo significante, feito da falta-a-ser. Para o homem não se pode fazer equivaler ser e corpo, enquanto para o animal isso é possível. Razão pela qual Lacan afirma que o homem ‘tem um corpo’, o que vale por sua diferença com relação a ‘ser um corpo’. A falta-a-ser divide seu ser e seu corpo, reduzindo este último ao estatuto do ter (MILLER, 2004).

 

É no contexto de 1975 que Lacan, ao se “dedicar um montão” à leitura dos livros de Joyce e de outros sobre ele, retoma a noção do corpo imaginário extraído dos nós borromeanos: “Ao fazer assim, introduzo alguma coisa de novo, que dá conta não somente da limitação do sintoma, mas do que faz com que, por se enodar ao corpo, isto é, ao imaginário, por se enodar também ao real e, como terceiro, ao inconsciente, o sintoma tenha seus limites” (LACAN, [1975-6] 2007).

 

Ao retomar a grafia antiga de sinthome, em francês, Lacan caracteriza o parlêtre/falasser, dizendo que ao mesmo tempo em que “é preciso sustentar que o homem tem um corpo, isto é, que fala com seu corpo, ou em outras palavras, que é parlêtre/falasser (…)”, e definir o sintoma como um acontecimento de corpo (LACAN, [1975] 2003).

 

No curso do seu ensino, Lacan corporifica as principais funções significantes por ele isoladas e, nesse sentido, duvida da consistência puramente lógica da função do Outro (MILLER, 2004). Ao corporificar o grande Outro, introduz o corpo do parceiro falante dizendo que “Uma mulher, por exemplo, é sintoma de um outro corpo” (LACAN, [1975] 2003).

 

Aqui vemos que o conceito de parlêtre/falasser (MILLER, 2016) “se sustenta na equivalência originária inconsciente-pulsão”. Na vertente do puro gozo do inconsciente, Lacan forjou tal neologismo.

 

Éric Laurent, por sua vez, em seu livro “ O avesso da Biopolítica” faz uma leitura de Joyce e pontua a frase na qual Lacan propõe o acesso a seu parlêtre/falasser por natureza. Entendendo que a equivalência entre “ter um corpo” e “falar com o corpo” acarreta a seguinte dedução: ter um corpo equivale a falar com o corpo a tal ponto que o homem parlêtre/falasser. E acrescentando que o homem tenha um corpo, então tem corolários exigentes que convertem o dispositivo instalado por Joyce no centro da tensão entre arte e natureza.

 

A tensão arte-natureza caracteriza Joyce; seu projeto de arte não passa pelo naturalismo, nem pelo o simbolismo, temas que nutrem o debate do final do século XX. Opor natural a arte tem como intuito reconciliá-los no parlêtre/falasser por natureza (LAURENT, 2016).

 


Bibliografia
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ANGELINA HARARI
Psicanalista em São Paulo, AME, membro da EBP e da AMP. E-mail: angelina.harari@terra.com.br