Editorial Almanaque nº18

LUDMILLA FERES FARIA

Com vocês, o Almanaque 18, cujo tema “As novas configurações familiares”, com certeza, será de muito valor para nossos trabalhos rumo ao ENAPOL VIII – “Assuntos de família: seus enredos na prática”.

Em Trilhamentos contamos com a amável contribuição de Rose-Paule Vinciguerra, com o texto “A psicanálise em relação às famílias”, no qual a autora parte dos novos modelos de família, chamadas hipermodernas, para questionar se os efeitos da igualdade tendem a produzir uma indiferenciação sexual. Essa questão vai de encontro ao debate iniciado em nossa comunidade analítica rumo à XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – MG: “Inconsciente e diferença sexual, o que há de novo?”

Ainda em Trilhamentos, temos os textos de François Ansermet, “Avesso da Procriação”, e de Fabian Fajnwaks, “A família entre a ciência e a lei”. Os dois autores, cada um a seu modo, debatem os impasses subjetivos advindos do progresso da ciência e do discurso jurídico. Os casos clínicos apresentados demonstram a forma como a psicanálise pode contribuir para que os sujeitos inventem soluções para responder ao enigma de sua vinda ao mundo.

A rubrica Entrevista está imperdível! Não deixem de ler o que Marcia Tiburi, autora do livro “Uma fuga perfeita é sempre sem volta”, vai nos contar, de forma inédita, sobre o que constitui uma família. Sua afirmativa de que “é o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” é um fio condutor para o desdobramento de uma conversa que os instigará do início ao fim.

Na entrevista com Sérgio Laia, “O inconsciente e a família”, vocês verão a forma contundente com que o autor responde sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Recorrendo, em especial, ao texto de Lacan “Nota sobre a criança”, ele dará destaque “à função da psicanálise de amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias”. Agradecemos a Marcia Tiburi e a Sérgio Laia pela inestimável contribuição.

Em Incursões temos textos das colegas de Minas Gerais trabalhados nos espaços de investigação do IPSM-MG e da EBP-MG. Mônica Campos e Maria José Gontijo Salum abordam, através de estudos de casos e do filme “De cabeça erguida”, respectivamente, as possíveis conexões entre a psicanálise e o Direito e as saídas daí advindas. Já Márcia Rosa e Laura Félix Reis Maciel partem do postulado de Jacques-Alain Miller, segundo o qual a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais para questionar as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. O texto de Márcia e Laura nos serve, também, como uma guia de leitura da entrevista de Marcia Tiburi. Afinal, o que organiza uma família?

Em Encontros agrupamos as questões sobre a família em torno do vivo da clínica. Os autores Patrick Monribot, com “Esse X”, e Yves Depelsenaire, com “Grandeza e miséria de um nome”, apresentam a forma como o tratamento analítico possibilitou outros arranjos para os sujeitos lidarem com a herança familiar. Jean-Daniel Matet, em “Avatares e atualidade do complexo de castração”, faz uma releitura do conceito lacaniano “complexo de intrusão”. Vale a pena conferir!

Finalizamos este número em De uma nova geração, com duas ótimas contribuições das alunas do IPSM-MG: Ana Helena Souza, com o texto “Mentira e Ficção: o Discurso da Histérica, a Cura pela Fala e o Indizível do Sinthoma”, no qual recorre a uma obra de Samuel Beckett para investigar a relação do discurso da histérica com a mentira e a ficção, e o texto de Raquel Martins de Assis, que em “O amor pelo pai na histeria” retoma o paradigmático caso Dora de Freud e, a partir da leitura de Lacan, demonstra como o tema da armadura do amor ao pai se apresenta como uma importante faceta da histeria.

Agradecemos aos colegas que encaminharam seus textos, aos tradutores e aos revisores, sem os quais nosso trabalho seria impossível, assim como à equipe do Almanaque que, de maneira decidida, contribuiu para que este número fosse ao ar de tal forma, que pôde ser mais leve.

Desejamos que os leitores encontrem, neste número, pontos de pesquisa e de interesse que deságuem num debate profícuo dentro do nosso campo de trabalho.

Deixo com vocês o Almanaque 18. Bom trabalho!

Ludmilla Feres Faria
Diretora de Publicação



Almanaque V. 10 – Nº 18 2º semestre de 2016

Com vocês o Almanaque 18, cujo tema: “As novas configurações” familiares, com certeza será de muito valor para nossos trabalhos rumo ao ENAPOL VIII – “Assuntos de família : seus enredos na prática”. Leia o editorial…

TRILHAMENTO
A psicanálise em relação às famílias – ROSE-PAULE VINCIGUERRA

O avesso da procriação – FRANÇOIS ANSERMET

A família entre a ciência e a lei – FABIAN FAJNWAKS

ENTREVISTA
Entrevista com Márcia Tiburi sobre o livro “Uma fuga perfeita é sem volta ” – por Ludmilla Féres Faria e Márcia Mezêncio

Inconsciente e família – Sérgio Laia

INCURSÕES
A família na interface direito e psicanálise – MÔNICA CAMPOS SILVA

Erguer a cabeça e tomar a palavra: efeitos socioeducativos na adolescência de Malony – MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM

A transparência do gozo da mãe e o delírio como segredo – Laura Félix Reis Maciel / Márcia Rosa

ENCONTROS
Esse X – PATRICK MONRIBOT

Grandeza e miséria de um nome – YVES DEPELSENAIRE

Avatares e Atualidade do “Complexo de Intrusão” – JEAN-DANIEL MATET

DE UMA NOVA GERAÇÃO
Mentira e Ficção: o Discurso da Histérica, a Cura pela Fala e o Indizível do Sinthoma – Ana Helena Souza

O amor pelo pai na histeria – Raquel Martins de Assis




O Amor Pelo Pai Na Histeria

RAQUEL MARTINS DE ASSIS

 

 

Quem, como eu, invoca os mais maléficos e maldomadosdemônios que habitam o peito humano, com eles travando combate,deve estar preparado para não sair ileso desta luta.(Freud, 1905, Caso Dora, p. 75)

Em 1977, Lacan finaliza Considerações sobre a histeria pelo tópico “O amor” que possui apenas uma frase: “O que nossa prática revela, é que o saber, saber inconsciente, tem uma relação com o amor” (Opção Lacaniana, 2004, p. 22). A frase aparece quase como que jogada ao vento, mas colocando em trabalho aquele que tenta compreender os meandros da histeria. Nesse trabalho, diversas perguntas podem ser colocadas: Por que Lacan conclui sua exposição de maneira tão “interminada”? Por que justamente o amor, esse tema tão caro à histeria, foi deixado em duas linhas quase como um anúncio a ser retomado pelo ouvinte/leitor? Um anúncio importante que fica em suspenso[1].

Nessa pequena frase deixada em suspenso, Lacan faz uma afirmação essencial: para compreendermos algo da histeria precisamos atentar-nos para as relações entre o saber inconsciente e o amor. Há um saber sobre o amor presente na histérica, mas por ela desconhecido. Assim, conforme Lacan, a histérica não sabe o que diz, mesmo que diga algo com as palavras que lhe faltam (Lacan, 2007)[2]. Do que se trata, então, esse não saber da histérica? O que ela não sabe de si?

O paradigmático caso Dora, publicado pela primeira vez em 1905, apresenta a análise de um caso de histeria. Trata-se de uma jovem de dezoito anos que apresentava sintomas de tosse nervosa e afonia, sendo seu quadro definido como uma “petite hystérie”. Nesse caso, Freud[3] adverte que desde que lançara “Estudos sobre a histeria” em 1895, seus métodos já haviam se modificado:

“Naquela época, o trabalho [de análise] partia dos sintomas e visava esclarecê-los um após o outro. Desde então, abandonei essa técnica por achá-la totalmente inadequada para lidar com a estrutura mais fina da neurose. Agora deixo que o próprio paciente determine o tema do trabalho cotidiano” (Freud, 1996, s.p.).

Desse modo, o caso Dora não é apenas uma discussão sobre a histeria, mas descortina um momento no qual Freud adota a perspectiva de deixar que o paciente determine o rumo do que é dito. Nesse sentido, Dora poderá dizer, pelas palavras que lhe faltam, aquilo que não sabe sobre si. Nesse espaço deixado por Freud emerge a trama amorosa da histérica.

A trama amorosa, nesse caso, possui três personagens: o casal Sr. e Sra. K, amigos da família da jovem, e seu pai. A cena que se desenrolava nas palavras de Dora era a seguinte: seu pai havia feito uma íntima amizade com o casal K. Nesse desenrolar, a Sra. K tornou-se muito próxima do pai, cuidando dele em seus momentos de enfermidade. Enquanto isso, o Sr. K aproximou-se de Dora, levando-a para passear e presenteando-a com pequenos objetos. Após uma estadia na residência dos K, da qual a jovem retornara abruptamente, Dora conta à sua mãe que o Sr. K fizera-lhe uma proposta amorosa quando se encontraram a sós na margem do lago de Garda. Pede à mãe que transmitisse sua história ao pai. A partir daí, a jovem começa a insistir para que seu pai rompa relações com a família de amigos, especialmente com a Sra. K. O pai, entretanto, assim como o Sr. K, diante da revelação feita por Dora, a acusam de ter imaginado a cena do lago. Na família, começam a pairar suspeitas sobre a lascívia da jovem que, na época, lera A fisiologia do amor do sexólogo darwinista Paolo Mantegazza[4] (Roudinesco e Plon, 1998).

É no calor desses acontecimentos que Dora é levada a Freud por seu pai. Inicia-se o tratamento. No trabalho de análise, persistiam as certezas alimentadas pela moça a respeito do caso amoroso paterno. Também surgiam as suposições sobre as possíveis relações sexuais orais entre a Sra K e o pai de Dora, já que este era impotente. Freud afirma a impossibilidade de tratar a histeria sem mencionar temas sexuais, pois os sintomas histéricos estão fortemente ligados à sexualidade. Nas Considerações sobre a histeria, Lacan amplia essa fórmula ao afirmar: “o essencial do que disse Freud é que existe a maior relação entre o uso das palavras em uma espécie que tem as palavras à sua disposição e a sexualidade que reina nesta espécie” (Lacan, 2007, p. 20). Da narração de Dora, Freud conclui que os sintomas de enfermidade da jovem visavam seu pai: “como as acusações contra o pai se repetiam com cansativa monotonia e ao mesmo tempo sua tosse continuava, fui levado a achar que esse sintoma poderia ter algum significado relacionado com o pai.” (Freud, 1996, s.p). Possuindo uma finalidade na trama amorosa, os sintomas de Dora eram de difícil remoção, já que ela necessitava e tirava vantagem deles a fim de sensibilizar seu pai e separá-lo da Sra. K. De acordo com Freud, o sentimento de Dora em relação ao pai era como o de uma esposa ciumenta, sentindo-se preterida por outra mulher. Mas por que esse enamoramento pelo pai, resquício inativo do Édipo[5], tornava a se reavivar? Conclui que o amor pelo pai consistia em uma forma de resistência à atração de Dora pelo Sr. K.

Freud estabelece um diálogo com a jovem em que evidencia suas conclusões sobre o amor que Dora nutria pelo Sr. K. Depois disso, ela não retornaria mais, dando fim à analise. Freud se perturba com a interrupção do tratamento e questiona seu manejo da transferência:

“Será que eu poderia ter conservado a moça em tratamento, se tivesse eu mesmo representado um papel […] e lhe mostrasse um interesse caloroso que, mesmo atenuado por minha posição de médico, teria equivalido a um substituto da ternura que ela ansiava?” (Freud, 1996, p. 75).

Considerando as relações entre a transferência e os anseios de ternura de Dora, Freud escreve um posfácio ao caso no qual a dimensão transferencial da análise é o ponto central em que ele se vê falhando:

“Não consegui dominar a tempo a transferência […]esqueci a precaução de estar atento aos primeiros sinais de transferência que se preparava com outra parte do mesmo material, ainda ignorada por mim. Desde o início ficou claro que em sua fantasia eu substituía seu pai.” (Freud, 1996, s.p.)

Ao ter sido surpreendido pela transferência no tratamento da jovem, ocorre um x incompreensível para Freud. Em notas posteriores (1923), reconhece que havia sido incapaz de compreender a natureza da ligação homossexual que unia Dora e a Sra. K (Roudinesco e Plon, 1998)[6]. Lacan, no Seminário 3[7], sobre a questão histérica, comenta que Freud cometeu um erro: ao colocar o imperativo do amor ao pai como foco principal da trama amorosa histérica, Freud não pôde visar o objeto realmente desejado por Dora, isto é, a Sra K. Durante a análise, entretanto, emergia repetitivamente a outra mulher: Dora, de diversos modos, falava sobre as mulheres que ela supunha amadas por seu pai. Primeiro sua mãe, com quem se identificara por suas enfermidades. Depois, com a Sra. K por meio da tosse excessiva, metáfora do prazer sexual que ela imaginava entre o pai e a amante. Lacan, em Intervenção sobre a transferência, denomina a atração de Dora pela Sra K. como um fascinado apego. Nesse fascínio se encerra aquilo que é um mistério para a histérica: aceitar-se como objeto de amor de um homem. Essas operações ligadas ao encantamento pela mulher objeto de amor, entretanto, são desconhecidas pela histérica. Daí que ela coloque em palavras o seu não saber sobre si, palavra do sintoma (Lacan, 1978)[8].

Assim, para Lacan, a histeria é marcada pela pergunta “o que é ser uma mulher”. Diante dessa questão e no movimento que lhe é possível, a histérica identifica-se com um homem enquanto cede sua posição feminina a alguma outra mulher que encarna o mistério da feminilidade (Schejtman e Godoy, s.d). Desse modo, a histérica recebe um dom fálico (Gody, Mazzuca e Schejtman, 2012), como aponta Lacan: “É a prevalência da Gestalt fálica que, na realização do complexo edípico, força a mulher a tomar emprestado um desvio através da identificação com o pai, e portanto a seguir durante um tempo os mesmos caminhos que um menino” (Lacan, 1997, p. 201). No modelo Dora, a identificação viril ao pai vem carregada do signo da impotência. Disso resulta que a histeria esteja colocada na posição masculina, mas em situação de virilidade decaída, isto é, marcada por algo que lhe falta. Assim, na formulação lacaniana, a histérica é não toda. Ela não se toma por uma mulher, mas pergunta sobre a mulher. Essa posição insatisfeita, expressa por uma pergunta que não se sabe responder, é própria do gozo histérico, isto é, o gozo da privação e da impotência. Para Godoy, Mazzuca e Schetjman (2012)[9], a identificação com o pai é uma saída neurótica que permite ao sujeito histérico construir para si uma definição que lhe escapa. Dessa forma, surge uma possibilidade de lidar com o problema do feminino.

Sendo o pai impotente, a histérica o ama pelo que ele não pode dar, isto é, pelo que não tem. Mas se a histérica e seu pai são marcados pelo não ter, imagina-se que em algum lugar, algo tem isso que lhes falta. O gozo da privação, portanto, implica supor a existência de um gozo absoluto e consistente (todo) – o gozo do Outro – frente ao qual a histérica pressente a si mesma como uma quimera, leve sombra, um sopro sem consistência. Esse algo absoluto e consistente é geralmente localizado, pela histérica, no pai ideal ou na outra mulher adorada que possui aquilo que ela não tem. Para Freud, a Sra K. tinha o pai de Dora, daí a identificação da jovem com essa outra mulher. Para Lacan, ao ter o pai, a outra mulher tem, para a histérica, a resposta da feminilidade. A histeria supõe, portanto, a identificação amorosa ao pai.

Enfim, na narrativa histérica é possível emergir a armadura do amor ao pai. Essa armadura outorga consistência e estabilidade ao sujeito histérico como possibilidade de defesa frente ao real do gozo feminino que coloca em questão a identidade e a unidade da histérica (Schejtman e Godoy,s.d)[10]. Devido a tal consistência, a histérica tem dificuldade de renunciar ao falo paterno:

“resulta importante ressaltar el concepto de renuncia porque justamente el sostén que encuentra la histeria en esse amor marca la dificultad de hacer um despegue de la posición en la cual se espera de recibir um don del padre que resuelva su relación con lo feminino.” (Schjetman e Godoy, 2012, p. 266).

Ao não conseguir renunciar ao falo paterno, à espera do dom que se pode receber do pai (marcado, entretanto, pelo que não se dá), a histérica não consegue conceber nada que possa receber de outros, seja um homem, um grupo de pessoas, uma relação de trabalho. Sendo o amor definido por Lacan, no Seminário 8, pelo dar o que não se tem, o amor histérico é engendrado pela armadura do amor ao pai, na qual se estreitam os laços entre amor-impotência-saber.

 

 

[1] No texto Intervenção sobre a transferência, Lacan se remete ao efeito Zeiganirk adotado por Lagache ao tratar da transferência no caso Dora. O efeito Zeiganirk é assim explicado: “trata-se do efeito psicológico que se produz por uma tarefa inacabada, quando ela deixa uma Gestalt em suspenso; por exemplo, pela necessidade geralmente sentida de dar a uma frase musical seu acorde resolutivo.” (Lacan, 1978, p. 214).
[2] LACAN, Jacques. Considerações sobre a histeria. Opção lacaniana, n.50. p. 17-22. Dezembro de 2007.
[3] FREUD, Sigmund. (1905 [1901]). Fragmento de análise de um caso de histeria. Acessado em 10.10.2016 e retirado de http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-07-1901-1905.pdf
[4] Durante o século XIX e boa parte do século XX, era recomendado um cuidado especial com os livros apresentados às jovens, pois as leituras, principalmente de romances, podiam incliná-las à dissipação e desordenamento amoroso. Assim, no caso de Dora, é significativo, para a cultura da época, que a leitura de a Fisiologia do amor tenha sido utilizada como um sinal para sua “desordem psicológica”, ou seja, para o fato de que ela poderia imaginar algo que realmente não havia acontecido.
[5] No Complexo de Édipo, Freud introduziu o terceiro masculino: o pai. A criança, no declínio do Édipo, se volta para um pai concebido como ideal, onipotente, possuidor do falo e por isso digno de ser amado. O sujeito histérico, entretanto, supõe não a onipotência, mas a impotência no pai. A histérica, portanto, sabe que não tem o pai ideal (KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar editora, 1996).
[6] ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1998.
[7] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[8] LACAN, Jacques. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
[9] GODOY, Cláudio; MAZZUCA, Roberto; SCHEJTMAN, Fabián. El amor al padre y la estabilidade histérica em la primera ensenanza de Lacan. Em: SCHEJTMAN, Fabián (Org.). Elaboraciones lacanianas sobre las neuroses. Buenos Aires: Grama editora, 2012, p. 263-268.
[10] GODOY, Cláudio; SCHEJTMAN, Fabián. La hysteria en el último período de la ensenanza de J. Lacan. Anuário de Investigaciones. Vol. XV, p. 121-125, s.d.

 


Raquel Martins De Assis
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (NIPSE) – Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. Email: rmassis.ufmg@gmail.com



Mentira E Ficção: O Discurso Da Histérica, A Cura Pela Fala E O Indizível Do Sinthoma

ANA HELENA SOUZA

 

O texto de Beckett ao qual recorro aqui é considerado o auge da depuração de sua escrita. Chama-se Worstward Ho, literalmente, “em direção ao pior, vamos”. Traduzi-o como Pra frente o pior (Beckett, 2012)[1]. Essa prosa é construída com extrema desconfiança e cautela. As palavras introduzidas repetem-se, transformam-se, assumem diferentes categorias sintáticas, são recombinadas, produzem ecos, num jogo de permutações que, aos poucos, compõe imagens e uma tênue narrativa.

 

Beckett disse ter encontrado sua própria voz, ao começar a escrever diretamente em francês depois da Segunda Guerra. Compreendeu que em sua obra devia trabalhar com a falha, a impotência, a ignorância. Radicalizou a experiência de abandono dos recursos literários: reduziu ou praticamente eliminou enredo, personagens, nexos temporais, recursos à verossimilhança e à plausibilidade. Worstward Ho, de 1983, começa assim: “On. Say on. Be said on. Somehow on. Till nohow on. Said nohow on.” (Beckett, 2009, p. 81)[2]. Em português: “Adiante. Dizer adiante. Ser dito adiante. De algum modo adiante. Até que de nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Idem, 2012, p. 65). Citá-lo em inglês é importante para marcar os significantes básicos que se fazem presentes ao longo de todo o texto: on e o seu inverso espelhado no, que comparece nesse primeiro trecho em nohow. Os verbos do dizer, no presente e no passado, say e said, incitados pelo on, são ao mesmo tempo relativizados pelos advérbios somehow e nohow. A narrativa constitui-se basicamente do que se tem a dizer e, desde o início, é posta à prova. É preciso dizer “de algum modo” até chegar ao dito que não pode “de nenhum modo” prosseguir. O que o texto faz surgir é algo que se forma dentro de um crânio. Adquirem contorno um lugar, um corpo, um olho, uma penumbra e algumas imagens. Escreve-se, assim, o empenho em tornar tanto essas imagens como o dizer que as cria mais precisos, embora a tarefa, nos é dito, esteja fadada ao fracasso.

 

Para a primeira aproximação desse texto com a psicanálise, cito uma observação de J-A Miller sobre o modo possível de nos referirmos ao real, com os instrumentos do simbólico:

 

“O fato de o real ser inassimilável faz com que seja sempre introduzido por um ‘não’. É uma positividade que só pode ser abordada pelo negativo – pelo menos no que depende do simbólico –, ou seja, em sua face de impossível. É preciso haver uma articulação simbólica para podermos dizer que alguma coisa é impossível.” (2011, p. 24)[3].

 

Em Pra frente o pior, o texto se compõe, ao mesmo tempo, sob o signo do ON e do NO – do imperativo de continuar e da impossibilidade. Por isso, permeiam-no referências a um dizer que é sempre qualificado como “mal dito”, como “pior”. Paradoxalmente aqui o pior, definido no texto, implica o que se pode fazer de melhor. É possível entrever, no esforço de ter de valer-se do simbólico, aquilo que no simbólico não se deixa apreender, nem dizer: “Tentar de novo. Falhar de novo. Melhor de novo. Ou melhor pior.” (Beckett, 2012, p. 66)

 

Vimos que o texto começa com “on”. À medida que a leitura avança, percebe-se que este “on” não apenas iniciou um discurso, mas incluiu nele enunciador e destinatário, bem como lhe deu uma direção de sentido que orienta a ficção. Numa segunda aproximação, relaciono esse começo à observação de Miller sobre a entrada em análise:

 

“Uma análise começa sob o modo de formalização. O amorfo se vê dotado de uma morfologia. (…) Ao longo das primeiras sessões, a massa mental do amorfo se reparte em elementos de discurso. Só o fato de você convidar a falar aquele que está diante de você faz com que o amorfo mental dele adote uma estrutura de linguagem. (…) O desenho que surge, então, é condicionado, pelo menos em parte, pelo endereçamento, pelo destinatário.” (Miller, 2011, p. 101)

 

O início de uma análise institui um ordenamento, convida à construção de uma narrativa. Gostaria de destacar na citação de Miller o “endereçamento” e ampliá-lo para não apenas incluir um destinatário, mas um direcionamento temporal. Tal direcionamento é dado por uma expectativa de resolução, de um fim, à medida que toda análise iniciante propõe uma pergunta e deseja chegar à resposta.

 

No seu livro The sense of an ending, o crítico literário Frank Kermode[4] aborda os sentidos que a presença do fim imprime às ficções. Parte da sua argumentação encontra-se resumida na discussão de como dotamos de sentido o som que um relógio emite:

 

“Perguntamo-nos o que ele diz: e concordamos que diz tique–taque. Por meio dessa ficção, nós o humanizamos, fazemos com que fale nossa língua. (…) Tomo o tique-taque do relógio como modelo do que chamamos de enredo, uma organização que humaniza o tempo ao dar-lhe forma; e o intervalo entre o taque e o tique representa o tempo meramente sucessivo, desorganizado, do tipo que precisamos humanizar.” (Kermode, 2000, p.44-45)

 

Segundo Kermode, com o tempo nossas ficções também mudam as formas de dar sentido ao fim. Quando, por exemplo, a ficcionalização linear do tique-taque já nos parece muito fácil, partimos para algo do tipo taque-tique, num enredo como o do Ulysses de Joyce (Idem, 2000, p. 45). De algum modo, parece-me que a entrada em análise, com suas correspondentes formalização e histerização do discurso, e as revelações que ensejam (Miller, 2011, p. 104), equivale em ficção a um enredo ordenado mais em conformidade com o tique-taque simbólico. Esse tipo de ordenamento, que faz com que os eventos se encaixem numa sequência regular de antes e depois, pode ser percebido no desvendamento dos casos de histeria mais simples relatados por Freud.

 

O caso de Miss Lucy R. ilustra bem um suposto não-saber da histérica que, antes de Freud[5], era muitas vezes encarado como uma mentira, uma ficção. Miss Lucy, inglesa, 30 anos, governanta das filhas de um diretor de fábrica viúvo e morador dos arredores de Viena, procura Freud com sintomas olfativos subjetivos. Sente com frequência um cheiro de torta queimada, além de apresentar um desânimo e uma irritabilidade constantes.

 

Freud soluciona o caso em etapas temporalmente invertidas. O primeiro sintoma com que Miss Lucy a ele se dirige foi desencadeado pelo evento ocorrido mais recentemente. Brincava de cozinhar com as crianças, quando chega uma carta de sua mãe. A carta lembra-lhe que pedira demissão, e isso a levaria a voltar à casa materna e deixar as crianças, que ela amava e das quais prometera cuidar. Neste momento, a torta que faziam queima.

 

Com a solução desse primeiro sintoma aparece um outro: o cheiro de fumaça de charuto. Este corresponde ao evento intermediário, ainda não propriamente ao acontecimento traumático. O patrão de Lucy grita com um velho amigo da família que se despedira das crianças com beijos, algo que o pai não tolera. É depois do jantar, e os homens fumam. Daí o incômodo cheiro de fumaça de charuto.

 

Ao evento traumático propriamente dito não se liga uma conversão histérica. Freud apenas especula que ele tenha gerado o “abatimento de ânimo” da paciente. Os acontecimentos posteriores têm a função de encobrir o acontecimento traumático, de modo que fica claro que o trauma nem sempre dá origem ao sintoma. Freud relaciona os acontecimentos “auxiliares” (2016, p. 179), que produzem o sintoma, a “um intervalo de incubação” e menciona que Charcot a isso se referia como “o tempo de elaboração psíquica”. (2016, p. 193)

 

A cena traumática, a que Freud chega depois de desvendar as auxiliares, é a acusação e ameaça de demissão do patrão a Lucy, porque uma senhora em visita à casa beijou as crianças, algo que ele abominava, e que ela deveria impedir de acontecer. Sua ira e rispidez levam-na a compreender que não existe nenhum sentimento amoroso da parte dele para com ela. O primeiro dos sintomas, que corresponde ao evento intermediário, sobrevém apenas quando ela presencia cena semelhante, na qual o patrão grita com o velho amigo da família que também beijara as crianças. Já o segundo sintoma, que encobre o primeiro, surge por ocasião do recebimento da carta da sua mãe, lembrando-lhe da intenção de abandonar o emprego e as crianças.

 

Todos os eventos remetem ao amor despertado em Lucy pelo patrão, quando este, numa conversa mais afável sobre a educação das filhas, dirige-lhe um olhar terno. Freud sugere o sentimento à paciente, por não se convencer que os eventos auxiliares eram bastante significativos para gerar o sintoma. Ela concorda de imediato. Perguntada por que lhe ocultara isso, diz: “Não o sabia de fato, ou melhor, não queria sabê-lo, queria tirar isso da minha cabeça, nunca mais pensar a respeito (…)”(Freud, 2016, p. 170). Numa nota, Freud comenta: “Jamais pude obter descrição melhor do singular estado em que ao mesmo tempo sabemos e não sabemos alguma coisa.” (Idem, ibidem, n.30)

 

A respeito do esquecimento dos eventos, Freud afirma: “…esse esquecimento é com frequência intencional, desejado. E é sempre bem-sucedido apenas de forma aparente.” (Freud, 2016, p.162) Há, no relato de Miss Lucy, um apego a um não-saber que está longe de ser efetivo, mas que se vale de certos recursos psíquicos para encobrir as lembranças traumáticas. Tais recursos estão presentes também em várias ficções, o que torna possível aproximá-las, neste caso, do desvendamento dos sintomas.

 

No Seminário 10, Lacan define a angústia como um afeto (o afeto que não engana) e, esclarece que se pode “encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram.” (Lacan, 1992, p. 23)[6] Ora, Miss Lucy sabe que ama o patrão. Mas percebeu que seu sentimento não era correspondido, quando ocorreu a cena entre os dois depois de uma convidada ter beijado as crianças. A reiteração desse saber na segunda cena, desta vez diretamente com outro convidado, produziu o sintoma do cheiro de fumaça de charuto, depois encoberto pelo de cheiro de torta queimada. Aqui há inversão temporal, o último sintoma prevalece sobre o primeiro, na tentativa de empurrar o afeto a que se liga para o esquecimento, e há deslocamento, da raiva do patrão dirigida a ela à raiva dele dirigida ao convidado. Aparece uma estrutura de ficção, no que a ficção pode apresentar como suspense, encobrimento para posterior descoberta, paralelismos, reviravoltas, em suma, no que com frequência se reconhece como mentiras, truques ficcionais. No caso de Lucy, as soluções seguem o tiquetaquear simbólico de um desvelamento linear – mesmo que de trás para a frente. Ainda era o século XIX, as histéricas ainda eram acusadas de mentirosas. Freud lhes dá um direito de defesa:

 

“Assim, por um lado, o mecanismo que produz a histeria corresponde a um ato de hesitação moral; por outro, apresenta-se como um dispositivo de proteção que se acha às ordens do Eu. Há não poucos casos em que é preciso admitir que a defesa contra o crescimento de excitação, pela produção de histeria, foi mesmo, então, a coisa mais apropriada (…).” (Freud, 2016, p. 178 – grifo meu)

 

Quando Freud no final pergunta à paciente: “E você ainda ama o diretor?” Ela responde: “Amo-o seguramente, mas isso já não me perturba. Posso pensar e sentir comigo mesma o que quiser.” (Freud, 2016, p. 176) Com os poucos elementos fornecidos, pode-se arriscar dizer que a satisfação de Lucy com a resolução do seu sintoma se sustenta no gozo de um amor não correspondido. Sua análise interrompe-se ainda naquela fase inicial que J-A Miller diz se desenvolver “sob o signo da revelação” (Miller, 2011, p. 104). Esse caso, a meu ver, é bem típico da “talking cure” em seu começos. Começos da psicanálise: o começo freudiano, com o método psicanalítico propriamente dito; mas também o começo lacaniano[7], com a prevalência do simbólico sobre o real. Em ambos, buscava-se chegar à cura pela fala.

 

Mas quando Freud elabora em Além do princípio do prazer o conceito de repetição, Lacan diz que aí entra em jogo o gozo (Lacan, 1998b, p. 43)[8]. Trata-se aqui de um “gozo opaco”, esse gozo que Miller caracteriza como “insubmisso, rebelde, incompatível aos olhos da estrutura da linguagem e que não se deixa significar” (2011, 190). A existência do real se impõe, sem que a linguagem possa verdadeiramente apreendê-lo, no sentido de fazer com que faça sentido. Lacan coloca as coisas assim: “Porém, o que é verdadeiro? Meu Deus, é aquilo que é dito. E o que é dito? É a frase. Mas a frase, não há meios de fazê-la se sustentar em outra coisa senão no significante, na medida em que este não concerne ao objeto.” (Lacan, 1998b, p. 53) Chega-se assim ao sinthoma como “o elemento que não pode desaparecer, que é constante” (Miller, 2011, p. 11), a um final que pode se presentificar no “passe do falasser, que não é o testemunho de um sucesso, mas de um certo modo de ratear.” (Miller, 2011, p. 124)

 

Numa ficção, mesmo que não haja nenhuma revelação a ser feita, há de qualquer forma sempre um fim. De volta a Beckett, esse fim diz de si mesmo e, ao fazê-lo, expõe o esgotamento do texto: “De nenhum modo menos. De nenhum modo pior. De nenhum modo nada. De nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Beckett, 2012, p. 87) Com isso quero dizer que a ficção de Beckett também esbarra no irredutível, de onde revela tanto o fracasso como o sucesso do seu dito, ao expor a falha da linguagem.

 

[1] BECKETT, S. “Pra frente o pior”, Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2012.
[2] BECKETT, S. “Worstward Ho”, Company etc. Faber & Faber: London, 2009.
[3] MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio De Janeiro: Zahar, 2011.
[4] KERMODE, F. The sense of an ending: studies in the theory of fiction. Oxford: Oxford University Press, 2000.
[5] FREUD, S. Obras Completas (1893-1895), v. 2: Estudos sobre a Histeria, em coautoria com Josef Breuer. Trad. Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[6] LACAN, J. (1962-1963) O Seminário. Livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[7] LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a, p. 591-652.
[8] LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b.

 


Ana Helena Souza
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG. Tradutora, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP) e autora do livro A tradução como um outro original. Email: ahelenasouza@gmail.com



Avatares E Atualidade Do “Complexo De Intrusão”

JEAN-DANIEL MATET

 

O destino do Complexo de Édipo e o que está para além dele selam o destino da família pela estrutura fora da natureza da transmissão humana que eles condicionam. Nesse ponto, a família lacaniana é, numa primeira abordagem, bem semelhante à família freudiana. Será que poderíamos dizer que a diferença entre “neurose familiar” e “psicose de tema familiar”, introduzida por Lacan nos Complexos Familiares[1] para declinar as variedades patológicas da família, teria sido reduzida posteriormente no seu ensino pelo lugar dado ao Nome-do-Pai e suas modalidades? Essa diferença indicava a falha do laço social nas psicoses e fazia do sintoma neurótico o sintoma familiar por excelência, na melhor inspiração freudiana.

 

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud sublinha a solidariedade existente entre o que ele chama então de psicologia individual e psicologia coletiva. Lacan dará importância a essa fonte freudiana durante todo o seu ensino: o outro “[…] está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um auxiliar, um oponente […]” (FREUD, 1921/1976, p. 91)[2].

 

A irmandade: uma pequena multidão freudiana

 

Os irmãos e irmãs são muitas vezes a primeira multidão com a qual o sujeito é confrontado, condicionando, em parte, o estilo das suas futuras relações sociais. As famílias se revestem de formas diferentes, segundo as tradições que as organizam; a etnologia nos deu as mais precisas descrições sobre isso. A “contração” da instituição familiar descrita por Lacan (1938/2003, p. 32), reduzida ao casal parental e a um ou dois filhos, não deixa de ser ainda hoje muito atual. O que mudou, como observou Éric Laurent, foi a importância do casamento e se o filho único não desapareceu – é comum hoje que a família se amplie pela recomposição, tendo em vista que o contrato de duração determinada substituiu o “para sempre” das coabitações parentais. A família não é mais somente o lugar da transmissão filial, distribuindo entre os irmãos e irmãs um estatuto suscetível de variar e de marcar, assim, a vida social. Havia antes os irmãos de sangue e os irmãos de leite, há hoje os meios-irmãos e irmãs que não tem, às vezes, nenhuma ligação de sangue, caso a recomposição da família já tenha conhecido várias etapas.

 

O psicanalista poderia ficar tentado a abandonar ao sociólogo, ao etnólogo ou ao sistemista essas considerações sobre a família, preferindo se ocupar somente dos destinos sintomáticos do sujeito, qualquer que fosse seu modo de existência social. Freud, que passava longe do risco de dizer uma banalidade, justificava essas considerações sobre os irmãos e irmãs pela distância que ele constatava existir entre o ideal social da família e a realidade das relações fraternas, citando, para esse propósito, Bernard Shaw: “Via de regra, só existe uma pessoa que uma menina inglesa odeia mais do que a sua mãe; é a sua irmã mais velha” (FREUD, 1915-16/1976, p. 246)[3]. A concorrência e a rivalidade entre irmãos e irmãs são, portanto, inerentes à irmandade e corroboram, assim, a observação feita por Freud (Ibidem), segundo a qual não poderia haver uma nursery sem conflito entre seus habitantes, sendo o desejo de monopolizar, em seu proveito, o amor dos pais, a possessão dos objetos e do espaço disponível ao seu motor.

 

Enodamentos singulares

 

Um sujeito dispensa todos os seus esforços para assegurar a legitimidade de seus meios-irmãos e irmãs. Durante toda a sua vida, os pais não fizeram nada para abolir a distinção entre os filhos nascidos fora do casamento e aqueles que tinham chegado depois. Com um desejo apaixonado de reparação familiar, esse sujeito vai tentar abolir o que é percebido como uma injustiça na distribuição do amor parental. Essa determinação fantasmática toma consistência no contexto de uma família recomposta, que coloca o filho em posição de adotar ou rejeitar um ou outro recém-chegado. Essa tentativa de impor a seus irmãos e irmãs uma justiça erigida como dogma, que viria corrigir as falhas dos pais, presentifica, para esse sujeito, seu esforço para assumir o erro paterno, mas ele não encontra, entretanto, a aprovação que esperava.

 

Quem, senão os pais, decide que se é irmão ou irmã numa família recomposta? Entretanto, o estatuto contratual ou legal não basta mais para definir os lugares ocupados por cada um numa família. Assim, filhos que não têm nenhum laço de consanguinidade, pois são enteados de uniões precedentes, poderão se reconhecer como irmãos e irmãs. Meios-irmãos e irmãs quererão, ao contrário, ignorar a fraternidade deles. O esforço dos pais para fazer existir esses laços familiares é certamente determinante, mas deixa uma parte da decisão a cargo do filho, que a legitimidade vela em uma irmandade consanguínea. Ora, apesar de não interrogar objetivamente a legitimidade do lugar de cada um, a irmandade tradicional é, entretanto, a balança do valor de cada um.

 

O sujeito interpreta, persegue eventualmente o objeto que ele foi para sua mãe e sua conjuntura de nascimento no desejo de seu pai. Caçula ou primogênito, o lugar ocupado na irmandade não é indiferente: ao contrário, ele constitui a especificidade da conjuntura do nascimento de um filho numa irmandade e dos traços que vão alimentar seu romance familiar. Houve um tempo em que, nas irmandades numerosas, além das mortes dos filhos pequenos, determinadas pelo estado sanitário da época, o papel de cada um era predeterminado. As filhas mais velhas ajudavam a mãe com os mais novos quando não estavam destinadas a alguma união. Quanto aos rapazes, estes encontravam um lugar em função da posição e da fortuna familiar; numa fazenda, no exército ou na igreja eles asseguravam o funcionamento patrimonial ou estavam condenados a vender sua força de trabalho à melhor oferta. Hoje, os traços de uma tal determinação são visíveis unicamente nas famílias reais que fazem a alegria dos tabloides especializados.

 

No império da subjetividade, libertação de uma mulher, entre irmã e filha

 

Na família contemporânea, os irmãos e as irmãs dependem do arbitrário de sua subjetividade. Assim, uma caçula de dois filhos deduzia sua própria inutilidade do seu lugar no discurso parental e do papel exercido por sua irmã mais velha: por um lado, ela podia dizer que se parecia com seu pai e que era a preferida da mãe, por outro, ela atribuía seus sintomas aos efeitos da devastação materna e à vontade que ela tinha de ser a eleita do pai.

 

Para um sujeito masculino, tratava-se de perceber, durante uma longa análise, a partir da morte de um irmão e do aparecimento de uma fobia dos meios de transporte, o que foi interpretado por ele como irreparável, ao passo que, para um outro sujeito, que veio fazer tardiamente uma análise, era a supervalorização da qual ele foi objeto por parte do pai, que era problemática.

 

Ora, tanto para um quanto para o outro, a morte de um irmão sancionara uma vida malsucedida, apesar de um grande investimento materno. O sucesso social fora favorável aos dois, sem que isso abalasse sua parceria sintomática com uma irmã um pouco mais velha do que eles. Quanto ao primeiro sujeito, a lembrança de uma brincadeira com sua irmã, na qual ele negava ao caçula de sete anos sua qualidade de irmão, atribuindo-lhe outros pais, diz muito sobre sua intenção segregativa. A seu modo, esses dois sujeitos são herdeiros, herdeiros do pai e da culpa que o acompanha, herdeiros do Édipo como sintoma.

 

Ao contrário, uma distribuição justa aparentemente aconteceu com um sujeito feminino, verdadeiro herdeiro, assim como seus numerosos irmãos e irmãs, da fortuna de uma avó. Ela decidiu começar então uma análise para suportar não ser mais uma assalariada do setor social e imaginar um futuro de far niente. Aconteceu que, para gozar da herança, ela deveria renunciar a um outro gozo que a depreciava e que a deixava no nível de uma medíocre desocupada com sonhos de artista “bricoleur”. Um sintoma acompanhava suas aspirações a uma vida religiosa, a uma vida de oferenda de sua própria vida, que lhe fazia endossar o apelido de uma santa: as relações com os homens às quais, entretanto, ela aspirava, causavam-lhe um grande pavor. Ela se queixava de uma castidade inevitável e persistente que lançava numa atividade fantasmática toda prática sexual. A fraternidade era seu principal modo de se relacionar, assegurando seus apoios ao sintoma, depois de ter-se refugiado numa coletividade religiosa, não sem que suas relações intensas com seus irmãos e irmãs persistisse. Admiração e irritação pelos irmãos mais velhos, especialmente pelas irmãs, desprezo pela mais nova e por seu sucesso universitário fácil demais, constituíam a sua trama. Tinha uma relação privilegiada com a irmã um ano mais nova e com a qual dizia compartilhar aspirações artísticas e também sintomas, o que constituía a base de sua conivência. Colocar à prova na análise o que ela concebia como uma nova relação fraterna, a valorização pelo analista de todos os seus projetos “egoístas”, para retomar a expressão de Freud (1915-16), tiveram como efeito a decisão de retomar seus estudos e uma atividade assalariada à altura de seus novos diplomas, cultivando um modo de satisfação que até então ela negava a si mesma. O avesso da conivência com sua irmã caçula, feito de rivalidade e de aversão odiosa, surgiu então; ele permanece, aliás, alguns anos depois, sob a forma de uma irritação. O modo fraterno foi interpretado pouco a pouco como algo que encobria o conjunto das relações desse sujeito com o mundo, incluindo os pais, o pai procurando sempre imperativamente a cumplicidade de suas filhas para compartilhar seus prazeres musicais ou literários. Foi para ela uma revelação tomar conhecimento da intensidade carnal da relação de seus pais. Um sonho recente faz intervir o pai como sedutor. Numa atitude erótica sem equívoco com a paciente, o pai a chama pelo apelido de uma tia materna considerada um ícone de beleza e explicitamente rival da mãe. Esse sonho só vinha confirmar o que já tinha acontecido muitos anos antes, quando ela tinha enfim decidido aceitar as investidas de um sedutor muito mais velho do que ela, que inaugurou sua nova e tardia vida amorosa. Fazer parte da série das mulheres desejadas por esse homem não era um obstáculo, mas, ao contrário, uma condição sine qua non. Nenhum ciúme, nenhuma reivindicação de exclusividade apareceu em uma relação que deveria ser efêmera, mas que durou, apesar de tudo, durante vários anos, revelando ao sujeito os benefícios da atuação de um desejo sexual. Quando percebeu que sua satisfação não estava à altura do que ela mostrava diante das exigências do amante, sentiu esse quiproquó como uma mentira e pôs um fim nessa relação. Temendo, além disso, que a conjuntura específica dessa ligação a tornasse única, ela tentou se colocar à prova com outros parceiros. Esse sujeito atribui explicitamente seu sucesso profissional e a atuação do mal-entendido amoroso ao sucesso terapêutico de sua análise. Ela descreve o seu tratamento como uma operação de abandono de vestimentas sucessivas: a santa, a neta preferida da avó paterna, a irmã generalizada, fazendo com que ela se reaproximasse do que considera o campo dos gozadores em detrimento do campo dos deprimidos, no qual ela coloca vários dos seus irmãos e irmãs, dentre eles sua irmã mais nova, que continua a irritá-la. Essa evolução aconteceu ao preço de um abandono da questão do filho que ela não pode esperar do pai, segundo a tradição freudiana, introduzindo, assim, na análise, um limite na borda do que a determina como objeto para o outro, já que o poder do “semelhante ao mesmo” da grande irmandade se impôs.

 

Atualidade política do complexo de intrusão

 

Lacan constata, a respeito do seu “complexo de intrusão” nos Complexos Familiares, que a observação experimental da criança e as investigações psicanalíticas, ao demonstrarem a estrutura do ciúme infantil, colocaram em evidência seu papel na gênese da sociabilidade e do conhecimento humano. O ciúme, na sua essência, representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental, acrescenta ele. A doutrina da psicanálise faz do irmão o objeto eletivo das exigências da libido homossexual, insistindo na confusão desse objeto de duas relações afetivas, amor e identificação, cuja oposição será fundamental para o estágio ulterior.

 

Encontramos no adulto essa ambiguidade original na paixão do ciúme amoroso – poderoso interesse que o sujeito demonstra pela imagem do rival (apesar de ele ser afirmado como ódio) ou em ser motivado pelo pretenso objeto do amor. Esse sentimento amoroso o domina tanto que ele pode ser interpretado como interesse essencial e positivo da paixão. A agressividade máxima encontrada nas formas psicóticas da paixão está constituída pela negação desse interesse particular, mais do que pela rivalidade que parece justificá-la.

 

Em seu ensino, Lacan faz frequentes referências às irmandades, retomando os casos freudianos do pequeno Hans, de Dora ou da jovem homossexual, comentando os casos de fobias de Anelise Schnurmann ou de Hélène Deutsch, a psicose das irmãs Papin, colocando a invidia agostiniana como uma referência maior e, sobretudo, dando todo o peso à tragédia de Antígona no Seminário VII, A ética da psicanálise.

 

Em 1972, na via de seu “Há Um”, no Seminário inédito …Ou pior, Lacan faz o elogio do Parmênides de Platão, que antecipa a dialética do mestre e do escravo de Hegel. Ele supõe o mito histórico no qual, para além das relações do mestre e do escravo, somos todos irmãos, enquanto filhos do discurso. Uma fraternidade que traz certamente as “armas e bagagens familiares”, diz ele, e que faz do analista o irmão do analisante, enquanto o analista tiver que suportar a abjeção à qual pode se agarrar o que vai nascer do dizer, não sem o bem-dizer da interpretação à qual o analista é convidado. “Nosso irmão transfigurado, é isso que nasce da conjuração analítica e é o que nos liga àquele que impropriamente chamamos de nosso paciente” (LACAN, 1972)[4]. Mas, não é sem medo de um retorno violento que Lacan evoca a noção de irmão nesse contexto da visada da análise. A essa nota universalizante, que ele nos lembra ser regulada pela exceção paterna, aquela que diz não à castração para melhor assegurar o seu alcance, ele opõe o aumento dos perigos. Retornando “à raiz do corpo”, na fraternidade do corpo, é a verdade do racismo que se anuncia e cujas últimas consequências ainda não vimos.

 

A nova aposta de Pascal

 

Antecipação luminosa quando, trinta anos depois, um telefilme intitulado Pascal e o irmão mais velho tem um sucesso de audiência em um momento em que há um aumento das segregações comunitárias. Trata-se de um educador nomeado para cuidar de uma adolescente com dificuldades, que mantém uma relação apocalíptica com sua mãe, que quer colocá-la numa instituição. O milagre opera e o educador, que soube fazer valer os argumentos de autoridade sob a máscara da fraternidade, tem sucesso na operação. É, aliás, a isso que a ideia do “irmão mais velho” se refere, herdeiro do antigo direito de primogenitura. É ele que suscita a confiança de todos os irmãos, que é amado como um irmão ao mesmo tempo em que ameaça e exerce a sua autoridade.

 

Pode-se observar que, além das caricaturas de políticos, o termo “irmão mais velho” era atribuído, na época da Guerra Fria, a uma potência estrangeira que, compartilhando seus valores, oferecia também sua proteção. É assim que hoje as periferias reivindicam seu irmão mais velho, aquele do qual suportamos os desvios de conduta e ao qual concedemos um direito de gozo, como contrapartida da autoridade que ele exerce sobre o grupo.

 

As irmandades são para a psicanálise o lugar da atualidade do que restou do Édipo. Aliás, a clínica dos sujeitos psicóticos testemunha isso, o que é também confirmado pelo êxito dos casos de algumas terapias familiares como reguladora da distância ideal entre os membros do grupo. Existem irmandades com sucesso e são, sem dúvida, aquelas nas quais o sujeito está convencido de que é sempre possível conviver com os seus piores inimigos quando as hostilidades não existem mais. O que resta no cerne da experiência analítica é a maneira pela qual o sujeito terá negociado sua parceria sintomática; assim, o irmão ou a irmã encarna, em um dado momento, um resto do desejo dos pais, deixando sua marca na sociabilidade do tempo. Dessa forma, a fraternidade à qual a nossa época nos convida sempre um pouco mais, até o clone, para uma melhor igualdade, deve suscitar a vigilância do psicanalista formado para uma clínica que o impulsiona a não apostar no grupo para o tratamento do gozo e a estar atento à segregação que essas fraternidades carregam.

 

[1] LACAN, J. (1938). Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90.
[2] FREUD, S. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, vol. 18, p. 91-179. Edição Standard das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud.
[3] FREUD, S. (1916-17) Aspectos arcaicos e infantilismo dos sonhos. In: Conferências introdutórias à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, vol. 15, p. 239-254. Edição Standard das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud.
[4] LACAN, J.(1972). O Seminário Livro XIX …Ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

 

 


JEAN-DANIEL MATET
Tradução: Márcia Bandeira Revisão da tradução: Márcia Mezêncio



A Família Na Interface Direito E Psicanálise

MÔNICA CAMPOS SILVA

 

 

Podemos observar que a família, sua construção social e os efeitos subjetivos que advieram dessa forma de aglomeração transformaram-se através dos tempos, acompanhando mudanças religiosas, econômicas e socioculturais. O conceito de família é muito extenso, podendo ser a forma de agrupamento dos indivíduos buscando a perpetuação da espécie; uma sociedade constituída por um homem e uma mulher, unidos por laço matrimonial e pelos filhos nascidos dessa união e também os novos modos e arranjos que constituem uma família na atualidade, monoparental, homoafetiva, entre outros.

 

Qual seria o lugar da família na constituição subjetiva? A partir da inscrição do sujeito no campo da linguagem, é possível uma destituição das funções paterna e materna pelo campo da Ciência e do Direito? Quais seriam os efeitos de tal experiência para o sujeito?

 

Verificamos que o desafio essencial ao direito de família na atualidade é a tentativa de normatizar e regular a família a partir da judicialização da parentalidade. Essa seria a intervenção do judiciário nos casos em que a filiação e as funções parentais não são exercidas e/ou não são, a princípio, reconhecidas, levando a uma demanda de regulação que pode ser realizada sem a concordância de algum dos envolvidos.

 

A filiação, como ponto decisivo da família, tem para o direito várias conceituações, das quais duas interessam mais de perto à psicanálise: a que é descrita exprimindo a relação que existe entre o filho e as pessoas que o geraram, bem como a que sustenta que filiação é a relação existente entre o filho e seus pais, independente da condição de concepção.

 

Quando a filiação é posta em dúvida, do ponto de vista jurídico, inicialmente, a comprovação da paternidade é feita pela certidão de nascimento do filho. Caso não seja essa constatação possível, ela pode ser verificada pelos meios de provas existentes no processo civil, tais como: prova testemunhal, prova documental e prova pericial ou científica.

 

De início, podemos nos indagar se, com as ações judiciais que visam à formatação da família e com o uso de prova cientifica, estaríamos voltando ao campo da natureza, quase não humano, ao se tentar estipular as funções de pai e mãe em base estritamente biológica, campo onde filiação e não-filiação não se distinguem no que é estrutural para a cultura. Nesta, se definiria a referência à lei e à interdição, sendo que a simples presença da biologia na definição da parentalidade, por si só, não produziria os efeitos necessários para uma inserção na cultura. Para a psicanálise, seja na família, seja na filiação, o que está em causa é mais as relações de troca, ou seja, a proibição sexual, o interdito, do que uma definição concreta de um pai ou uma mãe pela genética. Em outras palavras, as funções maternas e paternas, no sentido da constituição do sujeito, estão mais do lado simbólico do que da ratificação da biologia.

 

Ao ser atravessada por vários discursos em busca de sua constituição formal, a família contemporânea ganha certas problematizações. Para Miller (2007, p. 5),

 

(…) é possível que hoje, no discurso da ciência se possa dar o matema da reprodução, dar uma fórmula significante. Isso torna ainda mais necessário o estabelecimento de uma descontinuidade entre os modos de reprodução e a família, e explica também aquilo que nós chamamos de “dimensão histórica da família”, que não foi sempre tal como nós a conhecemos hoje. No decorrer do tempo, foram inventados diferentes modelos de família, o que nos permite estabelecer esta descontinuidade entre a natureza e a família.

 

Segundo o jurista João Batista Villela, a paternidade é uma condição cultural, tendo “sido a precedência histórica da natureza sobre a cultura que fez da paternidade, desde os tempos mais remotos, um conceito primário quando não prevalentemente biológico” (VILLELA, 1979, p. 412). Desse modo, quando o homem consegue relacionar o nascimento de uma vida nova com o desempenho anterior da atividade sexual, ele dá um salto, desligando-se da determinação da natureza e passando ao plano da cultura. A relação de causa e efeito aparece e ele preocupa-se, então, em instituir regras sociais e valores sobre fenômenos da casualidade física.

 

A origem deixa sua condição arraigada em pura base biológica e passa a ter um caráter cultural, sendo o aspecto da natureza dado por uma relação de causalidade material: a fecundação e seus necessários desdobramentos. O homem coloca em cena a vontade e a decisão sobre a geração de um ser. Como afirma esse jurista, “o homem tem o poder de pôr em ação mecanismos da natureza de que decorre o nascimento de uma pessoa ou abster-se de fazê-lo. E, diante do nascimento da pessoa, tem de novo o poder de comportar-se em relação a ela por modos vários, que vão desde o seu mais radical acolhimento à sua absoluta rejeição” (Ibidem).

 

Assim, também na vertente do direito, notamos que, no humano, é preciso pensar a filiação e a paternidade pela via da cultura, ou seja, não é o instinto e sim a transmissão, através das gerações, de leis – sendo a principal, a interdição do incesto – que permite a vida comum, entre elas, a familiar. Do ponto de vista da psicanálise, a constituição dos lugares de pai, mãe e filho são subordinados ao modo como cada sociedade e cultura se funda, sendo, contudo, necessário um desejo decidido, uma adoção por parte daqueles que produziram um fruto de sua relação. Stiglitz , em seu artigo “Adoções. A indecisão da origem”, marca que

 

(…) a função paterna opera sempre ad-hoc segundo a jurisprudência de cada época e depende da vontade de um homem. Salvo, atualmente, nas novas formas de família possibilitadas pelas técnicas de inseminação (famílias monoparentais, casais homossexuais), onde não se trata justamente da paternidade ligada a um homem, ou nas famílias judicializadas quando se trata de ratificar a paternidade contra a vontade de um homem (STIGLITZ, 2007, p. 43).

 

As novas configurações e arranjos da família em nossa atualidade têm colocado o judiciário frente a constantes desafios e impasses. Constata-se a mutação de valores e o reposicionamento de funções e lugares, diminuindo o poder do pai e produzindo reconfigurações na estrutura tradicional da família. A experiência no tribunal de família permite verificar as mudanças sociais e como o direito necessita, a cada tempo, se atualizar para responder à demanda social. Assim, casos de pedidos de guarda por companheiros do mesmo sexo eram tidos como difíceis e problemáticos na década de 90, sendo que hoje não são mais um grande desafio para o judiciário, entretanto, outras provocações se colocam. Diante dos embaraços que aparecem na regulação da família e, consequentemente, diante das novas demandas à justiça, cria-se também a necessidade da articulação do direito a outros discursos, entre eles, a psicanálise.

 

De forma breve, a transformação da família ao longo do tempo passa pela noção de pater familiae. Esse conceito, que vem desde a antiguidade, envolve a noção de família e da autoridade do pater – pai –, fazendo distinguir a natureza do aspecto cultural no que tange a figura do pai: “enquanto o genitor designa o pai que gerou fisicamente o filho, pater é a figura social que conjuga as funções de chefe da casa, representante do judiciário, chefe político e religioso” (Blisktein, 2006, p. 8).

 

O poder familiar, que tem como referência para seu estudo histórico o direito romano, era algo comparável ao poder de propriedade, sempre exercido pelo pai, chefe da família, sobre todos que o cercavam – filhos, esposas e outros que compusessem o que era interpelado como família (cf. Grisard Filho, 2000, p. 29), tendo o pai um poder perene sobre sua prole. Essa estrutura máxima do poder familiar se mantem na Idade Média, acontecendo uma primeira mudança na Idade Moderna, com a troca do sistema feudal pelo conceito de Estado Nacional, em que se estende ao estado o que antes eram funções somente da família, entre as quais a de defesa e de assistência, iniciando, de algum modo, o enfraquecimento do patriarcado. Mais adiante, na Idade Contemporânea, outro acontecimento importante mexe com a estrutura e funcionamento da família: a Revolução Industrial. Momento em que cada membro vai trabalhar dentro das fábricas, passando a exercer uma função econômica. Entretanto, mesmo havendo certa divisão nas obrigações e um rastro nítido de certo declínio do patriarcado, é com o pai que permanece o pátrio poder.

 

Na atualidade, podemos perceber que a família ganhou gestores laterais – a justiça, a educação, a ciência – que vêm intervindo no seu modo de funcionar. Observamos como na época presente a família vem perdendo sua autonomia, sua particularidade, em face ao “padrão familiar”, ou seja, ao que é ser família (um exemplo é o Estatuto da Família). Nessa medida, temos como consequência um excesso de regulação pelo jurídico na família, em resposta às demandas contemporâneas de normatização das relações parentais. Os efeitos desse excesso de intervenção no seio familiar, no singular constituído, também podem ser percebidos nos modos de parentalidade e filiação em nosso tempo, quando os lugares já não respondem enquanto função, e a impotência estabelecida retorna como outra demanda de regulação externa.

 

Desse modo, cada vez mais, as dificuldades se colocam para o direito de família e mesmo para a sustentação de uma lei reguladora. O que fazer com o que escapa e não cessa de demandar novas respostas? A psicanálise, diante do insustentável da resposta padrão de como deve ser uma família, vai buscar o singular da constituição familiar para o sujeito, mantendo viva, em sua interlocução com o jurídico, as perguntas: é possível que uma filiação ou uma paternidade seja construída somente com a prova biológica e ou com a sentença judicial? Que uma família seja constituída assim? São questões de difícil resposta, considerando a história particular de cada caso. Entretanto, podemos notar que o “senhor absoluto” da certeza e da garantia retorna pelo viés da natureza, do organismo, quando, em nome do biológico, se destitui ou se estipula uma parentalidade, sem a inscrição própria à função que estaria no campo da cultura. Fica a questão se os efeitos do declínio do poder do pai na civilização estariam provocando um retorno deste pela via da natureza.

 

No Direito, encontramos a terminologia “verdade real”, que introduz alguma coisa para além dos laços afetivos e familiares, abrindo espaço ao caráter especificamente biológico. Constata-se, contudo, que o mesmo direito, em sua relação com a contemporaneidade, tenta buscar, em outros meios de prova, o estabelecimento da paternidade, ou seja, relações de família, o amor, o afeto, a relação de pais e filhos, contrapondo-se ele próprio à “verdade real”, determinada exclusivamente pela biologia, pela ciência.

 

A entrada dos dispositivos da ciência tem, no entanto, impactado essa mudança. O advento do DNA e de novas leis e jurisprudências vêm diminuindo a autonomia do arranjo familiar e delegando à ciência e à justiça o poder de nomeação e conceitualização da paternidade e maternidade. Do lado da Ciência, temos o DNA decidindo o destino das relações de parentesco. Do lado da Lei, temos a legislação das relações de parentesco e do como fazer nas funções parentais, como as recentes leis de alienação parental e da palmada[1]. Contudo, é importante perceber que, atualmente, em sua ausência de identidade, a família permite e solicita a entrada desses discursos, e vem buscando também cada vez mais reguladores externos para sustentá-la, introduzindo uma sorte de efeitos para os quais ela também não se sente preparada.

 

Lacan situa como função da família e do pai a transmissão da lei e do interdito, sendo, por conseguinte, o que faz inserção na cultura. Para a psicanálise, a família que habita o mundo não está sozinha e, nesse sentido, é regulada por toda uma série de regras e leis que escapam à própria singularidade familiar. Em seu texto “A Família”[2], Lacan (1938, p. 14) esclarece que

 

(…) a família humana permite observar, nas funções maternais, por exemplo, alguns traços de comportamento instintivo, identificáveis aos da família biológica, basta refletir no que o sentimento da paternidade deve aos postulados espirituais que marcaram o seu desenvolvimento, para compreender que neste domínio as instâncias culturais dominam as naturais.

 

Assim, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura, presidindo os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, “estabelecendo assim entre as gerações uma continuidade psíquica”, ou seja, “uma instituição cuja função primordial é a de uma transmissão” (Lacan, 1938, p. 13-19), sendo essa veiculada pela função paterna. Essa transmissão seria da castração, ela própria efeito da linguagem. Lacan esclarece que o Nome-do-Pai é o pai simbólico, o pai morto que media as relações do sujeito com o mundo. Assim, a noção de pai está diretamente vinculada com a noção de Nome-do-Pai. Há, em Lacan, nesse momento de sua teoria, outras duas vertentes de pai: a real, agente da castração, e a imaginária, que incide no sujeito de modo ameaçador, também pelo viés da castração. Em todos os casos, o Nome-do-Pai é o princípio regulador, ação simbólica fundante de uma estrutura. Lacan desenvolverá mais tarde a dimensão do Nome-do-Pai, operador da transmissão, que “tem a missão de introduzir a relação entre o significante e o significado, de tal forma que se possa elucubrar uma linguagem a partir dos elementos da língua” (Stiglitz, 2007, p. 44).

 

Em “Nota sobre a criança” , Lacan (1969/2003) situa as funções do pai e da mãe como nomes que marcam uma particularidade do desejo da criança, sendo instrumentos de inscrição do sujeito. Postula ainda que “o sintoma da criança é capaz de responder pelo que há de sintomático na estrutura familiar, sendo o representante da verdade do par parental” (LACAN, 1969/2003, p. 369-370). Nessa nota, vemos ser tratado o que a prática psicanalítica experiencia junto às varas de família, ou seja, a criança traz seu sintoma, seu ponto de alienação, representando seu lugar no fantasma parental. Muitas vezes os filhos, como puro objeto, são motivo da disputa judicial que, na realidade, diz respeito a questões que se referem, exclusivamente, ao homem e à mulher. A criança vai corporificar o lugar de fracasso e engano ao assumir o lugar da verdade, produzindo sintoma.

 

Podemos extrair ainda desse texto que há, no seio da família, uma “irredutibilidade de uma transmissão” (Idem, p. 369), que é de outra ordem que não a da vida,

 

(…) segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo, ou seja, é por tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do pai. Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas, do pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma encarnação da lei no desejo (Ibidem).

 

De tal forma, o lugar da família na história do sujeito marca, principalmente, o modo como um desejo particularizado se inscreveu e como, diante desse investimento, o sujeito respondeu, ao se colocar como filho e nomear seu pai e sua mãe. Nas ações em que as funções parentais são questionadas – ou mesmo nas paternidades judicializadas – , o que podemos perceber é o aparecimento de uma disjunção entre lei e desejo. Essa disjunção pode permitir o surgimento de uma equivalência perigosa entre a paternidade/maternidade, campo do desejo, e a parentalidade fundada pela justiça ou pela ciência. Tal correspondência, ao ignorar a subjetividade e privilegiar a certeza e garantia dada pelo direito ou pela biologia, produz o equívoco da naturalização da paternidade.

 

Miller (2007, p. 4-5), ao comentar o tema, propõe que a família

 

(…) é um lugar inesgotável de interpretação, pois cada família tem um ponto de “não se fala disso”, não existe família sem esse ponto; isso pode ser o tabu do sexo ou falar da falta de um ancestral. No centro dos assuntos de família encontram-se sempre coisas proibidas. Bem entendido, há primeiramente o tabu do incesto. É a razão pela qual a família como lugar do Outro da língua, é também o lugar do Outro da lei.

 

Desse modo, a constituição da família para o sujeito se daria a partir da resposta dos pais ao lugar que ocupam frente às necessidades e demandas de seu filho, permitindo o aparecimento do desejo, ou seja, o lugar de um filho, de um pai e de uma mãe. Lacan (1969/2003) comenta que o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. Ao introduzir a cena edipiana, indica que o pai é aquele que vai fazer a mediação entre o desejo e a lei. Lembramos, assim, que o pai vai veicular a lei e o desejo em face ao gozo, sendo necessário, no entanto, que a mãe autorize. A entrada de um terceiro na relação entre mãe e criança é o que pode ofertar uma inserção no campo da linguagem com seu efeito de castração e produção de um desejo, sendo melhor que a criança revele a verdade do par parental do que a subjetividade da mãe, ao evidenciar a verdade do objeto, em uma relação dual.

 

Miller avança e cerne o que podemos manter como família para o sujeito diante do grande espectro que esse núcleo ganhou em nossa época. Segundo ele,

 

(…) o que nós poderíamos dizer, hoje, dessa definição da família? Que ela tem origem no casamento? Não, a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. Que ela seja formada pelo marido, pela esposa e suas crianças, etc.? Não, a família é formada pelo Nome-do-Pai, pelo desejo da mãe e pelo objeto a. Que eles são unidos por laços legais, por direitos, por deveres e etc.? Não, a família é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não dito. Qual é o segredo? Qual é esse não dito? É um desejo não dito, é sempre um segredo sobre o gozo (Miller, 2007, p. 6).

 

Nessa vertente, quando Miller (2007) pondera sobre as questões que recaem sobre a família hoje, podemos pensar que há uma busca de normatização do campo familiar, proporcional ao ensejo de naturalizar as relações de parentesco. A paternidade judicializada, baseada no exame do DNA, nos dá a noção da tendência que vem sendo empregada frente às demandas de resoluções em certos conflitos familiares, desconsiderando o mal-entendido, o desejo, o segredo e o não-dito.

 

Para Laurent (2008, p. 1),

 

(…) o que a psicanálise nos demonstra é a família no lugar de substituição do biológico pelo simbólico: a mãe e o pai são definidos como funções. O sujeito é que terá, portanto, a tarefa de constituir sua família, no sentido em que ela institui uma distribuição dos nomes do pai e da mãe. A tarefa não é, portanto, aliviada pela ficção jurídica. Alguma coisa dos lugares do pai e da mãe é, portanto, ineliminável: não como garantidor, mas como resíduo.

 

Diante dessa perspectiva, as intervenções no campo jurídico não teriam efeitos no que está inscrito como família, não há a possibilidade de se instaurar as funções parentais do ponto de vista psíquico pelo viés jurídico. Terá que haver um consentimento, um investimento que passa pelo sujeito pai ou mãe para que essas inscrições se registrem. Não há também, pelo mesmo caminho, como destituir ou anular uma função e seus efeitos subjetivos no sujeito filho. Sabemos que a resposta da ciência e a ratificação pelo jurídico vão tocar na verdade do sujeito, imprimindo a necessidade de uma nova solução diante do real que se oferece. Contudo, o jurídico tem sua base muito próxima ao pai, quando tratamos da instauração da cultura pela assimilação da lei, e talvez nesse sentido seja possível apostar que o direito possa se tornar mais sensível às questões do sujeito, às particularidades do “um a um” que se envolvem nas demandas sobre a família.

 

Para concluir, há, como atestam Laurent (2008) e Stiglitz (2007), algo ineliminável na família que a ficção jurídica não contempla. Mesmo que se imponha uma filiação ou paternidade pelo viés jurídico, isso não dá a garantia de uma inscrição subjetiva do pai. A outra face dessa mesma moeda é que, mesmo inscritos o pai e a lei do desejo, a saída de cena do pai pode provocar efeitos no sujeito que a ficção jurídica não contempla.

 

 

[1] Trata dos limites dos genitores no castigo com os filhos.
[2] Este texto foi posteriormente nomeado como “Os Complexos Familiares”.

 

 

 


REFERÊNCIAS 
Blisktein, D. DNA, paternidade e filiação. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
______. (1909/1980) O romance familiar. In: ESB, vol. 9. Rio de Janeiro: Imago.
Grisard Filho, W. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
Lacan, J. (1938/1981) A Família. Lisboa: Assírio e Alvim.
______. (1953/1987) Mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim
______. (1969/2003) Nota sobre a Criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1956-57/1995) O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1957-58/1999) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1974-75) O seminário, livro 22: R.S.I. – inédito.
Laurent, E. Século XXI – não relação globalizada e igualdade dos termos. 2008, Inédito.
Legendre, P. (1999) Seriam os fundamentos da ordem jurídica razoáveis? In: S. Altoé (Org.). Sujeito do direito, sujeito do desejo. Rio de Janeiro: Revinter.
Miller, J.-A. (out. 2007) Assuntos de família no inconsciente. Recuperado em 4 de dezembro de 2010 www.nucleosephora.com/asephallus/…04/traducao_01.htm
Sliglitz, G. Adoção. A indecisão da Origem. In: Opção Lacaniana (vol.50). São Paulo: Eolia, 2007, p. 43-45.
Villela, J. B. (1979) Desbiologização da Paternidade. In: Revista da Faculdade de Direito, 21, p. 401-419. Recuperado em 30 de julho de 2010, /www.abmp.org.br
MÔNICA CAMPOS SILVA



Inconsciente E Família

SÉRGIO LAIA

 

 

A família se configura como um tema de fundamental interesse para a sociedade contemporânea e, consequentemente, para a clínica psicanalítica. Em que sentido as profundas transformações que essa instituição tem sofrido, acarretam consequências na transmissão de uma constituição subjetiva?

A referência à “transmissão… de uma constituição subjetiva”, como sabemos, pode ser encontrada no segundo parágrafo da célebre “Nota sobre a criança”, escrita por Jacques Lacan[1]. Esse parágrafo, por sua vez, se conclui dizendo que tal transmissão implica “a relação com um desejo que não seja anônimo”[2]. Já nessa conclusão desse segundo parágrafo, temos elementos para responder à questão sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Afinal, vivemos em um mundo onde os nomes proliferam, por exemplo, na designação de orientações ou mesmo identidades sexuais, de transtornos mentais, de modos de composição familiar, de marcas de produtos de consumo, etc. Entretanto, será que essa proliferação ou, retomando outra expressão que Lacan utilizou em “A subversão do sujeito e suas relações com o inconsciente freudiano”, esse “mar dos nomes próprios”[3], efetivamente deixa espaço para um desejo não-anônimo? Se tomarmos como referência para responder a essa questão um clássico da sociologia como Durkheim[4], diríamos que não, porque esse sociólogo articula o aparecimento da então sociedade industrial com o desvanecimento da “família patriarcal”, o surgimento da “família conjugal” e a intensificação da “anomia”, ou seja, do anonimato. Porém, o ensino de Lacan nos abre outra via. Para tematizá-la, me sirvo também do escrito lacaniano sobre a subversão do sujeito, produzido no início dessa década de 1960 que, sabemos, foi um marco das transformações familiares com o “amor livre”, o aumento dos “desquites” e dos “divórcios”, a “liberação feminina”, a disseminação do uso dos “anticoncepcionais”, etc. Segundo Lacan, um “ser aparece como que faltando no mar dos nomes próprios”[5] ou, em outras palavras, a proliferação dos nomes não apaga o que lhe falta: o inominável insiste, nesse “mar dos nomes próprios”, mas ele não deve ser confundido com o anônimo, pois se insurge entre os nomes próprios, “como que faltando”[6]. Mas que ser inominável é esse? A resposta de Lacan, nesse mesmo escrito de 1960, não é direta, mas articula tal ser a um lugar que ele chama de “Gozo… cuja falta tornaria vão o universo”[7]. Ora, não há dúvida de que as sociedades contemporâneas vivem sob a pressão de um gozo que sempre precisa dar mostras de sua existência e de sua efetividade, que não pode parar e cujo mínimo vacilo é vivido como um desmoronamento do universo ou, para retomar os termos de Lacan, um universo vão. Neste mundo do gozo a qualquer preço, a “transmissão de uma constituição subjetiva” não é necessariamente abolida, nem apagada. Ela me parece transmutada. Antes, ela tentava se valer de referenciais que evocavam uma unicidade: na transmissão de tipo patriarcal, tudo se remetia ao “nome de família”, à “referência paterna” (a “esposa de fulano”, o “filho de beltrano”…) ou, por oposição, também ao que esse nome e essa referência não conseguiam abarcar (a “adúltera”, a “prostituta”, o “bastardo”, o “desviado”…). No mundo contemporâneo, a constituição subjetiva se pluraliza: em vez de um referencial unitário, há muito mais uma “constelação” de referências, e evoco essa dimensão constelar me servindo de “Lituraterra”[8]. Porém, ao invés de simplesmente se entusiasmar ou ajudar a propagar essa proliferação de nomes, a psicanálise de orientação lacaniana nos leva muito mais a interessar pela falha que, nesse “mar dos nomes próprios”, não deixa de se reiterar, mesmo se o gozo que aí transborda nem sempre a faz ser escutada. A experiência analítica é uma espécie de amplificador dessa falha que, embora insistente no mundo contemporâneo, é cada vez mais inaudível em meio à proliferação dos nomes próprios. Através dessa experiência e do que ela amplifica, verificamos que a especificidade de cada constituição subjetiva, ou, para evocar um termo caro aos nossos dias, a “diferença”, virá muito mais dessa falha que da proliferação dos nomes próprios.

 

De que maneira as distintas funções que coexistem no grupo familiar e os laços sintomáticos que se efetuam são afetados por uma época do Outro que não existe?

Efetivamente, o que você chama de “distintas funções que coexistem no grupo familiar” são, para Lacan (e aqui retorno ao escrito “Nota sobre a criança”), apenas duas: a função do pai e a função da mãe. Sobretudo tendo em vista os debates atuais sobre as diferentes formas de se compor uma família, e que são diferentes especialmente frente ao chamado “modelo heteronormativo”, sublinho que, por estarem associados ao termo função, as palavras pai e mãe não correspondem respectivamente a homem e mulher anatomicamente falando. Como nossa época é também tomada pelo que se apresenta como performance, acho igualmente importante lembrar que, para Lacan, função não é sinônimo de “papel” ou “desempenho”: ele me parece extrair esse termo da matemática e, assim, função é o que, por exemplo, estabelece uma relação entre dois diferentes conjuntos, entre elementos heterogêneos. Assim, a função da mãe é tematizada por Lacan como aquela cujos “cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas”[9], ou seja, essa função relaciona, pelo viés dos cuidados, a criança (conjunto 1) e o que diz respeito à própria particularidade de quem dela cuida, ou seja, ao modo como a criança vem responder às “faltas” de quem ela recebe os cuidados, às formas como a mãe é parte interessada (conjunto 2) nos cuidados da criança. Nesse viés, os cuidados ditos maternos implicam interesses que extrapolam a maternidade. Por sua vez, a função do pai também relaciona elementos provenientes de distintos conjuntos, porque, segundo Lacan, “seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”[10] e, assim, temos, por um lado, numa espécie de conjunto B, os elementos, digamos, mais abstratos que são “nome”, “vetor”, “Lei” e, por outro lado, numa espécie de conjunto C, os elementos que eu chamaria de mais corporais e que são “encarnação” e “desejo”. Tanto na função da mãe, quanto na função do pai, reencontramos o que, na resposta à questão anterior, eu assinalei como o que falha na proliferação dos nomes próprios: se há um interesse particular da mãe ao cuidar da criança, cada mãe será muito diferente do que se idealiza ou padroniza como sendo “A Mãe” e estará em falta frente a todos os nomes próprios que procuram designar o que é ser mãe; por sua vez, um pai estará em falta com “O Pai” idealizado ou padronizado e com os nomes próprios que pretendem referenciar o que é ser pai, na medida em que a encarnação da Lei no desejo não comporta um padrão ou o que valeria para tudo e para todos. Nesse contexto, e retomando o final de sua questão, se nossa época está efetivamente marcada pela inexistência do Outro, isto é, desse lugar onde encontraríamos todos os significantes que procuram designar-nos, os nomes próprios proliferam como tentativas de serem referenciais. Assim, o Outro não existe, mas os mais diversos nomes próprios podem ser acessados, o que cada um deseja toma a dimensão de lei inexorável, as crianças se tornam objetos de cuidados como nunca antes se viu em nossa civilização. Entretanto, a experiência analítica ensina-nos que a imposição da lei do desejo não é efetivamente encarnar a lei no desejo, ou seja não é articular elementos distintos (lei e desejo); nesse mesmo viés, o afã contemporâneo de se tomar a criança como objeto inquestionável de cuidados muitas vezes desconsidera completamente as particularidades específicas de cada criança, assim como a diversidade sempre crescente dos nomes próprios não favorece necessariamente um saber sobre o que nos designa ou nomeia em nossas particularidades. Por conseguinte, neste mundo do Outro que não existe, os sintomas continuam proliferando, mesmo se já não se manifestam mais exatamente como chegavam, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, ao consultório de Freud.

 

Em cada época, cabe aos analistas interpretar e responder às conjunções de cada cultura, com uma posição ética e eficaz, considerando a psicanálise enquanto uma prática aplicada ao sofrimento humano. Nessa perspectiva, até que ponto a Orientação Lacaniana se configura como um vetor da prática psicanalítica em nossos dias?

Sem dúvida, a psicanálise de orientação lacaniana, ao poder amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias, tem muito a fazer neste mundo e é uma ferramenta de grande efetividade. Porém, essa orientação nos exige conceber a psicanálise muito mais do que, nesta terceira pergunta, é evocado como “prática aplicada ao sofrimento humano”. Certamente, ela incide e se aplica a tal sofrimento, mas sua força está muito mais em nos permitir a nos interessar pelo que está além do que um Nietzsche chamou de “humano demasiadamente humano”. Por isso, de acordo com o que Jacques-Alain Miller diversas vezes ressaltou, Lacan vai preferir em falar de “experiência analítica”: a noção de experiência pode comportar inclusive o que extrapola as concepções do que é humano, mas sem que isso implique qualquer desumanização – ela nos convoca a estarmos atentos às invenções, a como cada um se vira frente ao que não lhe é “humano, demasiadamente humano” e que ao mesmo tempo lhe habita e transtorna.

Quanto à parte da sua pergunta que procura averiguar se a orientação lacaniana pode ser “um vetor da prática psicanalítica” hoje, considero que, embora estejamos em muitos lugares e muito além de nossos consultórios particulares, não é ainda possível sustentar que tal orientação seja um vetor da prática analítica. Como um exemplo, contemplando o tema “Inconsciente e família”, cito o livro Francisco Bosco, Orfeu de bicicleta: um pai no século XXI, publicado pela Editora Foz, do Rio de Janeiro, em 2015. Trata-se de um depoimento sobre como a paternidade se apresentou por duas vezes na vida desse autor e de como ele a vive de modo completamente diferente do que acontecia, em geral, aos pais de algumas décadas atrás. Já no início da Primeira Parte, por exemplo, poderemos ler uma frase que, recortada, soa bem lacaniana: “a paternidade é uma questão” (p. 17). Ao longo do livro, vemos Francisco Bosco, mesmo perpassado pela inexistência do Outro, tendo de se colocar como um Outro, por exemplo, para sua filha primogênita e seu filho caçula. Entretanto, quando ele busca a psicanálise para tematizar a questão que lhe toma o corpo especialmente com o nascimento de seus filhos, suas referências são Sigmund Freud, Donald Winnicott, Françoise Dolto, Contardo Caligaris e Maria Rita Khel. Embora, de algum modo, a referência a Lacan não deixa de estar presente em Dolto, Caligaris e Khel, não se trata propriamente ainda da orientação lacaniana e, quando li os diferentes (e bem contemporâneos) modos como Francisco Bosco é afetado e responde ao que ele mesmo chama de “impacto enorme” da paternidade em sua vida, diversas vezes me ocorreu o quanto a orientação lacaniana poderia contribuir para suas elaborações e seus impasses…

 

Na sua opinião quais as questões fundamentais deverão orientar a nossa reflexão sobre o tema: Inconsciente e família?

 

Acho que sobretudo suas duas primeiras questões e a última são guias excelentes para essa reflexão. Além delas, eu acrescentaria, a princípio, mais duas.

Uma, me ocorreu outro dia, quando relia “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” e me deparei com a seguinte consideração freudiana sobre uma das possibilidades de se sair do complexo de Édipo: “no caso normal – melhor dizendo: ideal – não subsiste mais um complexo de Édipo no inconsciente, o Super-eu é seu herdeiro”[11]. Parece-me que não é incomum, sobretudo em certos casos de adolescentes e jovens adultos que chegam hoje a nossos consultórios, nos depararmos com esse tipo de situação “ideal” aludida por Freud: eles não nos reportam propriamente o que o criador da psicanálise localizava como “conflitos edipianos”, a vida familiar que têm (mesmo com os problemas que ela comporta) é considerada por eles como absolutamente “normal” e, de fato, parece ser mesmo. Alguns sequer conseguem localizar exatamente o que lhes levam a procurar-nos, embora queiram analisar-se e são frequentes nas sessões. Mas, imerso nessa “normalidade”, não deixamos de encontrar a presença insidiosa do supereu. Nesse contexto, parece-me interessante explorar como, em casos assim, a não subsistência do complexo de Édipo no inconsciente poderia implicar a presença insidiosa do supereu que, no entanto, é herdeiro desse mesmo complexo. Em outros termos, se o complexo de Édipo não subsiste no inconsciente, tal “normalidade” seria tomada pelo supereu que alguns pós-freudianos preferiram qualificar de “pré-edípico” e que Lacan pôde destacar mais claramente nas psicoses? Eu não incluo, nas psicoses, os casos a que faço alusão aqui, mas me parece impressionante que, no mundo onde o Outro não existe, tudo tende a ser considerado “normal” e, nesse viés, poderíamos investigar se o supereu se imporia, então, como uma espécie de retorno no real de conflitos que, por não mais subsistirem no inconsciente, não se apresentam na realidade e, assim, fazem com que a realidade pareça normal embora, efetivamente, ela seja perturbada pela presença real do supereu.

Uma outra questão seria sobre o estatuto do falo hoje e de como Lacan, sobretudo no final de seu ensino, tematiza o falo. Por um lado, vivemos em um mundo que confere a todo tempo descrédito ao falo, sobretudo porque o toma como “patriarcal”, “heteronormativo”, bastião de um “binarismo” que desconsidera completamente a “diversidade sexual”. Por outro lado, no Seminário 23, Lacan aborda o falo como “falácia” que “testemunha” o real e como “único real que verifica o que quer que seja”[12]. Nessa abordagem, não encontraríamos meios para enfrentarmos o descrédito contemporâneo atribuído ao falo e até de – sem qualquer retorno ao chamado “falocentrismo” – irmos além dos impasses que tal descrédito não deixa de implicar?

 

Considerando-se o fenômeno do “domínio materno”, indicado por Miller como uma “expressão da feminização da nossa época”, qual a contribuição da psicanálise, tendo em vista as dificuldades das famílias contemporâneas para articular lei e desejo, no processo de transmissão de uma constituição subjetiva?

 

Vivemos em um mundo onde cada vez mais a fala tende a perder o lastro corporal (por exemplo nas “conversas” intermináveis por Whatsapp) e os corpos tendem a se mostrar como se pudessem desconectar-se da fala (por exemplo, na demanda imperativa “manda nudes!”). Antes, a função paterna procurava dar algum lugar à conjugação da fala e do corpo, mas que se demonstra hoje muitas vezes insustentável porque soa (ou mesmo efetivamente é) autoritária, centralista, pouco ou nada afeita às nuances do que lhe escapa e se apresenta como “feminino”. A meu ver, a psicanálise de orientação lacaniana apresenta-nos um uso inédito da conjugação da fala e do corpo porque esse uso implica ir “mais além do complexo de Édipo” e outro modo de “viver as pulsões”. Nesse contexto, ela tem muito a contribuir, inclusive para que descubramos, nas tramas da feminização do mundo, a reiteração, mesmo de modo transmutado, do domínio materno. Mas devemos também zelar para que essa contribuição não tome, como algumas vezes escuto (até mesmo entre nós, psicanalistas de orientação lacaniana) uma perspectiva messiânica e salvacionista. Afinal, o próprio Freud já nos ensinou que, sob a face sacrificial do filho salvador, o que insiste é o sacrifício do pai que torna o pai morto mais forte que o pai quando vivo. Logo, se a contribuição da psicanálise de orientação lacaniana tomar uma perspectiva messiânica e salvacionista, ela se fará em “Nome do Pai” e perderá seu ineditismo de conjugar corpo e fala e de dar um lugar ao feminino como uma exceção diversa do pai, da mãe e mesmo d’A mulher.

 

Respostas redigidas por Sérgio Laia

Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME), pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Professor Titular IV do Mestrado de Estudos Culturais Contemporâneos e do Curso de Psicologia da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura); Pesquisador com projeto aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e pelo Programa de Pesquisa e Iniciação Científica (ProPIC) da Universidade FUMEC; Mestre em Filosofia e Doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

 

[1] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[2] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[3] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[4] DURKHEIM, Émile (1892/1975). La famille conjugale. In: Textes. Paris: Minuit.
[5] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,, p. 834.
[6] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[7]LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[8] LACAN, Jacques (1971/2003). “Lituraterra”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 24.
[9] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[10] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[11] FREUD, S. (1925/2011). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In: Obras Completas, vol. 16. São Paulo: Companhia das Letras, p. 297.
[12] LACAN, Jacques (1975-1976/2007). O seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, p. 101-115.



Entrevista Com Márcia Tiburi Sobre O Livro “Uma Fuga Perfeita É Sem Volta

LUDMILLA FÉRES FARIA E MÁRCIA MEZÊNCIO

 

 

SWAYING 1

 

 

Nosso encontro com seu livro foi provocado por uma entrevista a uma rádio de BH, por ocasião do seu lançamento, que ressoou com o tema de trabalho ao qual nos dedicaremos no ano de 2017 na Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais, que são os assuntos de família. Nessa entrevista, você localizava o ponto de partida da trama e a notícia da morte do pai transmitida entre trivialidades e dizia ter se perguntado se não havia exagerado ao propor essa situação. Em nossos consultórios, tem nos chamado a atenção justamente a forma como são relatadas algumas situações, entre banalidades, particularmente alguns assuntos de família, de forma alguma banais.
Assim, nossa entrada se dá por esse viés e, ainda que os temas abordados pelo livro nos proponham inúmeras questões, foi ele o que nos orientou a
leitura, prazerosa e desconcertante, desse romance.

 

Em sua entrevista, ao blog da Editora Record, sobre o livro “Uma fuga perfeita é sem volta”, você afirma que o romance nasceu de alguns sonhos seus, e que a psicanálise não daria conta daqueles sonhos. Em que sentido você faz essa afirmação? A escrita do livro foi, então, uma forma de responder as questões que os sonhos colocaram?

 

O livro nasceu apenas porque eu tinha um sonho recorrente. A cena inicial na qual Klaus demonstra sua perplexidade com a notícia, e a forma como ela é dada, era o conteúdo com o qual sonhei várias vezes. No sonho, eu ligava para uma de minhas irmãs e ela me dizia, entre trivialidades, que meu pai tinha morrido. No sonho, eu ficava perplexa. Ao acordar, permanecia perplexa. Inclusive, em algum momento, cheguei a pensar que pudesse ser verdade e que minha família fosse tão estranha que pudesse deixar de me falar uma coisa dessas.

 

Embora eu faça análise (ainda que esteja, exatamente neste momento, em uma lacuna no tempo da análise), creio que, depois de Lacan, o sonho não importa mais do mesmo modo como importava em uma leitura freudiana. Mas os sonhos são importantes para mim, mais do que por questões psicanalíticas, porque são narrativas elementares que mostram coisas muito evidentes. São ideias em estado primitivo. Pensamentos primitivos, cheios de conteúdo, às vezes melhor formulados do que pensamentos racionais. Meu personagem empresta muito da minha própria pessoa, inclusive meus sonhos. Com exceção do sonho do gago com o morto no sótão, os demais são sonhos que eu realmente tive. Ou seja, esse livro é atravessado por um caderno de sonhos.

 

Desde o início, o tema da família ocupa um lugar preponderante no desenrolar da trama e, em especial, na escritura da identidade” do protagonista, que, conforme você afirma, está aprisionado nos ditos e nas histórias familiares. Ao final, ele afirma ter encontrado uma “nova forma de viver”. Seria essa sua metamorfose, desaprisionar-se da família “das paredes gélidas e escuras da lembrança que desabam sobre nós um dia” (p. 98)?

 

Meu personagem nasceu de um modo muito espontâneo, mas aos poucos fui me dando conta de que ele era uma espécie de estrangeiro desde o nascimento. Um estrangeiro na própria casa. Há algo nele de Antígona, mas só percebi essa questão bem tarde. Ele vive aquela ideia benjaminiana de que não há nada mais estrangeiro do que o corpo. Ora, a cidade é corpo. A política é corpo. Digamos que o próprio corpo é uma primeira experiência de estrangeirismo. A nova forma de viver é um modo de assumir sua condição estrangeira. É saber-se diferente no meio de uma identidade ameaçadora e aniquiladora. A família nos constrói, pouco do que somos é autônomo. O desejo é essa porta que se abre, ou a porta que conseguimos abrir para escapar da prisão, digamos assim. Nesse sentido, a fuga do meu personagem é uma fuga da prisão da família. A família que permanece dentro de nós, para sempre.

 

Ao tema da família, então, se liga o tema da fuga. Considerando a fuga perfeita, sem volta, como afirmado no título, e ainda “que a grande fuga se dá de fora para dentro, não de dentro para fora” (p. 139), que é seguida da ideia da possibilidade de retorno ao Brasil, perguntamo-nos se existe fuga perfeita e se o personagem a atinge. Podemos ler assim quando, referindo-se ao conto de A. A., ele diz que Saint-Éxupery “precisava de uma fuga perfeita que pudesse salvar sua própria vida, e o único modo era acabar com ela e redimensioná-la” (p. 574), e ainda que “Ele organizou a fuga perfeita. A fuga por metamorfose. A fuga sem volta.” (p. 588)? Voltar para confirmar-se (p. 199) não ser o que eles são, desobrigado de qualquer dívida, ainda que preso a si mesmo (p. 143)?

 

O que significa essa fuga perfeita? Fugas há muitas, mas uma perfeita é mais bem complicado. Klaus experimenta um aprisionamento em si mesmo ao qual foi condenado pela família, incapaz de olhar para ele. A mãe que morre louca, o pai que não suportava sua figura, a irmã que era uma esperança e que, infelizmente, não foi capaz de perceber o caráter extraordinário que os unia. Mas ele se sente culpado, sobretudo pela irmã. Ao mesmo tempo, ele se considera digno de uma outra vida possível. Daí o papel de A. A. A criação de Agnes Atanassova a partir do que está disponível, os objetos da casa, as roupas e acessórios do velho guarda-roupa, um pedaço de história escrita em um caderno abandonado, os restos deixados pelos outros nos achados e perdidos. Klaus é, a meu ver, um efeito do abandono ao qual estamos todos condenados. A. A. tem o teor de um encontro. Eu fui abandonado, mas eu posso encontrar, no que foi abandonado, uma saída para o meu próprio abandono. Todo encontro, todo “encontrar” é, também, em alguma medida, inventar. É isso o que Klaus nos faz saber. Agnes Atanassova é a fuga perfeita. A meu ver, a história da morte de Saint-Éxupery é redimensionada porque o próprio Klaus percebe que ele pode desaparecer para ser outro. No caso, ele escolherá ser outra.

 

Você afirma ter se inspirado livremente na passagem de Saint-Éxupery pelo Brasil para construir a questão da fuga que permite a evolução do romance, e que se torna uma questão mais decisiva no fim do livro. Destaca também a questão do Desterro, nome original da ilha, articulada ao personagem desterrado da própria casa e da própria língua. Para a condição de estrangeiro e exilado, uma passagem parece decisiva: que a notícia da morte do pai tenha sido dada em português e não na “nossa língua” materna. Mãe que dá a vida e a morte (p. 403). Humanidade relacionada ao estatuto de falante, o que não significa comunicação (p. 64). Qual o estatuto dessa língua materna? Em que medida constitui a família, ou seu “pano quente de silêncio”? 

 

Aqui tenho que falar novamente de algo muito pessoal. No momento em que respondo essa entrevista, tive que passar dois dias em Portugal e tive uma sensação nova. A língua portuguesa falada por lá me deu a sensação de que eu falo uma língua estrangeira. É verdade que o português é a nossa língua materna, mas confesso que sinto como se não fosse a minha. Eu me sinto totalmente estrangeira ao falar e escrever em português; ao mesmo tempo, a sensação de paradoxo não me deixa, porque não aprendi outra língua antes da língua portuguesa, ainda que meus avós paternos, com quem cresci, falassem italiano. Estou sempre com a impressão de que falo a língua errada. Não procuro na literatura a língua correta, mas a língua que eu posso falar. A literatura é a minha língua materna em certo sentido. A língua de quem não tem língua. De quem tem, como Klaus, a língua quebrada. Verdade que criei a gagueira de Klaus porque, pessoalmente, a gagueira sempre me impressiona, sempre me comove. Mas havia um sentido necessário ao personagem: ele não poderia ser um falante comum, alguém capaz de conversar e de se sair bem na vida porque tinha essa habilidade. A gagueira é esse impedimento, essa marca física e metafísica de um erro original, de uma impossibilidade. Eu me sinto gaga de alma. E me tornei falante como filósofa, uma estudiosa do diálogo humano. Minha profissão me levou a ser falante até demais, na vida real, devido à minha profissão de professora. Fora isso, na vida cotidiana, eu prefiro o silêncio, pois nunca sei o que dizer. A literatura certamente permite o silêncio como a sua forma de fala. Klaus também a encontrará no caderninho vermelho e a transformará em performance. Ele será A.A.

 

De que forma você descreveria a relação entre a irmã Agnes e a solução encontrada pelo protagonista Klaus Wolf Sebastião? Em um dado momento do livro, ele chega a afirmar: “Agnes, sou eu, Agnes, sou eu” (p. 53). Isso poderia, a posteriori, ser escutado “eu sou Agnes”? 

 

Lembro bem quando escrevi essa frase. Eu mesma me surpreendi. Ele tinha percebido que, já naquele momento, ele estava diante de um espelho. Depois, esse espelho se materializará. Penso que não há nada de mais apavorante do que a nossa semelhança com os nossos. Nesse sentido, sermos adotivos é sempre menos pavoroso, ainda que, para muitas pessoas, possa parecer um desabono. Recorrendo novamente a um fato pessoal, confesso que passei a minha infância tentando entender se eu era ou não adotiva. Havia na minha família esse registro ambíguo que era quase um bulliyng que as pessoas faziam comigo. Eu nasci com cabelos pretos e crespos em um ambiente de gente loira com olhos azuis. Nesse caso, creio que Klaus vive de modo muito mais sofisticado algo que eu vivia. Emprestei a ele essa experiência riquíssima de horror daquilo que é familiar e a estanha satisfação de descobrir em si uma dimensão de diferença em si mesma redentora.

 

O que significa dizer “É o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” (p. 100)? É desse pacto que o personagem se vê excluído, como lemos em “Não se pode negar a herança” (p. 386), “Irmãos como espólio um do outro” (p. 444) e “Em uma família só os testamentos são verdadeiros” (p. 511)? 

 

Talvez o que eu vá responder soe um pouco mórbido. Talvez seja muito particular e não vou sugerir que isso tenha validade universal. A meu ver, há muita coisa em comum entre famílias e romances, mas sobretudo um elemento: os mortos. Todos os livros que escrevi foram livros sobre a morte e sobre os mortos. Todos foram, em certa medida, para poder conviver e, quem sabe, poder enterrar meus mortos. Aqueles mortos, inclusive, que não sei se poderei enterrar um dia, pois talvez eu morra antes. Nesse sentido, o raciocínio é lógico. Enterrar os outros significa ter sobrevivido. Escrevo, nesse sentido, para sobreviver. Nessa frase em particular, eu vejo um sinal de profunda solidariedade. Somos irmãos quando enterramos nossos mortos comuns, somos filhos quando enterramos nossos pais, aqueles que, simbolicamente, ajudamos a matar, para lembrar do Totem e Tabu. Mas, sobretudo, vejo o registro de Antígona, para quem o enterro do irmão era uma questão essencial. O último gesto ético, um gesto que vai além da generosidade e do dever, um gesto de compaixão final. Um gesto que equivale, por certa inversão, por estar próximo de uma inversão, ao gesto do nascimento. Pode parecer morbidez em torno de um niilismo, mas se trata, muito mais, de um acordo que se fecha. De um profundo companheirismo em torno de um projeto no qual a morte não é o coroamento, mas o fracasso inexoravelmente experimentado e que merece toda a compaixão.




A Família Entre A Ciência E A Lei

FABIAN FAJNWAKS

 

 

Famílias recompostas, monoparentais ou homoparentais. As diversas figuras da família que nossa época nos apresenta encontram-se determinadas pelos progressos da ciência – pelo discurso jurídico que acompanha esse progresso –, em que o impacto da psicanálise na cultura também tem seu lugar.

 

Há algumas semanas um autor escrevia, com certo cinismo, nas colunas de um jornal de grande circulação na França, que, da mesma maneira que os anos 70-80 condenaram o casamento à morte – o que se pode discutir –, os anos 90-2000 estabeleceram, definitivamente, como obsoleta a noção de casal. “O conceito de fidelidade – diziam – tornou-se tão ridículo, obsoleto, bárbaro como era em outra época o conceito de castidade”. Se atualmente todos os sexos são semelhantes, todas as sexualidades se diferem umas das outras. O fim do modelo de casamento/celibato, seguido do modelo de casal/solidão, anda hoje de mãos dadas com a superação da distinção arbitrária masculino/feminino, do hiato absurdo hetero/homossexual. A nova individualidade não é mais étnica, nem geográfica, nem social ou cultural: é sexual. Uma nova individualidade que permite viver a liberdade sexual que reivindicamos transcendendo as divisões, depreciando as distintas comunidades. Ela permite fabricar um sexo.

 

Com a psicanálise, não saberíamos desmentir essas palavras, mas voltemos ao ponto em que esse autor fala de “inventar um sexo” e de “uma nova individualidade”. Saber que a “individualidade” do nosso tempo implica que cada um pode gozar como quiser, desde que isso não incomode muito nem aos outros nem à sociedade, sendo exclusivamente esse “cada um pode gozar como quiser” o que faz em nossa época o laço social, a questão ética que acompanha esse tipo de gozo de “fazer um sexo” se impõe necessariamente. Isso significa que a diferença entre o que é uma posição de “vontade de gozo”, o que empurra ao que – como Lacan disse em Televisão e antecipando essas questões – “no desatino de nosso gozo, não há mais o Outro para situá-lo, e agora esse gozo se localiza a partir do mais-de-gozar”2 e o que se deduz de uma posição subjetiva em relação ao desejo é, poderíamos dizer, cada vez mais frágil, e somente a psicanálise pode escutar essa diferença.

 

Para dizer de outro modo: vivemos em uma época em que o fato de que a cada um está permitido reivindicar um modo de gozar – o que toca a sexualidade e a estrutura da família – impõe uma reformulação jurídica que enquadre esse mais-de-gozar permitido, e uma reflexão ética a que todos os indivíduos que compõem a sociedade estão desde agora convidados, e é o que se verifica na presença da palavra “ética” em todos os discursos sociais, como sintoma dessa questão.

 

“Inventar um sexo” é acompanhado também de poder “inventar uma família”, que acompanha a maneira de viver essa sexualidade, e não surpreende, então, por exemplo, a reivindicação dos homossexuais de adotar ou de procriar, como é possível para as homossexuais já há alguns anos. Um sociodemógrafo indicava há uns dias no Liberation3 que “o amor, ou melhor, o casal, se constrói atualmente a partir da sexualidade enquanto que há um tempo, era o casamento que desempenhava esse papel” 4.

 

A família homoparental constitui uma revolução que a ciência permite há uns anos e que o jurídico está em vias de adaptar-se com a legislação correspondente. Existe há três anos, na França, o PACS (Pacto Civil de Solidariedade), que reconhece as uniões homossexuais. Até poucos anos atrás, ser gay significava a renúncia do sujeito à procriação, e que a partir de agora é possível driblar, “verônica** – para usar um termo de Oscar Masotta – a castração”, ou, nesse caso, se quiserem, um “duplo drible”.

 

Não se trata aqui, como observado por Lacan em Os Complexos Familiares, de “afligir com um pretenso afrouxamento dos laços de família”5, o que levaria inevitavelmente a uma posição moralista, desconectada da psicanálise, ou dizer “os homossexuais já não são mais o que eram antes”… Trata-se de notar, em primeiro lugar, que a família homoparental não faz mais que colocar em evidência o que conhecemos há um século com Freud e Lacan: que, por um lado, há uma diferença entre a família – estrutura que garante a transmissão em relação à procriação – e o Complexo, enquanto o dispositivo que permite que um sujeito advenha como desejante; e que, dentro desse complexo, as funções fundamentais de Desejo da Mãe e de Nome do Pai se articulam mais além dos lugares biológicos, mesmo se estão encarnados.

 

Recordemos o que nos assinala Lacan em Duas notas sobre a criança:

 

A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades – mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo6.

 

“A relação com um desejo que não seja anônimo”: aqui, temos articulada a metáfora mínima necessária para a constituição do sujeito, que implica que tenha transmissão de outra ordem que não a da necessidade. Frente ao fato de que a família tenha sido reduzida a seu agrupamento biológico – ou sexual, poderíamos acrescentar, a partir da perspectiva do que estamos abordando – à medida que integrava os maiores progressos culturais, perguntemo-nos como o fez Lacan – nessa passagem de Os complexos familiares – pelos “efeitos psicológicos” ou subjetivos dessas alterações que tocam o que ele chama de “declínio social da imago paterna”. Mas não nos alarmemos tanto como podem fazer os psicólogos ou outros humanistas ou profissionais do social: a psicanálise, desde Freud – Lacan o recorda nesse texto em que evoca o “melting pot” das formas familiares mais diversas que constituía a Viena do princípio do século e que deu lugar a essa reflexão –, diferencia a estrutura familiar do “Complexo” de Édipo, e o que as mudanças contemporâneas da família nos fornecem talvez seja menos inovador. Esse “declínio social da imagem paterna” produzirá novas fobias, por exemplo, nesses novos grupos familiares nos quais a imagem do pai se vê alterada ou reforçada nas parcerias em que justamente ele está ausente? Assinalemos o fato de que muitas vezes o filho do qual se trata é o filho feito ao pai ou à mãe do sujeito. Em todo caso, podemos encontrar, nessa reivindicação, a confirmação da “função de resíduo”, de resto da família que Lacan sublinha, ou seja, no desejo dos casais homossexuais de “fazer família”, segundo o modelo da parceria heterossexual.

 

Uma série de reformas jurídicas realizadas recentemente na França parece sustentar a “decadência social da imago paterna”7. Desde o mês de fevereiro (de 2002) e, rompendo com uma tradição que data de oito séculos, uma mãe pode transmitir a seus filhos seu sobrenome, ou seja, o de seu pai, no lugar do sobrenome do pai de seus filhos, e isso por simples pedido e acordo dos cônjuges. No momento em que o parlamento francês aprovou essa reforma, que constitui uma pequena revolução, os jornais evocavam o lugar simbólico do Pai como transmissor do nome, citando a referência lacaniana do Nome-do-Pai. Já existia na França a possibilidade de que a mãe reconhecesse seu filho e lhe transmitisse seu sobrenome, ou que o filho carregasse os sobrenomes de ambos os pais, ainda que sempre fosse o de seu pai o que se transmitia. Contudo, no contexto atual, que a lei promulgue a possibilidade desse tipo de transmissão coloca, entre outras, a questão sobre se ela não condescende com a possibilidade de alimentar um fantasma de possessão materna, em que é o próprio pai da mãe que aparece como transmissor do Nome. Para dizer de outro modo, se o que funciona como constatação lacaniana no social é a decadência da imago paterna. Lacan apresenta, no texto citado, todas as interrogações concernentes à falha de transmissão dos ideais por esse motivo, sendo os ideais do pai os que alimentam, segundo Freud, o ideal do eu do filho, perguntando-se também pelo lugar que toma o supereu como reforço, uma vez constatada essa decadência da imago paterna. Cabe perguntar também acerca da forma que toma o empuxo à mulher no social que acompanha essa decadência, e que se verifica em toda psicose. Mônica Torres falou, há um tempo, desse empuxo à mulher no social e que haveria de desenvolver esse conceito. Aqui vemos uma estranha convergência entre os efeitos do progresso da ciência e o discurso jurídico, em que um acompanha o outro, produzindo um tipo de fantasma do todo feminino, no qual já não há mais pais, ou seu lugar aparece apagado, mas também não há mais homens, a partir do momento em que a ciência pode fazer a mulher procriar prescindindo do ato sexual, que é o que introduz a diferença dos sexos, reduzindo o homem ao banco de esperma. A clonagem, forma que definitivamente pode prescindir da reprodução sexual, alimenta esse fantasma em que já não se trata de um todo feminino, mas de um empuxo a ele, sem nenhuma alteridade, e em que as reflexões de Freud em Além do princípio do prazer, acerca do progresso que a reprodução sexuada supõe sobre a reprodução assexuada, são atuais, nos promete para amanhã o retorno à reprodução assexuada – se a clonagem for possível.

 

Outra modificação é a aplicação, na França, da lei chamada “reforma da autoridade parental”, aprovada em meados de fevereiro de 2002: a lei reconhece uma competência igual aos pais e às mães no caso do divórcio, seguindo, assim, um movimento que os jornais chamaram de uma ideologia da “copaternidade”, que já provocou a tensão das organizações feministas francesas. Uma jurista comentava essa tensão, ressaltando “o apego visceral das feministas à divisão jurídica dos sexos: não somente obtiveram o direito ao aborto, como também o de perseguir (juridicamente) o homem que é o genitor de seus filhos, em uma espécie de reivindicação de domínio primário em detrimento do pai”9.

 

Talvez possamos evocar, para terminar, o que muitos sociólogos apontaram no momento dessas mudanças da estrutura e da inscrição jurídica da família: que no momento social atual em que, para retomar as palavras do escritor que citávamos no princípio, cada sexo tem exatamente os mesmos direitos de reivindicar um modo singular de viver sua sexualidade, de “inventar” sua sexualidade, a guerra dos sexos parece, então, deslocar-se do campo da família…

 

 

 

 


Referências:
1 Moix, Yann, Loisirs totalitaires. Libération, 17 de fevereiro, 2001.
2 LACAN, J. Televisão. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p. 535.
3 Jornal editado em Paris, fundado em abril de 1973 com o auspício de Jean-Paul Sartre.
4 BOZON, M. Le Pacs n’enfante pas l’adoption homo. Libération. 27 mar., 2002.
5 LACAN, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros escritos: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p.66.
6 Ibid., p. 369.
7 Ibid., p. 66.
8 FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. XVIII.
9 IACUB, Marcela. Libération, março, 2002.
** N.R. “Verónica” é um termo para definir a manobra do toureiro durante as touradas: como o touro é incapaz de distinguir cores, é atraído pelo movimento do pano – um capote com capa vermelha e forro amarelo – usado para driblar o animal com um recuo de pernas. O vermelho só serve para disfarçar as manchas de sangue.

FABIAN FAJNWAKS
Tradução: Mônica Campos Silva
Revisão: Kátia Mariás
Trabalho publicado na Revista Enlaces nº 7, Revista do “Departamento de estudos psicanalíticos sobre a família – Enlaces”, 2002.
Fabián Fajnwaks, psicanalista, professor do Departamento de Psicanálise (Paris VIII), Membro de l’ECF e da Associação Mundial de Psicanálise.



O Avesso Da Procriação

FRANÇOIS ANSERMET

 

 

Poderia-se definir a família como uma instituição feita para tratar a diferença dos sexos e das gerações. Baseado nessas diferenças, ela é, ao mesmo tempo, uma construção artificial que vela o real que essas diferenças indicam. Ela é, portanto, fundamentalmente desnaturada, sempre para além dos fatos biológicos sobre os quais ela repousa, mudando de forma antes que se tenha tempo de entendê-la, mas permanecendo como uma necessidade – o que revelam, por exemplo, seus dispositivos contemporâneos, como no caso de casais homossexuais e transexuais e seu desejo, por vezes militante, de adotar ou mesmo conceber crianças.

A família fornece, em seu seio, procriação e genealogia. É preciso, no entanto, compreender bem que procriação e genealogia são dois registros radicalmente heterogêneos. Mas a fascinação contemporânea pela causalidade natural quer superpô-los a todo preço – inclusive com um recurso cada vez mais frequente aos testes de paternidade, tornados disponíveis para todos em caso de dúvida súbita, sob a forma de kits comandáveis pela internet. As cerdas de uma escova de dentes ou um pequeno resto sobre uma colher de sobremesa são suficientes para saber de onde vem ou se sua criança vem mesmo de si.

O parentesco biológico é assim frequentemente evocado, com veemência, para negar aquilo que se teceu no fio das identificações e da história – como se nada houvesse se passado desde o nascimento! É o caso, em se tratando da inseminação com doador (IAD – insémination avec donneur), quando se convoca a genética no lugar da história, ou seja, o doador de esperma no lugar do pai, como se ele pudesse se apagar diante do espermatozoide. É também o caso no que concerne à adoção, com os famosos pais ditos biológicos. Geração e adoção são efetivamente duas visões concorrentes do parentesco. Existem, inclusive, casos limites em que a adoção foi vista como um “a mais” em relação ao parentesco por geração, como nos Mbaya-Guaicuru citados por Lévi-Strauss nos Tristes trópicos (1955, p. 260):

“Esta sociedade se mostrava muito adversa aos sentimentos que nós consideramos como naturais; assim ela experimentava um forte nojo pela procriação. O aborto e o infanticídio eram praticados de maneira quase normal, e a perpetuação do grupo se efetuava bem mais por adoção que por geração, um dos alvos principais das expedições guerreiras sendo o de encontrar crianças. Assim calcula-se, no começo do século XIX, que no máximo 10% dos membros de um grupo guaicuru lhe pertencia por laços de sangue.”

 

[1]Vertigens biotecnológicas 

 

É preciso admitir que os universos subjetivos, simbólicos e imaginários da sexualidade, da procriação, da gestação, do nascimento e da filiação são fundamentalmente sem relação entre si, a não ser pelo fato de estarem às voltas com o real impensável da origem, com as suplências inventadas por cada um para compensar as disjunções – entre elas, a criança – que reconduzem mais ao real que à origem. É assim que, em análise, pode-se, por vezes, levantar o véu que recobre esse real e distinguir, a propósito do que concerne à família, a vertente do semblante da vertente do gozo, este último sendo, definitivamente, o avesso da família.

Na clínica só podemos nos orientar a partir de uma concepção desnaturalizada da estrutura familiar. É o que revelam, de maneira explícita, as procriações justamente chamadas artificiais, quando elas utilizam paradoxalmente a natureza como um artífice – mostrando, pela defasagem que elas implicam, aquilo sobre o qual repousa toda procriação.

As procriações medicamente assistidas (PMAs) revelam o diferencial sexual curto-circuitando-o. Elas desvelam também o âmbito do diferencial geracional congelando o tempo através da crioconservação, que comporta o potencial, senão a possibilidade de saltar gerações.

Seja como for, as PMAs forçam-nos a pensar a procriação da qual não temos habitualmente representação. Temos uma data de nascimento, não uma data de procriação. Elas obrigam a pensar o impensável, a representar o irrepresentável. Nisso, as PMAs são uma falsa resposta a uma verdadeira questão, a uma questão impossível, aquela da origem e da procriação. Está aí a fonte principal das vertigens que induzem as biotecnologias, que apontam justamente o real em torno do qual giram os laços familiares.

No buraco do impossível, tudo vem submergir, em particular as teorias sexuais infantis próprias a cada um dos pais, que têm a característica de contornar o sexo, como nas biotecnologias da procriação. É nesse ponto que, finalmente, somos todos nascidos fantasmaticamente de PMA! Mas é preciso também reconhecer que as PMAs podem acrescentar à realidade modos de fazer inéditos, ao ponto de tornar a natureza artificial, na medida da fantasia de cada um. Brevemente, tudo será possível: até procriar a partir de células-tronco, podendo ser transformadas seja em espermatozoide, seja em óvulo – isso ainda é experimental –, com a perspectiva, melhor ainda que pela clonagem, de se tornar filho de si mesmo, como Galaad para Lancelot.

As PMAs, dissociando a sexualidade da procriação e a procriação da gestação, deixam finalmente às únicas referências simbólicas – aquelas da diferença dos sexos e das gerações – a possibilidade de construir uma filiação, instalando, ao mesmo tempo e de maneira inesperada, as referências próprias à psicanálise sobre o que está no centro da cena. Esse é um efeito paradoxal das vertigens biotecnológicas que se trata de destacar.

 

O avesso da biografia

 

A biografia não é redutível à história, inclusive aquela da procriação. Como indica Lacan (2006a, p. 332), o que determina a biografia é inicialmente “a maneira pela qual se apresentaram os desejos do pai e da mãe”, quer dizer, o modo “como eles efetivamente ofereceram ao sujeito o saber, o gozo e o objeto a”[2].

É disso que a criança deve advir, ela que faz sua entrada no mundo no lugar de objeto a – “aborto do que foi, para aqueles que a engendraram, causa do desejo” (LACAN, 1991, p. 207)[3]. Ela deve advir como sujeito a partir desse estatuto de objeto, para vir “se substituir à hiância que se designa no impasse da relação sexual” (Idem, 2006a, p. 347)[4]: essa é uma marca particularmente forte na clínica das PMA.

Eu poderia citar o caso desse casal que quer dizer a seus filhos, nascidos de esperma doado, a verdade sobre sua origem. A mãe me fala do pai biológico. O pai se retrai. Por que falar do pai biológico e não de doador de esperma? O que é um pai? O que é um espermatozoide? O que é um doador de esperma? Eles retornam para repensar no fato de dizer mais do que na maneira de dizer… A mãe me fala de sua fantasia: se as crianças desejarem um dia encontrar o doador de esperma – as duas crianças são do mesmo doador depois de uma única inseminação –, ela será perturbada a ponto de ser tomada de paixão por esse homem… Afirmação que a surpreende a ponto de deixar a questão momentaneamente em suspenso.

Eu poderia também evocar o caso de Pierre-Marie, que não para de perguntar “onde está papai?”. Pierre-Marie tem três anos. Sua mãe é uma mulher que concebeu essa criança sozinha, de maneira artificial por FIV (fecundação in vitro) em Boston, com doação de esperma. Ela queria oferecer fantasmaticamente essa criança à sua mãe, que teve que dá-la, no seu nascimento, à sua própria mãe e não podia mais ter filhos, em consequência de complicações ginecológicas consecutivas à gravidez.

Pierre-Marie veio de um doador de esperma americano, definido pela ficha do banco de esperma californiano como de origem francesa e alemã – o que representa alguma coisa na história dessa mulher – mas também cherokee (etnia indígena norte-americana), tendo como principal qualidade o otimismo, como principal defeito a procrastinação e como livro preferido: The power of one. Eis que ela volta para a Suíça, grávida, depois de uma FIV que lhe deixa ainda um zigoto à disposição, crioconservado em Boston.

Ela deu à luz, sem problemas, uma criança que se desenvolverá normalmente, mas a inquietando – inquietante estranheza – ainda mais depois do dia em que ele começa a falar e não para de invocar o pai: Quem é papai? Onde está papai? Questões reiteradas que deixam a mãe completamente desprovida, sem voz. Tais questões tornam-se progressivamente, para Pierre-Marie, a principal via para agredir sua mãe.

Depois de uma aventura, ao modo de Wim Wenders, através dos Estados Unidos para encontrar os traços do doador, de centros de PMA aos bancos de esperma, ela acaba por fazer um novo implante do zigoto crioconservado que restou – dessa vez, sem sucesso. Da árvore genealógica conhecida à árvore genealógica suposta, tudo isso não cessará até que ela aceite meu dizer, endereçado a ela e a seu filho, de que a única resposta a essa questão é que não há resposta. Essa intervenção traz uma pacificação na relação com o filho e uma melhora sintomática quase imediata para a criança.

Em resumo, é a partir de um lugar já estabelecido e de decisões já tomadas que a criança terá que fazer suas próprias escolhas para ir além de seu estatuto de objeto, além dos modos de gozo dos quais ela descende.

O que ele inventa, então, o separa para além daquilo que o determina, segundo um desejo que lhe é próprio, que emerge das respostas através das quais ele se constitui, qualquer que seja o modo de procriação ou os modos de gozo dos quais ele advém.

 

A morte na procriação

 

Pode-se então observar o gozo como uma primeira versão desse avesso da procriação. Mas o avesso da procriação é também a morte, com o estatuto nem vivo nem morto dos embriões crioconservados em suspenso no nitrogênio líquido a -196 graus. É uma espécie de avesso de Senhor Waldemar, de Edgar Allan Poe, que queria manter-se por hipnose entre a vida e a morte no momento de morrer. Aqui, ao contrário, é no momento de emergência da vida que o futuro é congelado. Novas formas de demanda se articulam concernindo os embriões e os gametas crioconservados: assim, uma mulher gostaria de congelar seus óvulos no momento de aceitar um emprego importante que lhe tomará todo seu tempo, para dispor deles quando sua carreira estiver estabelecida. É também instituída hoje a oferta de separar e crioconservar os espermatozoides, ou, mais recentemente, os óvulos, quando um tratamento oncológico ofereça risco de esterilidade – esses gametas podem inclusive sobreviver àqueles de quem eles provém. Encontramos as mesmas questões com os embriões que se acumulam nos laboratórios. Daí uma nova lei na Suíça que obriga a tomar uma decisão após cinco anos de crioconservação – ou se implanta o embrião, ou se o destrói – escolha impossível para a maior parte.

Temos então uma clínica nova nutrida de enunciados inéditos, testemunhando sobre o estranho estatuto dado às crianças vindas dos zigotos crioconservados entre procriação e gestação, como essa mãe que, no final da consulta, diz para seu filho: “Vem, meu pequeno Findus, está na hora!”[5]. Ou essa outra que fala de seu filho como seu “pequeno congelado”. Qualquer que seja seu modo, toda procriação visa a parte imortal no vivente mortal, para retomar a expressão de Sócrates referindo-se às proposições de Diotima no Banquete de Platão. Para que procriar tenha seu sentido pleno, como o enuncia Lacan: “É preciso ainda, que nos dois sexos, haja apreensão, relação com a experiência da morte” (1981, p. 330)[6]. É esse avesso da procriação que o projeto de clonagem rejeita, como os delírios de procriação dos psicóticos, com a perspectiva prometida de poder se recriar idêntico a si, portanto, eterno – o que é impossível, pois o clone será de toda maneira outro independente daquele de onde ele vem, devido à existência do Outro e do sujeito, ele mesmo.

 

Pós-criação

 

Isso nos leva a uma terceira versão do avesso da procriação, para além do gozo e da morte: aquela da criação, onde o sujeito realiza para além de sua procriação.

Se a procriação realiza uma suplência à não relação sexual, uma conexão para além da disjunção entre o gozo e o Outro, entre o homem e a mulher, o avesso da procriação se apoia sobre uma parte de intransmissível que oferece, paradoxalmente, ao sujeito, o espaço de criação, de uma “pós-criação” para retomar uma formulação de Joyce em Ulisses (1995, p. 442)[7], que dá sua versão do avesso da procriação como criação para além do que foi procriado.

De todo modo, a partir de acasos que empurram para a direita ou para a esquerda, o sujeito vai se fazer um destino (LACAN, 2006b, p.162)[8] que ele recompõe a posteriori. A grande lei do universo é, com efeito, a contingência. Tudo depende do imprevisto, do encontro. Como o enuncia Lacan (1998, p.18), “Vocês surgiram desta coisa fabulosa, totalmente impossível, que é a linhagem geradora. Vocês nasceram de duas células que não tinham nenhuma razão para se conjugar, se não fosse por esta espécie de maluquice que se convencionou chamar de amor.”[9] De qualquer modo, o sujeito é fundamentalmente disjunto de seu modo de procriação. Qualquer que seja a técnica pela qual a criança nasceu, nada pode resolver para o sujeito o enigma de sua vinda ao mundo. Só lhe resta se inventar, encontrar suas próprias respostas – e, por que não, também, por meio de uma análise – desorganizando e reorganizando diferentemente o que estava no seu nascimento para além do que presidiu sua concepção.

 

 

 

 

 


REFERÊNCIAS:
[1] Lévi-Strauss, Claude. Tristes tropiques, Paris. Librairie Plon. Terre Humaine, 1955, p.260.
[2] ______. Le Séminaire, Livre XVI. ’un Autre à l’autre. Paris, Le Seuil, 2006a, p.332.
[3] ______. Le Séminaire, Livre XVII. L’envers de la psychanalyse. Paris, Le Seuil, 1991, p. 207.
[4] ______. Le Séminaire, Livre XVI, Op. cit., p.347.
[5] Ansermet, F. Le roman de la congelation. La Cause Freudienne, n.60. Paris, Navarin Éditeur, 2005, p.55-61.
[6] LACAN, J. Le Séminaire, Livre III, Les psychoses, Paris, Le Seuil, 1981, p.330.
[7] Joyce, J. Les breufs du soleil, Ulisses. Oeuvres Complètes II. Paris, Gallimard. La Pléiade, 1995, p.442.
[8] ______. Le Séminaire, Livre XXIII, Le synthome. Paris, Le Seuil, 2006b, p.162.
[9] ______. Le phénomène lacanien . Conferência de 30 de novembro em Nice. Les cahiers cliniques de Nice n. 1, 1998, p.18.

FRANÇOIS ANSERMET
Tradução: Lúcia Grossi
Revisão: Luciana Andrade
François Ansermet é psiquiatra, psicanalista e membro da École de la Cause Freudienne.