A histeria rígida: a existência da neurose hoje

Simone Souto

Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ssouto.bhe@terra.com.br

O que vou trazer para vocês hoje são apenas alguns elementos que, espero, nos ajudem a aproximarmos um pouco mais desta noção de Lacan, um tanto enigmática, que é a histeria rígida, e que foi mencionada por ele, pelo menos até onde pude investigar, apenas uma única vez, no Seminário 23.

A histeria hoje

Nos primórdios da psicanálise, em um mundo ainda ordenado pelos ideais, o sintoma histérico se apresentava como um sentido a ser decifrado. Esse sentido tinha como modelo o Édipo estruturado a partir da referência ao pai. Assim, a histérica, no tempo de Freud, tinha um pai que lhe assegurava um sentido pelo qual era possível abordar a satisfação, assim como o incômodo que lhe afetava o corpo. Em outras palavras, o gozo do sintoma era apreendido pela via do sentido. Constatamos essa prevalência do pai nos sintomas histéricos em todos os casos conduzidos por Freud. Podemos referi-la à época, mas podemos também nos indagar, como o fez Lacan (1969-70/1998, p. 94) no Seminário 17, pelo desejo de Freud, pelo que o fez substituir o saber que recolheu da boca das histéricas (a propósito do poder das palavras e da determinação significante sobre o corpo), pelo mito do complexo de Édipo. Segundo Lacan (1969-70/1998, p. 94), “o que Freud tentou preservar com o complexo de Édipo foi a ideia de um pai todo amor” e que “a experiência da histérica […] deveria tê-lo guiado melhor que o complexo de Édipo”. Então, seguindo Lacan (1972-73/1985, p. 36), podemos supor que, desde Freud, a histeria nos ensina algo sobre o sintoma que não passa pelo pai, algo que teria sido encoberto pela importância dada por Freud ao complexo de Édipo. Trata-se do significante como causa de gozo.

Segundo Laurent (2012), o que está em questão em nossa época é o amor ao pai como eixo em torno do qual gira a constituição do sintoma histérico. As histéricas já não acreditam mais no pai como detentor de um sentido capaz de resolver o enigma do gozo. A impotência do pai tornou-se evidente e a histérica já não se presta mais a fazer existir o pai ideal sustentando-o através de seu amor (BROUSSE, 2013). Assim, para abordar a histeria hoje seria preciso considerá-la como uma estrutura neurótica cujo sintoma pode não se sustentar no amor ao pai, nem seria tecido na trama edípica. Nesse contexto, a histeria se apresentaria, portanto, desvestida de sentido: se a histérica freudiana nos ensinou que o sintoma comportava um sentido sexual, a histérica de hoje nos convoca à constatação de que o sintoma, em última instância, não tem sentido algum e se reduz à pura repetição de um gozo. Entretanto, como veremos a seguir, será preciso distinguir essa forma de apresentação do sintoma histérico tanto das psicoses, quanto da posição feminina e do sinthoma como produto do final de uma análise.

Na nossa prática hoje, “é cada vez mais constante encontrarmos  casos clínicos de neurose nos quais o amor ao pai ou a busca de identificação do lado da metáfora paterna não conseguem sustentar-se claramente, mas que de fato não são casos de psicose”. Assim, com relação à distinção entre a histeria hoje e a psicose podemos considerar que, mesmo tendo perdido o pai, ou seja, o recurso para resolver o gozo pelo sentido, a histérica atualmente não deixaria de portar, em seu corpo, a marca da castração, isto é, o falo, mas não mais em sua vertente de significação, como resultado da metáfora paterna, e, sim, como  significante do gozo. Nesse contexto, como nos demonstra Miller (2011), a função do significante passaria a ser a de aparelhar o gozo, dar-lhe substância, materialidade. O sintoma histérico hoje se sustentaria muito mais na materialidade do significante do que em sua produção de sentido.

Essa forma de aparelhamento do gozo que não passa pelo sentido parece constituir-se em uma marca do nosso tempo, observável não só na clínica da histeria. Se a histérica não se dedica mais a sustentar o pai, o psicótico, também, diferente do que fez Schreber, já não tem tanta necessidade de inventar o pai a partir do sentido, isto é, da metáfora delirante. A psicose, hoje, em certos casos, inventa outras coisas, mais ordinárias, no lugar do pai. Assim, em nossos dias, não é que o modelo edipiano deixa de ser uma referência, o que acontece é que esse modelo, ele é abalado, deixa de ser a único, a referência universal.

Dora: uma histérica freudiana e seu avesso

De acordo com Laurent (2012, s/p), “após o Seminário sobre Joyce, Lacan propõe uma série de releitura dos Estudos sobre a histeria, mas pelo avesso”. Como vimos, quanto ao sintoma histérico, Freud teria feito um percurso passando do significante ao pai. Para precisarmos o que o sintoma histérico presentifica em seu cerne, proponho a vocês retomarmos o caso Dora guiados por essa proposta de Lacan, isto é, lendo-o pelo avesso, fazendo o percurso inverso ao de Freud, isto é, do pai ao significante como causa de gozo. Se, por um lado, é evidente, na condução de Freud, certo recobrimento do sintoma pela primazia dada ao pai, por outro lado, ele nos deixa todas as pistas para fazermos o caminho de volta. Nesse sentido, o caso Dora é privilegiado, uma vez que, conforme sublinha Lacan (1951/1998, p. 225), por se tratar de uma histérica, “em parte alguma […] é mais baixo o limiar […] entre o discurso analítico e a palavra do sintoma”.

Dentre os sintomas apresentados por Dora – dispneia, enxaqueca, depressão… –, Freud dará particular atenção à afonia e à tosse nervosa. Esses sintomas encontram sua significação a partir da complexa trama que envolve Dora, o pai, o Sr. K. e a Sra. K. O pai e a Sra. K. são amantes, e Dora, mesmo revoltada, se coloca como cúmplice, protetora dessa relação, ficando, concomitantemente, exposta às propostas amorosas do Sr. K.

Freud pôde fazer surgir, no percurso dessa análise, uma ligação entre a tosse nervosa de Dora e o caso de amor do pai com a Sra. K., do qual ela tanto se ocupava. A oportunidade para essa ligação aparece com o significante “ein vermongender Mann”, que em alemão significa “um homem de posses”, com o qual Dora se refere ao pai e que Freud interpreta em seu sentido inverso: “ein unvermongender Mann”, “homem sem recursos, impotente”. Como Dora poderia continuar sustentando que existia um caso de amor entre a Sra. K. e seu pai ao mesmo tempo que admitia a impotência deste último? A resposta de Dora coloca em cena o sexo oral como um recurso pelo qual um homem impotente poderia sustentar a relação com uma mulher. Freud irá deduzir, então, que Dora havia criado uma fantasia sexual inconsciente (sugar o pênis), expressada através da afonia e da tosse. Como nos esclarece Laurent (2012, s/p), com esse sintoma, Dora se identifica com o gozo do pai: “ela coloca sua própria boca nessa participação do gozo do pai”.

No entanto, Freud nos dá elementos para supor que a prevalência do gozo oral nos sintomas de Dora remonta a origens ainda mais remotas que não passariam necessariamente pelo pai. Trata-se de uma cena que teria proporcionado “a condição prévia”, “somática”, para a fantasia de Dora: “ela chupava o polegar esquerdo sentada em um canto do assoalho ao mesmo tempo que puxava com a mão direita o lóbulo da orelha do irmão que estava sentado quieto ao seu lado” (FREUD, 1905[1901]/1996, p. 49). Lacan (1951/1998, p. 220) situa, nessa cena, “a matriz imaginária na qual vieram confluir todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida – verdadeira ilustração da teoria, ainda por surgir em Freud, da compulsão à repetição”. Portanto, essa cena presentifica a via pela qual o gozo vem marcar o corpo de Dora, ou seja, o acontecimento através do qual, para ela, o gozo toma consistência e se fixa, um S1, sozinho, um traço que se repete e não se sustenta em sentido algum.

O próprio Freud (1905[1901]/1996, p. 50) faz menção, no contexto no qual aborda essa lembrança de Dora, ao “traço conservador” que asseguraria que um sintoma, uma vez formado, possa ser retido mesmo que o pensamento inconsciente ao qual ele deu expressão tenha perdido seu significado, uma “unidade constituída pela matéria que deu margem às várias fantasias”.  Com a fantasia de sugar o pênis, Dora constrói uma versão paterna para o gozo oral experimentado na infância, ou seja, cria uma significação do gozo baseada em seu amor pelo pai impotente, um sentido que vem recobrir o traço sem sentido do gozo, esse avesso do sintoma, esse osso, essa matéria na qual, em última instância, o sintoma se sustentaria em sua existência. Retornaremos a isso mais adiante.

A histeria lacaniana: uma forma real de apresentação do sintoma

No Seminário 23, Lacan (1975-76/2007) faz menção a uma forma de apresentação da histeria na peça O retrato de Dora, longamente comentada por Laurent (2012).Trata-se de uma peça de Hélène de Cixous (1976/1986) que estava sendo encenada na época em que Lacan pronunciava o Seminário 23. Hélène Cixous foi ensaísta, poeta e crítica literária influenciada por Lacan. Foi, também, a responsável pela introdução da obra de Clarisse Lispector na França e em outros países. Nessa peça, observa Lacan, a histeria aparece incompleta e, por isso, reduzida a um estado que ele chamou de material. O que a faz incompleta é a falta do elemento que a tornaria passível de ser compreendida, ou seja, falta o elemento que introduziria a significação.

Em Freud, o sintoma de Dora é acompanhado de uma significação sexual, baseada em uma versão do pai como impotente. É esse elemento que torna o sintoma interpretável, conferindo-lhe um sentido. Assim, desde Freud, ou mesmo antes dele, o sintoma histérico está sempre acompanhado de um intérprete, de um elemento que lhe confere uma significação. No entanto, em sua peça, Cixous apresenta Dora sem esse elemento interpretante (LAURENT, 2012), faz surgir uma histeria sem parceiro, sem sentido. Podemos dizer então que, na falta desse elemento, o sintoma histérico apareceria em sua prevalência libidinal, desvestido de sentido, reduzido à sua materialidade, ou seja, ao traço que fixa o gozo no corpo. Podemos aproximar esse traço do que foi destacado por Freud com relação à cena de Dora com o irmão, um traço que asseguraria a conservação de um sintoma mesmo que ele tenha perdido seu significado. Quanto a isso, vale lembrar as elaborações de Lacan sobre a identificação no Seminário 24, comentadas por Laurent e a partir das quais nos parece possível concluir que a  identificação histérica – tanto com relação à sua vertente de participação no gozo do outro, que Freud exemplifica como fundamento da epidemia histérica (caso do pensionato), quanto em sua vertente de amor ao pai – se sustentaria, no fim das contas,  na identificação que Lacan (1977) chamou de neutra, a identificação a um  traço particular, a um traço qualquer que seria apenas o mesmo. Logo, “a histeria em seu estado material” parece ter a ver com o que, em última instância, para além ou aquém do sentido edípico, toda histeria poderia ser reduzida. Conforme esclarece Laurent (2012, s/p), “o material, no fundo, é o sintoma como tal, separado do sentido”. O sintoma histérico, assim apresentado, sustentar-se-ia apenas do Um-sozinho, do significante em sua materialidade como substância gozante (MILLER, 2011).

Essa forma de sustentação da histeria a partir do Um, Lacan qualificou de rígida, uma histeria que se sustentaria sem o apoio do pai como instrumento através do qual o gozo poderia ser resolvido pelo sentido (MILLER, 2007, p. 238). Lacan (1975-76/2007, p. 103) é levado, então, a articular uma cadeia borromeana “rígida” na qual o simbólico, o imaginário e o real se conjugam, mantendo-se unidos sem a necessidade do Nome-do-Pai como uma rodinha suplementar (LAURENT, 2012). Ele chama a atenção para o fato de que, nessa maneira de apresentar a cadeia, “o importante é o real” (MILLER, 2007, p. 238), é o fato de que o real não se restringe unicamente a uma das rodinhas de barbante, pois a cadeia inteira constitui o real do nó. Partindo dessa observação de Lacan, parece-nos possível afirmar que a histeria rígida evidencia a vertente real do sintoma, o sintoma apresentado, realizado, assim como a peça de Cixous, de um modo real.

Esse modo real nos remete ao sintoma histérico não mais em sua plasticidade, fruto de sua inserção nas significações, mas como iteração do mesmo, do Um-sozinho que não se liga a nada. Portanto, a nosso ver, o que Lacan apresenta como histeria rígida não seria uma histeria sem sintoma, mas uma histeria na qual o sintoma não se sustentaria na significação produzida pelo Nome-do-Pai. Lacan (1975-76/2007, p. 102) nota que aquela que faz o papel de Dora na peça não deixa de mostrar suas manias, suas virtudes de histérica. Isso quer dizer que o sintoma está lá, porém sem sentido, em sua vertente real. Tratar-se-ia da histeria como um elemento estrutural, da histeria apresentada a partir do que, em última instância, constitui o substrato, o osso, o cerne de toda histeria e mesmo de todo sintoma neurótico.

Nesse contexto, nos ocorreu pensar se, com a cadeia rígida, não poderíamos situar outra maneira de apresentar o que Lacan (1951/1998) chamou, em “Intervenção sobre a transferência”, de “matriz imaginária”, referindo-se à já citada cena de Dora com o irmão, ou, ainda, se essa matriz imaginária não seria da ordem de uma Prägung, termo utilizado por Freud e comentado por Lacan no Seminário 1. Freud faz menção a esse termo referindo-se à cena primaria no caso do Homem dos Lobos (quando ele vê uma cena entre os pais de uma cópula a tergo) e que me parece servir, também, para a cena de Dora com o irmão. Trata-se, segundo Lacan, de uma efração imaginária, de uma cunhagem, de uma marca a partir de uma experiencia de gozo estritamente limitada ao domínio do imaginário, pois situa-se em um inconsciente ainda não recalcado, algo que ainda não teria sido integrado ao sistema verbalizado do sujeito, algo que não atingiu a verbalização e nem mesmo a significação. Conforme nos explica Lacan, o trauma no que ele tem ação de recalque, intervém só depois. Entre a cunhagem e o recalque simbólico, nos diz ele, há apenas uma diferença, essencial a meu ver: é que, naquele momento da Prägung, ninguém está lá para dar a palavra àquele que é afetado pela Prägung  – trata-se, portanto, de um acontecimento sem Outro, sem simbólico e que certamente nos abre algumas questões sobre a função do imaginário e mesmo de uma certa prevalência deste na apreensão do real e da importância de o considerarmos de forma renovada na condução do tratamento, como nos elucida Miller em sua leitura do ultimíssimo Lacan.

Desta maneira, se no início de seu ensino Lacan faz prevalecer o imaginário como matriz, como imagem condensadora do gozo a partir da qual o sintoma é gerado, no Seminário 23, com relação à cadeia rígida, ele dará destaque à aparência suportada pelo nó entre o simbólico, o imaginário e o real (aparência nodal). Nas palavras de Lacan (1975-76/2007, p. 107), “essa aparência nodal, essa forma de nó, se posso dizer assim, é o que dá segurança ao real. Direi, portanto, nesse caso, que o que testemunha o real é uma falácia, posto que falei de aparência”.

O falo como testemunho do real

Constata-se, dessa forma, uma mudança de perspectiva com relação à histeria nos tempos de Freud e que observamos cada vez mais em nossa prática: a histérica de hoje não precisa mais, para gozar, de sustentar o pai através de seu sintoma, criando um sentido, porque, para gozar, ela se sustenta no significante. Essa constatação nos leva a uma questão que Laurent (2012) situa como crucial e que, segundo ele, permite a Lacan, no Seminário 23, reformular a histeria tomando-a, como vimos, por seu avesso: diz respeito ao novo lugar que Lacan dá ao falo, não mais como resultado da metáfora paterna, testemunho dos efeitos de significação, mas como um semblante que dá testemunho do real. Segundo Laurent (2012, s/p), o falo, nessa nova posição, estaria “fora da metáfora paterna”, ou seja, separado de toda significação edípica. Aqui, não estamos mais no contexto no qual “ali onde isso fala, isso goza”; o que se situa em primeiro plano é a constatação de que “isso goza, ali onde isso não fala”, “isso goza, ali onde isso não faz sentido” (MILLER, 2011).Trata-se do falo, como já o designava Lacan (1960-61/1992, p. 234) no Seminário 8, em sua “presença real”, “um símbolo inominável”, “cuja emergência faria estancar todo reenvio que se tem lugar na cadeia dos signos”. Como tal, o falo é o significante do gozo do Um que, conforme nos indica Miller (2001, p. 23), é impossível de negativizar, é o significante como suporte material do gozo, ao qual Lacan (1975-76/2007, p. 119) confere uma “phunção de fonação” que “acaba sendo substitutiva do macho, dito homem”. Podemos nos referir, aqui, à afirmação de Freud de que a libido é sempre masculina, e também à tese de Miller (2011) segundo a qual, para o falasser, o gozo não é sem o significante. Assim, o falo é o que permanece, no corpo, como resíduo condensador de um gozo incurável, sustentação do gozo do Um, desse pouco de gozo que resta ao falasser face a seu encontro traumático com a inexistência da relação sexual e de um gozo absoluto que lhe conviria. Sendo assim, o falo, fora da metáfora paterna, é presença real de um gozo e, ao mesmo tempo, marca da castração que não está referida à falta paterna, mas, sim, ao furo da inexistência da relação sexual. Trata-se do “real marcado pela falácia” (LACAN, 1975-76/2007, p. 112).  É desde esse lugar que o falo pode aparecer como passível de verificar que o furo da inexistência da relação sexual é real.

A recusa do não-todo

A partir daí, parece-nos possível afirmar que a histérica de hoje nos mostra a via do significante sem o pai, isto é, sem que o poder do significante, como causa de gozo, fique recoberto, como vimos no caso Dora, pela impotência paterna. Dessa forma, o sintoma sustenta-se, em sua existência, no falo, conforme explicitado acima, como significante do gozo, separado do sentido, fora da metáfora paterna. Trata-se, literalmente, do falo em sua materialidade, como um significante que dá corpo ao gozo, que faz do sintoma um acontecimento de corpo a partir do qual podemos constatar o efeito maior do significante: o furo. Segundo Miller (2010-11, s/p), “esse furo vem precisamente no lugar da função edipiana do interdito e de todas as significações aferentes”. É, portanto, uma ancoragem real, um traço que se repete e não diz nada a ninguém, mas presentifica uma forma de satisfação, um gozo enigmático que pode precipitar o sujeito até a análise. Assim, encontramos na histeria hoje uma fala analisante que se apoia mais na vertente do significante como produção de gozo do que em seu efeito de significação, e sintomas que se apresentam prevalentemente em sua vertente real e libidinal como, por exemplo, os acontecimentos de corpo, as compulsões, algumas formas de apresentação da homossexualidade feminina, as devastações amorosas, etc.

No entanto, por mais que a histérica hoje apresente o sintoma sustentado no falo como significante do gozo impossível de negativizar, ela não deixa de demonstrar que o que lhe é dado como gozo é sempre aquele que não deveria ser, é sempre um gozo que não convém se comparado ao único gozo que conviria: aquele relativo à relação sexual que ela visa a atingir. Sendo assim, ela se recusa a ser o sintoma de outro corpo, do corpo de um homem, ou seja, aquilo de que ele goza. Portanto, em seu sintoma, ela goza do significante como Um-sozinho, como um corpo que se goza, mas se recusa a fazer passar esse gozo por um outro, colocá-lo à prova na relação com o parceiro. Sua recusa, em outras palavras, é a de servir-se do falo, ou seja, de seu próprio corpo, para verificar o real da inexistência da relação sexual. Ela se aprisiona na lógica do gozo do Um para continuar mantendo, em seu horizonte, o Outro absoluto, A Mulher como depositária de uma feminilidade que se situaria toda fora do falo e da qual ela se sente privada.

Parece-nos, então, que o sintoma histérico, em nossos dias, mesmo não estando mais encoberto pelo amor ao pai, permanece como uma forma de defesa com relação ao real de um gozo não-todo e, por isso, diferentemente da posição feminina, em perfeita consonância com os tempos atuais marcado por um individualismo de massa (LAURENT, 2013, p. 36). É justamente na medida em que, em seu sintoma, a histérica recusa a servir-se do falo para verificar o real, que podemos distinguir o que Lacan chamou de histeria rígida, ou seja, a forma real de apresentação do sintoma histérico, do sinthoma tal qual ele se apresenta no final de uma análise, referido ao não-todo. Portanto, é a recusa do feminino que hoje, a nosso ver, nos permite dizer que se trata de uma histeria, mesmo quando não dispomos mais de um sentido para compreendê-la.

 


REFERÊNCIAS:
BROUSSE, M.-H. A histeria e as histéricas de Freud a Lacan. [Entrevista concedida a] NODVS (Boletim Virtual da Seção Clínica de Barcelona). 2013. Disponível em: https://www.radiolacan.com/pt/podcast/entrevista-a-marie-helene-brousse-por-nodvs-boletim-virtual-da-secao-clinica-de-barcelona/4. Acesso em: 01 março 2024.
CIXOUS, H. Portrait de Dora. Paris: Editions des femmmes, 1986. (Trabalho original publicado em 1976).
FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1996, p. 15-116. (Trabalho original publicado em 1905[1901]).
LACAN, J. L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Lição de 16 de setembro de 1976. Ornicar?, n. 12-13, p. 5-9, 1977.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada; revisão de Romildo do Rêgo Bastos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original publicado em 1960-61).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 214-225. (Trabalho original proferido em 1951).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. In: Argumento do VI ENAPOL: Falar com o corpo – A crise das normas e a agitação do real. 2012. Disponível em: https://enapol.com/vi/pt/portfolio-items/falar-com-seu-sintoma-falar-com-seu-corpo/?portfolioCats=15. Acesso em: 01 março 2024.
LAURENT, É. Le sujet de La science et La distinction feminine. La Cause du Désir, n. 84, 2013.
MILLER, J.-A. Psychanalyse pure, psychanalyse appliqué et psychothérapie. La Cause Freudienne, n. 48, 2001.
MILLER, J.-A. Nota passo a passo. In: LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MILLER, J.-A. Curso de orientação lacaniana. L´être et l`Un. Aula XIII. 2010-2011. (Trabalho inédito).
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011.

 




Memória – O surgimento do Almanaque do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais

Almanaque 33 manteve uma descontraída conversa com Simone Souto, uma das criadoras da revista Almanaque para o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental. Quisemos saber, assim de improviso – o que vale dizer, sem recursos à pesquisa e a arquivos, sem preocupação com a exatidão –, o que lhe evocavam as perguntas que seguem.

Almanaque 33: Como nasceu a revista Almanaque do IPSM-MG?

Simone Souto: Eu era diretora de publicação, se não me engano, e parece-me que foi na diretoria do Barreto.

Almanaque 33: Francisco Paes Barreto.

Simone Souto: Isso mesmo. O Instituto tinha acabado de ser criado, havia pouco tempo de funcionamento e me lembro de que a gente queria uma publicação que se configurasse como um veículo, rápido, alguma coisa bem simples, capaz de divulgar um pouco o que acontecia no Instituto, principalmente nos Núcleos de Investigação e Pesquisa. Assim, acho que, no primeiro número, todos os artigos tinham a ver com os Núcleos. A inspiração para fazer o Almanaque e lhe dar esse nome veio daquelas publicações antigas, lançadas e divulgadas por farmácias e que existiram até no início do século XX. Por isso, o layout, as letras e as ilustrações, tudo teve a ver com aqueles antigos almanaques de farmácia.

Almanaque 33: Então, o trabalho de pesquisa que houve foi inspirado por eles e acabou sendo muito precioso. Foi muito trabalhoso?

Simone Souto: Sim, nos servimos inclusive das cartas enigmáticas que também eram publicadas nos almanaques e faziam sucesso na época. Havia aquele almanaque do Biotônico Fontoura e ainda outro, referente a um óleo de bacalhau e do qual me esqueci o nome…

Almanaque 33: Óleo de rícino, é isso mesmo! Podemos pesquisar a respeito.

Simone Souto: Com relação à tiragem, ela era grande, 1.500 exemplares, porque nosso objetivo era fazer um pouco de panfletagem, distribuir o Almanaque por toda a cidade. Afinal, era um momento de o Instituto se fazer presente na cidade! Também foi um momento em que o Instituto já tinha presença muito forte nas instituições de Saúde Mental porque havia muito colegas da Saúde Mental que frequentavam bastante as atividades do Instituto. Logo, queríamos que o Almanaque pudesse retratar um pouco isso, assim como ajudar a consolidar a presença do Instituto na cidade.

Almanaque 33: O Almanaque tinha mesmo esse estilo tabloide … No ano 2000, já estava no ano 3 de publicação. É mesmo admirável o tamanho da tiragem. Era uma aposta muito grande naquela época.

Simone Souto: Sim, ele foi feito naquele formato, como um panfleto, com poucas páginas, e cada um de uma cor: branco, amarelo, verde… Nós o distribuíamos por todo canto e para todo o mundo.

Almanaque 33: Vimos um vermelho, um vermelho meio rosa, magenta. Verificamos que estão cadastrados na Biblioteca, na sede do Instituto.

Simone Souto: Também existiram os Papéis, que não tinham nada a ver com o Almanaque. Os Papéis foram a criação de uma outra publicação.

Almanaque 33: Não substituiu o Almanaque, portanto.

Simone Souto: Não, acho que não. Foram outra publicação. Os Papéis formaram outra linha de publicação e eram, inclusive, temáticos. Eu me lembro de um que foi sobre psicose, e que seguiam as temáticas investigadas nos Núcleos do Instituto. Continham textos mais extensos e densos enquanto que, no Almanaque, os textos eram mais leves e curtos.

Almanaque 33: Eram publicações dirigidas a públicos distintos. O Almanaque visava um universo maior, não é? Em um de seus números, por exemplo, pode-se ler um texto sobre a psicose na rede, escrito por você. Também há um sobre o corpo e a medicina, a psicanálise com crianças, sempre orientados pela psicanálise. São temas absolutamente da maior atualidade e seguem ainda como temas de pesquisa no IPSM-MG.

Simone Souto: Sim, procurávamos fazer um para cada Núcleo, para mostrar o que cada Núcleo investigava, pois o Instituto era mesmo uma novidade.

Almanaque 33: Sim, e as instituições também estavam acolhendo de braços abertos a relação da Saúde Mental e da psicanálise, quer dizer, a Saúde Mental orientada pela psicanálise. Você faria uma relação entre esse movimento de panfletagem da psicanálise, via a publicação Almanaque, a entrada do Instituto na cidade, a nossa presença nas instituições e o efeito de certa efervescência da psicanálise na cidade, naquela época?

Simone Souto: Sim. Eu acho que surtiu bom efeito, porque já naquela época o Instituto cresceu, não só em número de participantes, como em sua relação com várias instituições e, também, com relação à sua presença na cidade, foi um retorno interessante. A gente via as pessoas com o Almanaque nas mãos. Então, nessa época que não existia o online, a gente se valeu de uma grande distribuição do que era escrito e impresso. Essa estratégia teve boas consequências: grande interesse pelo Instituto; algum tempo depois, criamos o Curso de Psicanálise… Tenho a impressão de que esse Curso do Instituto foi criado pouco depois do início da difusão do Almanaque e, a partir daí, essa publicação passou também a promover esse Curso que despertou ainda mais o interesse das pessoas pelo que a psicanálise tem a dizer. Abordávamos muitas vezes assuntos sobre os quais as pessoas, em geral, achavam que a psicanálise não teria nada para dizer, mas que eram os temas muito discutidos naquela época, no âmbito da Saúde Mental, da Educação, etc. Com isso, foi possível trazer mais pessoas ao Instituto e que não tinham, a princípio, uma relação muito estrita com a psicanálise, permitindo-nos escutá-las.

Almanaque 33: Escutando o que você nos conta, ressalta-nos o incrível dessa ideia, porque ela captou ou lançou no ar daqueles tempos da psicanálise na cidade, e de uma forma alegre. Alegre e rigorosa, por apresentar toda uma pesquisa veiculada em uma publicação popular como os antigos almanaques eram.

Simone Souto: Sim, foi assim mesmo – ter uma publicação e um alcance mais popular, mas sem renunciar ao rigor da psicanálise.

Almanaque 33: Sim. E, além do mais, essa grande ideia foi a baixo custo, porque, pelo aspecto, pelo papel, pelo tipo de impressão, pode-se pensar que isso permitiu a grande tiragem, alcançando 1500 pessoas a cada edição! Foi mesmo uma brilhante e inovadora ideia, que frutifica até nossos dias. Agradecemos-lhe muitíssimo sua generosidade de nos falar sobre as raízes da publicação Almanaque.




O único e o específico na experiência analítica

Sérgio de Castro
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
sdcastro@terra.com.br

Parece-me interessante tomarmos o significante ÚNICO deixando-o deslizar para termos mais próximos de nosso jargão. Por exemplo, a partir da contracapa Seminário 19, escrita por Jacques-Alain Miller, perguntarmo-nos se esse ÚNICO poderia ser aproximado do Um-dividualismo moderno. Se, por um lado podemos, ao Um-dividualismo, localizá-lo na rigidez autoreferida dos identitarismos atuais, por outro, podemos constatar que basta que se inicie uma análise para se verificar que há uma dimensão do Outro em cada um que faz voar pelos ares tal aprisionamento. Portanto, se uma vez atravessado pelo Outro na experiência analítica tal ilusão do Um-dividualismo fica em questão, uma vez que é o sujeito dividido que se produz, restará ainda algo de refratário ao Outro e à sua interpretação que, enquanto Único daquele sujeito, deverá, no entanto, ser convocado a dizer-se. Cabe, por fim, perguntar se o que vemos aqui não seria uma passagem do Um-dividualismo referido no “sou o que digo que sou” ao que se deduz do dizer que faz emergir a diferença absoluta que cada falasser carrega a partir de seu encontro traumático com a língua.




O único e o específico na experiência analítica

Frederico Feu de Carvalho
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
fredericofeu@uol.com.br

O “único” e o “específico” podem ser tomados como duas maneiras de nos referirmos à singularidade do sujeito na experiência analítica.

Nos acostumamos, desde Freud, a fazer a distinção entre o caso único e o tipo clínico. Trata-se de distinção clínica que expressa a posição ética do psicanalista: o sujeito não se reduz à categoria diagnóstica que especifica o seu tipo clínico e, mesmo que ele possa ser comparado a outros sujeitos do mesmo tipo, orientando a direção do tratamento do seu caso, a resposta subjetiva ao realismo da estrutura é o que condiciona, em última instância, a singularidade da interpretação.

Gostaria de propor, no âmbito de nossa discussão no IPSM-MG, que a distinção entre o “único” e o “específico” não recobre inteiramente aquela entre o caso único e o tipo clínico, especialmente se remetemos o “único” ao “Um”, marca de gozo original do falasser. Nessa acepção, o “Um” converge com a perspectiva do sinthoma no último ensino de Lacan, tomado como unidade clínica fundamental. Como unidade clínica fundamental, o sinthoma supera clivagens precedentes, entre elas a clivagem entre o caso único e o tipo clínico, na medida em que a perspectiva do sinthoma demarca o ponto de inflexão clínico entre a estrutura, entendida como a articulação dos elementos em que se joga a partida entre o caso único e o tipo clínico, e os elementos tomados em si mesmos, fora da articulação e do sentido.

A prática da psicanálise ganha então uma outra ênfase. Trata-se de reconduzir a trama de destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora de articulação, quer dizer, fora do sentido e, porque absolutamente separados, podemos dizê-los absolutos. Trata-se de reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente (MILLER, 2008, p. 57-58)

A unicidade do falasser seria, portanto, um ponto fora da articulação dos elementos. Ela ex-siste em relação ao caso clínico, com o qual não se confunde. Não se refere, portanto, à máxima segundo a qual cada caso é um caso. A distinção lógica entre o específico e o único pode ser então formulada nesses termos: o específico corresponde à resposta ficcional e estruturada dada por um sujeito à sua marca única; seja ao inscrever-se no universal de um tipo clínico, seja ao excetuar-se dele como singularidade, o específico, como o particular de um sujeito, só existe por ser predicável. O Um, por sua vez, traz consigo uma dificuldade de escrita e de interpretação. Sua maneira de existir fora do universal é uma maneira radical, por não ser predicável, permanecendo à distância de qualquer referência linguística. Como, então, pode-se afirmar a existência de algo do qual nada se pode predicar? Se, por outro lado, afirmamos sua existência, a despeito de ser impredicável, o que pode vir a suportar sua escrita? Proponho que a resposta lacaniana a essa questão é o sinthoma: a maneira específica como cada falasser amarrou o seu Um ao real, ao simbólico e ao imaginário para fazer disso um nó.


Referências

MILLER, J.-A. Curso de orientação lacaniana III. Lição V, 2008. (Trabalho inédito).




Almanaque On-line – Agosto/2023 – Nº 31

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

Giselle Moreira

Apresentamos a 31ª edição da revista Almanaque On-line, que tem como eixo temático “A clínica universal do delírio”, em consonância com o argumento da próxima Jornada da EBP-MG – O que há de novo nas psicoses… ainda – e do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que acontecerá em fevereiro de 2024 sob o título Todo mundo é louco.

Os textos que compõem esta edição marcam um contraponto a uma perspectiva despatologizante que busca eliminar o real do sinthoma. A clínica universal do delírio configura, por sua vez, uma orientação política da psicanálise e parte da leitura lacaniana de que os discursos não são mais que defesas contra o real, o que permite deduzir, nesse caso, que ninguém é normal: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31).  (Leia mais)

TRILHAMENTOS

Schreber, ainda contemporâneo

Sérgio Laia

Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”. (Leia mais)


 

Todo mundo é louco

Frederico Zeymer Feu de Carvalho

Texto de explicitação do aforismo lacaniano “todo mundo é louco”, tema do congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2024, destacando seu contexto de enunciação, ligado ao impossível de se ensinar, e o último ensino de Lacan, do qual esse aforismo é uma bússola. (Leia mais)


 

O ordinário do gozo, fundamento da nova clínica do delírio

Dominique Laurent

A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária. (Leia mais)


 

“Folitiquement” incorreto

Pascale Fari

O significante “loucura” não é mais admissível em psiquiatria. O psiquismo tem sido apagado, o qualificativo “mental” se tornou uma relíquia incômoda e o que permanece é simplesmente “a doença”. Diante do sufixo-mestre atual, neuro, o essencial não é mais o que o paciente tem a dizer, mas sim que ele engula a coisa. O cérebro é o objeto primordial dessa doença, a máquina é seu modelo original. É a psicanálise que, por sustentar a dimensão da subjetividade, constitui o obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico. (Leia mais)


 

Clínica psicanalítica do delírio

Laurent Dupont

Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”. (Leia mais)

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista Sérgio de Campos

No final do volume 2 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses – volume este intitulado “As psicoses ordinárias” (CAMPOS, 2022a) – você cita Lacan quando ele afirma, a propósito da religião, que a psicanálise não triunfará: ela sobreviverá ou não. Podemos ampliar a questão da sobrevivência da psicanálise no que diz respeito ao que temos nos dedicado, atualmente, no Campo Freudiano, a saber, à problemática da despatologização… (Leia mais)

ENCONTROS

A despatologização lacaniana e a outra

Francesca Biagi-Chai

A autora examina a concepção de despatologização, apresentando os argumentos que justificam a oposição já apresentada no título do texto: a lacaniana e a outra. Se a autora afirma que a instituição lacaniana despatologiza, é porque está concebida segundo a topologia moebiana, regida pelo discurso e pela clínica. A despatologização “selvagem” permite equivaler “o sentimento de cada pessoa” à sua realidade e essa deve, portanto, ser reconhecida como tal. Evidencia-se, assim, a evacuação do inconsciente e, igualmente, do sintoma. (Leia mais) 


Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma

Philippe la Sagna

Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele. (Leia mais)

PRELÚDIOS

O método psicanalítico: de Freud a Lacan e retorno

Paula Pimenta

Este artigo se propõe a apresentar em detalhes o texto de Miller (1997), intitulado “O método psicanalítico”, e o texto quase homônimo de Freud (1904[1905]/2017), intitulado “O método psicanalítico freudiano”. O percurso a ser feito partirá do texto de Freud, passando pelo de Miller e retornando ao de Freud com a intenção de promover uma interlocução entre eles. (Leia mais)


Uma leitura do texto freudiano “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”

Cristiana Pittella

A partir de uma leitura de orientação lacaniana do texto em que Freud procura transmitir o método psicanalítico, depreende-se a importância da formação do psicanalista para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise. (Leia mais)


 

Inventar a própria maneira de ler

Márcia Mezêncio

Este artigo traz a leitura, a contextualização e o comentário acerca do artigo de Freud intitulado “Sobre o início do tratamento”, publicado em 1913 na série que ficou conhecida como Escritos técnicos, e desdobra algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise, remetidas ao momento atual. (Leia mais)


 

Uma introdução ao amor transferencial

Renata Mendonça

Este artigo apresenta uma releitura de “Observações sobre o amor transferencial” (1915[1914]) para abordar as indicações de Freud sobre o método psicanalítico, incluindo no debate também alguns autores de nossa época, como Lacan e Miller, mostrando o quanto o texto freudiano é contemporâneo e necessário à clínica psicanalítica. (Leia mais)


 

Lembrar, repetir, perlaborar

Lucia Maria de Lima Mello

A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa. (Leia mais) 


 

Do sentido à satisfação do sintoma

Kátia Mariás

O texto aborda as Conferências XVII e XXIII de Freud sobre o sentido dos sintomas e sobre os caminhos da formação dos sintomas. Nessas conferências, ao partir do sentido – Sinn – para a significação, a referência – a Bedeutung –, Freud vai do sentido ao gozo do sintoma. (Leia mais)


 

Construções e reminiscências

Luciana Silviano Brandão

A autora faz um percurso ao longo do texto “Construções em análise”, trabalha os conceitos de recordações ultranítidas, verdade histórica, rememoração e reminiscência. Sua hipótese é a de que a verdade histórica se equipara conceitualmente à reminiscência. (Leia mais)

PÓLIS

A escola, o instituto e a ética das consequências – Conferência proferida na atividade Para que serve o Instituto? – abril/2023

Jésus Santiago

No presente texto, o autor apresenta a forma de funcionamento da Escola e do Instituto a partir da ideia de que o princípio de orientação para a prática clínica é o mesmo que para a prática institucional dedicada à formação analítica. O modo como a psicanálise apreende as coisas do mundo diz mais de uma dimensão ética do que propriamente epistêmica – trata-se de uma dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do inconsciente. O autor, faz, então, uma leitura sobre os ambientes psicanalíticos contemporâneos e sobre a diferença entre a Escola e o Instituto. (Leia mais)

INCURSÕES

Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses  

Sérgio de Castro

O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino e determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade. (Leia mais)


 

O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares  

Alejandra Glaze

Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. (Leia mais)


 

Alocução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano

Tereza Facury

A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos. (Leia mais)


 

A criança, seus delírios e os delírios de seus pais

Suzana Faleiro Barroso

A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai. (Leia mais)


 

Supereu solúvel no álcool? 

Miguel Antunes 

A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo. (Leia mais)

DE UMA NOVA GERAÇÃO

A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo 

Paulo Henrique Assunção Rocha 

No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. (Leia mais)


 

Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea? (Leia mais)


 

Do dom de Mauss ao inominável da pulsão

Laydiane Pereira de Matos

Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. (Leia mais)




Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line: Em seu texto “Quando um sonho desperta Um corpo”,  há um ensinamento em que clareza e beleza se combinam em uma transmissão. Cito abaixo a frase em questão, e peço que nos fale como o analista pode chegar a esse ponto de “precisão” que você disse e que marca a fineza de uma clínica lacaniana:

Se o sonho, para além da sua história, abriga também um núcleo autista de gozo, é então necessário poder especificar na experiência o momento clínico que implica a passagem do campo do Outro do significante para o corpo como Outro. (VENTURA, 2020, p. 10)

Em outras palavras, como podemos situar essa distinção entre o inconsciente “mentiroso” e o inconsciente real na interpretação dos sonhos que ocorrem na prática analítica?

Oscar Ventura: Obrigado por esta pergunta, porque me permite continuar interrogando a função que os sonhos desempenham na prática clínica. E permite também articular diferentes momentos da obra de Freud e do ensino de Lacan sobre a possibilidade que os sonhos oferecem de produzir uma retificação na economia do gozo. Porque, na verdade, o que interessa afinal é como dar conta do poder que alguns sonhos têm de modificar a própria posição do sujeito em relação ao sonho sonhado.

Nem todos os sonhos que se desenrolam durante um tratamento dão essa possibilidade; talvez os mais interessantes sejam aqueles em que se pode localizar uma destituição do analista na transferência. Isto é, se o sonho já implica a transferência, como apontou Freud, se o relato do sonho está dirigido ao Outro. Além disso, podemos colocar desta forma: os sonhos podem permitir uma evaporação do Outro.

Provavelmente, temos o paradigma desse deslocamento do Outro com o sonho da Injeção de Irma, “o sonho dos sonhos”, como Lacan o chama no Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Ali, o que em última instância permanece a céu aberto, para Freud, é um real que se encarna no abismo e no mistério do corpo, um furo que suga toda pretensão de sentido que lhe poderia ser concedida. E isso não deixou de ter consequências para o próprio Freud como sonhador e como analisante. Não só lhe foi revelada aquela zona indecifrável do sonho, limite de qualquer interpretação possível, mas também inaugura aquele espaço insondável, no qual se funda a sexualidade humana, incluindo aquele “continente negro”, como Freud o chamava, para ilustrar o enigmático da sexualidade feminina. A elisão do sentido produzida pelo umbigo do sonho deixa fora de jogo a Bedeutung do falo enquanto tal, e esse movimento dá conta da presença de um gozo que não tem nenhuma escrita no campo das representações, sejam elas imaginárias, sejam simbólicas.

Sempre que nos referimos ao umbigo do sonho, a essa diluição das representações que transcorre no próprio lapso do sonho, pode-se notar, por um lado, a presença do limite de um real que ocorre mais além de qualquer significação, e, por outro, uma resposta do corpo, que de uma forma ou de outra é o único suporte para a experiência de um gozo cuja fixação é inexpugnável, e que dá conta, ao mesmo tempo, tanto da vida que ali pulsa, quanto da morte que também abriga.

O relato de um sonho sob transferência tem, portanto, duas dimensões. Por um lado, a sua estrutura significante, o que o analisante diz sobre ele, o conto que o sonho conta, o cenário que constrói, enigmático por vezes, outras mais claro. É a parte de verdade que o sonho veicula em seu estatuto de inconsciente transferencial, é um conto do Outro e para o Outro. E, nessa direção, a verdade mentirosa, mas necessária, se faz ouvir no nível do uso que o sujeito faz do que para ele foram as formas pelas quais o significante mordeu e debilitou sua satisfação, sempre corroída pelo parasita da palavra e que produz um sintoma, o de cada um. Nesse nível, o que constatamos é que o próprio relato do sonho já é uma interpretação, alimenta um sentido novo que corre o risco de se metonimizar num infinito estéril, a repetição é o obstáculo que retorna continuamente. Nessa conjuntura, os atos do analista visam corroer o aparato da fantasia, coração da máquina interpretativa e da repetição a que submete o sujeito, também solidária com a estrutura da fantasia.

Agora, no relato de um sonho, por outro lado, também podemos encontrar seu ponto de furo, seu abismo, a garganta de Irma, por exemplo. É o ponto no qual o significante se esgota e surge a possibilidade de o corpo responder a esse inominável com seu acontecimento. Encontrar esse momento, o Kairós do sonho, se podemos dizer assim, é a possibilidade que podemos oferecer à transferência para produzir a disjunção necessária entre saber e gozo. É o próprio corpo do analista, colocado a serviço do corte, que pode permitir ao sujeito percorrer esse território onde a ausência de sentido faz ressoar outra coisa, que pode ir um pouco mais além do laço que faz o significante se solidarizar com a ruína da repetição.

A.O.: Ainda nesse mesmo texto você trata de um despertar, ligado a um significante novo, fora do sentido, que produz também um acontecimento de corpo, no caso, uma gargalhada que toma todo o corpo. Parece ser necessário consentir com esse significante novo e seu estatuto de fora do sentido para que esse encontro com algo do real se efetive. Em “Rumo a um significante novo”, Lacan (1977/1998, p. 11) aponta o chiste e a poesia como formas de fazer ressoar o fora do sentido que desperta e, em A terceira, ele diz: “O significante não é a letra. O significante se abre para outros – e a letra é morta, ou, o que de mais vivo há, pois dá acesso ao real.” (LACAN, 1974/2023, p. 57). Seria a partir de um significante novo que se conseguiria vivificar a letra morta do sintoma, tornando-o sinthome? Como você percebe a função do chiste e da poesia numa clínica orientada para o real?

O.V.: Bom, há muitas perguntas na questão, daria para escrever um artigo inteiro, uma investigação… Mas podemos reduzi-las um pouco a questões fundamentais. Vou começar fazendo uma pequena pontuação sobre o sinthoma. Às vezes tendemos a nos precipitar sobre as contribuições fundamentais que Lacan nos deixou em seu último ensino. E é verdade que esse último ensino é fundamental para enfrentar a prática clínica contemporânea. A potência clínica que daí emerge nos permite às vezes captar algumas questões muito rapidamente, por vezes logo no início da experiência, inclusive durante as entrevistas preliminares. Por exemplo, há casos em que podemos vislumbrar a partir do relato, e para além da estrutura clínica, incluindo o diagnóstico, qual é a interpretação que o próprio sujeito tem do seu sintoma, qual é também a interpretação que ele tem do mundo, se o sujeito tem ou não uma fantasia consistente, se a estrutura da fantasia é mais permeável, talvez mais fraca, ou se ele não foi capaz de construir esse aparato de interpretação que é a fantasia. Ou seja, às vezes podemos verificar com certa antecipação qual é a relação que um sujeito estabelece com o real, e qual o tipo de defesas ele articulou para amortecer esse real que o habita.

Mas isso não nos autoriza a um procedimento repentino de orientar a experiência para o imediatismo técnico, se assim posso dizer. É necessário tempo para que um sujeito estabeleça algum tipo de acordo com o impossível, embora à orientação do ato analítico não falte uma orientação para o real em hipótese alguma. Digo isso porque é importante enfatizar, creio, que o último ensino de Lacan não dispensa o primeiro. Posso dizer de outra forma: é necessário que a verdade mentirosa se desdobre, que se produza a construção de um mito individual, que a repetição seja escandida, para decantar, até onde o sujeito consinta, as estratégias que ele concebeu para se defender, para dizê-lo rapidamente, da ausência de relação sexual.

Então, a passagem do sintoma ao sinthoma – quando isso ocorre – se estabelece na medida em que um tratamento se desenrola ao longo do tempo. Além disso, a emergência de um significante novo, mesmo que seja contingente, ainda assim necessita que o sujeito, de alguma forma, esteja decidido a fazer da incerteza um parceiro; é uma condição para que a irrupção da contingência possa escrever-se.

O sinthoma implica uma forma de funcionamento subjetivo, coloca a serviço da vida pelo menos uma parte do gozo que parasita a existência. Seria interessante clinicamente não confundir o sinthoma com a raridade de cada um, com um traço peculiar, mas antes apreender que o sinthoma implica uma lógica borromeana, onde o gozo vai mudando, e é na medida em que um sujeito está advertido da irredutibilidade desse gozo que pode inventar a possibilidade de colocá-lo a serviço de outra coisa, alguma coisa que não seja sempre solidária com o autismo subjetivo que o gozo implica.

Seria necessário, talvez, diferenciar duas dimensões da letra, para esclarecer o que é letra morta e o que não é – e que seria letra viva. E para isso é importante colocar a lupa sobre o deslocamento que Lacan vai progressivamente operando do sujeito ao falasser e do inconsciente a lalíngua.

Por um lado, temos um movimento que está inscrito muito cedo no ensino de Lacan, que é a mortificação do corpo, aquela mordida do significante no vivente de que fala Lacan. Ou seja, a desvitalização que o simbólico imprime sobre o corpo e que se solidariza com a letra morta do sintoma, deixando à deriva o mais de gozar que se aninha no próprio núcleo do sintoma.

Na transferência, a interpretação tem um alcance sobre a letra morta, graças à operação do sentido, à decifração como tal. Essa operação transferencial não se confunde com o aparecimento de um significante novo. Não constitui um arranjo para o funcionamento que o sujeito estabeleceu com o sintoma, o sentido, que é infinito, é o obstáculo aqui.

É necessário ter o conceito de lalíngua como pano de fundo para dar todo o seu alcance a um significante novo, porque aí se trata dessa outra dimensão, de um encontro diferente sobre o corpo, que é logicamente anterior, inaugural, se assim podemos dizer, da relação do sujeito com a vida. Nessa dimensão, não se trata da mordida do significante na carne, mas sim do impacto de lalíngua sobre o corpo, que não imprime uma letra morta, mas um afeto que marca o tom vital de cada um. Imprime uma letra inédita e exclusiva. Um significante novo tem a possibilidade de emergir graças ao equívoco de lalíngua que cada um pode produzir na experiência analítica. E esse significante cai da cadeia, não se liga a nada, nenhum S2 pode ser acoplado a esse S1. E é na exploração desse litoral, entre lalíngua e o corpo, onde um gozo pode ser articulado como uma letra, por minúscula que seja, sempre é insensata, ou seja, fora do sentido. É a partir daí que se pode estabelecer um funcionamento orientado mais pelo afeto que fixou a experiência inaugural de gozo do que pelo significante que tenta captá-lo. Provavelmente assim se pode instalar na subjetividade uma lógica do sinthoma que aspire um pouco mais à relação com a vida do que ao parasitismo da carne assassinada pelo logos.

Por fim, muito brevemente, a função do chiste e da poesia na experiência clínica. Provavelmente, o que mais nos interessa tanto no chiste como na poesia é a sua relação com a ressonância que produzem no corpo. Ou seja, o que podem escrever de esvaziamento, o que já não se pode mais metaforizar ou metonimizar. Do lado do chiste, poderíamos dizer que ele não responde exatamente à mesma lógica das demais formações do inconsciente, há aí possibilidades plurais de invenções de significantes novos que coagulam o sentido, mesmo que efêmero, para dar lugar a um eco no corpo, sem que o recalcamento, digamos assim, funcione como obstáculo. Nesse sentido, talvez fosse lícito dizer, em termos freudianos, que o chiste é uma pequena sublimação, certamente necessária para amenizar a existência. A irrupção do chiste na transferência é sem dúvida um momento privilegiado, pois permite um fechamento, um lapso de evaporação do sentido, anterior à emergência do chiste como tal, detém-se a significação para dar lugar a um breve acontecimento do corpo, o riso, por exemplo, às vezes a gargalhada, enfim, nada mais a dizer, fim da sessão.

No que diz respeito à poesia, digo coisas muito sintéticas. Por um lado, há a poesia que se lê, incluindo aquela que é citada, aquela que pode ser recitada, ou seja, a poesia do Outro, que sem dúvida tem um alcance de significação pessoal, e que também pode inspirar um impedimento do relato anódino da história. Por que não pensar a poesia como uma possibilidade de corroer, de furar o suposto bom senso da gramática, de explodir a pontuação, de favorecer a boa forma da ausência, de fazer emergir o novo com palavras que não cabem mais ao cancelamento de um sentido, seja ele seu, seja coletivo, comum?

Por outro lado, podemos perguntar-nos sobre uma outra dimensão da poesia, aquela que pode destilar a experiência de uma análise, aquela que pode brotar de cada encontro com um real que as palavras nunca chegarão a nomear como tal. Se, como Jacques-Alain Miller nos anuncia com todo o rigor, o mais fundamental da língua é que ela se cria ao falar, então nos resta a possibilidade de fazer esse esforço de poesia que tantas vezes citamos, como uma das possibilidades mais autênticas dos efeitos que um tratamento analítico pode produzir.

A.O.: Por fim, gostaríamos de recuperar um trecho do artigo de nosso colega Ram Mandil – que está publicado nesta edição – no qual ele se refere ao diálogo entre Stephen Dedalus e seus colegas em O retrato do artista quando jovem.[1] Nesse diálogo perturbador para Stephen-Joyce, Mandil (2024, s/p) se interessa em destacar como esse encontro “com a inconsistência do Outro”, “com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da pergunta sobre a resposta correta para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss. E Mandil conclui que essa passagem pode nos ajudar a entender o que seria ler um sintoma. Poderíamos pensar que ela também condensa algo que nos ilumina sobre o que estaria em jogo ao final da experiência psicanalítica?

O.V.: É uma alegria me deparar com o texto do Ram e poder conversar um pouco com ele aqui. Não poderia estar mais do que de acordo  com o recorte que Ram faz do Retrato de um artista quando jovem. Ele é uma orientação para captar mais claramente o que significa ler um sintoma, um sintagma que pareceria ser compreendido facilmente à primeira vista. E, ainda assim, envolve toda uma complexidade.

Ler um sintoma implica, em primeiro lugar, um esforço para nos livrarmos daquilo que convencionalmente chamamos de ler, ou seja, da lógica do sentido implícita na leitura em termos amplos, isto que pensamos compreender quando ouvimos, ou quando lemos em sentido estrito, algum texto, por exemplo. Esperamos sempre que a retroação nos conduza, graças ao ponto capitonê, a uma significação que nos permita continuar deslizando na cadeia significante. Talvez fosse interessante pontuar a diferença que existe entre a cadeia significante e a cadeia borromeana: não vou me demorar nisso, certamente precisaria de muito mais páginas. Mas pode ser uma referência conceitual para poder pensar o deslocamento de uma leitura sujeita às leis da linguagem, sob a lógica da tríade edipiana, para uma tríade RSI, em que a diferença se estabeleceria entre uma interpretação, na qual se escuta o sentido, para uma leitura do fora do sentido.

É fundamental diferenciar escuta e leitura. Se quiséssemos esquematizar isso, reduzi-lo, poderíamos dizer que, do lado da escuta enquanto tal, estamos sempre mais ou menos sujeitos ao território do sentido, enquanto, do lado da leitura, nos encontramos com a letra, com a materialidade da letra, o que implica uma diluição do campo do sentido em favor de uma cifra de gozo. Também podemos pensá-lo a partir do binômio som-sentido, o som como tal implica, em sua materialidade, uma detenção da significação, um basta, já que não é um ponto capitonê, que não permite a extensão da metonímia. E esse ponto de parada está ancorado não no Outro da linguagem, mas no corpo como Outro. Ram Mandil (2024, s/p) explica-o claramente nessa vicissitude de Stephen com seus amigos, quando, destacando o impacto do encontro com o desejo do Outro, ele nos conta como esse encontro “com a inconsistência do Outro, com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da “pergunta sobre a resposta correta” para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss.

Vemos, nessa sequência, como o corpo de Stephen é o local de um acontecimento, em busca da resposta correta, a resposta correta seria aquela que fizesse sentido, com o riso compartilhado, ao qual Stephen não tem acesso. E precisa primeiro desfazer todo o aparato da linguagem, toda a confusão da pergunta sobre se era certo ou não beijar sua mãe, para concluir:

Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! […]” (JOYCE, 1916/1998, p. 18).

Talvez tudo se reduza a esse bift!, a essa sonoridade que pode ter a possibilidade de nos fazer apreender a articulação e, ao mesmo tempo, a disjunção entre o corpo e a palavra.

Ora, a experiência de uma análise não está isenta do fato de que o tratamento do sintoma deve passar pela dialética do desejo e pela própria interpretação que a máquina do inconsciente produz. Passar por aí é o que permite, ao fim e ao cabo, desalojar os impasses da verdade que a decifração nos oferece. É a condição que nos guia para um mais além, onde reside em última instância o trauma fundamental da língua, a fixidez de um gozo irredutível e a opacidade, radicalmente indecifrável, de um real que não tem nem causa nem lei a que se submeter.

E, sim, esse é o território por onde transitam, sempre de forma diferente, os finais da análise.

Responsáveis pela entrevista: Ana Helena Souza, Giselle Moreira, Lilany Pacheco, Maria Rita Guimarães e Patrícia Ribeiro
Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Márcia Mezêncio

Referências
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. (Trabalho original publicado em 1916).
LACAN, J. Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 22, p. 6-15, ago. 1998. (Trabalho original proferido em 1977).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
MANDIL, R. O ato de leitura em psicanálise. Almanaque On-line, n. 32, 2024.
VENTURA, O. Quando um sonho desperta Um corpo. 6 + Um – Papers 06, p. 10-13, 2020. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_006-pt.pdf. Acesso em: 24 nov. 2023.

[1] Depois que ele saiu, Wells veio até Stephen e lhe disse:
Diga-nos uma coisa, Dedalus, você beija sua mãe antes de ir deitar?
Stephen respondeu:
Beijo, sim.
Wells virou-se para os demais camaradas e disse:
Escutem uma coisa, este camarada aqui está dizendo que beija a mãe dele todas as noites antes   de ir deitar.
Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela direção, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:
Não beijo nada.
Wells disse:
Escutem vocês, este camarada aqui está dizendo que não beija a mãe dele antes de ir deitar.
Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu todo seu corpo quente e confuso, de súbito. Qual era a resposta certa para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. […] Fora Wells que o empurrara para dentro da valeta na véspera […] Agir assim era uma coisa má; todos os camaradas tinham dito. E como a água estava fria e escorregadia! […]
O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro […]. Tentava ainda pensar qual seria a resposta certa. Era direito beijar sua mãe, ou não era direito beijar sua mãe? Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! porque as pessoas faziam isso assim com seus rostos.
(JOYCE, 1916/1998, p. 17-18.)



O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação

O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação1

Lilany Pacheco
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

lilanypacheco@gmail.com

 

Resumo: O presente texto aborda o objeto voz e seu estatuto para a psicanálise para pensar as contribuições que ela pode oferecer sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos.

Palavras-chave: objeto voz; racismo; psicanálise.

THE MUTE MICROPHONE AND THE SANDAL-WEARING PSYCHOANALYST: INTERVENTION IN THE PSYCHOANALYSIS AND SEGREGATION RESEARCH GROUP

Abstract: This text addresses the object voice and its status for psychoanalysis in order to consider the contributions it can offer about interpreting cases involving racist discourses and their consequences for black individuals. Additionally, it reflects on how psychoanalysts can further its contributions against racism and its discourses.

Keywords: object voice; racism; psychoanalysis.

Agradeço o convite para estar aqui, hoje, nesta atividade do Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, neste momento de concluir os trabalhos sobre o tema “Racismo e sistema de justiça: como a Psicanálise contribui nesse debate? e, quem sabe, abrir perspectivas para investigações futuras.

Na atividade de abertura das atividades do Ateliê em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito – que girou em torno da seguinte pergunta: “Ser vítima ou réu, na sua relação com o sistema de justiça, faz diferença na forma de tratamento destinada a esses sujeitos?” –, dois aspectos me chamaram a atenção, além daquele já destacado durante o semestre: a fala de Jésus Santiago, de que é preciso furar o discurso do mestre, e duas pontuações do convidado Felipe Mata Machado, procurador do Distrito Federal, uma sobre o não dito e, outra, quando ele se refere às vestes dos juízes, indicando que, em um julgamento, os juízes não podem estar de chinelo. Me recordo de ter pensado: então eles não acreditam no semblante? Em conversas posteriores, Jésus Santiago lembrou que, no escrito sobre a criminologia, Lacan ressalta exatamente o contrário: os profissionais do Direito são ciosos do semblante, levam a sério demais o parecer ser. E eu pensei: o analista pode estar de chinelo!

Outra fala que se transformou para mim em um dizer foi quando alguém mencionou que os policiais agora têm microfone em seus uniformes, acionados enquanto fazem as suas abordagens. Alessandro Pereira dos Santos ponderou que isso não resolve, pois o microfone do preto, ao sofrer as abordagens desiguais, é mudo.

 Ainda sobre o microfone, eu gostaria de trazer uma vinheta, um pequeno trecho de um podcast com Lázaro Ramos ao qual assisti faz tempo e que me veio à lembrança quando Alessandro mencionou o microfone. Lázaro enfatiza que não é por escolha que ele trabalha constantemente para furar o discurso racista:

O racista não quer ver que é racista. Então é preciso gritar, como em Ó pai ó, fazer um filme histórico etc. O racismo é tão complexo que não vai ser uma linguagem só que vai resolver, a variação contempla mais ouvidos. […] Não adoecer. É para sobreviver, senão o racismo vai matar a gente. Diante do discurso racista o sujeito é forçado a se definir por apenas um adjetivo. Ninguém é obrigado a se definir por um único adjetivo. […] Ter o microfone na mão é útil.[2]

Além desse podcast, me ocorreu ainda a excelente entrevista de Viola Davis e Pedro Bial, quando ela esteve no Brasil para lançamento d#_edn1e seu livro autobiográfico que, diga-se de passagem, foi premiado como melhor audiobook. Ao responder a Bial sobre a experiência de fazer o filme A Mulher Rei, ela relata que, ao pisar nas terras africanas onde as filmagens foram feitas, aquele lugar, com aquelas características, fez com que retornasse para ela a voz de uma tia-avó e, para fazer a personagem, ela se apropriou daquela voz, e saiu daí a potência de seu personagem.

É na direção da voz e seu estatuto para a psicanálise que eu tenho pensado sobre quais contribuições a psicanálise pode nos oferecer, ou nos ensinar, sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos, como destacou Sérgio de Mattos em sua intervenção.

Então, o microfone, as múltiplas linguagens, as múltiplas vozes nos lembrando que as pulsões são, no corpo, o eco de um dizer. E, para que isso ressoe, para que isso consoe, é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é, afirmará Lacan (1975-76/2007, p. 19) ao abordar o uso lógico do sinthoma, em seu Seminário 23, e ele o é “Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não se pode tapar, se cerrar, se fechar”. É por esse viés que, no corpo, responde ao que Lacan chamou de voz. Lacan lembra ainda que é embaraçoso, que não há apenas o ouvido, e que o olhar lhe faz uma eminente concorrência. E eu, de minha parte, hoje, quero colocar a voz no páreo.

Ao seguir a pista de Joyce, Lacan pensa que é preciso resolver alguma coisa em relação ao que Jacques Aubert (1976/2007) isola ao comentar Joyce: a função da fonação e como esta se relaciona ao significante. Esse tema perpassa todo o Seminário 23. Para Lacan, o que permanece em suspenso é saber a partir de que momento a significância, ao ser escrita, distingue-se dos simples efeitos de fonação, uma vez que é a fonação que transmite a função própria do nome, do nome próprio. Isso é exemplar nos testemunhos de passe quando neles verificamos, o modo como um sujeito abandona seu nome de gozo e pode pronunciar-se a partir do nome construído como efeito de uma análise. Todos lembramos muito bem do passe de uma colega que o pai a chamava de “mundana”, e ela mostra que a sua análise a fez “cidadã do mundo”.

Mudemos de lugar, sugere Lacan, e isso supõe ou implica que escolhamos falar a língua que efetivamente falamos. Imaginamos que escolhemos, ele ironiza, e o que resolve, no final das contas, é que criamos essa língua. Isso não está reservado às frases que a língua cria. Criamos uma língua à medida em que a todo instante damos sentido, uma “mãozinha”, e sem isso a língua não seria viva: “Ela é viva porque a criamos a cada instante. É por isso que não há inconsciente coletivo. Há apenas inconscientes particulares, na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala” (LACAN, 1975-76/2007, p. 129).

“Cada ato de fala, golpe de força de um inconsciente particular, não é coletivização do inconsciente?”, é a pergunta de Lacan (1975-76/2007, p. 132) nesse ponto do Seminário 23 citado acima. Penso que essa pergunta é fundamental quando nos interessa o modo pelo qual a psicanálise pode pensar e operar no tocante a questões que dizem respeito à coletividade.

Se cada ato de fala é um golpe de força de um inconsciente particular, está completamente claro que cada ato de fala pode esperar ser um dizer. E o dizer chega a isso sobre o qual há teoria, a teoria que é o suporte de toda espécie de revolução, a saber, uma teoria da contradição. Podemos dizer muitas coisas diferentes, cada uma sendo, na ocasião, contraditória. E não é porque há desarrumação contraditória que nada tenha saído daí como constituinte de uma realidade. Ou, como escreveu Jacques Aubert (1976/2007, p. 167) na apresentação do Seminário de Lacan, “uma dimensão da fala, e os tipos de instauração de lugares onde isso fala”.

Caminhei até aqui com Lacan para encontrar o texto de Mônica Campos Silva (2024), escrito para comentar o trabalho primoroso de Alessandro, e também publicado neste número de Almanaque. Considerei que o texto de Mônica ordenou muito bem as atividades do semestre, todas primorosas, como todos nós que acompanhamos as atividades desse semestre pudemos testemunhar. Lembrando ainda da apresentação de Fídias Siqueira e do comentário de Sérgio de Mattos.

Eu já pensava em usar o texto de Marie-Hélène Brousse (2004) sobre a devastação, intitulado “Uma dificuldade na análise das mulheres”, para expor como tenho pensado e tentado articular as contribuições da psicanálise no enfrentamento do discurso racista e de outros discursos segregacionistas que reinam em nossa cultura.

Me chamou atenção que começássemos a beirar a questão da devastação e do feminino, para além da questão das mulheres e do feminismo, que também é discurso, para tratar a segregação, uma vez que a segregação é, primeiramente, segregação do inconsciente e mortificação do sujeito, como escreveu Mônica. Interessa-nos, portanto, pensar a fala e a linguagem que antecedem os discursos lá onde reina o vivo da vida!

Me chama atenção no texto de Brousse a afirmação de que a devastação se articula à maneira singular pela qual a linguagem emergiu para um sujeito, nos confins da inscrição simbólica. E ela acrescenta: as linguagens têm algo em comum, às vezes elas guardam a lembrança de uma primeira linguagem, diferente daquela que o falasser acaba falando, e há aí uma radicalidade, considerando que todo sujeito falou uma primeira linguagem, mesmo que seja no mesmo idioma que todos falam. Essa emergência pode se dar sob a forma de um insulto, no qual o sujeito é convocado a portar um nome cujo conteúdo de propriedade se resume apenas ao ato de proferir. E ela diz mais: ele é apenas o que se nomeia “fulano”, e só o é quando é nomeado, conduzindo o sujeito ao ser de objeto que ele foi para o Outro – negação da falta a ser e intimação a ser um objeto rebotalho.

Nessa linha, Mônica aproxima os efeitos do racismo em um sujeito pelo que Miller diz da devastação como uma pilhagem, um saque, um roubo, que se estende a tudo, sem limites, conduzindo a uma fixidez dada. A invasão de gozo decorrente da abertura do sujeito ao Outro que o devasta tem como efeito a sua queda como um “corpo desfalicizado”. Tomemos como exemplo o que verificamos nas mulheres que são difamadas. No que concerne à devastação causada pelos discursos racistas, basta lembrarmos dos corpos negros estendidos no chão ou de tantas outras formas nas quais o negro resta apenas como um corpo e sua cor, sem que o sujeito e sua diferença possam ser incluídos na linguagem. Como disse Lázaro Ramos, ninguém é ou quer ser definido por um único adjetivo.

Sigo um pouco mais com Mônica (2024, s/p), por sua vez seguindo Miller em “A salvação pelos dejetos”:

Quando o Outro designa o corpo social, se posso dizer, seu gozo, o gozo desse Outro, mantém-se como uma abstração. Um abstrato, uma ficção que se apoia no número, na massa. […] Entretanto, pode ser que o gozo do Outro social ganhe corpo, que o gozo consiga ser identificado no lugar do Outro, que ele não se evapore, que não se torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa. É quando, pode-se dizer, ou subentender, ou ser persuadido de que “o Outro goza de mim”.

Ainda com Mônica (2024, s/p): “É preciso lembrar que o racismo tende a reabsorver a tensão entre o Um e o Outro, com desprezo pela diferença”. Nesse ponto, importa indicar que, quando não há Outro, há o Um que itera e não cessa de escrever o insulto para o negro, ponto sobre o qual o discurso analítico precisa operar e restituir o furo entre o Um e Outro para que, a partir do furo, o negro possa rasurar o nome que o devasta, esvaziar-se do gozo do Outro que o invade e escrever o seu nome próprio.

Como conduzir o que, embora atravesse a lógica civilizatória, se encontra fora da letra?, pergunta Mônica. Ou, como escreveu Laurent (2023, p. 70) em sua apresentação do Seminário A lógica da fantasia, como o saber psicanalítico pode passar ao real? Em A terceira, Lacan (1974/2023, p. 24) esclarece: “O real não é o mundo e não há nenhuma esperança de alcançar o real por meio da representação. […] o real não é universal […]”, e, portanto, para tratá-lo não é possível adotar o “para todos”, como a ciência o faz.

Laurent (2022), em “A interpretação: da escuta ao escrito”, esclarece que, se o significante é causa de gozo, devemos nos perguntar como esse gozo pode escapar ao autoerotismo do corpo e ainda responder à jaculação interpretativa. Laurent lembra da pergunta de Lacan sobre se a psicanálise não é um autismo a dois, ponto que nos interessa bastante no contexto das investigações deste Ateliê, uma vez que precisamos nos entregar a uma tarefa de forçar o autismo, e poderemos fazê-lo pela via de lalíngua, aquela que o sujeito falou antes de falar qualquer idioma, como Brousse abordou. Laurent acrescenta: lalíngua é uma tarefa comum – e podem se valer dela aqueles que descem do salto e usam chinelos, eu diria. O gozo é autoerótico, mas a língua não é um assunto privado. Ela é comum e pode ser usada quando o analista pode fazer outra coisa que não o sentido. Lacan (1972-73/1985) explora, a partir do Seminário 20, os recursos que, em um forçamento poético, podem permitir ao analista fazer ressoar outra coisa que não o sentido, fora das regras da linguagem, algo que evoque o gozo da coisa comum. Isso implica o analista, seu corpo, e um batimento que engendre com sua presença real a substância significante em sua materialidade e as eventualidades a partir das quais o “ser” ganha “existência”, sendo relançado na cadeia significante com um outro nome, um novo significante com poder de voz – uma fonação, um microfone.

 

Fídias e Alessandro e todos que acompanharam as discussões talvez possam situar nos “casos” que apresentaram se, em algum momento, verificaram em suas intervenções algo que operou nessa direção, aproximando-nos dos dizeres de Freud, cada vez mais próximo do último ensino de Lacan, de que somente a palavra pode curar o que ela própria causou.


 

Referências
AUBERT, J. Apresentação no Seminário de Jacques Lacan. In: LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 166-185. (Trabalho original proferido em 1976).
BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise das mulheres: a devastação da relação com a mãe. Latusa: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio), n. 9, p. 203-218, 2004.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LAURENT, É. A interpretação: da escuta ao escritoCorreio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, 2022.
LAURENT, É. Acontecimentos políticos de corpo. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 90, 2023.
SILVA, M. C. Será que o racismo mata? Almanaque On-line, n. 32, 2024.

[1] Texto apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Racismo do IPSM-MG em 25/10/2023, como comentário à apresentação de Mônica Campos nesta mesma data.
[2] Cf.: https://youtu.be/2GYVuoILBo4?si=Las6pr06vJXCV2sD



EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 32

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Almanaque On-line – Março/2024 – Nº 32

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EDITORIAL

Patrícia Ribeiro

Esta edição da Almanaque On-line traz um desdobramento do número anterior, quando o foco da pesquisa do IPSM-MG, em consonância com os temas do XIV Congresso da AMP e da 26ª Jornada da EBP-MG, foi o de explorar o aforismo lacaniano “todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Tal loucura se define pela crença em um Outro que, ainda que não exista, protege o ser falante daquilo que é insuportável no real. (Leia mais)

TRILHAMENTOS

UMA EXPERIÊNCIA DE SORTE – SÉRGIO DE MATTOS

Estou honrado pelo convite de ser o responsável por esta atividade que é a aula inaugural do instituto IPSM-MG. Agradeço em especial à Lilany e à Diretoria pelo convite. Essa atividade inaugura o começo dos nossos trabalhos do segundo semestre deste ano. Inaugurar e começar são praticamente sinônimos. Entretanto, a palavra “começar” nos remete a uma continuidade, por isso falamos de começar a analisar-se, e não em inaugurar uma análise. Inauguro, assim, o começo das atividades do Instituto com o assunto que ocupará nossa atenção no X ENAPOL, cujo título é “Começar a analisar-se”.  Esse título foi escolhido com cuidado pela sua importância clínica… (Leia mais)


 

A CLÍNICA NA ERA DO REAL – ESTHELA SOLANO-SUAREZ

A clínica psicanalítica não é uma clínica do comportamento, nem de seus transtornos. Ela não se confunde com uma visada educativa que se declina segundo os critérios em conformidade com uma “norma”. Ela não se limita a um puro formalismo prático, que quer explicar aquilo que se faz ou que não se faz (LACAN, 1955/1998, p. 326). A clínica psicanalítica não se encontra em nenhum outro lugar a não ser “no que se diz em uma análise” (LACAN, 1977, p. 7, tradução nossa). Não é, portanto, uma clínica do fazer, mas uma clínica na qual o dito se renova não por uma realidade factual, mas por sua relação com o dizer. (Leia mais)


 

O ATO DE LEITURA EM PSICANÁLISE – RAM MANDIL

O que pode ser o ato analítico na época dos protocolos e das diretrizes terapêuticas, em que a ação ideal consiste em reduzir, ao mínimo, toda possibilidade de imprevisto? Como observa Éric Laurent, trata-se de um ”ideal de ação calculada”, na medida em que um ato é concebido como assimilável ao raciocínio, como a conclusão lógica das suas premissas. Ele nos lembra que vivemos a era da gestão como modelo da ação, como cálculo de proveitos e codificação das escolhas, em nome do bem-estar individual ou coletivo. Nesse sentido, é importante colocar o ato analítico em perspectiva, numa época em que se busca tamponar os encontros, cada vez mais frequentes, com a inconsistência do Outro. Assim, podemos dizer que há uma foraclusão do ato em muitos domínios de nossa cultura que envolvem a tomada de decisões, quando se manifesta uma descontinuidade entre o ato e suas premissas. (Leia mais)

ENTREVISTA

ALMANAQUE ON-LINE 32 ENTREVISTA OSCAR VENTURA

Almanaque On-line: Em seu texto “Quando um sonho desperta Um corpo”,  há um ensinamento em que clareza e beleza se combinam em uma transmissão. Cito abaixo a frase em questão, e peço que nos fale como o analista pode chegar a esse ponto de “precisão” que você disse e que marca a fineza de uma clínica lacaniana.. (Leia mais)

ENCONTROS

CINCO TESES SOBRE AS NÚPCIAS DO DICO E DO NEURO – HERVÉ CASTANET

Uma tese invade hoje a episteme e pretende fazer a separação entre o que é clínico e o que não é. Orientados pela psicanálise, é necessário esfregar os olhos para perceber o que tem sido bombardeado: o cérebro é uma máquina – à maneira sofisticada de Turing – de processar informações. É o órgão no qual reside toda causalidade dita mental.

O mental aí se reduz ao neuronal, e o inconsciente, que nada tem a ver com aquele de Freud e de Lacan, pode ser aceito com a condição de que seja provido de córtex. Querer enlaçar traço sináptico e traço psíquico, ainda que se referindo ao primeiro Freud, participa desse mesmo empreendimento de naturalização: o inconsciente, sim, mas não sem o neocórtex. (Leia mais)


 

Adeline, uma garotinha reservada – Jacqueline Dhéret

A garotinha de sete anos e meio, que recebi durante dois anos e revi novamente quando esteve em Lyon, me contou suas preocupações. Ela “não sabe como fazer” com seu pai. Ela veio acompanhada pela mãe, que explica a situação insustentável que vem enfrentando há vários anos. O juiz de família encarregado do divórcio dos pais planeja encaminhar o caso ao juiz da infância, porque o pai de Adeline, que se afirma transexual,vive um relacionamento com um companheiro. O juiz esteve com os pais e está reticente em permitir que a criança frequente a casa do pai, que está disposto a continuar a ver sua filha. A criança circula entre pai e mãe e permanece calada. (Leia mais)

PRELÚDIOS

Neurose e psicose: um início de compreensão – Luciana Silviano Brandão

No pequeno texto “Neurose e psicose”, escrito e publicado por Freud em 1924, há, pela primeira vez, a ocorrência do termo “psicose” em um título. Vê-se também a separação entre duas entidades clínicas: neurose e psicose. Vale lembrar que as concepções tratadas aqui são fruto dos avanços do psicanalista em sua elaboração da segunda tópica e, especialmente, depois de “O eu e o isso”, publicado no ano anterior. (Leia mais)


 

Manuscrito H – Elisa Alvarenga

Começo com uma pergunta: a psicose é para Freud uma estrutura, no sentido lacaniano do termo? Abordada inicialmente no quadro das “Neuropsicoses de defesa”, a psicose é vista como uma maneira específica de defesa, e como tal distinta da neurose. Freud se interessa num primeiro momento pelas psicoses, no plural, pois ele distingue diversas maneiras de enfrentar realidades penosas, no sentido de representações inconciliáveis com o eu. O mecanismo do recalque já está então no centro do problema. (Leia mais)


 

Constituição e perda do campo da realidade – Kátia Mariás

Para Freud, a condição para que a realidade seja constituída é que algo seja subtraído ao sujeito, funcionando como índice de uma realidade externa. É esse vazio subjetivo que organiza e corrige o mundo interno.

O campo da realidade não é dado a priori, precisa ser construído, pois não depende da percepção do objeto, não diz respeito a nenhuma realidade exterior, mas refere-se ao objeto perdido. (Leia mais)


 

Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica – Lucia Mello

Comentar o ensaio clínico de 1915 intitulado “Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica” provoca surpresa desde seu título, acarreta indagações diversas sobre o tema da paranoia, conduz às conexões, releituras com outros textos e tanto amplia quanto demonstra o trabalho de Freud seguindo as implicações do sujeito como categoria operatória na trama dos elementos que constituem sua história. (Leia mais)

INCURSÕES

Diferentes usos da droga – Marcelo Quintão

O conceito de toxicomania é uma criação recente e sua importância, seu lugar e seu papel estão em constante evolução, na medida em que se modificam as configurações da subjetividade contemporânea, a cada tempo. Trabalhamos aqui o caso de um paciente atendido na rede pública de BH à luz do trabalho de Fabián Naparstek (2015, 2018) no qual ele nos apresenta, numa articulação com outros conceitos, um percurso histórico e teórico a respeito da presença das drogas em nossa civilização. (Leia mais)


 

O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo – Ana Sanders

Em 1936, o filósofo judeu alemão Walter Benjamin (1936/1987), ao localizar o silêncio sintomático dos combatentes que retornaram do campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, elabora sua célebre formulação, em seu ensaio “Experiência e Pobreza”, afirmando que a arte de narrar histórias e de compartilhar experiências estaria em declínio. Diante do excesso vivenciado nas trincheiras, os combatentes voltavam mudos e empobrecidos na capacidade de transmitir, através da fala, algo dessa experiência. Tal experiência já havia sido apontada por Freud ao escrever sobre as neuroses de guerra, em 1918, as quais, diferentemente da lógica da neurose de transferência, corresponderiam a uma neurose traumática. Assim, o excesso de uma vivência pulsional não seria sem consequências para os processos psíquicos, apontando, dessa forma, o fundamento dessa neurose na fixação no acontecimento traumático. (Leia mais)


 

Elucidações sobre acontecimento de corpo e o sonho do “Historiador do Detalhe”, de Carolina Koretzky – Paula Pimenta

O caso do “historiador do detalhe”, apresentado por Carolina Koretzky, é precioso para revelar a função do sonho na psicose, ao que se acrescenta o modo como irrompe o chamado “acontecimento de corpo”. Em seu texto “O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo”, Ana Sanders especifica sobre a montagem do sonho, para Freud e para Lacan, e descreve o sonho do pequeno Matéo, de oito anos, que lhe serve para “seguir dormindo, com os olhos bem abertos”. (Leia mais)


 

Será que o racismo mata? – Mônica Campos

Queria começar com o título proposto: será que o racismo mata? Sim, mata! Vemos todos os dias. Mas sugiro aqui dizer que, subjetivamente, há a mortificação do sujeito por práticas racistas.

Não ser racista é algo importante, para que não se reproduza indefinidamente a domesticação da qual se provém. Osvald de Andrade (2009, p. 282), ao falar sobre o preconceito, dispara: “os otários se reeducam”. Neste sentido, nos valemos ainda de Neusa Santos Souza (2021), que indica que, no discurso analítico, cada negro em particular vai elaborar suas questões “que lhe dê feições próprias” (Souza, 2021). Me parece que é fundamental essa colocação de Neusa, de cada um… isso não retira os efeitos mortíferos, nefastos do racismo, mas, de saída, não elimina o que há de singular e a possível mudança de posição. (Leia mais)


 

O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação – Lilany Pacheco

Agradeço o convite para estar aqui, hoje, nesta atividade do Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, neste momento de concluir os trabalhos sobre o tema Racismo e sistema de justiça: como a Psicanálise contribui nesse debate? e, quem sabe, abrir perspectivas para investigações futuras.

Na atividade de abertura das atividades do Ateliê em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito – que girou em torno da seguinte pergunta: “Ser vítima ou réu, na sua relação com o sistema de justiça, faz diferença na forma de tratamento destinada a esses sujeitos?” –, dois aspectos me chamaram a atenção, além daquele já destacado durante o semestre: a fala de Jésus Santiago, de que é preciso furar o discurso do mestre, e duas pontuações do convidado Felipe Mata Machado, procurador do Distrito Federal, uma sobre o não dito e, outra, quando ele se refere às vestes dos juízes, indicando que, em um julgamento, os juízes não podem estar de chinelo. Me recordo de ter pensado: então eles não acreditam no semblante? Em conversas posteriores, Jésus Santiago lembrou que, no escrito sobre a criminologia, Lacan ressalta exatamente o contrário: os profissionais do Direito são ciosos do semblante, levam à sério demais o parecer ser. E eu pensei: o analista pode estar de chinelo! (Leia mais)


 

Eutanásia: entre demanda e desejo – Araceli Teixidó

Este texto realiza-se a partir de minhas próprias elaborações, mas não seria possível sem as elaborações de outros que pesquisaram comigo, especialmente psicanalistas da ELP e da AMP, mas também médicos e outros profissionais da área da saúde que caminham  conosco neste terreno incerto que é a fronteira entre a psicanálise e a medicina.

A ciência alcançou avanços que levam a vida mais além do que seria desejável. Para vidas que podem não ser desejáveis. Isso abre para a decisão de ter que frear a deriva, parar o processo terapêutico, para não chegar a esses extremos em que prolongar a vida não faz sentido. Isto tem sido trabalhado pelo Estado espanhol há anos e algumas fórmulas foram alcançadas para limitar a violência terapêutica. Essas vias eram legais, porque a morte era causada pela doença, mesmo quando ocorria por recusa do paciente em receber a medicação eficaz. Tanto a eutanásia, quanto o suicídio assistido, eram puníveis. Os casos que foram regulamentados com a nova lei são aqueles em que é solicitada a intervenção de um profissional para poder morrer, sem que o paciente se encontre em estado agonizante ou terminal. (Leia mais)

DE UMA NOVA GERAÇÃO

O lugar do analista na interpretação – Ana Menezes

Na atualidade, somos confrontados de forma massiva com terapias que se alinham a noções como as de um “eu consciente de si”, de “controle de emoções” e de outros ideais que se centram na pretensão da reeducação de comportamentos. Esses imperativos, aliados ao discurso capitalista, lançam sobre a relação “terapeuta-cliente”, como é nomeada, lógicas que se remetem à intersubjetividade e à dialogicidade, sustentadas pela crença em uma comunicação inequívoca: ao ensinar, se aprende; ao escutar, se entende. (Leia mais)


 

Corpos (des) amarrados – Sílvia Coutinho

Circulando em um shopping center, notei a instalação de uma clínica de estética. Na entrada, observo a seguinte pergunta: “o que te incomoda hoje?” – uma interrogação que convida as pessoas a se depararem com seus incômodos no corpo e se dirigirem a esse local que faz a oferta das supostas soluções. Dessa forma, esse estabelecimento, estruturado para a venda de bens materiais ou serviços como cinema, atrações de lazer, agência de viagem e loja de câmbio, amplia a oferta em relação ao corpo, para além das vestimentas. As academias já são vistas, há muitos anos, como local de prática de exercícios e espaço de saúde. Agora, as portas são abertas para essas clínicas de estética, que instigam o olhar do sujeito para sua imagem, sua adequação em relação ao império da beleza e ofertam seus serviços enquanto as pessoas circulam nesse ambiente, já que, na lógica do mercado de consumo, não há espaço para pensar, refletir, fazer escolhas, prescindir. (Leia mais)




Editorial – ALMANAQUE Nº32

Editorial

Patrícia Ribeiro

 

 

 

Queremos analistas que sejam analisantes, analisantes perpétuos a arrancar incessantemente farrapos de saber do sujeito suposto saber que não existe, farrapos tanto mais preciosos quanto mais raros e singulares.  Pois a via analítica não é a de um grande número, nem a da estatística, mas a do singular e do paradigma, do singular elevado a paradigma.
(Jacques-Alain Miller, em Discurso de encerramento da Jornada da École de la Cause freudienne, em 2008)

 Esta edição da Almanaque On-line traz um desdobramento do número anterior, quando o foco da pesquisa do IPSM-MG, em consonância com os temas do XIV Congresso da AMP e da 26ª Jornada da EBP-MG, foi o de explorar o aforismo lacaniano “todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Tal loucura se define pela crença em um Outro que, ainda que não exista, protege o ser falante daquilo que é insuportável no real.

No presente número, tomamos como norte investigar o que seria uma clínica orientada não pelo delírio, mas pelo real, definido por Lacan como sem lei e sem sentido.  Um breve recorte do artigo que aqui publicamos na rubrica Trilhamentos, de Esthela Solano-Suárez, permite esclarecer o que a distingue de outras formas de tratamento pela palavra. Podemos dizer que a experiência analítica que inclui o real se orienta pelo que acontece “na disjunção entre o dito e o dizer. […] Esta disjunção convoca a distância entre o que é da ordem do meio-dizer da verdade e do real do gozo que ex-siste ao dito”. E Esthela Solano-Suarez prossegue: “o real em jogo na psicanálise não é o real da ciência.  […] Ele é suscetível de ser isolado como o fora-de-sentido do gozo do sintoma uma vez que este foi despido de seu aparelho de ficções fantasmáticas, a título de verdade mentirosa”. Em uma outra perspectiva sobre o real em jogo em uma análise, encontramos nessa mesma rubrica o texto da Aula Inaugural do IPSM-MG proferida por Sérgio de Mattos, que tomou como referência o tema do XI ENAPOL: “Começar a analisar-se”. Seu texto permite localizar a presença dessa orientação para o real ao afirmar, que desde o início, o analista deve estar atento “ao que levou o sujeito a procurar uma análise, cernir esse ponto de sofrimento, de embaraço, o que não anda bem”, destacando a importância de discriminar os “elementos que naquela circunstância específica evocaram traumas, repetições e algo insuportável que desencadeou o desejo de tratar”. Ram Mandil, em O ato de leitura em psicanálise, indaga sobre a possibilidade do ato analítico hoje, época “dos protocolos e das diretrizes terapêuticas, em que a ação ideal consiste em reduzir, ao mínimo, toda possibilidade de imprevisto”. Sua pesquisa o conduziu a identificar no caso Dora, texto freudiano seminal sobre a histeria, como a leitura feita por Freud acerca dos sintomas dessa paciente permitiu ao autor entrever a dupla dimensão do sintoma – “a que é apreendida pelo sentido e a que permanece opaca a toda significação”. Ram Mandil  evoca ainda passagens do ensino de Lacan sobre o ato de leitura no discurso psicanalítico amparadas na obra de Joyce, nas quais se pode desvelar a “presença do vazio da significação” no que concerne à polifonia dos sentidos dos sintomas. Do mesmo modo, em um diálogo presente em O retrato do artista quando jovem entre Stephen Dedalus e seus colegas, Mandil ressalta que dele se pode elucidar o que seria o ato de ler um sintoma sob a perspectiva do “encontro material entre um significante e o corpo, o próprio choque da linguagem sobre o corpo”.

Em Encontros, Hervé Castanet nos adverte sobre a onipresença em nossa época de uma episteme própria às neurociências, a qual nomeou tese neuro. Segundo esclarece, ela promove uma redução absoluta do mental ao neuronal visando apagar a possibilidade de existência do saber inconsciente, postulado princeps freudiano. Castanet constata ainda que essa tese se desdobra em uma outra, que a confirma – a tese dico –, isolada por J.A-Miller, que afirma: “Eu sou o que eu digo”. Este novo – e falso – cogito centrado unicamente no eu e abolindo a enunciação não é incompatível, sublinha Castanet, com “Eu sou isso que os traços escrevem em meu cérebro.” Em total oposição, o cogito lacaniano, que o autor aqui desenvolve – “Penso, logo go(z)sou” –, reafirma a existência de um real irrevogável, ou seja, “um saber impossível de ser reintegrado pelo sujeito”, que em nada se assemelha ao real biológico. Ainda nessa rubrica, contamos com um inestimável caso clínico apresentado por Jacqueline Dhéret, que coloca questões que atravessam a nossa época. Dhéret discorre sobre a análise “silenciosa” de uma menina de sete anos que não sabe como fazer com seu pai transexual. Ao longo das sessões, ela constrói soluções que a ajudam a suportar um real até então insuportável, que fez vacilar os semblantes nos quais se apoiava.

Oscar Ventura, nosso entrevistado, a quem agradecemos pela generosidade em contribuir com esta edição, sublinha a importância dos sonhos na prática clínica no que concerne à “possibilidade que oferecem para produzir una retificação na economia de gozo”. Ele evoca o célebre sonho da Injeção de Irma para demarcar sua ligação a um real que se encarna para Freud no mistério do corpo, “em um furo que aspira toda a pretensão de sentido que se lhe queira outorgar”. Ventura nos ajuda ainda a esclarecer a diferença entre o ato de escutar e ler em psicanálise, o primeiro estando mais próximo do campo do sentido, enquanto a leitura apontaria para o encontro com a materialidade da letra, isto é, para uma cifra de gozo não capturada na rede das representações.

Na rubrica Prelúdios, publicamos alguns dos textos apresentados no último semestre das Lições Introdutórias à Psicanálise. A referência desta vez foram os textos basilares de Freud sobre as psicoses. Assim, em Neurose e psicose, Luciana Silviano Brandão discorre sobre a distinção traçada por Freud entre essas estruturas para, em seguida, abordar o mecanismo próprio a cada uma delas frente ao conflito entre as instâncias psíquicas por ele postuladas: o Eu, o Isso e o Supereu. A autora sublinha a importante questão que Freud aí se coloca: qual seria o dispositivo análogo ao do recalcamento, pelo qual o Eu se desliga do mundo exterior, na psicose? Diante dessa pergunta, ela elucida o conceito freudiano de Verwerfgung, bem como o de forclusão, nova designação que lhe é dada por Lacan vinculada à metáfora paterna. Elisa Alvarenga nos apresenta a sua leitura do Manuscrito H, texto freudiano do final do século XIX, percorrendo esse momento da elaboração freudiana da concepção do aparelho psíquico. Nesse texto, como a autora sublinha, Freud resgata a importância da sexualidade nas neuroses e nas psicoses, assim como lança algumas das bases da primeira tópica freudiana (ics-pcs-cs) e da teoria da libido. A perda da realidade na neurose e na psicose é o texto abordado por Kátia Mariás, no qual Freud expõe suas elaborações sobre o modo de constituição do campo da realidade e o modo como se dá a sua perda, relacionando-as  ainda às contribuições de Lacan sobre a perda do objeto a nas neuroses e a ausência dessa subtração nas psicoses. Finalmente, Lucia Mello comenta o texto Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica, ressaltando as modificações conceituais decorrentes dessa leitura freudiana que, de acordo com a autora, abrange a clínica do sujeito, a fantasia fundamental, a pulsão e a fixação. A autora destaca como, nesse relato clínico, Freud extrai consequências da contradição que pode advir entre a teoria, decorrente de sua  pesquisa, e o  ato de dar a palavra ao paciente.

Iniciamos a rubrica  Incursões com o texto de Marcelo Quintão, no qual ele apresenta algumas das contribuições de Fabián Naparstek referentes à clínica das toxicomanias, partindo de um percurso histórico sobre a presença das drogas na civilização para, finalmente, destacar, valendo-se de uma vinheta clínica, que a relação de um  falasser com o objeto droga é sempre singular, assim como pode ser diferente também em determinados momentos de sua própria história. Mônica Campos, em Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo, parte de um caso clínico apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação e de imediato responde positivamente à pergunta formulada em seu título. Sua leitura do caso adverte também para as práticas racistas que promovem uma mortificação subjetiva para concluir destacando a importância de uma posição radical do psicanalista em apostar nas soluções singulares de cada sujeito que apontem para a vida, fazendo assim um contraponto aos discursos segregativos. Lilany Pacheco, por sua vez, apresenta uma instigante leitura da pesquisa realizada no semestre pelo Ateliê, focalizando especialmente a contribuição de Mônica Campos, sob a baliza da interrogação “quais as contribuições que a psicanálise pode oferecer ou ensinar sobre a leitura de  casos que implicam em discursos racistas e suas consequências para o preto”. A autora propõe também pensar como o psicanalista pode avançar nas suas reflexões contra o racismo e as demais formas de segregação. Araceli Teixidó traz à discussão o tema da eutanásia a partir das mudanças efetivadas na Espanha, país onde vive, a partir da lei de regulamentação dessa prática. Araceli focaliza especialmente a relevância e a delicadeza envolvidas no ato do profissional de saúde ao responder a essa demanda, salientando que ele  não pode se ater a um mero cumprimento de um protocolo. Em O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo, Ana Sanders faz uma interessante leitura do caso de uma criança atendida por Carolina Koretsky e publicado no livro La Conversación Clínica. Matéo, é um menino que não conta com  o recurso  do sintoma e da fantasia como defesa ao real ligado à sua existência e a um desejo de morte que o assolava. É a partir de um sonho relatado em análise, no qual irrompe um acontecimento de corpo, que “esse sujeito pode deslocar o desejo de morte materno” permitindo-lhe “uma possível solução para a cessão do gozo mortífero” pela via do delírio. Por sua vez, Paula Pimenta tece um valioso comentário sobre o texto de Ana Sanders, realçando a função do sonho na psicose, nos brindando também com sua leitura esclarecedora sobre o sintagma lacaniano, acontecimento de corpo.

Por fim, na rubrica De uma nova geração, Silvia Coutinho Lima interroga, a partir do atual cenário marcado pelos excessos em relação aos corpos – intervenções estéticas, medicamentosas, cirurgias plásticas etc. –, sobre o que impele os sujeitos para essas escolhas, e  embora saiba que a amarração de cada corpo é tecida de forma radicalmente singular para cada falasser, a autora pergunta se esse investimento exacerbado no corpo poderia apontar para um modo de defesa. Ana Paula Menezes de Souza, em seu texto,  discute a interpretação para, a partir desse conceito fundamental da psicanálise, explorar as suas ressonâncias no ensino de Lacan entre o inconsciente estruturado como uma linguagem e o inconsciente real, “quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido”. Dessa forma, a autora busca situar o lugar do analista em um tempo em que “a lógica hegemônica de uma psicoeducação prescritiva” se faz cada vez mais atuante.

Chegando ao final deste número – que também marca a conclusão do  trabalho desta Diretoria –, nós, da equipe editorial da revista Almanaque On-line, desejamos a todos uma boa leitura e que os textos aqui reunidos possam conduzir às múltiplas ressonâncias advindas de uma clínica psicanalítica que inclui o real, que considera as inscrições contingentes nos corpos, habitados que são por uma estranha alteridade que excede as elucubrações de sentido.

Uma última palavra, ainda: gostaríamos de agradecer imensamente ao artista Sérgio Machado pela generosidade com que nos cedeu as belas imagens que ilustram este número.

E, claro, queremos fazer também um especial agradecimento a todas as colegas da diretoria do IPSM-MG pelo apoio sempre presente, aos colegas da equipe editorial responsáveis por colocar “no ar” mais esta edição da Almanaque On-line, assim como a todos que deram a sua preciosa contribuição como participantes da produção da revista desde 2020. Nosso muito obrigado!

 

Sérgio Machado, nascido em Belo Horizonte, estudou na Escola Guignard entre 1981 e 1985, onde conviveu com grandes desenhistas e escultores. Sua formação foi com o desenho, mas ele sempre se interessou pelo objeto, sua construção, seu volume. Assim, o artista desenvolveu uma forma de interação entre desenho e objeto, escolhendo a madeira reaproveitada como matéria-prima principal. Suas cadeiras, pequenas esculturas em madeira e os tubarões de tamanhos variados são marcas desse trabalho. Sérgio já realizou várias exposições ao longo de sua carreira e participou de feiras nacionais e internacionais. Atualmente, o artista desenvolve um trabalho com pedras. São pinturas, desenhos e esculturas que surgem a partir do estudo e da observação do mineral e de suas formas, volume, texturas, impressões e histórias. Essa temática, como Sérgio observa, está muito ligada ao período geológico mais recente, o antropoceno, caracterizado pelo impacto da presença do homem na terra.

https://www.instagram.com/sergiomachadoarte/