Inconsciente E Família

SÉRGIO LAIA

 

 

A família se configura como um tema de fundamental interesse para a sociedade contemporânea e, consequentemente, para a clínica psicanalítica. Em que sentido as profundas transformações que essa instituição tem sofrido, acarretam consequências na transmissão de uma constituição subjetiva?

A referência à “transmissão… de uma constituição subjetiva”, como sabemos, pode ser encontrada no segundo parágrafo da célebre “Nota sobre a criança”, escrita por Jacques Lacan[1]. Esse parágrafo, por sua vez, se conclui dizendo que tal transmissão implica “a relação com um desejo que não seja anônimo”[2]. Já nessa conclusão desse segundo parágrafo, temos elementos para responder à questão sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Afinal, vivemos em um mundo onde os nomes proliferam, por exemplo, na designação de orientações ou mesmo identidades sexuais, de transtornos mentais, de modos de composição familiar, de marcas de produtos de consumo, etc. Entretanto, será que essa proliferação ou, retomando outra expressão que Lacan utilizou em “A subversão do sujeito e suas relações com o inconsciente freudiano”, esse “mar dos nomes próprios”[3], efetivamente deixa espaço para um desejo não-anônimo? Se tomarmos como referência para responder a essa questão um clássico da sociologia como Durkheim[4], diríamos que não, porque esse sociólogo articula o aparecimento da então sociedade industrial com o desvanecimento da “família patriarcal”, o surgimento da “família conjugal” e a intensificação da “anomia”, ou seja, do anonimato. Porém, o ensino de Lacan nos abre outra via. Para tematizá-la, me sirvo também do escrito lacaniano sobre a subversão do sujeito, produzido no início dessa década de 1960 que, sabemos, foi um marco das transformações familiares com o “amor livre”, o aumento dos “desquites” e dos “divórcios”, a “liberação feminina”, a disseminação do uso dos “anticoncepcionais”, etc. Segundo Lacan, um “ser aparece como que faltando no mar dos nomes próprios”[5] ou, em outras palavras, a proliferação dos nomes não apaga o que lhe falta: o inominável insiste, nesse “mar dos nomes próprios”, mas ele não deve ser confundido com o anônimo, pois se insurge entre os nomes próprios, “como que faltando”[6]. Mas que ser inominável é esse? A resposta de Lacan, nesse mesmo escrito de 1960, não é direta, mas articula tal ser a um lugar que ele chama de “Gozo… cuja falta tornaria vão o universo”[7]. Ora, não há dúvida de que as sociedades contemporâneas vivem sob a pressão de um gozo que sempre precisa dar mostras de sua existência e de sua efetividade, que não pode parar e cujo mínimo vacilo é vivido como um desmoronamento do universo ou, para retomar os termos de Lacan, um universo vão. Neste mundo do gozo a qualquer preço, a “transmissão de uma constituição subjetiva” não é necessariamente abolida, nem apagada. Ela me parece transmutada. Antes, ela tentava se valer de referenciais que evocavam uma unicidade: na transmissão de tipo patriarcal, tudo se remetia ao “nome de família”, à “referência paterna” (a “esposa de fulano”, o “filho de beltrano”…) ou, por oposição, também ao que esse nome e essa referência não conseguiam abarcar (a “adúltera”, a “prostituta”, o “bastardo”, o “desviado”…). No mundo contemporâneo, a constituição subjetiva se pluraliza: em vez de um referencial unitário, há muito mais uma “constelação” de referências, e evoco essa dimensão constelar me servindo de “Lituraterra”[8]. Porém, ao invés de simplesmente se entusiasmar ou ajudar a propagar essa proliferação de nomes, a psicanálise de orientação lacaniana nos leva muito mais a interessar pela falha que, nesse “mar dos nomes próprios”, não deixa de se reiterar, mesmo se o gozo que aí transborda nem sempre a faz ser escutada. A experiência analítica é uma espécie de amplificador dessa falha que, embora insistente no mundo contemporâneo, é cada vez mais inaudível em meio à proliferação dos nomes próprios. Através dessa experiência e do que ela amplifica, verificamos que a especificidade de cada constituição subjetiva, ou, para evocar um termo caro aos nossos dias, a “diferença”, virá muito mais dessa falha que da proliferação dos nomes próprios.

 

De que maneira as distintas funções que coexistem no grupo familiar e os laços sintomáticos que se efetuam são afetados por uma época do Outro que não existe?

Efetivamente, o que você chama de “distintas funções que coexistem no grupo familiar” são, para Lacan (e aqui retorno ao escrito “Nota sobre a criança”), apenas duas: a função do pai e a função da mãe. Sobretudo tendo em vista os debates atuais sobre as diferentes formas de se compor uma família, e que são diferentes especialmente frente ao chamado “modelo heteronormativo”, sublinho que, por estarem associados ao termo função, as palavras pai e mãe não correspondem respectivamente a homem e mulher anatomicamente falando. Como nossa época é também tomada pelo que se apresenta como performance, acho igualmente importante lembrar que, para Lacan, função não é sinônimo de “papel” ou “desempenho”: ele me parece extrair esse termo da matemática e, assim, função é o que, por exemplo, estabelece uma relação entre dois diferentes conjuntos, entre elementos heterogêneos. Assim, a função da mãe é tematizada por Lacan como aquela cujos “cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas”[9], ou seja, essa função relaciona, pelo viés dos cuidados, a criança (conjunto 1) e o que diz respeito à própria particularidade de quem dela cuida, ou seja, ao modo como a criança vem responder às “faltas” de quem ela recebe os cuidados, às formas como a mãe é parte interessada (conjunto 2) nos cuidados da criança. Nesse viés, os cuidados ditos maternos implicam interesses que extrapolam a maternidade. Por sua vez, a função do pai também relaciona elementos provenientes de distintos conjuntos, porque, segundo Lacan, “seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”[10] e, assim, temos, por um lado, numa espécie de conjunto B, os elementos, digamos, mais abstratos que são “nome”, “vetor”, “Lei” e, por outro lado, numa espécie de conjunto C, os elementos que eu chamaria de mais corporais e que são “encarnação” e “desejo”. Tanto na função da mãe, quanto na função do pai, reencontramos o que, na resposta à questão anterior, eu assinalei como o que falha na proliferação dos nomes próprios: se há um interesse particular da mãe ao cuidar da criança, cada mãe será muito diferente do que se idealiza ou padroniza como sendo “A Mãe” e estará em falta frente a todos os nomes próprios que procuram designar o que é ser mãe; por sua vez, um pai estará em falta com “O Pai” idealizado ou padronizado e com os nomes próprios que pretendem referenciar o que é ser pai, na medida em que a encarnação da Lei no desejo não comporta um padrão ou o que valeria para tudo e para todos. Nesse contexto, e retomando o final de sua questão, se nossa época está efetivamente marcada pela inexistência do Outro, isto é, desse lugar onde encontraríamos todos os significantes que procuram designar-nos, os nomes próprios proliferam como tentativas de serem referenciais. Assim, o Outro não existe, mas os mais diversos nomes próprios podem ser acessados, o que cada um deseja toma a dimensão de lei inexorável, as crianças se tornam objetos de cuidados como nunca antes se viu em nossa civilização. Entretanto, a experiência analítica ensina-nos que a imposição da lei do desejo não é efetivamente encarnar a lei no desejo, ou seja não é articular elementos distintos (lei e desejo); nesse mesmo viés, o afã contemporâneo de se tomar a criança como objeto inquestionável de cuidados muitas vezes desconsidera completamente as particularidades específicas de cada criança, assim como a diversidade sempre crescente dos nomes próprios não favorece necessariamente um saber sobre o que nos designa ou nomeia em nossas particularidades. Por conseguinte, neste mundo do Outro que não existe, os sintomas continuam proliferando, mesmo se já não se manifestam mais exatamente como chegavam, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, ao consultório de Freud.

 

Em cada época, cabe aos analistas interpretar e responder às conjunções de cada cultura, com uma posição ética e eficaz, considerando a psicanálise enquanto uma prática aplicada ao sofrimento humano. Nessa perspectiva, até que ponto a Orientação Lacaniana se configura como um vetor da prática psicanalítica em nossos dias?

Sem dúvida, a psicanálise de orientação lacaniana, ao poder amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias, tem muito a fazer neste mundo e é uma ferramenta de grande efetividade. Porém, essa orientação nos exige conceber a psicanálise muito mais do que, nesta terceira pergunta, é evocado como “prática aplicada ao sofrimento humano”. Certamente, ela incide e se aplica a tal sofrimento, mas sua força está muito mais em nos permitir a nos interessar pelo que está além do que um Nietzsche chamou de “humano demasiadamente humano”. Por isso, de acordo com o que Jacques-Alain Miller diversas vezes ressaltou, Lacan vai preferir em falar de “experiência analítica”: a noção de experiência pode comportar inclusive o que extrapola as concepções do que é humano, mas sem que isso implique qualquer desumanização – ela nos convoca a estarmos atentos às invenções, a como cada um se vira frente ao que não lhe é “humano, demasiadamente humano” e que ao mesmo tempo lhe habita e transtorna.

Quanto à parte da sua pergunta que procura averiguar se a orientação lacaniana pode ser “um vetor da prática psicanalítica” hoje, considero que, embora estejamos em muitos lugares e muito além de nossos consultórios particulares, não é ainda possível sustentar que tal orientação seja um vetor da prática analítica. Como um exemplo, contemplando o tema “Inconsciente e família”, cito o livro Francisco Bosco, Orfeu de bicicleta: um pai no século XXI, publicado pela Editora Foz, do Rio de Janeiro, em 2015. Trata-se de um depoimento sobre como a paternidade se apresentou por duas vezes na vida desse autor e de como ele a vive de modo completamente diferente do que acontecia, em geral, aos pais de algumas décadas atrás. Já no início da Primeira Parte, por exemplo, poderemos ler uma frase que, recortada, soa bem lacaniana: “a paternidade é uma questão” (p. 17). Ao longo do livro, vemos Francisco Bosco, mesmo perpassado pela inexistência do Outro, tendo de se colocar como um Outro, por exemplo, para sua filha primogênita e seu filho caçula. Entretanto, quando ele busca a psicanálise para tematizar a questão que lhe toma o corpo especialmente com o nascimento de seus filhos, suas referências são Sigmund Freud, Donald Winnicott, Françoise Dolto, Contardo Caligaris e Maria Rita Khel. Embora, de algum modo, a referência a Lacan não deixa de estar presente em Dolto, Caligaris e Khel, não se trata propriamente ainda da orientação lacaniana e, quando li os diferentes (e bem contemporâneos) modos como Francisco Bosco é afetado e responde ao que ele mesmo chama de “impacto enorme” da paternidade em sua vida, diversas vezes me ocorreu o quanto a orientação lacaniana poderia contribuir para suas elaborações e seus impasses…

 

Na sua opinião quais as questões fundamentais deverão orientar a nossa reflexão sobre o tema: Inconsciente e família?

 

Acho que sobretudo suas duas primeiras questões e a última são guias excelentes para essa reflexão. Além delas, eu acrescentaria, a princípio, mais duas.

Uma, me ocorreu outro dia, quando relia “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” e me deparei com a seguinte consideração freudiana sobre uma das possibilidades de se sair do complexo de Édipo: “no caso normal – melhor dizendo: ideal – não subsiste mais um complexo de Édipo no inconsciente, o Super-eu é seu herdeiro”[11]. Parece-me que não é incomum, sobretudo em certos casos de adolescentes e jovens adultos que chegam hoje a nossos consultórios, nos depararmos com esse tipo de situação “ideal” aludida por Freud: eles não nos reportam propriamente o que o criador da psicanálise localizava como “conflitos edipianos”, a vida familiar que têm (mesmo com os problemas que ela comporta) é considerada por eles como absolutamente “normal” e, de fato, parece ser mesmo. Alguns sequer conseguem localizar exatamente o que lhes levam a procurar-nos, embora queiram analisar-se e são frequentes nas sessões. Mas, imerso nessa “normalidade”, não deixamos de encontrar a presença insidiosa do supereu. Nesse contexto, parece-me interessante explorar como, em casos assim, a não subsistência do complexo de Édipo no inconsciente poderia implicar a presença insidiosa do supereu que, no entanto, é herdeiro desse mesmo complexo. Em outros termos, se o complexo de Édipo não subsiste no inconsciente, tal “normalidade” seria tomada pelo supereu que alguns pós-freudianos preferiram qualificar de “pré-edípico” e que Lacan pôde destacar mais claramente nas psicoses? Eu não incluo, nas psicoses, os casos a que faço alusão aqui, mas me parece impressionante que, no mundo onde o Outro não existe, tudo tende a ser considerado “normal” e, nesse viés, poderíamos investigar se o supereu se imporia, então, como uma espécie de retorno no real de conflitos que, por não mais subsistirem no inconsciente, não se apresentam na realidade e, assim, fazem com que a realidade pareça normal embora, efetivamente, ela seja perturbada pela presença real do supereu.

Uma outra questão seria sobre o estatuto do falo hoje e de como Lacan, sobretudo no final de seu ensino, tematiza o falo. Por um lado, vivemos em um mundo que confere a todo tempo descrédito ao falo, sobretudo porque o toma como “patriarcal”, “heteronormativo”, bastião de um “binarismo” que desconsidera completamente a “diversidade sexual”. Por outro lado, no Seminário 23, Lacan aborda o falo como “falácia” que “testemunha” o real e como “único real que verifica o que quer que seja”[12]. Nessa abordagem, não encontraríamos meios para enfrentarmos o descrédito contemporâneo atribuído ao falo e até de – sem qualquer retorno ao chamado “falocentrismo” – irmos além dos impasses que tal descrédito não deixa de implicar?

 

Considerando-se o fenômeno do “domínio materno”, indicado por Miller como uma “expressão da feminização da nossa época”, qual a contribuição da psicanálise, tendo em vista as dificuldades das famílias contemporâneas para articular lei e desejo, no processo de transmissão de uma constituição subjetiva?

 

Vivemos em um mundo onde cada vez mais a fala tende a perder o lastro corporal (por exemplo nas “conversas” intermináveis por Whatsapp) e os corpos tendem a se mostrar como se pudessem desconectar-se da fala (por exemplo, na demanda imperativa “manda nudes!”). Antes, a função paterna procurava dar algum lugar à conjugação da fala e do corpo, mas que se demonstra hoje muitas vezes insustentável porque soa (ou mesmo efetivamente é) autoritária, centralista, pouco ou nada afeita às nuances do que lhe escapa e se apresenta como “feminino”. A meu ver, a psicanálise de orientação lacaniana apresenta-nos um uso inédito da conjugação da fala e do corpo porque esse uso implica ir “mais além do complexo de Édipo” e outro modo de “viver as pulsões”. Nesse contexto, ela tem muito a contribuir, inclusive para que descubramos, nas tramas da feminização do mundo, a reiteração, mesmo de modo transmutado, do domínio materno. Mas devemos também zelar para que essa contribuição não tome, como algumas vezes escuto (até mesmo entre nós, psicanalistas de orientação lacaniana) uma perspectiva messiânica e salvacionista. Afinal, o próprio Freud já nos ensinou que, sob a face sacrificial do filho salvador, o que insiste é o sacrifício do pai que torna o pai morto mais forte que o pai quando vivo. Logo, se a contribuição da psicanálise de orientação lacaniana tomar uma perspectiva messiânica e salvacionista, ela se fará em “Nome do Pai” e perderá seu ineditismo de conjugar corpo e fala e de dar um lugar ao feminino como uma exceção diversa do pai, da mãe e mesmo d’A mulher.

 

Respostas redigidas por Sérgio Laia

Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME), pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Professor Titular IV do Mestrado de Estudos Culturais Contemporâneos e do Curso de Psicologia da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura); Pesquisador com projeto aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e pelo Programa de Pesquisa e Iniciação Científica (ProPIC) da Universidade FUMEC; Mestre em Filosofia e Doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

 

[1] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[2] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[3] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[4] DURKHEIM, Émile (1892/1975). La famille conjugale. In: Textes. Paris: Minuit.
[5] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,, p. 834.
[6] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[7]LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[8] LACAN, Jacques (1971/2003). “Lituraterra”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 24.
[9] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[10] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[11] FREUD, S. (1925/2011). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In: Obras Completas, vol. 16. São Paulo: Companhia das Letras, p. 297.
[12] LACAN, Jacques (1975-1976/2007). O seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, p. 101-115.



Entrevista Com Márcia Tiburi Sobre O Livro “Uma Fuga Perfeita É Sem Volta

LUDMILLA FÉRES FARIA E MÁRCIA MEZÊNCIO

 

 

SWAYING 1

 

 

Nosso encontro com seu livro foi provocado por uma entrevista a uma rádio de BH, por ocasião do seu lançamento, que ressoou com o tema de trabalho ao qual nos dedicaremos no ano de 2017 na Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais, que são os assuntos de família. Nessa entrevista, você localizava o ponto de partida da trama e a notícia da morte do pai transmitida entre trivialidades e dizia ter se perguntado se não havia exagerado ao propor essa situação. Em nossos consultórios, tem nos chamado a atenção justamente a forma como são relatadas algumas situações, entre banalidades, particularmente alguns assuntos de família, de forma alguma banais.
Assim, nossa entrada se dá por esse viés e, ainda que os temas abordados pelo livro nos proponham inúmeras questões, foi ele o que nos orientou a
leitura, prazerosa e desconcertante, desse romance.

 

Em sua entrevista, ao blog da Editora Record, sobre o livro “Uma fuga perfeita é sem volta”, você afirma que o romance nasceu de alguns sonhos seus, e que a psicanálise não daria conta daqueles sonhos. Em que sentido você faz essa afirmação? A escrita do livro foi, então, uma forma de responder as questões que os sonhos colocaram?

 

O livro nasceu apenas porque eu tinha um sonho recorrente. A cena inicial na qual Klaus demonstra sua perplexidade com a notícia, e a forma como ela é dada, era o conteúdo com o qual sonhei várias vezes. No sonho, eu ligava para uma de minhas irmãs e ela me dizia, entre trivialidades, que meu pai tinha morrido. No sonho, eu ficava perplexa. Ao acordar, permanecia perplexa. Inclusive, em algum momento, cheguei a pensar que pudesse ser verdade e que minha família fosse tão estranha que pudesse deixar de me falar uma coisa dessas.

 

Embora eu faça análise (ainda que esteja, exatamente neste momento, em uma lacuna no tempo da análise), creio que, depois de Lacan, o sonho não importa mais do mesmo modo como importava em uma leitura freudiana. Mas os sonhos são importantes para mim, mais do que por questões psicanalíticas, porque são narrativas elementares que mostram coisas muito evidentes. São ideias em estado primitivo. Pensamentos primitivos, cheios de conteúdo, às vezes melhor formulados do que pensamentos racionais. Meu personagem empresta muito da minha própria pessoa, inclusive meus sonhos. Com exceção do sonho do gago com o morto no sótão, os demais são sonhos que eu realmente tive. Ou seja, esse livro é atravessado por um caderno de sonhos.

 

Desde o início, o tema da família ocupa um lugar preponderante no desenrolar da trama e, em especial, na escritura da identidade” do protagonista, que, conforme você afirma, está aprisionado nos ditos e nas histórias familiares. Ao final, ele afirma ter encontrado uma “nova forma de viver”. Seria essa sua metamorfose, desaprisionar-se da família “das paredes gélidas e escuras da lembrança que desabam sobre nós um dia” (p. 98)?

 

Meu personagem nasceu de um modo muito espontâneo, mas aos poucos fui me dando conta de que ele era uma espécie de estrangeiro desde o nascimento. Um estrangeiro na própria casa. Há algo nele de Antígona, mas só percebi essa questão bem tarde. Ele vive aquela ideia benjaminiana de que não há nada mais estrangeiro do que o corpo. Ora, a cidade é corpo. A política é corpo. Digamos que o próprio corpo é uma primeira experiência de estrangeirismo. A nova forma de viver é um modo de assumir sua condição estrangeira. É saber-se diferente no meio de uma identidade ameaçadora e aniquiladora. A família nos constrói, pouco do que somos é autônomo. O desejo é essa porta que se abre, ou a porta que conseguimos abrir para escapar da prisão, digamos assim. Nesse sentido, a fuga do meu personagem é uma fuga da prisão da família. A família que permanece dentro de nós, para sempre.

 

Ao tema da família, então, se liga o tema da fuga. Considerando a fuga perfeita, sem volta, como afirmado no título, e ainda “que a grande fuga se dá de fora para dentro, não de dentro para fora” (p. 139), que é seguida da ideia da possibilidade de retorno ao Brasil, perguntamo-nos se existe fuga perfeita e se o personagem a atinge. Podemos ler assim quando, referindo-se ao conto de A. A., ele diz que Saint-Éxupery “precisava de uma fuga perfeita que pudesse salvar sua própria vida, e o único modo era acabar com ela e redimensioná-la” (p. 574), e ainda que “Ele organizou a fuga perfeita. A fuga por metamorfose. A fuga sem volta.” (p. 588)? Voltar para confirmar-se (p. 199) não ser o que eles são, desobrigado de qualquer dívida, ainda que preso a si mesmo (p. 143)?

 

O que significa essa fuga perfeita? Fugas há muitas, mas uma perfeita é mais bem complicado. Klaus experimenta um aprisionamento em si mesmo ao qual foi condenado pela família, incapaz de olhar para ele. A mãe que morre louca, o pai que não suportava sua figura, a irmã que era uma esperança e que, infelizmente, não foi capaz de perceber o caráter extraordinário que os unia. Mas ele se sente culpado, sobretudo pela irmã. Ao mesmo tempo, ele se considera digno de uma outra vida possível. Daí o papel de A. A. A criação de Agnes Atanassova a partir do que está disponível, os objetos da casa, as roupas e acessórios do velho guarda-roupa, um pedaço de história escrita em um caderno abandonado, os restos deixados pelos outros nos achados e perdidos. Klaus é, a meu ver, um efeito do abandono ao qual estamos todos condenados. A. A. tem o teor de um encontro. Eu fui abandonado, mas eu posso encontrar, no que foi abandonado, uma saída para o meu próprio abandono. Todo encontro, todo “encontrar” é, também, em alguma medida, inventar. É isso o que Klaus nos faz saber. Agnes Atanassova é a fuga perfeita. A meu ver, a história da morte de Saint-Éxupery é redimensionada porque o próprio Klaus percebe que ele pode desaparecer para ser outro. No caso, ele escolherá ser outra.

 

Você afirma ter se inspirado livremente na passagem de Saint-Éxupery pelo Brasil para construir a questão da fuga que permite a evolução do romance, e que se torna uma questão mais decisiva no fim do livro. Destaca também a questão do Desterro, nome original da ilha, articulada ao personagem desterrado da própria casa e da própria língua. Para a condição de estrangeiro e exilado, uma passagem parece decisiva: que a notícia da morte do pai tenha sido dada em português e não na “nossa língua” materna. Mãe que dá a vida e a morte (p. 403). Humanidade relacionada ao estatuto de falante, o que não significa comunicação (p. 64). Qual o estatuto dessa língua materna? Em que medida constitui a família, ou seu “pano quente de silêncio”? 

 

Aqui tenho que falar novamente de algo muito pessoal. No momento em que respondo essa entrevista, tive que passar dois dias em Portugal e tive uma sensação nova. A língua portuguesa falada por lá me deu a sensação de que eu falo uma língua estrangeira. É verdade que o português é a nossa língua materna, mas confesso que sinto como se não fosse a minha. Eu me sinto totalmente estrangeira ao falar e escrever em português; ao mesmo tempo, a sensação de paradoxo não me deixa, porque não aprendi outra língua antes da língua portuguesa, ainda que meus avós paternos, com quem cresci, falassem italiano. Estou sempre com a impressão de que falo a língua errada. Não procuro na literatura a língua correta, mas a língua que eu posso falar. A literatura é a minha língua materna em certo sentido. A língua de quem não tem língua. De quem tem, como Klaus, a língua quebrada. Verdade que criei a gagueira de Klaus porque, pessoalmente, a gagueira sempre me impressiona, sempre me comove. Mas havia um sentido necessário ao personagem: ele não poderia ser um falante comum, alguém capaz de conversar e de se sair bem na vida porque tinha essa habilidade. A gagueira é esse impedimento, essa marca física e metafísica de um erro original, de uma impossibilidade. Eu me sinto gaga de alma. E me tornei falante como filósofa, uma estudiosa do diálogo humano. Minha profissão me levou a ser falante até demais, na vida real, devido à minha profissão de professora. Fora isso, na vida cotidiana, eu prefiro o silêncio, pois nunca sei o que dizer. A literatura certamente permite o silêncio como a sua forma de fala. Klaus também a encontrará no caderninho vermelho e a transformará em performance. Ele será A.A.

 

De que forma você descreveria a relação entre a irmã Agnes e a solução encontrada pelo protagonista Klaus Wolf Sebastião? Em um dado momento do livro, ele chega a afirmar: “Agnes, sou eu, Agnes, sou eu” (p. 53). Isso poderia, a posteriori, ser escutado “eu sou Agnes”? 

 

Lembro bem quando escrevi essa frase. Eu mesma me surpreendi. Ele tinha percebido que, já naquele momento, ele estava diante de um espelho. Depois, esse espelho se materializará. Penso que não há nada de mais apavorante do que a nossa semelhança com os nossos. Nesse sentido, sermos adotivos é sempre menos pavoroso, ainda que, para muitas pessoas, possa parecer um desabono. Recorrendo novamente a um fato pessoal, confesso que passei a minha infância tentando entender se eu era ou não adotiva. Havia na minha família esse registro ambíguo que era quase um bulliyng que as pessoas faziam comigo. Eu nasci com cabelos pretos e crespos em um ambiente de gente loira com olhos azuis. Nesse caso, creio que Klaus vive de modo muito mais sofisticado algo que eu vivia. Emprestei a ele essa experiência riquíssima de horror daquilo que é familiar e a estanha satisfação de descobrir em si uma dimensão de diferença em si mesma redentora.

 

O que significa dizer “É o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” (p. 100)? É desse pacto que o personagem se vê excluído, como lemos em “Não se pode negar a herança” (p. 386), “Irmãos como espólio um do outro” (p. 444) e “Em uma família só os testamentos são verdadeiros” (p. 511)? 

 

Talvez o que eu vá responder soe um pouco mórbido. Talvez seja muito particular e não vou sugerir que isso tenha validade universal. A meu ver, há muita coisa em comum entre famílias e romances, mas sobretudo um elemento: os mortos. Todos os livros que escrevi foram livros sobre a morte e sobre os mortos. Todos foram, em certa medida, para poder conviver e, quem sabe, poder enterrar meus mortos. Aqueles mortos, inclusive, que não sei se poderei enterrar um dia, pois talvez eu morra antes. Nesse sentido, o raciocínio é lógico. Enterrar os outros significa ter sobrevivido. Escrevo, nesse sentido, para sobreviver. Nessa frase em particular, eu vejo um sinal de profunda solidariedade. Somos irmãos quando enterramos nossos mortos comuns, somos filhos quando enterramos nossos pais, aqueles que, simbolicamente, ajudamos a matar, para lembrar do Totem e Tabu. Mas, sobretudo, vejo o registro de Antígona, para quem o enterro do irmão era uma questão essencial. O último gesto ético, um gesto que vai além da generosidade e do dever, um gesto de compaixão final. Um gesto que equivale, por certa inversão, por estar próximo de uma inversão, ao gesto do nascimento. Pode parecer morbidez em torno de um niilismo, mas se trata, muito mais, de um acordo que se fecha. De um profundo companheirismo em torno de um projeto no qual a morte não é o coroamento, mas o fracasso inexoravelmente experimentado e que merece toda a compaixão.




A Família Entre A Ciência E A Lei

FABIAN FAJNWAKS

 

 

Famílias recompostas, monoparentais ou homoparentais. As diversas figuras da família que nossa época nos apresenta encontram-se determinadas pelos progressos da ciência – pelo discurso jurídico que acompanha esse progresso –, em que o impacto da psicanálise na cultura também tem seu lugar.

 

Há algumas semanas um autor escrevia, com certo cinismo, nas colunas de um jornal de grande circulação na França, que, da mesma maneira que os anos 70-80 condenaram o casamento à morte – o que se pode discutir –, os anos 90-2000 estabeleceram, definitivamente, como obsoleta a noção de casal. “O conceito de fidelidade – diziam – tornou-se tão ridículo, obsoleto, bárbaro como era em outra época o conceito de castidade”. Se atualmente todos os sexos são semelhantes, todas as sexualidades se diferem umas das outras. O fim do modelo de casamento/celibato, seguido do modelo de casal/solidão, anda hoje de mãos dadas com a superação da distinção arbitrária masculino/feminino, do hiato absurdo hetero/homossexual. A nova individualidade não é mais étnica, nem geográfica, nem social ou cultural: é sexual. Uma nova individualidade que permite viver a liberdade sexual que reivindicamos transcendendo as divisões, depreciando as distintas comunidades. Ela permite fabricar um sexo.

 

Com a psicanálise, não saberíamos desmentir essas palavras, mas voltemos ao ponto em que esse autor fala de “inventar um sexo” e de “uma nova individualidade”. Saber que a “individualidade” do nosso tempo implica que cada um pode gozar como quiser, desde que isso não incomode muito nem aos outros nem à sociedade, sendo exclusivamente esse “cada um pode gozar como quiser” o que faz em nossa época o laço social, a questão ética que acompanha esse tipo de gozo de “fazer um sexo” se impõe necessariamente. Isso significa que a diferença entre o que é uma posição de “vontade de gozo”, o que empurra ao que – como Lacan disse em Televisão e antecipando essas questões – “no desatino de nosso gozo, não há mais o Outro para situá-lo, e agora esse gozo se localiza a partir do mais-de-gozar”2 e o que se deduz de uma posição subjetiva em relação ao desejo é, poderíamos dizer, cada vez mais frágil, e somente a psicanálise pode escutar essa diferença.

 

Para dizer de outro modo: vivemos em uma época em que o fato de que a cada um está permitido reivindicar um modo de gozar – o que toca a sexualidade e a estrutura da família – impõe uma reformulação jurídica que enquadre esse mais-de-gozar permitido, e uma reflexão ética a que todos os indivíduos que compõem a sociedade estão desde agora convidados, e é o que se verifica na presença da palavra “ética” em todos os discursos sociais, como sintoma dessa questão.

 

“Inventar um sexo” é acompanhado também de poder “inventar uma família”, que acompanha a maneira de viver essa sexualidade, e não surpreende, então, por exemplo, a reivindicação dos homossexuais de adotar ou de procriar, como é possível para as homossexuais já há alguns anos. Um sociodemógrafo indicava há uns dias no Liberation3 que “o amor, ou melhor, o casal, se constrói atualmente a partir da sexualidade enquanto que há um tempo, era o casamento que desempenhava esse papel” 4.

 

A família homoparental constitui uma revolução que a ciência permite há uns anos e que o jurídico está em vias de adaptar-se com a legislação correspondente. Existe há três anos, na França, o PACS (Pacto Civil de Solidariedade), que reconhece as uniões homossexuais. Até poucos anos atrás, ser gay significava a renúncia do sujeito à procriação, e que a partir de agora é possível driblar, “verônica** – para usar um termo de Oscar Masotta – a castração”, ou, nesse caso, se quiserem, um “duplo drible”.

 

Não se trata aqui, como observado por Lacan em Os Complexos Familiares, de “afligir com um pretenso afrouxamento dos laços de família”5, o que levaria inevitavelmente a uma posição moralista, desconectada da psicanálise, ou dizer “os homossexuais já não são mais o que eram antes”… Trata-se de notar, em primeiro lugar, que a família homoparental não faz mais que colocar em evidência o que conhecemos há um século com Freud e Lacan: que, por um lado, há uma diferença entre a família – estrutura que garante a transmissão em relação à procriação – e o Complexo, enquanto o dispositivo que permite que um sujeito advenha como desejante; e que, dentro desse complexo, as funções fundamentais de Desejo da Mãe e de Nome do Pai se articulam mais além dos lugares biológicos, mesmo se estão encarnados.

 

Recordemos o que nos assinala Lacan em Duas notas sobre a criança:

 

A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades – mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo6.

 

“A relação com um desejo que não seja anônimo”: aqui, temos articulada a metáfora mínima necessária para a constituição do sujeito, que implica que tenha transmissão de outra ordem que não a da necessidade. Frente ao fato de que a família tenha sido reduzida a seu agrupamento biológico – ou sexual, poderíamos acrescentar, a partir da perspectiva do que estamos abordando – à medida que integrava os maiores progressos culturais, perguntemo-nos como o fez Lacan – nessa passagem de Os complexos familiares – pelos “efeitos psicológicos” ou subjetivos dessas alterações que tocam o que ele chama de “declínio social da imago paterna”. Mas não nos alarmemos tanto como podem fazer os psicólogos ou outros humanistas ou profissionais do social: a psicanálise, desde Freud – Lacan o recorda nesse texto em que evoca o “melting pot” das formas familiares mais diversas que constituía a Viena do princípio do século e que deu lugar a essa reflexão –, diferencia a estrutura familiar do “Complexo” de Édipo, e o que as mudanças contemporâneas da família nos fornecem talvez seja menos inovador. Esse “declínio social da imagem paterna” produzirá novas fobias, por exemplo, nesses novos grupos familiares nos quais a imagem do pai se vê alterada ou reforçada nas parcerias em que justamente ele está ausente? Assinalemos o fato de que muitas vezes o filho do qual se trata é o filho feito ao pai ou à mãe do sujeito. Em todo caso, podemos encontrar, nessa reivindicação, a confirmação da “função de resíduo”, de resto da família que Lacan sublinha, ou seja, no desejo dos casais homossexuais de “fazer família”, segundo o modelo da parceria heterossexual.

 

Uma série de reformas jurídicas realizadas recentemente na França parece sustentar a “decadência social da imago paterna”7. Desde o mês de fevereiro (de 2002) e, rompendo com uma tradição que data de oito séculos, uma mãe pode transmitir a seus filhos seu sobrenome, ou seja, o de seu pai, no lugar do sobrenome do pai de seus filhos, e isso por simples pedido e acordo dos cônjuges. No momento em que o parlamento francês aprovou essa reforma, que constitui uma pequena revolução, os jornais evocavam o lugar simbólico do Pai como transmissor do nome, citando a referência lacaniana do Nome-do-Pai. Já existia na França a possibilidade de que a mãe reconhecesse seu filho e lhe transmitisse seu sobrenome, ou que o filho carregasse os sobrenomes de ambos os pais, ainda que sempre fosse o de seu pai o que se transmitia. Contudo, no contexto atual, que a lei promulgue a possibilidade desse tipo de transmissão coloca, entre outras, a questão sobre se ela não condescende com a possibilidade de alimentar um fantasma de possessão materna, em que é o próprio pai da mãe que aparece como transmissor do Nome. Para dizer de outro modo, se o que funciona como constatação lacaniana no social é a decadência da imago paterna. Lacan apresenta, no texto citado, todas as interrogações concernentes à falha de transmissão dos ideais por esse motivo, sendo os ideais do pai os que alimentam, segundo Freud, o ideal do eu do filho, perguntando-se também pelo lugar que toma o supereu como reforço, uma vez constatada essa decadência da imago paterna. Cabe perguntar também acerca da forma que toma o empuxo à mulher no social que acompanha essa decadência, e que se verifica em toda psicose. Mônica Torres falou, há um tempo, desse empuxo à mulher no social e que haveria de desenvolver esse conceito. Aqui vemos uma estranha convergência entre os efeitos do progresso da ciência e o discurso jurídico, em que um acompanha o outro, produzindo um tipo de fantasma do todo feminino, no qual já não há mais pais, ou seu lugar aparece apagado, mas também não há mais homens, a partir do momento em que a ciência pode fazer a mulher procriar prescindindo do ato sexual, que é o que introduz a diferença dos sexos, reduzindo o homem ao banco de esperma. A clonagem, forma que definitivamente pode prescindir da reprodução sexual, alimenta esse fantasma em que já não se trata de um todo feminino, mas de um empuxo a ele, sem nenhuma alteridade, e em que as reflexões de Freud em Além do princípio do prazer, acerca do progresso que a reprodução sexuada supõe sobre a reprodução assexuada, são atuais, nos promete para amanhã o retorno à reprodução assexuada – se a clonagem for possível.

 

Outra modificação é a aplicação, na França, da lei chamada “reforma da autoridade parental”, aprovada em meados de fevereiro de 2002: a lei reconhece uma competência igual aos pais e às mães no caso do divórcio, seguindo, assim, um movimento que os jornais chamaram de uma ideologia da “copaternidade”, que já provocou a tensão das organizações feministas francesas. Uma jurista comentava essa tensão, ressaltando “o apego visceral das feministas à divisão jurídica dos sexos: não somente obtiveram o direito ao aborto, como também o de perseguir (juridicamente) o homem que é o genitor de seus filhos, em uma espécie de reivindicação de domínio primário em detrimento do pai”9.

 

Talvez possamos evocar, para terminar, o que muitos sociólogos apontaram no momento dessas mudanças da estrutura e da inscrição jurídica da família: que no momento social atual em que, para retomar as palavras do escritor que citávamos no princípio, cada sexo tem exatamente os mesmos direitos de reivindicar um modo singular de viver sua sexualidade, de “inventar” sua sexualidade, a guerra dos sexos parece, então, deslocar-se do campo da família…

 

 

 

 


Referências:
1 Moix, Yann, Loisirs totalitaires. Libération, 17 de fevereiro, 2001.
2 LACAN, J. Televisão. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p. 535.
3 Jornal editado em Paris, fundado em abril de 1973 com o auspício de Jean-Paul Sartre.
4 BOZON, M. Le Pacs n’enfante pas l’adoption homo. Libération. 27 mar., 2002.
5 LACAN, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros escritos: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p.66.
6 Ibid., p. 369.
7 Ibid., p. 66.
8 FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. XVIII.
9 IACUB, Marcela. Libération, março, 2002.
** N.R. “Verónica” é um termo para definir a manobra do toureiro durante as touradas: como o touro é incapaz de distinguir cores, é atraído pelo movimento do pano – um capote com capa vermelha e forro amarelo – usado para driblar o animal com um recuo de pernas. O vermelho só serve para disfarçar as manchas de sangue.

FABIAN FAJNWAKS
Tradução: Mônica Campos Silva
Revisão: Kátia Mariás
Trabalho publicado na Revista Enlaces nº 7, Revista do “Departamento de estudos psicanalíticos sobre a família – Enlaces”, 2002.
Fabián Fajnwaks, psicanalista, professor do Departamento de Psicanálise (Paris VIII), Membro de l’ECF e da Associação Mundial de Psicanálise.



O Avesso Da Procriação

FRANÇOIS ANSERMET

 

 

Poderia-se definir a família como uma instituição feita para tratar a diferença dos sexos e das gerações. Baseado nessas diferenças, ela é, ao mesmo tempo, uma construção artificial que vela o real que essas diferenças indicam. Ela é, portanto, fundamentalmente desnaturada, sempre para além dos fatos biológicos sobre os quais ela repousa, mudando de forma antes que se tenha tempo de entendê-la, mas permanecendo como uma necessidade – o que revelam, por exemplo, seus dispositivos contemporâneos, como no caso de casais homossexuais e transexuais e seu desejo, por vezes militante, de adotar ou mesmo conceber crianças.

A família fornece, em seu seio, procriação e genealogia. É preciso, no entanto, compreender bem que procriação e genealogia são dois registros radicalmente heterogêneos. Mas a fascinação contemporânea pela causalidade natural quer superpô-los a todo preço – inclusive com um recurso cada vez mais frequente aos testes de paternidade, tornados disponíveis para todos em caso de dúvida súbita, sob a forma de kits comandáveis pela internet. As cerdas de uma escova de dentes ou um pequeno resto sobre uma colher de sobremesa são suficientes para saber de onde vem ou se sua criança vem mesmo de si.

O parentesco biológico é assim frequentemente evocado, com veemência, para negar aquilo que se teceu no fio das identificações e da história – como se nada houvesse se passado desde o nascimento! É o caso, em se tratando da inseminação com doador (IAD – insémination avec donneur), quando se convoca a genética no lugar da história, ou seja, o doador de esperma no lugar do pai, como se ele pudesse se apagar diante do espermatozoide. É também o caso no que concerne à adoção, com os famosos pais ditos biológicos. Geração e adoção são efetivamente duas visões concorrentes do parentesco. Existem, inclusive, casos limites em que a adoção foi vista como um “a mais” em relação ao parentesco por geração, como nos Mbaya-Guaicuru citados por Lévi-Strauss nos Tristes trópicos (1955, p. 260):

“Esta sociedade se mostrava muito adversa aos sentimentos que nós consideramos como naturais; assim ela experimentava um forte nojo pela procriação. O aborto e o infanticídio eram praticados de maneira quase normal, e a perpetuação do grupo se efetuava bem mais por adoção que por geração, um dos alvos principais das expedições guerreiras sendo o de encontrar crianças. Assim calcula-se, no começo do século XIX, que no máximo 10% dos membros de um grupo guaicuru lhe pertencia por laços de sangue.”

 

[1]Vertigens biotecnológicas 

 

É preciso admitir que os universos subjetivos, simbólicos e imaginários da sexualidade, da procriação, da gestação, do nascimento e da filiação são fundamentalmente sem relação entre si, a não ser pelo fato de estarem às voltas com o real impensável da origem, com as suplências inventadas por cada um para compensar as disjunções – entre elas, a criança – que reconduzem mais ao real que à origem. É assim que, em análise, pode-se, por vezes, levantar o véu que recobre esse real e distinguir, a propósito do que concerne à família, a vertente do semblante da vertente do gozo, este último sendo, definitivamente, o avesso da família.

Na clínica só podemos nos orientar a partir de uma concepção desnaturalizada da estrutura familiar. É o que revelam, de maneira explícita, as procriações justamente chamadas artificiais, quando elas utilizam paradoxalmente a natureza como um artífice – mostrando, pela defasagem que elas implicam, aquilo sobre o qual repousa toda procriação.

As procriações medicamente assistidas (PMAs) revelam o diferencial sexual curto-circuitando-o. Elas desvelam também o âmbito do diferencial geracional congelando o tempo através da crioconservação, que comporta o potencial, senão a possibilidade de saltar gerações.

Seja como for, as PMAs forçam-nos a pensar a procriação da qual não temos habitualmente representação. Temos uma data de nascimento, não uma data de procriação. Elas obrigam a pensar o impensável, a representar o irrepresentável. Nisso, as PMAs são uma falsa resposta a uma verdadeira questão, a uma questão impossível, aquela da origem e da procriação. Está aí a fonte principal das vertigens que induzem as biotecnologias, que apontam justamente o real em torno do qual giram os laços familiares.

No buraco do impossível, tudo vem submergir, em particular as teorias sexuais infantis próprias a cada um dos pais, que têm a característica de contornar o sexo, como nas biotecnologias da procriação. É nesse ponto que, finalmente, somos todos nascidos fantasmaticamente de PMA! Mas é preciso também reconhecer que as PMAs podem acrescentar à realidade modos de fazer inéditos, ao ponto de tornar a natureza artificial, na medida da fantasia de cada um. Brevemente, tudo será possível: até procriar a partir de células-tronco, podendo ser transformadas seja em espermatozoide, seja em óvulo – isso ainda é experimental –, com a perspectiva, melhor ainda que pela clonagem, de se tornar filho de si mesmo, como Galaad para Lancelot.

As PMAs, dissociando a sexualidade da procriação e a procriação da gestação, deixam finalmente às únicas referências simbólicas – aquelas da diferença dos sexos e das gerações – a possibilidade de construir uma filiação, instalando, ao mesmo tempo e de maneira inesperada, as referências próprias à psicanálise sobre o que está no centro da cena. Esse é um efeito paradoxal das vertigens biotecnológicas que se trata de destacar.

 

O avesso da biografia

 

A biografia não é redutível à história, inclusive aquela da procriação. Como indica Lacan (2006a, p. 332), o que determina a biografia é inicialmente “a maneira pela qual se apresentaram os desejos do pai e da mãe”, quer dizer, o modo “como eles efetivamente ofereceram ao sujeito o saber, o gozo e o objeto a”[2].

É disso que a criança deve advir, ela que faz sua entrada no mundo no lugar de objeto a – “aborto do que foi, para aqueles que a engendraram, causa do desejo” (LACAN, 1991, p. 207)[3]. Ela deve advir como sujeito a partir desse estatuto de objeto, para vir “se substituir à hiância que se designa no impasse da relação sexual” (Idem, 2006a, p. 347)[4]: essa é uma marca particularmente forte na clínica das PMA.

Eu poderia citar o caso desse casal que quer dizer a seus filhos, nascidos de esperma doado, a verdade sobre sua origem. A mãe me fala do pai biológico. O pai se retrai. Por que falar do pai biológico e não de doador de esperma? O que é um pai? O que é um espermatozoide? O que é um doador de esperma? Eles retornam para repensar no fato de dizer mais do que na maneira de dizer… A mãe me fala de sua fantasia: se as crianças desejarem um dia encontrar o doador de esperma – as duas crianças são do mesmo doador depois de uma única inseminação –, ela será perturbada a ponto de ser tomada de paixão por esse homem… Afirmação que a surpreende a ponto de deixar a questão momentaneamente em suspenso.

Eu poderia também evocar o caso de Pierre-Marie, que não para de perguntar “onde está papai?”. Pierre-Marie tem três anos. Sua mãe é uma mulher que concebeu essa criança sozinha, de maneira artificial por FIV (fecundação in vitro) em Boston, com doação de esperma. Ela queria oferecer fantasmaticamente essa criança à sua mãe, que teve que dá-la, no seu nascimento, à sua própria mãe e não podia mais ter filhos, em consequência de complicações ginecológicas consecutivas à gravidez.

Pierre-Marie veio de um doador de esperma americano, definido pela ficha do banco de esperma californiano como de origem francesa e alemã – o que representa alguma coisa na história dessa mulher – mas também cherokee (etnia indígena norte-americana), tendo como principal qualidade o otimismo, como principal defeito a procrastinação e como livro preferido: The power of one. Eis que ela volta para a Suíça, grávida, depois de uma FIV que lhe deixa ainda um zigoto à disposição, crioconservado em Boston.

Ela deu à luz, sem problemas, uma criança que se desenvolverá normalmente, mas a inquietando – inquietante estranheza – ainda mais depois do dia em que ele começa a falar e não para de invocar o pai: Quem é papai? Onde está papai? Questões reiteradas que deixam a mãe completamente desprovida, sem voz. Tais questões tornam-se progressivamente, para Pierre-Marie, a principal via para agredir sua mãe.

Depois de uma aventura, ao modo de Wim Wenders, através dos Estados Unidos para encontrar os traços do doador, de centros de PMA aos bancos de esperma, ela acaba por fazer um novo implante do zigoto crioconservado que restou – dessa vez, sem sucesso. Da árvore genealógica conhecida à árvore genealógica suposta, tudo isso não cessará até que ela aceite meu dizer, endereçado a ela e a seu filho, de que a única resposta a essa questão é que não há resposta. Essa intervenção traz uma pacificação na relação com o filho e uma melhora sintomática quase imediata para a criança.

Em resumo, é a partir de um lugar já estabelecido e de decisões já tomadas que a criança terá que fazer suas próprias escolhas para ir além de seu estatuto de objeto, além dos modos de gozo dos quais ela descende.

O que ele inventa, então, o separa para além daquilo que o determina, segundo um desejo que lhe é próprio, que emerge das respostas através das quais ele se constitui, qualquer que seja o modo de procriação ou os modos de gozo dos quais ele advém.

 

A morte na procriação

 

Pode-se então observar o gozo como uma primeira versão desse avesso da procriação. Mas o avesso da procriação é também a morte, com o estatuto nem vivo nem morto dos embriões crioconservados em suspenso no nitrogênio líquido a -196 graus. É uma espécie de avesso de Senhor Waldemar, de Edgar Allan Poe, que queria manter-se por hipnose entre a vida e a morte no momento de morrer. Aqui, ao contrário, é no momento de emergência da vida que o futuro é congelado. Novas formas de demanda se articulam concernindo os embriões e os gametas crioconservados: assim, uma mulher gostaria de congelar seus óvulos no momento de aceitar um emprego importante que lhe tomará todo seu tempo, para dispor deles quando sua carreira estiver estabelecida. É também instituída hoje a oferta de separar e crioconservar os espermatozoides, ou, mais recentemente, os óvulos, quando um tratamento oncológico ofereça risco de esterilidade – esses gametas podem inclusive sobreviver àqueles de quem eles provém. Encontramos as mesmas questões com os embriões que se acumulam nos laboratórios. Daí uma nova lei na Suíça que obriga a tomar uma decisão após cinco anos de crioconservação – ou se implanta o embrião, ou se o destrói – escolha impossível para a maior parte.

Temos então uma clínica nova nutrida de enunciados inéditos, testemunhando sobre o estranho estatuto dado às crianças vindas dos zigotos crioconservados entre procriação e gestação, como essa mãe que, no final da consulta, diz para seu filho: “Vem, meu pequeno Findus, está na hora!”[5]. Ou essa outra que fala de seu filho como seu “pequeno congelado”. Qualquer que seja seu modo, toda procriação visa a parte imortal no vivente mortal, para retomar a expressão de Sócrates referindo-se às proposições de Diotima no Banquete de Platão. Para que procriar tenha seu sentido pleno, como o enuncia Lacan: “É preciso ainda, que nos dois sexos, haja apreensão, relação com a experiência da morte” (1981, p. 330)[6]. É esse avesso da procriação que o projeto de clonagem rejeita, como os delírios de procriação dos psicóticos, com a perspectiva prometida de poder se recriar idêntico a si, portanto, eterno – o que é impossível, pois o clone será de toda maneira outro independente daquele de onde ele vem, devido à existência do Outro e do sujeito, ele mesmo.

 

Pós-criação

 

Isso nos leva a uma terceira versão do avesso da procriação, para além do gozo e da morte: aquela da criação, onde o sujeito realiza para além de sua procriação.

Se a procriação realiza uma suplência à não relação sexual, uma conexão para além da disjunção entre o gozo e o Outro, entre o homem e a mulher, o avesso da procriação se apoia sobre uma parte de intransmissível que oferece, paradoxalmente, ao sujeito, o espaço de criação, de uma “pós-criação” para retomar uma formulação de Joyce em Ulisses (1995, p. 442)[7], que dá sua versão do avesso da procriação como criação para além do que foi procriado.

De todo modo, a partir de acasos que empurram para a direita ou para a esquerda, o sujeito vai se fazer um destino (LACAN, 2006b, p.162)[8] que ele recompõe a posteriori. A grande lei do universo é, com efeito, a contingência. Tudo depende do imprevisto, do encontro. Como o enuncia Lacan (1998, p.18), “Vocês surgiram desta coisa fabulosa, totalmente impossível, que é a linhagem geradora. Vocês nasceram de duas células que não tinham nenhuma razão para se conjugar, se não fosse por esta espécie de maluquice que se convencionou chamar de amor.”[9] De qualquer modo, o sujeito é fundamentalmente disjunto de seu modo de procriação. Qualquer que seja a técnica pela qual a criança nasceu, nada pode resolver para o sujeito o enigma de sua vinda ao mundo. Só lhe resta se inventar, encontrar suas próprias respostas – e, por que não, também, por meio de uma análise – desorganizando e reorganizando diferentemente o que estava no seu nascimento para além do que presidiu sua concepção.

 

 

 

 

 


REFERÊNCIAS:
[1] Lévi-Strauss, Claude. Tristes tropiques, Paris. Librairie Plon. Terre Humaine, 1955, p.260.
[2] ______. Le Séminaire, Livre XVI. ’un Autre à l’autre. Paris, Le Seuil, 2006a, p.332.
[3] ______. Le Séminaire, Livre XVII. L’envers de la psychanalyse. Paris, Le Seuil, 1991, p. 207.
[4] ______. Le Séminaire, Livre XVI, Op. cit., p.347.
[5] Ansermet, F. Le roman de la congelation. La Cause Freudienne, n.60. Paris, Navarin Éditeur, 2005, p.55-61.
[6] LACAN, J. Le Séminaire, Livre III, Les psychoses, Paris, Le Seuil, 1981, p.330.
[7] Joyce, J. Les breufs du soleil, Ulisses. Oeuvres Complètes II. Paris, Gallimard. La Pléiade, 1995, p.442.
[8] ______. Le Séminaire, Livre XXIII, Le synthome. Paris, Le Seuil, 2006b, p.162.
[9] ______. Le phénomène lacanien . Conferência de 30 de novembro em Nice. Les cahiers cliniques de Nice n. 1, 1998, p.18.

FRANÇOIS ANSERMET
Tradução: Lúcia Grossi
Revisão: Luciana Andrade
François Ansermet é psiquiatra, psicanalista e membro da École de la Cause Freudienne.



A Psicanálise Em Relação Às Famílias

ROSE-PAULE VINCIGUERRA

 

Se o inconsciente é político, não é “fora das antinomias que constituem as relações dos homens com a natureza e a sociedade” (LACAN, 2001a, p.59)[1] que o psicanalista deve situar sua pesquisa. O que ocorre, então, nas famílias hipermodernas – famílias recompostas ou apresentando todas as variações que a procriação médica assistida autoriza nos casais heterossexuais ou homossexuais –, com as inevitáveis questões em que se coloca a criança no momento da sua entrada na sexuação genital, concernindo o mistério do nascimento, a relação sexual dos pais e a diferença dos sexos? E, especialmente, quando a separação entre sexualidade, conjugalidade e filiação é reivindicada pela liberdade contemporânea? Quando também a ideologia da igualdade reina em todos os níveis da parentalidade? Quando, enfim, uma suposta “fraternidade contratual” vem no lugar da figura irredutível e trágica do pai freudiano?

 

Desse ponto de vista, qual pode ser a eficácia do discurso analítico? Há aquilo que os psicanalistas podem constatar das relações reais no campo social e há o que eles podem fazer. Mas, quando o sofrimento insiste, o ato psicanalítico não pode se esquivar nem se opor – “boca fechada”.

 

Conjugalidade, sexualidade em suas relações à filiação: a era da liberdade 

 

A psicanálise ensina que as esperanças colocadas na reconciliação do ser humano com sua sexualidade se verificam fechadas tão logo elas são abertas. O parceiro é sempre o parceiro-sintoma. A clivagem do desejo sexual e da conjugalidade já havia sido notada por Diderot no Supplément au voyage de Bougainville. Quanto a isso, a instituição familiar sempre tentou arrumar e tamponar esse impossível. Mas esse paradoxo, mascarado até então, tende hoje a aparecer claramente, pois a esfera do privado tende facilmente a se exibir, e a reivindicação do direito a gozar se afirma livremente; se revela, então, ao mesmo tempo, o real impossível em torno do qual a família era constituída. Mais ainda, nas famílias que nós hoje chamamos “hipermodernas”, chega-se até a pensar numa procriação “para além do sexo”. Assim, as relações sexuais, elas mesmas, se tornam separadas da gestação (especialmente com as procriações médicas assistidas).

 

Uma das consequências é que, na sociedade dita “pós-sexual”, a criança nascida sem ato sexual se torna objeto de direito ou de contrato quando não é pura questão de mulher. “Nós cortamos alguma coisa do pai”, notava Lacan (1994, p.350)[2] já há cinquenta anos. É preciso ver, nessa clivagem prazer sexual/gestação – e nas montagens das ficções jurídicas que as validam –, um progresso irreprimível das Luzes e do Direito contra o obscurantismo do segredo concernente ao desejo e ao gozo dos pais? O que se passa, a partir de então, para a criança que se vê tornar-se receptora do dever de transparência dos quais os adultos se dizem os portadores? Como se formulará essa exigência de transparência se, porventura, a tecnologia do útero artificial vier a se realizar?

 

No inconsciente, entretanto, a criança não cessa de colocar a questão de sua origem de ser vivo. O mistério da origem resta como aquele do sujeito. A criança particulariza a questão leibniziana “Por que existe alguma coisa ao invés do nada?” para uma “por que eu existo?”. Existe a “estúpida e inefável existência”. Existe o corpo falante, do qual nenhum saber objetivo pode esgotar o real. Fica a cargo de cada sujeito encontrar o significante mestre da sua existência.

 

Essa questão, a criança vai colocar buscando sempre desvendar o segredo da sexualidade dos adultos. O segredo do gozo parental é o lugar de uma cena primitiva, vista, ouvida ou fantasiada pela criança, e, como tal, é a tentativa de pensar o impensável. Freud foi o primeiro a reparar que esse enigma constituía o nó das questões infantis: o que fazem os pais na sua intimidade? Nós podemos então pensar que, no melhor dos casos, a criança reconstituirá a esfera do interdito, pois o recalque não se edifica da repressão do gozo; é o inverso. A família é, ela mesma, uma criação que se edifica do recalque, como evoca Lacan, que acrescenta: “Mesmo se as lembranças da repressão familiar não forem verdades é preciso inventá-las” (1956-1957/1994, p. 350)[3].

 

Igualdade e diferença 

 

Nós podemos constatar que a família hoje não é mais vista como uma estrutura da parentalidade assegurando a passagem da natureza à cultura através de interditos e de funções simbólicas, ou mesmo como manifestando a deserção da autoridade paterna, mas como um lugar descentrado e polimorfo. Como já podemos dizer, essa família horizontal parece “uma rede assexuada (…) sem hierarquia nem autoridade” (ROUDINESCO, 2002, p. 191)[4]. Em resumo, a família é pensada como o lugar de uma igualdade formal, sem princípio de garantia nem de diferenciação. Será ela a última das comunidades utópicas? A criança não é mais como pensava o poeta romântico Wordsworth, o pai do homem; ao invés disso, temos que nos haver com a criança companheira.

 

Se há igualdade, essa só pode ser no encontro da linguagem com o pulsional, como Lacan o sublinhava no seu Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: “Do ponto de vista da instância da sexualidade, todos os sujeitos estão em igualdade, desde a infância até a idade adulta” (1973). Eles não têm, com efeito, “que se haver a não ser com o que da sexualidade passa nas redes da constituição subjetiva, nas redes do significante” (LACAN, 1973). Podemos então nos perguntar se essa igualdade formal no seio das novas famílias não esconde um delírio social partilhado, aquele da possibilidade de se emancipar da diferença e, especialmente, da diferença dos sexos. É preciso dizer que a fascinação pelas explorações da ciência moderna não contradiz essa ideia, que fez com que Michel Houellebecq sustentasse essa proposição delirante: “Logo vai haver três, quatro, cinco sexos diferentes”. Chegará talvez um tempo em que nós poderemos escolher o sexo das crianças. Mas o desejo de ter uma criança – a ser distinguido de querer – faz objeção a “mesmidade” (LACAN, 1965)[5] do Outro, ao amor a sua própria imagem, que é a essência da simetria. Ele aposta na contingência da anatomia, do aleatório do momento, do encontro.

 

Do mesmo modo podemos dizer que o que é o real do sexo é não sabido; ele está em falta no saber no Outro, escapa a toda mestria; ele é “à exaustão impossível” (Ibid.)[6], diz Lacan. O que vem aí fazer suplência é o phallus; é ao falo como significante da falta que é atribuída a dissimetria entre os sexos. É na medida em que o instrumento de conjunção (a cópula) é negativizado no inconsciente que o sujeito entra na verdade do sexo. Esse viés se chama castração. Nesse sentido, há sempre desigualdade do sujeito a toda subjetivação de sua realidade sexual. O voto de igualdade sem diferença é, então, um delírio sobre a abolição da cópula.

 

De uma dita fraternidade 

 

Enfim, após a reivindicação de liberdade e de igualdade, não assistimos então ao aparecimento de uma falsa fraternidade contratual entre pais e crianças, que viria substituir a hierarquia implicada na lei do desejo? Se, com efeito, o pai não é mais essa figura “de peso” da história como havia pensado Freud, é a uma rede de aparência fraternal, em que cada um se sente “funcionalizado”, que parece a família. Essa forma de contrato é uma das figuras da própria ordem social, uma ordem social desde então sem transcendência, repartindo os lugares aos quais o sujeito se conforma em uma identificação às insígnias. Em 1974, Lacan notava que nós havíamos chegado a um ponto da história no qual o “nomeado à”, do qual o social detém o poder, se via ultrapassar o que era do Nome-do-Pai. Ele notava aí o caráter de “degeneração catastrófica” (LACAN, 1974)[7].

 

Esse “ser nomeado à”, perguntaríamos então, não é “indicado, traçado, projetado pela unicamente pela mãe?”. A mãe moderna não traduz o Nome-do-Pai por um não; ela pode agora bastar-se a si mesma para exercer essa função de “nomear à”. Essa mãe totalmente só não é o nome do gozo Da mulher colocada em posição absoluta, o que seria retornar a um aquém da essência classificatória devotada ao pai do nome e a um aquém do pai da aliança? Esse seria então o império ilimitado do gozo feminino para além do phallus, que daria o “a”. O contrato da ordem social, a fortiori o contrato fraternal pais-crianças, mascararia assim a ferocidade da “ordem de ferro” materna.

 

Como, desde então, a proibição do incesto pode ser ainda veiculada e, a função paterna, inscrita?

 

Se, como notava Lacan em 1971, as mães são incontáveis[8] – e não são os efeitos das novas tecnologias de procriação que poderiam o desmentir –, o mesmo não se pode dizer da função do pai, que, ele, resta “contável”.

 

Nesse sentido, não é a função do pai enquanto “valor de uso”, enquanto “utilidade social”, como Éric Laurent (2005)[9] havia observado, que pode conectar o desejo maternal faltoso ou seu gozo transbordante. Nem o jurídico, nem o biológico, nem mesmo o afetivo saberia responder de maneira apropriada ao que é a utilidade do pai, pois esse pai não é “de modo algum um ser consciente” (LACAN, 1973, p. 58.)[10].

 

Da mesma maneira, também não são com os “substitutos imaginários” do pai que as crianças se põem a forjar quando entram numa transferência analítica a que poderiam responder. Por esses substitutos, os sujeitos tentam simbolizar um real sem lei, inventar uma norma social de uso interno, mas essa ligação imaginária não parece ser suficiente para fazer um nó que segure. A partir de então a criança, confrontada cedo ou tarde à questão da emergência da sexualidade na puberdade, verá esse edifício desmoronar-se. O pai enquanto real permanece desconhecido. A ordem familiar, dizia Lacan, não faz senão traduzir que “o Pai não é o genitor” (LACAN, 2001c, p. 532)[11].

 

O que pode então a psicanálise, se um pai não vem particularizar em um desejo vivo o cuidado que ele pode assegurar à criança? É aqui que um analista pode, nos bons casos, fazer intervir uma nomeação que venha se sobrepor (e não se opor) ao real do gozo e permitir, assim, se servir dela, indo além do gozo. Certamente não é toda nomeação que pode ter essa função de particularizar o Nome-do-Pai em um desejo vivo. Entretanto, o analista, quanto a isso, não é menos requisitado em seu ato. O sujeito pode então reencontrar a falta, própria ao seu desejo, lá onde o peso do gozo do Outro havia feito traumatismo. Não há, portanto, nenhum conselho nem preceito geral do ato analítico, tampouco existem soluções ready-made face ao que fez carência paterna.

 

Assim, que a psicanálise tenha alguma coisa a dizer sobre a família não quer dizer que ela coloque a família no lugar. Ela permitiria, sobretudo, a cada um, reinventar sua família. Em todo caso, a psicanálise, se ela funda a liberdade de desejar, põe-se fora das promessas de liberdade e de fraternidade. É sobretudo no discurso analítico que nós podemos perceber o índice da fraternidade. Em 1972, Lacan dizia: “Não vos parece que esta palavra ‘irmão’, é justamente aquela a qual o discurso analítico dá a sua presença, ao menos pelo que ele traz da bagagem familiar?” Ele acrescenta: “Isso tem haver com muitas outras coisas e não somente a bagunça familiar. Nós somos irmãos de nosso paciente enquanto que como ele, nós somos os filhos do discurso” (LACAN, 1972)[12]. Não se trata aqui de uma relação “a eu e a mim” pois cada um sabe que ela pode ser “bastante conflituosa” (LACAN, 1966, p. 591)[13], nem de um contrato de boa intenção nem de bons sentimentos. É uma outra relação que está em questão.

 

Trata-se, sobretudo, enquanto somos filhos do discurso analítico, de sustentar com ele “o complô da verdade” (LACAN, 1974)[14]. A política da psicanálise consiste em liberar, contra “a ordem de ferro do nomear à”, o lugar da verdade; nós não podemos, com efeito, “ser nomeados à psicanálise” (LACAN, 1974)[15]. É o saber no lugar da verdade que pode se opor aos saberes que reinam na cidade.

 

Essa operação não é, entretanto, possível, senão porque, no interior de uma cura, o analista não é “um puro”. Sua posição tem “qualquer coisa de obscuro” (LACAN, 1968)[16]; ele sabe se fazer “o que o outro quer fazer dele” (LACAN, 1973, p. 58)[17] para permitir, no final, ao analisante, a báscula de sua posição e fazer nascer “o pivô no qual uma balança pode se estabelecer e que se chama justiça” (LACAN, 1972)[18]. O discurso analítico, só, permite “respeitar no Outro […] sua diferença, seu incomparável” (MILLER, 1997/1998)[19], que se esclarece a partir da destituição subjetiva; só, ele permite isso que Lacan um dia chamou “nosso irmão transfigurado que nasce da conjuração analítica” (LACAN, 1972)[20].

 

 

 

 


[1] LACAN, J. Les complexes familiares dans la formation de l’individu, Autres écrits, Paris, Le Seuil. 2001a.
[2] ______. Le Séminaire, livre IV, La Relation d’objet (1956-1957), Paris, Le Seuil, 1994.
[3] ______. Télévision, In: op.cit. 2001b.
[4] Roudinesco, E. La famille em désorde, Paris, Fayard, 2002.
[5] LACAN, J., Le Séminaire, livre XII, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, 12 mar. 1965, inédito.
[6] Ibid., 9 jun. 1965.
[7] ______. Le Séminaire, livre XXI, Les non-dupes errent, 19 mar. 1974, inédito.
[8] ______. Le Séminaire, livre XVIII, D’um discours qui ne serait pas du semblant, 19 jun. 1971, inédito.
[9] LAURENT, É. “Le nom-du-Pére entre réalisme et nominalisme”, La Cause Freudienne, No 60, Paris, Le Seuil/Navarin, jun. 2005.
[10] LACAN, J. Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1973.
[11] ______. Télévision, In: op.cit. 2001c.
[12] ______. Le Séminaire, livre XIX, …ou pire, 21 jun. 1972, inédito.
[13] ______. La direction de la cure et les principesde son pouvoir (1958), Écrits, Paris, Le Seuil, 1966.
[14] ______. Le Séminaire, livre XXI, In: op.cit. 1974.
[15] Ibid., abr. 1974.
[16] ______. Le Séminaire, livre XV, L’acte psychanalytique, 24 jan. 1968, inédito.
[17] ______. Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1973.
[18] ______. Le Séminaire, livre XIX, In: op.cit. 1972.
[19] MILLER J.-A. Séminaire de politique lacanienne, 1997-1998, inédito.
[20] LACAN, J. Le Séminaire, livre XIX, …ou pire, 21 jun. 1972, inédito.

ROSE-PAULE VINCIGUERRA
Tradução: Letícia Soares
Revisão: Luciana Andrade
Rose-Paule Vinciguerra é psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana.



Editorial Almanaque nº17

LUDMILLA FERES FARIA

Com vocês, o Almanaque 18, cujo tema “As novas configurações familiares”, com certeza, será de muito valor para nossos trabalhos rumo ao ENAPOL VIII – “Assuntos de família: seus enredos na prática”.

Em Trilhamentos contamos com a amável contribuição de Rose-Paule Vinciguerra, com o texto “A psicanálise em relação às famílias”, no qual a autora parte dos novos modelos de família, chamadas hipermodernas, para questionar se os efeitos da igualdade tendem a produzir uma indiferenciação sexual. Essa questão vai de encontro ao debate iniciado em nossa comunidade analítica rumo à XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – MG: “Inconsciente e diferença sexual, o que há de novo?”

Ainda em Trilhamentos, temos os textos de François Ansermet, “Avesso da Procriação”, e de Fabian Fajnwaks, “A família entre a ciência e a lei”. Os dois autores, cada um a seu modo, debatem os impasses subjetivos advindos do progresso da ciência e do discurso jurídico. Os casos clínicos apresentados demonstram a forma como a psicanálise pode contribuir para que os sujeitos inventem soluções para responder ao enigma de sua vinda ao mundo.

A rubrica Entrevista está imperdível! Não deixem de ler o que Marcia Tiburi, autora do livro “Uma fuga perfeita é sempre sem volta”, vai nos contar, de forma inédita, sobre o que constitui uma família. Sua afirmativa de que “é o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” é um fio condutor para o desdobramento de uma conversa que os instigará do início ao fim.

Na entrevista com Sérgio Laia, “O inconsciente e a família”, vocês verão a forma contundente com que o autor responde sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Recorrendo, em especial, ao texto de Lacan “Nota sobre a criança”, ele dará destaque “à função da psicanálise de amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias”. Agradecemos a Marcia Tiburi e a Sérgio Laia pela inestimável contribuição.

Em Incursões temos textos das colegas de Minas Gerais trabalhados nos espaços de investigação do IPSM-MG e da EBP-MG. Mônica Campos e Maria José Gontijo Salum abordam, através de estudos de casos e do filme “De cabeça erguida”, respectivamente, as possíveis conexões entre a psicanálise e o Direito e as saídas daí advindas. Já Márcia Rosa e Laura Félix Reis Maciel partem do postulado de Jacques-Alain Miller, segundo o qual a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais para questionar as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. O texto de Márcia e Laura nos serve, também, como uma guia de leitura da entrevista de Marcia Tiburi. Afinal, o que organiza uma família?

Em Encontros agrupamos as questões sobre a família em torno do vivo da clínica. Os autores Patrick Monribot, com “Esse X”, e Yves Depelsenaire, com “Grandeza e miséria de um nome”, apresentam a forma como o tratamento analítico possibilitou outros arranjos para os sujeitos lidarem com a herança familiar. Jean-Daniel Matet, em “Avatares e atualidade do complexo de castração”, faz uma releitura do conceito lacaniano “complexo de intrusão”. Vale a pena conferir!

Finalizamos este número em De uma nova geração, com duas ótimas contribuições das alunas do IPSM-MG: Ana Helena Souza, com o texto “Mentira e Ficção: o Discurso da Histérica, a Cura pela Fala e o Indizível do Sinthoma”, no qual recorre a uma obra de Samuel Beckett para investigar a relação do discurso da histérica com a mentira e a ficção, e o texto de Raquel Martins de Assis, que em “O amor pelo pai na histeria” retoma o paradigmático caso Dora de Freud e, a partir da leitura de Lacan, demonstra como o tema da armadura do amor ao pai se apresenta como uma importante faceta da histeria.

Agradecemos aos colegas que encaminharam seus textos, aos tradutores e aos revisores, sem os quais nosso trabalho seria impossível, assim como à equipe do Almanaque que, de maneira decidida, contribuiu para que este número fosse ao ar de tal forma, que pôde ser mais leve.

Desejamos que os leitores encontrem, neste número, pontos de pesquisa e de interesse que deságuem num debate profícuo dentro do nosso campo de trabalho.

Deixo com vocês o Almanaque 18. Bom trabalho!

Ludmilla Feres Faria
Diretora de Publicação



Almanaque V. 9 – Nº 17 2º semestre de 2015

É com prazer que lhes apresento o número 17 do Almanaque on-line. Neste número, damos prosseguimento às investigações iniciadas no Almanaque 16, em torno do tema da juventude. Ao percorrê-lo, vocês notarão o impacto que o texto “Em direção à adolescência”, de Jaques-Alain Miller, provocou em nossa comunidade analítica e a forma como ele mobilizou o desejo de elaboração e de transmissão sobre o tema. Leia o editorial…

TRILHAMENTO
Juventude à deriva <> Radicalização – Francesca Biagi-Chai

Amores líquidos, amores nômades: sobre as formais atuais da depreciação da vida amorosa – Ana Lydia Santiago e Jésus Santiago

Puberdade, adolescência e estrutura – Damasia Amadeo de Freda

ENTREVISTA
Almanaque on-line entrevista – Maria Isabel M. de Almeida

Almanaque on-line entrevista – Phillipe Lacadée

INCURSÕES
Um saldo de saber: do jogo aberto nas redes sociais à declaração de amor – Ludmilla Féres Faria (Relatora)

Comentário – Simone Souto

Drogas e imagens: novas adições – Lilany Pacheco (Relatora)

Comentário – Fernanda Otoni B-Brisset

O que fazer com seu corpo? – Sérgio de Mattos (Relator)

Comentário – Cristiane de Freitas Cunha

ENCONTROS
A química da libido – Samyra Assad

Filiação: demissão da autoridade, desamparo do adolescente – Mõnica Campos Silva

O real da puberdade e a saída da infância – Margaret Pires do Couto

Adolescência, o que é? – Roberto Assis Ferreira

Sobre a Saúde Mental: que instituição para os adolescentes? – Henri Kaufmanner

“Bons rolês e tudo o que for bom”: a gente não quer só comida – Raquel Guimarães e Virginia Carvalho

DE UMA NOVA GERAÇÃO
Histeria: do matema da fantasia ao discurso – Germana Pimenta Bonfioli.

O manejo da transferência diante da demanda dos pais – Marina S. Simões




Almanaque On-Line Entrevista – MARIA ISABEL M. DE ALMEIDA

MARIA ISABEL M. DE ALMEIDA
GIULIA PUNTEL

Habitar o trajeto: o paradoxo do nomadismo

 

Almanaque: Poderia nos falar um pouco sobre os seus últimos trabalhos? 

 

 

Maria Isabel: Concluímos uma pesquisa com jovens que se chama “Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas: uma reflexão comparativa do recurso às drogas no contexto da contracultura e nas cenas eletrônicas contemporâneas”, que foi uma pesquisa que nós fizemos aqui no nosso centro de pesquisas (Cesap) na Universidade Candido Mendes, durante quatro anos, trabalhando essa articulação entre cenas eletrônicas e substâncias sintéticas. E, para isso, frequentamos as raves. Em especial, pesquisamos a relação entre a música eletrônica e o uso do ecstasy. Também fizemos, no âmbito dessa mesma pesquisa, Fernanda Eugênio[i] e eu, outro trabalho sobre essa questão das drogas. Ou seja, nós revisitamos um grupo especifico, que nos anos 70 foi entrevistado por Gilberto Velho e deu origem a seu livro Nobres & Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia[ii]. Essas pessoas tinham, na época, uns trinta anos, e nós voltamos a entrevistá-las, agora em 2000, quando elas têm por volta de sessenta, sessenta e poucos anos. Queríamos saber a relação delas, no passado, com as drogas, para compararmos com a juventude de hoje.

 

Almanaque: Na época consumia-se o que?

Maria Isabel: Na época eles consumiam, sobretudo, cocaína e maconha e realizavam as viagens lisérgicas, faziam uso de ácido. Em seguida, fizemos a pesquisa que deu origem ao livro Noites Nômades[iii]. Estávamos perseguindo essa ideia da relação entre subjetividade e espaço, o subtítulo é justamente “espaços e subjetividades nas culturas jovens contemporâneas”. Todas as nossas pesquisas são atravessadas por essa ideia da etnografia, quer dizer, de estar lá, de acompanhar, de não se restringir a entrevistas, mas viver com eles aquela situação. Na época das drogas foi uma loucura, porque eu trocava a noite pelo dia, eu chegava nas festas por volta de meia-noite mais ou menos e saía no dia seguinte por volta das 11 da manhã, ficando acordada o tempo todo. No caso do Noites Nômades, tinha que acompanhar os circuitos pela night. A pesquisa começava na loja de conveniência e depois se dirigia para os espaços de lazer, para as boates. Aquele era um momento em que a tecnologia estava começando com muita força, então havia toda uma capacidade deles usarem, lançarem mão da tecnologia para mudarem de espaço o tempo todo. Com o celular como fonte básica dessa tecnologia, eles ligavam para as galeras de outros bairros perguntando se as coisas lá estavam “bombando”. Tinham essa capacidade de esvaziar os espaços em segundos e também de ressemantizar o sentido dos espaços. Por exemplo, a porta, além de ser um lugar que une o dentro ao fora, também se torna um “point” onde eles ficavam e ali estabeleciam toda uma rede de sociabilidade.

 

Almanaque: Um ponto de passagem?

Maria Isabel: Além da passagem, um lugar onde eles se fincavam, onde eles se estabeleciam, não entravam, nem saíam, e ali virava um “point” de sociabilidade. As portas como espaços muito mais de fixação, quer dizer, toda uma capacidade de deslocamento e um tempo de transformar o deslocamento numa espécie de residência, isto é, eles habitam o trajeto. Esse habitar o trajeto também se reflete nas práticas afetivas, no “ficar”, por exemplo.

 

Almanaque: Em seu livro Noites Nômades, você apresenta esse paradoxo a partir de uma frase que nos interessou muito: “o nomadismo não se contrapõe à territorialidade”.

Maria Isabel: É uma ideia de Deleuze, para quem o nômade é aquele que não se desloca, ao contrário, está sempre habitando o trajeto, se reterritorializando na desterritorialização, quer dizer, ele se reterritorializa na desterritorialização. Então, no fundo, o nômade, paradoxalmente, é aquele que não se mexe.

 

Almanaque: Você pensa que podemos dizer que existe essa mesma espécie de nomadismo na escolha sexual? Temos visto muitos jovens que afirmam que gostam de ficar tanto com meninos quanto com meninas.

Maria Isabel: Temos sim relações mais lábeis e mais plásticas, mais no campo das meninas do que dos meninos. No campo das meninas, onde havia um lacre muito menor em relação ao “sou gay” e muito maior em “estou gay”, o “estou” está no lugar do “sou”. No caso dos meninos, talvez até por conta da sociedade brasileira, havia uma ideia de uma cristalização maior. Pela questão do machismo, para o menino que é gay voltar à condição de hetero é sempre uma coisa mais difícil, no sentido de como ele é pensado e agido no seu grupo. Com as meninas percebo uma capacidade, uma suavidade, maior nesse traslado, nessa mudança. No caso deles, percebemos menos. No sentido da subjetividade, acho que tudo converge para uma diminuição da dimensão entitária do ser, do ente. Temos uma significativa rarefação da ideia de unidade, da identidade una, indivisível, substancial, encapsulada, mas, ao contrário, temos uma porosidade muito maior. Não temos mais como carimbar a identidade “eu dançarina de tango”, “eu professora de matemática”, ou “eu gay”. Gay é uma das facetas que constituem o que eu sou.

 

Almanaque: A partir dessa labilidade nas relações e nos espaços que você destaca, como podemos pensar a relação entre dependência e autonomia que também encontramos nos jovens de hoje?

Maria Isabel: Os jovens são muito autônomos e não independentes, ou seja, isso caracteriza uma fronteira, um divisor de águas muito grande em relação à geração jovem contracultural, ou à geração que foi jovem nos anos 70, para a qual essa ideia de autonomia só era possível – até por uma questão de ênfase muito maior na ideologia, na visão de mundo que informava aqueles valores –, só se daria inevitavelmente, com a conquista da independência. Hoje você vê jovens absolutamente autônomos, donos das suas vidas, conhecendo tudo, dominando a tecnologia, até ensinando aos pais sobre esse mundo da tecnologia e, ao mesmo tempo, absolutamente retidos, sedentarizados, presos à questão financeira, numa total dependência. Então, hoje, esses dois aspectos podem ser combinados. Se você pensar em cinquenta anos atrás, não seria possível de se combinar, porque você só teria o estatuto de autonomia se fosse independente, se saísse de casa.

 

Uso das drogas: ruptura ou empresários de si mesmo?

 

Almanaque: A relação dos jovens com as drogas também mudou, desde os anos 70?

Maria Isabel: Essa diferença entre as gerações aparece muito clara no uso das drogas. É uma porta de entrada para entender a subjetividade, o contraste entre a geração que consumiu drogas nos anos 70, uma geração para quem a droga gerava um emburacamento definitivo. As pessoas muitas vezes tinham que parar de trabalhar, não conseguiam mais estudar – era um pouco aquela ideia da viagem sem volta, o tipo de visão escapista do mundo. Na pesquisa em que fizemos, vários entrevistados diziam ouvir o choro do filho e que era desesperador, porque eles não podiam fazer nada. Isso revela um nítido contraste com a geração dos anos 2000 que consumiu drogas, mas numa perspectiva de continuidade da vida e não de ruptura, do não emburacamento.

 

Almanaque: Por quê?

Maria Isabel: Porque eles, como disse um informante, de quem até hoje me lembro, numa rave, lá em Pedra de Guaratiba: “Ah! Olha, isso aqui que vocês estão vendo, essa rave, a diferença disso aqui para Woodstock é que na segunda-feira eu tenho que estar lá engomadinho no trabalho”. Ou seja, ele tem que manter as duas frentes. Então eles têm uma expertise imensa de como tomar a droga, como contracenar e dosar com a quantidade de água, como fazer a relação entre a cápsula do ecstasy e seu peso. Eles são pequenos empresários de si, possuem uma facilidade de administrar a conduta. É claro que muitas vezes acontece de baixar no hospital, mas possuem um padrão mais regular de conduta, que é contrário ao da geração dos anos 70, cujo consumo de drogas tinha um prazo de validade. Essa geração atual, na manhã de segunda-feira deve estar na faculdade, por isso não vai tomar a dose maior do ecstasy no domingo, vai tomar no sábado. Domingo eles vão precisar dormir bastante e não vão deixar de se hidratar. É muito diferente. É o grande divisor de águas entre o escape, o evadir-se, o sair daquela realidade. E hoje, a droga da presença, da “você está ali como jamais esteve”, como nos disse um desses jovens, é a droga que presentifica inteiramente a realidade do sujeito. Nessa hora eles não estão se evadindo de nada, nem embarcando em uma viagem sem volta, nem se opondo à realidade. Inclusive, essa dimensão de oposição, de antagonismo, é muito mais branda do que a ideia genuína da oposição que caracteriza o sentido de resistência predominante nos anos 70.

 

Almanaque: Pode-se perceber tal mudança também no que diz respeito ao envolvimento político dos jovens hoje? É menos revolucionário? Mais adaptado?

Maria Isabel: Ah, sim, com certeza. A categoria do desafio, da resistência, da oposição, se abrandou muito, porque a ideia de negociação e de composição com determinadas realidades é muito mais norteadora da subjetividade desses jovens. Por exemplo, nas realidades ligadas hoje à sustentabilidade, à ecologia, eles não pensam em parar de consumir, mas vão consumir menos, com mais noção, com mais regramento, sabendo o que vão consumir. É uma ideia muito próxima à ideia de resiliência, e não da resistência. Tudo é muito mais composto, adaptado, negociado. Não é mais a ideia de se tomar um caminho ou outro, são caminhos mais associados, adicionados, do que essa perspectiva matricial da contracultura, que é: ou você realmente é parceiro da luta armada ou você é um mauricinho preocupado em ganhar dinheiro, jogar na bolsa e, no final do mês, só pensar em mercado de capitais. Acho que isso aí realmente alterou muito as mentalidades. Um caminho como esse, como a luta armada, implicava a absoluta exclusão de todos os outros, e acho que hoje esse jovem já tem toda uma capacidade de compor várias trajetórias, sem que elas impliquem em contradição.

 

“Ver a escolha com olhos menos cativos”

 

Almanaque: Então, como enxergar a realidade dos jovens hoje com novas lentes em relação e essa dimensão da escolha?

Maria Isabel: É preciso não ver a escolha desse imaginário dos anos 60 com olhos ainda muito cativos, ou seja, enxergar a realidade sem essa contaminação. Para enxergar a realidade atual desses jovens, precisamos nos desfazer desses mapas que orientaram a nossa geração, senão a gente realmente não vê. Tem muitos autores que encaram o contemporâneo muito pelas lentes de uma espécie de nostalgia do que foi o ideal, os anos 60. A própria ideia do indivíduo em si, como ente, é uma coisa que hoje se desfaz. A gente vê inclusive essa ideia do “estou” versus o “ser”, do “estar” versus o “ser”, que imprime uma marca muito maior na arquitetura subjetiva hoje. Acho que é uma problematização mais rarefeita, mais simplificada. Não há um excesso de problematização e reflexividade sobre si, sobre os destinos. No lugar de uma carga narrativa, descritiva, temos uma espécie de comunicação fática, apenas algo que nos une ali naquele momento, que nos sutura. Uma interjeição ou outra, mas que não é realmente aquilo que a gente entenderia como a formação mesmo de uma comunicação baseada na ideia de uma categoria discursiva, tal qual era recorrente décadas atrás.

 

Almanaque: Hoje, no congresso da AMP, Viveiros de Castro nos contou que, se desejarmos nos aproximar de uma tribo indígena para aprendermos sua língua, após um período inicial, os índios vão recomendar que comamos a comida deles. Mais três meses, e eles dirão: “comam nossas mulheres”. Ainda assim, três meses depois, recomendarão o uso de suas drogas. É como se eles dissessem que não se pode aprender a língua sem colocar o corpo em cena. Para aprender a língua, a observação é insuficiente, é preciso ser “um dos nossos”, entrar com o corpo.

Maria Isabel: É! E por isso um pouco essa ideia de um trabalho de pesquisa em antropologia, muito menos cativo do que essa ideia de você ir lá e entrevistar, pra depois dizer para o jovem quem ele é. Quem é você pra dizer a ele quem ele é ou explicar o que ele faz?! A gente tenta uma imersão muito maior na dimensão relacional daquele contato, realmente.

 

Almanaque: Como foi realizada a pesquisa em festas raves? O que estava em jogo?

Maria Isabel: Era uma pesquisa de campo, uma etnografia. Eu não ia entrevistar esses jovens nas suas casas, queria entrevistá-los em ato. Queria vê-los consumindo drogas, vê-los em estado ou não de mobilização pelas drogas, vê-los dançando com a música. Nesse sentido pude ver, por exemplo, muitos que prescindiam da droga para dançar ou até para entrar em suposto êxtase, como eles diziam. A música em si já atuava nesse sentido. Outros tomavam a droga mas faziam vários desenhos performáticos com o corpo. Um grupo fazia uma dança que era chamada “almôndegas”, um tipo de exercício em que todos ficavam em círculo, de braços dados, e faziam movimentos quase que de sístoles e diástoles; se recolhiam todos e, depois, se abriam, como se fosse uma flor que fechava e abria. Depois eles dormiam muito. Tinha o momento que eles chamavam de “chill out”[iv], para descansar até a hora de ver um DJ específico que eles queriam.

 

Um novo ritmo: ovos com bacon

 

Almanaque: Atualmente qual pesquisa você está fazendo?

Maria Isabel: A última foi sobre a questão da criatividade, da primeira experiência profissional. Trabalhei com dois grandes grupos de jovens, jovens ligados a grupos basicamente de profissões mais executivas e empresariais, e jovens mais ligados ao lado lúdico, artístico: jovens que trabalhavam com arte, com cinema, com literatura. Percebe-se uma nova maneira de trabalhar desses jovens. Não existem mais fronteiras muito nítidas entre dia de semana e fim de semana, entre dia e noite, entre casa e trabalho. Percebe-se um movimento de contaminação recíproca muito grande, um profundo entrecruzamento de criatividade e profissionalização, ou seja, a ideia de profissionalização da criatividade e criativização da profissão. Ou seja, os jovens cuja opção profissional se alocava nos universos mais hard, mais duros, ligados ao mercado, aos bancos, às profissões executivas, tinham que, efetivamente, ser criativos para funcionarem bem, e os outros, os artistas, tinham que se profissionalizar. Uma irrigação mútua dos dois territórios. Interessante que vimos que a colaboração e o compartilhamento são circunstâncias muito mais fortes entre os jovens ligados a profissões executivas do que entre os artistas que ficam muito mais subservientes ao núcleo do autor, a quem é o autor. Por exemplo, os jovens que trabalham nas incubadoras científicas, as incubadoras de projetos, são muito mais capazes de descentralizar a autoria. Nos jovens do mundo artístico, a gente percebeu muito mais um atrelamento à coisa de “quem deu a ideia”, “quem é o autor”, “é minha e ninguém tasca”, ao eu, “fui eu que bolei isso”, “eu que inventei”. Sendo que a própria invenção hoje é uma coisa cada vez mais remota, porque tudo na sociedade contribui para algo ser criado. Não existe mais essa capacidade asséptica de dizer “aquilo foi exclusivamente feito ou pensado por mim”, o tempo todo a tecnologia te atravessa. Essa pesquisa está no livro que coordenei junto com um grande especialista da juventude em Portugal, José Machado Pais[v]. Fernanda Eugênio e eu escrevemos o artigo “Criatividade situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas práticas profissionais contemporâneas”[vi], no qual apresentamos uma discussão sobre tempo e espaço, essa coisa do estresse atual dos jovens, isso de eles procurarem uma equação ideal entre o lúdico e o trabalho. Uma jovem fala que ela está fazendo um doutorado em relações internacionais, mas que era também DJ e poeta. Toda essa coisa também da multiplicidade, da geração slash (“barra”): Poeta/videomaker/bailarina/pintora. Ela diz que em algumas circunstâncias da vida, trabalhar é como fazer ovos com bacon, porque tem vezes em que basta ser galinha, ou seja, a galinha põe o ovo e pronto. Isso equivale a um tipo de trabalho mais suave, no qual você tem o controle do seu processo e do seu ritmo, mas tem outras horas em que você é porco, tem que dar tudo de si, tem que entrar com tudo, como o porco, que entra com sua vida. Para fazer o bacon, ele tem que morrer. Isso demonstra como é que eles orquestram e graduam suas vidas em termos do esforço que aplicam no trabalho. Tudo isso é pensado, medido, muito diferente da ideia de “vai com tudo”, típica da contracultura.

 

Almanaque: Mas não tem, por outro lado, um mandato superegoico sobre esses jovens, de que eles têm que ter sucesso, têm que dar certo, têm que ganhar dinheiro?

Maria Isabel: Esse binarismo implacável entre o “winner” e o “looser” tem sido muito repensado. Peter Sloterdijk, autor da sociologia, da filosofia, define a modernidade como um processo de mobilização infinita, quer dizer, do progresso, da produção. Esse processo está ligado a uma relação ininterrupta com o tempo, à impossibilidade da “paragem”, um aceleracionismo permanente. Na linha contrária a essa da mobilização, temos o desmobilizar, ou seja, gerar intervalos, parar, tomar distância. Nós pesquisamos muito esses retiros de silêncio, que estão agora no auge. Jovens que estão optando por retiros de silêncio em áreas absolutamente reservadas ficam 10 dias inteiros em silêncio, fazem meditação e uma revisão de tudo ligado ao consumo, ao excesso.

 

Almanaque: Qual a justificativa para esses retiros? O que os jovens procuram?

Maria Isabel: Muitos vão pra organizar a vida, outros vão pra dar uma parada, um outro diz que foi porque terminou com a namorada, ou porque foi a um carnaval muito intenso e pirou, precisava descansar. São muitas demandas, muito adaptadas aos cotidianos de cada um. O que se destaca é essa ideia de baixar, de gerar um intervalo, de menorizar, de diminuir. A ideia de ganhar distância em relação à realidade. Estou preparando um livro sobre essa pesquisa das desmobilizações – que não é a ausência de mobilização, mas é essa ideia de contraponto a uma mobilização infinita. Eu trabalhei muito com retiros, foi uma pesquisa muito ligada à internet, sobre inúmero sites que eu coletei de jovens que estão tentando produzir alguma coisa que seja uma contrapartida a essa ideia da aceleração, em todos os níveis. Tem milhões de coisas. Tem o processo do homeschooling – essa ideia de você passar a ensinar ao seu filho em casa –, o questionamento da ideia do ritmo tradicional do ensino, de certa maneira pouco humanizado e muito competitivo; tem a ideia das feiras, nas quais você basicamente troca coisas ou pode pegar coisas sem que haja veiculação pecuniária – mas isso não elimina por completo a ideia da troca; há também as pessoas que hoje conseguem trabalhar viajando e ter um prazer muito maior, porque trocam muitas vezes um local que seria um pago, como um hotel, pela capacidade de cuidar da casa de alguém que viaja. Todas essas permutas, essas trocas. A comida, por exemplo, tem muitas experiências… Em Portugal, uma dessas experiências chama-se “fruta feia”. Frente à desesperança de muita gente com a crise, em relação à sociedade, neste momento, eles têm milhões de iniciativas, em geral de jovens. Essas frutas feias são aquelas que os estabelecimentos não querem, porque são imperfeitas, e então são vendidas pela quinta parte do preço. Essas frutas são tão boas quanto, só que têm defeitos. Vendem então nas praças, e tem um sistema de cooperativa enorme sobre isso. Há ainda a questão das compostagens, que são adubos feitos em casa. Há também as buscas deliberadas de solidão. Não a solidão como uma condição que caiu sobre o indivíduo sem ele querer e ele está totalmente isolado, solitário, mas as solidões deliberadas, não só do retiro de silêncio, mas as mudanças para o campo.

 

Almanaque: De fato há uma diferença entre solidão e isolamento, não é a mesma coisa.

Maria Isabel: Exato, ou a solidão acontecida versus a solidão deliberada.

 

Efeitos políticos dos corpos trepidantes: trabalhar com o que se tem

 

Almanaque: Qual o efeito político dessas práticas?

aria Isabel: Eu acho que é muito político. Hoje, por exemplo, em relação à cartilha e à ideia do queer – acho que passa por aí realmente, até no sentido de que, não sei se chega a ser um rótulo, mas é um rótulo do não rótulo –, nesse movimento você não consegue pegar e dizer: é isso, é trans, é homo, é gay, é não sei o quê. A coisa da Judith Butler e da Beatriz Preciado, as duas autoras que mais trabalham nessa linha. Então eu acho que isso diminui a segregação entre os jovens, sim.

 

Almanaque: Interessante que, diferente de outros autores, você não faz uma leitura pessimista desse momento dos jovens, ao contrário.

Maria Isabel: Ah, sim, completamente diferente de autores como Bauman, por exemplo, que realmente vê que tudo está líquido, nada fica em pé. Realmente, eu acho que são autores que estão presos a certas circunstâncias ideais que eles viveram e em relação a qual tudo hoje parece fenecer ou está ruim, estragou. Uma coisa do pânico moral, um Baudrillard, por exemplo.

 

Almanaque: Você acha que tem uma potência nesse novo? Tem uma invenção em cena?

Maria Isabel: Eu acho, com certeza. Isso é outra coisa. Trabalhar com o que tem, como o “se virar”, não tem mais aquela coisa da carreira, “um dia eu vou conseguir fazer alguma coisa”, etc. Essa noção de escada, de degrau a degrau, até você chegar. Hoje essas coisas não podem, não estão mais funcionando assim, são poucas as carreiras, a ideia de carreira. Eu fui num congresso, há pouco tempo, em Portugal, que era sobre essa questão do crepúsculo, dessa ideia do especialista, daquele que vai de degrau a degrau numa escalada. Hoje você sente que a horizontalização e a capacidade de se virar e de trabalhar com o que está diante de si é muito mais imperiosa do que essa ideia de esperar ou de galgar longas etapas.

 

Almanaque: E quando você fala jovens, qual faixa etária considera?

Maria Isabel: De 20 aos 40. Você não tem mais como se basear no IBGE, de 18 a 24 ou 25, porque realmente implodiu essa questão. Até porque a juventude perde a sua ancoragem cronológica e vira um estado de espírito. Todos querem ser jovens.

 

Almanaque: Podemos dizer que o nomadismo acaba sendo uma ferramenta que pode ser utilizada para ler todas essas práticas dos jovens?

Maria Isabel: Acho que é uma categoria que ajuda, sim. Ajuda na medida em que ela se contrapõe realmente até a visão literal do sedentário, do fixado, do territorializado, e também da hierarquia, mas não é um deslocamento do tipo dos não-lugares, do Marc Augé. Eu acho que há uma ressemantização dos lugares, por exemplo, os “points”. Eles recriam e reconfiguram, na cidade, espaços que, em geral, poderiam ser decodificados de uma forma fixa e tradicional, e que eles atribuem toda uma significação desvinculada às sociabilidades e aos tipos de agregação do momento.

 

Almanaque: Ou seja, esses locais são locais libidinizados, com uma carga de afeto, como você sugeriu, enquanto Marc Augé trabalha espaços sem identidade, como os aeroportos.

Maria Isabel: É, por exemplo, os postos de gasolina, que Augé também cita, é o início do circuito da night jovem, lugar da primeira calibragem, inclusive alcoólica. Era ali que realmente começava o chamado comboio e implicava sempre em atribuir sentido, graça, humor ou diversão a alguma coisa inerte, à qual não havia sido atribuído nenhum sentido, nenhuma significação, e que dependia realmente da interação entre eles. Por exemplo, transformar, de repente, o estacionamento de um hortifrúti em um campo de futebol, à meia-noite, ou ficar na escada de um prédio esperando outros amigos. Isso era o “zoar”, que tem uma dimensão de gratuidade, de transformação e de ocasionalismo muito grande.

 

Almanaque: E como você acha que a linguagem acompanha esse novo modo de se relacionar com o espaço?

Maria Isabel: A linguagem é muito mais rarefeita do que a forma de comunicação tradicional. Hoje ela é muito mais empírica, sensória, performática. Basta ver, por exemplo, a questão do corpo do jovem. Hoje o corpo é muito mais trepidante, ou seja, agitado por todos esses apelos e ao mesmo tempo pela simultaneidade dos estímulos de telefone, de som, de barulho de celular, barulho de televisão, computador. Há uma atenção profundamente descentralizada e que não prejudica a atenção. Uma socióloga argentina, Beatriz Sarlo[vii], diz que “só a curta duração retém a atenção”. Um jovem hoje, com essa trepidação do corpo, é muito difícil de ser visto numa cadeira, mesmo que seja confortável, ou numa poltrona, por duas, três horas, lendo um livro só. É impossível, a motórica corporal dele não permite; é uma agitação, é uma dispersão, é um outro corpo, realmente muito mais voltado para o oposto da metáfora da ampulheta, que vai de cima para baixo, acompanhando um movimento de verticalização da atenção. O que hoje se observa com mais frequência é uma descentralização e um espraiamento muito maior da atenção.

 

Almanaque: Interessante! Perguntamos sobre a linguagem, e você responde com o corpo. Nosso congresso é sobre isso mesmo!

Entrevista realizada em abril 2016, por Bruna Albuquerque e Ludmilla Féres Faria
Transcrição e edição: Bruna Albuquerque, Lisley Braun Toniolo
[i] Fernanda Eugênio – Pós doutora em antropologia e Pesquisadora Associada do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP-UCAM-IUPERJ, Rio de Janeiro). Fernanda Eugênio e Maria Isabel M. de Almeida. Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas : uma relfexão comparativa do recusro às ‘drogas’ no contexto da contracultura e nas cenas eletronicas contemporâneas. In: Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura (Org. Maria Isabel M. Almeida e Santuza Cambraia Naves) . Rio de Janeiro: Editora 7 Letras.
[ii] VELHO, G. Nobres & Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia? Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998.
[iii] ALMEIDA, M. I. M.; TRACY, K. A. Noites Nômades. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003.
[iv] Chill out: termo da língua inglesa que significa “relaxar totalmente”, “esfriar”. Usado pelos jovens para um momento de descanso, esfriar o corpo, relaxar.
[v] José Machado Pais, cientista social e professor universitário português. É licenciado em Economia e doutorado em Sociologia, é Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Professor Catedrático Convidado do ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa. Subdiretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do Senado da Universidade de Lisboa.
[vi] EUGENIO, F. Criatividade Situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas praticas profissionais contemporâneas. In: Criatividade Juventude e novos horizonte profissionais (org. Maria Isabel M. de Almeida e José Machado Pais). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-277, 2012.
[vii] Beatriz Sarlo lecionou literatura argentina na Universidade de Buenos Aires (UBA). Autora de Cenas da vida pós-moderna, intelectuais, arte e viodeocultura na Argentina. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. 2000

Maria Isabel M. De Almeida
Socióloga. Pós-doutora em Sociologia pela Universidade Paris V – René Descartes Professora do departamento de Ciências Sociais da PUC-RJ Coordenadora e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Ucam. Autora, entre outros livros de Noites Nômades( Rocco) e Culturas Jovens -Novos mapas do afeto. ( Jorge Zahar) E-mail: isabelmendes2008@gmail.com



Puberdade, Adolescência E Estrutura

DAMASIA AMADEO DE FREDA

 

ÉDER OLIVEIRA: SÉRIE SEM TÍTULO 2005

 

A puberdade é um momento de grandes transformações, tanto físicas como psicológicas. Conhecemos as consequências psíquicas que essas transformações acarretam, a tal ponto que Freud não duvida em considerar esse momento uma verdadeira “metamorfose” da subjetividade.

A respeito das transformações físicas, Freud enfatiza o que acontece exclusivamente no que diz respeito aos órgãos sexuais, tanto internos como externos.

Vale destacar que tais transformações abrem possibilidades concretas que antes não existiam – a reprodução, por exemplo – e modificam a imagem de si de uma forma inédita até o momento. A isso se soma o fato de que a força pulsional, sublimada durante o período de latência, volta a catexizar as zonas erógenas sexualizadas desde a primeira infância e se concentra, sobretudo, nos órgãos sexuais que foram afetados pela completa transformação.

Freud disse muitas coisas importantes sobre esse período. Por exemplo, põe o acento no vai e vem da libido, do eu ao objeto e vice-versa, e adverte sobre os transtornos que poderiam suceder ao indivíduo se a libido se conformasse em ter o eu como único objeto. Um transtorno semelhante suporia a fixação libidinal em uma zona erógena em detrimento do órgão fálico.

Freud destaca que, nesse período, há um despertar das fantasias infantis, que haviam tido como finalidade dar uma resposta às interrogações típicas da infância – castração, sedução, cena primária. A tais fantasias acrescenta, agora, uma nova – mito do nascimento do herói –, que facilita o desprendimento da autoridade, processo fundamental para a passagem à idade adulta. Indica que tais fantasias são objeto da libido até que esta encontre e aceite um objeto novo fora do Outro parental. Adverte também sobre o fato de que as fantasias são precursoras do sintoma.

Indubitavelmente, esses indicadores freudianos são muito orientadores na clínica com púberes e adolescentes. Ainda que também saibamos que, na atualidade, tal clínica muitas vezes desconcerta o psicanalista.

O psicanalista se encontra regularmente com manifestações novas, as quais às vezes o desorientam. Por exemplo, a respeito da questão diagnóstica. Muitas vezes é pelo mesmo desconcerto que essa clínica lhe proporciona, que se precipita em querer elucidá-la por meio do diagnóstico.

Por exemplo, não faz muito tempo, quando uma paciente se apresentava ao analista com a prática da “automutilação”, em geral não se duvidava em diagnosticar uma psicose; logo, quando os sintomas próprios de tal estrutura não acompanhavam o quadro, se saia do atoleiro com o diagnóstico de psicose ordinária, sempre pronto para todo uso.

Hoje já não podemos continuar considerando a prática da automutilação um índice de psicose. O corte forma parte de uma prática amplamente estendida no campo da puberdade e da adolescência feminina, e, se os quadros são muito variados, as causas alegadas por aqueles que a praticam não deixam de ser obscuras.

O analista não desconhece que há aí um problema de quantidade, porque são as mesmas pacientes que o indicam. Elas falam de uma angústia, às vezes de uma tensão ou de uma energia que não podem dominar, e o corte vem funcionar como sangria, porque o sangue e a dor, produto da ferida, dão um destino ao excesso e um sentido ao que, na grande maioria dos casos, é um ponto de falta de significação. Que a falta de significação seja o correlato da falta de um significante, é indubitável. Que a falta de um significante concirna ao significante do Nome do Pai, isso não podemos assegurar e menos ainda generalizar. Agora, talvez essa prática generalizada nos indique que o significante do Nome do Pai, como articulador central da estrutura, começa a perder seus privilégios. Não seria desatinado pensar que essa prática é um indicador do declínio do Nome do Pai, ainda que não tanto na estrutura, mas na civilização, o qual repercute na noção de estrutura, relativizando-a.

Outra manifestação da atualidade é a passagem da heterossexualidade à homossexualidade e vice-versa, em púberes e adolescentes do gênero feminino, como meio de obtenção do gozo sexual. Sem dúvida, esse tipo de passagem mostra que o falo não é o órgão diretriz para a obtenção do gozo sexual. É possível que daí se deduza que o significante é fálico, e, portanto, a significação fálica esteja, no mínimo, modificada. Porém, que tudo isso desemboque em um diagnóstico de psicose, tal como se poderia depreender da leitura estruturalista de Lacan sobre as consequências na significação fálica no que diz respeito à presença ou ausência do Nome do Pai na estrutura, já não é tão certo. Quer dizer, hoje em dia não podemos deduzir de maneira unilateral de tais manifestações na sexualidade, própria dos púberes e dos adolescentes da época, um diagnóstico de psicose.

Outro exemplo, em vias de extinção, são as tribos urbanas, em que o que caracteriza o grupo são os traços semelhantes de seus integrantes. A diferença do que ocorre nos grupos sustentados graças a uma exceção, cujo protótipo é a figura do líder que viria representar e ser o porta-voz de uma ideia ou de uma ideologia, nas tribos urbanas não é a identificação ao traço do Outro o que possibilita a identificação entre os membros. Nesses bandos, a imagem de si e do outro se confundem até desintegrar-se em uma massa com um nome que os agrupa (emos, floggers). Observa-se claramente, nesse tipo de manifestação, como a ordem simbólica é substituída por uma ordem imaginária. Porque em tais agrupamentos não são os ideais nem as ideias que os comandam, portanto se compreende a inexistência daquele que cumpriria a exceção de transmiti-los. É simplesmente a vestimenta, os piercings, as tatuagens, o corte de cabelo, o penteado ou a maquiagem que permite identificar o grupo, e também são esses traços o que o mantém unido. Embora seja típico da puberdade e da adolescência o agrupar-se, e que em tal agrupamento esteja a tendência a igualar-se, existir um predomínio pronunciado do imaginário sobre o simbólico é o que o torna novidade. Que esse exemplo é um índice da modificação da ordem simbólica própria da nossa época, é evidente; que é índice do declínio do Nome do Pai, também. Porém, que daí se possa concluir que os púberes e adolescentes que integram ou integravam as tribos urbanas são psicóticos é um exagero, sem dúvida.

Por último, o fenômeno cada vez mais corrente do alistamento de púberes e adolescentes dispostos a matar e a se destruir em um único ato suicida-criminoso, em nome de um Um totalizador. O que podemos dizer desses casos que se estendem pelo mundo de um modo temível e sinistro? Que oferecer-se em sacrifício a um Outro incorpóreo é um delírio, não há nenhuma dúvida; que a pulsão assume, nesses casos, uma forma mortífera que não se vincula em nada com qualquer forma de sexualidade, quer dizer, que não há espaço para que se estabeleça um vínculo libidinal de objeto, parece evidente. Que a concentração da libido no eu seja a outra face da imolação ante um Deus obscuro, é muito possível. Porém, que esses jovens sejam psicóticos, no sentido lato do termo, é algo que não podemos assegurar, porque são muito raros, para não dizer inexistentes, os exemplos nos quais uma divisão subjetiva de qualquer índole pudesse vir a se colocar em questão ante tão radical eleição, para então conduzi-los a um psicanalista.

Esse último é um bom exemplo para o psicanalista atual; é um bom exemplo para lembrar-lhe que sua ação deve formar parte de uma política na qual um de seus fins seja interpretar o melhor possível a subjetividade da época, para poder incidir nela. Desse modo, o psicanalista poderá estar protegido de não errar além da conta em seu ato e, assim, poder integrar sua ação em uma causa que, embora se dirima no caso a caso, também pode apontar mais além do singular. Porque uma interpretação que abarque o conjunto permite elucidar a prática individual do mesmo modo que a prática individual contribui para esclarecer o conjunto. E é necessário, mais do que nunca, para o psicanalista, estar à altura da subjetividade desta época, difícil de interpretar.

Para finalizar, entendemos que a ideia freudiana da puberdade e da adolescência não dá elementos suficientes para se orientar na clínica atual. Ao contrário, consideramos que o último ensino de Lacan pôde contribuir para uma melhor leitura da subjetividade atual e que os púberes e os adolescentes são também a subjetividade da época. Sobretudo, vemos que se trata de uma subjetividade que já não parece responder aos parâmetros estruturalistas e deterministas com os quais nos regíamos, e, nesse sentido, vemos borrar-se as estruturas clínicas. Ao contrário, a noção de estrutura borromeana, cujos registros RSI se regem pela orientação e pela ordem, como único índice do predomínio de um sobre o outro como forma de fazer frente a um real, nos parece ser mais afim à clínica atual com púberes e adolescentes.

 

 

TRADUÇÃO: Kátia Márias
REVISÃO: Ernesto Anzalone

 


Damasia Amadeo De Freda
Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: damasiamadeo@fibertel.com.ar



Amores Líquidos, Amores Nômades: Sobre As Formais Atuais Da Depreciação Da Vida Amorosa

ANA LYDIA SANTIAGO E JÉSUS SANTIAGO

 

FOTO : GIULIA PUNTELFOTO : GIULIA PUNTEL

O interesse dessa investigação clínica é buscar tratar a especificidade das formas atuais da depreciação da vida amorosa nas sociedades em que prevalece o fenômeno das vias democráticas do individualismo de massa[1]. É essencial mostrar que tais formas de depreciação não se esclarecem sem o devido tratamento do chamado individualismo de massa que, a nosso ver, é parte inerente dos diversos estilos de vida amorosa dos jovens, estilos marcados pela fluidez, inconstância e errância. Para captar o que vai de um lugar para outro e que se movimenta à vontade entre os jovens, utiliza-se, com frequência, a propriedade da fluidez pertencente aos estados da matéria líquida e gasosa. Tornou-se, assim, usual empregar a “leveza” ou a “ausência de peso” como atributo para fornecer os contornos do caráter lábil, frágil e inconstante dos atuais trajetos e rotas que definem a vida amorosa entre os jovens[2].

 

Amores líquidos

 

No entanto, não nos parece suficiente dizer – como quer a sociologia contemporânea – que o poder de derretimento da modernidade com relação aos valores e referências identificatórias que regiam as gramáticas afetivas tradicionais, seja fruto de uma mera quebra na verticalidade das relações sociais. Ao contrário de tais formulações, importa ressaltar em quê esses novos estilos encarnam uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera dos diversos modos de gozo. Se o que era a tradição e o padrão dos modelos do relacionamento amoroso se desfaz, irrompe, ao mesmo tempo, um variado leque de soluções que se traduzem pela interferência do individualismo de massa sobre o discurso e as práticas afetivas e sexuais dos homens. O psicanalista deve estar atento ao caráter inovador desta multiplicidade de soluções, que se expressa pelo imperativo de que cada sujeito deve identificar-se com sua própria diferença. Em outras palavras, o sujeito se vê obrigado, nos dias de hoje, a sobrepor-se a inexistência do Outro, com o recurso de algum significante-mestre (S1) que se apresenta como individualizado e pulverizado.

 

INDIVIDUALISMO DE MASSA –––––> S1s individualizados e pulverizados

 

Ao propor que a crise atual de nossa civilização se traduz pela inexistência do Outro, não se quer dizer que se trata apenas de uma crise que atinge o domínio do saber. Na época das mutações provocadas pelo discurso da ciência, a transformação do Outro, de seus ideais e do Nome-do-Pai em ficção, se estendem para o âmbito de uma crise que extrapola a ordem dos sentidos e dos valores de uma dada civilização. Ao contrário disto, ambiciona-se com a tese da inexistência do Outro, evidenciar que tal crise concerne o real inerente aos modos de gozo do sujeito, imerso no mundo em que o Nome-do-Pai e seus ideais se transmutam em semblantes. É por isso que, sob o fundo de uma angústia, o sujeito moderno introduz um questionamento que se repercute nas mais diversas esferas da vida, sob a forma do que é o real. É nesse sentido que não se deve privilegiar apenas a face negativa dos efeitos da inexistência do Outro. A conexão desses dois termos conflitantes e contraditórios, entre si – o individualismo e a massa –, constitui uma maneira de interpretar a face positiva, ou seja, as vias de respostas possíveis ao real do gozo, por meio de uma identificação com algum significante solto e isolado. É visível que o emprego desse sintagma paradoxal surge para aprofundar, ainda mais, o diagnóstico que compreende o mal-viver atual entre os sexos como uma resultante da inexistência do Outro[3].

A homossexualidade é exemplar do que vem a ser essa injunção do enxame de significantes-mestre individualizados, sobre as relações amorosas e sexuais em geral. Não é sem razão o fato de que a investigação sociológica universitária sobre os gêneros se mostre dominada, em escala mundial, pelos chamados “gay and lesbian studie” ou o “queer studies”[4]. O modo como a homossexualidade se configura, nos anos sessenta, por meio do movimento gay é uma prova de que a oferta de um significante-novo, capaz de captar o que transita no mercado do gozo, é suficiente para efetuar-se uma identificação que se designa como comunitária[5].

Com a emergência da nova norma homossexual gay, com o que se designa por essa identificação comunitária, fica para trás uma visão homossexualidade fortemente impregnada pela noção de inversão, cuja prática se exerce, de forma clandestina e, com o uso de uma fantasia particular[6]. A montagem discursiva que se instaura com a adoção do significante gay assume consequências para as práticas sexuais em geral, inclusive para os jovens, pois, o amor homossexual afirma-se como o ícone de um estilo de vida hedonista moderno, orientado pelo binômio prazer e liberdade. O sintoma social da homossexualidade gay torna-se, assim, modelo da representação máxima do casal igualitário em que não se exige a regra da coabitação, e não apenas, por não estar condicionada pela exigência da procriação, mas, também por estar desembaraçada das contaminações sentimentais das acepções românticas do amor. Em suma, fica-se com a impressão que se do lado da rotina dos héteros, tem-se o tédio, a tristeza; do lado do gay, a festa, o carnaval e as coisas divertidas.

Não há dúvidas de que a propagação desta nova norma homossexual, na vida social, contribuiu para tornar pouco credível a inclusão da sexualidade em uma ordem natural fixa e pré-estabelecida. É cada vez mais fora de moda, não admitir a homossexualidade como um estilo de vida similar a outros, como uma escolha de objeto que, apesar de ser minoritária, é tão defensável quanto outras. Como se pode constatar, não é à-toa, o fato de que o movimento dos homossexuais que, realizou e adotou a construção do gay, pôde desalojar do saber psiquiátrico, qualquer alusão diagnóstica normativa baseada na categoria de perversão. E o psicanalista, que posição ele adota com relação a essa repercussão subversiva, até então inédita, das práticas homossexuais com relação às normas que fixam e regulam os laços afetivos já existentes.

 

Amores nômades

 

É possível ainda, na abordagem das configurações atuais da depreciação da vida amorosa, tomar um outra direção, para apreender o que vem a ser uma tal inovação nos estilos de vida e nos modos de relação afetiva das novas gerações. Trata-se do que Gilles Deleuze e Félix Guattari designam com a marca contemporânea do discurso capitalista, a saber, o nomadismo, que como se sabe é concebido como uma máquina de guerra[7]. Refere-se ao caráter não-sedentário das relações amorosas como uma máquina de guerra porque estas agenciam do exterior e independente do moralismo centralista e falocêntrico do Estado, outras intensidades, fluxos territórios e enunciações.

Sob esse ponto de vista, o nomadismo, segundo Deleuze,

“(…) é uma forma de estar no mundo que subverte as expectativas sociais e as estruturas hegemônicas identificadas com o Estado. Esta “máquina de guerra” nômade apresenta três aspectos: um aspecto espacial-geográfico, um aspecto organizacional e um aspecto afetivo. A caracterização do nomadismo como um modo de ser específico está ligada à territorialidade, ou seja, à espacialização da experiência (social e subjetiva) em termos de deslocamento e não de fixação, como é o caso das existências sedentárias.” [8]

Em vez de fixar-se em um ponto do espaço, transformar-se em um lugar, como faz o sedentário –, o nômade não tem um território fixo e delimitado, pois, segue trajetos contingentes e vai, incessantemente, de um ponto a outro[9]. Para os filósofos, o deslocamento e a não fixação da existência sedentária nas relações afetivas exibe algo voltado para o mundo exterior e se prolifera na forma de descargas rápidas de emoções. Se os afetos são tanto projéteis, como armas, é porque, não apenas se diferenciam, mas desterritorializam a pretensa solidez dos laços e sentimentos amorosos do passado. A multiplicidade da máquina de guerra nômade, presente nos afetos, não se exprime pela simples via da pluralidade, mas, sim, pela capacidade de “desterritorializar” os anseios e as estruturas das relações instituídas pelo Estado e suas diversas formas de agenciamento das intensidades e dos fluxos da vida. A pluralidade, segundo eles, não é a multiplicidade.

O nomadismo deleuzeano suscita inúmeras e variadas reflexões em diversos âmbitos do pensamento contemporâneo. É possível tomar contato com o diagnóstico que ao buscar interpretar a componente nômade do discurso amoroso atual, privilegia o seu viés de impasse, fazendo sobressair o pessimismo. Sob essa ótica, o nomadismo revela a falência do referencial histórico para a compreensão dos fenômenos, a falência das categorias de emocional e racional para sua análise e, mesmo, a insuficiência da referência ao amor ao pai, para dar conta das transformações que se processam na vida íntima das novas gerações[10].

É visível a dificuldade destas análises para captarem os amores nômades, visto que se baseiam em uma perspectiva calcada no fio contínuo e linear da história do que tem sido os nomes infinitos do amor. Acrescenta-se, ainda, que a ideia de progresso e de razão mostram todo o seu limite quando há algo do passado, que retorna e se instala com certo vigor. Em relação à análise desse fenômeno, tudo leva a crer que as categorias racionais sobre as quais se edificam tais interpretações são instáveis e imprecisas, pois, a emergência do nomadismo, na esfera do amor, mostra que este deixou de constituir-se como exceção, para tornar-se uma realização efetiva e independente de suas expressões tradicionais[11].

 

O amor e a “não-relação”

 

Importa, contudo, abordar o nomadismo na vida amorosa tendo como guia, para o enfoque dos fenômenos de dessimetria no amor, a categoria lacaniana da “não-relação”. A maneira como a “não-relação” entre os sexos se exprime no contexto dos amores nômades assume consequências, até então, inéditas, para o psicanalista. Chama a atenção, para além da desterritorialização, as expressões não-sedentárias do amor que agudizam o fato clínico de que se a mulher equivale a um sintoma, para o homem, este último, por sua vez, é para uma mulher, fator de devastação. Ao contrário do que muitos podem pensar, para dar conta das vias atuais das relações sintomáticas entre os sexos, não cabe ao psicanalista simplesmente abandonar as categorias do inconsciente, do amor ao pai, do Édipo e outras, com o argumento de que se tornaram caducas[12]. Na verdade, elas estão mais vivas do que nunca, desde que, evidentemente, saibamos refundá-las e retratá-las com o que a clínica nos fornece cotidianamente como a marca do real próprio do sintoma que dissolve, sem cessar, o seu envoltório formal. Já conhecemos o que o último ensino de Lacan fez com o amor ao pai: mais do que desfazer-se dele, buscou-se mostrar em quê ele se mostra insuficiente e em quê é preciso ir além. É o que se traduz pelo aforismo: prescindir-se do pai, com a condição de saber servir-se dele.

É, nesse sentido, que cabe introduzir a questão: Como não captar, no nomadismo da vida amorosa, algo que se apresenta para além das ideias centradas na ruptura radical com a verticalidade das relações sociais? Para o psicanalista importa ressaltar, no nomadismo, o fato de que ele encarna uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera do amor. Como se exprime J.-A. Miller, haveriam, assim, labirintos do amor[13], o que torna ainda mais difícil a tarefa de nomeá-los. À diferença do discurso histérico, as novas formas de discurso amoroso – dentre as quais se inclui a homossexualidade masculina ––, não são baseadas e nem articuladas pelo amor ao pai.

O que se evidencia, no discurso atual, a propósito das relações amorosas entre os jovens, é que eles não amam. Ouve-se dizer: “Os jovens não conferem duração a seus namoros”; “O jovens não constroem frases com sujeito e predicado”; “Não há outro adjetivo para qualificar a vida de alguns adolescentes, que o da promiscuidade.” Essa atmosfera de mal-estar impregnada nos discursos dos pais e dos adultos em geral a respeito da forma de amar na atualidade, destaca o que vem sendo nomeado, nas análises da pós-modernidade, como o “pânico moral”. Ora, não cabe ao analista ter essa resposta diante do que se apresenta como um novo modo de vida. Até mesmo os pais que durante o tempo de suas juventudes introduziram uma verdadeira revolução em relação à geração precedente, reagem com um certo espanto. A indiferença, o individualismo, a falta de vergonha e pudor, e a perda da condição crítica dos sujeitos, apenas escamoteiam a indignação deles, diante da inexistência de um sentido referencial qualquer às identificações parentais. Isso vai de encontro com a constatação de que, nas últimas décadas, os homens se parecem mais com seu tempo que com seus pais[14].

“Na boate, as mulheres saem pra ficar com os caras e os caras saem pra pegar mulher. Neguinho já entra na pegação, entendeu? É a guerra.”, testemunha um jovem informante nos relatos de pesquisa antropológica, sobre o espaço e a subjetividade nas culturas nômades contemporâneas. Pode-se extrair desta pesquisa, algumas outras passagens, que, a nosso ver, caracterizam algumas identificações e posições de gozo, que não deixam de gerar uma variedade distinta de mal-estar e sintomas.

 

A derrisão do amor

 

Mais importante do que o caráter de transitoriedade e de intensidade volátil das relações dos jovens, que aparecem pelo emprego do “ficar”, parece-nos sugestivo ressaltar o lado derrisório e irônico, que se exprime no contexto mais amplo das configurações nômades. Muitas vezes, a diversão da night torna-se um “zoar”, que também implica um movimento de gravitação. Assim, “zoar” é “estar solto”, perder a censura”. “É deixar rolar”[15]. Zoar é você chegar com um monte de amigo seu e um ficar pegando mais mulher que o outro. Isso pode, inclusive, transformar-se numa competição, como o testemunha um outro jovem da pesquisa:

“Mulher que nego pega é o que mais mexe com o ego da pessoa. Se nego pega uma mulher gata…, (…). Eu tenho um amigo que a gente saía para pegar mulher feia também (…) Os outros é que escolhiam a mulher para o cara: aí, tem que pegar aquela. E tinha que passar de mão dada.[risos] (…) Chega num lugar que está horrível, o que agente pode fazer para animar a parada, entendeu? Pô, vamos pegar um monte de mulher feia, vamos fazer estas mulheres felizes? E você vê que as mulheres ficam amarradonas. [risos] E o ambiente fica legal.[16]

Esse depoimento mostra que os jovens procuram “ficar de boa”, neste turbilhão de gozo, que os faz passar rapidamente de um objeto para outro. O “não saber” em relação ao outro sexo, característico do início da puberdade, perdura-se. Poder-se-ia pensar que o “ficar” se apresenta como uma solução para este “não saber” angustiante: não saber como se aproximar do outro sexo, como aborda-lo, o que dizer, o que perguntar, o que conversar. Enfim: “O que fazer com o outro sexo?” Entretanto, o que ocorre é uma supressão da palavra, em detrimento de uma prática de gozo. Não é raro a conversa reduzir-se à uma sondagem sobre a possibilidade de alguém ficar com alguém, ser bem sucedida. E essa suspensão da palavra, que cumpre a função de adiar o encontro amoroso, não deixa de produzir uma série de sintomas, dentre os quais se destaca a inibição total da vida amorosa.

Portanto, a queda na crença de um sentido para as relações entre os sexos, que se insere no terreno movediço da inexistência do Outro, apenas favorece os efeitos do individualismo de massa no amor. É o que faz com que em nome do individual, cada um se torne o empresário de seu próprio desejo.

Pode-se dizer que este aspecto da auto-gestão do gozo na esfera da vida amorosa expressa os dois princípios básicos sobre os quais repousa o individualismo: (1) a liberdade individual, ou seja, o direito de se preocupar em primeiro lugar com a condição dos indivíduos da sociedade e, não, com a condição da própria sociedade; e (2) a autonomia moral, segundo a qual cada individuo deve fazer uma reflexão individual, sem que suas opiniões sejam ditadas por um grupo social qualquer. (Comunitarismo)

Diante dessa anulação do Outro social – ou dos referenciais simbólicos que organizam as relações –, é evidente que a instalação desse mercado atual das formas de gozo e do amor não acontece sem criar fontes para a redistribuição e o surgimento de novos sintomas e novas angustias. Esta inflexão da multiplicidade das soluções amorosas, acarretam como consequência a adoção do imperativo de ter que se identificar com sua própria diferença, de tentar se virar, custe o que custar, com um significante-mestre individualizado. Se os amores nômades interrogam a pulverização dos significantes-mestres, antes disponíveis e propostos pelo campo do Outro, isto não evita o fato de que ao fazer-se mestre de seu gozo; por outro lado, o sujeito “se faz objeto” para o outro, se faz de escravo para o seu parceiro. Este “fazer-se objeto” para outro, no caso do sujeito feminino, pode assumir proporções do que nomeamos como a devastação feminina.

 

[1] MILLER, Jacques-Alain. Psicanálise e política. In: Opção lacaniana, nº 34, outubro 2002.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. P. 8-9. O autor escreve: “Associamos ‘leveza’ ou ‘ausência de peso’, à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leve viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. Essas são razões para considerar ‘fluidez’ e ‘liquidez’ como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade.”
[3]MILLER, Jacques-Alain. El otro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
[4]BERSANI, Leo. Homos. Repenser l’identité. Paris: Editions Odile Jacob,1998.
[5]MILLER, Jacques-Alain. Des gays en analyse? Intervention conclusive au Colloque fanco-italien de Nice. In: La Cause freudienne, nº 55, p. 83.
[6]LAURENT, Eric. Normes nouvelles de l’homosexualité. In: La Cause freudienne, , nº 37.
[7] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 11-110.
[8] Ibid. p. 50-62.
[9]Em entrevista realizada para a edição italiana do “Mil platôs”, Deleuze revela que poderia ter escolhido como subtítulo do livro: “História universal da contingência”.
[10] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. In: ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 11-16.
[11] Ibid.
[12] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. Op. Cit., p. 11-16.
[13] MILLER, Jacques-Alain. Labirintos do amor. In: Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº56, agosto 2006, p. 14-19.
[14] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro. Contraponto, 1997.
[15] ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. P.125-128
[16] Ibid. p. 129

 


Ana Lydia Santiago E Jésus Santiago
Ana Lydia Santiago Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: analydia.ebp@gmail.com – Jésus Santiago Psicanalista, Analista da Escola em exercício (AE) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail:jesussan.bhe@terra.com.br