As imagens na Clínica e nas instituições

CRISTIANA PITTELLA E MARGARETH COUTO

 

 

A investigação do tema das imagens proposto pela Seção Clínica do IPSM-MG “As imagens na clínica e nas instituições: ver, fazer, mostrar”, em consonância com a do VII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (Enapol) “O Império das Imagens”, nos traz uma série de questões que atravessam cotidianamente nossa clínica com crianças tal como afirma seu argumento: “as imagens, em certo sentido, se sobrepuseram às palavras e assumiram o poder de ordenar, comandar e organizar nossas ações” (SOUTO, 2014).

Qual a função das imagens para o ser falante? Como essas imagens afetam seu modo de satisfação, suas identificações e suas escolhas de objeto?

Quais as consequências para a forma de apresentação dos sintomas? De que maneira podemos tratar pela palavra aquilo que se apresenta sob o domínio das imagens? Essas são indagações propostas a cada um dos núcleos e que permite à Psicanálise se inserir nesse campo de debate a partir de sua especificidade: a relação entre a imagem e o real.

I – O Domínio Das Imagens Na Cultura

Vivemos uma verdadeira proliferação e profusão de imagens. O consumo das imagens – via diferentes tecnologias, das mais antigas, como a televisão, até as mais modernas, como a internet e seus diferentes dispositivos de redes sociais para captação e publicação de imagens – reforça a noção de estar junto, enfatiza o ideal comunitário assim como uma fascinação pela vida do outro, um imperativo de fama e celebridade. Cria-se a ilusão de que não estamos sozinhos ou de que compartilhamos do mesmo mundo. Esse turbilhão de imagens formando um espetáculo onde tudo deve ser filmado, mostrado e visto, constitui um verdadeiro império das imagens.

Hector Gallo, no terceiro Boletim do Enapol, lembra-nos que a palavra império, tomada do latim imperium, denota ordem, mandamento, soberania. Evoca, portanto, as noções de poder, comando e domínio. Para ele, afirmar que assistimos, no século XXI, a um império das imagens, supõe considerar que estamos submetidos a tudo aquilo que se localiza do lado da representação, da aparência, da virtualidade, daquilo que se pode ver, e do semblante.

Até mesmo o saber científico que foi constituído sob a base de ir além do dado perceptivo rendeu-se ao poder da imagem. Cada vez mais os diagnósticos médicos baseiam-se na evidência de imagens. A hipótese diagnóstica, fundada na história sobre o sintoma, contada pelo sujeito, tornou-se obsoleta.

Quando Guy Debord escreveu A sociedade do espetáculo (1967), analisava o discurso midiático, principalmente o da televisão, de criar o poder do espetáculo. Para ele, o espetáculo concentra todo olhar e toda consciência, afirmando toda vida humana como simples aparência. O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo. O mundo real transforma-se em imagens e o espetáculo é uma tendência a fazer ver o mundo que não pode ser tocado diretamente.

O momento de teorização de Debord supõe uma cisão entre o mundo real e o mundo das imagens, e seu trabalho denuncia o exagero da mídia que ultrapassa sua função de comunicar chegando aos excessos, criando uma espetacularização da realidade.

Para ele, a lei fundamental desses tempos espetaculares seria “Se uma coisa existe, já não é preciso falar dela” (Debord, 1997, p. 170): basta ver! Enfim, a imagem substitui a palavra, e o princípio do fetichismo da mercadoria se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens. No pensamento de Debord, o espetáculo das imagens impediria o acesso ao real.

Entretanto, para Gérard Wajcman, autor do livro L’oeil absolut (2010), na contemporaneidade assistimos a uma mutação sem precedentes na história humana com a introdução de um novo regime do olhar. Para ele, o mundo tornou-se um imenso campo do olhar, onde tudo se mostra. Trata-se de uma ideologia surgida nas últimas décadas do século XX, sustentada pelas ciências e aliada aos avanços tecnológicos cujo imperativo é: “todo o real deve ser visto”. Isso supõe a visibilidade do real de modo que nenhuma opacidade possa resistir ao Olho absoluto. Essa ideologia que exalta o princípio de transparência e a suposição de que o real seria inteiramente transparente se estendeu em todos os domínios da sociedade. A consequência dessa máxima é que tudo que não pode ser visto não existe: “máxima do Instagram: publico, logo, existo”. Trata-se não mais de uma espetacularização do mundo, tese desenvolvida por Guy Debord em 1967, mas de uma big brotherisação, uma exigência de visibilidade. O mestre pretende hoje ter o poder de ver tudo. Somos olhados o tempo todo, tornando-nos vítimas ou atores, objetos e agentes desse olhar. Para ele, as câmeras de videovigilância são as armas desta época.

Se a criança era um ser antecipado pelas palavras, aquele de quem os futuros pais falavam de seu desejo ou temiam a vinda de um filho, a criança era imaginada. Hoje a criança é vista; antes de vir ao mundo se encontra imersa em um mar de olhares das máquinas tecnológicas: um feto é primeiro um ser virtual, uma imagem apresentada e vista nas redes sociais. “O olhar posto na imagem do feto cria a criança”. As imagens médicas inventam um novo nascimento, nos diz Wajcman, e a consequência, ele ressalta, é a crença de que seríamos solúveis no visível, sem restos.

Quais os efeitos da presença desse Olho que pretende ver tudo – na vida, no modo de satisfação e na produção do sintomas contemporâneos? Como o gozo de modalidade escópica incide na subjetividade da criança e do adolescente nos dias de hoje?

Poderemos também investigar como algumas mães angustiadas, ajudadas pelas tecnologias e pelo mercado, encarnam hoje esse olho – vigiam seus filhos, espionam e o devoram com os olhos. Na tentativa de desangustiarem-se, objetificam as crianças.

Na entrevista concedida à Marie-Hélène Brousse, Wajcman discute a esquize, proposta por Lacan no Seminário, livro XI, entre o olho e olhar. Afirma que, na atualidade, haveria uma tentativa de eliminar essa cisão estrutural e que talvez se trate, em nossa época, mais de uma sujeição do olhar ao domínio do olho que tenta tornar-se mestre, vigilante, mas que, porém, nada olha. Enfim, encontramos uma multiplicação das próteses do olho e uma deterioração do olhar.

Para Wajcman, a ascensão do objeto olhar ao zênite social, ou seja, à posição de comando, implica mais um olho sem sujeito, um olho considerado quase em seu estatuto Real, um Olho Absoluto. Trata-se da redução da dimensão do olhar (da castração), enquanto uma pulsão escópica, a uma questão da visão, que é uma preocupação tecnológica.

Wajcman pergunta-se o que faz a psicanálise em um mundo onde prevalece a exibição generalizada dos sujeitos, onde se está não somente invadido pelo olhar do mestre, mas também pela exibição generalizada dos sujeitos. Ele reivindica o direito de esconder e propõe uma nova circunscrição à opacidade, pois vivemos em uma época em que nada mais fica oculto ou em silêncio. Lembra-nos também de que há uma estruturação subjetiva que resiste e que parece irredutível: a divisão do sujeito entre imagem e aquilo que escapa a isso, entre o que pode ser enquadrado e o que não pode se enquadrar. A grande questão na atualidade é como esse sujeito se encontra nesse discurso, nessa ideologia que pretende o contrário, que pretende abolir a sua divisão como sujeito e que exige que tudo deva ser visto.

Assim, se essa proliferação da imagem serve à tentativa de eliminar a cisão estrutural do sujeito, fazendo crer que, por meio das imagens, seria possível um domínio do real, cabe à investigação clínica localizar como cada um poderá resistir e/ou fazer uso da oferta das imagens como uma solução.

II – As Imagens Na Psicanálise

O Estágio Do Espelho: Velar O Real

O animal tem um saber instintual inscrito no real do corpo. A partir do encontro com a imagem de outro animal – seja visual, olfativa, auditiva –, ele saberá o que fazer: se deve atacá-lo, defender-se, copular etc. Esse saber indica um funcionamento cuja estrutura – como a de um nó entre o imaginário e o real – lhe garante um comportamento adequado. É o caso da pomba, que tem a ovulação desencadeada quando vê um congênere ou sua própria imagem refletida em um espelho; entretanto, quando isolada, não ovula. Com os pavões também, as fêmeas escolhem para copular os machos que ostentam as maiores e mais fartas caudas!

E para o ser falante, qual a importância da imagem?

Lacan se interessa pela etologia justamente para pensar o poder real de uma imagem para o ser falante, ou seja, aquele que não possui instinto.

Sabemos que o simbólico preexiste ao sujeito – seu nome e a constelação de sua vinda ao mundo –, mas ele terá que construir seu nó: sua realidade e seu corpo. Sua experiência inicial é, portanto, de um caos pulsional, de uma fragmentação.

Com a formalização do estádio do espelho, Lacan (1949) verifica que a imagem tem um poder de realização, ou seja, em condições específicas, a imagem produz efeitos reais.

O estádio do espelho constitui-se como um processo de identificação, ou seja, a transformação no sujeito quando ele assume uma imagem e a reconhece. Trata-se de uma imagem exterior – refletida no espelho ou encontrada em um outro semelhante –, que vela e dá unidade ao corpo fragmentado. O narcisismo em Freud é justamente um ato psíquico que se constitui pela projeção de uma superfície corporal, trata-se da experiência fundamental da formação de um eu. Do que se trata esse ato psíquico, qual a condição específica para que a imagem realize esse poder de unificar o corpo? Como se dá esse laço entre a imagem e o real?

Lacan nomeia esse processo de espetáculo cativante. É um momento de constituição do eu e também um momento lógico da estruturação da subjetividade a partir do Outro. O ser falante, dada a prematuração do humano, depende do Outro como nenhum outro animal. Desse modo, a função da imagem compensa o inacabamento anatômico e a verdadeira prematuração específica do nascimento no homem. Porém, a unificação do corpo fragmentado pela imagem só se dá através da identificação à palavra veiculada pelo Outro materno, que indica e confirma uma imagem para a criança: Você é assim! O espelho é, portanto, o Outro!

Nesse sentido, não é indiferente a relação que o sujeito estabelece com o Outro, com a linguagem. O sentimento de vida, de ter um corpo, de ser alguém, o modo como experimentamos o mundo e o sexo… é a linguagem que permite articular. O real e o imaginário não vêm enodado para ele, o ser falante vai assim constituir seu nó com o Outro. Os registros do imaginário e do real vão se enlaçar pelo espelho, constituindo-se simultaneamente o eu, o corpo e o sujeito.

O estágio do espelho, assim, instaura uma discordância fundamental entre a imagem do eu antecipada como totalidade no espelho e a prematuração biológica da criança, ou ainda o caos pulsional. Isso coloca o eu numa dependência do outro, criando uma situação de desamparo e de discórdia com esse outro.

Como afirma Lacan:
o estádio do espelho revela um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência à antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (Lacan, 1949/1998, p. 100)
A criança, portanto, inicialmente não experimenta seu corpo como uma unidade; ela só terá uma antecipação da unidade quando reconhece sua imagem no espelho, produzindo-se uma identificação imaginária que constitui o eu, e essa operação implica um primeiro enodamento do imaginário e real. O espelho é, assim, um primeiro aparelho do gozo; o corpo experimentado como caótico passa a ser recoberto por uma imagem unificada.

Enfim, ao assumir uma imagem, supera-se a discordância gerada pela imaturidade neurológica que se torna velada pelo imaginário. A imagem cumpre a função de tela para aquilo que não se pode ver. O sujeito faz uso da natureza narcísica da imagem para tratar o que experimenta de real, a experiência de despedaçamento.

Imagens Rainhas: Condensar O Gozo

Para Miller (1995), haveria imagens que dominam no imaginário, imagens que condensam o gozo organizando o caos pulsional. Ele nomeou essas imagens de “imagens rainhas”, indicando três: o próprio corpo, o corpo do Outro e o falo.

A imagem do corpo, constituída no estágio do espelho, é o que confere ao eu a sua primeira forma. Portanto, a primeira subjetivação é da forma do corpo.

O corpo do Outro, segunda imagem rainha, é aquele sobre o qual lemos a castração, castração óptica. Essa forma presta-se a uma formalização significante, pois é suporte de uma presença e de uma ausência.

O falo, terceira imagem rainha, não é o órgão masculino, mas sua forma erigida e transformada em significante. É do falo que derivam os objetos chamados fetiche.

O conceito de imagem rainha ou a realeza da imagem revela a função da imagem de captura significante do gozo, indicando a incidência do simbólico sobre o imaginário. São imagens que buscam fixar o gozo e que estão sob o Império do Olhar, ou seja, diz respeito ao poder da imagem de localizar o gozo.

Poderíamos nos perguntar então se a deslocalização do gozo, presente nas crianças psicóticas, poderia ser explicada pela ausência da imagem rainha concernente ao corpo próprio e ao falo.

Para Miller (1995), Lacan propõe uma nova teoria da imagem na medida em que o campo da percepção é interrogado por ele a partir do desejo e do gozo. Até o surgimento do objeto a, o campo da percepção foi abordado a partir do recalque. Haveria uma espécie de cegueira sobre o gozo. Com o surgimento do objeto olhar como objeto a, Lacan restabelece a pulsão no campo escópico. Não mais reduz o imaginário, o escópico, ao especular, o que significa não mais pensar a partir do espelho.

Assim, indica que se por um lado, a imagem tem a função de localizar o gozo, por outro, a natureza narcisista da imagem se mostra insuficiente para dar conta das experiências com o gozo.

Imagem E Objeto A: Quando As Experiências Com O Gozo Perturbam A Imagem

Lacan complexifica o estádio do espelho com o esquema ótico ao introduzir o Outro – o simbólico – pelo espelho plano, espaço que opera enlaçando o imaginário e o real, possibilitando essa identificação.
Simbólico

Eu I ISSO
Imaginário I Real

Não basta, portanto, que exista o objeto espelho para que haja o estádio do espelho; a imagem pode estar refletida, mas a criança não se identifica a ela, pois o espelho não está funcionando como a ordem simbólica. Verificamos isso, por exemplo, em alguns fenômenos, como quando a criança olha através do espelho não se reconhecendo na imagem. Muitos são os casos em que esse enodamento entre real e imaginário não se faz tal como na clínica do autismo.

Para que haja o entrelaçamento entre imaginário e real, é preciso duas condições ligadas ao simbólico:
– que o sujeito (o olho) esteja em determinada posição o espelho plano;
– que Outro esteja bem situado, a 90 graus.

Estar bem situado indica que o Ideal do Eu está operando como garantidor da ordem simbólica, e o sujeito estar posicionado em determinado lugar indica sua alienação ao Ideal do Eu. A criança não consegue fazer essa operação sozinha, é necessária uma ordem exterior ao sujeito, o olhar do Outro (Ideal do Eu) que confirme à criança que essa imagem que ela vê lhe corresponde, que esse é ele, o lugar desde o qual a criança se olha (juízo de existência freudiano).

Quando há inclinação do espelho ou quando o sujeito não se encontra em determinada posição, produzem-se muitas variações e distorções da imagem especular. Há muitas gradações no enlaçamento entre o imaginário e o real em que sintomas clínicos – como a depressão, anorexia, bulimia, angústia, agressividade e automutilação– revelam um desenlace ou um enlace frouxo dos registros.

O laço entre o Outro (simbólico), o imaginário e o real se faz através das zonas erógenas (boca, ânus, falo, olhar, voz), portanto, pelas experiências de gozo relacionadas ao corpo que Lacan nomeou de objeto (a) e não à imagem. Os objetos (a), quando estão compondo a unidade do corpo com a imagem, adquirem um valor fálico, significante; mas quando não pertencem à imagem eles provocam angústia ou horror, adquirindo valor de real.

Quando eles não estão incluídos na imagem que lhes dá um valor de beleza – ou de singularidade, interesse de raridade ou um valor qualquer – são puro real, e então funcionam mais em relação com o caos do organismo. Será importante investigarmos esses aparecimentos dos objetos (a) quando eles provocam um desenlace do nó e como o sujeito consegue reenlaçá-lo. A cisão entre o objeto e a imagem articula-se no Seminário, livro X: a angústia. Lacan apresenta o objeto a como aquilo que escapa ao campo especularizável. Quando algo da ordem do objeto irrompe no campo especular, surge a inquietante estranheza e a angústia antagônica à estrutura do eu.

Lacan considera a pulsão escópica como paradigma do objeto a e, a partir do Seminário, livro XI, resignifica o estágio do espelho ao falar da falta constitutiva no espelho, ou seja, a falta do próprio corpo. A imagem em si mesmo comporta um vazio que é invisível.

Em seu último ensino, Lacan retoma o valor do imaginário. Ele aparece como suporte da consistência do corpo. A imagem do corpo tem, portanto, a função de manter juntas as peças avulsas (ESPINEL, 2009).

A clínica do autismo também nos ensina muito sobre esse desenlace entre o imaginário e o real ao ponto extremo de a criança ficar parada para que nada se mexa (em seu extremo, o catatonismo) – para que o Outro não se mexa. Encontramos também as construções de corpo singulares que visam a tratar o gozo que retorna nas bordas no autismo, no corpo na esquizofrenia e no Outro na paranoia. A criança não encontra assim, no Outro, um olhar de onde pode olhar-se e reconhecer-se no espelho – I(A)o –, não produzindo o enlaçamento do nó de Borromeo; daí alguns sujeitos constituírem um duplo para construir e dar unidade ao seu corpo.

As crianças psicóticas estariam privadas da imagem. Na esquizofrenia e no autismo está em jogo a questão de como amarrar um corpo sem o recurso do espelho do Outro. Sem o recurso da imagem, o corpo torna-se peça solta e disjunta (BARROSO, 2014).

Que saídas os sujeitos encontram para fazer um corpo sem recorrer à imagem unificada? Que outros modos se utilizam das imagens para amarrar o corpo?

Na neurose, no enlaçamento entre o real e o imaginário, sempre algo cai desacomodado, havendo uma falha na construção do nó. As coisas funcionam mais ou menos bem… se constitui o eu ideal a partir do Ideal do Eu, e o sujeito pode ver-se amável no espelho e mesmo sentir uma satisfação nessa experiência – “júbilo” –, armando seu narcisismo: I(A) ￿ i(a).

Podemos pensar algumas situações clínicas nas quais esse olhar é demasiado exigente, demasiado idealizante, em que não há diferença entre o Ideal do eu e o Supereu: I(A) = SE  a. Não é um olhar que aniquila o sujeito, mas um olhar que, quando o olha, o faz saber o que se espera dele; são sujeitos que estão sempre procurando alguma falha. Há uma transmissão desse olhar, um Ideal do Eu, mas essa exigência dá uma modalidade distinta de laço desse sujeito com sua imagem e com o Outro.

Há também o olhar que aniquila, injuria e desautoriza, e quando o sujeito se olha no espelho tende a se deprimir; há enodamento entre real e imaginário, mas não se dá pela via do eu ideal e seu extremo é a melancolia (SORIA, 2013).

Podemos investigar os diversos fenômenos clínicos da constituição dessa imagem corporal, tais como o transitivismo, a função do duplo, as novas relações virtuais entre outros e as perturbações no campo do imaginário. Poderemos também investigar as situações em que esse laço entre a imagem e o real se afrouxa ou rompe, se desfazendo essa unidade da imagem corporal e acarretando situações diversas, desde o sentimento de estranheza até quadros de catástrofes subjetivas. Como as imagens incidem hoje na adolescência? É um momento em que muitas vezes há perturbações na imagem. Vamos também interrogar as perturbações do imaginário na educação e como o significante é um suporte da imagem.

 

 


Referências Bibliográficas
BARROSO, S. “A preferência pela imagem no falasser”. In: As psicoses na infância. O corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
BROUSSE, M-H. Entrevista a Gérard Wajcman sobre El ojo absoluto. In: Edición 6. Junio, 2011.
______. “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do espelho 1” In: Opção lacaniana online nova série, Ano 5, Número 15, novembro 2014. Disponível em www.opcaolacaniana.com.br/…/numero_15/Corpos_lacanianos.pdf‎. Acesso em x/x/xxxx
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DRUMOND C. Seminário AME – EBP – Trauma e corpo – automutilação, consistência e amarração (inédito) Belo Horizonte, Novembro 2014.
ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE. Imagem Rainha. As formas do imaginário nas estruturas clínicas e na prática piscanalitica. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
ESPINEL, M. “Imagem”. In: Scilicet. Semblantes e sinthoma. Escola Brasileira de Psicanálise, 2009. p. 152-154
LACAN, J. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
______. O Seminário. Livro X: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Ano
______. O Seminário. Livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. [1964.Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 1985.
MILLER, J-A. “A imagem rainha”. In: Opção lacaniana. N. 14. São Paulo, novembro, 1995. p. 12-22
NITZCANER, D. “Imaginário”. In: Scilicet. Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 196-198
PAULOZKY, D. “Imagem”. In: Scilicet. A ordem simbólica no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2011. p. 198-201
SORIA, N. Los nudos de analyse Buenos Aires: Editora Del Bucle. 2013.
SOUTO, S. Argumento da Seção Clínica do IPSMMG PARA AS INVESTIGAÇÕES dos Núcleos do IPSSMMG (inédito), 2o semestre 2014.

Cristiana Pittella E Margareth Couto
Cristiana Pitella de Mattos Psicanalista. Membro da EBP-AMP. Psychoanalyst. Member of the EBP-AMP E-mail: cristianapittella@yahoo.com.br Margaret Pires do Couto Psicanalista. Aderente da EBP-MG.Professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva.Psychoanalyst.Adherent of EBP-MG.Professor of Psychology course of theCentro Universitário Newton Paiva. E-mail:mpcouto@uol.com.br



Editorial Almanaque nº14

MÁRCIA MEZÊNCIO

Apresento-lhes a edição n.14 de Almanaque on-line. Nessa edição, buscamos, mais uma vez, apresentar aos nossos leitores o trabalho que se desenvolve no IPSM-MG, em seus espaços de ensino e investigação. Nossos temas, alinhados ao da comunidade de trabalho da Orientação Lacaniana, acentuam a sintonia com o momento civilizatório em que vivemos e praticamos.

Começamos esta edição traçando as referências teóricas para a localização do psicanalista na clínica atual e em sua presença na cidade. Assim, em Trilhamento, acompanharemos, passo a passo, em um percurso nos textos de Freud e Lacan, o caminho que vai da agressividade à pulsão de morte, através da leitura que Éric Guillot nos apresenta dos fundamentos e mecanismos da agressividade e da pulsão de morte, conceitos que, segundo o autor, estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas e que podem nos ajudar a esclarecer o fenômeno da violência contemporânea.

O tema da passagem ao ato também é discutido por Frederico Feu, em Incursões, a partir da leitura do Seminário, livro 10, de J. Lacan. Tomando o eixo desse seminário que é a elaboração do conceito de objeto a, ele busca retrabalhar a diferença estrutural entre neurose e psicose e abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses.

O real que se apresenta na prática dos psicanalistas foi o tema trabalhado pela Seção Clínica durante o primeiro semestre de 2014. Da investigação dos núcleos, publicamos o comentário de Márcia Mezêncio, no Núcleo de Psicanálise e Direito, em torno da formulação de Lacan sobre o utilitarismo da pena e suas consequências sobre a função da punição, e ainda duas produções do Núcleo de Psicanálise com Crianças. Cristiana Pittela de Mattos traz-nos a proposta de investigação sobre o real que se apresenta na clínica com crianças, na tentativa de definir “como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna” — que poderemos acompanhar no trabalho de Andrea Eulálio, Margaret Couto, Maria das Graças Sena; “como a angústia é um sinal do real do trauma; também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.”

O autismo é outro tema da atualidade que está presente nesta edição com um artigo de nossa colega argentina Silvia Tendlarz, em que discute o momento atual dos diagnósticos. Destacamos sua afirmação de que há transferência na direção da cura da criança autista e de que se devem determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura. A invenção, sustenta, é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Encontramos, aí, a orientação da pesquisa neste semestre, que nos inspirou a Entrevista com os membros da Comissão Científica do XX EBCF: pedimos a eles para localizar, em sua prática, o surgimento desse real e indicar-nos as possibilidades e invenções que este convoca.

Em Encontros, Guilherme Cunha Ribeiro propõe uma parceria entre Medicina e Psicanálise, como forma de encontrar opções epistêmicas para sustentar o trabalho do médico, alternativas à clínica da avaliação e do protocolo, prevalente na prática da medicina contemporânea. Registro de atividade conjunta dos núcleos Psicanálise e Medicina e Psicanálise e Toxicomania.

Finalmente, em De uma nova geração, encontramos o vigor e o rigor do trabalho de transmissão sustentado pela Seção de Ensino. O trabalho de Thiago Borges propõe um retorno a um texto fundamental de Jacques-Alain Miller e a um tema também fundamental na clínica contemporânea: a psicose não desencadeada, chamada, entre nós, de psicose ordinária.

Não deixem de ler!




Almanaque V. 8 – Nº 14 1º semestre de 2014

Apresento-lhes a edição n.14 de Almanaque on-line. Nessa edição, buscamos, mais uma vez, apresentar aos nossos leitores o trabalho que se desenvolve no IPSM-MG, em seus espaços de ensino e investigação. Nossos temas, alinhados ao da comunidade de trabalho da Orientação Lacaniana, acentuam a sintonia com o momento civilizatório em que vivemos e praticamos. Leia o editorial…

TRILHAMENTO

Da agressividade à pulsão de morte – Éric Guillot

Crianças autistas – Silvia Tendlarz

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista – Comissão científica do XX EBCF

INCURSÕES

Incidências do trauma: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? – Cristiana Pittela de Matos

Trauma e devastação: a relação mãe-filha – Andrea, Margaret, Maria das Graças Sena

O utilitarismo da pena e o real da pulsão – Márcia Mezêncio

Passagem ao ato como resposta do real – Frederico Feu

ENCONTROS

Medicina e Psicanálise: uma parceria – Guilherme Ribeiro

DE UMA NOVA GERAÇÃO

Reflexões sobre a psicose ordinária – Thiago Ferreira de Borges




Medicina E Psicanálise: Uma Parceria

GUILHERME RIBEIRO

A medicina contemporânea se sustenta em novas proposições epistêmicas. O surgimento das técnicas de avaliação e o uso dos protocolos de diagnóstico e tratamento trouxeram modificações significativas para a prática médica. Essas mudanças se sustentam no modo contemporâneo de produção de conhecimento médico, que é verificado em práticas que se tornaram mundialmente disseminadas, como a “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) e a psiquiatria orientada pelo “Manual de Diagnóstico e Tratamento” (DSM). A primeira se propõe a ser um guia para orientar as melhores práticas na medicina clínica, com ênfase nos sintomas, e a segunda orienta uma proposta para diagnóstico em psiquiatria, em que também são privilegiados os sintomas, sem levar em conta as causas psicodinâmicas.

A introdução da MBE e do DSM pode ser vista como uma substituição da avaliação clínica tradicional, que privilegia o caso a caso e a experiência clínica, pela lógica da avaliação e do protocolo. No protocolo o diagnóstico e terapêutica são sustentados em trabalhos científicos onde os resultados são medidos pela estatística e podem ser reproduzidos em outros experimentos semelhantes. As estatísticas estão no campo da matemática, da mensuração e do cálculo. A validade dessa substituição ocorre, pois existe uma equivalência (MILLER; MILNER, 2006, p. 4) entre os dois processos, entre a clínica do caso a caso e a mensuração/cálculo. A equivalência se dá por ambas produzirem um conhecimento sobre a condição apresentada pelo paciente, estão ambas na esfera do saber. No entanto, mesmo que exista a equivalência entre a prática do caso a caso e aquilo que é medido ou calculável, é um equívoco considerar que elas pertençam ao mesmo campo.

A prática da avaliação, que é realizada a partir de protocolos, vem do campo da administração, que não é o mesmo campo da clínica. A “clínica do DSM”, que propõe uma psiquiatria que se sustenta na quantificação e qualificação dos sintomas, que passam a definir os diagnósticos e tratamentos, sem levar em consideração os aspectos subjetivos daquele que sofre e que demanda alívio de sua condição, está ainda mais radicalmente inserida no campo da avaliação e dos protocolos. O DSM desconhece a causalidade psíquica além do que ela estabelece como uma origem cerebral para as doenças psiquiátricas. A MBE (GUYATT et al., 1992 p. 2421) ainda propõe que se considere a fisiopatologia no desenvolvimento das doenças, embora acentue que ela não deve mais sustentar os diagnósticos e terapêuticas médicas.

Para os médicos, as novas formas de produção de conhecimento na medicina se constituem em um grande desafio, pois são novos discursos que diferem da prática médica precedente. Se, na clínica tradicional, encontramos a valorização do raciocínio clínico e da experiência de cada médico que se responsabiliza pelo atendimento ao paciente, a MBE propõe que o mestre, tomado no lugar de autoridade clínica, como aquele que detém um conhecimento sustentado em sua experiência, seja deixado de lado. Para a MBE (GUYATT et al., 1992, p.2421), ao contrário da clínica tradicional, “o novo paradigma coloca bem menos valor na autoridade”. Os sintomas são avaliados a partir das evidências recolhidas no atendimento, e as respostas devem ser buscadas nos trabalhos científicos. Os trabalhos científicos que sustentam seus resultados no campo da avaliação estatística dos resultados. Essa mensuração da eficácia dos procedimentos, seja de forma qualitativa ou quantitativa, não leva em conta a experiência dos clínicos.

A introdução da lógica da MBE do DSM ocorreu em paralelo ao declínio da prática da clínica do caso a caso e associada ao avanço das tecnologias diagnósticas e terapêuticas sustentadas na ciência. Para Leguil (2011, p. 40), o declínio da clínica não decorre do fato de que os terapeutas, médicos, psicólogos não tocam mais o corpo do paciente. Esse declínio, verificado nas múltiplas tecnologias que substituem o raciocínio clínico, é decorrente do fato de que o corpo que desapareceu da clínica é o corpo do clínico.

A consequência se faz sentir na transferência nos novos tratamentos. O mestre em questão não é mais sustentado pela experiência dos clínicos, o mestre contemporâneo que é dotado da suposição de saber passa a ser o protocolo de avaliação, que pode ser encontrado rapidamente nos mecanismos de busca da internet. A ausência do corpo do médico modifica a transferência nos tratamentos que se efetivam.

Leguil (2011, p.40) constata que foi alcançado o ideal do DSM foi alcançado ao conseguir substituir a experiência acumulada dos clínicos e psiquiatras pelos protocolos de avaliação clínica. A sagacidade e a intuição dos clínicos não são mais levadas em conta na prática orientada pelos protocolos. É o sonho de fazer uma clínica sem transferência, em que também não há responsabilização do médico, tudo é confiado às mãos do Outro. Esse Outro é o Outro da avaliação, que pretende ocupar o lugar do saber universitário todo, pretensão que frequentemente utiliza a estratégia da intimidação (MILLER; MILNER, 2006, p. 17). Se, de um lado, os protocolos de tratamento colocam o médico ausente da relação terapêutica com o paciente, a posição que o médico passa a ocupar diante desse Outro todo é a de um “empregado da empresa universal da produtividade” (LACAN, 2001, p.14)

Ainda se pode apontar outras consequências para a clínica, à medida que a MBE (LAURENT, 2010) e a clínica do DSM passaram a orientar os tratamentos médicos. A escolha pela verificação científica das evidências resulta na redução da influência da intuição e da sagacidade do clínico na condução dos tratamentos. Outra consequência é a preferência por abordagens e tratamentos mais simples, em detrimento dos tratamentos mais complexos e que podem abranger muitos outros aspectos, como os elementos sociais, psíquicos e subjetivos, que não podem ser mensurados. Verifica-se, ainda, que a adesão aos protocolos limita as escolhas e as adaptações que podem ser feitas pelo clínico. Essas escolhas e adaptações são feitas mesmo que sua eficácia não possa ser sustentada pelas melhores evidências científicas e se sustentam na experiência. Finalmente, é importante ressaltar que os protocolos de avaliação levam também à produção de uma burocracia que é dedicada a sua manutenção e difusão.

Tendo circunscrito os elementos que marcam o trabalho do clínico na medicina contemporânea, passo a considerar qual poderia ser a contribuição possível da psicanálise nesse debate.

Incialmente é necessário distinguir o que é próprio da posição do médico e do analista. Podemos diferenciar o sintoma para o médico e para o psicanalista. Seja na estruturação de um sintoma endereçado à análise, na construção de uma fantasia, ou ao permitir que o paciente se movimente de acordo com as vicissitudes próprias do inconsciente, o analista coloca o sujeito em primeiro plano. Já a medicina é a prática que busca o alívio ou a desaparição dos sintomas e, para isso, lança mão dos recursos disponíveis pela ciência, em especial, da medicação, o que é a principal arma terapêutica do médico e do psiquiatra.

Um exemplo a considerar é a angústia. Laurent (2005, p. 29) aponta que, se a medicina se caracteriza pela eliminação dos sintomas, a questão de desangustiar ou não é própria da psicanálise. A psicanálise não defende a desculpabilização do sujeito por causas humanitárias, como é próprio da medicina. Laurent (2005, p.30) ainda exemplifica algumas possibilidades no tratamento analítico da angústia, seja com o sujeito angustiado com a presença do sintoma, ou com a angústia fixada pela fantasia, ou, ainda, com a angústia que não pode ser circunscrita nem pelo sintoma nem na construção da fantasia. Ao comentar o tratamento analítico de um sujeito psicótico, Laurent (2005, p.39) afirma que o analista pode ocupar um lugar que favorecerá a estabilização do sujeito psicótico, na medida em que o analista “se encontra no lugar de um parceiro-sintoma”. Esse lugar a ser ocupado é orientado a partir da transferência dirigida ao analista no tratamento.

Ao considerar o trabalho realizado pela medicina com o olhar da psicanálise, Lacan (1966/2001, p.10) faz uma advertência aos médicos, em relação à demanda de cura. Quando um paciente procura o médico, ele “não espera pura e simplesmente a cura”, na verdade, “ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente”, o que pode implicar que o paciente está “preso à ideia de conservar sua condição de doente” (LACAN, 1966/2001, p.10).

Em relação ao corpo, as tecnologias científicas de diagnóstico e tratamento se esforçam para apagar o que Lacan chamou de falha epistemo-somática, em que o saber sobre o corpo encontra limites que o próprio corpo lhe impõe. A parafernália tecnológica fotografa, mede, cifra o corpo de cada doente, o que, no entanto, não permite escutar os murmúrios do sujeito no atendimento. Ainda em relação ao corpo, sede da queixa do sujeito, o que existe, de verdade, sobre o gozo pode ser apresentado àquele que escuta: “o corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo” (LACAN, 1966/2001, p.11).

São essas as duas balizas que o médico dispõe para sustentar sua posição, em primeiro lugar, a demanda do doente, em segundo lugar, o gozo do corpo.

Para Lacan, a posição possível para o médico consiste em encontrar uma resposta a esse desafio do paciente na demanda. Em uma intervenção em um congresso de psiquiatria, Lacan (1972) aponta que, se o médico se dispõe a escutar o paciente, ele pode “realmente ter tudo que quer, os atos falhos, os balbucios, as fraquezas incríveis, as confissões que são raramente recolhidas”. Esse trabalho de escuta se sustenta no “interior dessa relação firme” entre o médico e a demanda do doente (LACAN, 1966/2001, p.14). Essa trilha permite ao médico conduzir o paciente a voltar-se para o lado oposto das ideias que emite ao fazer a demanda. Nesse novo caminho o sujeito produz na fala os significantes que revelam o que se esconde por trás da demanda. Nesse campo, trata-se da relação do sujeito com o gozo do corpo. Está aí a possibilidade de produzir aquilo que, para Lacan, é a forma do médico manter a originalidade de sua prática.

Seria possível dizer que uma clínica que se orienta pela subjetividade, que pode se ater ao modo de resposta à demanda e ao gozo do corpo, pode encontrar saídas opostas aquelas propostas pela MBE e pelo DSM. Para Laurent (2010, p. 263) essas saídas incluem a possibilidade de considerar a subjetividade, ao aceitar que os casos podem necessitar de intervenções mais complexas que a medicação, ao integrar a sagacidade e a intuição clínica, ao rejeitar os protocolos e os tratamentos que não admitem as adaptações individuais, ao valorizar os ditos e valores dos doentes, ao fazer disso material de seu trabalho e ao recusar a uniformização proposta pela burocracia institucional.

 


 

Referências
GUYATT, G. et al. “Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine”, JAMA, Chicago, n.268, 1992, p.2.420-2.425, 1992.
LACAN, J. (1972). “Intervenção sobre a exposição de P. Lemoine: sobre o desejo do médico”, Congresso da Escola Freudiana de Paris, Lettres de l’École freudienne de Paris, Paris, n° 9, p. 68-78, 1972.
LACAN, J. (1966). “O lugar da psicanálise na medicina”, Opção Lacaniana, São Paulo, Eólia, n.32, 2001, p. 8-14, 2001.
LAURENT, É. “Desangustiar?”, Curinga, Belo Horizonte, n.21, 2005, p.29-39, 2005.
LAURENT, É. “Los efectos perversos del EBM y los remédios que le aporta el psicoanálisis”. In: El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches, 2010, p. 262-264.
LEGUIL, F. “As demandas contemporâneas feitas à psicanálise II”, Curinga, Belo Horizonte, n.33, 2011, p.35-48, 2011.
MILLER, J-A.; MILNER, J-C. Você quer mesmo ser avaliado? São Paulo: Manole, 2006.

Guilherme Ribeiro
Médico e analista praticante, membro correspondente da EBP-MG. E-mail: guilhermecribeiro@gmail.com



Passagem Ao Ato Como Resposta Do Real

FREDERICO FEU

Podemos abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses. Na mesma proporção em que, na neurose, podemos contar com os fenômenos de retorno decorrentes do recalque, a psicose nos confronta com o ato como efeito da foraclusão. Seja nas suas origens, por ocasião do desencadeamento, ou como um ato conclusivo de um argumento delirante, seja como uma maneira de operar a castração no real, ou como uma tentativa de extração de um mal-estar corporal, no “impulso a golpear”, a psicose sempre parece tender, de alguma forma, ao ato.

De um modo geral, a passagem ao ato desvela a estrutura fundamental do ato, em seu sentido mais amplo (MILLER, 2014). O pensamento, na medida em que está dominado pelo recalque, está essencialmente sob impasse. Em sentido amplo, o ato é uma tentativa de sair desse impasse, caracterizando-se por uma ruptura entre ação e pensamento, ao contrário do que a tradição racionalista preconiza, ou seja, que um ato deveria ser a consequência lógica de uma cadeia racional de pensamentos. Nesse sentido, todo ato equivale a uma espécie de suicídio do sujeito, a um rompimento com o Outro, a um divisor de águas, visando a uma mutação subjetiva. Trata-se, como diz Lacan, de extrair da angústia a sua certeza, por oposição à dúvida suscitada pelo pensamento. O mesmo princípio poderia ser estendido à criação artística, à invenção de novos paradigmas no campo da ciência ou mesmo ao atravessamento produzido no campo do pensamento cultural e político por um acontecimento.

Proponho, nos limites deste texto, tratar a noção clínica de passagem ao ato a partir de algumas referências desenvolvidas por Lacan no Seminário, livro 10, “A angústia”, de 1962-1963, especialmente em torno do comentário do quadro que reproduzimos abaixo, em que a passagem ao ato é posta em relação com outros termos e conceitos. Isso nos coloca diante do problema de transpor uma noção clínica cujo movimento de elaboração se dá no enquadre estrutural das neuroses para o campo das psicoses. Além disso, há dificuldades de interpretação desse quadro, na medida em que ele não foi retomado por Lacan, dificuldades que nos parecem tanto maiores quanto mais exigirmos uma correlação formal de todos os seus termos. Devemos tomá-lo, então, de uma forma fragmentária, para um determinado uso, relacionando seus elementos sem fazer um todo e buscando estabelecer alguns parâmetros que nos levem da clínica das neuroses à clínica das psicoses, na qual o tema da passagem ao ato adquire todo seu peso.

Enquadre E Movimento Geral Do Seminário 10

A chave do Seminário 10 é a elaboração do conceito de objeto a, do qual a angústia vem a ser uma espécie de moldura para o neurótico e com o qual o sujeito se articula na cena fantasmática ($ <> a). O objeto a demonstra o efeito regulador da entrada na ordem simbólica: para dar conta do gozo, o sujeito (S) se dirige ao campo do Outro (A); se ele encontra, nesse campo, o significante do nome-do-pai, o efeito é sua divisão ($) entre o significante — que representa o sujeito para outro significante — e o objeto a .

Se definirmos essa operação, a que chamamos castração, como uma negativização do gozo pelo simbólico ou como equivalente a uma extração de gozo do corpo, o objeto a é o que compensa, com o mais de gozar, o menos da castração. Esse objeto, justamente por ser perdido, estabelece para o sujeito o regime de contingência de encontros e desencontros no real, mediando a sua relação com o Outro, na medida em que, para o neurótico, gozo e Outro se separam. Do lado do sujeito, o Outro aparece recoberto por uma barra (Ⱥ) — “o que me constitui como inconsciente, ou seja, o Outro enquanto aquilo que não atinjo” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36). Assim, estabelece-se a equivalência entre demanda e circuito pulsional na neurose. Partindo de uma zona erógena, representada pela elipse, a pulsão contorna um objeto — “essa prova e garantia única, afinal, da alteridade do Outro” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36) — retornando sobre esse mesmo ponto de partida, obtendo-se, dessa forma, a satisfação.

Esse objeto, que a pulsão irá contornar, é aquilo que há de mais variável na pulsão, embora cada sujeito, tomado em sua particularidade, desenvolva um padrão de repetição, um “modo de gozo” que caracteriza o sujeito e que encontra sua consistência no fantasma. Podemos, então, definir a passagem ao ato na neurose como uma precipitação do sujeito, a partir de um encontro desestabilizador, para fora da cena fantasmática, em que ele ocupa uma posição de resposta ao desejo do Outro, identificando-se ao objeto desse desejo.

Quanto ao sujeito psicótico, ele está mais confrontado ao real e com mais dificuldades em relação à mediação simbólica. Daí sua tendência a operar diretamente sobre o real nos fenômenos de passagem ao ato, em suas tentativas de barrar o Outro (em sua dimensão invasiva e excessiva), na medida em que, nessa estrutura, gozo e Outro não se separam. Assim, podemos falar do gozo não negativizado na psicose, especialmente na esquizofrenia, e da não extração do objeto a. Em lugar de um circuito pulsional que estabelece a possibilidade de encontros e desencontros com o objeto da demanda dirigida ao Outro, temos, na psicose, um curto-circuito da pulsão sobre o próprio corpo:

Construção Do Quadro Da Angústia

Podemos agora voltar ao quadro construído por Lacan no Seminário, livro 10, na tentativa de esclarecer suas inter-relações e localizar, aí, o momento da passagem ao ato. Buscaremos construí-lo passo a passo, supondo uma ordenação lógica.

1 – Observamos, inicialmente, que o quadro se escreve a partir de duas coordenadas, o eixo do movimento e o eixo da dificuldade.

A referência ao movimento está nas origens da elaboração freudiana do aparelho psíquico. Tanto no “Projeto” de 1895, quanto na “Carta 52”, redigida em dezembro de 1896, o aparelho psíquico é concebido levando-se em conta as relações de continuidade e descontinuidade entre pensamento e ação.

Se tomarmos o caminho “progressivo” da excitação no aparelho, a ação é o que decorre de um processo de inibição que caracteriza o trabalho de inscrição, retranscrição e tradução da excitação no aparelho psíquico, como um ponto de conclusão de uma cadeia de representações que dominou a excitação e chegou à consciência ao ligar-se a uma representação verbal. Teríamos, no entanto, que conjugar o eixo do movimento ao caminho “regressivo” que conduz o pensamento de volta à excitação no aparelho psíquico, desfazendo as suas conexões, na medida em que a passagem ao ato está em descontinuidade com a cadeia de pensamentos. A esse respeito, lembramos que o termo “Agieren”, utilizado por Freud (por exemplo, no artigo “A dinâmica da transferência”, de 1912), equivale a uma repetição em ato no limite do trabalho de rememoração, a uma mostração, na medida em que esse caminho regressivo, no curso de uma análise, atualiza a realidade psíquica da fantasia na transferência.

Seguindo o eixo da dificuldade, encontramos, por sua vez, a função da barra, que concerne ao sujeito em sua relação com o gozo. De fato, o sujeito barrado pode ser pensado como um efeito do movimento da excitação, na medida em que o sujeito, em seu desamparo, se dirige ao campo do Outro.

A montagem do quadro da angústia compreende, assim, uma tensão crescente que vai de um mínimo de movimento a um máximo de movimento, passando pelo termo intermediário da emoção, e de uma menor a uma maior dificuldade, de forma que podemos definir a angústia como a resultante de um máximo de movimento com um máximo de dificuldade.

2 – Definidas as coordenadas da angústia, podemos escrever a série colocada por Lacan em diagonal, em ligação com a série freudiana inibição-sintoma-angústia.

Inibição, sintoma e angústia são termos heterogêneos, dirá Lacan, estruturas diferentes. Não há, portanto, passagem ou gradação entre eles. De fato, embora possamos pensar no aparecimento da angústia como um efeito de falência da função estabilizadora do sintoma, estabelecendo assim uma sequência entre eles, podemos encontrar igualmente superposição entre a inibição de uma função e um sintoma, como na impotência masculina ou na anorexia.

Mas, de modo geral, a inibição está associada à detenção de um movimento e, nesse sentido, se opõe à angústia, sendo o sintoma um termo intermediário que faz a mediação entre movimento e dificuldade ou, conforme definição de Freud, uma formação de compromisso entre movimento pulsional e defesa.

3 – Se a inibição é detenção do movimento no nível de uma função, estar impedido é um sintoma. “Estar impedido é um sintoma. Ser inibido é um sintoma posto no museu” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). “Impedicare”, etimologicamente, quer dizer “ser tomado na trama”, o que nos leva da função ao sujeito à medida que caminhamos no eixo da dificuldade.

A trama de que se trata é a captura narcísica, isto é, “o limite do que se pode investir no objeto”, como dirá Lacan.

O impedimento ocorrido está ligado e este círculo que faz com que, no mesmo movimento com que o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que lhe está mais distante, ele depare com essa fratura íntima, muito próxima, por ter-se deixado apanhar, no caminho, em sua própria imagem, a imagem especular. É essa a armadilha (LACAN, 1962-1963/2005, p.19).

O sujeito que se encontra, no plano sintomático, impedido, se deteve diante da castração, rendendo-se à captura narcísica. Um passo a mais no eixo da dificuldade, e ele se encontrará embaraçado, termo que é correlativo à angústia no eixo vertical. O embaraço é definido como “forma leve da angústia” na dimensão da dificuldade. Etimologicamente, o termo francês “embarras” aponta para o sujeito revestido pela barra, “quando vocês já não sabem o que fazer de si mesmos” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). Em espanhol, estar “embaraçada” quer dizer estar grávida, em gestação, à espera. Embora daí se depreenda um movimento futuro ou algum tipo de desfecho, falta ainda à dimensão do embaraço a precipitação ao ato que encontramos à medida que caminhamos no eixo do movimento.

4 – Prosseguindo em direção ao sintoma, seguindo o eixo do movimento, encontramos a emoção (émotion). A emoção salienta algo de inquietante em comparação com a inibição, evocando, ao mesmo tempo, a ideia de uma exteriorização, no sentido de alguma coisa que se descarrega, que é colocada para fora, muitas vezes, conservando o sentido de reação catastrófica. Trata-se de um termo utilizado por Freud justamente para designar o movimento da catarse, uma vez que teria sido a ausência de reação adequada ao trauma o que estaria na origem do sintoma histérico. A catarse se realiza levando-se em conta essa tríplice condição: a rememoração, a exteriorização da emoção e sua tradução em palavras. Trata-se, portanto, de uma exteriorização simbólica, na medida em que o sujeito, sob transferência, for capaz de se desembaraçar de seu sintoma por meio da palavra.

Finalmente, ainda na linha do movimento, encontramos a efusão (émoi). O termo esmayer deriva do latim popular, exmagare, esmagado, em português, com o sentido de queda, perda de potência. Relaciona-se a um excesso de movimento que parece colocar o sujeito fora de si, na medida em que ele se encontra embaraçado pelo desenvolvimento da angústia. O émoi é “o perturbar-se mais profundo na dimensão do movimento. O embaraço, o máximo de dificuldade atingida” (LACAN, 1962-1963/2005, p.22), preenchendo assim as duas coordenadas da angústia.

5 – É possível agora completar o quadro com as referências ao acting-out e à passagem ao ato. Podemos desde logo observar que, em relação ao eixo da dificuldade, encontramos uma maior proximidade entre sintoma e acting-out, por um lado, e passagem ao ato e angústia, por outro.

De fato, o acting-out se produz a partir de um franqueamento do sintoma, estando logicamente determinado no curso de uma análise no limite do trabalho de interpretação, ali onde se desvela a estrutura da fantasia, destacando-se como fundamental o fato de que o acting-out está direcionado ao Outro. Quanto à passagem ao ato, ela parece se antecipar ao pleno desenvolvimento da angústia, sendo tomada por Lacan como uma precipitação que lança o sujeito em um movimento de queda para fora da cena fantasmática.

É o que se revela na análise feita por Lacan do caso da “Jovem Homossexual” (FREUD, 1920/1976). A passagem ao ato tem relação com o “deixar cair” (Niederkommen). Diante do olhar do pai com quem ela cruza na rua quando caminhava ao lado da dama — a quem a jovem se dedica, a contragosto do pai — se produz o extremo embaraço; e se lhe acrescentamos a emoção como desordem do movimento, o que chega nesse momento preciso ao sujeito é sua “identificação absoluta com esse pequeno a ao que ela se reduz” (LACAN, 1962-1963/2005, p.124), ao mesmo tempo em que ela se sente rechaçada, lançada fora da cena. É o suficiente para que ela se precipite, jogando-se de uma pequena ponte sobre a linha do trem, desde o lugar da cena onde atuava no sentido do acting-out. Ou seja: se a tentativa de suicídio é uma passagem ao ato, toda a aventura com a dama — que é elevada, como no amor cortês, a essa posição de objeto supremo — é um acting-out.

Psicose E Passagem Ao Ato

A questão que toca o analista, a cada análise, é justamente saber o quanto de angústia o sujeito pode suportar. Na clínica da neurose, a angústia é um guia, funcionando como sinal, o sinal de angústia. Podemos dizer que o sinal de angústia abre a possibilidade de um manejo, orientando a clínica da neurose em direção ao real, ao impossível de suportar, a partir do suporte da mediação simbólica. Se o ato analítico, esse ponto de viragem de uma análise, visa a extrair da angústia a sua certeza — já que, ao contrário do pensamento, a angústia é o que não engana — a questão é como chegar até aí bordejando, por assim dizer, os campos da passagem ao ato e do acting-out com os quais a angústia faz fronteira, como vemos no quadro.

Ora, o ato analítico é uma aposta que toma seu fundamento, na clínica da neurose, do fato de que o fantasma está emoldurado, enquadrado pelo sinal de angústia. Há um marco referencial em que essa aposta é possível: seu ponto preciso é a questão “que queres?”, que interroga o desejo do Outro. A relação com o objeto a é um modo de responder a essa pergunta, na medida em que o objeto a está, por assim dizer, a meio caminho entre sujeito e Outro, na medida em que o neurótico tende a se dedicar ao preenchimento da falta no Outro. O ato analítico visa a separar o sujeito do objeto ao qual ele identifica a sua demanda.

Na psicose, por sua vez, a angústia está a céu aberto; ela não funciona para o psicótico como um sinal ou um anteparo que se anteciparia ao seu pleno desenvolvimento. Para o psicótico, há impossibilidade formal de responder ao desejo do Outro pela via fantasmática. De fato, se, na neurose, o objeto a, na medida em que é extraído pela castração, vem a ser uma resposta possível a essa questão, na psicose, o sujeito encarna o objeto e, nesse sentido, encarna ele mesmo a resposta. Por conseguinte, falta a moldura que daria à angústia a sua contenção; falta a falta, como dirá Lacan, o contorno significante do objeto. Por isso, o sujeito seria lançado mais facilmente ao ato enquanto a angústia tenderia a aparecer mais do lado do Outro, como testemunhamos a cada vez que nos propomos a tratar um psicótico.

O campo da passagem ao ato apresenta-se, portanto, mais disperso nas psicoses justamente por faltar o traçado do contorno do objeto que a fantasia possibilita para o neurótico. Devido à sua dimensão invasiva, não limitada pela fantasia, o gozo, na psicose, predispõe o sujeito ao ato. Entretanto, talvez seja possível estabelecer algumas distinções que possam nos orientar minimamente na clínica da passagem ao ato. Assim, limitando-nos à fenomenologia dos atos hetero e autoagressivos, podemos distinguir:

a – Os atos impulsivos, aparentemente imotivados e muitas vezes repentinos, para os quais parece faltar a mediação simbólica e por meio dos quais a pulsão se faz ato. Podemos relacioná-los ao impulso a golpear que caracteriza a análise feita por Lacan do Kakon, esse objeto definido como a presença mesma do “mal” que o sujeito visa a atingir, seja extimamente ou no próprio corpo, em suas tentativas de barrar ou extrair o gozo, operando diretamente no real. Aquilo a que se visa é o mal-estar em sua urgência mesma, sendo a passagem ao ato uma tentativa de tratar o real pelo real. Assim, uma paciente é levada a atingir outro usuário de um serviço de saúde mental — que, nessas circunstâncias, poderia ser qualquer um — e, em seguida, tenta se lançar de uma janela sem que pudesse dar razões para isso, a não ser o impulso que acompanha o seu mal-estar e que a coloca, por um instante, fora de si. O que fazer diante de tais ocorrências, a não ser nos antecipando a esse mal-estar na medida do possível, oferecendo as contenções disponíveis na ocasião até que se restabeleçam as condições de mediação simbólica?

b – Os atos derradeiros, conclusivos, que pressupõe uma cadeia de pensamentos. Algumas vezes associamos a esses atos seu aspecto resolutivo e estabilizador para o psicótico, como acentuado por Lacan em sua tese de 1936. Um exemplo são os crimes hipermotivados na paranoia. A passagem ao ato pressupõe, às vezes, um longo período de preparação, embora nem sempre isso se faça anunciar. O importante a salientar é o aspecto lógico-dedutivo, nem sempre detectável, que acompanha tais atos, mesmo na esquizofrenia. Cita-se como exemplo uma paciente que veio a cometer uma tentativa de suicídio alguns dias após escutar de sua mãe uma frase que contestava sua interpretação delirante. A paciente vinha argumentando, em resposta ao seu mal-estar, que não tinha estômago, o que a deixava com uma sensação de vazio interior. A mãe acrescenta a essa formulação uma premissa universal: “todo ser vivo tem estômago”. É o suficiente para precipitar a conclusão: “logo, estou morta”. Podemos escrever logicamente essa dedução: (~q) (p  q) : (~q  ~p). Ou seja: “se eu não tenho estômago” (~q) e “se todo ser vivo tem estômago” (p q), conclui-se que, “se eu não tenho estômago” (~q), “eu não posso estar viva” (~p). Observamos que a certeza delirante, que incide sobre o particular, não é negada pela premissa universal. No entanto, em função da temporalidade própria às cadeias de pensamentos, resta-nos a chance de abrir a possibilidade de uma realização assintótica dessas deduções, bloqueando em alguns pontos o desenvolvimento da certeza delirante mediante a introdução daquilo que Lacan chamou de “o benefício da dúvida”.

c – Os atos de mutilação em série que incidem sobre o próprio corpo. À diferença do impulso a golpear que caracteriza o Kakon, essas mutilações e agressões ao corpo se distinguem por seu aspecto repetitivo e mesmo monótono e por seus efeitos de apaziguamento e esvaziamento. Muitas vezes, são atos silenciosos e solitários; outras vezes, inseridos em uma espécie de identificação grupal, como se observa em sites. Mas podem, igualmente, adquirir um valor de mostração e transferência de angústia. Cita-se como exemplo um sujeito que, repetidas vezes, insere objetos em seu corpo, condenando-se, assim, a uma série de intervenções cirúrgicas, e que fala disso sem mostrar sofrimento. Tais sujeitos dão, às vezes, a impressão de operar uma transferência do mal-estar para o Outro e de produzir neste um sentimento de impotência em lugar do impossível a suportar que concerne à relação de todo sujeito com o real.

d – Distinguimos os atos mostrativos, mais próximos do acting-out, das passagens ao ato, em função de parecerem mais destinados a provocar um efeito sobre o Outro, analista ou instituição, seja nas neuroses ou nas psicoses, e que revelam algum aspecto que não encontrou recursos simbólicos de expressão. Tais atos supõem, dessa forma, a existência de um cenário como campo de atuação e podem ser tomados, muitas vezes, na perspectiva do “tratamento do Outro”, exigindo uma interpretação e reorientando a posição do analista ou da instituição em relação ao paciente. Nisso também o acting-out se diferencia das passagens ao ato, em que o Outro é visado em sua dimensão intrusiva e excessiva para o sujeito, como Outro gozador, de quem o sujeito busca desvencilhar-se. Reconhecemos, assim, nos fenômenos de acting-out, a dimensão da transferência e um laço social mínimo. Um exemplo de acting-out pode ser recolhido no relato do “Caso Daví” (CARVALHO, 2000). Enquanto quebra os vidros do carro da gerente do serviço com uma pedra, o paciente se certifica de que o olham da janela. Esse e outros episódios podem ser referidos à frase “quero mostrar a eles que tenho valor”, que define a demanda de reconhecimento do sujeito frente ao Outro.

e – Por fim, teríamos os atos agressivos, que pressupõem o outro como semelhante, e a hipertrofia do imaginário. Aparecem, muitas vezes, justificados pela “raiva” ou pelo “ódio”, ou seja: a passagem ao ato é, nesses casos, dominada por um sentimento intenso e incontrolável que coloca o sujeito em posição de rivalidade em relação ao semelhante. Operam em uma vertente mais voltada à descarga da pulsão imaginariamente endereçada ao outro, em contraste com a tentativa de extração do mal-estar relacionado à presença do objeto Kakon. O outro é visado enquanto supostamente goza de algo que falta ao sujeito. Na medida em que o sujeito aparece aqui mais confrontado à castração, esses atos agressivos tendem a estar mais referidos à estrutura neurótica e à irrupção da violência, que decorre dos embaraços narcísicos do sujeito e de sua vontade de gozo.

 


Referências
MILLER, J.-A. “Jacques Lacan: observações sobre o seu conceito de passagem ao ato”, Opção Lacaniana on-line, ano 5, n.13, mar. 2014. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero13/index.html. Acesso em: abril/2014.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
FREUD, S. (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.18, p. 185-212)
CARVALHO, F. F. “O caso Daví”, Curinga, Belo Horizonte, n.14, p.116-123, abr. 2000.
i Este texto corresponde, essencialmente, à intervenção no Núcleo de Psicose do IPSM-MG, em abril de 2014. Em grande parte, retoma as elaborações publicadas com o título de “Psicose e passagem ao ato” na Revista Abrecampos, n.2, publicação do Instituto Raul Soares, 2000, do qual é uma versão modificada.

Frederico Feu
Frederico Zeymer Feu de Carvalho – Psicanalista, membro EBP/AMP. E-mail: fredericofeu@uol.com.br



O Utilitarismo Da Pena E O Real Da Pulsão

MÁRCIA MEZÊNCIO

Concluímos hoje nosso percurso pelo texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, orientado pela questão de investigação proposta pela Seção Clínica: o que de real encontramos em nossa prática na interface da Psicanálise com o Direito? Esse real encontrou, ao longo do semestre, algumas nomeações — crime, violência, guerra — manifestações que respondem, por outro lado, ao irredutível da pulsão que seria, finalmente, o real em jogo. O Direito, um produto da cultura, seria ele também uma resposta ao que não tem governo, nem nunca terá… Antecipando uma questão que trabalharemos no próximo semestre, como o Direito pode servir à invenção do sujeito para tratar seu embaraço com o real?

Iniciaremos, talvez, o percurso anunciado para o futuro, levantando algumas questões sobre o utilitarismo da pena. Cabe-me apresentar um comentário sobre a crítica de Lacan ao utilitarismo articulada às questões da função da punição e sua relação ao real da pulsão.

Um trecho que abre a seção IV desse texto de Lacan condensa o argumento que ele desenvolve ao longo do artigo. Eis o trecho:

Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E além do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação científica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penalogia (LACAN, 1950/1998, p.139).

Articulando essas considerações à minha prática no Liberdade Assistida, tomarei, mais uma vez, a afirmação que pode ser lida reiteradas vezes nos Termos de Audiência encaminhados pelo Juízo aos programas de execução de medidas, e que ressoa, a meu ver, com essa advertência de Lacan relativa ao utilitarismo e também à má consciência social: “a medida socioeducativa tem o caráter de pena, mas não a finalidade de retribuição, seu objetivo é de ressocialização”. Essa medida que é, pois, uma sanção e só se aplica em resposta ao ato delituoso cometido pelo adolescente considera a “condição peculiar de desenvolvimento” do adolescente e trata a ruptura do laço social ocasionada pelo ato infracional através da “socioeducação” e da “inclusão social” e não da retribuição.

Parece-me, então, que a afirmação acima resume uma série de ordenamentos, normativas e seus fundamentos políticos e filosóficos, senão ideológicos, e aqui poderá ser um ponto de partida para uma leitura exploratória de alguns artigos sobre a evolução do Direito Penal e sobre o utilitarismo da pena a que Lacan se refere no trecho acima. Fica a advertência de que não farei uma discussão sistemática sobre o tema, mas o destaque de alguns pontos que podem ser relevantes para nossa discussão.

Podemos tomar igualmente o diploma legal que normatiza a execução das medidas, conhecido como Lei do SINASE. Em seu artigo primeiro, a definição dos objetivos da medida socioeducativa identifica o cumprimento da medida à promoção social, vinculando-o à execução do Plano Individual de Atendimento, acentuando o seu caráter assistencial. Apesar de apontar também como objetivo a desaprovação da conduta, esta parece ocupar um lugar acessório para alguns operadores.

Inicialmente, gostaria de destacar do texto de Lacan a crítica ao humanismo e ao humanitarismo, como essa solução utilitária. Ao afirmar que a função expiatória do castigo é reduzida a seu fim correcional, que pode variar, abre para nós a questão sobre a finalidade da pena e para a disjunção entre a função do castigo para a Psicanálise e para o Direito. Por fim, aponta a concepção sanitária da penalogia, o recurso ao saber científico da psiquiatria, servindo igualmente a esse fim utilitário da prevenção.

E o que é o utilitarismo? O utilitarismo é uma teoria ética, que se baseia no princípio da utilidade. A definição clássica desse princípio é: o prazer e a ausência da dor são, de fato, desejados por todos os seres humanos, e cada pessoa busca seu próprio prazer (A semelhança desse princípio com o princípio de prazer freudiano é notável, tendo sido assinalada por alguns autores), Jeremy Bentham, James Mill e John Stuart Mill (de quem Freud fez algumas traduções) sendo os principais autores dessa versão clássica, filosófica, do utilitarismo. Para uma visão utilitarista do Direito Penal, um comportamento deve ser proibido se for indesejado pela sociedade, sendo sua lesividade um elemento do cálculo, mas não o mais relevante. A avaliação do resultado produzido pelo comportamento se dá por sua utilidade (MARTINELLI, 2014).

Em relação ao humanismo, apontado por Lacan, o próprio Código Penal clássico surge de uma visão humanista, tributária do iluminismo. Também a questão da utilidade já está presente em Cesare Beccaria, autor de referência para a localização do surgimento dessa versão chamada clássica do Direito Penal. Segundo os editores no Brasil de sua obra Dos delitos e das penas, Beccaria “condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social, declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos”, bem como o caráter retributivo e preventivo da pena.

Em relação à proporcionalidade das penas, um detalhe que me pareceu curioso é que não se trata apenas de avaliar a gravidade ou lesividade do ato, mas igualmente sua frequência, isto é, se um comportamento não é comum, ele não precisa ser inibido tanto quanto aquele que, menos grave, perturba a organização social por ser habitual. Esse o caráter preventivo, exemplar da pena. A utilidade da pena também, nesse sentido, depende da certeza da punição. Segundo esse ponto de vista, não é o tamanho da pena, mas a certeza de não impunidade que seria um fator mais poderoso de inibição do crime.

Destaco de um artigo de Savino Filho (2014), “Evolução do Direito Penal – Comentários”, a afirmação de que as primeiras manifestações do Direito se iniciaram com os primeiros agrupamentos humanos, em que a necessidade da ideia de punição nasceu do próprio convívio comunitário, em defesa do sentimento natural e sobrevivência contra atos injustos. Formulação que corrobora o argumento de Lacan no texto da criminologia, ao dizer que não existe sociedade em que não se estabeleça a relação crime-castigo através de uma lei positiva.

O autor afirma ainda que a formação do Direito Penal se deu em ciclos em que os castigos evoluíram. Ele lista: perda da paz, vingança privada, composição pecuniária, castigo corporal e pena pública, que eram regulados e desenvolvidos através de leis de usos e costumes, das legislações do Oriente, da Grécia, do Direito Romano, do Germânico, do Canônico, do Penal comum.

Seu artigo descreve as Escolas Clássica (Beccaria), Positiva (Lombroso), Eclética e destaca a Escola Nova de Defesa Social, que surge no pós-guerra. Essa nova Defesa Social reconhecia a luta contra a criminalidade como sendo uma das mais importantes tarefas da humanidade, tarefa que exigiria os meios adequados para esse combate. Esses meios adequados, que foram propostos como um programa mínimo que excluísse a ideia de pena ou retribuição, deveriam buscar a desjuridização e ter um caráter não repressivo.

O autor ainda assinala uma aproximação do Direito Penal com o Direito do Menor, a partir dessa escola nova de Defesa Social, com ênfase nas medidas de tratamento com vistas à reeducação e à reinserção social.

Ele destaca as teorias finalistas: o fim do Direito Penal é a proteção social e o controle. Cita Luigi Ferrajoli e articula garantismo penal com intervenção mínima. Esse ponto articula direito do cidadão e limite da intervenção do estado. Ressoa ao que Lacan aponta sobre a crise de legitimidade do exercício da punição pelas classes dominantes. Localiza-se aí uma crise do Direito Penal.

Ao percorrer rapidamente essa história do Direito Penal, podemos afirmar que se trata de mais uma crise, ou propor que a condição do Direito Penal seria de crise permanente?

Na atualidade, testemunhamos a existência de uma tendência internacional de humanização das penas, pelo menos em tese, atendendo às regras mínimas da ONU para as prisões, que datam de 1955, também no contexto do pós-guerra e da declaração dos direitos humanos, já apontados aqui como o pano de fundo da comunicação de Lacan sobre criminologia.

No Brasil de hoje, por um lado, Maierovitch (2014) afirma que a pena tem a finalidade ética de emenda, ressocialização e reinserção social, além de sua natureza retributiva e aflitiva. Por outro, Juarez Tavares (2014), entre tantos outros, critica o projeto de mudança do Código Penal em discussão no Congresso Nacional, por considerá-lo de caráter retórico e usar de apelo emotivo para justificar o endurecimento das penas. Afirma que o projeto está focado na punição, na criminalização dos movimentos sociais e que desconhece a falha do Estado em não promover a ressocialização do preso.

Enquanto isso, nos complexos penitenciários, funciona uma ordem feroz, um rigor nos castigos determinados pelos próprios presos, torturas, um real que nos espanta e revolta. Que coloca em questão não somente a dita falência do sistema, mas que nos permite relançar a pergunta sobre a função expiatória do castigo, para o sujeito e para o tecido social. Também, paradoxalmente, assistimos à chamada “judicialização” de todos os tipos de laços sociais e de todos os campos da existência. Exemplos não nos faltariam, seja de nossa prática profissional, seja de nosso cotidiano.

Perguntamo-nos sobre a incidência dessa pena privada da função de castigo, dessa demissão da autoridade de sua função de julgar e castigar, dessa alegada “desjuridização”, sobre o real da pulsão que se presentifica no crime ou no ato infracional.

Pode-se dizer que, para a discussão sobre nossa prática, em particular no sistema socioeducativo, devemos nos perguntar que contribuição a psicanálise lacaniana pode oferecer para possibilitar ao sujeito os instrumentos para saber fazer com o real em relação ao qual ele se encontra desarmado.

Dos trabalhos apresentados em nossos encontros do semestre, recolhemos alguns pontos de referência para abordar isso que escapa à regulação, mas que pode recorrer a um discurso como o do Direito.

Hélio Miranda pergunta: como produzir uma outra dimensão da verdade frente à demanda do judiciário de constatar a verdade dos fatos? E apontou a possibilidade de introduzir uma experiência da verdade que considere o sujeito e que, pela abertura da enunciação e manejo da transferência, faça vacilar o imaginário (abuso da criança pelo pai) e possa tocar a experiência do real (o real traumático da própria experiência infantil da mãe) e relançar o campo do desejo.

Fernando Casula apresentou-nos os paradoxos da inimputabilidade e suas consequências para o sujeito “fora da lei” que é o psicótico. Fora da lei também é o real da pulsão, sobre a qual o sujeito é, no entanto, responsável. As questões que Fernando nos apresenta concernem à função da ficção jurídica como um tratamento para esse real, tratamento a ser produzido via consentimento à punição. Nessa direção, opõe o utilitarismo da pena à responsabilização. A proposta de uma pena sob medida, podemos chamá-la de “utilitarista”, ao modo da psicanálise? Como um uso da ficção jurídica para inscrever o sujeito?

Kátia Mariás, ao tratar do crime e da violência, convidou-nos, com Freud e Lacan comentados por Maria José, a pensar a violência na perspectiva do excesso pulsional. Aquilo que em Freud é nomeado como pulsão de morte, mais além do princípio do prazer, e em Lacan, como o real do gozo. Excedente pulsional não regulado que, quando atuado, é a violência. Então, o ato tem uma causa: a presença do real do gozo. Lembrou-nos, ainda, que, para Freud, o crime edipiano era a forma privilegiada de dar tratamento à violência pulsional. O ato criminoso se constitui uma defesa contra a angústia que sinaliza a presença do objeto. O ato é uma espécie de resposta, de tratamento pela desaparição do sujeito no ato. Culpar-se por um crime, seja ele cometido ou desejado, para Freud, seria uma maneira de se estabelecer dentro da lei do pai. Na concepção lacaniana, o assentimento ao castigo é o que garantiria a possibilidade de responsabilização. Nesse sentido, a lei e a pena poderiam ser “úteis” ao sujeito.

Ludmilla Féres Faria, ao apresentar-nos o supereu, demonstra o avesso do princípio utilitarista. Aponta que o real da pulsão que escapa a qualquer artifício pode ser entrevisto na referência ao supereu, entendido como a instância que impede o equilíbrio ao encontrar no sofrimento a própria satisfação. Nesse sentido o supereu pode ser traduzido como a divisão do sujeito, dado que mostra que o sujeito não quer seu próprio bem, que ele trabalha contra si próprio.

Graciela Bessa segue essa trilha, lembrando-nos de que a hipótese do supereu sustenta que o que impede que a agressividade se dirija aos outros é a própria pulsão de morte, que, através do supereu, exerce sua ferocidade contra o sujeito. Uma vez que essa pulsão de destruição, ou de morte, é estrutural e que, enquanto pulsão, engendra uma busca de satisfação que não cessa, como tratá-la, temperá-la, nos termos que Graciela nos apresenta? Em seu texto, ela tece considerações sobre o mal-estar na cultura, apontando que, para Freud, é o mal-estar do sujeito, que ela nomeia mal-estar na identificação, que é o fundamento do mal-estar na cultura.

Em nosso último encontro, Maria José e Marina Otoni nos apresentaram alguns dos pós-freudianos que exploraram, de alguma forma, o campo da criminologia, relacionando suas descobertas e proposições à concepção freudiana, enunciada em 1906, em “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”. A questão pulsional é considerada por esses autores, segundo uma concepção desenvolvimentista da libido, o delinquente ou o criminoso sofreriam de uma fixação libidinal e permaneceriam em uma posição infantil. Para alguns desses autores, a questão do tratamento do criminoso envolve a educação ou uma reeducação (Seria possível pensar em uma “educação” das pulsões, sendo essa a contribuição da psicanálise à justiça, para esses autores?). Sobre a punição, esta não se coloca como uma condição para a responsabilidade, pois têm maior peso as ideias de prevenção e de cura.

Uma palavra sobre o real da pulsão. O que resiste ao simbólico é a pulsão de morte. Não se desenvolverá aqui esse tema, que já foi tratado nas intervenções ao longo do semestre, retomadas acima. Encontramo-nos em um momento da história humana, que pode ser escrito através do matema a>I, em que o programa civilizatório não privilegia a interdição ao gozo. Pelo contrário, o que se coloca é um imperativo de gozar e uma oferta insidiosa de objetos, um excesso sem regras. A esse propósito, cito o verbete “Excesso” do volume Scilicet “Um real para o século XXI”.

A crise atual da civilização não é, no entanto, um processo casual, mas, antes, um programa relacionado com a produção de um novo procedimento normativo posto na base de uma nova (in)civilização. […].

Esta é, portanto, nossa tese, a civilização do excesso (de gozo) é um discurso, um novo saber/poder que se exercita sobre as vidas através da injunção de gozo. […] É um poder que se exerce sem metáfora, sem insígnias, sem retórica e, em alguns aspectos, sem sentido (RAMAIOLI, 2014, p.139-140).

Miller (2009) chega a apontar que, se existe culpa na contemporaneidade, seria uma culpa de não gozar. Se a pulsão não pode ser educada, ela pode ser tratada pelos ordenamentos sociais e jurídicos. É também disso que Lacan trata nesse artigo. É, então, nesse sentido, que, no que se refere à psicanálise de orientação lacaniana, discutimos as novas ficções jurídicas que poderiam ser criadas para dar contorno, fazer borda a esse real.

Gostaria de esclarecer que tomei alguma liberdade para abordar a questão da utilidade ao não me deter em uma exploração circunscrita à referência ao utilitarismo, seja na Filosofia ou no Direito, mas tenha me permitido inverter a questão da utilidade, referindo-a ao pragmatismo proposto por Miller (2008) e que justificaria a ação lacaniana na cidade e nas instituições. Assim, também Miller aponta em que a Psicanálise poderia ser útil ao Direito, e, entre outras considerações, afirma que a Psicanálise permite ao Direito nuançar a crença na verdade, ao considerar a distinção entre o verdadeiro e o real. Como, para abordarmos o real, precisamos recorrer aos semblantes, inventar, o Direito, ao reconhecer-se como ficção, também poderia prestar-se, ser útil, ao tratamento desse real.

(1) Texto proposto para discussão no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 04/06/2014, no encerramento das atividades do semestre.

 


 

Referências
FOUCAULT, M. “Conferência IV”. In: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999. p.79-102.
LACAN, J. (1950). “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.127-151.
MAIEROVITCH (CARTA CAPITAL, 12/02/2014). “As prisões e os microtraficantes”. p.39.
MARTINELLI, J. P. O. “Uma leitura utilitarista do Direito Penal Mínimo”. Disponível em: www.academia.edu/5799781/uma_leitura_utilitarista_do_direito_penal_minimo. Acesso em: maio 2014.
MILLER, J.-A. “Rumo ao PIPOL 4”, Correio, São Paulo, n.60, p.7-14, 2008.
MILLER, J.-A. “Nada é mais humano que o crime”. In: Almanaque on-line n.4, jan-jun/2009. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque4.htm. Acesso em: maio 2014.
RAMAIOLI, I. “Excesso”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. (Orgs.). Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p.139-141.
RASSI, P. V. de G. S. Direito Penal Mínimo, Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano XI, n.50, fev 2008. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4498. Acesso em: maio 2014.
SAVINO FILHO, C. A. “Evolução do Direito Penal – Comentários”, Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: www.smithedantas.com.br/texto/ev_dir_penal.pdf. Acesso em: maio 2014.
TAVARES, J. (CARTA CAPITAL, 02/04/2014). “Retrocesso, não”. p.58.

Márcia Mezêncio
Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos), Psicanalista, Membro da EBP/AMP. E-mail: marcia.mezencio@terra.com.br.



Trauma E Devastação: A Relação Mãe-Filha

ANDREA, MARGARET, MARIA DAS GRAÇAS SENA

 

Partimos da pergunta se a devastação poderia ser considerada traumática e, por meio, tanto da investigação clínica, como dos textos de Freud e Lacan, formulamos uma hipótese de trabalho para ser aqui discutida em nosso Núcleo de Pesquisa, qual seja: é o encontro com a falta de significante que definiria A Mulher ou, em outros termos, a descoberta de que A Mulher não existe, cujo matema é também o S(A/), que seria traumático para todo sujeito, especialmente para o sujeito feminino? A devastação decorre da inexistência desse significante d’A mulher e pode tomar a forma de um gozo sem limites.

O termo devastação, em francês, ravage, conserva duas direções de sentido. Ou está associado à ideia de ruína, destruição, ou a de um corpo arrebatado na vertente de um êxtase, de uma felicidade suprema, que é lançado fora do tempo e do espaço. No dicionário, seu sentido remete a uma destruição sem limites, a algo avassalador. Devastar é arruinar, tornar deserto; mas também pode indicar arrebatamento, deslumbramento, encantamento, para os quais o termo francês mais usado é ravissement.

O Que É Devastação No Sentido Da Psicanálise?

Graciela Bessa, em seu livro Feminino: um conjunto aberto ao infinito (2012), afirma que encontramos, na teoria lacaniana, três momentos em que a devastação aparece ligada à sexualidade feminina. Em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992) ela surge ligada ao desejo da mãe e, independentemente de ser menino ou menina, o desejo da mãe sempre causa estragos (podendo a criança estar submetida ao pior desse desejo). Em “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retorna ao tema da devastação, como veremos a seguir, e em O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007), ao fazer referência à devastação, no campo amoroso, Lacan afirma que um homem pode ser pior que uma aflição, pode ser uma devastação para uma mulher.i

Num sentido análogo à devastação mãe-filha, Freud (1931-1933/1976) já havia identificado essa mesma questão, mais no final de sua obra, nomeando-a sob outros termos: catástrofe, estrago.

Vejamos como essa teorização sobre a devastação elucida o tema do trauma.

A citação extraída do Seminário 17 é a que, inicialmente, nos colocou a trabalho:

O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a bocarra. O desejo da mãe é isso (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

E Lacan prossegue afirmando que, no entanto, há algo de tranquilizador nessa história. “Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha” (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

Esta citação torna-se mais clara se recorrermos a Lacan quando ele aborda o complexo de Édipo, a partir da fórmula da metáfora paterna, em que fica evidente a presença da mãe na questão da feminilidade da mulher.

A partir da combinatória presença/ausência da mãe é que se instala um x no campo da criança, independentemente de ser menino ou menina, surgindo uma pergunta sobre o que satisfaz essa mãe para além dela. Lacan afirma sobre o que mais importa aos destinos da criança, que “não é um mais ou um menos de real que tenha ou não tenha sido dado ao sujeito, mas é aquilo pelo qual o sujeito almejou e identificou o desejo do Outro que é o desejo da mãe” (LACAN, 1958/1998, p.283).

Se pensarmos que essa fórmula refere-se à constituição de um sujeito como desejante, algo deve suceder para que esse desejo, obsceno e voraz, impossível de se suportar como tal, se articule ao significante. Essa operação só é possível se operar aí o significante do Nome-do-Pai.

Assim, teremos duas vertentes do desejo da mãe: aquele que é articulado à castração materna e que gera angústia (che vuoi?) e aquele que, graças à metáfora, substitui esse enigma opaco pelo Nome-do-Pai, gerando um efeito de significação.

É assim, então, que podemos falar do falo como significante do gozo (fálico), já que ambos (falo e gozo) se encontram coordenados pelo Nome-do-Pai. Miller (1994), em “Clinica del superyo”, localiza o Nome-do-Pai com uma função coordenada ao desejo, e ao supereu como função coordenada ao gozo. Não se trata aqui do supereu freudiano, herdeiro do complexo de Édipo, mas do supereu lacaniano, aquele que ordena gozar. Supereu materno, cuja lei insensata está muito mais ligada ao desejo da mãe que ao pai, ou seja, “antes que o desejo seja metaforizado e apreendido pelo Nome-do-Pai”.

Acreditamos que é aqui, precisamente, o ponto em que podemos localizar a devastação: não como um conceito, e sim como efeito da incidência traumatizante desse gozo puro, sem medida, não limitado pelo falo. Gozo que está sempre presente e que o sintoma não consegue metaforizar.

A Devastação Na Menina

No texto “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retoma o termo devastação para afirmar que a menina parece esperar algo da mãe que não se situa inteiramente sob o signo da castração, ou seja, que não se situa sob o significante do falo. Segundo Lacan:

Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai — o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (LACAN, 1972/2003, p.465).

O texto “O aturdito” (1972/2003) é contemporâneo às elaborações de Lacan sobre as fórmulas da sexuação e sobre o gozo feminino. Ali, onde se poderia encontrar a referência de um homem devastador para uma mulher, o que se descobre é a referência ao Édipo freudiano. Ao mesmo tempo em que Freud considera que “a mulher, no Édipo, se move como peixe n’água”, isto é, em seu ambiente natural, Lacan afirma que isso “contrasta dolorosamente” com a referência de que, para “a maioria das mulheres, a relação com a mãe é devastadora”. É da relação com a mãe como mulher que a filha espera encontrar algo com mais “substância”, que vai para além do falo, ou seja, a sexualidade feminina implica necessariamente diferenciar uma mãe da mulher.

Vimos, anteriormente, que ter de enfrentar o enigma do desejo e o mistério do gozo da mãe gera muita angústia na criança, sobretudo ao se confrontar com a especificidade da anatomia feminina. Embora não haja propriamente falta no corpo da mulher, a particularidade de sua anatomia faz com que, no inconsciente da menina e do menino, a anatomia feminina inscreva-se no registro de uma falta. Não é tanto a questão anatômica, mas como ela está subjetivada como falta da mãe, no tocante ao desejo e ao gozo.

Aprendemos com a psicanálise que, quando falamos menino-menina, não queremos dizer, necessariamente, que estamos nos referindo às posições masculina e feminina, pois, na realidade, essas posições estão ligadas ao significante, não tendo nada a ver com a identidade sexual anatômica.

Se, para Freud, a anatomia é o destino, para Lacan a anatomia é um efeito do discurso. Mesmo tendo claro que a anatomia não é o destino, isso não deixa de ter consequências sobre o sujeito. Vejamos como um e outro responderam a essas questões.

Freud considerou que, nos meninos, embora o pênis seja apenas um suporte imaginário para o falo, ele é bastante consistente para o homem ter esse representante de seu sexo no inconsciente, e, desse modo, poder subjetivar seu sexo com “eu tenho”. Isso é o que possibilita ao menino desligar-se, mesmo que não completamente, desse gozo materno.

E como pensar então na modalidade dessa relação ao desejo da mãe quando o sujeito em questão é uma menina?

Pelas mesmas razões anatômicas, porém, inversamente, isto é, de “não ter” o pênis, possibilitando que a saída histérica seja a mais frequente na mulher. “Ter ou não ter” foi o modo como Freud tentou responder ao enigma da sexualidade feminina. Porém, Lacan, ao inventar as fórmulas da sexuação, avança sobre o ponto deixado em aberto por Freud, esclarecendo sobre as raízes lógicas do desmedido que uma mulher espera da sua mãe.

Em seu O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973/1985), Lacan apresenta suas fórmulas da sexuação e explicita a diferença sexual a partir da lógica, fazendo do falo uma função e mostrando como homens e mulheres cumprem ou não a função fálica. “Quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro” (LACAN, 1972-1973/1985, p.85). Os sujeitos que se posicionam do lado dos homens estão confrontados com uma exceção, que, por sua vez, possibilita um conjunto fechado. Isso quer dizer que todos aqueles que ali se encontram estão inscritos na lógica fálica.

Do lado das mulheres, isso não é possível. Elas não estão confrontadas a uma exceção e sim a uma inexistência, e, consequentemente, do lado feminino, não se pode construir o conjunto de todas as mulheres. A ausência de exceção constitui a mulher fora do universal, em que cada uma é uma. Portanto, o feminino é elucidado pelo viés de um gozo que tem relação com o ilimitado, isto é, o gozo do corpo não se encontra limitado pelo falo. A devastação pode, a partir dessa leitura de Lacan com respeito ao gozo feminino, ser lida como uma dificuldade estrutural própria à inexistência do todo-feminino, ligado ao S(A/).

Segundo Recalde (2012), partimos da histeria para entendermos o caminho que a menina percorre ao “tornar-se mulher”. Segundo a autora, a histérica conta com dois caminhos: ou bem aparece como a que “tem”, ou bem ostenta o que lhe falta e, por isso, “é”. Já a pergunta sobre a feminilidade encontra, com Lacan, uma saída pela via significante que lhe permite abordar o não-todo.

Quando se tem a referência ao falo, podemos localizar aí a saída histérica que, como qualquer homem, está submetida sob a égide do falo (lado esquerdo das fórmulas da sexuação). Mas também poderá se desdobrar, já que tem por um lado relação com o falo, mas por outro lado, está ligada a esse gozo que escapa ao Nome-do-Pai.

Desdobramento que lhe permite, assim: articular-se, por um lado, ao falo, mas também se conectar a essa dimensão mais além do falo, onde poderíamos localizar o lado feminino.

Na clínica, deparamo-nos com os diferentes modos de o sujeito feminino se posicionar em relação à falta: algumas se sacrificam ostentado a falta, outras se localizam como excepcionais, outras se comportam como se tivessem o falo, enfim, diferentes modalidades de situar-se frente a esse gozo mais além do falo, cujo efeito pode ser devastador

Portanto, o termo devastação, empregado por Lacan para designar a relação entre mãe e filha, refere-se também ao que está para além da reivindicação fálica dirigida à mãe, ou seja, ao encontro da menina com o Outro materno, enquanto Outro do gozo. A impossibilidade de dar um contorno ao excesso é a devastação.

Devastação, Trauma E Lalíngua

Marie-Hélène Brousse (2004) afirma que, nos casos clínicos de devastação que lhe servem como referência, a função paterna demonstra não operar nenhum apaziguamento, portanto, o pai se manifesta a serviço do capricho materno e não como agente de sua privação. O traço que caracteriza o pai é sempre a impotência.

A hipótese de Marie-Hélène Brousse (2004) é a de especificar o tipo de emergência singular da linguagem no sujeito, ou seja, o modo como a mãe inscreveu a criança num universo simbólico e discursivo, em que cada história de vida é um desdobramento. Para Brousse, a devastação se situa no campo da relação entre o sujeito e a mãe, o Outro da linguagem e a relação com a fala.

Uma das marcas dessa “aventura primordial do que se passou em torno do desejo infantil” é a marca deixada pelo fato de a mãe ser a detentora dos poderes da palavra. O primeiro dito da vida da criança é o da mãe, e não o da criança.

A mãe que decreta, legifera e sentencia sobre tudo o que tem a ver com a existência da criança e é assim que as palavras da mãe adquirem um sentido de profundas consequências para o seu destino, […]. Na memória reencontramos a voz, às vezes devastadora e persecutória das palavras, dos imperativos e dos comentários inesquecíveis desse Outro materno primordial que se apresentara investido de uma obscura autoridade (ZALCBERG, 2007, p.33).

Essa emergência da linguagem pode se dar, segundo Marie-Hélène Brousse, sob a forma do insulto, sob a forma de recusa e, ainda, sob a forma do imperativo do silêncio. O ponto comum dessas emergências é a conexão dessas experiências de fala com o sexual como traumático, isto é, a experiência pulsional do sujeito, ainda que tenham destinos estruturais diferentes e constituírem sintomas bem distintos.

Segundo Brousse:

Em todas essas ocorrências, a fala do Outro materno está associada à descoberta de uma experiência de gozo. Mas — segunda característica — essa emergência que tem como pano de fundo um gozo sexual traumático, ou seja, de inscrição do corpo por um significante se realiza no momento em que surge a diferença dos sexos, no seio da função fálica, sob a forma de um enigma. Enfim, essa emergência consagra a crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe escapando à falta da castração e que apresenta ao sujeito uma alternativa mortal: ou o dejeto ou a reintegração pela genitora do seu produto (BROUSSE, 2004, p.211).

Foi dito anteriormente que o desejo da mãe não é totalmente recoberto pela significação fálica, através do Nome-do-Pai. Existe sempre um resto que escapa ao falo. A devastação pode então aparecer no ponto do gozo enigmático percebido na mãe pela menina, gozo esse desconhecido, feminino e não limitado pelo falo.

Desde Freud, é possível situar a mulher segundo duas vertentes: a primeira, que aponta a mulher como um ser portador da falta fálica, de um menos de gozar, derivado do complexo de castração, e a segunda vertente, que aponta para um excesso traduzido pelo desejo insaciável da mulher de possuir um pênis. Lacan, ao dizer que a mediação fálica não drena todo gozo de uma mulher, coloca-o na via do suplemento, do não-todo subordinado à logica do todo, do completo. O suplemento aponta para “um a mais”, sem que o todo esteja aí implicado.

Desse modo, a teoria sobre a devastação e a sexualidade feminina da qual ela decorre nos ensina que a sexualidade é traumática porque o discurso sempre falta para falar sobre o gozo. É a entrada na linguagem que é traumática porque o sujeito se depara com a falta de significante no Outro para dizer seu ser de gozo. O S(A/) é o próprio matema do trauma.

De acordo com Lacadée (2010), Lacan criou o neologismo “troumatisme” que serve para designar o verdadeiro valor do trauma psíquico, seja o encontro de um buraco na linguagem, de uma falta de saber no Outro sobre o gozo sexual do sujeito. O “troumatisme” é um outro nome do axioma lacaniano: “não há relação sexual”. O real faz uma ruptura no tecido simbólico da significação e uma ruptura imaginária, um lugar vazio de sentido. O traumatismo produz a desarticulação da cadeia significante, dos significantes S1 e S2.

A partir daí se podem conceber a força e a imensidão do que uma mulher espera da sua mãe. Trata-se de algo que a mãe não lhe pode dar, nem a existência enquanto mulher, nem o ser de mulher, tampouco a “substância feminina”. A mãe não lhe pode dar não porque ela não queira, mas porque se trata de algo da ordem do impossível, no sentido daquilo que não cessa de não se inscrever para a mulher. Considerando-se que a relação de devastação é uma suplência à relação sexual que não existe, sendo, assim, o sujeito é desapossado do seu lugar,

[…] esse lugar que não existe mas pode ser declinado como fala, e o sujeito é então reduzido ao “silêncio”; com corpo, e o sujeito não passa de um “corpo em excesso”, ou de uma carne desfalicizada que é um “buraco negro”; como errância, fenômeno de despersonalização, de autodesaparição (BROUSSE, 2004, p.215).

A devastação se faz presente em sua articulação com o desejo da mãe enquanto mulher e ao modo como o sujeito criança pode encarnar o objeto do gozo materno.

(1) Essa vertente da devastação não será explorada neste trabalho.

 


Referências
BESSA, G. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
BROUSSE, M.-H. “Uma dificuldade da análise das mulheres: a devastação com a mãe”, Latusa, Rio de Janeiro, n.9, p. 203-218, 2004.
FREUD, S. (1931). “Sexualidade feminina”. In: O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.257-279. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIX).
FREUD, S. (1933). “Feminilidade”. In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.139-165. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XXII).
LACADÉE, P. “L’enfant est le père de l’homme ou Le malentendu du traumatisme”. In: Le malentendu de l’enfant. Paris: Ed. Michèle, 2010. p.63-77.
LACAN, J. (1972). “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.448-497.
LACAN, J. (1957-1958). O Seminário 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Miller, J-A. “Clinica del superyo”. In: Reocorrido de Lacan. Buenos Aires: Manantial, 1994. p.143.
NAJLES, A. R. “Voz: com que objeto se fala?” In: Scilicet. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008. p.349-351.
RECALDE, M. “Madre, niña, estrago, uma salida possible”. In: GLAZE, A.; ACEVEDO, L. (Orgs.). No locas del-todo. Buenos Aires: Grama, 2012. p.83-89.
ZALCBERG, M. Amor paixão feminina. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

Andrea, Margaret, Maria Das Graças Sena
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br Maria das Graças Sena – Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise. e-mail: dadesena@yahoo.com



Incidências Do Trauma: O Que De Real Encontramos Em Nossa Clínica Com Crianças?

CRISTIANA PITTELA DE MATOS

Introdução: Um Real

Nosso século XXI, marcado pela dissolução dos semblantes, consequência do binarismo ciência-capitalismo, levou Jacques Alain-Miller, em Un réel pour le XXIe siècle, a afirmar o quanto o real insiste em se manifestar de um modo caótico e aleatório, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia. Em seu curso O ultimíssimo Lacan, Miller definirá o real enfaticamente como “um novo tremor!” (MILLER, 2013 p.208).

Somos surpreendidos e vivemos, uns mais, outros menos, inquietos e sobressaltados: a dimensão de contingência e a desordem do real prevalecem.

“O verdadeiro real”, nos disse Lacan, “implica uma ausência de lei. O real não tem ordem: … é desprovido de sentido” (LACAN, 1975. p.131, 133).

Vários são os discursos que tentam apagar, domesticar, calcular, controlar, educar e até mesmo prevenir o real, com protocolos, medidas de vigilância e segurança; mas o real insiste, retorna, escapa às tentativas de enquadramento. A psicanálise, por sua vez, possibilita um outro modo de apreensão do real e a chance de operarmos com ele.

Miller convida-nos, enquanto psicanalistas, a investigarmos, no sujeito do século XXI, “a dimensão da defesa contra o real sem lei e o fora do sentido” concernindo um real tal como o inconsciente de cada um permite apreender. Propõe-nos, assim, que a defesa possa ser perturbada (MILLER, 1998), e mesmo desmontada (MILLER, 2013), para que se atinja a singularidade e a diferença de cada sujeito — pedaço de real que não muda, incurável — e que um novo enlaçamento a partir desse ponto possa se produzir.

Podemos nos perguntar: como perturbar (deranger) a defesa?, questão que Miller (2013) também nos apresenta, no “Prefácio” do livro de Hélène Bonaud: L’inconscient de l’enfant. Verificamos, em muitos casos, em nossa clínica com crianças, que intervimos antes mesmo que a defesa tenha se cristalizado; assim, o encontro com um analista possibilita ao sujeito a construção de um sintoma como resposta ao trauma, à perturbação do real.

Nossa pesquisa, neste ano de 2014, se inicia a partir do trauma, conceito proposto tanto pela Seção Clínica do IPSM-MG — Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? — quanto pela Nova Rede CEREDA — O traumatismo e o Real na Clínica: o que as crianças inventam?.

Podemos, então, nos perguntar: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? Como o real se apresenta para cada criança?; ou, ainda, como cada criança — cada sujeito — concerne um real? É afetado por um real? Responde a um real?

Nossa investigação e work in progress contam com o argumento às 43a Jornadas da École de La Cause Freudienne — Les traumatismes dans la cure analytique: bonnes et mauvaises rencontres avec le réel — em que Christiane Alberti e Marie Helene Brousse relembram o conhecido exemplo da Interpretação dos sonhos:

Um pai perdera um filho. Perda cruel, traumatismo no sentido corrente. Cansado, ele confiou a um senhor a tarefa de velar o corpo do filho amado e foi dormir em um quarto contíguo, deixando a porta entreaberta. Um barulho o desperta: o fogo começa a queimar o corpo amado. É a realidade. Como responde o inconsciente? – elas perguntam. Com um pesadelo, o filho aproxima-se e murmura: “Pai, não vês que estou queimando?”.

Onde está o trauma? – elas respondem: a impossível voz do morto; aí está o que verdadeiramente acorda o pai […]. Feridas que não se apagam de “perdas imajadas no ponto o mais cruel do objeto” […] o laço do trauma aos objetos deixa o sujeito sem bússola, em um mundo que perdeu o sentido. (ALBERTI; BROUSSE, 2013)

Nossa clínica toma, portanto, sua orientação desse real como impossível, ponto que faz traumatismo; vamos trabalhá-lo, neste primeiro semestre, tentando definir como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna; como a angústia é um sinal do real do trauma; investigaremos também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.

Nossa pesquisa visa também ao tratamento, às saídas e às invenções de cada criança frente a esse ponto opaco, e como o analista pode, com suas intervenções, tocá-lo para que propicie um novo arranjo, novas respostas e invenções.

Em suma, vamos tentar apreender o que de real encontramos em nossa clínica com crianças, a partir do inconsciente, passando pela barreira do recalque e da defesa que cada um constrói contra a ferida que o real constituiu quando se chega ao mundo, ou quando se está diante de acontecimentos traumáticos (GUÉGUEN, 2014).

O Trauma E O Troumatismo

O trauma é, desde sua origem grega — trôma — a experiência de uma ferida (LAURENT, 2013) que causa efração. Um choque súbito e violento que não permite a antecipação e produz um dano: a irrupção de um horror, o excesso de sensação e emoção, o silêncio de uma palavra jamais articulável. Algo impossível e insuportável acontece e desarranja o bom funcionamento do mundo, acarretando uma paralisação.

O trauma é assim um modelo paradigmático de um encontro que excede as palavras, as possibilidades discursivas, desvelando um real perturbador. Por mais que se fale dele, algo resta, uma marca indelével, sobre a qual se retorna colocando em jogo um impossível de simbolização.

Essa intensidade e a paradoxal exterioridade do trauma foram abordadas por Freud, segundo Laurent em “O trauma ao avesso” (2002), desde o “Projeto”, por suas metáforas energéticas, como o afluxo de excitação externa e, sobretudo, as excitações de origem interna, pulsional. Freud, em um primeiro momento, o concebe a partir de um acontecimento factual — uma sedução sexual — mas, em seguida, instaura a noção de fantasia inconsciente e realidade psíquica, pois ele encontra, no cerne de sua clínica, o trauma como um fato estrutural. Jacques-Alain Miller (2011) também aborda essa intensidade em seu curso “O Ser e o Um”, como a energeia, um buraco que bordeia a iteração do Um, tendo o efeito estranho de atração, de fascinação deletéria: um buraco negro.

Diante da generalização do termo trauma no campo da infância — agressão, estupro, sedução, violência, atos perversos, separação, morte, doença, acidentes, abuso, maus-tratos, exploração, crueldade, negligência, abandono, insulto, pesadelos — faz-se necessário situarmos esse conceito em nosso campo, pois, onde acreditamos ver o traumatismo — nos acontecimentos — ele sempre esconde um traumatismo real, aquele que é singular ao sujeito.

Frente a essa experiência que excede e esmaga o sujeito, como se perguntar sobre isso que o ultrapassa, sobre o que não chega a se representar? Sobretudo, ensina-nos Lacan, é nessa topologia que se encontra o sujeito: “o sujeito está aí, no lugar desta coisa obscura que chamamos como trauma, como prazer esquisito” (LACAN, 1966, p.4).

Esse é o ponto que nos interessa enquanto psicanalistas.

Um acontecimento só tem valor traumático para o sujeito por ser para ele um encontro contingente, singular. Ao possibilitarmos a implicação do sujeito em seu sofrimento, isso lhe restitui sua parte de responsabilidade, podendo abrir-lhe a via do desejo e a possibilidade de ele se reconciliar com seu gozo mais íntimo, alojando o trauma em um bom lugar. Nesse sentido, ali onde o sujeito foi solapado, ele pode advir e fazer algo com isso, à vitimização damos lugar ao sujeito e a um modo de satisfação. Como nos diz Sonia Chiriaco (2012), em Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse, a psicanálise se distingue imediatamente da vitimiologia, que faz do acontecimento o principal, e o sujeito, secundário, ou até mesmo ausente.

Lacan (1975) nomeou esse encontro como troumatisme, que implica a irrupção de um trop — um excesso, um gozo — e um furo, o fora do sentido. O que é traumático é esse choque material do significante com o corpo, que instaura, no parlêtre, a marca de um gozo inassimilável e uma perda irremediável.

Se o Outro da linguagem preexiste ao nascimento do sujeito, a criança nasce no mar da linguagem, ela, no entanto, é, primeiramente, objeto — causa de desejo ou dejeto do gozo dos pais — não tendo ao seu alcance o instrumento significante: a linguagem é, para ela, real, um real sem lei. Para essa incidência contingente do real da língua, de sua matéria sonora (moterialisme), Lacan inventará a expressão: lalíngua (LACAN, 1975, p.10). É com esse real de lalíngua que a criança se depara, encontro com o impossível, e que Lacan nomeou de inexistência da relação sexual. Um real, impossível de suportar, está, portanto, na raiz do trauma e concerne à singularidade de cada um: “…le Kern do ser, é este instante, é o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p.76).

Esse acontecimento fixa o gozo do Um e funda uma existência, anterior à sua entrada na linguagem — Outro — e em suas leis que dão ao sujeito condições para interpretar algo desse gozo. O inconsciente se estrutura para cifrar esse gozo insensato que escapa à significantização, experimentado nessa satisfação.

Esse real inassimilável, fora do sentido, é o gozo do corpo que se relaciona com o autoerotismo fundamental e tem relação com o ponto de inserção do significante no corpo, do significante trabalhando para a satisfação: “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, nos diz Lacan (1975/76, p.18). Nesse sentido, o traumatismo, para a psicanálise, tal como Lacan leu em Freud e nos ensina a tratá-lo, é uma marca irreparável no humano que escapa a toda programação e prevenção, revelando uma fixação pulsional. O encontro da língua com o corpo, nos dirá Miller, “mantém um desequilíbrio permanente, mantém no corpo e na psique um excesso de excitação que não se deixa reabsorver” (MILLER, 2003, p.378), retornando, re-iterando, nos sintomas, nos atos, na inibição, na angústia, nas ideias obsessivas, nos pesadelos.

E o que é complicado é que o real do encontro do significante no corpo torna o sujeito cúmplice da pulsão, é aí onde se situa nossa responsabilidade quanto ao gozo (ROCH, 2013).

O troumatismo inaugura o campo da fantasia que serve de tela ao real do trauma — uma defesa contra o real — e também do sinthoma como uma resposta ao trauma, enlaçando o não há da relação sexual — o real do furo no saber — com o há, isso que vai se repetir ao longo de nossa vida, a marca de um gozo, uma satisfação não toda e impossível de negativizar. Ou seja, a partir da contingência e do fora de sentido, há, no sinthoma, a tessitura de um nó singular do gozo do corpo com o significante determinando nossa vida, um savoir y faire com o real sem lei. A psicanálise, nos diz Miller (2014), existe para tentar que um trumain (l’être humain e trou) possa saber como comportar-se com o sinthome.

Em O avesso do trauma, Laurent (2002) propõe que abordemos o trauma em dois sentidos:

1º – Em um primeiro sentido, o traumatismo é um buraco real no interior do simbólico, ou seja, a partir do sistema simbólico, o sujeito encontra a presença de um real. A língua mortifica o gozo, mas há um resto impossível de ser simbolizado. É um ponto de real exterior no interior do simbólico.

2º – O segundo sentido que Laurent enfatiza do traumatismo é o simbólico no real, ou seja, um buraco do simbólico no real; trata-se, como vimos, da língua como real, o mal-entendido fundamental, o fora do sentido do vivente: lalíngua. Nesse sentido, a língua é causa. Segundo Laurent, depois de um trauma, é preciso causar um sujeito para que ele re-invente um Outro, em face da experiência no traumatismo da inexistência do Outro. Uma invenção causada pelo traumatismo.

Essas duas orientações são importantes em uma análise, pois uma análise se desenrola através do sentido que permite a subjetivação do trauma e consequente responsabilização do próprio sofrimento, assim como também toca o fora do sentido do gozo mais singular e opaco, levando Laurent a situar o trauma como um processo.

Vamos investigar esses dois sentidos, pois eles implicam lugares diferentes do analista, assim como sua escuta:

– No primeiro sentido, o analista, com sua escuta e interpretação, possibilita a restauração da trama de sentido, fazendo passar o real do gozo ao significante, uma escuta tomada na “ontologia do discurso do paciente” (MILLER, 2011), ou seja, refere-se à falta-a-ser e ao desejo.

Laurent (2002) ressalta ser uma vertente curativa, pois inscreve o trauma na particularidade inconsciente de um sujeito.

– No segundo sentido do trauma, o analista ocupa o lugar insensato — do objeto — e é traumático como a linguagem. A escuta visa à iteração, aos traços que marcam um modo de gozo e orienta em direção à existência, ao buraco, ao fora do sentido (BRIOLE, 2014). O analista, pelo equívoco e pelo corte, combate não só a demanda de sentido, mas pode tocar esse ponto real de causa e, assim, ajudar um sujeito a reencontrar a palavra, pois, diante da inexistência do Outro, é preciso inventar um modo de se arranjar com o próprio gozo.

Essas duas vertentes, podemos dizer, não são cronológicas, mas lógicas, e, em momentos específicos, podem estar presentes em uma análise: será preciso, então, que o analista meça, para cada sujeito, até onde ele pode apresentar os dois polos de sua ação (LAURENT, 2002).

Daí a importância — para a ação de um analista — de sua formação: do que ele faz com seu troumatismo.

 


Referências
ALBERTI, C.; BROUSSE, M.-H. “Argumento”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
BRIOLE, G. “Amarrações”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
CHIRIACO, Sonia. Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse. Paris: Navarin/Le Champ Freudien, 2012.
GUÉGUEN, G. “5 minutes à la radio”. Disponível em: www.congresamp2014.com. Consultado em: março/2014.
LACAN, J. (1975/1976) O seminário, livro 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1975) Conferência em Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (23), 1998. São Paulo: Edições Eolia.
LACAN, J. (1966) “Communication et discussions au symposium international du Johns Hopkings Center a Baltimore”. Disponível em: www.psicanaliseefilosofia.com.br. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “Trauma Blitz, Moment de concluire”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “O avesso do trauma”. In: Papéis de Psicanálise n .1, Belo Horizonte: IPSM-MG, abril/2004. p.21-28.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. O ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalitica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. O Ser e o Um. Seminário de orientação lacaniana, inédito.
MILLER, J.-A. “L’inconscient et le sinthome”. In: La Cause Freudienne n. 71, 2009.
ROCH, M.-H. “La Psychanalyse est traumatique”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.

 


Cristiana Pittela De Matos
Cristiana Pittella de Mattos, psicanalista, membro da EBP/AMP. E-mail: cristianapittella@yahoo.com.br



Almanaque On-Line Entrevista

COMISSÃO CIENTÍFICA DO XX EBCF

Esta edição n.14 do Almanaque on-line aborda o tema do XX EBCF, “Trauma nos corpos, violência nas cidades”, pelo viés da proposta de trabalho da Seção Clínica do Instituto para o ano de 2014, formulada como questão: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? Segundo Simone Souto, em argumento divulgado na Agenda EBP-MG e IPSM-MG do segundo semestre de 2014,

[…] em um primeiro momento, nossa investigação se dedicou a encontrar os meios através dos quais, em nossa prática, um real pode ser localizado. A partir daí, nos deparamos com uma nova questão: que respostas dar a um real que não se deixa tratar pelo sentido? Essa pergunta nos leva, agora, a abordar a invenção, ou seja, o que cada um inventa como resposta a partir do real. A invenção diz respeito, certamente, ao sujeito e ao que lhe é único, mas, também, não deixa de concernir o praticante e mesmo as instituições: o que temos feito para dar lugar às invenções do sujeito frente ao real? O que podemos recolher, da nossa experiência clínica e institucional, como um “saber fazer com o real”?

A partir desse argumento, solicitamos aos membros da Comissão Científica do XX EBCF que nos enviassem uma colaboração, um flash, um breve depoimento sobre o real que encontram em sua prática clínica, pesquisa teórica ou uma indicação de como esse real pode ser abordado – uma obra literária, um filme ou obra de arte – bem como sobre as invenções possíveis diante desse real.

Recebemos os depoimentos abaixo, pelos quais muito agradecemos aos seus autores.

CARLOS AUGUSTO NICÉAS: “Eu sou um deprimido”. Assim João se nomeou quando chegou dizendo-se um fracassado em tentar fugir da “desgraça” que aconteceu em sua vida amorosa. E trouxe a marca do seu traumatismo nas pontuações e nas palavras escolhidas para falar do seu sofrimento. Ele já atravessara quase um ano sob efeitos de antidepressivos receitados por um colega seu, melhor amigo desde a faculdade, e logo me confessou: “Eu me entupi de remédio, eu só queria evitar o pior”. João é ortopedista e, com termos próprios de seu saber particular, me diz por que decidiu vir falar a um analista: “Eu cansei meu amigo repetindo o que me aconteceu, foi bom contar com seu ombro para não morrer, mas não fez ‘calo’, a fratura continua exposta”. E prossegue: “Toda minha vida eu cuidei de traumatizados, agora eu preciso cuidar do que se quebrou dentro de mim”. Um abandono, o da mulher, ele o põe no lugar de causa do seu “traumatismo”, acontecimento que, em sua contingência, o encontrou “totalmente despreparado”. Na mesma entrevista, refere-se ao efeito do acontecimento assim:

Ela me pegou de surpresa, comunicou brutalmente que estava apaixonada por um colega de escritório, arquiteto como ela, com quem estava me traindo há um ano e com quem iria morar a partir daquela semana. Tudo isso numa enxurrada só, o casamento acabou assim, ela saiu assim da minha vida, e eu fiquei vários dias sem entender o que se passou, andando pela cidade como um “zumbi”, completamente siderado. Depois começaram os sintomas: depressão, insônia, dores no corpo todo. O que me mantém de pé é o antidepressivo, que eu já estou reduzindo desde que decidi vir me tratar aqui.

Assim, João, ortopedista de “acidentados do trabalho”, em um hospital público, decidiu “ver o que está quebrado e que ainda dói dentro de mim”, porque precisa estar “curado, para o caso de a vida me dar outras rasteiras”. A psicanálise não lhe é uma “matéria” muito conhecida, diz ele, mas do nome de Freud ele diz se lembrar:

Como eu sou um médico que se interessou por osso, essas coisas da alma fogem da minha cultura, mas minha primeira namorada era psicóloga, e, um dia, ela leu para mim um texto de Freud em que o psicanalista era comparado a um cirurgião da alma. Foi dela que me lembrei quando o amigo psiquiatra que me receitou o antidepressivo me sugeriu vir falar com um analista, procurar você, porque ele não estava vendo muita mudança em mim.

Nesse momento em que vir falar a um analista parecia já abrir um lugar diferente para João, um lugar não somente para “desabafar” com um amigo ou se “entupir” com medicamentos, acreditando assim e até agora lutar contra o real antes que ele se presentificasse, eu suspendi essa primeira entrevista e, antes de oferecer-lhe uma segunda, mantive aberta a porta da psicanálise, sublinhando simplesmente da escuta das palavras de sua lembrança: “Dela, mas também de Freud…”

Vir falar a um analista pode trazer já embutida, na demanda de psicoterapia, um esboço de mudança subjetiva. João, em uma de suas sessões preliminares imediatas à primeira, me diz: “No começo, eu me perguntava por que a vida me fez isso, mas, agora, eu desconfio de que não era também para ficar assim, tanto tempo vagando como um zumbi”. É, João me pareceu ter chegado começando a desfazer uma identificação ao significante “vítima”, ao qual ele se colou para se proteger do efeito traumático do abandono que sofreu do Outro. Não querendo somente responsabilizar o Outro para justificar seu sofrimento, eu já o escutava nesses primeiros tempos da transferência esboçando uma implicação de sujeito, mesmo que isso lhe fosse ainda opaco e enigmático.

MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática?: questão que orienta o trabalho da Sessão Clínica do IPSM-MG, rumo ao XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. As discussões no Núcleo de Psicanálise e Direito têm nos aproximado do eixo temático “Psicologia das massas, análise do eu… e a deriva das pulsões”.

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud afirma que a identificação é a forma mais antiga de laço libidinal. A identificação com o ideal permite a coesão da massa, ainda que ela, em momentos específicos, possa irromper em explosões de violência.

Na prática com os adolescentes e jovens, nas instituições educativas e socioeducativas, vemos como eles, mesmo que circulando lado a lado no mesmo espaço, não se agrupam, segundo a lógica freudiana da referência ao ideal do eu. Ao contrário, muitas vezes, permanecem na satisfação com os objetos, e são frequentes as manifestações de violência e agressividade entre eles e contra os responsáveis pelo trabalho nas instituições, impossibilitando ou dificultando o laço com o Outro proposto.

É possível considerar que a mudança no programa de satisfação de nossa civilização — da renúncia em prol de um ideal, para o imperativo de satisfação — teve como consequência um “mal-estar nas identificações” ou mesmo uma “patologia nas identificações”, que chega até nós por meio das irrupções de transgressão e violência. As contribuições da psicanálise de orientação lacaniana sobre as nomeações têm nos permitido aproximar e intervir em algumas dessas manifestações.

Nos casos que nos chegam, é comum a presença de designações ou apelidos relacionados à violência e transgressão. São modos de nomear distintos da operação do Nome-do-Pai, cujo poder metafórico pode substituir a satisfação direta, promovendo o laço com o Outro. Em nossa época, essa nomeação se encontra em declínio. Assim, encontramos, cada vez mais, designações em conexão direta com o gozo, que acabam por promovê-lo e incitá-lo, em uma manifestação da vertente superegoica do imperativo de gozo.

“Esse é B.O.”, “Ele é Jack”, “Sou 4:20”[1] são exemplos de designações que formam um curto-circuito, no qual os adolescentes são vistos e se mostram identificados ao resto da sociedade, sem possibilidade de vacilação, como em uma ordem de ferro. Nas instituições, a cada manifestação de hostilidade da parte dos adolescentes, nova tentativa de coerção e interdição, produzindo mais agressividade e violência.

A presença da psicanálise e sua oferta da palavra têm permitido uma vacilação nas designações que segregam e promovem o gozo, abrindo um espaço para acolher outras possibilidades de surgimento do sujeito. Dessa forma, é possível demonstrar como a psicanálise pode funcionar como uma ajuda contra as passagens ao ato e atuações, como nos indicou Lacan.

MARCELA ANTELO: Detalhar o real

Sacrilégio do “Noli tangere”, o close up é magnífica prova da penetração da civilização “na fábrica do real”. A literatura nos entregou os divinos detalhes, ensinou Miller lendo Nabokov. O artificio começou com a configuração exata do coque de Madame Bovary. “Detalhar quer dizer fracionar em pedaços” [2]. Para o cineasta Jean Epstein assim como para Miller é assunto de ética.

Um destino possível do detalhe é sua divinização, devemos livrar-nos dela, disse Jacques-Alain Miller em 1989, fazê-lo poderia constituir a dignidade da psicanálise.

O divino nos oferece o quê? Será que ter uma parte ao alcance nos faz supor um todo onde não existe? A ascensão do objeto ao zênite implica sua divinização. Qualquer objeto que se situe na vertical do observador será divinizado. Perturbar a divinização dos pedaços.

O zênite possui seu oposto, Nadir, que goza de muito menos imprensa. Pedaços no oposto do zênite. Perturbar a divinização pode servir-se da leitura do detalhe, já não da sua observação.

Epstein, no seu artigo “Magnificação”[3] afirma que um close-up extraído da cadeia, fora do contexto, é monstruoso e constitui a alma do cinema. Diviniza um sorriso, abrindo na tela como uma fruta madura ou indica o abismo da boca vazia de Old Boy. Inquietantemente estranho o close dá a ver o que vida diurna e suas grandes magnitudes dissimula. Estaria ele animado pelo desejo feminino de tocar o corpo sagrado que lembrava Ram Mandil nos Papers 1? Arrancar um pedaço do divino e fazê-lo cair.

Saber que o mais inquietante e perturbador reside no mais próximo e familiar é justamente uma das sabedorias que adquiriu cidadania no amanhecer do século. O fragmento, a parte, o minúsculo, a peça avulsa, pode constituir-se como um princípio epistêmico de aproximação ao homem contemporâneo se a orientação vai do Zenith ao Nadir.

A experiência princeps do close-up chama-se fotogenia, algo inarticulável, no limite do simbólico, um plus acrescentado ao objeto pelo ato cinematográfico, pela sua ação específica. Identificado por muitos como a alma do cinema, o close up não é dócil ao conceito nem deixa datar sua cronologia. O close up visa a um mais além de realidade, dar um zoom que ultrapasse o estreito representacional. Eisenstein, compatriota de Holbein, propunha em 1926 um cinema soco que cortasse até a caveira.

Paradoxalmente, em russo e em francês a palavra usada para close-up denota grande escala (gros plan); enquanto que em inglês, espanhol e português é a proximidade que está em jogo. Mary Ann Doane[4] sabe extrair todas as consequências desse paradoxo.

Fernand Léger, pintor fascinado pelo cinema ensina a objetividade que resulta do corte, o fim do todo, na cacofonia do seu Ballet mécanique, justaposição de pedaços. Léger disse:

Eu próprio usei o close-up, que é a única e real invenção do cinema. O fragmento do objeto também foi útil para mim; isolando-o o personalizamos. Todo este trabalho me conduziu a olhar o fenômeno da objetividade como novo e altamente contemporâneo em si próprio[5].

O cinema concorre com este aspecto da vida. A mão é um objeto múltiplo e transformável. Antes de vê-lo no filme não sabia o que era uma mão! O próprio objeto é capaz de devir um absoluto, uma coisa trágica e em movimento[6].

Uma série de fotografias[7] atrozes, de detalhes que não conduzem ao todo, de pedaços arrancados do corpo humanamente estendido, pode aproximar demasiadamente, close too close, do real dos campos de concentração colocando em cena o gozo de um Outro abismal. Freud falou da lente de aumento da análise e dos infusórios microscópicos da ciência.

 

(1) B.O: abreviação de Boletim de Ocorrência, notificação policial de uma contravenção ou crime. Jack: referência ao que praticou estupro; retirado da história de Jack, o estripador. 4:20: referência ao uso de drogas por meio da grafia americana para o dia 20 de abril, considerado o dia internacional da maconha.
(2) Miller, Jacques-Alain. Los divinos detalles. Ensino proferido no quadro do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, lição de 1/3/89.
(3) Epstein, Jean “Magnification and Other Writings.” Trans. Stuart Liebman. October 3 (1977): 9–25.
(4) Doane, Mary Ann. “The Close-Up: Scale and Detail in the Cinema” em D i f f e r e n c e s : A Journal of Feminist Cultural Studies, Brown University, 2003.
(5) Léger, Fernand [1927] citado em Fernand Léger – The Later Years –, catalogue edited by Nicolas Serota, published by the Trustees of the Whitechapel Art gallery, London, Prestel Verlag, 1988, pp. 21-22.
(6) Léger, Fernand L’ésthetique de la Machine – l’Ordre Géometrique et le Vrai -, Propos d’Artistes, 1925.
(7) “Atrocities,” May 7, 1945, LIFE. Fotógrafo: George Rodger; Quinze anos depois se publicam as fotografias de Margaret Bourke-White, December 26, 1960, special double-issue, “25 Years of LIFE.”



Da Agressividade À Pulsão De Morte

ÉRIC GUILLOT

Agressividade e pulsão de morte estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas ou assassinas que são frequentes em nossa atualidade. Violência verbal, intimidação, extorsão, violação, exploração sexual, assassinatos, atentados suicidas, as manifestações agressivas não têm todas a mesma significação. Umas se abrem no registro da “intenção agressiva”[2] e ficam presas na comunicação. Outras testemunham uma “tendência agressiva” mais fundamental que se desdobra em outro registro totalmente diferente, aquele da passagem ao ato, eventualmente destruidor e assassino, colocando em jogo o que Freud designou com o termo pulsão de morte.

Como nos orientar nessa clínica da agressividade e da pulsão de morte? Para dar conta dela, nós teremos de evocar a dimensão sociológica e política desses fenômenos. Existe sempre, com efeito, uma dimensão de contingência na agressividade. Lacan o indica desde 1948, sublinhando que nosso mundo contemporâneo, marcado pela globalização, contribui para seu desencadeamento (LACAN, 1950/1998).

Quais são os fundamentos e os mecanismos da agressividade e da pulsão de morte? Sobre esse ponto, as opiniões de Freud e Lacan divergem. Freud considera que a agressividade é uma “disposição instintiva primitiva”. Ele faz dela um fenômeno vital devido à biologia, tal como a pulsão de morte, que ele liga à agressividade. À diferença de Freud, Lacan considera que a agressividade e a pulsão de morte não se devem ao instinto como animal. Para ele, agressividade e pulsão de morte devem ser pensadas em sua articulação à linguagem. É a linguagem que faz do homem um animal desnaturado capaz de crueldade.

A extração da agressividade e da pulsão de morte do campo da biologia e sua inscrição no campo da linguagem permitirão a Lacan dissociar progressivamente a agressividade da pulsão de morte.

Quanto à agressividade, Lacan mostra, de início, que se trata de um fenômeno que se desenvolve estritamente no registro imaginário. A agressividade é correlativa de um modo de identificação próprio à estrutura do humano. Trata-se de um fenômeno decorrente da teoria do narcisismo. Quanto à pulsão de morte, que Lacan tinha ligado à agressividade, nos primeiros momentos de seu ensino, ele sublinha, em seguida, a articulação estrita com o simbólico; depois, a partir dos anos 60, ele mostra que ela deve ser pensada em seu laço com o gozo, quer dizer, em sua relação com o real. O termo gozo torna-se, então, o nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.

I – Freud, Da Agressividade À Pulsão De Morte

Uma Tendência À Agressão

Lacan considera que Freud fica parcialmente prisioneiro da ideologia darwiniana que dominava sua época.[3] Nessa ideologia — mas não é ainda a nossa? — existe uma preeminência acordada à agressividade que se refere ao fato de que seja concebida como um princípio de conservação da espécie[4] (LACAN, 1948/1998). A abordagem freudiana da agressividade, em termos de instinto e de função vital, testemunha a influência de uma tal ideologia. A primeira teoria freudiana das pulsões[5] (opondo pulsões sexuais e pulsões de autoconservação) também carrega essa marca (FREUD, 1915a/1974).

Depois de 1920, com a descoberta do mais além do princípio de prazer e os remanejamentos de sua teoria pulsional (em oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte), Freud introduz uma nova perspectiva concernente à agressividade. Certamente, Freud vê sempre naquela “uma disposição instintiva original e autossubsistente”, e ele é sempre tentado a situar aí os fundamentos de uma referência à biologia, mas, nesse momento, a agressividade lhe aparece, sobretudo, em sua dimensão deletéria, e ele a relaciona à pulsão de morte (FREUD, 1930/1974). É em “O mal-estar na civilização” que ele o testemunha mais claramente. Tomando o que chama de “tendência à agressão”, ele nos dá uma definição e uma descrição do homem que integra a pulsão de morte. Poderia ser Sade, assinala Lacan (1959-1960/1991). Todo o pessimismo de Freud eclode nesse texto:

[…] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo (FREUD, 1930/1974, p.133).

Homo homini lupus, ele acrescenta, para concluir: o homem é um lobo para o homem.

A forma desse adágio que Freud toma emprestado de Plauto[6] é, para Lacan (1950/1998), enganadora sobre seu sentido.[7] Ele, com efeito, considera que a agressividade não corresponde a um instinto, que não é uma função vital, como no animal. Em 1929, não se trata mais, para Freud, de situar a agressividade em sua articulação às pulsões de conservação do eu, mas antes de mostrar que existe uma “inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destruição, e também para a crueldade” (FREUD, 1930/1974, p.142). Essa tendência à agressão na qual ele reconhece a marca da pulsão de morte constitui, a seus olhos, uma ameaça para a sociedade civilizada (FREUD, 1930/1974). Desse julgamento muito pessimista de Freud nós podemos extrair todo o peso do desastre que foi a primeira guerra mundial e as premissas daquela que se anunciava.

Da Pulsão De Morte À “Pulsão Do Supereu”

A prova dessa influência obscura da pulsão de morte, Freud a refere igualmente a certas manifestações clínicas nas quais o sujeito se emprega a repetir situações que são para ele um desprazer e que vão contra o seu bem e mesmo contra os interesses do vivo. Trata-se, por exemplo, da repetição dos sonhos traumáticos ou ainda das neuroses de destino, das reações terapêuticas negativas, mas também dos sintomas ou da clínica do masoquismo. A repetição dessas manifestações clínicas que se apresentam como uma forma de autoagressão, das quais, no entanto, o sujeito parece tirar uma satisfação paradoxal, testemunha, para ele, a operação de um movimento que se dirige à morte e que afetaria o vivo como tal. Ele vê nessa repetição a expressão de um fenômeno vital enraizado na biologia,[8] caracterizado pela tendência a restabelecer um estado anterior, como um retorno do animado ao inanimado (FREUD, 1930/1974, p.141).

Assinalemos que, se Lacan admite também o fato da repetição como sendo o princípio da pulsão de morte, ele não faz dela um fenômeno vital enraizado na biologia. Ele situa, ao contrário, a repetição em relação à linguagem e ao inconsciente. Está aí um ponto importante que J.-A. Miller (2004) sublinha em seu curso Biologia lacaniana.

Mas vejamos o que leva o sujeito a repetir a situação que vai contra o seu bem. Certamente, Freud considera que essa tendência mórbida se enraíza em um movimento vital, mas que não é suficiente dizê-lo assim. É preciso poder explicar por que todo o mundo não tem a mesma relação com a pulsão de morte. O que leva certos sujeitos a se oporem à sua cura e mesmo a se autodestruírem, a se autoagredirem?

A primeira ideia de Freud tinha sido interpretar como uma forma de autopunição ligada a uma culpabilidade edipiana. Mas, a partir de 1923, em “O Eu e o Isso”, ele começa a duvidar da eficácia dessa interpretação. O que o levou a levantar outra hipótese: aquela do supereu. Essa instância, no interior do sujeito, que o leva a se autodestruir é o supereu. Não o supereu “herdeiro do complexo de Édipo”, resultado da interiorização dos interditos parentais e ligado à figura pacificadora do pai do Édipo; mas um supereu muito mais feroz, de uma severidade extrema, que manifestará contra o Eu “a mesma agressividade rude” que o Eu “teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos” (FREUD, 1930/1974, p.146). Freud o formula em 1929, em “O mal-estar na civilização”.

Para explicar as manifestações de autoagressão, Freud faz valer um retorno da agressividade sobre a própria pessoa por um supereu sádico, que maltrata, atormenta e angustia o eu. O supereu que tiraniza o sujeito, por suas exigências desmesuradas, aparece, assim, como um dos nomes dessa pulsão de morte, cuja hipótese se impôs então a Freud a partir dos anos 20. Freud constata, além disso, que nada apazigua o supereu. Longe de ser acalmado, como se poderia imaginar, pela renúncia pulsional, ele se encontra tanto mais excitado, crescendo sempre mais sua superioridade. Freud (1930/1974, p.149) sublinha que “quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento”.

Por quê? Freud explica assim:

Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não basta, pois o desejo [quer dizer, a “tendência à agressão”] persiste e não pode ser escondido do superego [supereu]. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. […] Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor (FREUD,1930/1974, p.151).

A culpabilidade que resulta da tensão entre o eu e o supereu é às vezes tal, assinala Freud, que acontece de alguns sujeitos cometerem crimes com o único objetivo de serem punidos, fazendo, assim, aliviar sua culpabilidade inconsciente. É um paradoxo que Freud (1915c/1974) sublinha em um artigo intitulado “Criminosos pelo sentimento de culpa”, que Lacan retomará, por sua vez, em 1950, em Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. Ele destaca uma categoria de crimes nos quais, paradoxalmente, é o sentimento de culpabilidade que preexiste à falta. Nessa clínica do supereu destacada por Freud, é a instância do supereu que leva ao crime e à transgressão para satisfazer o que aparece finalmente como uma forma de gozo do supereu (COTTET, 2009).

Com efeito, o que aparece nesse texto de Freud — e que Lacan destacará — é a dimensão pulsional do supereu.[9] Ele tem uma avidez que nada satisfaz. Mais se lhe dá, mais ele reclama. Mais o supereu se impõe, exige, interdita, e mais ele se mostra ávido de renúncia, como se ele se nutrisse dessa renúncia mesma (FREUD, [1929]1930/1974). Ele empurra ao sacrifício e se nutre desse gozo obscuro, masoquista, que o sujeito pode experimentar no sacrifício. Assim, assistimos a uma forma de sexualização do imperativo moral que o supereu promove. E, sem dúvida, é nessa dimensão pulsional do supereu que nós encontramos, como sublinha J.-A. Miller, a “definição mais brilhante” da pulsão de morte (MILLER, 2004, p.22)

II – Lacan: Da Agressividade Ao Gozo

“A Aporia Freudiana”

Lacan considera que Freud ficou prisioneiro da ideologia de seu tempo, quando se esforçou em definir a experiência do homem no registro da biologia (MILLER, 1991). No entanto, sublinha Lacan, toda sua obra demonstra que não se pode dar uma fórmula biológica para isso. É uma contradição em sua obra, é uma “aporia” (LACAN, 1948/1998, p.104). A maneira que Freud teve de teorizar a pulsão de morte, a partir do postulado de uma “agressividade constitucional do ser humano contra outrem”, testemunha essa dificuldade, e Lacan considera que isso deixou a porta aberta a numerosas confusões.

Agressividade E Pulsão De Morte: A Teoria Do Narcisismo

a) Um modo de identificação próprio da estrutura do humano

Rompendo com essa perspectiva biologizante, Lacan vai se esforçar para repensar a questão dos fundamentos da agressividade a partir da teoria da identificação. Ele desenvolve essa questão em 1948, no artigo “A agressividade em psicanálise”.

Sua tese é a seguinte: “a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico” (LACAN, 1948/1998, p.112). Ele acrescenta: o modo de identificação narcísica “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo”.

Para Lacan, agressividade e identificação narcísica são intimamente ligadas. Não se pode dar conta da agressividade sem uma teoria da identificação em psicanálise. Tal é o seu ponto de partida. Nós estamos então longe da ideia de uma agressividade instintual. Ele situa, ao contrário, a origem da agressividade na gênese do eu. A agressividade está intrinsecamente ligada à estrutura narcísica do eu (LACAN, 1948/1998). Ela é sua “tendência correlativa”. Certas manifestações patológicas, como aquelas que encontramos nas psicoses paranoicas, em que dominam as reações agressivas ou as imputações de nocividade feitas ao outro (LACAN, 1948/1998), somente se tornam lesivas se as relacionarmos à “organização original das formas do eu e do objeto” (LACAN, 1948/1998, p.113).

b) A estrutura paranoica do eu

Qual é a origem do eu? Lembremos brevemente que o eu resulta de um processo de identificação imaginária. Lacan elabora essa teoria no artigo sobre o estádio do espelho (LACAN, 1949/1998). A criança acede a uma representação unitária de si mesma ao se identificar, seja à sua imagem no espelho que ela assume como sendo a sua, seja à de uma outra criança, com a condição de que a diferença de idade não exceda dois meses e meio (LACAN, 1948/1998). O que chamamos de eu não é nada mais que o resultado desse processo de identificação imaginária a um outro. Assim, em seu fundamento, o eu é um outro.

Que o sujeito deva passar pelo outro para ter acesso a uma imagem de si mesmo não é sem consequências. Vai resultar disso, sublinha Lacan, uma “ambivalência estrutural”, “uma tensão conflitiva interna ao sujeito” (LACAN, 1948/1998, p.116), e, desde então, a relação do sujeito a seu semelhante vai se desdobrar em um duplo registro, aquele do erotismo e aquele da agressividade. Existe um componente erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica, de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe um componente agressivo porque, se “eu é o outro”, então esse outro pode tomar meu lugar. E é em termos de “você ou eu” que se desdobra então a relação. A única saída vem a ser a destruição do outro. Lacan o formula assim:

Há nisso uma espécie de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso pensamento, para compreender a natureza da agressividade no homem e sua relação com o formalismo de seu eu e de seus objetos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu (LACAN, 1948/1998, p.116).

Os fenômenos de transitivismo observáveis nas crianças pequenas, mas a respeito dos quais Lacan diz que não se eliminam jamais do mundo do homem (LACAN, 1946/1998), testemunham esses fenômenos de captação pela imago da forma humana.

Lacan se refere aqui às observações de Charlotte Bühler.

É nessa captação pela imago da forma humana, […] que domina, entre os seis meses e os dois anos e meio, toda a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante. Durante todo esse período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora (LACAN, 1948/1998, p.116).

E precisa em “Formulações sobre a causalidade psíquica”: “Assim, a criança pode participar, num transe completo, do tombo do seu colega, ou igualmente lhe imputar, sem que se trate de uma mentira, ter recebido dele o golpe que lhe aplicou” (LACAN, 1946/1998, p.182). Assim, o que destacam extraordinariamente os fenômenos de transitivismo é a função de desconhecimento do eu. Lacan tirará as consequências disso, tanto para a concepção que faz da direção do tratamento, como para o que nos ensinam sobre a clínica da paranoia. Com efeito, como ele sublinha, a criança que imputa a seu colega receber o golpe que ele recebe não mente. No momento de captação em que se identifica ao outro, ela desconhece o que vem dela e o que vem do outro. Ela desconhece radicalmente a sua participação naquilo de que se queixa. É o que leva Lacan a introduzir o termo “conhecimento paranoico” (LACAN, 1946/1998, p.181; 1948/1998, p.114; 1949/1998, p.99), para designar essa forma de desconhecimento que está no fundamento da estrutura do eu.

Para Lacan, o eu tem uma estrutura paranoica. O estádio do espelho de Lacan é a “paranoia original do homem”, assinala J.-A.Miller (1991, p.13). É para ilustrar essa “paranoia original” ligada à constituição mesma do eu que, nesse mesmo texto, Lacan (1946/1998) vai buscar, em seguida, um exemplo, o de Alceste, no Misantropo, de Molière. É impressionante ver a esse respeito como Lacan coloca em série as reações transitivistas da criança pequena com Alceste, que ilustra, para ele, a figura do paranoico. Diz Lacan: “Alceste é louco […] justamente pelo fato de que, em sua bela alma, ele não reconhece que ele mesmo concorre para a desordem contra a qual se insurge” (LACAN, 1946/1998, p.174). Ele “não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de seu ser atual” (LACAN, 1946/1998, p.172). Em outros termos, ele atribui ao outro uma desordem interior que é a sua, diz Lacan, e a única maneira para sair disso será desferir seu golpe contra o que lhe aparece como a desordem. Mas, ao fazê-lo, é a si mesmo que ele atinge. Lacan o formula:

Assim, seu ser está encerrado num círculo, a menos que ele o rompa por alguma violência, na qual, desferindo seu golpe contra o que lhe parece ser a desordem, atinge a si mesmo através do contragolpe social.Tal é a forma geral da loucura… (LACAN, 1946/1998, p.173).

Alceste somente encontra, com efeito, sua saída em um verdadeiro suicídio social: verdadeira “agressão suicida do narcisismo”, diz Lacan (1946/1998, p.176), para sublinhar isto: que, ao tentar atingir o outro, é finalmente a si mesmo que ele atinge/bate.

Quanto a esta fórmula: ao atingir o outro, “é a ti mesmo que atinges” (LACAN, 1950/1998, p.149), que resume o conceito de “agressão suicida do narcisismo”,[10] que Lacan introduz a propósito do Misantropo, se pode dizer — como sublinha S. Cottet (2009, p.9) — que domina todos os primeiros escritos de Lacan sobre o imaginário e a criminalidade.

Vamos encontrá-la novamente na observação clínica que ele dá em seguida. Trata-se de um estudo publicado por Guiraud (1928), em um volume intitulado Os assassinatos imotivados. Guiraud descreve as etapas que precederam a sobrevinda da passagem ao ato homicida de um paciente. Depois de todo um período caracterizado por um “sentimento penoso de estranheza interior”, nota Guiraud, o paciente, desgostoso da vida e dos homens, se volta para Deus, depois para o comunismo, projetando sobre a sociedade seu pessimismo interior, até que, em uma passagem ao ato violenta, ele tenta, matando o tirano, matar a doença que o invadia.[11] Assim, sublinha Lacan, seguindo Guiraud, “não é outra coisa senão o kakon [o mal] de seu próprio ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (LACAN, 1946/1998, p.176).

c) A “libido negativa” e a pulsão de morte

O que demonstra o conceito de agressão suicida do narcisismo, através dos exemplos que Lacan dá, é o laço estreito que ele estabelece entre a agressividade e a pulsão de morte. Pode-se mesmo dizer que, nessa época de seu ensino, a pulsão de morte se encontra reduzida à agressividade. E se Lacan pode reduzir uma à outra é porque ele considera, sublinha J.-A. Miller (2004), que elas provêm de uma mesma libido narcísica que inclui, ao mesmo tempo, os valores de vida e de morte. Por que atribuir à libido narcísica esse duplo valor de vida e morte? Isso se deve à origem mesma dessa libido. Para Lacan, o que está na origem é o fato de que o pequeno homem, no seu nascimento, em razão de sua prematuridade, está confrontado a uma insuficiência vital. Essa insuficiência nativa constitui o motor da libido narcísica (LACAN, 1948/1998). Ela é a fonte de energia do eu.

É então porque existe esse dilaceramento original, essa “deiscência vital”, que a criança é levada a se identificar à imagem no espelho, para tentar mascarar, recobrir, essa hiância original. Essa hiância é então o que a conduz a buscar em torno de si, de início, uma imagem, em um parceiro que vai completá-la. Nisso, essa deiscência vital é “constitutiva do homem” (LACAN, 1948/1998, p.118). A libido narcísica, que tem sua fonte numa falta, traz em si sua marca, ela é positiva, uma vez que ela lança o desenvolvimento para frente. Lacan vê nela uma libido situada do lado da vida, uma libido vital. Mas, ao mesmo tempo, ela é negativa, porque a agressividade que a acompanha encontra sua fonte na “aflição orgânica original” da qual ela provém. Lacan introduz essa curiosa expressão “libido negativa”, para designar essa outra face da libido (LACAN, 1948/1998, p.118). Aí, é uma libido que está do lado da morte. Ela opera na agressão suicida do narcisismo. Ela é a expressão do que ele chamará mais tarde de a “lâmina mortal” do narcisismo (LACAN, 1958/1998, p.577).

Assinalemos aqui, como sublinha J.-A. Miller (2004), que essa teorização de Lacan torna finalmente caduca a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Assiste-se à sua reunificação a partir do narcisismo, ao qual ele atribui agora os valores de vida e de morte.

O Significante E A Morte

Em 1953, em seu “Discurso de Roma”, “Função e campo da palavra e da linguagem”, Lacan opera um profundo remanejamento de sua concepção. Apoiando-se sobre o estruturalismo, que deve a Lévi-Strauss, ele é levado a fazer do significante e da categoria do simbólico a nova polaridade de seu ensino. Uma das primeiras incidências dessa contribuição vai consistir em desfazer a junção que ele havia feito antes entre agressividade e pulsão de morte, para ligar a pulsão de morte ao simbólico (MILLER, 2004) — a agressividade ficando intimamente ligada ao registro imaginário da relação narcísica.

Por que reatar desde então a dimensão da morte ao simbólico? É que Lacan tomou a medida de que a tendência à morte não está ligada somente a uma falha vital, ela está também ligada à lógica do significante. É porque existe a linguagem que, diferentemente do animal, a dimensão da morte está presente em nossa vida. É pela operação do significante que a morte entra na vida.[12] Certamente, a morte não é representável, mas como sublinha Freud (1915b/1974, p.332), nós podemos antecipá-la. E é mesmo essa possibilidade que nós temos de antecipá-la, que levou à concepção da divisão do corpo e da alma (MILLER, 2004).

Qual é então a natureza do laço que existe entre a morte e o significante? Lacan expõe suas razões em 1953, em seu “Discurso de Roma”. A primeira consiste em dizer que o que caracteriza “o símbolo [é que ele] se manifesta inicialmente como assassinato da coisa” (LACAN, 1953/1998, p.320). O significante, o símbolo, anula a coisa. Ele está no lugar da coisa. No memento mesmo em que a designa, ele a apaga naquilo que faria sua autenticidade. A segunda razão, invocada por Lacan para dar conta do laço com a morte, consiste em dizer que o significante nos localiza além da morte. O significante assegura uma sobrevida além da vida biológica. Se o homem aspira a se destruir, é porque, na morte, ele consegue se eternizar (LACAN, 1953/1998). É a partir do momento em que o sujeito está morto, que ele se torna um signo eterno para os outros (LACAN, 1957-1958/1999). A esse respeito, o que caracteriza o humano é o direito à sepultura. É a possibilidade de persistir como significante além da morte biológica.

Enfim, a terceira razão é que a morte está no fundamento da constituição da subjetividade. “A intermediação da morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história” (LACAN, 1953/1998, p.320). É porque se sabe destinado à morte, que o sujeito humano se distingue do animal e que sua existência pode tomar sentido (FREUD, 1915b/1974, p.339). Isso é testemunhado pelo horror no qual se pode mergulhar o sujeito quando preso à certeza delirante de que é imortal.

Essa nova perspectiva desenvolvida por Lacan, salientando a dimensão significante da morte e fazendo dela uma característica do simbólico, apresenta, no entanto, uma contrapartida. Ele não leva em conta a dimensão de “satisfação paradoxal”, além do princípio de prazer, que está no coração da pulsão de morte freudiana. O que está excluído nessa concepção da pulsão de morte pelo simbólico é o gozo, sublinha J.-A. Miller (2004). Desde então, onde Lacan irá situar essa satisfação paradoxal?

O Gozo: Um Dos Nomes Da Pulsão De Morte Freudiana

a) “A pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte”

É em 1964, no Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” e no escrito “Posição do inconsciente”, que Lacan dará uma resposta a essa questão. Nos dois textos, ele introduz uma tese que, transformando radicalmente a teoria freudiana das pulsões, vai permitir-lhe levar em conta a dimensão real da pulsão de morte freudiana.

Até então, sublinha J.-A. Miller (2005), Lacan tinha tentado pensar a questão da libido freudiana a partir do imaginário, mas era ao preço de fazer da pulsão de morte um fenômeno imaginário assim como a agressividade. Em seguida, quando tinha recorrido ao registro do simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que tinha sido realçada. Agora, como o Seminário 11, ele opera um novo giro. Recorrendo ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é a dimensão de gozo que comporta a pulsão de morte freudiana — a que Freud se refere como uma “satisfação paradoxal” — que vai ser enfatizada.

Em que essa nova perspectiva transforma radicalmente a teoria freudiana das pulsões? É que ela torna caduca (mais uma vez[13]) a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Desde então, como sublinha J.-A. Miller (2004), as pulsões de vida e as pulsões de morte aparecem como dois aspectos de uma só e mesma pulsão.

Lacan o formula explicitamente: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte” (LACAN, 1946/1998, p.188). E acrescenta: “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (LACAN, 1946/1998, p.195).[14] A pulsão sexual que era situada, até então, do lado da vida, inclui também a dimensão da morte.

Como dar conta do fato de que a morte está também presente nas pulsões sexuais? Lacan faz valer o conceito de repetição e o de pulsão tal como os reformula no Seminário 11. A repetição não está somente no coração da pulsão de morte, ela está também no coração de todo funcionamento pulsional. No princípio da pulsão, existe, com efeito, uma tentativa repetida para reencontrar o objeto que deu satisfação uma primeira vez. Mas esse objeto, que Lacan chama de objeto a, permanece inatingível (LACAN, 1946/1998, p.169). A pulsão o contorna sem jamais atingi-lo, daí a repetição.

Tomemos o exemplo[15] da pulsão oral. Aqui, o objeto a na pulsão oral é o que resta da demanda uma vez que se demandou tudo. Existem os alimentos que se podem obter e, uma vez que tenham sido experimentados, fica um resto que não se satisfaz jamais. Daí o fato de que isso não se aquiete nunca, isso impulsiona, insiste, se repete. O mesmo acontece com a analidade, dá-se de início tudo o que se tem e depois se continua, e resta sempre uma presença dessa exigência de dar, mesmo quando não se tem mais nada para dar. O resto é o objeto a.

E, no fundo, essa exigência repetitiva de satisfação que está no coração do funcionamento pulsional testemunha, segundo Freud e Lacan, uma ultrapassagem do princípio de prazer. Essa repetição — da qual vemos que não é um fenômeno vital articulado ao biológico, mas antes um fenômeno linguageiro articulado ao inconsciente — longe de visar à satisfação de uma necessidade como outras, “aparece ao contrário como uma exigência desarmônica” (MILLER, 2004, p.21),[16] inadaptada em relação às exigências da vida, em relação ao bem-estar do corpo. Ela é “um fator de desadaptação”; ela é contrária à vida. E é então nesse sentido que Lacan pode dizer que “a pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte.”

É o que Freud demonstra, assinala J.-A. Miller (2004), quando sublinha como um órgão pode deixar de obedecer ao saber do corpo. Por exemplo? “O olho pode e deveria servir ao corpo para se orientar no mundo, para ver”, mas eis que ele se coloca “a servir ao que Freud chama a Schaulust, o prazer de ver”. Vê-se como se introduz aqui “um prazer que ultrapassa a finalidade vital e mesmo que conduz a anulá-la”. O olho que deveria estar a serviço da vida individual, torna-se o suporte de um “gozar”, que pode se impor como uma exigência repetitiva, inadaptada às necessidades da vida (MILLER, 2004, p.46). Em suma, essa repetição a que Freud se referiu como sendo a marca da pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões. Ela não é o apanágio de uma pulsão específica que seria a pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões parciais. Toda pulsão é uma ultrapassagem repetitiva do princípio do prazer para tentar atingir — em vão — um gozo perdido para sempre, ao preço, por vezes, de deixar sua vida, como se manifesta, por exemplo, na toxicomania.

Desse ponto de vista, pode-se dizer que o abandono, por Lacan, da dicotomia freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte em proveito do conceito de “gozo”, nome lacaniano da pulsão de morte freudiana, é o que lhe permitiu conceber a parte mórbida de toda pulsão.

Vê-se, por aí, igualmente, que Lacan não abandonou nunca a pulsão de morte freudiana. Ao contrário, fez dela a pedra de sustentação do circuito pulsional. E quando fez do gozo o problema maior com o qual cada um, seja neurótico ou psicótico, tem que se confrontar, pode-se dizer que inscreve a questão da pulsão de morte no coração mesmo de sua teoria e de sua concepção do tratamento. Porque, a partir de então, a pulsão de morte deverá ser tomada na relação particular, sempre singular, que o sujeito mantém com o gozo, com o objeto a que causa seu desejo.

b) Da imagem i(a) ao objeto a: os crimes de gozo

Dizer que toda “pulsão parcial é por natureza pulsão de morte” não quer dizer, certamente, que toda pulsão vai até a morte. Lacan o precisa bem em “Posição do inconsciente”. “Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte” (LACAN, 1964/1998, p.863), dito de outro modo, em toda pulsão existe essa possibilidade de uma transformação do prazer em gozo, a partir do que Lacan chama uma ultrapassagem do princípio do prazer.

Prazer ———-> Gozo/Objeto a

O que caracteriza o prazer é seu caráter razoável, apaziguador, sem tensão. O que faz com que ele possa encontrar seus próprios limites e parar diante da barreira do mal, da dor, do feio. O princípio do prazer é “um princípio de sobrevivência”, assinala J.-A. Miller (2005).

O gozo, ao contrário, se opõe ao princípio do prazer. Ele detém uma potência em si que atravessa essa barreira, ele se apresenta como “uma exigência absoluta” que a torna irresistível. Ele vai no sentido da morte, da destruição. Ele implica em si mesmo “a aceitação da morte”, diz Lacan (1959-1960/1991, p.231).

Habitualmente, o sujeito para antes que a pulsão chegue até a morte. Ele recua, horrorizado, quando o objeto real da pulsão — objeto de gozo, começa a aparecer-lhe em sua crueza. Habitualmente, nós não temos nunca, com efeito, acesso ao objeto real da pulsão. Esse objeto — o objeto a — é inatingível. A pulsão o contorna sem atingi-lo jamais. Esse objeto permanece mascarado, recoberto pelo brilho fálico que lhe dão a fantasia e o desejo.xvii

Um poema de Baudelaire, que J.-C. Maleval (2008, p.150) cita, nos permite apreender o que pode ser esse objeto real da pulsão, quando não é mais recoberto pela imagem aureolada por seu brilho fálico, por i(a).

Quando ela me sorveu dos ossos a medula,E tão languidamente a buscou minha gula,Viu o beijo de amor que nela final pus,Flanco viscoso de odre a transbordar de pus!(BAUDELAIRE, 2001, p.138).[18]

Aqui, o objeto real da pulsão se desvela como uma coisa imunda. Bruscamente, a fantasia, que aureolava o objeto amado, falta. Em um outro poema de Flores do mal, intitulado “Uma carniça”, Baudelaire (2001, p.41) nos dá uma descrição comparável desse momento de báscula.

Barreira, Interdito, Castração

“Não-relação sexual”

Prazer ———> / / —–> Gozo

Sujeito dividido —–> / / —–> Objeto a (objeto real da pulsão)

Inacessível

Imagem falicizada i(a)

Fantasia – Desejo

Na neurose, normalmente, a barreira da fantasia e do desejo funciona para manter o sujeito à distância do objeto real da pulsão. E quando acontece a falha da fantasia — quando uma “desfalicização” do objeto se produz — o sujeito se desvia do objeto. O nojo se instala. Mesmo na perversão, a barreira da fantasia, em sua articulação com a castração, funciona.

A relação ao objeto real da pulsão — a relação ao gozo — não inclui a dimensão da castração. Não está coordenado ao falo articulado ao vazio central da castração, de modo que nenhuma impotência[19] coordena o sujeito ao objeto do qual goza.

Desde então, na relação do sujeito ao objeto, a dimensão do gozo pode se apresentar de maneira a mais crua, em um “sem limite”. Pode então acontecer, como sublinha J.-C. Maleval (2008), que se assista a uma apreensão direta do objeto pulsional. O sujeito busca, então, tirar diretamente os objetos parciais do corpo do parceiro (MALEVAL, 2008).[20] Categoria de crimes que podemos qualificar de “crimes de gozo” ou de “crimes puramente pulsionais”, como o formula Lacan (1932/1987 p.306), nos quais a pulsão de morte se abre/desdobra em todo seu horror.

Em suma, ao fim desse percurso, a pulsão de morte freudiana aparece cindida em duas, entre significante e gozo. Quando Lacan recorre ao simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte.

Ao contrário, a agressividade não aparece mais como um conceito central para dar conta da pulsão de morte; ela aparece como uma consequência lógica da gênese do eu.

Enfim, a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte tende a desaparecer em proveito de uma concepção monista da pulsão que permita a Lacan sair das dificuldades ligadas ao dualismo freudiano.

III – Do Mal-Estar Na Civilização Ao Tratamento Do Gozo

Para concluir, evocaremos brevemente a questão do tratamento da agressividade e da pulsão de morte. É um problema que atravessa todo o ensino de Freud e Lacan.

Desde 1950, Lacan tinha sublinhado como a promoção do eu e o retorno sobre o narcisismo, que se observam no nosso mundo moderno, levavam à violência (LACAN, 1950/1998).[21] É, com efeito, que o prestígio dado ao narcisismo, colocando os seres em um isolamento de alma, fecha os sujeitos sempre mais em um modo de ligação social que passa pela identificação imaginária ao semelhante. A consequência desse modo de identificação alienante é a agressividade.

Observemos que, em 1929, em “Mal-estar na civilização”, Freud já assinalava o perigo que representava o modo de “laço social [quando] é criado principalmente pela identificação de membros de uma sociedade uns aos outros”. Ele via nos Estados Unidos o modelo desse tipo de laço social do qual o efeito só poderia ser “a pobreza psicológica dos grupos” (FREUD, [1929]1930/1974, p.138).

Existe então uma face contingente na agressividade. A sua expressão irá variar segundo a maneira pela qual as estruturas simbólicas do grupo serão capazes de pacificá-la, integrá-la, mascará-la, recobri-la. Daí as variações que se observam segundo as épocas e as culturas.[22]

A Função Pacificadora Do Ideal Do Eu

Para Freud, a função da civilização é, com efeito, permitir que a dimensão do amor domine a do ódio. Freud desenvolve esse ponto de vista em “Mal-estar na civilização”. Ele se interessa pelas barreiras, pelas interdições que a sociedade ergue para lutar contra essa “inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros” (FREUD, [1929]1930/1974, p.134).

Lacan retoma, por sua vez, essa mesma questão. A tese que ele desenvolve em seu artigo de 1948 consiste em dizer que o que permite ao sujeito transcender “a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva” é a identificação edipiana (LACAN, 1948/1998, p.117). Ele considera que no Édipo se realiza uma identificação que não é mais a identificação ao semelhante com sua consequência agressiva, mas uma identificação ao grande Outro em posição de ideal do eu para o sujeito. Lacan reconhece nessa identificação dita “simbólica” uma função pacificadora e normatizante[23] à qual atribui eficácia ao pai, cuja função é unir o desejo à lei. Essa identificação simbólica ao Outro em posição de ideal do eu é o que permite estruturar o imaginário.

A Face Mortífera Da Cultura

A função do ideal do eu tem, no entanto, seus limites para tratar o problema da agressividade e da pulsão de morte. Não somente porque existe em nosso mundo contemporâneo um declínio dos ideais e uma fragilização das referências simbólicas, mas também porque a função do ideal tem uma parte ligada com o gozo do supereu.

Existem, com efeito, duas faces na cultura. Uma que tem uma função pacificadora — aquela que Freud acentuou com o pai do Édipo que une o desejo à lei. Aí, é a função pacificadora do ideal do eu. E outra que é aquela da pulsão de morte, que Freud descobre com o supereu. Um supereu que certamente toma a seu cargo os interditos enunciados pela cultura, mas que, mais secretamente, impulsiona a gozar. O interdito ele mesmo alimenta o gozo. De sorte que o que se chama de cultura pode também ter uma face deletéria. A cultura da avaliação é um exemplo disso.

Bem-Dizer Nossa Relação Ao Gozo
Desde então, como tratar o gozo? O que é que pode vir a limitar o gozo, se parece, com efeito, que existe uma queda dos ideais e que o ideal, a moral retomada a seu cargo pelo supereu, corre o risco, sempre, de se degradar em gozo.

A resposta de Lacan a uma questão atravessa todo o seu ensino.[24] Isolarei, no entanto, um ponto que me parece crucial, aquele que consiste em dizer que o tratamento da pulsão de morte, o tratamento do gozo, passa pela ética. A ética da psicanálise para Lacan é “uma ética do bem-dizer”. Ele a formula assim em 1974: “isto é, do dever de bem-dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura” (LACAN, 1974/2001, p.524).

“Bem-dizer ou se referenciar ao inconsciente” quer dizer “aprender a ler nosso inconsciente”, quer dizer aprender a “bem-dizer nossa relação ao gozo inconsciente” ou à pulsão de morte. Como? Tentando chegar o mais próximo de nossa relação ao objeto, esse objeto a causa do desejo e que reencontramos no coração da fantasia.

Não é então um “tratamento de massa” da pulsão de morte o que a psicanálise propõe, como aquele que prescreve a religião sob a forma do preceito: “amarás ao próximo como a ti mesmo” e que Freud ([1929]1930/1974, p.168) e também Lacan (1959-1960/1991) julgam inoperante e “chocante”.[25] Não, o que a psicanálise propõe é um tratamento “um-a-um”.

Consiste em levar em conta o fato de que esse gozo mau está em cada um, “ele faz parte de seu próprio ser”, diz Freud (1925/1976, p.165),[26] ou como formula Lacan (1946/1998, p.195), que “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”.

“Nosso ser inclui […] a parte de que somos orgulhosos, […] que constitui a honra da humanidade”, assinala J.-A. Miller, “mas também a parte horrível” (MILLER, 2009, p.2-3). Essa parte horrível não é somente aquela que Freud descreveu quando nos diz que “o homem é um lobo para o homem”, é também aquela que se abre no gozo obscuro do sacrifício.[27] Importa aproximar-se disso em um tratamento para tentar saber alguma coisa sobre isso.

 

(1) “De l’agressivité à la pulsion de mort”, publicado em Mental, Paris, n.24, p.143-163, abr. 2010.
(2) Lacan (1948/1998, p.106,112) introduziu no texto “A agressividade em psicanálise” essa distinção entre “intenção agressiva” e “tendência agressiva”.
(3) A obra de Darwin, A origem das espécies, data de 1859, e A filiação do homem, de 1871.
(4) O prestígio da ideia da luta pela vida é atestado pelo sucesso da teoria darwiniana ou, pelo menos, pelo sucesso das derivações que essa teoria conheceu, desde o fim do século XIX, com o que chamamos o “darwinismo social” — termo inventado, em 1880, para designar a doutrina sociológica de Herbert Spencer, segundo a qual a eliminação dos menos aptos é a consequência necessária, nas comunidades humanas, da grande lei da seleção natural. Sabe-se que Darwin se opôs a essas concepções. Ver sobre esse ponto: TORT, P. “Le darwinisme, entre innovation et dérives”, Dossier pour la Science, n.63, p.21, avr./juin 2009.
(5) Freud considera que os “verdadeiros protótipos da relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta do eu para sua conservação e sua afirmação” (FREUD, 1915a/1974).
(6) Plaute, Asinaria (La comédie des ânes), II, 4, 88.
(7) “A ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais”, sublinha Lacan. “Mas essa própria crueldade implica a humanidade.” Ela é específica do homem. É porque, mais que nos referir a esse adágio de Plauto, Lacan nos convida a ler a fábula forjada por Balthazar Gracian, em seu Criticon. Este último sublinha a que ponto, “ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira [a ferocidade do homem], os próprios carniceiros recuam horrorizados” (“Le précipice de la vie”, Le Criticon, Tomo 1, Éditions Allia).
(8) “Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto de preservar a substância viva […]” (FREUD, 1930/1974, p.141).
(9) É o que traz Miller em Biologia lacaniana, ao falar de “pulsão do supereu”. “Mesmo se a fórmula não aparece assim em Freud, a pulsão de morte, tal qual emerge de seu texto, é a pulsão do supereu” (MILLER, 2004).
(10) O conceito de “agressão suicida do narcisismo” vem substituir a ideia de uma causalidade do crime em termos de autopunição que Lacan tenha desenvolvido alguns anos antes no caso Aimée. Lacan sublinha, na p.176: “Quanto à mola do desfecho, ele é dado pelo mecanismo que, bem mais do que à autopunição, eu referiria à agressão suicida do narcisismo” (LACAN, 1950/1998, p.176).
(11) Ver p.88: “Condensou a noção de sua doença com a do mal social, ou melhor, simbolizou a primeira pela segunda. […] Por um ato de violência, Paul tentou suprimir o kakon para usar a expressão de V. Monakow e de Morgue. Matar o tirano consistia para ele em matar a doença” (GUIRAUD, 1928/1994, p.88).
(12) “Isso porque o significante como tal, barrando por intenção primeira o sujeito, nele faz penetrar o sentido da morte. (A letra mata, mas só ficamos sabendo disso pela própria letra)” (LACAN, 1964/1998, p.862-863).
(13) Porque é já o que Lacan tinha tentado fazer com a libido narcísica, à qual ele atribuía um duplo valor de vida e morte.
(14) Lacan se refere aqui à relação essencial que une o sexo à morte. Somente essa questão essencial mereceria todo um desenvolvimento. Notemos unicamente que, desde que Lacan acentua a relação que une esses dois termos, no Seminário 11 (p.188, 194, 195) e em “Posição do inconsciente” (p.861-863), é em referência à biologia que ele se situa. Para os biologistas, a relação entre o sexo e a morte se explica pelo fato de que é a partir da reprodução sexuada que a morte aparece. Freud (1920/1976, p.65) retoma por sua conta essa teoria de Weismann em Além do princípio de prazer. Lacan também se refere a isso e, na sequência do Seminário 11, mostra como essa articulação do sexo e da morte está no coração das operações de alienação e separação que presidem o advento do sujeito.
(15) A formulação seguinte é de Éric Laurent em seu curso intitulado “A transferência”, Universidade Paris VIII, Departamento de Psicanálise, Seção clínica, 22/04/1992, inédito.
(16) Lacan (1969-1970/1992, p.43) o formula explicitamente. A repetição “é propriamente aquilo que se dirige contra a vida”. J.-A. Miller (2005, p.172) desenvolve igualmente essa questão: “Assim, a repetição, não é somente falhar o real, como Lacan articulou no Seminário 11, mas também ‘busca de gozo’. A repetição não é a expressão do princípio do prazer, mas, por si mesma, ‘vai contra a vida’. Esse é o deslocamento que, da repetição como expressão do princípio do prazer, faz da repetição a própria articulação da pulsão de morte.”
(17) Lacan (1972-1973/1985) sublinha que, na relação sexual, nós não temos jamais um acesso direto ao corpo do outro. O sujeito neurótico ou perverso somente copula com o falo que lhe barra o gozo do corpo do Outro. Não existe relação sexual, somente o amor permite nutrir a esperança de reencontrar o Outro.
(18) Esse poema, “As metamorfoses do vampiro”, faz parte dos Épaves, peças condenadas que foram censuradas durante o processo de As flores do mal, em 1857.
(19) A impotência, como sintoma neurótico, testemunha, com efeito, a implicação do complexo de castração.
(20) Maleval dá o exemplo de um paciente necrófilo que tinha suscitado numerosos estudos psiquiátricos no século XIX. O sujeito tinha desenterrado os cadáveres nos cemitérios e, presa de uma fúria destrutiva incontrolável, ocupava-se de picá-los, cortá-los em pedaços. “Seu extremo gozo era obtido, não pelo coito com o cadáver, mas pela sua partição…”, em uma tentativa para atingir, mais além da imagem corporal, nas vísceras da vítima, o objeto de gozo suposto encontrar-se ali (MALEVAL, 2008, p.159).
(21) “[…] numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” (LACAN, 1950/1998, p.146).
(22) Essa dimensão contingente da agressividade já havia sido sublinhada por Lacan, desde 1948, em um texto que levava ainda uma forte marca sociológica. Lacan (1948/1998, p.122-123) sublinhava a “preeminência da agressividade em nossa civilização”, em que é considerada como “de um uso social indispensável”, como um ingrediente necessário a todo espírito empreendedor.
(23) “Mas o que nos interessa aqui é a função, que chamaremos apaziguadora, do ideal do eu, a conexão de sua normatividade libidinal com uma normatividade cultural, ligada desde o alvorecer da história à imago do pai” (LACAN, 1948/1998, p.119).
(24) Lacan o aborda notadamente em 1960, em “Subversão do sujeito e dialética do inconsciente” (1960/1998, p.836).
(25) Ver também o comentário de Miller, “L’apologue de Saint Martin et de son manteau’”, Mental, Paris, n.7, p.7.
(26) “[…] a maioria dos sonhos — sonhos inocentes, sonhos sem afeto e sonhos de ansiedade — são revelados, quando as deformações da censura foram desfeitas como a satisfação de impulsos imorais — egoístas, sádicos, pervertidos ou perversos” (p.164).
(27) Do qual o ponto extremo nos é dado pelos atentados suicidas. Lacan (1959-1960/1991, p.324) o sublinha: “Só os mártires são sem piedade e sem temor. Creiam-me, no dia do triunfo dos mártires, haverá o incêndio universal.”

 


Tradução: Márcia Mezêncio
Referências
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Éric Guillot
Éric Guillot – Psicanalista em Rouen, França. E-mail: erguillot@numericable.fr