Do Antissemitismo Hoje

AGNÈS AFLALO
O Antissemitismo Com A Shoah

À tradição francesa do intelectual engajado, em geral, e daquele que se posicionou contra o antissemitismo, em particular, não faltam nomes de prestígio como os de Victor Hugoi e Zolaii, para citar somente os primeiros. Mas isso fora antes da Shoah. Não faltaram intelectuais sérios que tentassem pensar a Shoah. Entretanto, ela permanece ainda impensável. Aspectos da Shoah não se deixam capturar por nenhuma escrita e não cessam, dessa maneira, de secretar seu próprio desconhecimento, seu próprio recalque.

Negacionismo e revisionismo não são resultados de uma minoria isolável, irresponsável e limitada no tempo. O triplo atentado contra os jornalistas do Charlie, os clientes do Hyper Casher e os policiais de Paris e de Montrouge, que precedeu em poucos dias a data de aniversário da descoberta do campo de Auschwitz, indica outra perspectiva: a rejeição inconsciente da Shoah mostra-se constante desde o seu primeiro dia até o momento atual. Tal rejeição apenas assumiu diferentes formas desde a descoberta oficial do genocídio em 1945 até a forma mais comum do antissemitismo que conhecemos hoje na França, na Europa, e alhures.

Sabemos que os países em guerra, ainda que informados acerca da existência dos campos durante a Segunda Guerra, não eram capazes de acreditar naquela realidade. Outro detalhe dá uma ideia da rejeição imediata da qual a Shoah foi alvo: durante a abertura do campo de Auschwitz, no momento de nomear aqueles que haviam sido deportados para aí serem exterminados, o nome dado às vítimas do suplício fora aquele referente à sua nacionalidade e não o nome que indicava seu pertencimento à religião judaica, nome esse que os levara à condenação à morte. Como reconhecer a singularidade da Solução final se ela é mal nomeada?

O nome comum não é suficiente para designar o acontecimento. Somente o nome próprio ocupa um lugar no real inominável. Churchill, que foi uma exceção no que diz respeito às intenções de Hitler, antecipara precocemente um crime sem nomeiii. O nome próprio Shoah não designa somente um crime de massa ou um genocídio. Designa uma criação inédita na história da humanidade: a produção industrial da morte perpetrada pelos homens. Essa aliança entre a técnica e a economia é impensável se não levarmos em conta as raízes inconscientes da pulsão de morte que habita cada ser falante, tomado no discurso dominante. Ora, esse discurso dominante, que é o discurso capitalista, é também o discurso do inconsciente.

Isso significa dizer que o Iluminismo é indissociável dessa tendência à crueldade mais ou menos recalcada ou sublimada. Desde Lacan lê-se Kant com Sade. O detalhe pode parecer insignificante, no entanto possui consequências importantes, como a concentração de milhões de pessoas reduzidas ao estado de mercadorias para que se pudesse delas extrair uma mais-valia exorbitante a fim de colmatar a ruptura que habita cada um. Ora, se a mais-valia se desloca de uma mercadoria a outra, é também inseparável do corpo mercantilizado. Dois conceitos permitem apreender essa lógica: o conceito da mais-valia de Marx e aquele de extimidade formulado por Lacaniv. Além disso, no discurso dominante, a mais-valia é padronizada enquanto que, no inconsciente, cada um sofre, à revelia de sua vontade, de um gozo singular, conhecido também como “mais-de-gozar”. Nessas condições, torna-se impossível reconciliar a oferta do mercado e a demanda inconsciente do sujeito. Qualquer colocação fora do jogo do desejo acentuará, sobretudo, o sentimento de fissura, causador de angústia e de ódio, que pode se deslocar até a cisão e desnudar o vazio no coração do ser com seu cortejo de desesperança e revolta.

O antissemitismo existente nos dias atuais não está apenas fundamentado na única ignorância que a escola da República poderia reparar. Está também fundamentado na recusa de se crer na Shoah. Há pouco, um jovem aluno advindo de bairros considerados “vulneráveis” respondia a seu professor de história que lhe ensinava sobre a Segunda Guerra Mundial: “chega de falarmos de judeus, não foram somente eles os mortos durante a guerra!”. Mais uma vez – e esse exemplo é apenas mais um entre muitos outros da mesma natureza – o nome das nacionalidades dos mortos da Segunda Guerra tende a recalcar o nome da Shoah e, assim, a aprofundar a vala comum do antissemitismo ordinário.

Setenta anos depois, restam poucos sobreviventes e testemunhas do Holocausto. É por isso, sem dúvida, que o antissemitismo ordinário ganhou terreno. Em janeiro de 2014, uma manifestação ocupava as ruas de Paris aos gritos de “fora judeus, morte aos judeus!”. Não escapava, então, a Robert Badinter, que se tratava de uma première desde a Ocupação. Quanto mais a série de assassinatos de judeus se multiplica e se banaliza na França, na Europa e no mundo, mais a concentração do ódio antissemita tende a fazer endossar aos judeus o traje do bode expiatório. Ora, no discurso do inconsciente, não há bode expiatório sem homem providencial.

O Homem Providencial E O Bode Expiatório

O princípio do homem providencial e do bode expiatório, bastante conhecido dos monoteísmos, pode ser reduzido à estrutura lógica do Universal e do particular, formalizada por Aristóteles, e a partir da qual Lacan expôs as bases inconscientes. Essa lógica demonstra que a exceção confirma a regra.

Os três monoteísmos – judeu, católico e muçulmano – possuem aspectos em comum e também diferenças. Detenhamo-nos aqui sobre dois pontos concernentes às suas diferenças: o clero e o proselitismo. A religião judaica não concede espaço a nenhum dos dois. Converter-se ao judaísmo é um percurso do combatente. Dentre os três monoteísmos, o judaísmo é o único que não tem a pretensão universal. Em compensação, os proselitismos cristão e muçulmano são bem conhecidos. A história das guerras religiosas de uma parte do nosso mundo é testemunha disso. E sabe-se que, na França, a estratégia da espada e do aspersóriov conheceu uma contenção importante no momento da Revolução, quando o rei perdeu a cabeça e, ao mesmo tempo, seu direito divino.

A organização dos doutores da Igreja constituindo o clero é, sem dúvida, o segredo da estabilidade do catolicismo há mais de 2.000 anos. Por isso, pode-se argumentar que o islã é mais aberto à instabilidade experimentada pelas diferentes correntes que se afrontam, pela falta de um clero que estabilizaria a ortodoxia dominante. Essa instabilidade se propaga simultaneamente à sua pretensão universal. Algumas correntes religiosas são ainda mais nefastas e decidem priorizar as injunções, ou seja, uma aplicação do Corão ao pé da letra e sem as interpretações dos doutores do clero que as humanizariam. Ou, ao contrário, privilegiam as interpretações do Corão elaboradas há muitas centenas de anos (Hadith) sem interrogá-las nem colocá-las em discussãovi. E essa é a razão pela qual a criação de um islã na França, se fosse criado, poderia aí remediar.

O judaísmo, por sua vez, por não possuir a qualidade do proselitismo, não se inscreve na mesma lógica do universal e do particular. O povo do Antigo Testamento pretende de fato ocupar o lugar do elemento particular, isto é, da exceção que confirma a regra, do universal. Desse ponto de vista, o povo eleito é indissociável de seu outro lado – povo pária e martirizado ao longo dos séculos.

A psicanálise ensina que o apelo ao pai conduz sempre ao pior. A história do século XX o demonstra de maneira suficiente. O ódio é um afeto ordinário e comum, mas divinizar o mal é uma tendência tão velha quanto a humanidade e tanto mais intensa quanto os ideais de democracia são impotentes para tratar o mal-estar econômico e social. A vida em sociedade permite sublimar e assegura assim a estabilidade do laço social. No entanto, durante uma situação excepcional de crise econômica de grande amplitude, o laço social tende a se desfazer, a sublimação enfraquece e a satisfação inebriante do ódio retoma o que expusemos acima.

No último século, a crise econômica que se abateu sobre a Europa e o novo mundo favoreceu a expansão do nazismo e do antissemitismo. A expansão econômica após a Segunda Guerra – conhecida como Les Trente Glorieuses, ou, em tradução literal, “Os trinta gloriosos”, fazendo menção aos trinta anos de desenvolvimento, de 1945 a 1975 – favoreceu a integração de imigrantes, de maneira geral, e de judeus, em particular. Entretanto, a crise econômica que se alastrou na Europa e alhures desde o primeiro choque do petróleo retardou a integração de emigrações tardias. Hoje os grupos criminosos do Estado Islâmico fazem ressoar um ódio levado tão mais adiante que ressuscita o homem providencial sob a categoria do Califa. Sua propaganda faz crer numa justiça divina distributiva e sua política do terror dá corpo ao bode expiatório que a ela não se submete. Os últimos atentados que acabam de ocorrer em Copenhague, na Dinamarca, dão uma ideia da determinação dessa ideologia totalitária propagada via internet por uma gangue de criminosos.

O laço que cada um estabelece com sua parte sombria e colérica faz sintoma. Isso quer dizer que não é possível se libertar sem decifrar o inconsciente do qual se é sujeito. Com efeito, a crença no homem providencial força a uma escolha imposta entre o ódio de si e aquele dirigido ao outro que faz o leito do comunitarismo, sempre religioso. A submissão devastadora por meio da qual alguém se deixa tratar como um objeto de ódio e a revolta contra essa depreciação para quem prefere o ódio do outro são dois impasses.

O ódio não é a única resposta possível. Há a resposta própria à ética de cada um. Há também aquela da psicanálise de orientação lacaniana. Ela pode abrir outra via para quem decide contornar um gozo sem nome. É também possível renunciar às sirenes do homem providencial e a seu corolário de bode expiatório para fazer parte de uma fraternidade de discurso. A intranquilidade é assegurada, mas não sem a alegria de viver.

(1) O assassinato de Alexandre II em 1881 desencadeia violentos massacres de judeus. Pouco depois, em 1882, Victor Hugo publica um manifesto em favor dos judeus perseguidos da Rússia nos jornais parisienses L’Évenement, Le Temps et Le Rappel.
(2) A carta aberta “J’accuse…!” de Zola, escrita durante o Caso Dreyfus, é publicada no jornal L’Aurore em janeiro de 1898.
(3) Em seu discurso à Nação, no dia 24 de agosto de 1941, Winston Churchill lança uma advertência aos nazistas: “Desde as invasões mongóis do século XII, jamais assistimos na Europa a práticas de assassinato metódico e sem piedade em escala semelhante. Estamos na presença de um crime sem nome”.
(4) Devemos a J.-A. Miller o fato da elevação do termo extimidade à categoria de conceito durante seu Curso de Orientação Lacaniana “Extimité”, 1985-86, inédito em francês.
(5) NT. Existe uma expressão em francês (expression familier) que diz « le sabre et le goupillon » e quer dizer justamente « l’armée et l’Église », ou seja, o exército e a Igreja. Aqui Aflalo parece referir-se a essa expressão.
(6) “Eu percebo que o discurso religioso, em todo mundo islâmico, fez com que o Islã perdesse sua humanidade”. Entrevista concedida por Abd el Fath el Sissi, então candidato à presidência do Egito, realizada em 6 de maio de 2014 pela CBC e ON TV, duas redes egípcias de televisão.

 


Tradução: Maria das Graças Sena
Revisão da tradução: Clarissa Vieira – TEXTECER

 


Agnès Aflalo
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne e da AMP. E-mail: agnes.aflalo@wanadoo.fr



Império Das Imagens: Um Ponto De Vista

SÉRGIO CAMPOS

 

O mundo das imagens, grosso modo, se divide em dois domínios. O primeiro domínio é o da esfera do aparelho psíquico do parlêtre, das imagens produzidas pelo nosso inconsciente como as representações mentais: sonhos, devaneios e fantasias. O segundo domínio pode ser descrito como sendo o das representações visuais, os objetos materiais e os signos que representam o Outro, ou seja, o mundo exterior. É digno de nota que as imagens do Outro influenciam as imagens do parlêtre, e as imagens deste recriam as imagens do Outro, de sorte que um domínio incide e se infiltra sobre o outro, produzindo todo um intercâmbio e uma superposição de imagens que produzem efeitos subjetivos de todas as ordens.

Ao analisarmos a existência das imagens do Outro, podemos concluir que existem, de uma forma geral, três modelos de imagem e, por consequência, três maneiras de ver o Outro. O primeiro modelo, considerado artesanal, nomeia todas as imagem feitas à mão, dependendo, portanto, de um savoir-faire – da habilidade e do talento – de cada um, plasmar o visível, a imaginação visual e até mesmo o invisível. Nesse conjunto distinguimos dois tipos de imagem, segundo Freud: aquelas cujas técnicas artísticas agregam – per via di porre –, como os desenhos e as pinturas, e aquelas cujas técnicas retiram – per via di levare –, como esculturas em mármore e madeira. Freud sinalizou o funcionamento de uma análise per via di levare (FREUD, 1904/1990).

O segundo modelo se refere às imagens que dependem da luz – elemento físico de visibilidade – e de uma máquina de registro, implicando a presença de objetos no campo da realidade. Esse modelo pode ser denominado luminoso, visto que, para que ele ocorra, deve haver luminosidade. O modelo luminoso permite que as imagens óticas se projetem através de um raio de luz a partir de um objeto natural captado na realidade, de tal sorte que esse objeto é fixado por um elemento fotossensível químico, como nos casos da fotografia e do cinema. O modelo luminoso foi paradigma no século XX nas grandes descobertas e nas formidáveis invenções da ciência como meios de investigação do mundo natural, como o microscópio e o telescópio. Freud analisou que, a cada invenção, o homem recria seus próprios órgãos, ampliando os limites de seu funcionamento. No que concerne à pulsão escópica e às imagens do Outro, a câmara fotográfica retém as impressões visuais fugidias; por meio de óculos, corrige os defeitos das lentes dos próprios olhos; através do telescópio, vê à longa distância; e, por meio do microscópio, supera os limites de visibilidade da própria retina (FREUD, 1929/1990).

Por último, o terceiro modelo das imagens do Outro, que denominamos digital, apanágio do século XXI, se relaciona com as imagens sintéticas, infográficas, virtuais, inteiramente calculadas pela computação. O terceiro modelo da imagem do Outro se constitui a partir da transformação de uma matriz de números inteiramente calculada em pontos digitais elementares – pixel – que visualizamos em um écran que nos olha (SANTAELLA, 2001). Aliás, é no terceiro modelo que se configura o império das imagens como unidade política de domínio soberano e de autoridade do Outro, forma de governo com influência dominadora no mercado sob o ponto de vista econômico em um vasto território e uma ordem de ferro com poder irrestrito de informação com fins ao controle.

Miller, inspirado em Antonio Negri, sociólogo italiano, assinala que vivemos na era do “Outro que não existe”, em um regime que não age mais pela censura, tornando improvável a ideia de transgressão e de revolução. Deslocamos da sociedade disciplinar, que supõe uma clara distinção entre o in e o out, para a sociedade de controle, interiorizada, flexível, em rede, flutuante e êxtima. O imperialismo, hoje, não é mais de ninguém, está em todas as partes e em nenhuma, pois não há mais fronteiras entre o in e o out (MILLER, 2011). O império das imagens do Outro se propaga e se difunde em volume e profusão, corrompe nosso modo de vida e nosso aparato psíquico, se infiltra em nossos lares sem pedir permissão, nos induz ao consumo de objetos supérfluos, nos torna reféns e se alastra mediante as novas tecnologias, contaminando todos os gadgets, constituindo, assim, o que Lacan nomeou de alethosphera.

Se levarmos em consideração o tempo em articulação com as imagens do Outro, pode-se deduzir que o modelo artesanal tem, por natureza, o perene; o segundo, o luminoso, circunscreve o mundo do instantâneo, do lapso e da interrupção do fluxo do tempo e, por último, o modelo digital se configura como o universo do evanescente, do devir, do tempo puro, manipulável, reversível e reiniciável em qualquer momento (SANTAELLA, 2001).

Do ponto de vista do parlêtre, a imagem artesanal é feita para a contemplação do Outro, a imagem luminosa se presta à observação do Outro e, a digital, à interação com o Outro. Na imagem artesanal, havendo nela algo de sagrado, evoca uma nostalgia do divino. Portanto, a imagem artesanal convoca o parlêtre a um impossível contato imediato, sem mediações com o transcendente, ao mesmo tempo em que produz um afastamento que é próprio dos objetos únicos, envolvidos num círculo mágico da aura de autenticidade, como foi teorizado por Walter Benjamin. Já a imagem luminosa é profana, pois surge como um fragmento arrancado do corpo do Outro, oferecendo-se ao parlêtre como objeto de observação, um recorte do Outro em sua realidade e em sua natureza. Nesse segundo modelo, o objeto extraído do campo do Outro solicita ao parlêtre aquiescência e reconhecimento do Outro, produzindo memória e identificação. Por último, as imagens digitais do terceiro modelo produz a interatividade entre o Outro e o parlêtre, suprimindo as distâncias, engendrando uma imersão e uma navegação nas circunvoluções no interior da imagem (SANTAELLA, 2001,).

O terceiro modelo se propaga de maneira inquietante pelas novas paisagens da internet e se expressa de maneira imperativa como apanágio do progresso, no qual a informação é signo de poder. Se, por um lado, o primeiro modelo está situado na condição de “ver e não ser visto”, como no panóptico de Jeremy Benthan, no terceiro modelo o axioma do panóptico se desloca para o imperativo “ver, tudo ver, ver tudo de tudo”, que se expressa como uma vontade de gozo que se impõe como uma lei (FOUCAULT, 2007). Já nos anos 30, Walter Benjamin assinalava que “outrora, com Homero, a humanidade tinha sido objeto de contemplação dos deuses do Olympo, agora se ela torna objeto de contemplação de si mesma” (BENJAMIN, 1996, p. 33). O terceiro modelo, apanágio do império das imagens, criou o Outro evanescente, mas também onividente, fruto da bricolagem da ciência e da tecnologia, cujo olhar não mais transcende, tampouco contempla o mundo; contudo, supervisiona, controla, se infiltra e se imiscui na sociedade e em todos os domínios da vida. Entretanto, não mais vigia de fora, como o panóptico de Benthan, mas controla de dentro, abolindo a fronteira entre o in e o out.

Se no primeiro e no segundo modelo, por detrás da imagem, há uma sombra, a Coisa a ser representada que guarda distância com a própria imagem, visto que a imagem, como um véu, vela o real do gozo, pode-se dizer que, no terceiro modelo, a imagem digital está chapada sobre a Coisa (WAJCMAN, 2010). A tela plana do computador não nos deixa mais imaginar o que se encontra por detrás da imagem, de modo que não mais existe uma distância entre a imagem e a Coisa. Portanto, a imagem do Outro e a Coisa se superpõem, se tornam íntimas e se confundem, de tal sorte que a imagem fabrica uma ilusão do real. Nos tempos de hoje, as imagens são fábricas do real (WACJMAN, 2010). Portanto, no contemporâneo, segue-se a orientação de que não se deve mascarar o mundo, mas mostrá-lo como ele é de fato. Outrora, sob o domínio do modelo luminoso, o neorrealismo italiano, o fotojornalismo e os fotógrafos de guerra tentaram captar o real em suas lentes e mostrar o mundo como ele é.

No mundo de hoje, temos o homem-imagem, impregnado pelas imagens do Outro, agora não mais especular como o fotojornalismo, tampouco intersubjetivo, fruto de uma “imagem-rainha” espessa, que encobria a sombra do objeto, como cogitou Lacan no estágio do espelho. Entretanto, temos a imagem do homem construído pela tecnologia que tenta traduzir o próprio real, como as imagens médicas das ressonâncias magnéticas. Com efeito, a alta modernidade também é idólatra, particularmente, das imagens científicas e das imagens tecnológicas.

O terceiro modelo, no qual a imagem fabrica uma ilusão do real, se infiltrou não apenas na ciência, mas em diversos terrenos da cultura e da arte. Em 1977, o alemão Gunther von Hagens, conhecido como plastificador de corpos, criou uma técnica inovadora de preservação de cadáveres e a elevou ao estatuto de arte. Sua técnica mescla congelamento, acetona e polímeros. O resultado é uma verdadeira aula de anatomia que faz parte da exposição “Body Worlds” (mundo de corpos), que fica na Atlantis Gallery, em Londres. Ao expor cerca de 200 cadáveres sem pele, como o de uma mulher grávida dissecada com o feto exposto, Hagens despertou reações mistas de repulsa, indignação, surpresa e fascinação. A exposição esteve no Brasil com o nome “Ciclo da vida”, inclusive em Belo Horizonte, em 2009. O que se observa nas imagens digitais, em que a imagem e o real estão em continuidade, é o desaparecimento dos semblantes. Essas imagens mostram apenas o que o objeto é, elas não aludem, tampouco querem dizer algo. Portanto, existe mais semblante numa medalhinha da Virgem Maria do que nos corpos de Gunther von Hagens.

Com efeito, um modelo nunca se desloca em direção ao outro de maneira abrupta, mas vão se mesclando, se justapondo, se infiltrando, se transformando gradativamente um no outro, de sorte que, hoje, a imagem do Outro nunca se encontra com exclusividade dentro de um único modelo. Com efeito, mesmo que tenha um viés, ela se apresenta amarrada como num nó RSI. Assim, grosso modo, o modelo artesanal pode ser considerado como apanágio do imaginário, na medida em que ele reproduz o corpo próprio, o corpo do Outro e o falo; o modelo luminoso, em razão da extração instantânea do objeto, em virtude do recorte da realidade, pode ser aludido ao objeto a e ao registro do simbólico; já na esfera do real, poderíamos supor o modelo digital como uma espécie de fábrica do real.

Em novembro último, visitei uma bela exposição em Paris, de nome “Icônes du Petit Palais”, sobre a arte cristã bizantina. Não resta dúvida de que a exposição de ícones sagrados, através de pinturas e esculturas, estava alojada no RSI, porém com prevalência no modelo artesanal, já que sua função era, a partir dos semblantes, despertar a contemplação e a reflexão no parlêtre.

A exposição suscitava uma meditação sobre as religiões que eram a favor ou contra as imagens religiosas. É conhecido o interdito bíblico à teologia dos ícones, de tal sorte que a figuração e o sagrado não são noções sempre compatíveis. Se, por um lado, existem religiões que possuem uma afinidade com as imagens, como o cristianismo e o hinduísmo, por outro, as religiões islâmicas e judaicas proíbem qualquer tipo de imagem de Deus. É digno de nota o fato de encontrarmos duas posições antagônicas no seio das três religiões fundadas a partir do legado de Abraham.

O judaísmo interdita toda sorte de representação de Yahvé, como exprime um dos mandamentos no Torá: “Não farás para ti imagem de ídolos, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, tampouco nas águas debaixo da terra” (Exodus: 20, 4-5). O monoteísmo e a interdição das imagens funda uma teologia em que a crença deve acontecer sem a presença das imagens. O Deus de Israel é audível e não visível, na medida em que é na lei e na palavra que ele se inscreve para o seu povo. Em contrapartida, o islã proíbe, igualmente, todos os tipos de imagem de Deus. O Corão declara: “Alá! O impenetrável! Alá não se cria, nada se parece com ele”. Ademais, “Deus, o impensável, nada pode nem de longe refleti–lo” (Corão: 122). O profeta Maomé, venerado pelos mulçumanos, raramente aparece na arte islâmica. Grafias sobre o profeta Maomé figuram raramente, apenas nos manuscritos religiosos iranianos e otomanos, e ainda que surja sua imagem, ela nunca está à mostra, é frequentemente velada. O islamismo evita qualquer tipo de imagem de Deus ou de Maomé para que a caligrafia se torne a única encarnação da palavra divina. Portanto, a letra está para o islã assim como a voz está para a religião judaica.

Diferente do judaísmo e do islamismo, o cristianismo desenvolve progressivamente uma tradição na qual Deus é esboçado em imagens e surge, frequentemente, ilustrado no mundo das artes. Ademais, na religião cristã, todo ícone reenvia a um protótipo divino, não somente autêntico, mas revelado, no qual a imagem é a cópia fiel em semelhança com Deus e com as demais divindades. Possivelmente, as reticências das duas religiões em usar as imagens provavelmente advêm do paganismo, que utilizava imagens de totens para adoração. No século VI e VII os imperadores romanos passaram a representar Cristo, santos e eles próprios em imagens, quer sejam esculturas, quer sejam cunhadas em moedas.

No século VIII houve a crise iconoclasta, fruto de uma reviravolta política dos imperadores do império bizantino e durou cerca de um século, vitimando milhares de idólatras. Depois da crise iconoclasta, as imagens como representações do sagrado e do divino ressurgiram nos textos canônicos e se tornaram ícones de culto, de veneração e de respeito. Portanto, no cristianismo, com as exceções dos cismas de Lutero e de Calvino e nas religiões que foram marcadas pelas suas influências, a imagem tida como representação autêntica, legítima e revelada como ícone, seguiu forte no catolicismo. Com efeito, na religião católica, a imagem se apresenta como ferramenta essencial e indispensável ao culto, à adoração e à mediação com o transcendente.

O modelo artesanal, não obstante ter sido o primeiro que derivou em mais dois modelos, ainda continua a propagar efeitos subjetivos, dada a sua profundidade e a sua complexidade. Assim, é curioso ressaltar que o culto ao sagrado e ao divino é expresso apenas mediante o primeiro modelo, que é o paradigma artesanal. Aliás, não nos consta que o sagrado seja cultuado pela fotografia e pela internet. Portanto, pode-se concluir que, por detrás do modelo artesanal das imagens, existe um gozo. Assim, se a imagem sacra é atacada, surge o gozo da profanação e do sacrilégio e, em contrapartida, como reação, surge o gozo da revolta e do ódio, a exemplo de um ataque televisionado à imagem de Nossa Senhora Aparecida perpetrada por um pastor evangélico, ocorrido há alguns anos.

Miller assinala que, no final do século XX, considerávamos que os conceitos tais como blasfêmia, sacrilégio e profanação não eram mais que vestígios de um tempo passado. Ele constata que a era da ciência não fez desvanecer o sagrado, e mais, que o sagrado não é arcaico, mas contemporâneo. O sagrado não é o real, mas um efeito de discurso, uma ficção que mantém uma comunidade unida. Aliás, o sagrado é a pedra angular de sua ordem simbólica, ressalta Miller. O sagrado exige reverência e respeito, e a falta deles acarreta o caos e o gozo da profanação e do sacrilégio e, em contrapartida, desperta o gozo da ira e do ódio.

Então, no episódio do atentado à sede do periódico Charlie Hebdo, na cidade de Paris, em janeiro último, constatamos que estamos diante de um choque de ideologias no qual estão em jogo dois modelos da imagem. Se por um lado há uma cultura situada no terceiro modelo, que defende um modo de gozo no qual é proibido proibir e que é permitido tudo dizer, em nome de uma liberdade de expressão, de outro temos uma cultura que se situa no primeiro modelo, na qual dentro de seu núcleo religioso existe o interdito da representação de imagens tanto de Alá quanto do profeta Maomé.

Portanto, são dois tipos de gozo em oposição: o primeiro, resultado de um tudo dizer, tudo expressar em nome da liberdade, e um segundo, o gozo da cólera revelado em virtude da blasfêmia, da profanação e do sacrilégio em consequência do uso abusivo de um ícone que deveria permanecer velado por respeito. Em síntese, no contemporâneo encontramos dois modos de gozo justapostos, porém em oposição, como descreveu Jésus Santiago (2014) de maneira bastante esclarecedora em seu artigo: um modo de gozo feminino, não-todo, situado a partir da pluralização do nomes do pai, e outro universal, masculino, assentado sobre as insígnias do nome do pai.

O olhar no terceiro modelo da imagem, no império das imagens, se constitui como alvo da pulsão, que se expressa pela pulsão escópica, condicionando o gozo mediante a posição de “ver, tudo ver, ver tudo de tudo e ser visto por todos”, o que não implica qualquer tipo de resto. É, portanto, relevante afirmar que apenas na medida em que a pulsão escópica seja modulada, que ela seja parcial, que deixe sombras, restos, dobras, buracos, enigmas e espaços vazios, é que o olhar, como pulsão, pode despertar e instigar um desejo de saber. Assim, nos resta interrogar como a psicanálise poderá operar sobre o parlêtre no contemporâneo, como ela poderá sobreviver no futuro, em que a dimensão do Outro como imperativo do “fazer-se ver”, sem resto, é a condição prevalente de possibilidade para o terceiro modelo.

À guisa de conclusão, se o primeiro modelo de imagens se presta à contemplação, o segundo proporciona a extração da realidade do objeto olhar, no qual a fotografia é o melhor molde; por último, o terceiro padrão, o qual denominamos digital, acrisolai um novo paradigma, no qual não há prerrogativas de um registro sobre o outro, de tal sorte que o real, o simbólico e o imaginário estão dispostos em equivalência. Agora, o imaginário é pleno de direito, como os demais. Portanto, esse novo paradigma das imagens, apanágio da clínica contemporânea, ocasionou um novo imaginário e novas maneiras de amarrar o RSI. Eis o nosso desafio!

 

(1) O verbo acrisolar diz respeito ao uso do crisol, o cadinho evocado por Miquel Bassols em sua conferência de posse da presidência da AMP, objeto de macerar elementos cuja finalidade é a de criar um novo composto.

 


Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1996, p. 33.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, São Paulo: Graal, 2007.
Freud, S. (1989). Sobre psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 239-251). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1904).
______. (1929) O mal-estar na civilização. In: STRACHEY, J. (ed.).Tradução de Vera Ribeiro. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v.21, p.81-178 (Versão brasileira de 1980).
MILLER, J. A. Intuições milanesas, Opção lacaniana online, n. 5, ano II, Julho de 2011.http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf. Acesso em 5 de dezembro de 2014.
_______. Primeiro dos comentários sobre o atentado ao jornal Charlie Hebdo, publicado no site Opção lacaniana Online. ISSN 2177-2673 Março de 2015, ano VI. Acesso em 30 de março de 2015.
SANTAELLA, L. Imagem: cognição, semiótica e mídia, Sao Paulo: Iluminuras, 2001.
SANTIAGO, J. Revista eletrônica Sephora, Gangues: os efeitos do abalo do Nome-do-Pai no contexto da violência juvenil, n. 16, vol. VIII, maio-out de 2013. Acesso em 1º de dezembro de 2014.
WAJCMAN, G. L’œil absolu, Paris: éditions Denoel, 2010.
ZIADÉ, R. Icônes du Petit Palais, Les Collections de la ville de Paris, 2014.

 

Sérgio Campos

Membro da EBP/AMP. Doutor pela FM-UFMG. Preceptor da Residência de Psiquiatria do IRS/FHEMIG E-mail: sergiodecampos@uol.com.br.




Editorial Almanaque nº14

MÁRCIA MEZÊNCIO

Apresento-lhes a edição n.14 de Almanaque on-line. Nessa edição, buscamos, mais uma vez, apresentar aos nossos leitores o trabalho que se desenvolve no IPSM-MG, em seus espaços de ensino e investigação. Nossos temas, alinhados ao da comunidade de trabalho da Orientação Lacaniana, acentuam a sintonia com o momento civilizatório em que vivemos e praticamos.

Começamos esta edição traçando as referências teóricas para a localização do psicanalista na clínica atual e em sua presença na cidade. Assim, em Trilhamento, acompanharemos, passo a passo, em um percurso nos textos de Freud e Lacan, o caminho que vai da agressividade à pulsão de morte, através da leitura que Éric Guillot nos apresenta dos fundamentos e mecanismos da agressividade e da pulsão de morte, conceitos que, segundo o autor, estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas e que podem nos ajudar a esclarecer o fenômeno da violência contemporânea.

O tema da passagem ao ato também é discutido por Frederico Feu, em Incursões, a partir da leitura do Seminário, livro 10, de J. Lacan. Tomando o eixo desse seminário que é a elaboração do conceito de objeto a, ele busca retrabalhar a diferença estrutural entre neurose e psicose e abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses.

O real que se apresenta na prática dos psicanalistas foi o tema trabalhado pela Seção Clínica durante o primeiro semestre de 2014. Da investigação dos núcleos, publicamos o comentário de Márcia Mezêncio, no Núcleo de Psicanálise e Direito, em torno da formulação de Lacan sobre o utilitarismo da pena e suas consequências sobre a função da punição, e ainda duas produções do Núcleo de Psicanálise com Crianças. Cristiana Pittela de Mattos traz-nos a proposta de investigação sobre o real que se apresenta na clínica com crianças, na tentativa de definir “como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna” — que poderemos acompanhar no trabalho de Andrea Eulálio, Margaret Couto, Maria das Graças Sena; “como a angústia é um sinal do real do trauma; também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.”

O autismo é outro tema da atualidade que está presente nesta edição com um artigo de nossa colega argentina Silvia Tendlarz, em que discute o momento atual dos diagnósticos. Destacamos sua afirmação de que há transferência na direção da cura da criança autista e de que se devem determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura. A invenção, sustenta, é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Encontramos, aí, a orientação da pesquisa neste semestre, que nos inspirou a Entrevista com os membros da Comissão Científica do XX EBCF: pedimos a eles para localizar, em sua prática, o surgimento desse real e indicar-nos as possibilidades e invenções que este convoca.

Em Encontros, Guilherme Cunha Ribeiro propõe uma parceria entre Medicina e Psicanálise, como forma de encontrar opções epistêmicas para sustentar o trabalho do médico, alternativas à clínica da avaliação e do protocolo, prevalente na prática da medicina contemporânea. Registro de atividade conjunta dos núcleos Psicanálise e Medicina e Psicanálise e Toxicomania.

Finalmente, em De uma nova geração, encontramos o vigor e o rigor do trabalho de transmissão sustentado pela Seção de Ensino. O trabalho de Thiago Borges propõe um retorno a um texto fundamental de Jacques-Alain Miller e a um tema também fundamental na clínica contemporânea: a psicose não desencadeada, chamada, entre nós, de psicose ordinária.

Não deixem de ler!




Almanaque V. 8 – Nº 14 1º semestre de 2014

Apresento-lhes a edição n.14 de Almanaque on-line. Nessa edição, buscamos, mais uma vez, apresentar aos nossos leitores o trabalho que se desenvolve no IPSM-MG, em seus espaços de ensino e investigação. Nossos temas, alinhados ao da comunidade de trabalho da Orientação Lacaniana, acentuam a sintonia com o momento civilizatório em que vivemos e praticamos. Leia o editorial…

TRILHAMENTO

Da agressividade à pulsão de morte – Éric Guillot

Crianças autistas – Silvia Tendlarz

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista – Comissão científica do XX EBCF

INCURSÕES

Incidências do trauma: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? – Cristiana Pittela de Matos

Trauma e devastação: a relação mãe-filha – Andrea, Margaret, Maria das Graças Sena

O utilitarismo da pena e o real da pulsão – Márcia Mezêncio

Passagem ao ato como resposta do real – Frederico Feu

ENCONTROS

Medicina e Psicanálise: uma parceria – Guilherme Ribeiro

DE UMA NOVA GERAÇÃO

Reflexões sobre a psicose ordinária – Thiago Ferreira de Borges




Passagem Ao Ato Como Resposta Do Real

FREDERICO FEU

Podemos abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses. Na mesma proporção em que, na neurose, podemos contar com os fenômenos de retorno decorrentes do recalque, a psicose nos confronta com o ato como efeito da foraclusão. Seja nas suas origens, por ocasião do desencadeamento, ou como um ato conclusivo de um argumento delirante, seja como uma maneira de operar a castração no real, ou como uma tentativa de extração de um mal-estar corporal, no “impulso a golpear”, a psicose sempre parece tender, de alguma forma, ao ato.

De um modo geral, a passagem ao ato desvela a estrutura fundamental do ato, em seu sentido mais amplo (MILLER, 2014). O pensamento, na medida em que está dominado pelo recalque, está essencialmente sob impasse. Em sentido amplo, o ato é uma tentativa de sair desse impasse, caracterizando-se por uma ruptura entre ação e pensamento, ao contrário do que a tradição racionalista preconiza, ou seja, que um ato deveria ser a consequência lógica de uma cadeia racional de pensamentos. Nesse sentido, todo ato equivale a uma espécie de suicídio do sujeito, a um rompimento com o Outro, a um divisor de águas, visando a uma mutação subjetiva. Trata-se, como diz Lacan, de extrair da angústia a sua certeza, por oposição à dúvida suscitada pelo pensamento. O mesmo princípio poderia ser estendido à criação artística, à invenção de novos paradigmas no campo da ciência ou mesmo ao atravessamento produzido no campo do pensamento cultural e político por um acontecimento.

Proponho, nos limites deste texto, tratar a noção clínica de passagem ao ato a partir de algumas referências desenvolvidas por Lacan no Seminário, livro 10, “A angústia”, de 1962-1963, especialmente em torno do comentário do quadro que reproduzimos abaixo, em que a passagem ao ato é posta em relação com outros termos e conceitos. Isso nos coloca diante do problema de transpor uma noção clínica cujo movimento de elaboração se dá no enquadre estrutural das neuroses para o campo das psicoses. Além disso, há dificuldades de interpretação desse quadro, na medida em que ele não foi retomado por Lacan, dificuldades que nos parecem tanto maiores quanto mais exigirmos uma correlação formal de todos os seus termos. Devemos tomá-lo, então, de uma forma fragmentária, para um determinado uso, relacionando seus elementos sem fazer um todo e buscando estabelecer alguns parâmetros que nos levem da clínica das neuroses à clínica das psicoses, na qual o tema da passagem ao ato adquire todo seu peso.

Enquadre E Movimento Geral Do Seminário 10

A chave do Seminário 10 é a elaboração do conceito de objeto a, do qual a angústia vem a ser uma espécie de moldura para o neurótico e com o qual o sujeito se articula na cena fantasmática ($ <> a). O objeto a demonstra o efeito regulador da entrada na ordem simbólica: para dar conta do gozo, o sujeito (S) se dirige ao campo do Outro (A); se ele encontra, nesse campo, o significante do nome-do-pai, o efeito é sua divisão ($) entre o significante — que representa o sujeito para outro significante — e o objeto a .

Se definirmos essa operação, a que chamamos castração, como uma negativização do gozo pelo simbólico ou como equivalente a uma extração de gozo do corpo, o objeto a é o que compensa, com o mais de gozar, o menos da castração. Esse objeto, justamente por ser perdido, estabelece para o sujeito o regime de contingência de encontros e desencontros no real, mediando a sua relação com o Outro, na medida em que, para o neurótico, gozo e Outro se separam. Do lado do sujeito, o Outro aparece recoberto por uma barra (Ⱥ) — “o que me constitui como inconsciente, ou seja, o Outro enquanto aquilo que não atinjo” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36). Assim, estabelece-se a equivalência entre demanda e circuito pulsional na neurose. Partindo de uma zona erógena, representada pela elipse, a pulsão contorna um objeto — “essa prova e garantia única, afinal, da alteridade do Outro” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36) — retornando sobre esse mesmo ponto de partida, obtendo-se, dessa forma, a satisfação.

Esse objeto, que a pulsão irá contornar, é aquilo que há de mais variável na pulsão, embora cada sujeito, tomado em sua particularidade, desenvolva um padrão de repetição, um “modo de gozo” que caracteriza o sujeito e que encontra sua consistência no fantasma. Podemos, então, definir a passagem ao ato na neurose como uma precipitação do sujeito, a partir de um encontro desestabilizador, para fora da cena fantasmática, em que ele ocupa uma posição de resposta ao desejo do Outro, identificando-se ao objeto desse desejo.

Quanto ao sujeito psicótico, ele está mais confrontado ao real e com mais dificuldades em relação à mediação simbólica. Daí sua tendência a operar diretamente sobre o real nos fenômenos de passagem ao ato, em suas tentativas de barrar o Outro (em sua dimensão invasiva e excessiva), na medida em que, nessa estrutura, gozo e Outro não se separam. Assim, podemos falar do gozo não negativizado na psicose, especialmente na esquizofrenia, e da não extração do objeto a. Em lugar de um circuito pulsional que estabelece a possibilidade de encontros e desencontros com o objeto da demanda dirigida ao Outro, temos, na psicose, um curto-circuito da pulsão sobre o próprio corpo:

Construção Do Quadro Da Angústia

Podemos agora voltar ao quadro construído por Lacan no Seminário, livro 10, na tentativa de esclarecer suas inter-relações e localizar, aí, o momento da passagem ao ato. Buscaremos construí-lo passo a passo, supondo uma ordenação lógica.

1 – Observamos, inicialmente, que o quadro se escreve a partir de duas coordenadas, o eixo do movimento e o eixo da dificuldade.

A referência ao movimento está nas origens da elaboração freudiana do aparelho psíquico. Tanto no “Projeto” de 1895, quanto na “Carta 52”, redigida em dezembro de 1896, o aparelho psíquico é concebido levando-se em conta as relações de continuidade e descontinuidade entre pensamento e ação.

Se tomarmos o caminho “progressivo” da excitação no aparelho, a ação é o que decorre de um processo de inibição que caracteriza o trabalho de inscrição, retranscrição e tradução da excitação no aparelho psíquico, como um ponto de conclusão de uma cadeia de representações que dominou a excitação e chegou à consciência ao ligar-se a uma representação verbal. Teríamos, no entanto, que conjugar o eixo do movimento ao caminho “regressivo” que conduz o pensamento de volta à excitação no aparelho psíquico, desfazendo as suas conexões, na medida em que a passagem ao ato está em descontinuidade com a cadeia de pensamentos. A esse respeito, lembramos que o termo “Agieren”, utilizado por Freud (por exemplo, no artigo “A dinâmica da transferência”, de 1912), equivale a uma repetição em ato no limite do trabalho de rememoração, a uma mostração, na medida em que esse caminho regressivo, no curso de uma análise, atualiza a realidade psíquica da fantasia na transferência.

Seguindo o eixo da dificuldade, encontramos, por sua vez, a função da barra, que concerne ao sujeito em sua relação com o gozo. De fato, o sujeito barrado pode ser pensado como um efeito do movimento da excitação, na medida em que o sujeito, em seu desamparo, se dirige ao campo do Outro.

A montagem do quadro da angústia compreende, assim, uma tensão crescente que vai de um mínimo de movimento a um máximo de movimento, passando pelo termo intermediário da emoção, e de uma menor a uma maior dificuldade, de forma que podemos definir a angústia como a resultante de um máximo de movimento com um máximo de dificuldade.

2 – Definidas as coordenadas da angústia, podemos escrever a série colocada por Lacan em diagonal, em ligação com a série freudiana inibição-sintoma-angústia.

Inibição, sintoma e angústia são termos heterogêneos, dirá Lacan, estruturas diferentes. Não há, portanto, passagem ou gradação entre eles. De fato, embora possamos pensar no aparecimento da angústia como um efeito de falência da função estabilizadora do sintoma, estabelecendo assim uma sequência entre eles, podemos encontrar igualmente superposição entre a inibição de uma função e um sintoma, como na impotência masculina ou na anorexia.

Mas, de modo geral, a inibição está associada à detenção de um movimento e, nesse sentido, se opõe à angústia, sendo o sintoma um termo intermediário que faz a mediação entre movimento e dificuldade ou, conforme definição de Freud, uma formação de compromisso entre movimento pulsional e defesa.

3 – Se a inibição é detenção do movimento no nível de uma função, estar impedido é um sintoma. “Estar impedido é um sintoma. Ser inibido é um sintoma posto no museu” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). “Impedicare”, etimologicamente, quer dizer “ser tomado na trama”, o que nos leva da função ao sujeito à medida que caminhamos no eixo da dificuldade.

A trama de que se trata é a captura narcísica, isto é, “o limite do que se pode investir no objeto”, como dirá Lacan.

O impedimento ocorrido está ligado e este círculo que faz com que, no mesmo movimento com que o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que lhe está mais distante, ele depare com essa fratura íntima, muito próxima, por ter-se deixado apanhar, no caminho, em sua própria imagem, a imagem especular. É essa a armadilha (LACAN, 1962-1963/2005, p.19).

O sujeito que se encontra, no plano sintomático, impedido, se deteve diante da castração, rendendo-se à captura narcísica. Um passo a mais no eixo da dificuldade, e ele se encontrará embaraçado, termo que é correlativo à angústia no eixo vertical. O embaraço é definido como “forma leve da angústia” na dimensão da dificuldade. Etimologicamente, o termo francês “embarras” aponta para o sujeito revestido pela barra, “quando vocês já não sabem o que fazer de si mesmos” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). Em espanhol, estar “embaraçada” quer dizer estar grávida, em gestação, à espera. Embora daí se depreenda um movimento futuro ou algum tipo de desfecho, falta ainda à dimensão do embaraço a precipitação ao ato que encontramos à medida que caminhamos no eixo do movimento.

4 – Prosseguindo em direção ao sintoma, seguindo o eixo do movimento, encontramos a emoção (émotion). A emoção salienta algo de inquietante em comparação com a inibição, evocando, ao mesmo tempo, a ideia de uma exteriorização, no sentido de alguma coisa que se descarrega, que é colocada para fora, muitas vezes, conservando o sentido de reação catastrófica. Trata-se de um termo utilizado por Freud justamente para designar o movimento da catarse, uma vez que teria sido a ausência de reação adequada ao trauma o que estaria na origem do sintoma histérico. A catarse se realiza levando-se em conta essa tríplice condição: a rememoração, a exteriorização da emoção e sua tradução em palavras. Trata-se, portanto, de uma exteriorização simbólica, na medida em que o sujeito, sob transferência, for capaz de se desembaraçar de seu sintoma por meio da palavra.

Finalmente, ainda na linha do movimento, encontramos a efusão (émoi). O termo esmayer deriva do latim popular, exmagare, esmagado, em português, com o sentido de queda, perda de potência. Relaciona-se a um excesso de movimento que parece colocar o sujeito fora de si, na medida em que ele se encontra embaraçado pelo desenvolvimento da angústia. O émoi é “o perturbar-se mais profundo na dimensão do movimento. O embaraço, o máximo de dificuldade atingida” (LACAN, 1962-1963/2005, p.22), preenchendo assim as duas coordenadas da angústia.

5 – É possível agora completar o quadro com as referências ao acting-out e à passagem ao ato. Podemos desde logo observar que, em relação ao eixo da dificuldade, encontramos uma maior proximidade entre sintoma e acting-out, por um lado, e passagem ao ato e angústia, por outro.

De fato, o acting-out se produz a partir de um franqueamento do sintoma, estando logicamente determinado no curso de uma análise no limite do trabalho de interpretação, ali onde se desvela a estrutura da fantasia, destacando-se como fundamental o fato de que o acting-out está direcionado ao Outro. Quanto à passagem ao ato, ela parece se antecipar ao pleno desenvolvimento da angústia, sendo tomada por Lacan como uma precipitação que lança o sujeito em um movimento de queda para fora da cena fantasmática.

É o que se revela na análise feita por Lacan do caso da “Jovem Homossexual” (FREUD, 1920/1976). A passagem ao ato tem relação com o “deixar cair” (Niederkommen). Diante do olhar do pai com quem ela cruza na rua quando caminhava ao lado da dama — a quem a jovem se dedica, a contragosto do pai — se produz o extremo embaraço; e se lhe acrescentamos a emoção como desordem do movimento, o que chega nesse momento preciso ao sujeito é sua “identificação absoluta com esse pequeno a ao que ela se reduz” (LACAN, 1962-1963/2005, p.124), ao mesmo tempo em que ela se sente rechaçada, lançada fora da cena. É o suficiente para que ela se precipite, jogando-se de uma pequena ponte sobre a linha do trem, desde o lugar da cena onde atuava no sentido do acting-out. Ou seja: se a tentativa de suicídio é uma passagem ao ato, toda a aventura com a dama — que é elevada, como no amor cortês, a essa posição de objeto supremo — é um acting-out.

Psicose E Passagem Ao Ato

A questão que toca o analista, a cada análise, é justamente saber o quanto de angústia o sujeito pode suportar. Na clínica da neurose, a angústia é um guia, funcionando como sinal, o sinal de angústia. Podemos dizer que o sinal de angústia abre a possibilidade de um manejo, orientando a clínica da neurose em direção ao real, ao impossível de suportar, a partir do suporte da mediação simbólica. Se o ato analítico, esse ponto de viragem de uma análise, visa a extrair da angústia a sua certeza — já que, ao contrário do pensamento, a angústia é o que não engana — a questão é como chegar até aí bordejando, por assim dizer, os campos da passagem ao ato e do acting-out com os quais a angústia faz fronteira, como vemos no quadro.

Ora, o ato analítico é uma aposta que toma seu fundamento, na clínica da neurose, do fato de que o fantasma está emoldurado, enquadrado pelo sinal de angústia. Há um marco referencial em que essa aposta é possível: seu ponto preciso é a questão “que queres?”, que interroga o desejo do Outro. A relação com o objeto a é um modo de responder a essa pergunta, na medida em que o objeto a está, por assim dizer, a meio caminho entre sujeito e Outro, na medida em que o neurótico tende a se dedicar ao preenchimento da falta no Outro. O ato analítico visa a separar o sujeito do objeto ao qual ele identifica a sua demanda.

Na psicose, por sua vez, a angústia está a céu aberto; ela não funciona para o psicótico como um sinal ou um anteparo que se anteciparia ao seu pleno desenvolvimento. Para o psicótico, há impossibilidade formal de responder ao desejo do Outro pela via fantasmática. De fato, se, na neurose, o objeto a, na medida em que é extraído pela castração, vem a ser uma resposta possível a essa questão, na psicose, o sujeito encarna o objeto e, nesse sentido, encarna ele mesmo a resposta. Por conseguinte, falta a moldura que daria à angústia a sua contenção; falta a falta, como dirá Lacan, o contorno significante do objeto. Por isso, o sujeito seria lançado mais facilmente ao ato enquanto a angústia tenderia a aparecer mais do lado do Outro, como testemunhamos a cada vez que nos propomos a tratar um psicótico.

O campo da passagem ao ato apresenta-se, portanto, mais disperso nas psicoses justamente por faltar o traçado do contorno do objeto que a fantasia possibilita para o neurótico. Devido à sua dimensão invasiva, não limitada pela fantasia, o gozo, na psicose, predispõe o sujeito ao ato. Entretanto, talvez seja possível estabelecer algumas distinções que possam nos orientar minimamente na clínica da passagem ao ato. Assim, limitando-nos à fenomenologia dos atos hetero e autoagressivos, podemos distinguir:

a – Os atos impulsivos, aparentemente imotivados e muitas vezes repentinos, para os quais parece faltar a mediação simbólica e por meio dos quais a pulsão se faz ato. Podemos relacioná-los ao impulso a golpear que caracteriza a análise feita por Lacan do Kakon, esse objeto definido como a presença mesma do “mal” que o sujeito visa a atingir, seja extimamente ou no próprio corpo, em suas tentativas de barrar ou extrair o gozo, operando diretamente no real. Aquilo a que se visa é o mal-estar em sua urgência mesma, sendo a passagem ao ato uma tentativa de tratar o real pelo real. Assim, uma paciente é levada a atingir outro usuário de um serviço de saúde mental — que, nessas circunstâncias, poderia ser qualquer um — e, em seguida, tenta se lançar de uma janela sem que pudesse dar razões para isso, a não ser o impulso que acompanha o seu mal-estar e que a coloca, por um instante, fora de si. O que fazer diante de tais ocorrências, a não ser nos antecipando a esse mal-estar na medida do possível, oferecendo as contenções disponíveis na ocasião até que se restabeleçam as condições de mediação simbólica?

b – Os atos derradeiros, conclusivos, que pressupõe uma cadeia de pensamentos. Algumas vezes associamos a esses atos seu aspecto resolutivo e estabilizador para o psicótico, como acentuado por Lacan em sua tese de 1936. Um exemplo são os crimes hipermotivados na paranoia. A passagem ao ato pressupõe, às vezes, um longo período de preparação, embora nem sempre isso se faça anunciar. O importante a salientar é o aspecto lógico-dedutivo, nem sempre detectável, que acompanha tais atos, mesmo na esquizofrenia. Cita-se como exemplo uma paciente que veio a cometer uma tentativa de suicídio alguns dias após escutar de sua mãe uma frase que contestava sua interpretação delirante. A paciente vinha argumentando, em resposta ao seu mal-estar, que não tinha estômago, o que a deixava com uma sensação de vazio interior. A mãe acrescenta a essa formulação uma premissa universal: “todo ser vivo tem estômago”. É o suficiente para precipitar a conclusão: “logo, estou morta”. Podemos escrever logicamente essa dedução: (~q) (p  q) : (~q  ~p). Ou seja: “se eu não tenho estômago” (~q) e “se todo ser vivo tem estômago” (p q), conclui-se que, “se eu não tenho estômago” (~q), “eu não posso estar viva” (~p). Observamos que a certeza delirante, que incide sobre o particular, não é negada pela premissa universal. No entanto, em função da temporalidade própria às cadeias de pensamentos, resta-nos a chance de abrir a possibilidade de uma realização assintótica dessas deduções, bloqueando em alguns pontos o desenvolvimento da certeza delirante mediante a introdução daquilo que Lacan chamou de “o benefício da dúvida”.

c – Os atos de mutilação em série que incidem sobre o próprio corpo. À diferença do impulso a golpear que caracteriza o Kakon, essas mutilações e agressões ao corpo se distinguem por seu aspecto repetitivo e mesmo monótono e por seus efeitos de apaziguamento e esvaziamento. Muitas vezes, são atos silenciosos e solitários; outras vezes, inseridos em uma espécie de identificação grupal, como se observa em sites. Mas podem, igualmente, adquirir um valor de mostração e transferência de angústia. Cita-se como exemplo um sujeito que, repetidas vezes, insere objetos em seu corpo, condenando-se, assim, a uma série de intervenções cirúrgicas, e que fala disso sem mostrar sofrimento. Tais sujeitos dão, às vezes, a impressão de operar uma transferência do mal-estar para o Outro e de produzir neste um sentimento de impotência em lugar do impossível a suportar que concerne à relação de todo sujeito com o real.

d – Distinguimos os atos mostrativos, mais próximos do acting-out, das passagens ao ato, em função de parecerem mais destinados a provocar um efeito sobre o Outro, analista ou instituição, seja nas neuroses ou nas psicoses, e que revelam algum aspecto que não encontrou recursos simbólicos de expressão. Tais atos supõem, dessa forma, a existência de um cenário como campo de atuação e podem ser tomados, muitas vezes, na perspectiva do “tratamento do Outro”, exigindo uma interpretação e reorientando a posição do analista ou da instituição em relação ao paciente. Nisso também o acting-out se diferencia das passagens ao ato, em que o Outro é visado em sua dimensão intrusiva e excessiva para o sujeito, como Outro gozador, de quem o sujeito busca desvencilhar-se. Reconhecemos, assim, nos fenômenos de acting-out, a dimensão da transferência e um laço social mínimo. Um exemplo de acting-out pode ser recolhido no relato do “Caso Daví” (CARVALHO, 2000). Enquanto quebra os vidros do carro da gerente do serviço com uma pedra, o paciente se certifica de que o olham da janela. Esse e outros episódios podem ser referidos à frase “quero mostrar a eles que tenho valor”, que define a demanda de reconhecimento do sujeito frente ao Outro.

e – Por fim, teríamos os atos agressivos, que pressupõem o outro como semelhante, e a hipertrofia do imaginário. Aparecem, muitas vezes, justificados pela “raiva” ou pelo “ódio”, ou seja: a passagem ao ato é, nesses casos, dominada por um sentimento intenso e incontrolável que coloca o sujeito em posição de rivalidade em relação ao semelhante. Operam em uma vertente mais voltada à descarga da pulsão imaginariamente endereçada ao outro, em contraste com a tentativa de extração do mal-estar relacionado à presença do objeto Kakon. O outro é visado enquanto supostamente goza de algo que falta ao sujeito. Na medida em que o sujeito aparece aqui mais confrontado à castração, esses atos agressivos tendem a estar mais referidos à estrutura neurótica e à irrupção da violência, que decorre dos embaraços narcísicos do sujeito e de sua vontade de gozo.

 


Referências
MILLER, J.-A. “Jacques Lacan: observações sobre o seu conceito de passagem ao ato”, Opção Lacaniana on-line, ano 5, n.13, mar. 2014. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero13/index.html. Acesso em: abril/2014.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
FREUD, S. (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.18, p. 185-212)
CARVALHO, F. F. “O caso Daví”, Curinga, Belo Horizonte, n.14, p.116-123, abr. 2000.
i Este texto corresponde, essencialmente, à intervenção no Núcleo de Psicose do IPSM-MG, em abril de 2014. Em grande parte, retoma as elaborações publicadas com o título de “Psicose e passagem ao ato” na Revista Abrecampos, n.2, publicação do Instituto Raul Soares, 2000, do qual é uma versão modificada.

Frederico Feu
Frederico Zeymer Feu de Carvalho – Psicanalista, membro EBP/AMP. E-mail: fredericofeu@uol.com.br



O Utilitarismo Da Pena E O Real Da Pulsão

MÁRCIA MEZÊNCIO

Concluímos hoje nosso percurso pelo texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, orientado pela questão de investigação proposta pela Seção Clínica: o que de real encontramos em nossa prática na interface da Psicanálise com o Direito? Esse real encontrou, ao longo do semestre, algumas nomeações — crime, violência, guerra — manifestações que respondem, por outro lado, ao irredutível da pulsão que seria, finalmente, o real em jogo. O Direito, um produto da cultura, seria ele também uma resposta ao que não tem governo, nem nunca terá… Antecipando uma questão que trabalharemos no próximo semestre, como o Direito pode servir à invenção do sujeito para tratar seu embaraço com o real?

Iniciaremos, talvez, o percurso anunciado para o futuro, levantando algumas questões sobre o utilitarismo da pena. Cabe-me apresentar um comentário sobre a crítica de Lacan ao utilitarismo articulada às questões da função da punição e sua relação ao real da pulsão.

Um trecho que abre a seção IV desse texto de Lacan condensa o argumento que ele desenvolve ao longo do artigo. Eis o trecho:

Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E além do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação científica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penalogia (LACAN, 1950/1998, p.139).

Articulando essas considerações à minha prática no Liberdade Assistida, tomarei, mais uma vez, a afirmação que pode ser lida reiteradas vezes nos Termos de Audiência encaminhados pelo Juízo aos programas de execução de medidas, e que ressoa, a meu ver, com essa advertência de Lacan relativa ao utilitarismo e também à má consciência social: “a medida socioeducativa tem o caráter de pena, mas não a finalidade de retribuição, seu objetivo é de ressocialização”. Essa medida que é, pois, uma sanção e só se aplica em resposta ao ato delituoso cometido pelo adolescente considera a “condição peculiar de desenvolvimento” do adolescente e trata a ruptura do laço social ocasionada pelo ato infracional através da “socioeducação” e da “inclusão social” e não da retribuição.

Parece-me, então, que a afirmação acima resume uma série de ordenamentos, normativas e seus fundamentos políticos e filosóficos, senão ideológicos, e aqui poderá ser um ponto de partida para uma leitura exploratória de alguns artigos sobre a evolução do Direito Penal e sobre o utilitarismo da pena a que Lacan se refere no trecho acima. Fica a advertência de que não farei uma discussão sistemática sobre o tema, mas o destaque de alguns pontos que podem ser relevantes para nossa discussão.

Podemos tomar igualmente o diploma legal que normatiza a execução das medidas, conhecido como Lei do SINASE. Em seu artigo primeiro, a definição dos objetivos da medida socioeducativa identifica o cumprimento da medida à promoção social, vinculando-o à execução do Plano Individual de Atendimento, acentuando o seu caráter assistencial. Apesar de apontar também como objetivo a desaprovação da conduta, esta parece ocupar um lugar acessório para alguns operadores.

Inicialmente, gostaria de destacar do texto de Lacan a crítica ao humanismo e ao humanitarismo, como essa solução utilitária. Ao afirmar que a função expiatória do castigo é reduzida a seu fim correcional, que pode variar, abre para nós a questão sobre a finalidade da pena e para a disjunção entre a função do castigo para a Psicanálise e para o Direito. Por fim, aponta a concepção sanitária da penalogia, o recurso ao saber científico da psiquiatria, servindo igualmente a esse fim utilitário da prevenção.

E o que é o utilitarismo? O utilitarismo é uma teoria ética, que se baseia no princípio da utilidade. A definição clássica desse princípio é: o prazer e a ausência da dor são, de fato, desejados por todos os seres humanos, e cada pessoa busca seu próprio prazer (A semelhança desse princípio com o princípio de prazer freudiano é notável, tendo sido assinalada por alguns autores), Jeremy Bentham, James Mill e John Stuart Mill (de quem Freud fez algumas traduções) sendo os principais autores dessa versão clássica, filosófica, do utilitarismo. Para uma visão utilitarista do Direito Penal, um comportamento deve ser proibido se for indesejado pela sociedade, sendo sua lesividade um elemento do cálculo, mas não o mais relevante. A avaliação do resultado produzido pelo comportamento se dá por sua utilidade (MARTINELLI, 2014).

Em relação ao humanismo, apontado por Lacan, o próprio Código Penal clássico surge de uma visão humanista, tributária do iluminismo. Também a questão da utilidade já está presente em Cesare Beccaria, autor de referência para a localização do surgimento dessa versão chamada clássica do Direito Penal. Segundo os editores no Brasil de sua obra Dos delitos e das penas, Beccaria “condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social, declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos”, bem como o caráter retributivo e preventivo da pena.

Em relação à proporcionalidade das penas, um detalhe que me pareceu curioso é que não se trata apenas de avaliar a gravidade ou lesividade do ato, mas igualmente sua frequência, isto é, se um comportamento não é comum, ele não precisa ser inibido tanto quanto aquele que, menos grave, perturba a organização social por ser habitual. Esse o caráter preventivo, exemplar da pena. A utilidade da pena também, nesse sentido, depende da certeza da punição. Segundo esse ponto de vista, não é o tamanho da pena, mas a certeza de não impunidade que seria um fator mais poderoso de inibição do crime.

Destaco de um artigo de Savino Filho (2014), “Evolução do Direito Penal – Comentários”, a afirmação de que as primeiras manifestações do Direito se iniciaram com os primeiros agrupamentos humanos, em que a necessidade da ideia de punição nasceu do próprio convívio comunitário, em defesa do sentimento natural e sobrevivência contra atos injustos. Formulação que corrobora o argumento de Lacan no texto da criminologia, ao dizer que não existe sociedade em que não se estabeleça a relação crime-castigo através de uma lei positiva.

O autor afirma ainda que a formação do Direito Penal se deu em ciclos em que os castigos evoluíram. Ele lista: perda da paz, vingança privada, composição pecuniária, castigo corporal e pena pública, que eram regulados e desenvolvidos através de leis de usos e costumes, das legislações do Oriente, da Grécia, do Direito Romano, do Germânico, do Canônico, do Penal comum.

Seu artigo descreve as Escolas Clássica (Beccaria), Positiva (Lombroso), Eclética e destaca a Escola Nova de Defesa Social, que surge no pós-guerra. Essa nova Defesa Social reconhecia a luta contra a criminalidade como sendo uma das mais importantes tarefas da humanidade, tarefa que exigiria os meios adequados para esse combate. Esses meios adequados, que foram propostos como um programa mínimo que excluísse a ideia de pena ou retribuição, deveriam buscar a desjuridização e ter um caráter não repressivo.

O autor ainda assinala uma aproximação do Direito Penal com o Direito do Menor, a partir dessa escola nova de Defesa Social, com ênfase nas medidas de tratamento com vistas à reeducação e à reinserção social.

Ele destaca as teorias finalistas: o fim do Direito Penal é a proteção social e o controle. Cita Luigi Ferrajoli e articula garantismo penal com intervenção mínima. Esse ponto articula direito do cidadão e limite da intervenção do estado. Ressoa ao que Lacan aponta sobre a crise de legitimidade do exercício da punição pelas classes dominantes. Localiza-se aí uma crise do Direito Penal.

Ao percorrer rapidamente essa história do Direito Penal, podemos afirmar que se trata de mais uma crise, ou propor que a condição do Direito Penal seria de crise permanente?

Na atualidade, testemunhamos a existência de uma tendência internacional de humanização das penas, pelo menos em tese, atendendo às regras mínimas da ONU para as prisões, que datam de 1955, também no contexto do pós-guerra e da declaração dos direitos humanos, já apontados aqui como o pano de fundo da comunicação de Lacan sobre criminologia.

No Brasil de hoje, por um lado, Maierovitch (2014) afirma que a pena tem a finalidade ética de emenda, ressocialização e reinserção social, além de sua natureza retributiva e aflitiva. Por outro, Juarez Tavares (2014), entre tantos outros, critica o projeto de mudança do Código Penal em discussão no Congresso Nacional, por considerá-lo de caráter retórico e usar de apelo emotivo para justificar o endurecimento das penas. Afirma que o projeto está focado na punição, na criminalização dos movimentos sociais e que desconhece a falha do Estado em não promover a ressocialização do preso.

Enquanto isso, nos complexos penitenciários, funciona uma ordem feroz, um rigor nos castigos determinados pelos próprios presos, torturas, um real que nos espanta e revolta. Que coloca em questão não somente a dita falência do sistema, mas que nos permite relançar a pergunta sobre a função expiatória do castigo, para o sujeito e para o tecido social. Também, paradoxalmente, assistimos à chamada “judicialização” de todos os tipos de laços sociais e de todos os campos da existência. Exemplos não nos faltariam, seja de nossa prática profissional, seja de nosso cotidiano.

Perguntamo-nos sobre a incidência dessa pena privada da função de castigo, dessa demissão da autoridade de sua função de julgar e castigar, dessa alegada “desjuridização”, sobre o real da pulsão que se presentifica no crime ou no ato infracional.

Pode-se dizer que, para a discussão sobre nossa prática, em particular no sistema socioeducativo, devemos nos perguntar que contribuição a psicanálise lacaniana pode oferecer para possibilitar ao sujeito os instrumentos para saber fazer com o real em relação ao qual ele se encontra desarmado.

Dos trabalhos apresentados em nossos encontros do semestre, recolhemos alguns pontos de referência para abordar isso que escapa à regulação, mas que pode recorrer a um discurso como o do Direito.

Hélio Miranda pergunta: como produzir uma outra dimensão da verdade frente à demanda do judiciário de constatar a verdade dos fatos? E apontou a possibilidade de introduzir uma experiência da verdade que considere o sujeito e que, pela abertura da enunciação e manejo da transferência, faça vacilar o imaginário (abuso da criança pelo pai) e possa tocar a experiência do real (o real traumático da própria experiência infantil da mãe) e relançar o campo do desejo.

Fernando Casula apresentou-nos os paradoxos da inimputabilidade e suas consequências para o sujeito “fora da lei” que é o psicótico. Fora da lei também é o real da pulsão, sobre a qual o sujeito é, no entanto, responsável. As questões que Fernando nos apresenta concernem à função da ficção jurídica como um tratamento para esse real, tratamento a ser produzido via consentimento à punição. Nessa direção, opõe o utilitarismo da pena à responsabilização. A proposta de uma pena sob medida, podemos chamá-la de “utilitarista”, ao modo da psicanálise? Como um uso da ficção jurídica para inscrever o sujeito?

Kátia Mariás, ao tratar do crime e da violência, convidou-nos, com Freud e Lacan comentados por Maria José, a pensar a violência na perspectiva do excesso pulsional. Aquilo que em Freud é nomeado como pulsão de morte, mais além do princípio do prazer, e em Lacan, como o real do gozo. Excedente pulsional não regulado que, quando atuado, é a violência. Então, o ato tem uma causa: a presença do real do gozo. Lembrou-nos, ainda, que, para Freud, o crime edipiano era a forma privilegiada de dar tratamento à violência pulsional. O ato criminoso se constitui uma defesa contra a angústia que sinaliza a presença do objeto. O ato é uma espécie de resposta, de tratamento pela desaparição do sujeito no ato. Culpar-se por um crime, seja ele cometido ou desejado, para Freud, seria uma maneira de se estabelecer dentro da lei do pai. Na concepção lacaniana, o assentimento ao castigo é o que garantiria a possibilidade de responsabilização. Nesse sentido, a lei e a pena poderiam ser “úteis” ao sujeito.

Ludmilla Féres Faria, ao apresentar-nos o supereu, demonstra o avesso do princípio utilitarista. Aponta que o real da pulsão que escapa a qualquer artifício pode ser entrevisto na referência ao supereu, entendido como a instância que impede o equilíbrio ao encontrar no sofrimento a própria satisfação. Nesse sentido o supereu pode ser traduzido como a divisão do sujeito, dado que mostra que o sujeito não quer seu próprio bem, que ele trabalha contra si próprio.

Graciela Bessa segue essa trilha, lembrando-nos de que a hipótese do supereu sustenta que o que impede que a agressividade se dirija aos outros é a própria pulsão de morte, que, através do supereu, exerce sua ferocidade contra o sujeito. Uma vez que essa pulsão de destruição, ou de morte, é estrutural e que, enquanto pulsão, engendra uma busca de satisfação que não cessa, como tratá-la, temperá-la, nos termos que Graciela nos apresenta? Em seu texto, ela tece considerações sobre o mal-estar na cultura, apontando que, para Freud, é o mal-estar do sujeito, que ela nomeia mal-estar na identificação, que é o fundamento do mal-estar na cultura.

Em nosso último encontro, Maria José e Marina Otoni nos apresentaram alguns dos pós-freudianos que exploraram, de alguma forma, o campo da criminologia, relacionando suas descobertas e proposições à concepção freudiana, enunciada em 1906, em “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”. A questão pulsional é considerada por esses autores, segundo uma concepção desenvolvimentista da libido, o delinquente ou o criminoso sofreriam de uma fixação libidinal e permaneceriam em uma posição infantil. Para alguns desses autores, a questão do tratamento do criminoso envolve a educação ou uma reeducação (Seria possível pensar em uma “educação” das pulsões, sendo essa a contribuição da psicanálise à justiça, para esses autores?). Sobre a punição, esta não se coloca como uma condição para a responsabilidade, pois têm maior peso as ideias de prevenção e de cura.

Uma palavra sobre o real da pulsão. O que resiste ao simbólico é a pulsão de morte. Não se desenvolverá aqui esse tema, que já foi tratado nas intervenções ao longo do semestre, retomadas acima. Encontramo-nos em um momento da história humana, que pode ser escrito através do matema a>I, em que o programa civilizatório não privilegia a interdição ao gozo. Pelo contrário, o que se coloca é um imperativo de gozar e uma oferta insidiosa de objetos, um excesso sem regras. A esse propósito, cito o verbete “Excesso” do volume Scilicet “Um real para o século XXI”.

A crise atual da civilização não é, no entanto, um processo casual, mas, antes, um programa relacionado com a produção de um novo procedimento normativo posto na base de uma nova (in)civilização. […].

Esta é, portanto, nossa tese, a civilização do excesso (de gozo) é um discurso, um novo saber/poder que se exercita sobre as vidas através da injunção de gozo. […] É um poder que se exerce sem metáfora, sem insígnias, sem retórica e, em alguns aspectos, sem sentido (RAMAIOLI, 2014, p.139-140).

Miller (2009) chega a apontar que, se existe culpa na contemporaneidade, seria uma culpa de não gozar. Se a pulsão não pode ser educada, ela pode ser tratada pelos ordenamentos sociais e jurídicos. É também disso que Lacan trata nesse artigo. É, então, nesse sentido, que, no que se refere à psicanálise de orientação lacaniana, discutimos as novas ficções jurídicas que poderiam ser criadas para dar contorno, fazer borda a esse real.

Gostaria de esclarecer que tomei alguma liberdade para abordar a questão da utilidade ao não me deter em uma exploração circunscrita à referência ao utilitarismo, seja na Filosofia ou no Direito, mas tenha me permitido inverter a questão da utilidade, referindo-a ao pragmatismo proposto por Miller (2008) e que justificaria a ação lacaniana na cidade e nas instituições. Assim, também Miller aponta em que a Psicanálise poderia ser útil ao Direito, e, entre outras considerações, afirma que a Psicanálise permite ao Direito nuançar a crença na verdade, ao considerar a distinção entre o verdadeiro e o real. Como, para abordarmos o real, precisamos recorrer aos semblantes, inventar, o Direito, ao reconhecer-se como ficção, também poderia prestar-se, ser útil, ao tratamento desse real.

(1) Texto proposto para discussão no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 04/06/2014, no encerramento das atividades do semestre.

 


 

Referências
FOUCAULT, M. “Conferência IV”. In: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999. p.79-102.
LACAN, J. (1950). “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.127-151.
MAIEROVITCH (CARTA CAPITAL, 12/02/2014). “As prisões e os microtraficantes”. p.39.
MARTINELLI, J. P. O. “Uma leitura utilitarista do Direito Penal Mínimo”. Disponível em: www.academia.edu/5799781/uma_leitura_utilitarista_do_direito_penal_minimo. Acesso em: maio 2014.
MILLER, J.-A. “Rumo ao PIPOL 4”, Correio, São Paulo, n.60, p.7-14, 2008.
MILLER, J.-A. “Nada é mais humano que o crime”. In: Almanaque on-line n.4, jan-jun/2009. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque4.htm. Acesso em: maio 2014.
RAMAIOLI, I. “Excesso”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. (Orgs.). Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p.139-141.
RASSI, P. V. de G. S. Direito Penal Mínimo, Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano XI, n.50, fev 2008. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4498. Acesso em: maio 2014.
SAVINO FILHO, C. A. “Evolução do Direito Penal – Comentários”, Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: www.smithedantas.com.br/texto/ev_dir_penal.pdf. Acesso em: maio 2014.
TAVARES, J. (CARTA CAPITAL, 02/04/2014). “Retrocesso, não”. p.58.

Márcia Mezêncio
Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos), Psicanalista, Membro da EBP/AMP. E-mail: marcia.mezencio@terra.com.br.



Trauma E Devastação: A Relação Mãe-Filha

ANDREA, MARGARET, MARIA DAS GRAÇAS SENA

 

Partimos da pergunta se a devastação poderia ser considerada traumática e, por meio, tanto da investigação clínica, como dos textos de Freud e Lacan, formulamos uma hipótese de trabalho para ser aqui discutida em nosso Núcleo de Pesquisa, qual seja: é o encontro com a falta de significante que definiria A Mulher ou, em outros termos, a descoberta de que A Mulher não existe, cujo matema é também o S(A/), que seria traumático para todo sujeito, especialmente para o sujeito feminino? A devastação decorre da inexistência desse significante d’A mulher e pode tomar a forma de um gozo sem limites.

O termo devastação, em francês, ravage, conserva duas direções de sentido. Ou está associado à ideia de ruína, destruição, ou a de um corpo arrebatado na vertente de um êxtase, de uma felicidade suprema, que é lançado fora do tempo e do espaço. No dicionário, seu sentido remete a uma destruição sem limites, a algo avassalador. Devastar é arruinar, tornar deserto; mas também pode indicar arrebatamento, deslumbramento, encantamento, para os quais o termo francês mais usado é ravissement.

O Que É Devastação No Sentido Da Psicanálise?

Graciela Bessa, em seu livro Feminino: um conjunto aberto ao infinito (2012), afirma que encontramos, na teoria lacaniana, três momentos em que a devastação aparece ligada à sexualidade feminina. Em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992) ela surge ligada ao desejo da mãe e, independentemente de ser menino ou menina, o desejo da mãe sempre causa estragos (podendo a criança estar submetida ao pior desse desejo). Em “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retorna ao tema da devastação, como veremos a seguir, e em O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007), ao fazer referência à devastação, no campo amoroso, Lacan afirma que um homem pode ser pior que uma aflição, pode ser uma devastação para uma mulher.i

Num sentido análogo à devastação mãe-filha, Freud (1931-1933/1976) já havia identificado essa mesma questão, mais no final de sua obra, nomeando-a sob outros termos: catástrofe, estrago.

Vejamos como essa teorização sobre a devastação elucida o tema do trauma.

A citação extraída do Seminário 17 é a que, inicialmente, nos colocou a trabalho:

O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a bocarra. O desejo da mãe é isso (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

E Lacan prossegue afirmando que, no entanto, há algo de tranquilizador nessa história. “Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha” (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

Esta citação torna-se mais clara se recorrermos a Lacan quando ele aborda o complexo de Édipo, a partir da fórmula da metáfora paterna, em que fica evidente a presença da mãe na questão da feminilidade da mulher.

A partir da combinatória presença/ausência da mãe é que se instala um x no campo da criança, independentemente de ser menino ou menina, surgindo uma pergunta sobre o que satisfaz essa mãe para além dela. Lacan afirma sobre o que mais importa aos destinos da criança, que “não é um mais ou um menos de real que tenha ou não tenha sido dado ao sujeito, mas é aquilo pelo qual o sujeito almejou e identificou o desejo do Outro que é o desejo da mãe” (LACAN, 1958/1998, p.283).

Se pensarmos que essa fórmula refere-se à constituição de um sujeito como desejante, algo deve suceder para que esse desejo, obsceno e voraz, impossível de se suportar como tal, se articule ao significante. Essa operação só é possível se operar aí o significante do Nome-do-Pai.

Assim, teremos duas vertentes do desejo da mãe: aquele que é articulado à castração materna e que gera angústia (che vuoi?) e aquele que, graças à metáfora, substitui esse enigma opaco pelo Nome-do-Pai, gerando um efeito de significação.

É assim, então, que podemos falar do falo como significante do gozo (fálico), já que ambos (falo e gozo) se encontram coordenados pelo Nome-do-Pai. Miller (1994), em “Clinica del superyo”, localiza o Nome-do-Pai com uma função coordenada ao desejo, e ao supereu como função coordenada ao gozo. Não se trata aqui do supereu freudiano, herdeiro do complexo de Édipo, mas do supereu lacaniano, aquele que ordena gozar. Supereu materno, cuja lei insensata está muito mais ligada ao desejo da mãe que ao pai, ou seja, “antes que o desejo seja metaforizado e apreendido pelo Nome-do-Pai”.

Acreditamos que é aqui, precisamente, o ponto em que podemos localizar a devastação: não como um conceito, e sim como efeito da incidência traumatizante desse gozo puro, sem medida, não limitado pelo falo. Gozo que está sempre presente e que o sintoma não consegue metaforizar.

A Devastação Na Menina

No texto “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retoma o termo devastação para afirmar que a menina parece esperar algo da mãe que não se situa inteiramente sob o signo da castração, ou seja, que não se situa sob o significante do falo. Segundo Lacan:

Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai — o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (LACAN, 1972/2003, p.465).

O texto “O aturdito” (1972/2003) é contemporâneo às elaborações de Lacan sobre as fórmulas da sexuação e sobre o gozo feminino. Ali, onde se poderia encontrar a referência de um homem devastador para uma mulher, o que se descobre é a referência ao Édipo freudiano. Ao mesmo tempo em que Freud considera que “a mulher, no Édipo, se move como peixe n’água”, isto é, em seu ambiente natural, Lacan afirma que isso “contrasta dolorosamente” com a referência de que, para “a maioria das mulheres, a relação com a mãe é devastadora”. É da relação com a mãe como mulher que a filha espera encontrar algo com mais “substância”, que vai para além do falo, ou seja, a sexualidade feminina implica necessariamente diferenciar uma mãe da mulher.

Vimos, anteriormente, que ter de enfrentar o enigma do desejo e o mistério do gozo da mãe gera muita angústia na criança, sobretudo ao se confrontar com a especificidade da anatomia feminina. Embora não haja propriamente falta no corpo da mulher, a particularidade de sua anatomia faz com que, no inconsciente da menina e do menino, a anatomia feminina inscreva-se no registro de uma falta. Não é tanto a questão anatômica, mas como ela está subjetivada como falta da mãe, no tocante ao desejo e ao gozo.

Aprendemos com a psicanálise que, quando falamos menino-menina, não queremos dizer, necessariamente, que estamos nos referindo às posições masculina e feminina, pois, na realidade, essas posições estão ligadas ao significante, não tendo nada a ver com a identidade sexual anatômica.

Se, para Freud, a anatomia é o destino, para Lacan a anatomia é um efeito do discurso. Mesmo tendo claro que a anatomia não é o destino, isso não deixa de ter consequências sobre o sujeito. Vejamos como um e outro responderam a essas questões.

Freud considerou que, nos meninos, embora o pênis seja apenas um suporte imaginário para o falo, ele é bastante consistente para o homem ter esse representante de seu sexo no inconsciente, e, desse modo, poder subjetivar seu sexo com “eu tenho”. Isso é o que possibilita ao menino desligar-se, mesmo que não completamente, desse gozo materno.

E como pensar então na modalidade dessa relação ao desejo da mãe quando o sujeito em questão é uma menina?

Pelas mesmas razões anatômicas, porém, inversamente, isto é, de “não ter” o pênis, possibilitando que a saída histérica seja a mais frequente na mulher. “Ter ou não ter” foi o modo como Freud tentou responder ao enigma da sexualidade feminina. Porém, Lacan, ao inventar as fórmulas da sexuação, avança sobre o ponto deixado em aberto por Freud, esclarecendo sobre as raízes lógicas do desmedido que uma mulher espera da sua mãe.

Em seu O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973/1985), Lacan apresenta suas fórmulas da sexuação e explicita a diferença sexual a partir da lógica, fazendo do falo uma função e mostrando como homens e mulheres cumprem ou não a função fálica. “Quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro” (LACAN, 1972-1973/1985, p.85). Os sujeitos que se posicionam do lado dos homens estão confrontados com uma exceção, que, por sua vez, possibilita um conjunto fechado. Isso quer dizer que todos aqueles que ali se encontram estão inscritos na lógica fálica.

Do lado das mulheres, isso não é possível. Elas não estão confrontadas a uma exceção e sim a uma inexistência, e, consequentemente, do lado feminino, não se pode construir o conjunto de todas as mulheres. A ausência de exceção constitui a mulher fora do universal, em que cada uma é uma. Portanto, o feminino é elucidado pelo viés de um gozo que tem relação com o ilimitado, isto é, o gozo do corpo não se encontra limitado pelo falo. A devastação pode, a partir dessa leitura de Lacan com respeito ao gozo feminino, ser lida como uma dificuldade estrutural própria à inexistência do todo-feminino, ligado ao S(A/).

Segundo Recalde (2012), partimos da histeria para entendermos o caminho que a menina percorre ao “tornar-se mulher”. Segundo a autora, a histérica conta com dois caminhos: ou bem aparece como a que “tem”, ou bem ostenta o que lhe falta e, por isso, “é”. Já a pergunta sobre a feminilidade encontra, com Lacan, uma saída pela via significante que lhe permite abordar o não-todo.

Quando se tem a referência ao falo, podemos localizar aí a saída histérica que, como qualquer homem, está submetida sob a égide do falo (lado esquerdo das fórmulas da sexuação). Mas também poderá se desdobrar, já que tem por um lado relação com o falo, mas por outro lado, está ligada a esse gozo que escapa ao Nome-do-Pai.

Desdobramento que lhe permite, assim: articular-se, por um lado, ao falo, mas também se conectar a essa dimensão mais além do falo, onde poderíamos localizar o lado feminino.

Na clínica, deparamo-nos com os diferentes modos de o sujeito feminino se posicionar em relação à falta: algumas se sacrificam ostentado a falta, outras se localizam como excepcionais, outras se comportam como se tivessem o falo, enfim, diferentes modalidades de situar-se frente a esse gozo mais além do falo, cujo efeito pode ser devastador

Portanto, o termo devastação, empregado por Lacan para designar a relação entre mãe e filha, refere-se também ao que está para além da reivindicação fálica dirigida à mãe, ou seja, ao encontro da menina com o Outro materno, enquanto Outro do gozo. A impossibilidade de dar um contorno ao excesso é a devastação.

Devastação, Trauma E Lalíngua

Marie-Hélène Brousse (2004) afirma que, nos casos clínicos de devastação que lhe servem como referência, a função paterna demonstra não operar nenhum apaziguamento, portanto, o pai se manifesta a serviço do capricho materno e não como agente de sua privação. O traço que caracteriza o pai é sempre a impotência.

A hipótese de Marie-Hélène Brousse (2004) é a de especificar o tipo de emergência singular da linguagem no sujeito, ou seja, o modo como a mãe inscreveu a criança num universo simbólico e discursivo, em que cada história de vida é um desdobramento. Para Brousse, a devastação se situa no campo da relação entre o sujeito e a mãe, o Outro da linguagem e a relação com a fala.

Uma das marcas dessa “aventura primordial do que se passou em torno do desejo infantil” é a marca deixada pelo fato de a mãe ser a detentora dos poderes da palavra. O primeiro dito da vida da criança é o da mãe, e não o da criança.

A mãe que decreta, legifera e sentencia sobre tudo o que tem a ver com a existência da criança e é assim que as palavras da mãe adquirem um sentido de profundas consequências para o seu destino, […]. Na memória reencontramos a voz, às vezes devastadora e persecutória das palavras, dos imperativos e dos comentários inesquecíveis desse Outro materno primordial que se apresentara investido de uma obscura autoridade (ZALCBERG, 2007, p.33).

Essa emergência da linguagem pode se dar, segundo Marie-Hélène Brousse, sob a forma do insulto, sob a forma de recusa e, ainda, sob a forma do imperativo do silêncio. O ponto comum dessas emergências é a conexão dessas experiências de fala com o sexual como traumático, isto é, a experiência pulsional do sujeito, ainda que tenham destinos estruturais diferentes e constituírem sintomas bem distintos.

Segundo Brousse:

Em todas essas ocorrências, a fala do Outro materno está associada à descoberta de uma experiência de gozo. Mas — segunda característica — essa emergência que tem como pano de fundo um gozo sexual traumático, ou seja, de inscrição do corpo por um significante se realiza no momento em que surge a diferença dos sexos, no seio da função fálica, sob a forma de um enigma. Enfim, essa emergência consagra a crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe escapando à falta da castração e que apresenta ao sujeito uma alternativa mortal: ou o dejeto ou a reintegração pela genitora do seu produto (BROUSSE, 2004, p.211).

Foi dito anteriormente que o desejo da mãe não é totalmente recoberto pela significação fálica, através do Nome-do-Pai. Existe sempre um resto que escapa ao falo. A devastação pode então aparecer no ponto do gozo enigmático percebido na mãe pela menina, gozo esse desconhecido, feminino e não limitado pelo falo.

Desde Freud, é possível situar a mulher segundo duas vertentes: a primeira, que aponta a mulher como um ser portador da falta fálica, de um menos de gozar, derivado do complexo de castração, e a segunda vertente, que aponta para um excesso traduzido pelo desejo insaciável da mulher de possuir um pênis. Lacan, ao dizer que a mediação fálica não drena todo gozo de uma mulher, coloca-o na via do suplemento, do não-todo subordinado à logica do todo, do completo. O suplemento aponta para “um a mais”, sem que o todo esteja aí implicado.

Desse modo, a teoria sobre a devastação e a sexualidade feminina da qual ela decorre nos ensina que a sexualidade é traumática porque o discurso sempre falta para falar sobre o gozo. É a entrada na linguagem que é traumática porque o sujeito se depara com a falta de significante no Outro para dizer seu ser de gozo. O S(A/) é o próprio matema do trauma.

De acordo com Lacadée (2010), Lacan criou o neologismo “troumatisme” que serve para designar o verdadeiro valor do trauma psíquico, seja o encontro de um buraco na linguagem, de uma falta de saber no Outro sobre o gozo sexual do sujeito. O “troumatisme” é um outro nome do axioma lacaniano: “não há relação sexual”. O real faz uma ruptura no tecido simbólico da significação e uma ruptura imaginária, um lugar vazio de sentido. O traumatismo produz a desarticulação da cadeia significante, dos significantes S1 e S2.

A partir daí se podem conceber a força e a imensidão do que uma mulher espera da sua mãe. Trata-se de algo que a mãe não lhe pode dar, nem a existência enquanto mulher, nem o ser de mulher, tampouco a “substância feminina”. A mãe não lhe pode dar não porque ela não queira, mas porque se trata de algo da ordem do impossível, no sentido daquilo que não cessa de não se inscrever para a mulher. Considerando-se que a relação de devastação é uma suplência à relação sexual que não existe, sendo, assim, o sujeito é desapossado do seu lugar,

[…] esse lugar que não existe mas pode ser declinado como fala, e o sujeito é então reduzido ao “silêncio”; com corpo, e o sujeito não passa de um “corpo em excesso”, ou de uma carne desfalicizada que é um “buraco negro”; como errância, fenômeno de despersonalização, de autodesaparição (BROUSSE, 2004, p.215).

A devastação se faz presente em sua articulação com o desejo da mãe enquanto mulher e ao modo como o sujeito criança pode encarnar o objeto do gozo materno.

(1) Essa vertente da devastação não será explorada neste trabalho.

 


Referências
BESSA, G. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
BROUSSE, M.-H. “Uma dificuldade da análise das mulheres: a devastação com a mãe”, Latusa, Rio de Janeiro, n.9, p. 203-218, 2004.
FREUD, S. (1931). “Sexualidade feminina”. In: O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.257-279. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIX).
FREUD, S. (1933). “Feminilidade”. In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.139-165. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XXII).
LACADÉE, P. “L’enfant est le père de l’homme ou Le malentendu du traumatisme”. In: Le malentendu de l’enfant. Paris: Ed. Michèle, 2010. p.63-77.
LACAN, J. (1972). “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.448-497.
LACAN, J. (1957-1958). O Seminário 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Miller, J-A. “Clinica del superyo”. In: Reocorrido de Lacan. Buenos Aires: Manantial, 1994. p.143.
NAJLES, A. R. “Voz: com que objeto se fala?” In: Scilicet. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008. p.349-351.
RECALDE, M. “Madre, niña, estrago, uma salida possible”. In: GLAZE, A.; ACEVEDO, L. (Orgs.). No locas del-todo. Buenos Aires: Grama, 2012. p.83-89.
ZALCBERG, M. Amor paixão feminina. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

Andrea, Margaret, Maria Das Graças Sena
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br Maria das Graças Sena – Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise. e-mail: dadesena@yahoo.com



Incidências Do Trauma: O Que De Real Encontramos Em Nossa Clínica Com Crianças?

CRISTIANA PITTELA DE MATOS

Introdução: Um Real

Nosso século XXI, marcado pela dissolução dos semblantes, consequência do binarismo ciência-capitalismo, levou Jacques Alain-Miller, em Un réel pour le XXIe siècle, a afirmar o quanto o real insiste em se manifestar de um modo caótico e aleatório, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia. Em seu curso O ultimíssimo Lacan, Miller definirá o real enfaticamente como “um novo tremor!” (MILLER, 2013 p.208).

Somos surpreendidos e vivemos, uns mais, outros menos, inquietos e sobressaltados: a dimensão de contingência e a desordem do real prevalecem.

“O verdadeiro real”, nos disse Lacan, “implica uma ausência de lei. O real não tem ordem: … é desprovido de sentido” (LACAN, 1975. p.131, 133).

Vários são os discursos que tentam apagar, domesticar, calcular, controlar, educar e até mesmo prevenir o real, com protocolos, medidas de vigilância e segurança; mas o real insiste, retorna, escapa às tentativas de enquadramento. A psicanálise, por sua vez, possibilita um outro modo de apreensão do real e a chance de operarmos com ele.

Miller convida-nos, enquanto psicanalistas, a investigarmos, no sujeito do século XXI, “a dimensão da defesa contra o real sem lei e o fora do sentido” concernindo um real tal como o inconsciente de cada um permite apreender. Propõe-nos, assim, que a defesa possa ser perturbada (MILLER, 1998), e mesmo desmontada (MILLER, 2013), para que se atinja a singularidade e a diferença de cada sujeito — pedaço de real que não muda, incurável — e que um novo enlaçamento a partir desse ponto possa se produzir.

Podemos nos perguntar: como perturbar (deranger) a defesa?, questão que Miller (2013) também nos apresenta, no “Prefácio” do livro de Hélène Bonaud: L’inconscient de l’enfant. Verificamos, em muitos casos, em nossa clínica com crianças, que intervimos antes mesmo que a defesa tenha se cristalizado; assim, o encontro com um analista possibilita ao sujeito a construção de um sintoma como resposta ao trauma, à perturbação do real.

Nossa pesquisa, neste ano de 2014, se inicia a partir do trauma, conceito proposto tanto pela Seção Clínica do IPSM-MG — Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? — quanto pela Nova Rede CEREDA — O traumatismo e o Real na Clínica: o que as crianças inventam?.

Podemos, então, nos perguntar: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? Como o real se apresenta para cada criança?; ou, ainda, como cada criança — cada sujeito — concerne um real? É afetado por um real? Responde a um real?

Nossa investigação e work in progress contam com o argumento às 43a Jornadas da École de La Cause Freudienne — Les traumatismes dans la cure analytique: bonnes et mauvaises rencontres avec le réel — em que Christiane Alberti e Marie Helene Brousse relembram o conhecido exemplo da Interpretação dos sonhos:

Um pai perdera um filho. Perda cruel, traumatismo no sentido corrente. Cansado, ele confiou a um senhor a tarefa de velar o corpo do filho amado e foi dormir em um quarto contíguo, deixando a porta entreaberta. Um barulho o desperta: o fogo começa a queimar o corpo amado. É a realidade. Como responde o inconsciente? – elas perguntam. Com um pesadelo, o filho aproxima-se e murmura: “Pai, não vês que estou queimando?”.

Onde está o trauma? – elas respondem: a impossível voz do morto; aí está o que verdadeiramente acorda o pai […]. Feridas que não se apagam de “perdas imajadas no ponto o mais cruel do objeto” […] o laço do trauma aos objetos deixa o sujeito sem bússola, em um mundo que perdeu o sentido. (ALBERTI; BROUSSE, 2013)

Nossa clínica toma, portanto, sua orientação desse real como impossível, ponto que faz traumatismo; vamos trabalhá-lo, neste primeiro semestre, tentando definir como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna; como a angústia é um sinal do real do trauma; investigaremos também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.

Nossa pesquisa visa também ao tratamento, às saídas e às invenções de cada criança frente a esse ponto opaco, e como o analista pode, com suas intervenções, tocá-lo para que propicie um novo arranjo, novas respostas e invenções.

Em suma, vamos tentar apreender o que de real encontramos em nossa clínica com crianças, a partir do inconsciente, passando pela barreira do recalque e da defesa que cada um constrói contra a ferida que o real constituiu quando se chega ao mundo, ou quando se está diante de acontecimentos traumáticos (GUÉGUEN, 2014).

O Trauma E O Troumatismo

O trauma é, desde sua origem grega — trôma — a experiência de uma ferida (LAURENT, 2013) que causa efração. Um choque súbito e violento que não permite a antecipação e produz um dano: a irrupção de um horror, o excesso de sensação e emoção, o silêncio de uma palavra jamais articulável. Algo impossível e insuportável acontece e desarranja o bom funcionamento do mundo, acarretando uma paralisação.

O trauma é assim um modelo paradigmático de um encontro que excede as palavras, as possibilidades discursivas, desvelando um real perturbador. Por mais que se fale dele, algo resta, uma marca indelével, sobre a qual se retorna colocando em jogo um impossível de simbolização.

Essa intensidade e a paradoxal exterioridade do trauma foram abordadas por Freud, segundo Laurent em “O trauma ao avesso” (2002), desde o “Projeto”, por suas metáforas energéticas, como o afluxo de excitação externa e, sobretudo, as excitações de origem interna, pulsional. Freud, em um primeiro momento, o concebe a partir de um acontecimento factual — uma sedução sexual — mas, em seguida, instaura a noção de fantasia inconsciente e realidade psíquica, pois ele encontra, no cerne de sua clínica, o trauma como um fato estrutural. Jacques-Alain Miller (2011) também aborda essa intensidade em seu curso “O Ser e o Um”, como a energeia, um buraco que bordeia a iteração do Um, tendo o efeito estranho de atração, de fascinação deletéria: um buraco negro.

Diante da generalização do termo trauma no campo da infância — agressão, estupro, sedução, violência, atos perversos, separação, morte, doença, acidentes, abuso, maus-tratos, exploração, crueldade, negligência, abandono, insulto, pesadelos — faz-se necessário situarmos esse conceito em nosso campo, pois, onde acreditamos ver o traumatismo — nos acontecimentos — ele sempre esconde um traumatismo real, aquele que é singular ao sujeito.

Frente a essa experiência que excede e esmaga o sujeito, como se perguntar sobre isso que o ultrapassa, sobre o que não chega a se representar? Sobretudo, ensina-nos Lacan, é nessa topologia que se encontra o sujeito: “o sujeito está aí, no lugar desta coisa obscura que chamamos como trauma, como prazer esquisito” (LACAN, 1966, p.4).

Esse é o ponto que nos interessa enquanto psicanalistas.

Um acontecimento só tem valor traumático para o sujeito por ser para ele um encontro contingente, singular. Ao possibilitarmos a implicação do sujeito em seu sofrimento, isso lhe restitui sua parte de responsabilidade, podendo abrir-lhe a via do desejo e a possibilidade de ele se reconciliar com seu gozo mais íntimo, alojando o trauma em um bom lugar. Nesse sentido, ali onde o sujeito foi solapado, ele pode advir e fazer algo com isso, à vitimização damos lugar ao sujeito e a um modo de satisfação. Como nos diz Sonia Chiriaco (2012), em Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse, a psicanálise se distingue imediatamente da vitimiologia, que faz do acontecimento o principal, e o sujeito, secundário, ou até mesmo ausente.

Lacan (1975) nomeou esse encontro como troumatisme, que implica a irrupção de um trop — um excesso, um gozo — e um furo, o fora do sentido. O que é traumático é esse choque material do significante com o corpo, que instaura, no parlêtre, a marca de um gozo inassimilável e uma perda irremediável.

Se o Outro da linguagem preexiste ao nascimento do sujeito, a criança nasce no mar da linguagem, ela, no entanto, é, primeiramente, objeto — causa de desejo ou dejeto do gozo dos pais — não tendo ao seu alcance o instrumento significante: a linguagem é, para ela, real, um real sem lei. Para essa incidência contingente do real da língua, de sua matéria sonora (moterialisme), Lacan inventará a expressão: lalíngua (LACAN, 1975, p.10). É com esse real de lalíngua que a criança se depara, encontro com o impossível, e que Lacan nomeou de inexistência da relação sexual. Um real, impossível de suportar, está, portanto, na raiz do trauma e concerne à singularidade de cada um: “…le Kern do ser, é este instante, é o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p.76).

Esse acontecimento fixa o gozo do Um e funda uma existência, anterior à sua entrada na linguagem — Outro — e em suas leis que dão ao sujeito condições para interpretar algo desse gozo. O inconsciente se estrutura para cifrar esse gozo insensato que escapa à significantização, experimentado nessa satisfação.

Esse real inassimilável, fora do sentido, é o gozo do corpo que se relaciona com o autoerotismo fundamental e tem relação com o ponto de inserção do significante no corpo, do significante trabalhando para a satisfação: “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, nos diz Lacan (1975/76, p.18). Nesse sentido, o traumatismo, para a psicanálise, tal como Lacan leu em Freud e nos ensina a tratá-lo, é uma marca irreparável no humano que escapa a toda programação e prevenção, revelando uma fixação pulsional. O encontro da língua com o corpo, nos dirá Miller, “mantém um desequilíbrio permanente, mantém no corpo e na psique um excesso de excitação que não se deixa reabsorver” (MILLER, 2003, p.378), retornando, re-iterando, nos sintomas, nos atos, na inibição, na angústia, nas ideias obsessivas, nos pesadelos.

E o que é complicado é que o real do encontro do significante no corpo torna o sujeito cúmplice da pulsão, é aí onde se situa nossa responsabilidade quanto ao gozo (ROCH, 2013).

O troumatismo inaugura o campo da fantasia que serve de tela ao real do trauma — uma defesa contra o real — e também do sinthoma como uma resposta ao trauma, enlaçando o não há da relação sexual — o real do furo no saber — com o há, isso que vai se repetir ao longo de nossa vida, a marca de um gozo, uma satisfação não toda e impossível de negativizar. Ou seja, a partir da contingência e do fora de sentido, há, no sinthoma, a tessitura de um nó singular do gozo do corpo com o significante determinando nossa vida, um savoir y faire com o real sem lei. A psicanálise, nos diz Miller (2014), existe para tentar que um trumain (l’être humain e trou) possa saber como comportar-se com o sinthome.

Em O avesso do trauma, Laurent (2002) propõe que abordemos o trauma em dois sentidos:

1º – Em um primeiro sentido, o traumatismo é um buraco real no interior do simbólico, ou seja, a partir do sistema simbólico, o sujeito encontra a presença de um real. A língua mortifica o gozo, mas há um resto impossível de ser simbolizado. É um ponto de real exterior no interior do simbólico.

2º – O segundo sentido que Laurent enfatiza do traumatismo é o simbólico no real, ou seja, um buraco do simbólico no real; trata-se, como vimos, da língua como real, o mal-entendido fundamental, o fora do sentido do vivente: lalíngua. Nesse sentido, a língua é causa. Segundo Laurent, depois de um trauma, é preciso causar um sujeito para que ele re-invente um Outro, em face da experiência no traumatismo da inexistência do Outro. Uma invenção causada pelo traumatismo.

Essas duas orientações são importantes em uma análise, pois uma análise se desenrola através do sentido que permite a subjetivação do trauma e consequente responsabilização do próprio sofrimento, assim como também toca o fora do sentido do gozo mais singular e opaco, levando Laurent a situar o trauma como um processo.

Vamos investigar esses dois sentidos, pois eles implicam lugares diferentes do analista, assim como sua escuta:

– No primeiro sentido, o analista, com sua escuta e interpretação, possibilita a restauração da trama de sentido, fazendo passar o real do gozo ao significante, uma escuta tomada na “ontologia do discurso do paciente” (MILLER, 2011), ou seja, refere-se à falta-a-ser e ao desejo.

Laurent (2002) ressalta ser uma vertente curativa, pois inscreve o trauma na particularidade inconsciente de um sujeito.

– No segundo sentido do trauma, o analista ocupa o lugar insensato — do objeto — e é traumático como a linguagem. A escuta visa à iteração, aos traços que marcam um modo de gozo e orienta em direção à existência, ao buraco, ao fora do sentido (BRIOLE, 2014). O analista, pelo equívoco e pelo corte, combate não só a demanda de sentido, mas pode tocar esse ponto real de causa e, assim, ajudar um sujeito a reencontrar a palavra, pois, diante da inexistência do Outro, é preciso inventar um modo de se arranjar com o próprio gozo.

Essas duas vertentes, podemos dizer, não são cronológicas, mas lógicas, e, em momentos específicos, podem estar presentes em uma análise: será preciso, então, que o analista meça, para cada sujeito, até onde ele pode apresentar os dois polos de sua ação (LAURENT, 2002).

Daí a importância — para a ação de um analista — de sua formação: do que ele faz com seu troumatismo.

 


Referências
ALBERTI, C.; BROUSSE, M.-H. “Argumento”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
BRIOLE, G. “Amarrações”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
CHIRIACO, Sonia. Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse. Paris: Navarin/Le Champ Freudien, 2012.
GUÉGUEN, G. “5 minutes à la radio”. Disponível em: www.congresamp2014.com. Consultado em: março/2014.
LACAN, J. (1975/1976) O seminário, livro 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1975) Conferência em Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (23), 1998. São Paulo: Edições Eolia.
LACAN, J. (1966) “Communication et discussions au symposium international du Johns Hopkings Center a Baltimore”. Disponível em: www.psicanaliseefilosofia.com.br. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “Trauma Blitz, Moment de concluire”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “O avesso do trauma”. In: Papéis de Psicanálise n .1, Belo Horizonte: IPSM-MG, abril/2004. p.21-28.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. O ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalitica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. O Ser e o Um. Seminário de orientação lacaniana, inédito.
MILLER, J.-A. “L’inconscient et le sinthome”. In: La Cause Freudienne n. 71, 2009.
ROCH, M.-H. “La Psychanalyse est traumatique”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.

 


Cristiana Pittela De Matos
Cristiana Pittella de Mattos, psicanalista, membro da EBP/AMP. E-mail: cristianapittella@yahoo.com.br



Almanaque On-Line Entrevista

COMISSÃO CIENTÍFICA DO XX EBCF

Esta edição n.14 do Almanaque on-line aborda o tema do XX EBCF, “Trauma nos corpos, violência nas cidades”, pelo viés da proposta de trabalho da Seção Clínica do Instituto para o ano de 2014, formulada como questão: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? Segundo Simone Souto, em argumento divulgado na Agenda EBP-MG e IPSM-MG do segundo semestre de 2014,

[…] em um primeiro momento, nossa investigação se dedicou a encontrar os meios através dos quais, em nossa prática, um real pode ser localizado. A partir daí, nos deparamos com uma nova questão: que respostas dar a um real que não se deixa tratar pelo sentido? Essa pergunta nos leva, agora, a abordar a invenção, ou seja, o que cada um inventa como resposta a partir do real. A invenção diz respeito, certamente, ao sujeito e ao que lhe é único, mas, também, não deixa de concernir o praticante e mesmo as instituições: o que temos feito para dar lugar às invenções do sujeito frente ao real? O que podemos recolher, da nossa experiência clínica e institucional, como um “saber fazer com o real”?

A partir desse argumento, solicitamos aos membros da Comissão Científica do XX EBCF que nos enviassem uma colaboração, um flash, um breve depoimento sobre o real que encontram em sua prática clínica, pesquisa teórica ou uma indicação de como esse real pode ser abordado – uma obra literária, um filme ou obra de arte – bem como sobre as invenções possíveis diante desse real.

Recebemos os depoimentos abaixo, pelos quais muito agradecemos aos seus autores.

CARLOS AUGUSTO NICÉAS: “Eu sou um deprimido”. Assim João se nomeou quando chegou dizendo-se um fracassado em tentar fugir da “desgraça” que aconteceu em sua vida amorosa. E trouxe a marca do seu traumatismo nas pontuações e nas palavras escolhidas para falar do seu sofrimento. Ele já atravessara quase um ano sob efeitos de antidepressivos receitados por um colega seu, melhor amigo desde a faculdade, e logo me confessou: “Eu me entupi de remédio, eu só queria evitar o pior”. João é ortopedista e, com termos próprios de seu saber particular, me diz por que decidiu vir falar a um analista: “Eu cansei meu amigo repetindo o que me aconteceu, foi bom contar com seu ombro para não morrer, mas não fez ‘calo’, a fratura continua exposta”. E prossegue: “Toda minha vida eu cuidei de traumatizados, agora eu preciso cuidar do que se quebrou dentro de mim”. Um abandono, o da mulher, ele o põe no lugar de causa do seu “traumatismo”, acontecimento que, em sua contingência, o encontrou “totalmente despreparado”. Na mesma entrevista, refere-se ao efeito do acontecimento assim:

Ela me pegou de surpresa, comunicou brutalmente que estava apaixonada por um colega de escritório, arquiteto como ela, com quem estava me traindo há um ano e com quem iria morar a partir daquela semana. Tudo isso numa enxurrada só, o casamento acabou assim, ela saiu assim da minha vida, e eu fiquei vários dias sem entender o que se passou, andando pela cidade como um “zumbi”, completamente siderado. Depois começaram os sintomas: depressão, insônia, dores no corpo todo. O que me mantém de pé é o antidepressivo, que eu já estou reduzindo desde que decidi vir me tratar aqui.

Assim, João, ortopedista de “acidentados do trabalho”, em um hospital público, decidiu “ver o que está quebrado e que ainda dói dentro de mim”, porque precisa estar “curado, para o caso de a vida me dar outras rasteiras”. A psicanálise não lhe é uma “matéria” muito conhecida, diz ele, mas do nome de Freud ele diz se lembrar:

Como eu sou um médico que se interessou por osso, essas coisas da alma fogem da minha cultura, mas minha primeira namorada era psicóloga, e, um dia, ela leu para mim um texto de Freud em que o psicanalista era comparado a um cirurgião da alma. Foi dela que me lembrei quando o amigo psiquiatra que me receitou o antidepressivo me sugeriu vir falar com um analista, procurar você, porque ele não estava vendo muita mudança em mim.

Nesse momento em que vir falar a um analista parecia já abrir um lugar diferente para João, um lugar não somente para “desabafar” com um amigo ou se “entupir” com medicamentos, acreditando assim e até agora lutar contra o real antes que ele se presentificasse, eu suspendi essa primeira entrevista e, antes de oferecer-lhe uma segunda, mantive aberta a porta da psicanálise, sublinhando simplesmente da escuta das palavras de sua lembrança: “Dela, mas também de Freud…”

Vir falar a um analista pode trazer já embutida, na demanda de psicoterapia, um esboço de mudança subjetiva. João, em uma de suas sessões preliminares imediatas à primeira, me diz: “No começo, eu me perguntava por que a vida me fez isso, mas, agora, eu desconfio de que não era também para ficar assim, tanto tempo vagando como um zumbi”. É, João me pareceu ter chegado começando a desfazer uma identificação ao significante “vítima”, ao qual ele se colou para se proteger do efeito traumático do abandono que sofreu do Outro. Não querendo somente responsabilizar o Outro para justificar seu sofrimento, eu já o escutava nesses primeiros tempos da transferência esboçando uma implicação de sujeito, mesmo que isso lhe fosse ainda opaco e enigmático.

MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática?: questão que orienta o trabalho da Sessão Clínica do IPSM-MG, rumo ao XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. As discussões no Núcleo de Psicanálise e Direito têm nos aproximado do eixo temático “Psicologia das massas, análise do eu… e a deriva das pulsões”.

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud afirma que a identificação é a forma mais antiga de laço libidinal. A identificação com o ideal permite a coesão da massa, ainda que ela, em momentos específicos, possa irromper em explosões de violência.

Na prática com os adolescentes e jovens, nas instituições educativas e socioeducativas, vemos como eles, mesmo que circulando lado a lado no mesmo espaço, não se agrupam, segundo a lógica freudiana da referência ao ideal do eu. Ao contrário, muitas vezes, permanecem na satisfação com os objetos, e são frequentes as manifestações de violência e agressividade entre eles e contra os responsáveis pelo trabalho nas instituições, impossibilitando ou dificultando o laço com o Outro proposto.

É possível considerar que a mudança no programa de satisfação de nossa civilização — da renúncia em prol de um ideal, para o imperativo de satisfação — teve como consequência um “mal-estar nas identificações” ou mesmo uma “patologia nas identificações”, que chega até nós por meio das irrupções de transgressão e violência. As contribuições da psicanálise de orientação lacaniana sobre as nomeações têm nos permitido aproximar e intervir em algumas dessas manifestações.

Nos casos que nos chegam, é comum a presença de designações ou apelidos relacionados à violência e transgressão. São modos de nomear distintos da operação do Nome-do-Pai, cujo poder metafórico pode substituir a satisfação direta, promovendo o laço com o Outro. Em nossa época, essa nomeação se encontra em declínio. Assim, encontramos, cada vez mais, designações em conexão direta com o gozo, que acabam por promovê-lo e incitá-lo, em uma manifestação da vertente superegoica do imperativo de gozo.

“Esse é B.O.”, “Ele é Jack”, “Sou 4:20”[1] são exemplos de designações que formam um curto-circuito, no qual os adolescentes são vistos e se mostram identificados ao resto da sociedade, sem possibilidade de vacilação, como em uma ordem de ferro. Nas instituições, a cada manifestação de hostilidade da parte dos adolescentes, nova tentativa de coerção e interdição, produzindo mais agressividade e violência.

A presença da psicanálise e sua oferta da palavra têm permitido uma vacilação nas designações que segregam e promovem o gozo, abrindo um espaço para acolher outras possibilidades de surgimento do sujeito. Dessa forma, é possível demonstrar como a psicanálise pode funcionar como uma ajuda contra as passagens ao ato e atuações, como nos indicou Lacan.

MARCELA ANTELO: Detalhar o real

Sacrilégio do “Noli tangere”, o close up é magnífica prova da penetração da civilização “na fábrica do real”. A literatura nos entregou os divinos detalhes, ensinou Miller lendo Nabokov. O artificio começou com a configuração exata do coque de Madame Bovary. “Detalhar quer dizer fracionar em pedaços” [2]. Para o cineasta Jean Epstein assim como para Miller é assunto de ética.

Um destino possível do detalhe é sua divinização, devemos livrar-nos dela, disse Jacques-Alain Miller em 1989, fazê-lo poderia constituir a dignidade da psicanálise.

O divino nos oferece o quê? Será que ter uma parte ao alcance nos faz supor um todo onde não existe? A ascensão do objeto ao zênite implica sua divinização. Qualquer objeto que se situe na vertical do observador será divinizado. Perturbar a divinização dos pedaços.

O zênite possui seu oposto, Nadir, que goza de muito menos imprensa. Pedaços no oposto do zênite. Perturbar a divinização pode servir-se da leitura do detalhe, já não da sua observação.

Epstein, no seu artigo “Magnificação”[3] afirma que um close-up extraído da cadeia, fora do contexto, é monstruoso e constitui a alma do cinema. Diviniza um sorriso, abrindo na tela como uma fruta madura ou indica o abismo da boca vazia de Old Boy. Inquietantemente estranho o close dá a ver o que vida diurna e suas grandes magnitudes dissimula. Estaria ele animado pelo desejo feminino de tocar o corpo sagrado que lembrava Ram Mandil nos Papers 1? Arrancar um pedaço do divino e fazê-lo cair.

Saber que o mais inquietante e perturbador reside no mais próximo e familiar é justamente uma das sabedorias que adquiriu cidadania no amanhecer do século. O fragmento, a parte, o minúsculo, a peça avulsa, pode constituir-se como um princípio epistêmico de aproximação ao homem contemporâneo se a orientação vai do Zenith ao Nadir.

A experiência princeps do close-up chama-se fotogenia, algo inarticulável, no limite do simbólico, um plus acrescentado ao objeto pelo ato cinematográfico, pela sua ação específica. Identificado por muitos como a alma do cinema, o close up não é dócil ao conceito nem deixa datar sua cronologia. O close up visa a um mais além de realidade, dar um zoom que ultrapasse o estreito representacional. Eisenstein, compatriota de Holbein, propunha em 1926 um cinema soco que cortasse até a caveira.

Paradoxalmente, em russo e em francês a palavra usada para close-up denota grande escala (gros plan); enquanto que em inglês, espanhol e português é a proximidade que está em jogo. Mary Ann Doane[4] sabe extrair todas as consequências desse paradoxo.

Fernand Léger, pintor fascinado pelo cinema ensina a objetividade que resulta do corte, o fim do todo, na cacofonia do seu Ballet mécanique, justaposição de pedaços. Léger disse:

Eu próprio usei o close-up, que é a única e real invenção do cinema. O fragmento do objeto também foi útil para mim; isolando-o o personalizamos. Todo este trabalho me conduziu a olhar o fenômeno da objetividade como novo e altamente contemporâneo em si próprio[5].

O cinema concorre com este aspecto da vida. A mão é um objeto múltiplo e transformável. Antes de vê-lo no filme não sabia o que era uma mão! O próprio objeto é capaz de devir um absoluto, uma coisa trágica e em movimento[6].

Uma série de fotografias[7] atrozes, de detalhes que não conduzem ao todo, de pedaços arrancados do corpo humanamente estendido, pode aproximar demasiadamente, close too close, do real dos campos de concentração colocando em cena o gozo de um Outro abismal. Freud falou da lente de aumento da análise e dos infusórios microscópicos da ciência.

 

(1) B.O: abreviação de Boletim de Ocorrência, notificação policial de uma contravenção ou crime. Jack: referência ao que praticou estupro; retirado da história de Jack, o estripador. 4:20: referência ao uso de drogas por meio da grafia americana para o dia 20 de abril, considerado o dia internacional da maconha.
(2) Miller, Jacques-Alain. Los divinos detalles. Ensino proferido no quadro do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, lição de 1/3/89.
(3) Epstein, Jean “Magnification and Other Writings.” Trans. Stuart Liebman. October 3 (1977): 9–25.
(4) Doane, Mary Ann. “The Close-Up: Scale and Detail in the Cinema” em D i f f e r e n c e s : A Journal of Feminist Cultural Studies, Brown University, 2003.
(5) Léger, Fernand [1927] citado em Fernand Léger – The Later Years –, catalogue edited by Nicolas Serota, published by the Trustees of the Whitechapel Art gallery, London, Prestel Verlag, 1988, pp. 21-22.
(6) Léger, Fernand L’ésthetique de la Machine – l’Ordre Géometrique et le Vrai -, Propos d’Artistes, 1925.
(7) “Atrocities,” May 7, 1945, LIFE. Fotógrafo: George Rodger; Quinze anos depois se publicam as fotografias de Margaret Bourke-White, December 26, 1960, special double-issue, “25 Years of LIFE.”



Crianças Autistas

SILVIA TENDLARZ

 

 

O século XXI é testemunha de um aumento crescente do diagnóstico de autismo na infância. Chegou-se a falar de uma verdadeira epidemia. Esse diagnóstico em expansão corresponde sempre às pessoas envolvidas nele? Uma pergunta torna-se urgente: não se trata só de diagnósticos, mas qual é a proposta de tratamento viável para crianças autistas.

O autismo tem a particularidade de surgir em crianças pequenas. Também existem adolescentes e adultos autistas que — embora, na maior parte das vezes, varie a forma de apresentação que tinham na infância, sobretudo pela ampliação do uso da linguagem — mantêm certas características que não se modificam, sem pressagiar com isso um destino trágico, que devemos aceitar com resignação.

Antes de tudo, é necessário distinguir o autismo do conceito de “gozo autista”. O autismo não é uma enfermidade da ruptura do laço como expressão de nosso mundo moderno, ainda que prevaleça o “todos autistas” em nossa linguagem corrente. O gozo é sempre autoerótico, autista, nesse sentido, mais além do tipo de laço que prevalece em nossa contemporaneidade. A expressão “autismo generalizado” nomeia o gozo, supõe o laço com o outro, mas sem que essa generalização implique um diagnóstico. Jacques-Alain Miller indica que o autismo, no sentido amplo, é uma categoria transclínica: é o estado nativo do sujeito a quem se acrescenta o laço social.

A partir de um breve percurso sobre a história desse quadro, poderemos examinar a abordagem psicanalítica tanto conceitual como clínica.

Diagnósticos

O autismo infantil tem sua história. Leo Kanner introduziu, em 1943, o conceito de “autismo infantil precoce”. Poucos meses depois, em 1944, e em outro contexto, Hans Asperger introduziu as premissas do que será chamado “síndrome de Asperger”. O primeiro ficará como uma interface entre a psiquiatria e a psicanálise. O segundo segue um caminho educativo, já que Asperger propõe desde o início uma “pedagogia curativa”.

O conceito mesmo de autismo é particular. Ele é o grande sobrevivente do colapso diagnóstico que propõe o DSM-IV. Tanto o “Autismo infantil precoce” de Kanner como a “Síndrome de Asperger” fazem parte dos “transtornos generalizados do desenvolvimento” (TGD), que acentuam a perturbação evolutiva.

Segundo a descrição de Kanner, as crianças autistas apresentam transtornos em sua relação com o outro (rechaço do olhar, ausência de condutas espontâneas como apontar objetos de interesse, falta de reciprocidade social ou emocional), na comunicação (atraso ou ausência na linguagem oral, uso estereotipado ou incapacidade de estabelecer conversações) e no comportamento (falta de flexibilidade, rituais, ausência do jogo simbólico). Aloneness e sameness, solidão e fixidez, são características essenciais do quadro clínico. O adjetivo “precoce” indica que pode se manifestar desde o nascimento, nos primeiros meses ou antes dos três anos. Esse início precoce determina sua modalidade de apresentação.

O que distingue o autismo infantil de Kanner da síndrome de Asperger é o fato de que falta a esse último o atraso da linguagem, e, ainda, de que seja diagnosticado ou se inicie após os três anos. Asperger situa entre os elementos de seu diagnóstico traços que perduram durante toda a vida, sem evolução notável.

Nos Manuais Diagnósticos, os dois quadros são diferenciados da esquizofrenia infantil pela ausência de alucinações, ainda que, na realidade, como assinala Lacan, as crianças autistas também tenham alucinações, que devem ser examinadas em suas particularidades.

O DSM V elimina essa distinção e introduz uma nova categoria clínica com a qual será examinada toda a infância: “transtornos do espectro autista” (TEA), com sua graduação: leve, moderado e severo (LAURENT, 2011). Os critérios utilizados para esse diagnóstico são: déficits sociais e de comunicação, assim como interesses fixos e comportamentos repetitivos. Dessa maneira, o autismo torna-se, hoje, um diagnóstico ampliado, que inclui uma tipologia variada.

Nesse contexto, a pergunta sobre se as crianças com diagnósticos de autismo infantil precoce podem evoluir para a síndrome de Asperger, na idade adulta, eventualmente, desaparecerá nesse contexto, já que ambos formam parte do TEA. Não obstante, a sutileza clínica dessa questão permanece, na medida em que se pode observar uma mudança da infância para a idade adulta, que demonstra que nem todas as crianças autistas permanecem necessariamente toda sua vida com sua apresentação inicial, nem persistem os chamados “transtornos cognitivos” com os quais foram avaliados na infância. Como disse Ian Hacking (2001), se os nomes das classes interagem com as pessoas que eles afetam, entretanto, tornam-se insuficientes para alojar os sujeitos com suas diferenças. Assim, para além do destino dos diagnósticos, permanece aquilo que torna a cada um único e refratário a diluir-se na “norma”.

As teorias cognitivas introduziram a noção de “espectro autista” que engloba tanto a criança como os adultos; um estudo de Lorna Wing e Judy Gould, do ano de 1979, está na base desse conceito. Esse estudo postula que toda criança que apresenta uma deficiência social severa também tem os sintomas principais do autismo. Ou seja, as crianças que estão afetadas por dificuldades na reciprocidade social, na comunicação e apresentam restrições em suas condutas necessitam dos mesmos tratamentos cognitivos que os autistas. Dessa forma, todas elas ficam incluídas no espectro autista, aumentando, assim, enormemente, a incidência do autismo (LAURENT, 2011).

Esse aumento está vinculado ao diagnóstico de “Transtorno generalizado do desenvolvimento inespecífico” – TGD, que, ao carecer de critérios definidos, incluía mais casos de espectro autista que de autismo propriamente dito. Esse é um dos pontos de discussão dentro do projeto do DSM V. Por outro lado, na medida em que não existe uma medicação específica para o autismo, prescrevem-se, para as crianças ditas autistas, medicamentos para ansiedade, depressão ou hiperatividade. O postulado de organicidade e a perturbação da função executiva da teoria cognitivista, na qual se baseiam o TDAH e o TGD, junto ao critério puramente descritivo, fazem com que se confundam ambos os quadros.

Dessa forma, não nos parece ilegítimo perguntar sobre o aumento da incidência do autismo na infância. É necessário, para fazê-lo, construir uma outra perspectiva. Na realidade, o déficit nunca foi um bom critério diagnóstico, já que ele conduz quase inevitavelmente à prescrição medicamentosa e às terapias comportamentais. De forma que as crianças tornam-se “todas educáveis e medicáveis” em nome da cura do sintoma, sem levar em conta a causa e o tratamento singular que ele convoca. Em nome de uma suposta “normalidade”, busca-se incluir as crianças em programas que as tornem iguais às outras. Desconhece-se, assim, que não há uma norma que valha para todos por igual, já que não existe um critério de saúde universal. Todos diferentes, todos “normalmente” fora da norma no ponto em que se encontra a singularidade. Cada criança autista tem seu modo próprio de “funcionar” dentro de sua estrutura. Numa perspectiva exterior à psicanálise, o neurologista Oliver Sacks, em seu texto Um antropólogo em Marte, afirma que não há dois indivíduos autistas iguais: “seu estilo individual ou expressão são diferentes em cada caso” (SACKS, 2003). O que nos leva a reafirmar que não há dois sujeitos iguais, autistas ou não.

Epidemia De Autismo

O diagnóstico de autismo na infância multiplicou-se nos últimos tempos. Esse incremento tem repercussões tanto nos tratamentos como nas políticas de saúde pública. Mas, realmente, há um aumento de crianças autistas, ou esse fenômeno é induzido pelas leituras classificatórias em uso no nosso mundo atual?

Ante a emergência do aumento de crianças autistas, um rumor inquietou a opinião pública. Em 1998, The Lancet publicou um estudo do Dr. Wakefield do Royal Free Hospital, do norte de Londres, no qual colocava a hipótese da relação entre a vacina contra rubéola e o autismo. Os meios de comunicação contribuíram para retransmitir a notícia e, assim, criar um grande escândalo, e o rumor expandiu-se pela internet.

Como resposta a esse rumor, François Ansermet (2008) expressou, também por internet, que uma investigação, realizada em 2004, revela que uma equipe de advogados pagou ao Dr. Wakefield para publicar essa nota, e, imediatamente depois, surgiram processos contra os produtores da vacina. The Lancet publicou, em março de 2004, uma pequena nota editorial em que se retratava, mas o rumor continuou circulando.[2] O que esse rumor demonstra é que pensar o autismo como um déficit ligado à carga genética, que é constitucional, ou, inclusive, como efeito secundário de uma vacina, geralmente, alivia os pais, já que lhes retira dos penosos sentimentos que experimentam.

A busca de uma genética defeituosa chegou a tal ponto, que, ante a dificuldade de encontrar um “gene autista”, os cientistas começaram a falar de “mutações genéticas espontâneas” ligadas ao meio ambiente. A decodificação do genoma humano introduziu a crença de que, finalmente, será possível estabelecer uma sequência genética que permita isolar o autismo. Em junho de 2010, o Consórcio do Projeto Genoma publicou um artigo na revista Nature sobre a descoberta de repetições e perdas de fragmentos de DNA em 20% dos casos de autismo examinados. Trata-se de “variantes raras”, mutações únicas, com um gene diferente em cada criança. O que se destaca é que se trata de mutações congênitas, que nada têm a ver com a herança e que são todas diferentes. Não sendo possível estabelecer a causa dessas mudanças genéticas, o “meio ambiente” permanece como uma hipótese. A abordagem genética, assim colocada, aponta a reeducação como única solução viável. Ainda veremos se esse “meio ambiente” incluirá ou não a relação do sujeito com o significante.

O descrédito quanto à psicanálise é correlativo ao recurso crescente a tratamentos cognitivo-comportamentais para a abordagem de crianças autistas, que tendem a difundir a crença de que os psicanalistas culpabilizam os pais pela enfermidade de seus filhos. O próprio Ian Hacking, em A construção social de quê?, retoma essa perspectiva e considera que, na verdade, a ciência cognitiva é a única que, na atualidade, pode explicar o autismo através da “teoria da mente”, dados os déficits linguísticos e outros. Mas o que é uma “teoria” — baseada na suposta capacidade de atribuir estados mentais a si mesmo e ao outro — senão uma versão imaginária do Outro?

Portanto, o autismo não é uma fatalidade, diz Jaqueline Berger, jornalista, autora do livro Sortir de l’autisme, e mãe de crianças autistas. A má reputação da psicanálise corresponde ao fato de que os resultados obtidos não são avaliáveis de acordo com os critérios quantitativos e estatísticos cognitivo-comportamentalistas utilizados nas publicações científicas.

Do Lado Da Psicanálise
Jean-Claude Maleval (2011) destaca a diversidade de casos envolvidos no diagnóstico de autismo, que vão desde os casos que necessitam de uma atenção institucional por toda vida aos de autistas de alto nível. Algumas crianças apresentam “ilhas de competência” que, às vezes, as tornam eruditas em domínios muito especializados, inclusive com habilidades excepcionais. O. Sacks (2003) examina as características que as tornam “prodígios”, também chamados “autistas sábios”, cujas proezas técnicas, diz Laurent (2011), têm deslocado o interesse que antes recaía sobre o delírio.

No entanto, não se pode apreender o autismo pela soma dos sintomas, já que não se trata de uma enfermidade, mas de um “funcionamento subjetivo singular”. Enquanto um tipo clínico particular, por detrás de sua “carapaça”, não se esconde nenhuma criança “normal”. A concepção deficitária do autismo inclui essas crianças inevitavelmente em tratamentos exclusivamente educativos e ignora a possibilidade de participação do sujeito num funcionamento que não fixa um destino.

Maleval (2011) concebe o autismo como uma estrutura que se caracteriza por um rechaço da alienação significante e de um retorno do gozo sobre uma borda. Essa expressão, tomada de Éric Laurent, dá conta de como o objeto se encontra pregado ao corpo, de tal modo que constrói uma “carapaça autista” em sua particular dinâmica libidinal. O transtorno simbólico gera uma enunciação morta, defasada, apagada ou técnica. Não se trata de um déficit cognitivo, mas de uma relação particular com o significante. Esse rechaço impede que o gozo se conecte com a palavra, e, em vez disso, ele retorna sobre uma borda, com um objeto ao qual o autista encontra-se ligado: constrói-se, assim, uma carapaça, dentro da dinâmica libidinal. A borda autista é uma formação protetora frente a um Outro ameaçador e dispõe de três componentes essenciais: a imagem do duplo, as ilhotas de competência e o objeto autista.

A hipótese central de Maleval é a do rechaço do autista ao gozo associado ao objeto voz, que determina as perturbações da linguagem: não se trata aqui tanto da sonoridade, mas da enunciação de seu dizer. “Nada angustia mais ao autista”, diz Maleval (2011) “que ceder seu gozo vocal alienando-se ao significante”. Protege-se, então, da presença angustiante da voz através da falação ou do mutismo, evitando a interlocução com o Outro. E, mesmo quando falam com fluidez, como no caso dos autistas de alto nível, protegem-se do gozo vocal através da falta de enunciação. Daí deriva a solidão do autista em relação a tomar uma posição de enunciação; assim como também sua fixidez no esforço de manter uma ordem estática frente ao seu mundo caótico.

Maleval (2011) destaca dois tipos de saída possíveis, que vão da criação de um duplo na infância, à de um Outro de síntese na idade adulta, através da memorização de signos e, finalmente, do uso de objetos autistas muito complexos. Assim, da solidão e do mutismo do autismo precoce, em um segundo tempo, é possível encontrar o trabalho sobre o retorno do gozo sobre a borda na síndrome de Asperger da idade adulta.

Esses desenvolvimentos são linhas de investigação para refletir sobre seu funcionamento dentro do dispositivo analítico.

Éric Laurent (2011) indica que a inclusão do sujeito no autismo implica o funcionamento de um significante sozinho no real, sem deslocamento, “peça solta”, que busca encontrar uma ordem fixa e realizar um simbólico sem equívocos possíveis, verdadeira “cifra do autismo”. O não sentir empatia, na realidade, não é necessariamente um déficit, mas o que os leva a funcionar sem os obstáculos imaginários próprios da vida cotidiana. Por outro lado, acrescenta que “há que se renunciar a pensar a criança-máquina” — alusão ao caso Joey de Bettelheim — e falar da “criança-órgão”, pois se trata de uma montagem do corpo com um objeto de fora do corpo que inclui, às vezes, um “objeto autista” colado a seu corpo.

Quanto às particularidades do tratamento, Éric Laurent (2011) assinala que o encapsulamento autista é uma bolha de proteção fechada de um sujeito sem corpo. O problema que se coloca, então, não é tanto como se constitui uma borda, como na esquizofrenia, mas como se desloca essa neoborda, que, em si mesma, está muito bem constituída.

Ao chegar à consulta, a criança autista tende a rejeitar todo contato com o outro, na medida em que este é experimentado como intrusivo frente a essa borda encapsulada, quase colada na superfície de seu corpo. O deslocamento dessa carapaça se produz através de intercâmbios articulados com um outro percebido como menos ameaçador. Busca-se construir um espaço que não seja nem do sujeito nem do outro, um espaço que permita uma aproximação, que remova a criança de sua indiferença e da repetição exata de sua relação com o outro, articulando, assim, um “espaço de jogo” — ainda que reste precisar qual é o estatuto desse jogo. Essas trocas no real, não puramente imaginárias, nas quais intervém a metonímia de objetos, permitem a construção de um espaço de deslocamento da borda e a emergência de significantes que passam a tomar parte de sua língua privada.

Em algumas ocasiões, inclui-se o “objeto autista”, com o qual a criança se desloca e entra também no circuito dos objetos. Esse objeto é parte da invenção pessoal, por isso a orientação psicanalítica que aponta para a operação de “separação”, sem inscrevê-la, não indicando, de modo algum, que se retire esse objeto da criança.

Na medida em que os tratamentos apontam para as singularidades, é possível prestar atenção às manifestações do significante sozinho no real, escutar o sujeito sem objetivá-lo e aprender sua língua, de acordo com a expressão de Jean Rabanel (2011). O fora do laço do autista, seu rechaço ao outro, que é percebido como intrusivo, torna ainda mais importante possibilitar as invenções através das quais o analista se torna o partenaire da criança autista, de modo tal que sua palavra possa ser escutada.

Éric Laurent (2011) indica que, para aplicar a psicanálise ao autismo, é necessário permitir ao sujeito separar-se de seu estado de refúgio homeostático no corpo encapsulado e passar a um modo de subjetividade da ordem de um “autismo a dois”. Há que se tornar o novo partenaire do sujeito, fora de toda reciprocidade imaginária e sem a função de interlocução simbólica.

A invenção é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Dessa forma, pode-se afirmar que há transferência na direção da cura da criança autista, todavia, devem-se determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura.

Quanto às entrevistas com os pais, não se trata de desampará-los, culpabilizando-os, mas de contribuir para encaminhá-los a tratamentos possíveis. A simples entrevista, ao lado das questões ali colocadas, pode produzir um sentimento de estar em falta, mesmo sem uma teoria que aponte os pais como causa do autismo. Esse é um elemento essencial para levar em conta na consulta da criança, de tal modo a não deixar os pais sem recursos, o que pode levá-los a uma suposta solução rápida via reeducação.

Para Concluir
A psicanálise é uma alternativa legítima de tratamento para o autista, tanto no seu trabalho individual junto a um dispositivo de trabalho criado em seu entorno, como na prática institucional “entre muitos”. E seus tratamentos nos deixam como ensinamento que o sujeito nunca pode reduzir-se a ser um objeto de diagnóstico e que, ao nos aproximarmos da criança, como um analista pode fazer, as portas abrem-se para um universo singular que nenhum manual diagnóstico poderia antecipar.

Para uma criança autista, como para qualquer outra criança com um diagnóstico diferente, não há outra “normalidade” que o modo de funcionamento que lhe seja próprio.

Dirigir-se à criança autista como sujeito, não como objeto educável, introduz possibilidades de encontros inesperados, com soluções que lhe permite reinserir-se no Outro de um modo original, sem ser encerrada na incapacidade ou em protocolos preestabelecidos. É um tratamento de um a um, mas com outros.

Tradução: Ludmilla Féres Faria
(1) Uma versão reduzida deste trabalho foi publicada em La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.103-108, 2011.
(2) The Lancet, London, v.363, n.9411, p.823-824, mars 2004.

 


Referências
ANSERMET, F.; SIEGRIST, C.-A. “Vaccin rougeole et autisme, aucune evidence scientifique”, Tribune de Genève, Genève, n.6, p.33, mai 2008.
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV.
BERGER, J. Sortir de l’autisme. Paris: Éditions Buchet/Chastel, 2007. (Coll. Essais et documents).
HACKING, I. Entre science et realité: la construction sociale de quoi? Paris: La Decouverte, 2001.
LAURENT, É. “Spectres de l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.53-63, 2011.
MALEVAL, J.-C. “Langue verbeuse, langue factuelle et phrases spontanées chez l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.77-92, 2011.
RABANEL, J.-R. “Une Clinique de l’objet a em institution”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.64-76, 2011.
SACKS, O. Un anthropologue sur mars. Paris: Seuil, 2003.

Silvia Tendlarz
Psicanalista, membro da EOL – Escuela de la Orientación Lacaniana e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: stendlarz@fibertel.com.ar