Almanaque On-Line Entrevista

COMISSÃO CIENTÍFICA DO XX EBCF

Esta edição n.14 do Almanaque on-line aborda o tema do XX EBCF, “Trauma nos corpos, violência nas cidades”, pelo viés da proposta de trabalho da Seção Clínica do Instituto para o ano de 2014, formulada como questão: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? Segundo Simone Souto, em argumento divulgado na Agenda EBP-MG e IPSM-MG do segundo semestre de 2014,

[…] em um primeiro momento, nossa investigação se dedicou a encontrar os meios através dos quais, em nossa prática, um real pode ser localizado. A partir daí, nos deparamos com uma nova questão: que respostas dar a um real que não se deixa tratar pelo sentido? Essa pergunta nos leva, agora, a abordar a invenção, ou seja, o que cada um inventa como resposta a partir do real. A invenção diz respeito, certamente, ao sujeito e ao que lhe é único, mas, também, não deixa de concernir o praticante e mesmo as instituições: o que temos feito para dar lugar às invenções do sujeito frente ao real? O que podemos recolher, da nossa experiência clínica e institucional, como um “saber fazer com o real”?

A partir desse argumento, solicitamos aos membros da Comissão Científica do XX EBCF que nos enviassem uma colaboração, um flash, um breve depoimento sobre o real que encontram em sua prática clínica, pesquisa teórica ou uma indicação de como esse real pode ser abordado – uma obra literária, um filme ou obra de arte – bem como sobre as invenções possíveis diante desse real.

Recebemos os depoimentos abaixo, pelos quais muito agradecemos aos seus autores.

CARLOS AUGUSTO NICÉAS: “Eu sou um deprimido”. Assim João se nomeou quando chegou dizendo-se um fracassado em tentar fugir da “desgraça” que aconteceu em sua vida amorosa. E trouxe a marca do seu traumatismo nas pontuações e nas palavras escolhidas para falar do seu sofrimento. Ele já atravessara quase um ano sob efeitos de antidepressivos receitados por um colega seu, melhor amigo desde a faculdade, e logo me confessou: “Eu me entupi de remédio, eu só queria evitar o pior”. João é ortopedista e, com termos próprios de seu saber particular, me diz por que decidiu vir falar a um analista: “Eu cansei meu amigo repetindo o que me aconteceu, foi bom contar com seu ombro para não morrer, mas não fez ‘calo’, a fratura continua exposta”. E prossegue: “Toda minha vida eu cuidei de traumatizados, agora eu preciso cuidar do que se quebrou dentro de mim”. Um abandono, o da mulher, ele o põe no lugar de causa do seu “traumatismo”, acontecimento que, em sua contingência, o encontrou “totalmente despreparado”. Na mesma entrevista, refere-se ao efeito do acontecimento assim:

Ela me pegou de surpresa, comunicou brutalmente que estava apaixonada por um colega de escritório, arquiteto como ela, com quem estava me traindo há um ano e com quem iria morar a partir daquela semana. Tudo isso numa enxurrada só, o casamento acabou assim, ela saiu assim da minha vida, e eu fiquei vários dias sem entender o que se passou, andando pela cidade como um “zumbi”, completamente siderado. Depois começaram os sintomas: depressão, insônia, dores no corpo todo. O que me mantém de pé é o antidepressivo, que eu já estou reduzindo desde que decidi vir me tratar aqui.

Assim, João, ortopedista de “acidentados do trabalho”, em um hospital público, decidiu “ver o que está quebrado e que ainda dói dentro de mim”, porque precisa estar “curado, para o caso de a vida me dar outras rasteiras”. A psicanálise não lhe é uma “matéria” muito conhecida, diz ele, mas do nome de Freud ele diz se lembrar:

Como eu sou um médico que se interessou por osso, essas coisas da alma fogem da minha cultura, mas minha primeira namorada era psicóloga, e, um dia, ela leu para mim um texto de Freud em que o psicanalista era comparado a um cirurgião da alma. Foi dela que me lembrei quando o amigo psiquiatra que me receitou o antidepressivo me sugeriu vir falar com um analista, procurar você, porque ele não estava vendo muita mudança em mim.

Nesse momento em que vir falar a um analista parecia já abrir um lugar diferente para João, um lugar não somente para “desabafar” com um amigo ou se “entupir” com medicamentos, acreditando assim e até agora lutar contra o real antes que ele se presentificasse, eu suspendi essa primeira entrevista e, antes de oferecer-lhe uma segunda, mantive aberta a porta da psicanálise, sublinhando simplesmente da escuta das palavras de sua lembrança: “Dela, mas também de Freud…”

Vir falar a um analista pode trazer já embutida, na demanda de psicoterapia, um esboço de mudança subjetiva. João, em uma de suas sessões preliminares imediatas à primeira, me diz: “No começo, eu me perguntava por que a vida me fez isso, mas, agora, eu desconfio de que não era também para ficar assim, tanto tempo vagando como um zumbi”. É, João me pareceu ter chegado começando a desfazer uma identificação ao significante “vítima”, ao qual ele se colou para se proteger do efeito traumático do abandono que sofreu do Outro. Não querendo somente responsabilizar o Outro para justificar seu sofrimento, eu já o escutava nesses primeiros tempos da transferência esboçando uma implicação de sujeito, mesmo que isso lhe fosse ainda opaco e enigmático.

MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática?: questão que orienta o trabalho da Sessão Clínica do IPSM-MG, rumo ao XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. As discussões no Núcleo de Psicanálise e Direito têm nos aproximado do eixo temático “Psicologia das massas, análise do eu… e a deriva das pulsões”.

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud afirma que a identificação é a forma mais antiga de laço libidinal. A identificação com o ideal permite a coesão da massa, ainda que ela, em momentos específicos, possa irromper em explosões de violência.

Na prática com os adolescentes e jovens, nas instituições educativas e socioeducativas, vemos como eles, mesmo que circulando lado a lado no mesmo espaço, não se agrupam, segundo a lógica freudiana da referência ao ideal do eu. Ao contrário, muitas vezes, permanecem na satisfação com os objetos, e são frequentes as manifestações de violência e agressividade entre eles e contra os responsáveis pelo trabalho nas instituições, impossibilitando ou dificultando o laço com o Outro proposto.

É possível considerar que a mudança no programa de satisfação de nossa civilização — da renúncia em prol de um ideal, para o imperativo de satisfação — teve como consequência um “mal-estar nas identificações” ou mesmo uma “patologia nas identificações”, que chega até nós por meio das irrupções de transgressão e violência. As contribuições da psicanálise de orientação lacaniana sobre as nomeações têm nos permitido aproximar e intervir em algumas dessas manifestações.

Nos casos que nos chegam, é comum a presença de designações ou apelidos relacionados à violência e transgressão. São modos de nomear distintos da operação do Nome-do-Pai, cujo poder metafórico pode substituir a satisfação direta, promovendo o laço com o Outro. Em nossa época, essa nomeação se encontra em declínio. Assim, encontramos, cada vez mais, designações em conexão direta com o gozo, que acabam por promovê-lo e incitá-lo, em uma manifestação da vertente superegoica do imperativo de gozo.

“Esse é B.O.”, “Ele é Jack”, “Sou 4:20”[1] são exemplos de designações que formam um curto-circuito, no qual os adolescentes são vistos e se mostram identificados ao resto da sociedade, sem possibilidade de vacilação, como em uma ordem de ferro. Nas instituições, a cada manifestação de hostilidade da parte dos adolescentes, nova tentativa de coerção e interdição, produzindo mais agressividade e violência.

A presença da psicanálise e sua oferta da palavra têm permitido uma vacilação nas designações que segregam e promovem o gozo, abrindo um espaço para acolher outras possibilidades de surgimento do sujeito. Dessa forma, é possível demonstrar como a psicanálise pode funcionar como uma ajuda contra as passagens ao ato e atuações, como nos indicou Lacan.

MARCELA ANTELO: Detalhar o real

Sacrilégio do “Noli tangere”, o close up é magnífica prova da penetração da civilização “na fábrica do real”. A literatura nos entregou os divinos detalhes, ensinou Miller lendo Nabokov. O artificio começou com a configuração exata do coque de Madame Bovary. “Detalhar quer dizer fracionar em pedaços” [2]. Para o cineasta Jean Epstein assim como para Miller é assunto de ética.

Um destino possível do detalhe é sua divinização, devemos livrar-nos dela, disse Jacques-Alain Miller em 1989, fazê-lo poderia constituir a dignidade da psicanálise.

O divino nos oferece o quê? Será que ter uma parte ao alcance nos faz supor um todo onde não existe? A ascensão do objeto ao zênite implica sua divinização. Qualquer objeto que se situe na vertical do observador será divinizado. Perturbar a divinização dos pedaços.

O zênite possui seu oposto, Nadir, que goza de muito menos imprensa. Pedaços no oposto do zênite. Perturbar a divinização pode servir-se da leitura do detalhe, já não da sua observação.

Epstein, no seu artigo “Magnificação”[3] afirma que um close-up extraído da cadeia, fora do contexto, é monstruoso e constitui a alma do cinema. Diviniza um sorriso, abrindo na tela como uma fruta madura ou indica o abismo da boca vazia de Old Boy. Inquietantemente estranho o close dá a ver o que vida diurna e suas grandes magnitudes dissimula. Estaria ele animado pelo desejo feminino de tocar o corpo sagrado que lembrava Ram Mandil nos Papers 1? Arrancar um pedaço do divino e fazê-lo cair.

Saber que o mais inquietante e perturbador reside no mais próximo e familiar é justamente uma das sabedorias que adquiriu cidadania no amanhecer do século. O fragmento, a parte, o minúsculo, a peça avulsa, pode constituir-se como um princípio epistêmico de aproximação ao homem contemporâneo se a orientação vai do Zenith ao Nadir.

A experiência princeps do close-up chama-se fotogenia, algo inarticulável, no limite do simbólico, um plus acrescentado ao objeto pelo ato cinematográfico, pela sua ação específica. Identificado por muitos como a alma do cinema, o close up não é dócil ao conceito nem deixa datar sua cronologia. O close up visa a um mais além de realidade, dar um zoom que ultrapasse o estreito representacional. Eisenstein, compatriota de Holbein, propunha em 1926 um cinema soco que cortasse até a caveira.

Paradoxalmente, em russo e em francês a palavra usada para close-up denota grande escala (gros plan); enquanto que em inglês, espanhol e português é a proximidade que está em jogo. Mary Ann Doane[4] sabe extrair todas as consequências desse paradoxo.

Fernand Léger, pintor fascinado pelo cinema ensina a objetividade que resulta do corte, o fim do todo, na cacofonia do seu Ballet mécanique, justaposição de pedaços. Léger disse:

Eu próprio usei o close-up, que é a única e real invenção do cinema. O fragmento do objeto também foi útil para mim; isolando-o o personalizamos. Todo este trabalho me conduziu a olhar o fenômeno da objetividade como novo e altamente contemporâneo em si próprio[5].

O cinema concorre com este aspecto da vida. A mão é um objeto múltiplo e transformável. Antes de vê-lo no filme não sabia o que era uma mão! O próprio objeto é capaz de devir um absoluto, uma coisa trágica e em movimento[6].

Uma série de fotografias[7] atrozes, de detalhes que não conduzem ao todo, de pedaços arrancados do corpo humanamente estendido, pode aproximar demasiadamente, close too close, do real dos campos de concentração colocando em cena o gozo de um Outro abismal. Freud falou da lente de aumento da análise e dos infusórios microscópicos da ciência.

 

(1) B.O: abreviação de Boletim de Ocorrência, notificação policial de uma contravenção ou crime. Jack: referência ao que praticou estupro; retirado da história de Jack, o estripador. 4:20: referência ao uso de drogas por meio da grafia americana para o dia 20 de abril, considerado o dia internacional da maconha.
(2) Miller, Jacques-Alain. Los divinos detalles. Ensino proferido no quadro do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, lição de 1/3/89.
(3) Epstein, Jean “Magnification and Other Writings.” Trans. Stuart Liebman. October 3 (1977): 9–25.
(4) Doane, Mary Ann. “The Close-Up: Scale and Detail in the Cinema” em D i f f e r e n c e s : A Journal of Feminist Cultural Studies, Brown University, 2003.
(5) Léger, Fernand [1927] citado em Fernand Léger – The Later Years –, catalogue edited by Nicolas Serota, published by the Trustees of the Whitechapel Art gallery, London, Prestel Verlag, 1988, pp. 21-22.
(6) Léger, Fernand L’ésthetique de la Machine – l’Ordre Géometrique et le Vrai -, Propos d’Artistes, 1925.
(7) “Atrocities,” May 7, 1945, LIFE. Fotógrafo: George Rodger; Quinze anos depois se publicam as fotografias de Margaret Bourke-White, December 26, 1960, special double-issue, “25 Years of LIFE.”



Crianças Autistas

SILVIA TENDLARZ

 

 

O século XXI é testemunha de um aumento crescente do diagnóstico de autismo na infância. Chegou-se a falar de uma verdadeira epidemia. Esse diagnóstico em expansão corresponde sempre às pessoas envolvidas nele? Uma pergunta torna-se urgente: não se trata só de diagnósticos, mas qual é a proposta de tratamento viável para crianças autistas.

O autismo tem a particularidade de surgir em crianças pequenas. Também existem adolescentes e adultos autistas que — embora, na maior parte das vezes, varie a forma de apresentação que tinham na infância, sobretudo pela ampliação do uso da linguagem — mantêm certas características que não se modificam, sem pressagiar com isso um destino trágico, que devemos aceitar com resignação.

Antes de tudo, é necessário distinguir o autismo do conceito de “gozo autista”. O autismo não é uma enfermidade da ruptura do laço como expressão de nosso mundo moderno, ainda que prevaleça o “todos autistas” em nossa linguagem corrente. O gozo é sempre autoerótico, autista, nesse sentido, mais além do tipo de laço que prevalece em nossa contemporaneidade. A expressão “autismo generalizado” nomeia o gozo, supõe o laço com o outro, mas sem que essa generalização implique um diagnóstico. Jacques-Alain Miller indica que o autismo, no sentido amplo, é uma categoria transclínica: é o estado nativo do sujeito a quem se acrescenta o laço social.

A partir de um breve percurso sobre a história desse quadro, poderemos examinar a abordagem psicanalítica tanto conceitual como clínica.

Diagnósticos

O autismo infantil tem sua história. Leo Kanner introduziu, em 1943, o conceito de “autismo infantil precoce”. Poucos meses depois, em 1944, e em outro contexto, Hans Asperger introduziu as premissas do que será chamado “síndrome de Asperger”. O primeiro ficará como uma interface entre a psiquiatria e a psicanálise. O segundo segue um caminho educativo, já que Asperger propõe desde o início uma “pedagogia curativa”.

O conceito mesmo de autismo é particular. Ele é o grande sobrevivente do colapso diagnóstico que propõe o DSM-IV. Tanto o “Autismo infantil precoce” de Kanner como a “Síndrome de Asperger” fazem parte dos “transtornos generalizados do desenvolvimento” (TGD), que acentuam a perturbação evolutiva.

Segundo a descrição de Kanner, as crianças autistas apresentam transtornos em sua relação com o outro (rechaço do olhar, ausência de condutas espontâneas como apontar objetos de interesse, falta de reciprocidade social ou emocional), na comunicação (atraso ou ausência na linguagem oral, uso estereotipado ou incapacidade de estabelecer conversações) e no comportamento (falta de flexibilidade, rituais, ausência do jogo simbólico). Aloneness e sameness, solidão e fixidez, são características essenciais do quadro clínico. O adjetivo “precoce” indica que pode se manifestar desde o nascimento, nos primeiros meses ou antes dos três anos. Esse início precoce determina sua modalidade de apresentação.

O que distingue o autismo infantil de Kanner da síndrome de Asperger é o fato de que falta a esse último o atraso da linguagem, e, ainda, de que seja diagnosticado ou se inicie após os três anos. Asperger situa entre os elementos de seu diagnóstico traços que perduram durante toda a vida, sem evolução notável.

Nos Manuais Diagnósticos, os dois quadros são diferenciados da esquizofrenia infantil pela ausência de alucinações, ainda que, na realidade, como assinala Lacan, as crianças autistas também tenham alucinações, que devem ser examinadas em suas particularidades.

O DSM V elimina essa distinção e introduz uma nova categoria clínica com a qual será examinada toda a infância: “transtornos do espectro autista” (TEA), com sua graduação: leve, moderado e severo (LAURENT, 2011). Os critérios utilizados para esse diagnóstico são: déficits sociais e de comunicação, assim como interesses fixos e comportamentos repetitivos. Dessa maneira, o autismo torna-se, hoje, um diagnóstico ampliado, que inclui uma tipologia variada.

Nesse contexto, a pergunta sobre se as crianças com diagnósticos de autismo infantil precoce podem evoluir para a síndrome de Asperger, na idade adulta, eventualmente, desaparecerá nesse contexto, já que ambos formam parte do TEA. Não obstante, a sutileza clínica dessa questão permanece, na medida em que se pode observar uma mudança da infância para a idade adulta, que demonstra que nem todas as crianças autistas permanecem necessariamente toda sua vida com sua apresentação inicial, nem persistem os chamados “transtornos cognitivos” com os quais foram avaliados na infância. Como disse Ian Hacking (2001), se os nomes das classes interagem com as pessoas que eles afetam, entretanto, tornam-se insuficientes para alojar os sujeitos com suas diferenças. Assim, para além do destino dos diagnósticos, permanece aquilo que torna a cada um único e refratário a diluir-se na “norma”.

As teorias cognitivas introduziram a noção de “espectro autista” que engloba tanto a criança como os adultos; um estudo de Lorna Wing e Judy Gould, do ano de 1979, está na base desse conceito. Esse estudo postula que toda criança que apresenta uma deficiência social severa também tem os sintomas principais do autismo. Ou seja, as crianças que estão afetadas por dificuldades na reciprocidade social, na comunicação e apresentam restrições em suas condutas necessitam dos mesmos tratamentos cognitivos que os autistas. Dessa forma, todas elas ficam incluídas no espectro autista, aumentando, assim, enormemente, a incidência do autismo (LAURENT, 2011).

Esse aumento está vinculado ao diagnóstico de “Transtorno generalizado do desenvolvimento inespecífico” – TGD, que, ao carecer de critérios definidos, incluía mais casos de espectro autista que de autismo propriamente dito. Esse é um dos pontos de discussão dentro do projeto do DSM V. Por outro lado, na medida em que não existe uma medicação específica para o autismo, prescrevem-se, para as crianças ditas autistas, medicamentos para ansiedade, depressão ou hiperatividade. O postulado de organicidade e a perturbação da função executiva da teoria cognitivista, na qual se baseiam o TDAH e o TGD, junto ao critério puramente descritivo, fazem com que se confundam ambos os quadros.

Dessa forma, não nos parece ilegítimo perguntar sobre o aumento da incidência do autismo na infância. É necessário, para fazê-lo, construir uma outra perspectiva. Na realidade, o déficit nunca foi um bom critério diagnóstico, já que ele conduz quase inevitavelmente à prescrição medicamentosa e às terapias comportamentais. De forma que as crianças tornam-se “todas educáveis e medicáveis” em nome da cura do sintoma, sem levar em conta a causa e o tratamento singular que ele convoca. Em nome de uma suposta “normalidade”, busca-se incluir as crianças em programas que as tornem iguais às outras. Desconhece-se, assim, que não há uma norma que valha para todos por igual, já que não existe um critério de saúde universal. Todos diferentes, todos “normalmente” fora da norma no ponto em que se encontra a singularidade. Cada criança autista tem seu modo próprio de “funcionar” dentro de sua estrutura. Numa perspectiva exterior à psicanálise, o neurologista Oliver Sacks, em seu texto Um antropólogo em Marte, afirma que não há dois indivíduos autistas iguais: “seu estilo individual ou expressão são diferentes em cada caso” (SACKS, 2003). O que nos leva a reafirmar que não há dois sujeitos iguais, autistas ou não.

Epidemia De Autismo

O diagnóstico de autismo na infância multiplicou-se nos últimos tempos. Esse incremento tem repercussões tanto nos tratamentos como nas políticas de saúde pública. Mas, realmente, há um aumento de crianças autistas, ou esse fenômeno é induzido pelas leituras classificatórias em uso no nosso mundo atual?

Ante a emergência do aumento de crianças autistas, um rumor inquietou a opinião pública. Em 1998, The Lancet publicou um estudo do Dr. Wakefield do Royal Free Hospital, do norte de Londres, no qual colocava a hipótese da relação entre a vacina contra rubéola e o autismo. Os meios de comunicação contribuíram para retransmitir a notícia e, assim, criar um grande escândalo, e o rumor expandiu-se pela internet.

Como resposta a esse rumor, François Ansermet (2008) expressou, também por internet, que uma investigação, realizada em 2004, revela que uma equipe de advogados pagou ao Dr. Wakefield para publicar essa nota, e, imediatamente depois, surgiram processos contra os produtores da vacina. The Lancet publicou, em março de 2004, uma pequena nota editorial em que se retratava, mas o rumor continuou circulando.[2] O que esse rumor demonstra é que pensar o autismo como um déficit ligado à carga genética, que é constitucional, ou, inclusive, como efeito secundário de uma vacina, geralmente, alivia os pais, já que lhes retira dos penosos sentimentos que experimentam.

A busca de uma genética defeituosa chegou a tal ponto, que, ante a dificuldade de encontrar um “gene autista”, os cientistas começaram a falar de “mutações genéticas espontâneas” ligadas ao meio ambiente. A decodificação do genoma humano introduziu a crença de que, finalmente, será possível estabelecer uma sequência genética que permita isolar o autismo. Em junho de 2010, o Consórcio do Projeto Genoma publicou um artigo na revista Nature sobre a descoberta de repetições e perdas de fragmentos de DNA em 20% dos casos de autismo examinados. Trata-se de “variantes raras”, mutações únicas, com um gene diferente em cada criança. O que se destaca é que se trata de mutações congênitas, que nada têm a ver com a herança e que são todas diferentes. Não sendo possível estabelecer a causa dessas mudanças genéticas, o “meio ambiente” permanece como uma hipótese. A abordagem genética, assim colocada, aponta a reeducação como única solução viável. Ainda veremos se esse “meio ambiente” incluirá ou não a relação do sujeito com o significante.

O descrédito quanto à psicanálise é correlativo ao recurso crescente a tratamentos cognitivo-comportamentais para a abordagem de crianças autistas, que tendem a difundir a crença de que os psicanalistas culpabilizam os pais pela enfermidade de seus filhos. O próprio Ian Hacking, em A construção social de quê?, retoma essa perspectiva e considera que, na verdade, a ciência cognitiva é a única que, na atualidade, pode explicar o autismo através da “teoria da mente”, dados os déficits linguísticos e outros. Mas o que é uma “teoria” — baseada na suposta capacidade de atribuir estados mentais a si mesmo e ao outro — senão uma versão imaginária do Outro?

Portanto, o autismo não é uma fatalidade, diz Jaqueline Berger, jornalista, autora do livro Sortir de l’autisme, e mãe de crianças autistas. A má reputação da psicanálise corresponde ao fato de que os resultados obtidos não são avaliáveis de acordo com os critérios quantitativos e estatísticos cognitivo-comportamentalistas utilizados nas publicações científicas.

Do Lado Da Psicanálise
Jean-Claude Maleval (2011) destaca a diversidade de casos envolvidos no diagnóstico de autismo, que vão desde os casos que necessitam de uma atenção institucional por toda vida aos de autistas de alto nível. Algumas crianças apresentam “ilhas de competência” que, às vezes, as tornam eruditas em domínios muito especializados, inclusive com habilidades excepcionais. O. Sacks (2003) examina as características que as tornam “prodígios”, também chamados “autistas sábios”, cujas proezas técnicas, diz Laurent (2011), têm deslocado o interesse que antes recaía sobre o delírio.

No entanto, não se pode apreender o autismo pela soma dos sintomas, já que não se trata de uma enfermidade, mas de um “funcionamento subjetivo singular”. Enquanto um tipo clínico particular, por detrás de sua “carapaça”, não se esconde nenhuma criança “normal”. A concepção deficitária do autismo inclui essas crianças inevitavelmente em tratamentos exclusivamente educativos e ignora a possibilidade de participação do sujeito num funcionamento que não fixa um destino.

Maleval (2011) concebe o autismo como uma estrutura que se caracteriza por um rechaço da alienação significante e de um retorno do gozo sobre uma borda. Essa expressão, tomada de Éric Laurent, dá conta de como o objeto se encontra pregado ao corpo, de tal modo que constrói uma “carapaça autista” em sua particular dinâmica libidinal. O transtorno simbólico gera uma enunciação morta, defasada, apagada ou técnica. Não se trata de um déficit cognitivo, mas de uma relação particular com o significante. Esse rechaço impede que o gozo se conecte com a palavra, e, em vez disso, ele retorna sobre uma borda, com um objeto ao qual o autista encontra-se ligado: constrói-se, assim, uma carapaça, dentro da dinâmica libidinal. A borda autista é uma formação protetora frente a um Outro ameaçador e dispõe de três componentes essenciais: a imagem do duplo, as ilhotas de competência e o objeto autista.

A hipótese central de Maleval é a do rechaço do autista ao gozo associado ao objeto voz, que determina as perturbações da linguagem: não se trata aqui tanto da sonoridade, mas da enunciação de seu dizer. “Nada angustia mais ao autista”, diz Maleval (2011) “que ceder seu gozo vocal alienando-se ao significante”. Protege-se, então, da presença angustiante da voz através da falação ou do mutismo, evitando a interlocução com o Outro. E, mesmo quando falam com fluidez, como no caso dos autistas de alto nível, protegem-se do gozo vocal através da falta de enunciação. Daí deriva a solidão do autista em relação a tomar uma posição de enunciação; assim como também sua fixidez no esforço de manter uma ordem estática frente ao seu mundo caótico.

Maleval (2011) destaca dois tipos de saída possíveis, que vão da criação de um duplo na infância, à de um Outro de síntese na idade adulta, através da memorização de signos e, finalmente, do uso de objetos autistas muito complexos. Assim, da solidão e do mutismo do autismo precoce, em um segundo tempo, é possível encontrar o trabalho sobre o retorno do gozo sobre a borda na síndrome de Asperger da idade adulta.

Esses desenvolvimentos são linhas de investigação para refletir sobre seu funcionamento dentro do dispositivo analítico.

Éric Laurent (2011) indica que a inclusão do sujeito no autismo implica o funcionamento de um significante sozinho no real, sem deslocamento, “peça solta”, que busca encontrar uma ordem fixa e realizar um simbólico sem equívocos possíveis, verdadeira “cifra do autismo”. O não sentir empatia, na realidade, não é necessariamente um déficit, mas o que os leva a funcionar sem os obstáculos imaginários próprios da vida cotidiana. Por outro lado, acrescenta que “há que se renunciar a pensar a criança-máquina” — alusão ao caso Joey de Bettelheim — e falar da “criança-órgão”, pois se trata de uma montagem do corpo com um objeto de fora do corpo que inclui, às vezes, um “objeto autista” colado a seu corpo.

Quanto às particularidades do tratamento, Éric Laurent (2011) assinala que o encapsulamento autista é uma bolha de proteção fechada de um sujeito sem corpo. O problema que se coloca, então, não é tanto como se constitui uma borda, como na esquizofrenia, mas como se desloca essa neoborda, que, em si mesma, está muito bem constituída.

Ao chegar à consulta, a criança autista tende a rejeitar todo contato com o outro, na medida em que este é experimentado como intrusivo frente a essa borda encapsulada, quase colada na superfície de seu corpo. O deslocamento dessa carapaça se produz através de intercâmbios articulados com um outro percebido como menos ameaçador. Busca-se construir um espaço que não seja nem do sujeito nem do outro, um espaço que permita uma aproximação, que remova a criança de sua indiferença e da repetição exata de sua relação com o outro, articulando, assim, um “espaço de jogo” — ainda que reste precisar qual é o estatuto desse jogo. Essas trocas no real, não puramente imaginárias, nas quais intervém a metonímia de objetos, permitem a construção de um espaço de deslocamento da borda e a emergência de significantes que passam a tomar parte de sua língua privada.

Em algumas ocasiões, inclui-se o “objeto autista”, com o qual a criança se desloca e entra também no circuito dos objetos. Esse objeto é parte da invenção pessoal, por isso a orientação psicanalítica que aponta para a operação de “separação”, sem inscrevê-la, não indicando, de modo algum, que se retire esse objeto da criança.

Na medida em que os tratamentos apontam para as singularidades, é possível prestar atenção às manifestações do significante sozinho no real, escutar o sujeito sem objetivá-lo e aprender sua língua, de acordo com a expressão de Jean Rabanel (2011). O fora do laço do autista, seu rechaço ao outro, que é percebido como intrusivo, torna ainda mais importante possibilitar as invenções através das quais o analista se torna o partenaire da criança autista, de modo tal que sua palavra possa ser escutada.

Éric Laurent (2011) indica que, para aplicar a psicanálise ao autismo, é necessário permitir ao sujeito separar-se de seu estado de refúgio homeostático no corpo encapsulado e passar a um modo de subjetividade da ordem de um “autismo a dois”. Há que se tornar o novo partenaire do sujeito, fora de toda reciprocidade imaginária e sem a função de interlocução simbólica.

A invenção é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Dessa forma, pode-se afirmar que há transferência na direção da cura da criança autista, todavia, devem-se determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura.

Quanto às entrevistas com os pais, não se trata de desampará-los, culpabilizando-os, mas de contribuir para encaminhá-los a tratamentos possíveis. A simples entrevista, ao lado das questões ali colocadas, pode produzir um sentimento de estar em falta, mesmo sem uma teoria que aponte os pais como causa do autismo. Esse é um elemento essencial para levar em conta na consulta da criança, de tal modo a não deixar os pais sem recursos, o que pode levá-los a uma suposta solução rápida via reeducação.

Para Concluir
A psicanálise é uma alternativa legítima de tratamento para o autista, tanto no seu trabalho individual junto a um dispositivo de trabalho criado em seu entorno, como na prática institucional “entre muitos”. E seus tratamentos nos deixam como ensinamento que o sujeito nunca pode reduzir-se a ser um objeto de diagnóstico e que, ao nos aproximarmos da criança, como um analista pode fazer, as portas abrem-se para um universo singular que nenhum manual diagnóstico poderia antecipar.

Para uma criança autista, como para qualquer outra criança com um diagnóstico diferente, não há outra “normalidade” que o modo de funcionamento que lhe seja próprio.

Dirigir-se à criança autista como sujeito, não como objeto educável, introduz possibilidades de encontros inesperados, com soluções que lhe permite reinserir-se no Outro de um modo original, sem ser encerrada na incapacidade ou em protocolos preestabelecidos. É um tratamento de um a um, mas com outros.

Tradução: Ludmilla Féres Faria
(1) Uma versão reduzida deste trabalho foi publicada em La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.103-108, 2011.
(2) The Lancet, London, v.363, n.9411, p.823-824, mars 2004.

 


Referências
ANSERMET, F.; SIEGRIST, C.-A. “Vaccin rougeole et autisme, aucune evidence scientifique”, Tribune de Genève, Genève, n.6, p.33, mai 2008.
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV.
BERGER, J. Sortir de l’autisme. Paris: Éditions Buchet/Chastel, 2007. (Coll. Essais et documents).
HACKING, I. Entre science et realité: la construction sociale de quoi? Paris: La Decouverte, 2001.
LAURENT, É. “Spectres de l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.53-63, 2011.
MALEVAL, J.-C. “Langue verbeuse, langue factuelle et phrases spontanées chez l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.77-92, 2011.
RABANEL, J.-R. “Une Clinique de l’objet a em institution”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.64-76, 2011.
SACKS, O. Un anthropologue sur mars. Paris: Seuil, 2003.

Silvia Tendlarz
Psicanalista, membro da EOL – Escuela de la Orientación Lacaniana e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: stendlarz@fibertel.com.ar



Da Agressividade À Pulsão De Morte

ÉRIC GUILLOT

Agressividade e pulsão de morte estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas ou assassinas que são frequentes em nossa atualidade. Violência verbal, intimidação, extorsão, violação, exploração sexual, assassinatos, atentados suicidas, as manifestações agressivas não têm todas a mesma significação. Umas se abrem no registro da “intenção agressiva”[2] e ficam presas na comunicação. Outras testemunham uma “tendência agressiva” mais fundamental que se desdobra em outro registro totalmente diferente, aquele da passagem ao ato, eventualmente destruidor e assassino, colocando em jogo o que Freud designou com o termo pulsão de morte.

Como nos orientar nessa clínica da agressividade e da pulsão de morte? Para dar conta dela, nós teremos de evocar a dimensão sociológica e política desses fenômenos. Existe sempre, com efeito, uma dimensão de contingência na agressividade. Lacan o indica desde 1948, sublinhando que nosso mundo contemporâneo, marcado pela globalização, contribui para seu desencadeamento (LACAN, 1950/1998).

Quais são os fundamentos e os mecanismos da agressividade e da pulsão de morte? Sobre esse ponto, as opiniões de Freud e Lacan divergem. Freud considera que a agressividade é uma “disposição instintiva primitiva”. Ele faz dela um fenômeno vital devido à biologia, tal como a pulsão de morte, que ele liga à agressividade. À diferença de Freud, Lacan considera que a agressividade e a pulsão de morte não se devem ao instinto como animal. Para ele, agressividade e pulsão de morte devem ser pensadas em sua articulação à linguagem. É a linguagem que faz do homem um animal desnaturado capaz de crueldade.

A extração da agressividade e da pulsão de morte do campo da biologia e sua inscrição no campo da linguagem permitirão a Lacan dissociar progressivamente a agressividade da pulsão de morte.

Quanto à agressividade, Lacan mostra, de início, que se trata de um fenômeno que se desenvolve estritamente no registro imaginário. A agressividade é correlativa de um modo de identificação próprio à estrutura do humano. Trata-se de um fenômeno decorrente da teoria do narcisismo. Quanto à pulsão de morte, que Lacan tinha ligado à agressividade, nos primeiros momentos de seu ensino, ele sublinha, em seguida, a articulação estrita com o simbólico; depois, a partir dos anos 60, ele mostra que ela deve ser pensada em seu laço com o gozo, quer dizer, em sua relação com o real. O termo gozo torna-se, então, o nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.

I – Freud, Da Agressividade À Pulsão De Morte

Uma Tendência À Agressão

Lacan considera que Freud fica parcialmente prisioneiro da ideologia darwiniana que dominava sua época.[3] Nessa ideologia — mas não é ainda a nossa? — existe uma preeminência acordada à agressividade que se refere ao fato de que seja concebida como um princípio de conservação da espécie[4] (LACAN, 1948/1998). A abordagem freudiana da agressividade, em termos de instinto e de função vital, testemunha a influência de uma tal ideologia. A primeira teoria freudiana das pulsões[5] (opondo pulsões sexuais e pulsões de autoconservação) também carrega essa marca (FREUD, 1915a/1974).

Depois de 1920, com a descoberta do mais além do princípio de prazer e os remanejamentos de sua teoria pulsional (em oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte), Freud introduz uma nova perspectiva concernente à agressividade. Certamente, Freud vê sempre naquela “uma disposição instintiva original e autossubsistente”, e ele é sempre tentado a situar aí os fundamentos de uma referência à biologia, mas, nesse momento, a agressividade lhe aparece, sobretudo, em sua dimensão deletéria, e ele a relaciona à pulsão de morte (FREUD, 1930/1974). É em “O mal-estar na civilização” que ele o testemunha mais claramente. Tomando o que chama de “tendência à agressão”, ele nos dá uma definição e uma descrição do homem que integra a pulsão de morte. Poderia ser Sade, assinala Lacan (1959-1960/1991). Todo o pessimismo de Freud eclode nesse texto:

[…] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo (FREUD, 1930/1974, p.133).

Homo homini lupus, ele acrescenta, para concluir: o homem é um lobo para o homem.

A forma desse adágio que Freud toma emprestado de Plauto[6] é, para Lacan (1950/1998), enganadora sobre seu sentido.[7] Ele, com efeito, considera que a agressividade não corresponde a um instinto, que não é uma função vital, como no animal. Em 1929, não se trata mais, para Freud, de situar a agressividade em sua articulação às pulsões de conservação do eu, mas antes de mostrar que existe uma “inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destruição, e também para a crueldade” (FREUD, 1930/1974, p.142). Essa tendência à agressão na qual ele reconhece a marca da pulsão de morte constitui, a seus olhos, uma ameaça para a sociedade civilizada (FREUD, 1930/1974). Desse julgamento muito pessimista de Freud nós podemos extrair todo o peso do desastre que foi a primeira guerra mundial e as premissas daquela que se anunciava.

Da Pulsão De Morte À “Pulsão Do Supereu”

A prova dessa influência obscura da pulsão de morte, Freud a refere igualmente a certas manifestações clínicas nas quais o sujeito se emprega a repetir situações que são para ele um desprazer e que vão contra o seu bem e mesmo contra os interesses do vivo. Trata-se, por exemplo, da repetição dos sonhos traumáticos ou ainda das neuroses de destino, das reações terapêuticas negativas, mas também dos sintomas ou da clínica do masoquismo. A repetição dessas manifestações clínicas que se apresentam como uma forma de autoagressão, das quais, no entanto, o sujeito parece tirar uma satisfação paradoxal, testemunha, para ele, a operação de um movimento que se dirige à morte e que afetaria o vivo como tal. Ele vê nessa repetição a expressão de um fenômeno vital enraizado na biologia,[8] caracterizado pela tendência a restabelecer um estado anterior, como um retorno do animado ao inanimado (FREUD, 1930/1974, p.141).

Assinalemos que, se Lacan admite também o fato da repetição como sendo o princípio da pulsão de morte, ele não faz dela um fenômeno vital enraizado na biologia. Ele situa, ao contrário, a repetição em relação à linguagem e ao inconsciente. Está aí um ponto importante que J.-A. Miller (2004) sublinha em seu curso Biologia lacaniana.

Mas vejamos o que leva o sujeito a repetir a situação que vai contra o seu bem. Certamente, Freud considera que essa tendência mórbida se enraíza em um movimento vital, mas que não é suficiente dizê-lo assim. É preciso poder explicar por que todo o mundo não tem a mesma relação com a pulsão de morte. O que leva certos sujeitos a se oporem à sua cura e mesmo a se autodestruírem, a se autoagredirem?

A primeira ideia de Freud tinha sido interpretar como uma forma de autopunição ligada a uma culpabilidade edipiana. Mas, a partir de 1923, em “O Eu e o Isso”, ele começa a duvidar da eficácia dessa interpretação. O que o levou a levantar outra hipótese: aquela do supereu. Essa instância, no interior do sujeito, que o leva a se autodestruir é o supereu. Não o supereu “herdeiro do complexo de Édipo”, resultado da interiorização dos interditos parentais e ligado à figura pacificadora do pai do Édipo; mas um supereu muito mais feroz, de uma severidade extrema, que manifestará contra o Eu “a mesma agressividade rude” que o Eu “teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos” (FREUD, 1930/1974, p.146). Freud o formula em 1929, em “O mal-estar na civilização”.

Para explicar as manifestações de autoagressão, Freud faz valer um retorno da agressividade sobre a própria pessoa por um supereu sádico, que maltrata, atormenta e angustia o eu. O supereu que tiraniza o sujeito, por suas exigências desmesuradas, aparece, assim, como um dos nomes dessa pulsão de morte, cuja hipótese se impôs então a Freud a partir dos anos 20. Freud constata, além disso, que nada apazigua o supereu. Longe de ser acalmado, como se poderia imaginar, pela renúncia pulsional, ele se encontra tanto mais excitado, crescendo sempre mais sua superioridade. Freud (1930/1974, p.149) sublinha que “quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento”.

Por quê? Freud explica assim:

Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não basta, pois o desejo [quer dizer, a “tendência à agressão”] persiste e não pode ser escondido do superego [supereu]. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. […] Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor (FREUD,1930/1974, p.151).

A culpabilidade que resulta da tensão entre o eu e o supereu é às vezes tal, assinala Freud, que acontece de alguns sujeitos cometerem crimes com o único objetivo de serem punidos, fazendo, assim, aliviar sua culpabilidade inconsciente. É um paradoxo que Freud (1915c/1974) sublinha em um artigo intitulado “Criminosos pelo sentimento de culpa”, que Lacan retomará, por sua vez, em 1950, em Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. Ele destaca uma categoria de crimes nos quais, paradoxalmente, é o sentimento de culpabilidade que preexiste à falta. Nessa clínica do supereu destacada por Freud, é a instância do supereu que leva ao crime e à transgressão para satisfazer o que aparece finalmente como uma forma de gozo do supereu (COTTET, 2009).

Com efeito, o que aparece nesse texto de Freud — e que Lacan destacará — é a dimensão pulsional do supereu.[9] Ele tem uma avidez que nada satisfaz. Mais se lhe dá, mais ele reclama. Mais o supereu se impõe, exige, interdita, e mais ele se mostra ávido de renúncia, como se ele se nutrisse dessa renúncia mesma (FREUD, [1929]1930/1974). Ele empurra ao sacrifício e se nutre desse gozo obscuro, masoquista, que o sujeito pode experimentar no sacrifício. Assim, assistimos a uma forma de sexualização do imperativo moral que o supereu promove. E, sem dúvida, é nessa dimensão pulsional do supereu que nós encontramos, como sublinha J.-A. Miller, a “definição mais brilhante” da pulsão de morte (MILLER, 2004, p.22)

II – Lacan: Da Agressividade Ao Gozo

“A Aporia Freudiana”

Lacan considera que Freud ficou prisioneiro da ideologia de seu tempo, quando se esforçou em definir a experiência do homem no registro da biologia (MILLER, 1991). No entanto, sublinha Lacan, toda sua obra demonstra que não se pode dar uma fórmula biológica para isso. É uma contradição em sua obra, é uma “aporia” (LACAN, 1948/1998, p.104). A maneira que Freud teve de teorizar a pulsão de morte, a partir do postulado de uma “agressividade constitucional do ser humano contra outrem”, testemunha essa dificuldade, e Lacan considera que isso deixou a porta aberta a numerosas confusões.

Agressividade E Pulsão De Morte: A Teoria Do Narcisismo

a) Um modo de identificação próprio da estrutura do humano

Rompendo com essa perspectiva biologizante, Lacan vai se esforçar para repensar a questão dos fundamentos da agressividade a partir da teoria da identificação. Ele desenvolve essa questão em 1948, no artigo “A agressividade em psicanálise”.

Sua tese é a seguinte: “a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico” (LACAN, 1948/1998, p.112). Ele acrescenta: o modo de identificação narcísica “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo”.

Para Lacan, agressividade e identificação narcísica são intimamente ligadas. Não se pode dar conta da agressividade sem uma teoria da identificação em psicanálise. Tal é o seu ponto de partida. Nós estamos então longe da ideia de uma agressividade instintual. Ele situa, ao contrário, a origem da agressividade na gênese do eu. A agressividade está intrinsecamente ligada à estrutura narcísica do eu (LACAN, 1948/1998). Ela é sua “tendência correlativa”. Certas manifestações patológicas, como aquelas que encontramos nas psicoses paranoicas, em que dominam as reações agressivas ou as imputações de nocividade feitas ao outro (LACAN, 1948/1998), somente se tornam lesivas se as relacionarmos à “organização original das formas do eu e do objeto” (LACAN, 1948/1998, p.113).

b) A estrutura paranoica do eu

Qual é a origem do eu? Lembremos brevemente que o eu resulta de um processo de identificação imaginária. Lacan elabora essa teoria no artigo sobre o estádio do espelho (LACAN, 1949/1998). A criança acede a uma representação unitária de si mesma ao se identificar, seja à sua imagem no espelho que ela assume como sendo a sua, seja à de uma outra criança, com a condição de que a diferença de idade não exceda dois meses e meio (LACAN, 1948/1998). O que chamamos de eu não é nada mais que o resultado desse processo de identificação imaginária a um outro. Assim, em seu fundamento, o eu é um outro.

Que o sujeito deva passar pelo outro para ter acesso a uma imagem de si mesmo não é sem consequências. Vai resultar disso, sublinha Lacan, uma “ambivalência estrutural”, “uma tensão conflitiva interna ao sujeito” (LACAN, 1948/1998, p.116), e, desde então, a relação do sujeito a seu semelhante vai se desdobrar em um duplo registro, aquele do erotismo e aquele da agressividade. Existe um componente erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica, de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe um componente agressivo porque, se “eu é o outro”, então esse outro pode tomar meu lugar. E é em termos de “você ou eu” que se desdobra então a relação. A única saída vem a ser a destruição do outro. Lacan o formula assim:

Há nisso uma espécie de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso pensamento, para compreender a natureza da agressividade no homem e sua relação com o formalismo de seu eu e de seus objetos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu (LACAN, 1948/1998, p.116).

Os fenômenos de transitivismo observáveis nas crianças pequenas, mas a respeito dos quais Lacan diz que não se eliminam jamais do mundo do homem (LACAN, 1946/1998), testemunham esses fenômenos de captação pela imago da forma humana.

Lacan se refere aqui às observações de Charlotte Bühler.

É nessa captação pela imago da forma humana, […] que domina, entre os seis meses e os dois anos e meio, toda a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante. Durante todo esse período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora (LACAN, 1948/1998, p.116).

E precisa em “Formulações sobre a causalidade psíquica”: “Assim, a criança pode participar, num transe completo, do tombo do seu colega, ou igualmente lhe imputar, sem que se trate de uma mentira, ter recebido dele o golpe que lhe aplicou” (LACAN, 1946/1998, p.182). Assim, o que destacam extraordinariamente os fenômenos de transitivismo é a função de desconhecimento do eu. Lacan tirará as consequências disso, tanto para a concepção que faz da direção do tratamento, como para o que nos ensinam sobre a clínica da paranoia. Com efeito, como ele sublinha, a criança que imputa a seu colega receber o golpe que ele recebe não mente. No momento de captação em que se identifica ao outro, ela desconhece o que vem dela e o que vem do outro. Ela desconhece radicalmente a sua participação naquilo de que se queixa. É o que leva Lacan a introduzir o termo “conhecimento paranoico” (LACAN, 1946/1998, p.181; 1948/1998, p.114; 1949/1998, p.99), para designar essa forma de desconhecimento que está no fundamento da estrutura do eu.

Para Lacan, o eu tem uma estrutura paranoica. O estádio do espelho de Lacan é a “paranoia original do homem”, assinala J.-A.Miller (1991, p.13). É para ilustrar essa “paranoia original” ligada à constituição mesma do eu que, nesse mesmo texto, Lacan (1946/1998) vai buscar, em seguida, um exemplo, o de Alceste, no Misantropo, de Molière. É impressionante ver a esse respeito como Lacan coloca em série as reações transitivistas da criança pequena com Alceste, que ilustra, para ele, a figura do paranoico. Diz Lacan: “Alceste é louco […] justamente pelo fato de que, em sua bela alma, ele não reconhece que ele mesmo concorre para a desordem contra a qual se insurge” (LACAN, 1946/1998, p.174). Ele “não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de seu ser atual” (LACAN, 1946/1998, p.172). Em outros termos, ele atribui ao outro uma desordem interior que é a sua, diz Lacan, e a única maneira para sair disso será desferir seu golpe contra o que lhe aparece como a desordem. Mas, ao fazê-lo, é a si mesmo que ele atinge. Lacan o formula:

Assim, seu ser está encerrado num círculo, a menos que ele o rompa por alguma violência, na qual, desferindo seu golpe contra o que lhe parece ser a desordem, atinge a si mesmo através do contragolpe social.Tal é a forma geral da loucura… (LACAN, 1946/1998, p.173).

Alceste somente encontra, com efeito, sua saída em um verdadeiro suicídio social: verdadeira “agressão suicida do narcisismo”, diz Lacan (1946/1998, p.176), para sublinhar isto: que, ao tentar atingir o outro, é finalmente a si mesmo que ele atinge/bate.

Quanto a esta fórmula: ao atingir o outro, “é a ti mesmo que atinges” (LACAN, 1950/1998, p.149), que resume o conceito de “agressão suicida do narcisismo”,[10] que Lacan introduz a propósito do Misantropo, se pode dizer — como sublinha S. Cottet (2009, p.9) — que domina todos os primeiros escritos de Lacan sobre o imaginário e a criminalidade.

Vamos encontrá-la novamente na observação clínica que ele dá em seguida. Trata-se de um estudo publicado por Guiraud (1928), em um volume intitulado Os assassinatos imotivados. Guiraud descreve as etapas que precederam a sobrevinda da passagem ao ato homicida de um paciente. Depois de todo um período caracterizado por um “sentimento penoso de estranheza interior”, nota Guiraud, o paciente, desgostoso da vida e dos homens, se volta para Deus, depois para o comunismo, projetando sobre a sociedade seu pessimismo interior, até que, em uma passagem ao ato violenta, ele tenta, matando o tirano, matar a doença que o invadia.[11] Assim, sublinha Lacan, seguindo Guiraud, “não é outra coisa senão o kakon [o mal] de seu próprio ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (LACAN, 1946/1998, p.176).

c) A “libido negativa” e a pulsão de morte

O que demonstra o conceito de agressão suicida do narcisismo, através dos exemplos que Lacan dá, é o laço estreito que ele estabelece entre a agressividade e a pulsão de morte. Pode-se mesmo dizer que, nessa época de seu ensino, a pulsão de morte se encontra reduzida à agressividade. E se Lacan pode reduzir uma à outra é porque ele considera, sublinha J.-A. Miller (2004), que elas provêm de uma mesma libido narcísica que inclui, ao mesmo tempo, os valores de vida e de morte. Por que atribuir à libido narcísica esse duplo valor de vida e morte? Isso se deve à origem mesma dessa libido. Para Lacan, o que está na origem é o fato de que o pequeno homem, no seu nascimento, em razão de sua prematuridade, está confrontado a uma insuficiência vital. Essa insuficiência nativa constitui o motor da libido narcísica (LACAN, 1948/1998). Ela é a fonte de energia do eu.

É então porque existe esse dilaceramento original, essa “deiscência vital”, que a criança é levada a se identificar à imagem no espelho, para tentar mascarar, recobrir, essa hiância original. Essa hiância é então o que a conduz a buscar em torno de si, de início, uma imagem, em um parceiro que vai completá-la. Nisso, essa deiscência vital é “constitutiva do homem” (LACAN, 1948/1998, p.118). A libido narcísica, que tem sua fonte numa falta, traz em si sua marca, ela é positiva, uma vez que ela lança o desenvolvimento para frente. Lacan vê nela uma libido situada do lado da vida, uma libido vital. Mas, ao mesmo tempo, ela é negativa, porque a agressividade que a acompanha encontra sua fonte na “aflição orgânica original” da qual ela provém. Lacan introduz essa curiosa expressão “libido negativa”, para designar essa outra face da libido (LACAN, 1948/1998, p.118). Aí, é uma libido que está do lado da morte. Ela opera na agressão suicida do narcisismo. Ela é a expressão do que ele chamará mais tarde de a “lâmina mortal” do narcisismo (LACAN, 1958/1998, p.577).

Assinalemos aqui, como sublinha J.-A. Miller (2004), que essa teorização de Lacan torna finalmente caduca a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Assiste-se à sua reunificação a partir do narcisismo, ao qual ele atribui agora os valores de vida e de morte.

O Significante E A Morte

Em 1953, em seu “Discurso de Roma”, “Função e campo da palavra e da linguagem”, Lacan opera um profundo remanejamento de sua concepção. Apoiando-se sobre o estruturalismo, que deve a Lévi-Strauss, ele é levado a fazer do significante e da categoria do simbólico a nova polaridade de seu ensino. Uma das primeiras incidências dessa contribuição vai consistir em desfazer a junção que ele havia feito antes entre agressividade e pulsão de morte, para ligar a pulsão de morte ao simbólico (MILLER, 2004) — a agressividade ficando intimamente ligada ao registro imaginário da relação narcísica.

Por que reatar desde então a dimensão da morte ao simbólico? É que Lacan tomou a medida de que a tendência à morte não está ligada somente a uma falha vital, ela está também ligada à lógica do significante. É porque existe a linguagem que, diferentemente do animal, a dimensão da morte está presente em nossa vida. É pela operação do significante que a morte entra na vida.[12] Certamente, a morte não é representável, mas como sublinha Freud (1915b/1974, p.332), nós podemos antecipá-la. E é mesmo essa possibilidade que nós temos de antecipá-la, que levou à concepção da divisão do corpo e da alma (MILLER, 2004).

Qual é então a natureza do laço que existe entre a morte e o significante? Lacan expõe suas razões em 1953, em seu “Discurso de Roma”. A primeira consiste em dizer que o que caracteriza “o símbolo [é que ele] se manifesta inicialmente como assassinato da coisa” (LACAN, 1953/1998, p.320). O significante, o símbolo, anula a coisa. Ele está no lugar da coisa. No memento mesmo em que a designa, ele a apaga naquilo que faria sua autenticidade. A segunda razão, invocada por Lacan para dar conta do laço com a morte, consiste em dizer que o significante nos localiza além da morte. O significante assegura uma sobrevida além da vida biológica. Se o homem aspira a se destruir, é porque, na morte, ele consegue se eternizar (LACAN, 1953/1998). É a partir do momento em que o sujeito está morto, que ele se torna um signo eterno para os outros (LACAN, 1957-1958/1999). A esse respeito, o que caracteriza o humano é o direito à sepultura. É a possibilidade de persistir como significante além da morte biológica.

Enfim, a terceira razão é que a morte está no fundamento da constituição da subjetividade. “A intermediação da morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história” (LACAN, 1953/1998, p.320). É porque se sabe destinado à morte, que o sujeito humano se distingue do animal e que sua existência pode tomar sentido (FREUD, 1915b/1974, p.339). Isso é testemunhado pelo horror no qual se pode mergulhar o sujeito quando preso à certeza delirante de que é imortal.

Essa nova perspectiva desenvolvida por Lacan, salientando a dimensão significante da morte e fazendo dela uma característica do simbólico, apresenta, no entanto, uma contrapartida. Ele não leva em conta a dimensão de “satisfação paradoxal”, além do princípio de prazer, que está no coração da pulsão de morte freudiana. O que está excluído nessa concepção da pulsão de morte pelo simbólico é o gozo, sublinha J.-A. Miller (2004). Desde então, onde Lacan irá situar essa satisfação paradoxal?

O Gozo: Um Dos Nomes Da Pulsão De Morte Freudiana

a) “A pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte”

É em 1964, no Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” e no escrito “Posição do inconsciente”, que Lacan dará uma resposta a essa questão. Nos dois textos, ele introduz uma tese que, transformando radicalmente a teoria freudiana das pulsões, vai permitir-lhe levar em conta a dimensão real da pulsão de morte freudiana.

Até então, sublinha J.-A. Miller (2005), Lacan tinha tentado pensar a questão da libido freudiana a partir do imaginário, mas era ao preço de fazer da pulsão de morte um fenômeno imaginário assim como a agressividade. Em seguida, quando tinha recorrido ao registro do simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que tinha sido realçada. Agora, como o Seminário 11, ele opera um novo giro. Recorrendo ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é a dimensão de gozo que comporta a pulsão de morte freudiana — a que Freud se refere como uma “satisfação paradoxal” — que vai ser enfatizada.

Em que essa nova perspectiva transforma radicalmente a teoria freudiana das pulsões? É que ela torna caduca (mais uma vez[13]) a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Desde então, como sublinha J.-A. Miller (2004), as pulsões de vida e as pulsões de morte aparecem como dois aspectos de uma só e mesma pulsão.

Lacan o formula explicitamente: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte” (LACAN, 1946/1998, p.188). E acrescenta: “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (LACAN, 1946/1998, p.195).[14] A pulsão sexual que era situada, até então, do lado da vida, inclui também a dimensão da morte.

Como dar conta do fato de que a morte está também presente nas pulsões sexuais? Lacan faz valer o conceito de repetição e o de pulsão tal como os reformula no Seminário 11. A repetição não está somente no coração da pulsão de morte, ela está também no coração de todo funcionamento pulsional. No princípio da pulsão, existe, com efeito, uma tentativa repetida para reencontrar o objeto que deu satisfação uma primeira vez. Mas esse objeto, que Lacan chama de objeto a, permanece inatingível (LACAN, 1946/1998, p.169). A pulsão o contorna sem jamais atingi-lo, daí a repetição.

Tomemos o exemplo[15] da pulsão oral. Aqui, o objeto a na pulsão oral é o que resta da demanda uma vez que se demandou tudo. Existem os alimentos que se podem obter e, uma vez que tenham sido experimentados, fica um resto que não se satisfaz jamais. Daí o fato de que isso não se aquiete nunca, isso impulsiona, insiste, se repete. O mesmo acontece com a analidade, dá-se de início tudo o que se tem e depois se continua, e resta sempre uma presença dessa exigência de dar, mesmo quando não se tem mais nada para dar. O resto é o objeto a.

E, no fundo, essa exigência repetitiva de satisfação que está no coração do funcionamento pulsional testemunha, segundo Freud e Lacan, uma ultrapassagem do princípio de prazer. Essa repetição — da qual vemos que não é um fenômeno vital articulado ao biológico, mas antes um fenômeno linguageiro articulado ao inconsciente — longe de visar à satisfação de uma necessidade como outras, “aparece ao contrário como uma exigência desarmônica” (MILLER, 2004, p.21),[16] inadaptada em relação às exigências da vida, em relação ao bem-estar do corpo. Ela é “um fator de desadaptação”; ela é contrária à vida. E é então nesse sentido que Lacan pode dizer que “a pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte.”

É o que Freud demonstra, assinala J.-A. Miller (2004), quando sublinha como um órgão pode deixar de obedecer ao saber do corpo. Por exemplo? “O olho pode e deveria servir ao corpo para se orientar no mundo, para ver”, mas eis que ele se coloca “a servir ao que Freud chama a Schaulust, o prazer de ver”. Vê-se como se introduz aqui “um prazer que ultrapassa a finalidade vital e mesmo que conduz a anulá-la”. O olho que deveria estar a serviço da vida individual, torna-se o suporte de um “gozar”, que pode se impor como uma exigência repetitiva, inadaptada às necessidades da vida (MILLER, 2004, p.46). Em suma, essa repetição a que Freud se referiu como sendo a marca da pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões. Ela não é o apanágio de uma pulsão específica que seria a pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões parciais. Toda pulsão é uma ultrapassagem repetitiva do princípio do prazer para tentar atingir — em vão — um gozo perdido para sempre, ao preço, por vezes, de deixar sua vida, como se manifesta, por exemplo, na toxicomania.

Desse ponto de vista, pode-se dizer que o abandono, por Lacan, da dicotomia freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte em proveito do conceito de “gozo”, nome lacaniano da pulsão de morte freudiana, é o que lhe permitiu conceber a parte mórbida de toda pulsão.

Vê-se, por aí, igualmente, que Lacan não abandonou nunca a pulsão de morte freudiana. Ao contrário, fez dela a pedra de sustentação do circuito pulsional. E quando fez do gozo o problema maior com o qual cada um, seja neurótico ou psicótico, tem que se confrontar, pode-se dizer que inscreve a questão da pulsão de morte no coração mesmo de sua teoria e de sua concepção do tratamento. Porque, a partir de então, a pulsão de morte deverá ser tomada na relação particular, sempre singular, que o sujeito mantém com o gozo, com o objeto a que causa seu desejo.

b) Da imagem i(a) ao objeto a: os crimes de gozo

Dizer que toda “pulsão parcial é por natureza pulsão de morte” não quer dizer, certamente, que toda pulsão vai até a morte. Lacan o precisa bem em “Posição do inconsciente”. “Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte” (LACAN, 1964/1998, p.863), dito de outro modo, em toda pulsão existe essa possibilidade de uma transformação do prazer em gozo, a partir do que Lacan chama uma ultrapassagem do princípio do prazer.

Prazer ———-> Gozo/Objeto a

O que caracteriza o prazer é seu caráter razoável, apaziguador, sem tensão. O que faz com que ele possa encontrar seus próprios limites e parar diante da barreira do mal, da dor, do feio. O princípio do prazer é “um princípio de sobrevivência”, assinala J.-A. Miller (2005).

O gozo, ao contrário, se opõe ao princípio do prazer. Ele detém uma potência em si que atravessa essa barreira, ele se apresenta como “uma exigência absoluta” que a torna irresistível. Ele vai no sentido da morte, da destruição. Ele implica em si mesmo “a aceitação da morte”, diz Lacan (1959-1960/1991, p.231).

Habitualmente, o sujeito para antes que a pulsão chegue até a morte. Ele recua, horrorizado, quando o objeto real da pulsão — objeto de gozo, começa a aparecer-lhe em sua crueza. Habitualmente, nós não temos nunca, com efeito, acesso ao objeto real da pulsão. Esse objeto — o objeto a — é inatingível. A pulsão o contorna sem atingi-lo jamais. Esse objeto permanece mascarado, recoberto pelo brilho fálico que lhe dão a fantasia e o desejo.xvii

Um poema de Baudelaire, que J.-C. Maleval (2008, p.150) cita, nos permite apreender o que pode ser esse objeto real da pulsão, quando não é mais recoberto pela imagem aureolada por seu brilho fálico, por i(a).

Quando ela me sorveu dos ossos a medula,E tão languidamente a buscou minha gula,Viu o beijo de amor que nela final pus,Flanco viscoso de odre a transbordar de pus!(BAUDELAIRE, 2001, p.138).[18]

Aqui, o objeto real da pulsão se desvela como uma coisa imunda. Bruscamente, a fantasia, que aureolava o objeto amado, falta. Em um outro poema de Flores do mal, intitulado “Uma carniça”, Baudelaire (2001, p.41) nos dá uma descrição comparável desse momento de báscula.

Barreira, Interdito, Castração

“Não-relação sexual”

Prazer ———> / / —–> Gozo

Sujeito dividido —–> / / —–> Objeto a (objeto real da pulsão)

Inacessível

Imagem falicizada i(a)

Fantasia – Desejo

Na neurose, normalmente, a barreira da fantasia e do desejo funciona para manter o sujeito à distância do objeto real da pulsão. E quando acontece a falha da fantasia — quando uma “desfalicização” do objeto se produz — o sujeito se desvia do objeto. O nojo se instala. Mesmo na perversão, a barreira da fantasia, em sua articulação com a castração, funciona.

A relação ao objeto real da pulsão — a relação ao gozo — não inclui a dimensão da castração. Não está coordenado ao falo articulado ao vazio central da castração, de modo que nenhuma impotência[19] coordena o sujeito ao objeto do qual goza.

Desde então, na relação do sujeito ao objeto, a dimensão do gozo pode se apresentar de maneira a mais crua, em um “sem limite”. Pode então acontecer, como sublinha J.-C. Maleval (2008), que se assista a uma apreensão direta do objeto pulsional. O sujeito busca, então, tirar diretamente os objetos parciais do corpo do parceiro (MALEVAL, 2008).[20] Categoria de crimes que podemos qualificar de “crimes de gozo” ou de “crimes puramente pulsionais”, como o formula Lacan (1932/1987 p.306), nos quais a pulsão de morte se abre/desdobra em todo seu horror.

Em suma, ao fim desse percurso, a pulsão de morte freudiana aparece cindida em duas, entre significante e gozo. Quando Lacan recorre ao simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte.

Ao contrário, a agressividade não aparece mais como um conceito central para dar conta da pulsão de morte; ela aparece como uma consequência lógica da gênese do eu.

Enfim, a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte tende a desaparecer em proveito de uma concepção monista da pulsão que permita a Lacan sair das dificuldades ligadas ao dualismo freudiano.

III – Do Mal-Estar Na Civilização Ao Tratamento Do Gozo

Para concluir, evocaremos brevemente a questão do tratamento da agressividade e da pulsão de morte. É um problema que atravessa todo o ensino de Freud e Lacan.

Desde 1950, Lacan tinha sublinhado como a promoção do eu e o retorno sobre o narcisismo, que se observam no nosso mundo moderno, levavam à violência (LACAN, 1950/1998).[21] É, com efeito, que o prestígio dado ao narcisismo, colocando os seres em um isolamento de alma, fecha os sujeitos sempre mais em um modo de ligação social que passa pela identificação imaginária ao semelhante. A consequência desse modo de identificação alienante é a agressividade.

Observemos que, em 1929, em “Mal-estar na civilização”, Freud já assinalava o perigo que representava o modo de “laço social [quando] é criado principalmente pela identificação de membros de uma sociedade uns aos outros”. Ele via nos Estados Unidos o modelo desse tipo de laço social do qual o efeito só poderia ser “a pobreza psicológica dos grupos” (FREUD, [1929]1930/1974, p.138).

Existe então uma face contingente na agressividade. A sua expressão irá variar segundo a maneira pela qual as estruturas simbólicas do grupo serão capazes de pacificá-la, integrá-la, mascará-la, recobri-la. Daí as variações que se observam segundo as épocas e as culturas.[22]

A Função Pacificadora Do Ideal Do Eu

Para Freud, a função da civilização é, com efeito, permitir que a dimensão do amor domine a do ódio. Freud desenvolve esse ponto de vista em “Mal-estar na civilização”. Ele se interessa pelas barreiras, pelas interdições que a sociedade ergue para lutar contra essa “inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros” (FREUD, [1929]1930/1974, p.134).

Lacan retoma, por sua vez, essa mesma questão. A tese que ele desenvolve em seu artigo de 1948 consiste em dizer que o que permite ao sujeito transcender “a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva” é a identificação edipiana (LACAN, 1948/1998, p.117). Ele considera que no Édipo se realiza uma identificação que não é mais a identificação ao semelhante com sua consequência agressiva, mas uma identificação ao grande Outro em posição de ideal do eu para o sujeito. Lacan reconhece nessa identificação dita “simbólica” uma função pacificadora e normatizante[23] à qual atribui eficácia ao pai, cuja função é unir o desejo à lei. Essa identificação simbólica ao Outro em posição de ideal do eu é o que permite estruturar o imaginário.

A Face Mortífera Da Cultura

A função do ideal do eu tem, no entanto, seus limites para tratar o problema da agressividade e da pulsão de morte. Não somente porque existe em nosso mundo contemporâneo um declínio dos ideais e uma fragilização das referências simbólicas, mas também porque a função do ideal tem uma parte ligada com o gozo do supereu.

Existem, com efeito, duas faces na cultura. Uma que tem uma função pacificadora — aquela que Freud acentuou com o pai do Édipo que une o desejo à lei. Aí, é a função pacificadora do ideal do eu. E outra que é aquela da pulsão de morte, que Freud descobre com o supereu. Um supereu que certamente toma a seu cargo os interditos enunciados pela cultura, mas que, mais secretamente, impulsiona a gozar. O interdito ele mesmo alimenta o gozo. De sorte que o que se chama de cultura pode também ter uma face deletéria. A cultura da avaliação é um exemplo disso.

Bem-Dizer Nossa Relação Ao Gozo
Desde então, como tratar o gozo? O que é que pode vir a limitar o gozo, se parece, com efeito, que existe uma queda dos ideais e que o ideal, a moral retomada a seu cargo pelo supereu, corre o risco, sempre, de se degradar em gozo.

A resposta de Lacan a uma questão atravessa todo o seu ensino.[24] Isolarei, no entanto, um ponto que me parece crucial, aquele que consiste em dizer que o tratamento da pulsão de morte, o tratamento do gozo, passa pela ética. A ética da psicanálise para Lacan é “uma ética do bem-dizer”. Ele a formula assim em 1974: “isto é, do dever de bem-dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura” (LACAN, 1974/2001, p.524).

“Bem-dizer ou se referenciar ao inconsciente” quer dizer “aprender a ler nosso inconsciente”, quer dizer aprender a “bem-dizer nossa relação ao gozo inconsciente” ou à pulsão de morte. Como? Tentando chegar o mais próximo de nossa relação ao objeto, esse objeto a causa do desejo e que reencontramos no coração da fantasia.

Não é então um “tratamento de massa” da pulsão de morte o que a psicanálise propõe, como aquele que prescreve a religião sob a forma do preceito: “amarás ao próximo como a ti mesmo” e que Freud ([1929]1930/1974, p.168) e também Lacan (1959-1960/1991) julgam inoperante e “chocante”.[25] Não, o que a psicanálise propõe é um tratamento “um-a-um”.

Consiste em levar em conta o fato de que esse gozo mau está em cada um, “ele faz parte de seu próprio ser”, diz Freud (1925/1976, p.165),[26] ou como formula Lacan (1946/1998, p.195), que “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”.

“Nosso ser inclui […] a parte de que somos orgulhosos, […] que constitui a honra da humanidade”, assinala J.-A. Miller, “mas também a parte horrível” (MILLER, 2009, p.2-3). Essa parte horrível não é somente aquela que Freud descreveu quando nos diz que “o homem é um lobo para o homem”, é também aquela que se abre no gozo obscuro do sacrifício.[27] Importa aproximar-se disso em um tratamento para tentar saber alguma coisa sobre isso.

 

(1) “De l’agressivité à la pulsion de mort”, publicado em Mental, Paris, n.24, p.143-163, abr. 2010.
(2) Lacan (1948/1998, p.106,112) introduziu no texto “A agressividade em psicanálise” essa distinção entre “intenção agressiva” e “tendência agressiva”.
(3) A obra de Darwin, A origem das espécies, data de 1859, e A filiação do homem, de 1871.
(4) O prestígio da ideia da luta pela vida é atestado pelo sucesso da teoria darwiniana ou, pelo menos, pelo sucesso das derivações que essa teoria conheceu, desde o fim do século XIX, com o que chamamos o “darwinismo social” — termo inventado, em 1880, para designar a doutrina sociológica de Herbert Spencer, segundo a qual a eliminação dos menos aptos é a consequência necessária, nas comunidades humanas, da grande lei da seleção natural. Sabe-se que Darwin se opôs a essas concepções. Ver sobre esse ponto: TORT, P. “Le darwinisme, entre innovation et dérives”, Dossier pour la Science, n.63, p.21, avr./juin 2009.
(5) Freud considera que os “verdadeiros protótipos da relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta do eu para sua conservação e sua afirmação” (FREUD, 1915a/1974).
(6) Plaute, Asinaria (La comédie des ânes), II, 4, 88.
(7) “A ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais”, sublinha Lacan. “Mas essa própria crueldade implica a humanidade.” Ela é específica do homem. É porque, mais que nos referir a esse adágio de Plauto, Lacan nos convida a ler a fábula forjada por Balthazar Gracian, em seu Criticon. Este último sublinha a que ponto, “ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira [a ferocidade do homem], os próprios carniceiros recuam horrorizados” (“Le précipice de la vie”, Le Criticon, Tomo 1, Éditions Allia).
(8) “Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto de preservar a substância viva […]” (FREUD, 1930/1974, p.141).
(9) É o que traz Miller em Biologia lacaniana, ao falar de “pulsão do supereu”. “Mesmo se a fórmula não aparece assim em Freud, a pulsão de morte, tal qual emerge de seu texto, é a pulsão do supereu” (MILLER, 2004).
(10) O conceito de “agressão suicida do narcisismo” vem substituir a ideia de uma causalidade do crime em termos de autopunição que Lacan tenha desenvolvido alguns anos antes no caso Aimée. Lacan sublinha, na p.176: “Quanto à mola do desfecho, ele é dado pelo mecanismo que, bem mais do que à autopunição, eu referiria à agressão suicida do narcisismo” (LACAN, 1950/1998, p.176).
(11) Ver p.88: “Condensou a noção de sua doença com a do mal social, ou melhor, simbolizou a primeira pela segunda. […] Por um ato de violência, Paul tentou suprimir o kakon para usar a expressão de V. Monakow e de Morgue. Matar o tirano consistia para ele em matar a doença” (GUIRAUD, 1928/1994, p.88).
(12) “Isso porque o significante como tal, barrando por intenção primeira o sujeito, nele faz penetrar o sentido da morte. (A letra mata, mas só ficamos sabendo disso pela própria letra)” (LACAN, 1964/1998, p.862-863).
(13) Porque é já o que Lacan tinha tentado fazer com a libido narcísica, à qual ele atribuía um duplo valor de vida e morte.
(14) Lacan se refere aqui à relação essencial que une o sexo à morte. Somente essa questão essencial mereceria todo um desenvolvimento. Notemos unicamente que, desde que Lacan acentua a relação que une esses dois termos, no Seminário 11 (p.188, 194, 195) e em “Posição do inconsciente” (p.861-863), é em referência à biologia que ele se situa. Para os biologistas, a relação entre o sexo e a morte se explica pelo fato de que é a partir da reprodução sexuada que a morte aparece. Freud (1920/1976, p.65) retoma por sua conta essa teoria de Weismann em Além do princípio de prazer. Lacan também se refere a isso e, na sequência do Seminário 11, mostra como essa articulação do sexo e da morte está no coração das operações de alienação e separação que presidem o advento do sujeito.
(15) A formulação seguinte é de Éric Laurent em seu curso intitulado “A transferência”, Universidade Paris VIII, Departamento de Psicanálise, Seção clínica, 22/04/1992, inédito.
(16) Lacan (1969-1970/1992, p.43) o formula explicitamente. A repetição “é propriamente aquilo que se dirige contra a vida”. J.-A. Miller (2005, p.172) desenvolve igualmente essa questão: “Assim, a repetição, não é somente falhar o real, como Lacan articulou no Seminário 11, mas também ‘busca de gozo’. A repetição não é a expressão do princípio do prazer, mas, por si mesma, ‘vai contra a vida’. Esse é o deslocamento que, da repetição como expressão do princípio do prazer, faz da repetição a própria articulação da pulsão de morte.”
(17) Lacan (1972-1973/1985) sublinha que, na relação sexual, nós não temos jamais um acesso direto ao corpo do outro. O sujeito neurótico ou perverso somente copula com o falo que lhe barra o gozo do corpo do Outro. Não existe relação sexual, somente o amor permite nutrir a esperança de reencontrar o Outro.
(18) Esse poema, “As metamorfoses do vampiro”, faz parte dos Épaves, peças condenadas que foram censuradas durante o processo de As flores do mal, em 1857.
(19) A impotência, como sintoma neurótico, testemunha, com efeito, a implicação do complexo de castração.
(20) Maleval dá o exemplo de um paciente necrófilo que tinha suscitado numerosos estudos psiquiátricos no século XIX. O sujeito tinha desenterrado os cadáveres nos cemitérios e, presa de uma fúria destrutiva incontrolável, ocupava-se de picá-los, cortá-los em pedaços. “Seu extremo gozo era obtido, não pelo coito com o cadáver, mas pela sua partição…”, em uma tentativa para atingir, mais além da imagem corporal, nas vísceras da vítima, o objeto de gozo suposto encontrar-se ali (MALEVAL, 2008, p.159).
(21) “[…] numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” (LACAN, 1950/1998, p.146).
(22) Essa dimensão contingente da agressividade já havia sido sublinhada por Lacan, desde 1948, em um texto que levava ainda uma forte marca sociológica. Lacan (1948/1998, p.122-123) sublinhava a “preeminência da agressividade em nossa civilização”, em que é considerada como “de um uso social indispensável”, como um ingrediente necessário a todo espírito empreendedor.
(23) “Mas o que nos interessa aqui é a função, que chamaremos apaziguadora, do ideal do eu, a conexão de sua normatividade libidinal com uma normatividade cultural, ligada desde o alvorecer da história à imago do pai” (LACAN, 1948/1998, p.119).
(24) Lacan o aborda notadamente em 1960, em “Subversão do sujeito e dialética do inconsciente” (1960/1998, p.836).
(25) Ver também o comentário de Miller, “L’apologue de Saint Martin et de son manteau’”, Mental, Paris, n.7, p.7.
(26) “[…] a maioria dos sonhos — sonhos inocentes, sonhos sem afeto e sonhos de ansiedade — são revelados, quando as deformações da censura foram desfeitas como a satisfação de impulsos imorais — egoístas, sádicos, pervertidos ou perversos” (p.164).
(27) Do qual o ponto extremo nos é dado pelos atentados suicidas. Lacan (1959-1960/1991, p.324) o sublinha: “Só os mártires são sem piedade e sem temor. Creiam-me, no dia do triunfo dos mártires, haverá o incêndio universal.”

 


Tradução: Márcia Mezêncio
Referências
BAUDELAIRE, C. As flores do mal. São Paulo: Martin Claret, 2001.
COTTET, S. “Criminologia lacaniana”, Almanaque on-line, Belo Horizonte n.4, p.1-16, jan./jun. 2009. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque4.htm. Acesso em: jul. 2014.
FREUD, S. (1915a). “Os instintos e suas vicissitudes”. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.137-162. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.14).
FREUD, S. (1915b). “Reflexões para os tempos de guerra e morte”. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.311-339. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.14).
FREUD, S. (1915c). “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.375-377 (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.14).
FREUD, S. (1920). “Além do princípio de prazer”. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.17-85. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.18).
FREUD, S. (1925). “Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo”. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.159-173. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.19).
FREUD, S. ([1929]1930). “O mal-estar na civilização”. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.81-171. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.21).
GUIRAUD, P. (1928). “Os assassinatos imotivados”, Opção Lacaniana, São Paulo, n.9, p.87-91, jan./mar. 1994.
LACAN, J. (1932). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
LACAN, J. (1946). “Formulações sobre a causalidade psíquica”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.152-194.
LACAN, J. (1948). “A agressividade em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.104-126.
LACAN, J. (1949). “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.96-103.
LACAN, J. (1950). “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.127-151.
LACAN, J. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.238-324.
LACAN, J. (1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.537-590.
LACAN, J. (1960). “Subversão do sujeito e dialética do inconsciente”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.807-842.
LACAN, J. (1964). “Posição do inconsciente”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.843-864.
LACAN, J. “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.508-543.
LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MALEVAL, J.-C. “Fantasme nécrophile et structure psychotique”, Mental, Paris, n.21, p.150-164, set.2008.
MILLER, J.-A. “La agresividad en psicoanálisis” de Jacques Lacan. In: Agresividad y pulsion de muerte. Colombia: Fundacion Freudiana de Medelin, 1991.
MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”, Opção Lacaniana, São Paulo, n.41, p.7-67, dez. 2004.
MILLER, J.-A. SILET, Os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p.161-172.
MILLER, J.-A. “Nada mais humano que o crime”, Almanaque on-line, Belo Horizonte, n.4, p.1-6, jan./jun. 2009. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque4.htm. Acesso em: jul. 2014.

Éric Guillot
Éric Guillot – Psicanalista em Rouen, França. E-mail: erguillot@numericable.fr



Almanaque V. 7 – Nº 13 – 2º semestre de 2013

TRILHAMENTO

A linguagem como distúrbio do real – Miquel Bassols

O corpo e o Outro – Sandra Espinha

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista – Cartel Clínica do testemunho

INCURSÕES

Crianças à deriva: reflexões sobre a construção, o comentário de casos e a transmissão da psicanálise – Jeannine Narciso

Pais e mães atuais: a ciência como partenaire – Maria Rita Guimarães

“Os alicerço da terra”: notas sobre Ô fim do cem, fim… – Lucíola Freitas de Macêdo

Ver o circo pegar fogo: o que você está olhando? – Bruna Albuquerque

Insensatez do corpo e retalhos na carne – Cleyton Andrade

ENCONTROS

Incidências da Psicanálise nos dispositivos públicos – Guillermo Belaga

Função tóxica na clínica da psicose: remédio e/ou ruína? – Fabián Naparstek

DE UMA NOVA GERAÇÃO

Função tóxica na clínica das psicoses – Adriana Renna de Vita




Incidências Da Psicanálise Nos Dispositivos Públicos

GUILLERMO BELAGA

Em definitivo, o que fazer com aquilo que é necessário aceitar: que essa fissura, esse vazio, leva muito bem o nome trágico […] daquilo que não tem resolução, que não se paga nem com o castigo nem com o perdão. […]. Aceitar que nossa identidade coletiva tem esse vazio que ninguém poderá preencher, essa fissura com a qual devemos conviver, é algo sem dúvida inquietante, mas que não podemos desprezar (ARFUCH, 2004).

Preferi iniciar este comentário de um caso com as palavras de Leonor Arfuch, dada sua precisão para situar um ponto fundamental: o vazio constituinte de todo ser falante, essa fissura, mais claramente, um furo, com o qual temos que nos haver por habitar a linguagem. Vazio que, além de situar-se no trauma inicial, que, na história da psicanálise, se metaforizou como “trauma do nascimento”, que impossibilita a programação sem equívoco — no sentido dos computadores — do laço social, se faz presente também no trauma como acontecimento, nas contingências de uma vida; quando irrompe nas representações simbólicas que sustentavam, até esse momento, um sujeito, provocando-lhe a angústia mais generalizada.

Assim, a vinheta clínica que Daniel Riquelme[2] apresenta ilustra bem e ensina como a psicanálise se situa para operar frente a esse vazio subjetivo. Como responde a um trauma individual e social, nesse caso, a tragédia da ditatura militar na Argentina, o desaparecimento e assassinato dos pais e a expropriação dos filhos, rompendo sua identidade social e sua história de origem. Dessa maneira, Riquelme segue a orientação dada por Jacques Lacan quando definiu que “o inconsciente é a política”, conseguindo extraí-lo de uma esfera solipsista, colocando-o em relação com o Outro, com a Cidade, fazendo-o depender da História (BAUDINI, 2004).

Assim, poder-se-ia dizer que o psicanalista se responsabiliza por uma ação solidária com o desejo das Avós, desejo do Outro, que perturba o Mestre, que não consente com as identificações que propõe, situando-se nesse vetor (do lado do desejo das Avós), mediante o ato analítico em que subjaz outro desejo, o desejo do analista. Signo diferencial, que possibilitaria ao analisante encarar então o desejo do Outro (de origem) que se tentou foracluir — de forma mais ou menos bem-sucedida — e encontrar, finalmente, sua própria relação particular com esse desejo, encontrar sua própria narrativa, sua paleta biográfica, e seu modo de vida.

Nesse sentido, o que foi elaborado sobre o caso, sem dúvida, pode evocar diversas linhas de intervenção. Vou-me remeter àqueles pontos que, a princípio, mais me interrogaram e ressoaram.

O Problema Da Verdade, Do Trauma E Da História

Em um de seus livros, Jorge Alemán (2001) se pergunta sobre o esquecimento, sobre qual é o seu estatuto, se o esquecimento é uma omissão ou é um rechaço. Recorrendo à poesia, para obter as respostas, é dela que se desdobram dois tipos de poemas que tratam do tema:

a – Poemas do retorno: que falam sobre voltar a certo lugar para remediar o esquecimento.

b – Poemas do atravessamento: como o poema “Clown”, de Henri Michaux, paradigmático do atravessamento.

A marionete, cortando os fios que a atavam aos ideais, desprendendo-se da imagem de si mesma e da de seus semelhantes, atravessando a trama de ideias que os demais e ela mesma haviam forjado, por fim encontra o que lhe dá consistência de ser. Porém, nesse exemplo de atravessamento, também retorna o que é o sentido mais primordial. Desse modo, poder-se-ia concluir que, nas grandes vertentes do trabalho poético, atravessamento e retorno não são mais que um, ou um é o inverso do outro. Questão que a experiência analítica toma como sua, na qual precisamente atravessamento e retorno se encontram.

A análise que Heidegger faz do poema “Retorno à terra natal”, de Hölderlin, ilustra isso um pouco mais. O que, a princípio, parece ser um retorno à origem, a uma apropriação romântica da terra natal, que ia dar consistência a essa fantasia evanescente da tradição, transforma-se, nesse ato do retorno, em um atravessamento. Em coordenadas que ressoam no drama do caso clínico, Alemán assinala que o poema mostra que, na volta à terra natal, há algo que se recusa, que, alcançando o solo do familiar, se apresenta o estranho, que, apenas no poema do retorno, é que se alcança a terra natal, mas se a alcança em seu caráter mais estrangeiro. Assim, para Hölderlin, o poema conduz ao que se designa como “passar ao outro lado”.

A experiência tem, em seu seio, o unheimlich, o estranho, a “falta de lar” constituinte, e sua resolução implica cruzar a linha, um salto subjetivo com a consequente invenção. Assim, ambos os trabalhos, o poético e o analítico, têm como suporte fundamental as operações de abertura e de corte, em que se encontra o insuperável do esquecimento, que se contorna, desenha, escreve e, através de uma invenção, se nomeia.

Em sua ”Resposta a J. Hyppolite”, J. Lacan dá uma definição sutil do que entende por história. Parte da oposição entre Verwerfung, expulsão, abolição simbólica sobre a qual não se pode formular juízo de existência, e a Bejahung, afirmação primordial, emergência do símbolo, e pergunta: “O que acontece com o que não é deixado ser na Bejahung?” Acrescentando que o Verworfen não voltará a ser encontrado na história, se se designa com esse nome o lugar de onde o recalcado vem reaparecer.

Formar-se-iam assim duas vertentes. Uma, a do significante (em relação à Bejahung), em que o esquecimento contingente, o do recalque mesmo, volta transformando a memória; é o tratamento via retorno do recalcado.

A outra vertente é a da letra (do lado do que permanece Verworfen), que situa um esquecimento sob o modo lógico do necessário — excluído do sentido — relacionado à existência, a um resto indizível. Portanto, esse aspecto do tratamento é algo não historizável, é um vazio que permanece como um traço inevitável, que Freud chamou de “umbigo do sonho”. Em resumo, no percurso analítico, podemos distinguir: em princípio, o curativo, encontrar um sentido para o trauma como acontecimento, como irrupção do real. Pacificação que se consegue com uma inscrição no Outro. Mas também entendemos que o traço como marca do expulsado constitui uma fronteira, um limite topológico que une e separa o campo do sentido e um exterior fora de toda a historização. O sujeito, quando descobre que o Outro não é o lugar onde se aliena, onde se inscreve, aferra-se àquilo que resulta ser o ponto de amarração, ao que chamamos de objeto a e à letra. Essa borda heterogênea entre saber e gozo é o que se torna litoral para o sujeito e, justamente por se situar entre o dizer e o indizível, entre a decisão e o indecidível, resulta no saldo mais particular do tratamento.

Por Que Uma Instituição É Necessária? De Que Instituição Necessitamos?

A resposta poderia parecer óbvia, pensando que alguém, ao estar afetado pela repressão e pelo terrorismo político, necessita de um alojamento para se identificar frente ao que está fora. Sem dúvida, este poderia ser um aspecto possivelmente tranquilizador, mas não o mais determinante, inclusive parcial e até mesmo perigoso, porque deixaria o indivíduo situado em uma lógica de interior/exterior, em uma lógica de asilo e proteção, que não mudaria muito as coisas em relação à sua situação anterior.

Então, pensando que a situação é mais complexa, poderíamos generalizar e dizer que o sujeito moderno não pode estar sem uma instituição. Se entendemos que a instituição tem um duplo percurso semântico, entre regra e comunidade de vida. Nesse sentido, diariamente, se comprova como as instituições suprem a família.

Como reconhece Phillipe Ariès, o mundo pós-industrial, que se inicia no século XX, não foi capaz de manter a sociabilidade do século XIX, nem de substituí-la por uma nova, com o que se tenta e se exige da família que tome esse relevo impossível; uma hipertrofia de suas funções que não é capaz de assumir. Consequentemente, sua hipótese é a de que a crise atual não se deve buscar na família, senão na decadência da cidade e da sociabilidade pública. Daí que, por um lado, uma análise da época indica que a família tem uma missão impossível: suprir o que a cidade não pode oferecer, e, paradoxalmente, ao não poder cumprir essa função, o Estado deve prover o que a família não pode dar. Tema que se verifica com a infância, em que a criança começa a interessar ao Estado mais além da escolaridade; um exemplo disso é como a autoridade pública se ocupa das crianças em “risco”.

Desse modo, as instituições podem tentar suprir a família ou tomar para si responsabilidades da família, em que o Estado, na modernidade, considera que ela falha. Mas é necessário advertir que uma instituição que deixe de lado a particularidade do sujeito, colocando em jogo a psicologia das massas, não poderá ser uma suplência adequada da família, se consideramos que a família não pode ser digna e respeitável se não é o lugar em que cada um possa encontrar um espaço para o que é sua particularidade, já que devolver a particularidade ao sujeito é o contrário da intolerância e da segregação.

Assim, nossa prática ocorre com indivíduos que se encontram nesse novo regime social que corresponde a um mundo transformado pela ciência e a globalização econômica, em que o pai moderno é um pai que não pode assegurar a distribuição do gozo de maneira conveniente, em que as famílias já não contam com o Outro da Lei de outrora. Em suma, a sociedade atual deixou de viver sob esse mito. É o que sustentamos em nossa linguagem: a estrutura do Todo cedeu à do não-todo, que implica que não haja nada que constitua uma barreira que esteja na posição do proibido. O que faz com que o proibido já não seja difícil, que resulta contraditório com o movimento do não-todo. Dessa maneira, algo se dá sem encontrar limites, por exemplo, o consumo, mas também a precariedade do sujeito, o medo.

Deter-se nas novas organizações sociais tem suma importância, pois, como afirmava Lacan, o inconsciente obedece ao laço social, ou, com igual sentido, em uma definição contemporânea à já citada: “o inconsciente é Baltimore ao amanhecer”.

Transmite-se a ideia de que o conceito de inconsciente se conecta a um lugar, a um lugar estruturado como uma cidade, e, ao mesmo tempo, é indissociável de uma temporalidade. Do que se deduzem coordenadas clínicas fundamentais na prática da “urgência subjetiva”, da angústia, das catástrofes, etc., em que se deve contemplar uma estratégia frente ao espaço e ao tempo, como passo inevitável para sua resolução, dado que a topologia e o tempo se enlaçam ao redor da a-topia do sujeito.

Na Instituição

O lugar do analista na instituição e seus sintomas apresentariam dois aspectos (LAURENT, 2003). Primeiramente, está a instituição e, em um segundo tempo, coloca-se o sintoma em consequência do funcionamento institucional. Aqui, como se demonstra no caso, a interpretação sobre o sintoma — a pesquisa da história nos arquivos, a manobra para mudar o sujeito dessa posição — se realiza seguindo a escrita do matema da “Psicologia das massas”, de Freud, em relação ao ideal. Nessa vertente, a psicanálise da instituição consiste em indicar, da boa maneira, a falha do Outro: S(A/).

O segundo aspecto consiste em pensar a instituição não só como um conjunto de regras, mas também como uma comunidade de vida. Nesse sentido, J.-A. Miller fala de duas práticas da interpretação em relação ao ideal, destacando que o lugar deste em um grupo é um lugar de enunciação (MILLER, 2003).

Uma interpretação possível é a enunciada desde o lugar do ideal, o que resulta em um discurso massificante que repousa na sugestão. A outra é interpretar o grupo dissociando-o, remetendo cada um dos membros da comunidade à sua solidão, à solidão de sua relação com o ideal. Vertente desmassificante, que trata de despertar o sujeito para uma nova responsabilidade, inédita, que o enlace mais além de sua adaptação aos significantes-mestres

.


 

Tradução: Larissa Lara Rezende
Revisão da tradução: Márcia Mezêncio e Jorge Pimenta
(1) Este trabalho foi apresentado em Noches a la Carta da Escola de Orientação Lacaniana (EOL), “Incidências da Psicanálise nos Dispositivos Públicos”, em 28 de junho de 2004. Publicado originalmente em: LO GIÚDICE, A. (Comp.). Psicoanálisis, restituición, apropiación, filiación. Buenos Aires: Centro de Atención por el Derecho a la identidad, Abuelas de Plaza de Mayo, 2005, p.129-135.
(2) Belaga se refere ao artigo: RIQUELME, Daniel. “Filiación falsificada y estrago”, In: LO GIÚDICE, A. (Comp.). Psicoanálisis, restituición, apropiación, filiación. Buenos Aires: Centro de Atención por el Derecho a la identidad, Abuelas de Plaza de Mayo, 2005, p.63-69. O caso clínico relatado foi atendido pelo autor, psicanalista, membro da EOL-AMP, integrante da Área Terapêutica do Centro de Atención por el Derecho a la Identidad, Abuelas de Plaza de Mayo.

Referências
ALEMÁN, J. El inconsciente: existencia y diferencia sexual. Madrid: Síntesis, 2001, p. 81-107.
ARFUCH, L. Identidad: construcción social y subjetiva. Primer Coloquio Interdisciplinario de Abuelas de Plaza de Mayo. Buenos Aires: Abuelas de Plaza de Mayo, 2004, p.65-71.
BAUDINI, S. “ El inconsciente es la política o la normalidade mental como el fin del psiquismo”, Mediodicho, n.28, Córdoba, 2004, p.39-44.
LAURENT, É. “Dos aspectos de la torsión entre síntoma e institución”, In: Los usos del psicoanális. Primer Encuentro del Campo Freudiano. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. “Teoria de Turim sobre el Sujeto de la Escuela”, In: Qué política para el psicoanálisis? Colección de la orientación lacaniana. Buenos Aires, 2003.

Guillermo Belaga
Chefe do Serviço de Saúde Mental do Hospital Central de San Isidro. Psicanalista, membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL). Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: gbelaga@gmail.com.



Insensatez Do Corpo E Retalhos Na Carne

CLEYTON ANDRADE

O interesse deste texto é apenas o de tecer alguns comentários sobre o lugar do corpo na toxicomania como forma de manter aberto esse debate. Essa questão não vem marcada por nenhum ineditismo ou novidade, visto que, para nos restringirmos ao campo da literatura psicanalítica, ela remonta às contribuições freudianas. Evitando um recenseamento detalhado, destaco aquele que talvez seja o mais clássico extraído de Freud a respeito da questão. Refiro-me a “O mal-estar na civilização” (1930), em que o uso de drogas é uma das três saídas para o mal-estar, com a particularidade de ser, dentre as demais, a mais eficaz. O que confere tal eficácia e sua consequente condição de solução, segundo Freud, decorre dos efeitos das substâncias químicas sobre o corpo. Podemos extrair daí uma fórmula freudiana para a toxicomania: droga + corpo. Parece simples e ingênua, porém é uma tese que não encontrou até hoje nenhum antagonista à altura.

Ela nos sugere que, mesmo havendo uma infinidade de objetos e significantes intoxicantes, tal como os significantes da cadeia e do discurso, além da inequívoca toxidade da libido e do gozo, eles não bastam para explicar o fenômeno da toxicomania. Essas toxidades generalizadas nos tornam todos, de algum modo, toxicômanos. Porém, ao mesmo tempo, reservam um lugar de independência conceitual não assimilável à proposição “todo mundo é toxicômano”. Bastam significantes, libido e gozo para alguns efeitos tóxicos, mas eles são insuficientes para sustentar a nomeação “eu sou toxicômano”. Nomeação esta que não tem como se manter alheia ou independente da fórmula freudiana da toxicomania — droga + corpo.

A droga e o corpo são as condições mínimas para que se possa pensar esse fenômeno. Qualquer desmembramento eventual poderia resultar em discursos de valor especulativo, sem, contudo, responder à experiência clínica em sentido estrito ou amplo.

Longe de tentar propor uma tipologia clínica para a operação do uso do corpo na toxicomania, minha tentativa, em poucas palavras, é a de pensar que o uso do corpo tal como é feito na psicose pode ajudar a pensar a atualidade das duas faces da fórmula freudiana. Essa atualidade viria, principalmente, orientada pela composição lacaniana do paradigma joyciano para a psicose e para a segunda clínica. Penso que é por essa via aberta por Lacan que podemos manter vivo todo o vigor da junção entre droga e corpo apontada por Freud.

Diversos pacientes não conseguem viver sem drogas e acidentes que deixam expostas facetas da carne viva. Para alguns deles, as drogas e os acidentes compõem suas trajetórias ao longo da vida. Não é incomum que tais acidentes antecedam, histórica e logicamente, o uso de drogas, fazendo com que expressões como ”carne viva”, “detonar”, “destruir”, “rasgar”, “arrancar” apareçam como enxames torrenciais, sendo difícil dizer o que é mais presente nessas histórias: a droga ou a carne.

Após uma série de retalhos na carne, um sujeito[2] se recuperava de um grave acidente que lhe havia rasgado a perna, permanecendo dentro do quarto usando drogas. Um dia, a mãe entra motivada por um forte odor vindo de lá. É quando vê o estado da perna do filho: ela estava “apodrecendo”, “necrosando”. Essa falha no narcisismo, na imagem do corpo, quase lhe custara o membro. Algum tempo depois, uma contingência levou-o a trabalhar numa cozinha, sendo responsável pelo corte e preparo da carne, o que lhe poupou de cortar, rasgar e destruir a própria. Foi desse lugar que ele pôde reenlaçar o que se encontrava desenlaçado.

Houve um tempo em que esperávamos encontrar um elemento da neurose nos casos de toxicomania, mesmo que ao preço de um a menos de consciência implicada nessa empreitada. Era um tempo em que tentávamos fazer da neurose um modo de pensar a toxicomania. Isso, além de representar uma resistência aos pós-freudianos — que identificavam o toxicômano à perversão e à psicose — constituía uma forma de encontrar um sentido freudiano para o sintoma do uso de drogas. Esse empenho foi francamente contido pelo surgimento da noção de novas formas de sintoma, fundamental para as investigações sobre o tema da toxicomania.

Podemos nos perguntar se o risco que corríamos — em alguns momentos — ao adotarmos essa nova e importante perspectiva dos novos sintomas, não produziu como efeito uma noção negativa da toxicomania. A partir da leitura de Lacan, evitávamos a tentação de adotar uma concepção deficitária e negativa da psicose. Entretanto, o risco passaria a ser o de conceber a toxicomania como algo deficitário e negativo em relação ao sintoma, por exemplo. Um breve levantamento de textos de algumas décadas poderia nos acenar com uma percepção da toxicomania como resultado de algo que não se operou na neurose. Da tentativa de aproximação, passou-se a uma leitura quase pelo avesso.

Certa vez, chamou-me a atenção uma observação sagaz feita por Jacques-Alain Miller, ao comentar um caso de alcoolismo em uma mulher: trata-se, dizia ele, não de uma alcóolatra, mas de uma histérica que bebe. Essa distinção me parece, ainda hoje, de uma riqueza clínica peculiar. Ela nos permite separar o alcoolismo da histeria, mesmo que o álcool seja um objeto em comum.

O uso do corpo na toxicomania não passa pela identificação do desejo com possíveis manifestações corporais em que o corpo possa ser confundido com o desejo do Outro, ou com uma oposição a ele. É em virtude de que o alcoolismo de algumas mulheres pode vir a ser relido em termos de uma histérica que bebe, que não podemos nos autorizar a uma interpretação de que o uso do corpo na histeria seja o paradigma para pensar o uso do corpo na toxicomania. Nesse último, o uso não é marcado pela castração do Outro nem por um endereçamento. O corpo da histérica que bebe ainda se faz capturável pela leitura de um texto endereçado ao Outro, inteiramente assimilável ao que Freud transmitiu acerca do sentido do sintoma — mesmo que, de fato, a bebida dificulte tal leitura.

Na toxicomania, o corpo deixa de ser um espaço de leitura para ser reduzido à sua dimensão primária de uso. É verdade que o uso do corpo não é restrito a esses casos. Muito embora eles restrinjam o corpo à sua condição de servidão ao uso. O que a prática da droga evidencia é menos a própria substância do que o uso que se faz do corpo. Por isso, a crackolândia não é uma exposição de corpos decaídos e de modos obscenos de gozar pelas ruas das metrópoles. Eles não estão ali para mostrarem nem o uso da droga nem os corpos. A crackolândia é o novo fenômeno da hierarquia do uso do corpo e, consequentemente, do gozo sobre quaisquer outras formas do desejo. Encontrar ali um sentido regido pela norma fálica é, em última instância, a expectativa de conferir alguma significação a esse real das grandes cidades.

O uso do corpo pelo toxicômano não responde ao princípio da utilidade regida pelo contrato social regulado, por sua vez, pelo Nome-do-Pai. A assinatura do Pai não é reconhecida por aqueles que ali se reúnem. A crackolândia pode ser o exemplo de uma radical inobservância de tais princípios em prol de um uso específico do corpo. Parece estar em cena uma modalidade de gozo mais próxima da perspectiva do gozo autístico de cada um que ali se amontoa, e não de um gozo regulado pelo falo, pela civilização. Esse modo de tratamento do corpo e do gozo nos conduz a pensar a teoria e a clínica da psicose em função daquilo que elas nos apresentam como tratamentos possíveis.

Recorrendo novamente a outros tempos, é possível observar que essa clínica se ocupou com o problema do diagnóstico diferencial entre psicose e toxicomania. Hoje, parece-me mais frutífera a pergunta sobre os pontos em que pensar a psicose possa convergir para a possibilidade de pensar a toxicomania. Em outras palavras, se uma tradição psicanalítica e também psiquiátrica se valeu do paradigma da perversão para pensar o fenômeno toxicomaníaco, e boa parte da psiquiatria ainda insiste em confundir toxicomania com manifestações de uma psicose schereberiana, a orientação lacaniana toma outra direção. Esta pode apoiar-se no paradigma da psicose de Joyce.

O caso do pequeno Hans demonstra como um sujeito pode encontrar equivalentes fálicos apoiando-se no significante e no sentido. Por outro lado, tanto o toxicômano quanto o psicótico se vêm impedidos de contarem com esse recurso, ao menos na mesma medida. Nesse sentido, o gozo fálico não se apresenta como um índice da normalidade de um modo de gozo. Ao contrário, o que ele aponta é a própria anormalidade da qual padece um sujeito diante da não existência da relação sexual.

A inexistência da relação sexual, condição para a disjunção entre o gozo do corpo próprio e o Outro, impõe que o parceiro como sintoma seja o lugar vazio da interseção entre o simbólico e o real. A droga opera uma ruptura com o casamento anômalo que advém da inexistência da relação sexual e ao mesmo tempo sutura o lugar vazio do parceiro-sintoma com a substância, e com a insistência metódica do uso do corpo. Assim, a tentativa é de incidir uma negação na não relação, como se a positivasse. O parceiro se identificaria com o uso, tanto da droga quanto do corpo.

A interseção que está em jogo é entre o simbólico e o real, excluindo o imaginário. Esse enlace que exclui o imaginário, tal como se apresenta o sintoma na psicose, mostra-se como uma boa referência para pensar o sintoma na toxicomania. A insensatez do corpo em virtude da desvinculação com o Outro que proveria de sentido e significação o sintoma se enlaça diretamente com os retalhos na carne. Essa operação se mostra não interpretável. As diversas denominações fornecidas aos acidentes infligidos à anatomia não são dóceis à noção de significante, sendo refratários a uma adesão pelo discurso e à formação de cadeias. Carne viva, cortar, destruir, rasgar, etc., funcionam como enxames, como uma tempestade de letras que sulcam o terreno árido do real do corpo, da carne. A letra, por não se articular com outras, não demanda decifração. No mais, por estarem divorciados do sentido, esses cortes sobre a carne são como a expressão de um puro gozo da letra.

O corpo pode ser tomado com relação a cada um dos três registros. Com o Seminário 23, O Sinthoma, podemos falar que o corpo é imaginário. O problema é que o sintoma psicótico — e numa das formas possíveis de pensarmos o sintoma na toxicomania — o corpo que é colocado em cena exclui o imaginário. É possível pensar sobre falha da imagem do corpo, sobre a falha do narcisismo, como o lugar em que se instala um enlaçamento do corpo simbólico enquanto cadáver (MILLER, 2012), com o corpo real de gozo enquanto carne (MILLER, 2012). É um modo de pensar que se pretende oportuno para compreender o uso mortífero que alguns psicóticos podem fazer de seus acidentes tal como no episódio da carne morta, apodrecendo, que não gerou nenhuma estranheza por parte do sujeito.

A questão gira em torno do que o sujeito faz como expressão do seu esforço para localizar o gozo no corpo. Um neurótico pode-se apoderar de um discurso como método de tratamento do corpo. Enquanto que, fora do discurso, a incumbência do psicótico transforma-se na busca de um uso para o corpo enquanto carne. E nisso a toxicomania é uma oferta que vem a calhar. O uso do corpo se sobressai ao uso da linguagem para inscrever um gozo que não pode ser decifrado. A um sujeito que não tenha o que falar sobre os cortes que lhe retalham a carne talvez seja melhor que trabalhe com carnes.[3] Afinal, os cortes que passariam a ser feitos nos quilos que tem à sua disposição poderiam ter efeitos semelhantes aos de uma escrita. Não teriam absolutamente o mesmo estatuto da escrita de Joyce, é claro. Mas já seria um enlaçamento, um tratamento que sirva de apoio ao pensamento, o que antes não ocorria.

Com isso, poderia ser possível circunscrever um gozo bordejado pelos traços da lâmina da faca sobre a carne crua, impedindo que esse gozo transborde para sua própria carne. Frente à desorientação de uma experiência de vida e da deriva da libido, um sujeito pode inventar um método que vise a dar conta das perturbações tanto da linguagem quanto do corpo. A possibilidade, mediante o discurso analítico, de erguer uma prática do uso do corpo regulada pelo significante e pela nomeação talvez possa reinserir uma dimensão que antes se encontrava excluída.

(1) Apresentado no Núcleo de Pesquisa em Toxicomania e Alcoolismo do IPSM-MG.
(2) Caso apresentado e conduzido por Rachel Botrel.
(3) Saída encontrada pelo paciente do fragmento de caso apresentado.

 


 

Referências
BATISTA, M.; LAIA, S. (Orgs.). A psicose ordinária: a convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.
BATISTA, M.; LAIA, S. (Orgs.). Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010.
HARARI, A. Clínica lacaniana da psicose: de Clérambault à inconsistência do Outro. Rio de janeiro: Contra Capa, 2006.
LACAN, J. (1966). Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1975). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Trad. S. Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

Cleyton Andrade
Doutor em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, Professor Adjunto da UFAL. E-mail: cleytons@uol.com.br



Ver O Circo Pegar Fogo: O Que Você Está Olhando?

BRUNA ALBUQUERQUE

O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê as medidas socioeducativas para responsabilizar o adolescente pelo cometimento de um ato infracional. A questão central deste artigo é transmitir que o cumprimento de uma medida socioeducativa passa pelos efeitos de um encontro entre adulto e adolescente. Fazer função de adulto nesse contexto é tarefa atravessada pela necessidade de encarnar o Outro social para o adolescente em um modo de organização contemporâneo do mundo que não favorece tal perspectiva. Lancemos o olhar sobre alguns aspectos que estão em jogo nessa relação.

A reprovação à conduta infracional inscreve uma tensão entre controle (restringir a liberdade) e socioeducação (garantir direitos) que tem na figura do agente de segurança socioeducativo[2] um paradigma. Tomemos então o agente como um dos principais sujeitos que deve haver-se com o lugar de adulto no sistema socioeducativo. Partimos de uma prática institucional[3] que indica a presença de processos de identificação entre adolescente e agente. Acrescentam-se elementos importantes: a escolha por tornar-se agente, às vezes, ancorada numa vontade de ser policial, marcada por um fascínio pelo significante segurança da função, associada a um possível contexto socioeconômico e cultural semelhante. Assim, destacamos uma dimensão fundamental que recobre o desafio de se colocar como adulto — a distinção de lugar — e que se revela de forma explícita nos modos de fala e seus efeitos na execução da medida.

Quem Sou Eu, Quem É O Outro?

Vez por outra, constata-se um modo de falar “igualitário”: agentes e adolescentes falam de maneira semelhante e torna-se difícil distingui-los. Esse falar pode apresentar-se sob a forma de um tipo de comunicação dito “de cadeia” que não parece diferir da fala “do mundão” que é utilizada pelos adolescentes em seu contexto, ou seja, algo do mundão se perpetua na instituição. Tal maneira bruta de se servir da linguagem, marcada por uma fala empobrecida, sem fineza, permeada de jargões e palavrões, certamente favorece uma indistinção de lugar.

Diante do efeito de indistinção, o lugar do agente, na relação com o adolescente, encontra-se numa encruzilhada: “Os agentes não têm proposição socioeducativa, ou eles partem pro pau, ou não fazem nada”, diz um diretor a respeito dos agentes. Não é raro ver que a posição tomada pelo agente pode oscilar entre a “guerra” e o “ver o circo pegar fogo”. Qual seria então a justa distância, o parâmetro que permitiria localizar o lugar do agente? Qual posição para os agentes: estão numa posição de espelho, como agentes do poder, ou numa posição de terceiro que reenvia a um registro assimétrico, ou seja, educativo e submetido à lei?

Desmunidos diante da agressividade e dos insultos dos adolescentes, os agentes podem responder de uma maneira “espelhada”. Como se depreende na fala de um agente com relação a um jovem: “ele me deu um chute, eu dei um chute de volta na bunda dele”. Ou, ainda, na fala de um diretor de segurança sobre o trabalho de sua equipe: “o mais importante é que os agentes não querem fazer o trabalho deles; é totalmente igual, o adolescente diz ‘desgraçado!’ e o agente responde ‘é você!’”.

O que é colocado pelo adolescente lhe é reenviado exatamente da mesma forma. Diante desse “eco”, o adolescente se depara com um duplo de si mesmo, num jogo interminável de espelho que reenvia a um processo marcado pelo registro imaginário e toda a dimensão de alienação e agressividade que lhe é própria. Torna-se difícil distinguir lugares, uma vez que se trata de um reconhecimento imaginário que convoca o pequeno outro, o semelhante, e instaura uma relação de dependência que impede a tomada de responsabilidade de ambos os lados (LEBRUN, 2008). “Olho por olho, dente por dente” também é frequentemente o modo de funcionamento dos próprios adolescentes e se opõe ao processo educativo e civilizatório marcado pela perda inerente ao pacto simbólico.

A distinção de lugar se constitui a partir da maneira de se servir da palavra. A noção de autoridade como algo simbólico articula essa maneira de uso da fala a uma responsabilidade por suas próprias contradições, um engajamento no falar que caracteriza uma posição de adulto com relação à Lei. O adulto, ao contrário da criança, assina aquilo que diz (LACAN, 1953-1954/1998). Onde não há um terreno propício para o surgimento de uma relação de autoridade, quer dizer, um reconhecimento da diferença entre os diversos lugares, a tomada de responsabilidade é colocada em apuros. A posição de adulto é ancorada na construção da diferença que permite a distinção de gerações e instala a responsabilidade de uma geração à outra. Ser adulto diante de um adolescente tem a ver com o modo de se responsabilizar por aquilo que se diz do lugar de sua geração, para ensinar à geração seguinte algo sobre um uso adulto da palavra (DUFOUR, 2007).

A dialética própria ao sujeito pode ser compreendida como uma dialética de identificação (LACAN, 1961-1962). Ao tratarmos da identificação, a alteridade é imediatamente colocada em primeiro plano. Lacan (1961-1962) nos adverte quanto à importância de distinguir a identificação que acontece na relação de um outro a outro daquela, simbólica, que se passa entre outro e Outro.

Em 1921, Freud apresenta o conceito de identificação sistematizado em três categorias. É o segundo tipo de identificação apresentado por Freud (1921/2001) e sua correlação à questão do significante que conduziram Lacan (1961-1962), durante suas investigações a respeito desse processo. Lacan (1964/1973) afirma ter colocado em destaque a segunda forma de identificação para dela poder extrair o traço unário, o fundamento do ideal do eu. É a identificação simbólica, como origem do sujeito, que está em jogo aqui, e o traço unário como a forma mais enxuta para ilustrar a essência do significante. O traço unário pode ser tido como diferença pura, uma vez que é o significante que introduz a diferença no real. O sujeito não surge do idêntico, mas da diferença. Esse tipo de identificação é, ao mesmo tempo, constituição e divisão do sujeito na relação com o grande Outro. A partir da identificação simbólica, concluímos que o sujeito apenas pode surgir de uma passagem pelo grande Outro, na medida em que este é marcado pelo significante. O sujeito depende do significante, e este lhe é dado pelo campo do grande Outro (LACAN, 1964/1973). A constituição do ideal do eu, como instância psíquica, pode ser considerada de importância capital para a inserção no laço social via grande Outro. Quanto à identificação imaginária, passemos ao circo.

Braços Cruzados, Pés Na Parede: Adulto Ou Espectador?

“Braço cruzado, pé na parede”, expressão utilizada para designar aquele agente-vigilante, não faz mais do que sujar as paredes com a planta do pé. A referida posição paralisada nos remete a outra também representativa dos agentes que, diante de situações de conflito, querem apenas “ver o circo pegar fogo”.

Numa unidade socioeducativa recém-inaugurada, havia agentes e adolescentes na quadra de esporte. Os adolescentes começam tranquilamente a destruir o jardim ao lado da quadra e as traves de futebol. Os agentes permanecem com os braços cruzados, olham a destruição, mas não fazem nada. A cena gravada pelas novas câmeras de vigilância da unidade é surpreendente: os agentes completamente imóveis, espectadores do circo.

Sabemos que circo era o local para assistir a corridas e espetáculos na Roma antiga. Significa também tenda ou arena circular na qual se assiste a diversos números: cenas cômicas, acrobacias, magia, apresentações com figuras bizarras como a mulher barbada e números perigosos com facas. Na linguagem familiar, circo pode designar atividade desordenada, agitação e desordem.

O circo nos reenvia a um registro principalmente imaginário. Um registro da fantasia repleto de personagens inusitados: palhaços, animais ferozes, mágicos, homens muito fortes, trapezistas e anões. O desafio e a contestação do limite estão presentes o tempo inteiro. Desafia-se a morte, o tempo, a altura, o medo e frequentemente estamos na dimensão da relação de força. Num mundo preferencialmente imaginário, sonha-se poder fazer e ter tudo o que se quer. Junta-se ao circo o elemento fogo, tão fascinante para o ser humano desde o início de sua existência.

Quando os agentes estão ali para “ver o circo pegar fogo”, prevalece a relação à imagem do semelhante. O registro imaginário é fundamental para a constituição da subjetividade humana, mas tal como os outros registros, não pode funcionar sozinho. Quando o imaginário toma a cena, deparamo-nos com um efeito de “encantamento de espelho”. Um exemplo nos seria dado se pudéssemos conceber a cena do estádio do espelho (LACAN, 1949/1998) sem a presença da mãe. Quer dizer que sem a encarnação do grande Outro que vem autentificar a imagem e introduzir-nos ao registro simbólico, permanecemos alienados no nível da instância imaginária que é o eu e não acessamos a dimensão significante do sujeito. O signo que a criança procura no adulto, no estádio do espelho, é o protótipo de seu ideal do eu, instância simbólica, representativa da identificação ao traço unário, responsável por regular as identificações imaginárias aos outros semelhantes.

Na relação imaginária dual, tomada pela dimensão narcísica aprisionante que não nos leva muito além da relação de força, o acesso à dimensão simbólica que permite o laço está barrado. A questão que está colocada é a impossibilidade de se ver a partir de um ponto de ideal que transcende e sustenta a relação dual. Para Lacan (1964/1973), o ponto do ideal do eu é aquele a partir do qual o sujeito se vê como visto pelo outro.

Para sair do campo do narcisismo e tocar a lógica do significante, campo do sujeito, é preciso se haver com a dimensão da falta. Pode-se estar no registro simbólico exatamente porque há coisas que não se inscrevem que estão justamente fora da lógica significante. Por isso, talvez, a fascinação pelo circo, onde aparentemente não é preciso lidar com a falta e pode-se chegar às últimas consequências. Num espetáculo, pode-se crer, ainda que por instantes, que tudo é possível: desafiar o limite e a morte, voar, desaparecer uma mulher, colocar a cabeça na boca do leão, ser atirado de um canhão e engolir fogo.

Os agentes hipnotizados pela atitude dos jovens que parecem negar a existência do limite tornam-se prisioneiros do espelho, fascinados por uma imagem à qual eles podem até mesmo se identificar: “eu te vejo fazendo aquilo que eu gostaria de fazer no seu lugar”. Por vezes, os próprios agentes parecem precisar de um adulto.

Para Lesourd (2006), todo laço social se constitui a partir da organização das diferenças e da localização dos limites propostos pelos discursos sociais. Ou seja, o Outro social deve propor referenciais de diferenciação que permitam a cada um construir-se subjetivamente. Os discursos organizadores do laço social ordenam a questão da diferença e distinguem lugares. A ausência de delimitação observada pode impedir a distinção necessária para um trabalho educativo. Com Kammerer (2000), concluímos que aquele que faz função de adulto sustenta um lugar de saber algo sobre as questões que atormentam o sujeito adolescente, para transmitir que a realização de seu desejo, exatamente da maneira como ele gostaria, é proibida pela lei.

O trabalho socioeducativo diante de um ato tem a ver com “aprender”[4] ao adolescente o valor da palavra. A partir de uma fala portadora de diferença, que se opõe a uma falação bruta e empobrecida, o adulto transmite que conhece e sustenta seu lugar. Como marcaram os adolescentes franceses:[5] o bom educador é aquele que não é “duas caras”, que respeita a lei da instituição e do país, sem estar totalmente alienado a uma regra de ferro.

(1) Referência à obra de Banksy What are you looking at? e a seu questionamento sobre o uso das câmeras de vigilância e os modos de controle no mundo atual. Neste artigo, abordaremos uma situação captada pelas câmeras instaladas em uma unidade socioeducativa: os agentes olham os adolescentes enquanto são olhados.
(2) Em Minas Gerais, as medidas socioeducativas de internação e semiliberdade (as mais gravosas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) são executadas pela Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE) da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) e contam com a figura e a função do agente de segurança socioeducativo entre os profissionais que trabalham no sistema socioeducativo. Os agentes estão no corpo a corpo cotidiano com os adolescentes.
(3) A autora deste artigo coordenou o Núcleo de Seleção da SUASE (na época SAME) e o processo de construção do perfil do cargo do agente de segurança socioeducativo nos anos 2005 e 2006. Em 2007, respondeu pela Diretoria de Orientação Socioeducativa. Atualmente, é diretora de Gestão da Medida Socioeducativa de Semiliberdade.
(4) Referência ao verbo francês “apprendre” que significa tanto aprender quanto ensinar (fazer saber).
(5) O recorte de um momento de oficina realizado com os adolescentes franceses no Centro Educativo Reforçado (CER) ilustra algo do que está em jogo com relação ao lugar do adulto. Ao mostrarmos fotos e vídeos das medidas socioeducativas em Minas Gerais, o tema que tomou a cena foi “O que é um bom educador?”. Os jovens explicaram que um bom educador é aquele que é justo, aquele que respeita a lei, a lei francesa, as leis do CER, designando com precisão o lugar do educador: tem a ver com respeitar a lei e reconhecer sua função.

 


Referências
BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Secretaria Especial dos Direitos Humanos; Ministério da Educação, Assessoria de Comunicação Social. Brasília: MEC, ACS, 2005.
DUFOUR, D. R. L’art de réduire les têtes: sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total. Mesnil-sur-l’Éstrée: Éditions Denoël et Société Nouvelle Firmin-Didot, 2007.
FREUD, S. (1920). Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XVIII).
KAMMERER, P. Adolescents dans la violence: médiations éducatives et soins psychiques. Mesnil-sur-l’Éstrée: Éditions Gallimard et Société Nouvelle Firmin-Didot, 2000.
LACAN, J. (1949). “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1953-1954). Le Séminaire, livre I: les écrits techniques de Freud. Paris: Éditions du Seuil, 1998.
LACAN, J. (1961-1962). Le Séminaire l’identification. Inédito. Transcription des séminaires de Lacan. Disponível em: <http://gaogoa.free.fr/SeminaireS.htm>. Acesso em: 12 fev. 2009.
LACAN, J. (1964). Le Séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1973.
LEBRUN, J. P. Clinique de l’institution: ce que peut la psychanalyse pour la vie collective. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érès, 2008.
LESOURD, S. Comment taire le sujet? Des discours aux parlottes libérales. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érès, 2006.

Bruna Albuquerque
Mestre em Psicologia, Psicopatologia e Estudos Psicanalíticos, pela Université de Strasbourg, França. Diretora de Gestão da Medida de Semiliberdade da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE). E-mail: bruquerque@gmail.com



“Os Alicerço Da Terra”: Notas Sobre Ô Fim Do Cem, Fim…

LUCÍOLA FREITAS DE MACÊDO

I.

O delírio e a escrita de Paulo Marques de Oliveira conjugam ciência e religião: um delírio de fundo religioso e cosmológico é aparelhado pelo discurso da ciência, ao modo de um manual explicativo, com vide bula e modo de usar. Ele é, sobretudo, um orador, que não apenas escreve, mas desenha seu discurso. Procede a uma escrita da fala, em uma língua própria, a sua língua fundamental, permeada de neologismos. Em Ô fim do cem, fim… (2011), testemunha sobre seu inconsciente — a céu aberto — e sobre o modo como é habitado pela linguagem. Escrevendo sua fala, vai encontrando, também, como seus escritos atestam, seu modo singular de habitá-la.

Para Deleuze (1997), a psicose e sua linguagem são inseparáveis de um procedimento linguístico. Se, na neurose, navega-se nos mares da significação, nas psicoses, perguntaremos sobre o procedimento linguístico que lhe é específico: o procedimento começa a funcionar quando a relação entre as palavras e as coisas não é mais de designação; quando a relação entre uma proposição e outra não é mais de significação; e quando, por fim, a relação entre uma língua e outra já não será de tradução. É aquilo que manipula as coisas imbricadas nas palavras, e também aquilo que, de uma proposição a outra, constrói toda uma extensão de discursos, de aventuras, de cenas, de personagens e de mecânicas, e também isso que decompõe um estado de língua em outro e com essas ruínas, com esses fragmentos, com esses tições ainda incandescentes, inventa um novo cenário, outra língua. Quando a designação desaparece, quando a comunicação das frases pelo sentido se interrompe, quando o código é abolido, diante do apagamento de alguma dessas dimensões da linguagem: um órgão se erige, um orifício entra em excitação, se erotiza, e um aparelho de linguagem, um procedimento, poderá emergir (FOUCAULT, 2001, p.309-311).

Lanço a vocês a questão: qual é o procedimento de linguagem inventado pelo cientista Paulo Marques de Oliveira?

II.

“Estranhos poemas” é como Michel Foucault designa não o texto, mas a própria vida que o escreveu. Estranhos poemas são os escritores anônimos dos séculos XVII e XVIII visitados por ele nos arquivos de internação do Hospital Geral da Bastilha e nos arquivos da Biblioteca Nacional, aos quais dedica o seu artigo: “A vida dos homens infames” (1999b, p.389-407). O sonho de Foucault era o de, através da beleza e da poesia, do estilo clássico daqueles breves registros, datados de uma época ainda não impregnada pelo tecnicismo dos manuais diagnósticos, restituir a intensidade daquelas vidas, mas, “carente do talento necessário” para fazê-lo, contentou-se em dar voltas em torno delas.

O que encantou Foucault, naqueles escritos, foi sua luminosidade fulgurante, pois que revelam, ao fio da linguagem, um esplendor, uma violência que desmente, aos nossos olhos, a pequenez do caso e a mesquinharia das intenções: as mais lamentáveis vidas são ali descritas, e sua ênfase, que parece convir às vidas mais trágicas. Mas o que se extrai desses escritos é um efeito cômico, uma vez que se apela a todo poder das palavras, à soberania dos céus e da terra, em nome das desgraças as mais corriqueiras. Sua existência se inscreve no abrigo precário dessas palavras, encontradas ao acaso, por alguém inserido na ordem dos discursos e que faz desses estranhos poemas seres de quase ficção.

Foi assim que me senti diante da intensidade cravada na ponta da caneta e da profusão poética do “livro luz”, “o primeiro e derradeiro”, do cientista Paulo Marques de Oliveira. Em sua caprichada caligrafia, na delicadeza das suas ilustrações, experimentei a beleza e o espanto, a emoção, o riso, a surpresa e o calafrio causados pela leitura de seu “livro didático”, “a ensinar o sistema da bateria onde moram as nações, o Senado Federal como guverna, como faz o forno automático produtivo e os anéis de plantio, como trata do gorgulho nos siriais, a germinação dos viventes vertebrados e invertebrados, o modo de fazer a irregação, a medição cúbica de uma lagoa, com faz o plantio da bananeira, como trata do gado, do pasto e o carrapato, os alicerço da terra, a primeira carroça feita por Caim, o mapa da ôca universal, como faz a água transformar em vinho, como faz a caxaça da vida, o pudinho de bom xixi, como faz um prédio de duzentos andares, como Adão e Eva foi germinado, a semente do homem, o que é imjustissa, como faz o parto cem osar cesariano das clínicas, como fazê uma operação de hérnia, cadeira para quem trabalha em escritório, como gera o pinto no ovo, norma de carta para comdolência em falecimento, como faz xuveiro de água morna com lampião” (2011)…

O cientista Paulo Marques de Oliveira, “astrofísico, teólogo, sismografista e profulgenciado”, escreve seu compêndio, esse livro que “é luz do mundo: primeiro e derradeiro”, um “livro didático para todas as gerações”, que irá “brilhar semilhante a estrela da Álva”. À medida que o escreve e o ilustra com esmero, inventa seu procedimento e, com ele, uma ordem para o mundo, com “seus alicerço” e suas leis de funcionamento.

III.

Em 1933, em “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência”, Lacan chama a atenção, pela primeira vez, para a riqueza das produções plásticas e poéticas de sujeitos psicóticos, numa época em que a psicose ainda era amplamente concebida em termos de déficit, pela psiquiatria.

Já em 1955-1956, no Seminário 3, as psicoses, a propósito de Memórias de um doente dos nervos, de D. P. Schreber (1985), é enfático ao afirmar:

[…] se ele é com toda certeza um escritor, não é um poeta… há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa (LACAN, 1955-1956/1985, p.94).

A poesia, continua Lacan, faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, de Proust, ou de Gérard Nerval. Ela consiste na criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo, mas não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber. Ele é habitado certamente por todas as espécies de existências improváveis,

[…] mas cujo caráter significativo é certo, é um dado primeiro, e cuja articulação se torna cada vez mais elaborada à medida que avança seu delírio. Ele é violado, manipulado, transformado, falado de todas as maneiras, é, eu diria, tagarelado (LACAN, 1955-1956/1985, p.94).

Tudo o que ele faz existir é de alguma maneira vazio dele próprio. E adverte:

As produções discursivas que caracterizam o registro das paranoias desenvolvem-se com toda força, aliás, a maior parte do tempo, em produções literárias, no sentido em que literárias quer dizer simplesmente folhas de papel cobertas com escrita… vocês percebam o que falta aqui ao louco, por mais escritor que ele seja, mesmo a esse presidente Schreber que nos fornece uma obra tão surpreendente por seu caráter completo, fechado, pleno, acabado (LACAN, 1955-1956/1985, p.93).

Não haveria, portanto, na obra do escritor louco, o sentimento de uma experiência original na qual ele estaria incluído como sujeito. Seu mundo aparece esvaziado da presença daquele que testemunha. Com as folhas de papel cobertas com escrita, o louco buscaria integrar seu delírio em uma rede de sentidos e significações.

Outro aspecto distintivo entre o escritor louco e o poeta é assinalado por Lacan no Seminário 5, as formações do inconsciente (LACAN, 1957-1958/1999) e diz respeito à utilização das figuras de linguagem, metáfora e metonímia: não encontramos no texto do escritor louco o uso da metáfora, que é, por sua vez, um elemento constante, e mesmo paradigmático do fazer poético. Há uma preponderância da metonímia, das relações de contiguidade em detrimento daquelas de similaridade (LACAN, 1957-1958/1999). Com a abolição da função metafórica, não há intervalo ou substituição de um significante por outro (S1-S2). Sem esse intervalo, não haveria enunciação. Apenas uma chuva de enunciados. Ao invés de o S2 assinalar o sentido produzido no campo do Outro, ele retorna no real, produzindo o efeito e a certeza delirantes, ou então se cola ao S1, produzindo o efeito de holófrase. Tem-se uma série de S1s sem S2. Uma enxurrada de significantes em bloco, não desmembrável, em sequência monolítica e sem intervalos.

IV.

Lacan se interessou pela obra de Joyce porque este lançou mão de um procedimento de escrita que desconsidera completamente a distinção entre o significante e o significado, subvertendo o que se entendia até então por literatura, pois não necessita do recurso à metáfora como paradigma do fazer poético. De acordo com Miller, nesse momento de seu ensino, Lacan se arriscará a tratar a obra de arte, sobretudo a obra escrita, a partir da pulsão, “a partir… da pulsão escritural. Ela deve ser entendida no autoerotismo do falasser” (MILLER, 2011-2012). A ênfase será posta, desde então, em sua vertente econômica e na extração da libido do corpo. A linguagem, nessa vertente, não visa ao sentido. Concerne ao real do corpo de gozo. Miller (2013) explicita, ainda, a propósito das elaborações de Lacan sobre a escrita, o que chama de “teoria da dupla escritura” (MILLER, 2013, p.16): há uma escrita que está ligada à palavra, se constituindo como uma precipitação do significante (em alusão a “Lituraterra”). O que está em jogo, nessa vertente da escrita, é a precipitação do significante fônico, na medida em que o significante pertence à fala; na medida em que o significante é tido como um fenômeno da fonação. A fala é capaz de depositar-se sob a forma de escritura e ser recomposta a partir dessa marca deixada pelo significante. O que se deposita, sob a forma dessa escrita, é isso de que a voz, com suas modulações, é o suporte.

Mas há outra escrita que nada tem a ver com a fala e com a voz. É um puro traço escrito — o desenho. O nó borromeano representado, desenhado, é dessa ordem. No nó, há escritura, mas esta se apresenta desarticulada da voz e da fala portadora de sentido. Essa escritura não vem do significante, não é da ordem da palpitação do significante, e preserva uma autonomia em relação ao simbólico, não se articulando ao sentido. Interroga-se se essa dimensão da escrita não se prestaria ao horizonte do uso, de um uso da escrita que não se prestaria, por sua vez, à representação, mas ao erotismo do sujeito, à sua satisfação pulsional, ao nível do que Miller chamou de pulsão escritural, quando deu o exemplo de Joyce, que escrevia, sobretudo, para si mesmo, e cujo motor da escrita não era um ideal.

Parece-me que a escrita do cientista Paulo Marques de Oliveira, de modo particular, e a escrita cujo motor seja o delírio, de um modo mais amplo, se deem a ler nessa dupla vertente: por um lado, a da precipitação do significante, quando se trata do esforço de constituir, através do delírio, uma rede de sentido; mas, também, aquela de uma pura satisfação pulsional, movida pelo autoerotismo do falasser. De modo que caberia interrogar, acompanhando Lacan em suas elaborações sobre a escrita ao longo de seu ensino, se não se poderia afirmar que, para cada procedimento de escrita, haveria uma poética que lhe é própria.

Ricardo Aquino, diretor e curador do Museu Bispo do Rosário, observara que, ao criar suas obras, Bispo criava a si mesmo, trabalhando sem descanso, movido por uma força pulsional constante, tecendo com os restos e as sobras que encontrava: utilizava moedas, botões, talheres, canecas, potes e produtos utilitários, deslocados de suas funções originais, e, em seguida, catalogava seus produtos, numerando, listando, colocando placas identificadoras. Aquino nomeou o procedimento de Bispo do Rosário de “poética do inventário” (NAHAS, 2011, p.189). A poética do inventário se inscreve, por sua vez, nas poéticas da modernidade, que são poéticas da ruptura.

Mallarmé (1842-1898) inaugura, com o poema “Um lance de dados” (1897), publicado, pela primeira vez, em 1897, na revista Cosmopolis, um novo gênero de poesia: liberado de sua estrutura linear, desprovido de significação final, marcado por inversões sintáticas, pela suspensão do tempo e desprovido de sujeito. Ele abre as portas para uma nova concepção do poema e da poesia (CAMPOS et al., 1974).

Em sua análise da relação entre as palavras e as coisas, Foucault (1999) afirma que, a partir do século XIX, “[…] a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa” (FOUCAULT, 1999, p.61). Surge, a partir de então, uma nova legibilidade. O que era ilegível nas folhas de papel cobertas com escrita ganhará um lugar entre os discursos: as folhas de papel cobertas de escrita do cientista Paulo Marques de Oliveira fizeram-se obra, um livro muito bem editado, além de matéria viva do filme dirigido por Cao Guimarães, do qual acabamos de assistir um fragmento, e objeto de criação da última coleção do estilista mineiro Ronaldo Fraga. Seria possível, depois de tudo, afirmar que o procedimento do cientista Paulo Marques de Oliveira não é poesia?

(1) Texto apresentado por ocasião do Seminário Teórico “A ciência e a escrita do delírio”, no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicose.

 


Referências:
CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, D. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1980.
DELEUZE, G. Louis Wolfson, ou o procedimento, In: ______. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997, p.17-30.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999a.
FOUCAULT, M. “La vida de los hombres infames”, In: ______. Obras essenciales volumen II. Barcelona: Paidós, 1999b, p.389-407.
FOUCAULT, M. “Sete proposições sobre o sétimo anjo”, In: ______. Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.299-315.
LACAN, J. (1955-56). Seminário 3, as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1957-58). Seminário 5, as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999.
LACAN, J. (1933). “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência”, In: ______. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p.375-380.
MILLER, J.-A. Seminário de Orientação Lacaniana “O ser e o Um”, Lição XIV, 2011 (inédito).
NAHAS, V. “Retrato do artista como louco”, Arteira, Florianópolis, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina, n.4, 2011, p.187-190.
OLIVEIRA, P. M. Ô fim do cem, fim… Belo Horizonte: Vereda, 2011.

 


Lucíola Freitas De Macêdo
Analista praticante, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, Presidente do Conselho e Diretora de Ensino do IPSM-MG, Doutoranda em Psicanálise e Estudos da Cultura (FAFICH/UFMG). E-mail: luciola.bhe@terra.com.br.



Pais E Mães Atuais: A Ciência Como Partenaire

MARIA RITA GUIMARÃES

Seria possível pensar no “atual” dos pais e da maternidade — entendida no sentido mais amplo — sem a presença massiva da ciência? Tentaremos destacar alguns pontos passíveis de nos encaminhar na questão.

O pai que não sabe o que fazer e que recorre ao especialista é o paradigma da paternidade de nossa época, mas, mesmo hoje em dia, tem-se a resposta à pergunta: “o que é um pai?”.

Lacan interroga. “Qu’est-ce qu’un père?” (LACAN, 1957/1994 p.205), e os elementos de resposta que auxiliam sua elaboração são absolutamente atuais. É com uma ilustração “la plus saisissante” que Lacan fala do “X da paternidade”. Trata-se de uma novidade que vem da América do Norte, e seu relato é surpreendente: uma mulher, desde a morte de seu marido, com quem ela tinha um pacto de amor eterno, a cada dez meses, dava à luz um filho do falecido. O congelamento do sêmen, naquela época, era algo absolutamente novo e produzia indagações. Lacan se serve do exemplo para retomar a noção do pai simbólico como sendo o pai morto, mas acrescenta: nesse caso, o pai real é também o pai morto. Naquela data, todavia, o “pai real” se confunde com o pai da realidade, disjunção que Lacan promoverá em seu ensino anos mais tarde. Em 1957, a ilustração permitiu a Lacan realçar a distância entre o que seja a função da procriação e a noção do que é, afinal, um pai.O que Lacan está formulando e que dirá, em 1967, é que o “X da paternidade” é o lugar do pai como vazio, necessário ao cumprimento de sua finalidade; para que opere como função, que é, afinal, a nomeação do desejo. “Que o desejo não seja anônimo”, como disse, em 1969.( LACAN,1969-2003,p.369) Sem dúvida, a questão do desejo e da mediação do nome do pai inquieta Lacan, pois, como disse, “no futuro, se fabricarão filhos diretos de homens de gênio”, e, em consequência de tais fatos, o pai sofreria um golpe em sua palavra de maneira ainda mais radical.

A questão é então saber como, por que via, sob que modo, se inscreverá no psiquismo da criança a palavra do ancestral, da qual a mãe será o único representante e o único veículo. Como é que ela vai fazer falar o ancestral enlatado (LACAN, 1956-1957/1994, p.386).

Hoje em dia, a questão é de ordem enlouquecedora, tal como se pode ler no seminário alemão Der Spiegel em setembro de 2013.(1) Segundo a publicação, o departamento para as crianças e saúde pública recebeu um informe de que “o homem deu à luz em casa.” O homem, um transexual que manteve seus órgãos sexuais femininos, deu à luz “um menino, depois da inseminação artificial”. Porém, requer ser registrado como “pai” no registro civil e não como mãe, “uma demanda que a administração respondeu favoravelmente.” A surpresa do caso não fica por aí: mais que isso, o “pai” da criança “[…] solicita que o sexo do bebê não seja declarado”, demanda que foi recusada. Esse caso recente extrapolou a administração de Berlim, mas não se trata de acontecimento único. Também sob outras modalidades de forçamento executadas através das técnicas da procriação, podem-se encontrar inúmeras ilustrações do sem limite instaurado no campo das relações e identificações dos lugares familiares: o real foi tocado. O preocupante é que, agora, não somente o real do corpo da mulher é tocado, porém, igualmente, o corpo do “novo homem”, efeito da ciência. Podem-se acompanhar as dificuldades colocadas para a justiça e a necessidade de inscrições de novas consideracões jurídicas sobre a figura do pai, e, quase sempre, na urgência. Como foi dito por Éric Laurent, “os comportamentos performativos singulares não cessam de criar perturbações nas categorias do Direito” (LAURENT, 2008, p.15)

Ao comentário da autoridade alemã responsável pelo citado caso: “Em um ou outro momento, esta criança vai descobrir que seu pai é, na realidade, sua mãe” acrescentaremos o imprevisível dos efeitos subjetivos para essa criança, ainda mais sobrecarregada pelo fantasma manifestado por seu pai/mãe de que não lhe fora concedida uma inscrição sexual: gênero neutro, o limbo da indiferenciação.

Éric Laurent nos tem mostrado, em diversos trabalhos, como vão as ficções: sejam as jurídicas, sejam as científicas, não estão feitas para dar conta do ponto real que é a origem subjetiva para cada um. Para utilizar suas palavras, trata-se “da malformação do que foi o encontro falido entre os desejos que, a cada um de nós, nos empurrou ao mundo” (LAURENT, 2008, s/p) A ciência se interessará pelo ponto obscuro da origem humana? Não é certo, já que se baseia pelo princípio da transparência: o pai por ela reconhecido é o pai do DNA, o que é validado pela ficção jurídica. Porém, cada vez mais, nesse campo da filiação, as exigências por novas ficções jurídicas não param. Existe, inclusive, a L’Association Procréation Médicalement Anonyme, que reúne os filhos nascidos de dom de gameta anônimo, mas, igualmente, os doadores. A polêmica discussão a respeito da interdição do conhecimento das origens genéticas divide a justiça, conforme as leis dos países em questão.

Através da Associação, passam, agora, a serem escutadas as primeiras vozes dos filhos do anonimato promovido pela prática de doação de esperma, tal como foi publicado no jornal francês Le Figaro em 09/02/13.

Um jovem de 23 anos, Roussial Clemente, nascido por inseminação artificial com doador anônimo, disse:

Tive problemas para encontrar as semelhanças com meu pai. Durante um passeio à beira d’água, finalmente me disse que ele não era a pessoa que me havia feito. Pulei em seus braços. Foi um choque, mas também um alívio. Antes, eu tinha imaginado uma violação, uma adoção.

Lemos, então, os testemunhos como parte do romance familiar de cada um, tal como Freud nos ensinou e, se falar de pais na atualidade é assunto multifacetado, “em todas estas variações ou criações diversas, distintos discursos vão entrar em conflito sobre o que são o pai ou a mãe nesta ocasião. Mas o que vemos é que ninguém quer ter filhos sem pais” (LAURENT, 2008, p.2)

No entanto, não se está promovendo um retorno da figura do pai, talvez menos na pele do pai edípico do que na pele do pai gozador, na tessitura do saber da medicina da procriação?

L’effet-Mére:[2] Sintoma Moderno
No caso do avanço da ciência no domínio da fertilidade humanam — seja quando nela se oferecem as possibilidades contraceptivas — para que a criança não venha quando ainda não é desejada — seja na oferta de técnicas para que a criança venha quando tudo indica que não virá — fica muito evidente a paixão do saber da ciência. O impossível, segundo se pode ler na literatura das novas tecnologias da reprodução (NTR), pode ser transgredido. Trata-se de um discurso que se opõe à castração.

Essa evidência está nos efeitos que o discurso da ciência promove no sujeito, fazendo surgir, na realidade, na cena mesma da realidade, o que pertence ao âmbito do inconsciente. A respeito da maternidade, Laurent formula a pergunta se é suficiente engravidar-se e dar à luz para se converter em mãe: ainda será necessário desejar o filho. É muito diferente a demanda que se faz a um médico e o desejo de ser mãe, o desejo de mãe. A mulher, na atualidade, encontra uma inscrição como sujeito desejante na resposta “prêt-à-porter” oferecida pela medicina da reprodução. Pode-se dizer que a solução já pronta e oferecida pelas novas tecnologias reprodutivas à problemática da feminilidade cria uma ambígua situação para a mulher contemporânea.

A partir da gestão científica da sexualidade humana, mais claramente, com a possibilidade de uma contracepção segura obtida pelo uso de pílulas e DIU, por exemplo, surge como efeito o desenlace entre a sexualidade e reprodução humana e, entre uma e outra, um tempo infecundo. Como disse Nicole Athéa, se antes a sexualidade era o objeto de interdição, esta se deslocou para a procriação. Trata-se de um discurso vigente cuja difusão ainda se processa. Os programas governamentais de saúde continuam valorizando os procedimentos pedagógicos, educativos, junto aos jovens, como prevenção à gravidez entre adolescentes. Nos tempos atuais, se acontece gravidez na adolescência, ela já é considerada como sintoma: “é num clima de esterilização que começa a vida sexual, com a consequência do medo frequente de ser estéril” (ATHÉA, 1990, p.38).[3]

Se a vida sexual se inicia pela esterilização, como se sabe da possibilidade da fecundidade? Trata-se da “programação” da concepção sustentada pelo voluntarismo e, nesse enquadramento, “ser estéril” para a mulher, para o casal, é não ter o filho no momento em que decidiram tê-lo. Somente nesse momento, portanto, é que se percebe como insustentável a ideia de que a fecundação esteja completamente dominada pelo saber da ciência em colusão com a Vontade. É que, até tal momento, o domínio científico experimentado pelo casal, no ato da contracepção garantida, confere e legitima a crença de que apenas a realidade da ciência se torna causa na procriação humana. Na verdade, a onipotência científica se encarna na palavra do médico, sujeito suposto saber do desejo do paciente. O saber oracular resulta, muitas vezes, em efeitos profundamente nefastos, mas pode ser que o médico nunca se dê conta disso, já que, em geral, não é sua preocupação interessar-se pelo sujeito. Marie-Magdeleine Chatel relata um caso que serve bem como exemplo de como os fatos acontecem.

Uma moça de vinte e três anos chega para uma consulta de rotina: o ginecologista é informado de que ela não utiliza anticoncepcionais seguros; ela sabe ‘tomar cuidado’, nunca engravidou e diz não querer filhos por ora. O médico, ainda assim, parece se surpreender com o fato de que, com uma contracepção tão incerta, ela nunca tenha engravidado: propõe-se a verificar isso. Ele preocupa a moça que, ao mesmo tempo em que não quer filhos, fica angustiada, quer saber se poderá tê-los algum dia, e começa a recear ser estéril. Ela se engaja numa série de exames exploratórios, bem como seu namorado, a quem a coisa repugna. Emitem-se hipóteses pouco significativas, como o muco e as variações do espermograma. Ela se apega a isso, pois teme jamais poder ter filhos. Hoje, está com trinta anos e engajada numa série de FIV. Diversos embriões se formaram graças ao encontro do esperma de seu namorado com um óvulo dela, mas não se implantam. Evidentemente ela se interroga, pois reconhece que nem ela nem o namorado sabem ainda, realmente, se desejam ter um filho. Para ela, é a ideia de impossibilidade de ter filhos que deve ser eliminada. Ela quer fazer a prova da sua fecundidade. E ele, por sua vez, faz tudo isso por ela. Ela se surpreende desejando, caso esteja grávida, ter um aborto espontâneo ou até mesmo fazer uma interrupção voluntária de gravidez (IVG). ‘Mas continua torturada pela angústia’ (CHATEL, 1995, p.90-91).

Nicole Athéa assinala que a sociedade moderna está instalada sob o mito do domínio perfeito da reprodução e que parece impossível voltar e a ele renunciar, renunciar a essa suposta segurança. A autora questiona se não existiria o risco para a sociedade, que, à força de prevenir os riscos da sexualidade, ficaria sujeita à própria desaparição.

Entretanto, a “contracepção segura” e seus efeitos, a maneira como tais efeitos se manifestam (a interpretação da infecundidade produzida via contracepção e, se, finalmente, resulta em uma infertilidade), se bem têm suportes no discurso social, são resultantes de sua incidência na singularidade de cada sujeito. Para a psicanálise, o sintoma tem determinações opacas que se devem à relação do saber com a pulsão. São relações particulares, peculiares ao modo como o sujeito as estabeleceu. Por singularidade de um sujeito compreende-se uma determinação de satisfação pulsional pelo inconsciente. Ao mesmo tempo, essa determinação depende da cultura, dos discursos em vigência na época como vínculos sociais. Se, para a Yerma de Lorca,[4] seu ser desejante pairava em suspenso, no tempo da espera do filho como dom de amor por parte do homem, e, para além disso, se seu desejo e a possibilidade de se identificar como mulher estavam totalmente recobertos pela “corrente maternal”, atualmente, podem-se catalogar os casos nos quais a mulher já não espera o dom do homem na forma de um filho: ao contrário, substitui o homem pela busca do sêmen armazenado pela ciência. Em última instância, em alguns casos, é a ciência o mais novo partenaire da mulher.

Se existem muitas mudanças nas relações das mulheres com os homens a partir das multiplicações das relações sexuais fora da instituição de um laço exclusivo e definitivo, também se fala de feminização mundo. Em tal expressão, não se trata de um problema numérico, de que haja mais mulheres que homens, porém se trata do que, em psicanálise, conhecemos como S de A barrado. Vemos um movimento que vai do universal do nome do pai à inconsistência do S de A barrado, ou seja, vai da consistência do Outro à inconsistência, ao não-todo.

Jacques Alain-Miller refere-se à feminização do mundo como sendo o fato de que as mulheres estão muito à vontade na atualidade porque essa época se caracteriza como “o novo reino do não-todo”, que é o modo de gozo próprio ao feminino, sem limites. O não-todo, situado nas fórmulas da sexuação elaboradas por Lacan, está à direita do universal masculino, em que se localiza a maternidade. É o acontecimento da maternidade que torna disponível para a mulher um significante possível. Não obstante, a maternidade, no enlaçamento da subjetividade contemporânea com o objeto, pode-se apresentar como o novo sintoma para a mulher. Ou, talvez, mais forte, tal como disse Miller, referindo-se à série em que um filho se inscreve para a mulher: “em certo sentido, a maternidade mesma pode ser considerada como formando parte da patologia feminina” (MILLER, 1997, p.9).

(1) Acessível no link: http://www.genethique.org/?q=content/allemagne-les-d%C3%A9rives-de-la-transsexualit%C3%A9.
[2] Conforme título do texto “Um nouveau symptôme de la femme”, de Éric Laurent, publicado na revista L’Âne, s.d.
[3] No original: “c’est dans un climat de stérilisation que commence la vie sexuelle, avec comme conséquence la peur fréquente d’être stérile”.
[4] Yerma é a tragédia da mulher estéril, criada por Federico Garcia Lorca, em 1934, na obra de mesmo nome.

 


Referências
ATEA, N. “Le magazín des enfants”, In: La stérilité: une entité mal definie. Collectif dirigé par J. Testart. Paris: Éditions François Bourin, 1990, p.38.
CHATEL, M. M. Mal-estar na procriação. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.
DELAISI, G.; VERDIER, P. Enfant de personne. Paris: Éditions Odile Jacob, 1994.
LACAN J., Le Seminaire, livre IV, La relation d’objet, Paris,Éditions du Seuil,1994.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J.( 1969-2003). Nota sobre a criança. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369.
LAURENT, É. El niño como real del delirio familiar. Disponível em: http://www.blogelp.com/index.php/el_nino_como_real_del_delirio_familiar_e. Acesso em 15/03/2014.
LAURENT, É. “Século XXI: não relação globalizada e igualdade dos termos”, Cien Digital, Boletim on-line do Cien Brasil, n.4, Belo Horizonte, jul. 2008, p.13.
LAURENT, É. “Como criar as crianças.” Disponível em
http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/textos/numero3/.pdf, p.2. Acessado em 15/03/2014
MILLER, J.-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes”, Revista de la Cause Freudienne, Paris: Diffusión Navarin, 1997, p.09.
PONTALIS, J. B. “Entretien avec Philippe Ariès”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.19, Paris: Gallimard, 1979, p.12-25.

Maria Rita Guimarães
Maria Rita Guimarães – Psicanalista, membro da EBP/AMP. E-mail: mariarita.guimaraes@gmail.com.



Crianças À Deriva: Reflexões Sobre A Construção, O Comentário De Casos E A Transmissão Da Psicanálise

JEANNINE NARCISO

No livro A violência: sintoma social da época, encontra-se o tema “desditas da infância”. Desventura é sinônimo da palavra desdita. Há crianças vivendo desventuras em série, que é inclusive o título de uma série de livros infanto juvenis e de um filme.[1] São crianças que vivenciam a infelicidade, a aflição e a falta de sorte. Como comentar casos que trazem esta particularidade?

Miller (2006), no texto A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan, aponta o caminho a percorrer entre o ponto de partida, que é a leitura do caso, e a busca por autores que já escreveram sobre o que é necessário saber para poder escrever um comentário. E vai dizer de duas vertentes do ensino: a investigação e a acumulação. A acumulação é a parte de procurar, nos livros, nos artigos, na internet, o que foi dito pelos que já se referiram ao assunto. E a outra parte é a investigação, a pesquisa, é o buscar, esperar o novo.

A partir do que diz Miller, torna-se importante pensar na pretensão que é comentar um caso. Tendo por certas as palavras de Lacan ao se referir à prática da psicanálise, “pretender, no profissional, ter um domínio de um real que não se presta a ser dominado” pode ser mesmo um “certo pecado” (Miller, 2006, p.19).

Na clínica psicanalítica, a construção, a apresentação e a escrita do caso clínico dão à psicanálise o estatuto de um saber transmissível. Miller vai dizer que, “na transmissão da clínica, devemos dar a primazia ou prevalência ao singular mais que ao geral e ao universal” (Miller, 2006, p.20). Ao privilegiar o caso de uma criança, interessa o detalhe, o que não pode ser generalizado. Não mais acreditar nos sistemas de classificação. O que não quer dizer que eles não existam, pelo contrário, estão presentes no dia a dia de todos nós. Frequentemente, somos convocados a avaliar ou a sermos avaliados.

Na psicanálise, as regras e as classes são o sujeito analisante quem inventa. Segundo Miller, cada analisante assume seu caso em um universal muito particular. Na época do mais, algumas crianças, por já terem passado pelo consultório de vários “psis”, já chegam dizendo que não querem que o que falam seja contado para os pais e que não querem fazer testes. E cada um, como a criança contemporânea que é, também quer dizer: “Não, sou apenas eu, não sou um número, não sou um exemplar” (Miller, 2006, p.21)

Como elaborar e transmitir a clínica no nosso tempo? A indicação que temos e que acontece no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais é que se trata de pensar o diagnóstico como uma arte. “Como uma arte de julgar um caso sem regra e sem classe preestabelecida” (Miller, 2006, p.27) Uma experiência bem diferente da tendência atual estatístico-classificatória que refere o indivíduo a uma classe patológica. O discurso do mestre atual promete construir, com grande eficiência, maneiras tecnológicas de fazer diagnóstico automático.

Em psicanálise, a apresentação de ideias gerais sobre um tema cede lugar ao caso particular. A cada caso apresentado, privilegiamos a decisão que leva a encontrar os princípios que podem orientar a condução: “o tato que cada caso requer”. A experiência permite elaborar o tato. Se, inicialmente, são esperados muitos dados “para concluir sobre a hipotética orientação do tratamento, com o tempo se conclui com menos” (Miller, 2006, p.28)

No Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental, alguns casos comentados não podem ser rigorosamente qualificados de caso clínico. Os casos são discutidos por serem situações de urgência, marcadas pelo excesso, pela violência e que demandam uma atenção. Segundo Viganó (2012), para possibilitar a construção do caso clínico a partir do caso social, é preciso um grupo de trabalho, o grupo de uma prática analítica na qual vários sustentam um desejo de saber visto como o êxito de uma experiência analítica e nomeado de transferência de trabalho.

Nesses casos, Laia (2010) considera que, às vezes, por serem situações relacionadas à violência, deslocam-se para um campo diferente da “psicanálise aplicada à terapêutica”, mas tampouco são da “psicanálise pura”. São considerados “problemas sociais” e, portanto, carregam a expectativa de “readaptação social”. O que exige do analista, presente nas instituições judiciárias, assistenciais e educativas, certo tato, já que não há nesses lugares uma transferência prévia à psicanálise, e muitos dos profissionais que ali trabalham não levam em conta a existência do inconsciente. Portanto, há o risco de fixar o sujeito em um discurso determinista.

Atualmente, um significativo número de crianças é encaminhado pelos programas de referência para a violência sexual e doméstica, para serviços em que trabalham psicanalistas. Muitas vezes, é a mãe quem procura o Outro da nossa época — o hospital, o poder público, para que traduza para ela o que está acontecendo com o filho. No momento em que é escutada, o que conta é a história da sua vida, da sua família e da criança. Na história de muitas crianças, a violência da qual se tornou vítima foi cometida pelo pai.

O relato de vida feito pela mãe mostra que os acidentes na vida da criança começam cedo. São vidas marcadas pela errância, pela dificuldade econômica, pela gravidez indesejada e pelo abandono. A criança chega ao mundo sem a garantia de inscrição no Outro. Segundo Lacadée:

Para um sujeito que chega ao mundo como um corpo, como um corpo vivo que goza, grita e chora, é muito importante encontrar um desejo que se debruce sobre ele e que não seja anônimo. Esse desejo só não é anônimo, quando a maneira como a mãe se refere ao corpo de seu filho, a maneira como ela se ocupa de suas necessidades, inclui um mistério que se chama ‘desejo’ (LACADÉE, 2006, p.68).

Quando a criança destina seu discurso a alguém que a escuta, logo inventa a sua maneira de fazer uso da língua para dizer o que se passa com ela. Assim, pode falar de um pai desajustado, que demonstra aos filhos não saber o que fazer com a vida, que não se apresenta como o agente da interdição sexual. É um adulto que não coloca obstáculo para sua própria satisfação, ao seu direito ao gozo. Assim, na ausência de um adulto que o oriente em direção ao Outro, a criança não “adquire uma certa intuição da situação que lhe é proibida” (LACAN, 1984/2002, p.42) e não consegue conter sua busca pela satisfação pulsional.

Segundo Laurent, a psicanálise pode-se posicionar e transmitir algum saber sobre o real em jogo nessas situações. Como analistas, devemos “dispensar os semblantes propostos à civilização” e sustentar que o “discurso da parentalidade, cortado da particularidade do desejo que produziu a criança, faz parte destes semblantes que recusamos” (LAURENT, 2007, p.278).

pO que a investigação sobre a transferência vai-nos trazer com toda a força é o desejo do analista como aquele que vai contra a “criança generalizada”, vai contra tomar o ser falante como objeto e deixá-lo sem palavra e sem responsabilidade. Ocupando um lugar no discurso analítico, tornamo-nos destinatários do sofrimento da criança, oferecendo-nos como seu complemento a partir do manejo de nosso ato e interpretação.

Por se opor ao discurso da “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p.367), o analista de orientação lacaniana se oferece como destinatário do sofrimento da criança, como seu complemento, como um parceiro. Ou seja, para Castro (2006), pode o psicanalista, a partir do manejo do ato clínico e da interpretação, favorecer a invenção, a construção de um saber que possibilite à criança não mais se submeter a um imperativo de gozo.

Algumas crianças estão à deriva, o seu sofrimento não para de agitar seus corpos. Elas parecem estar sem um destino. Compreende-se, assim, que é na experiência analítica, no momento do surgimento do significante carregado de gozo, que o analista pode manejar seu ato, para que, como sujeito, a criança se reconduza e se ancore, quando necessário, em um bom porto. E, a partir deste porto, cada uma possa partir para novas aventuras, sustentada por um desejo que não seja anônimo (LACAN, 1969/2003, p.373).

 

(1) “Desventuras em série” nome dado aos 13 livros de aventura pelo autor Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler). No Brasil, a série foi publicada pela Editora Companhia das Letras. Em 2004, foi lançada uma adaptação, para o cinema, de três livros da série.

 


Referências
CASTRO, H. “Ficções e fixões: ancoragens paternas”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.113-121.
LACADÉE, P. “O uso do nome-do-pai: a ferramenta do pai e a prática analítica”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.34-70.
LACAN, J. (1967). “Alocução sobre as psicoses da criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.361-368.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369-370.
LACAN, J. (1984). Complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.42.
LAIA, S. “Considerações psicanalíticas sobre a violência urbana”, Latusa Digital, Rio de Janeiro, ano 7, n.40-41, mar./jun. 2010.
LAURENT, É. “A criança no avesso das famílias”, In: ALVARENGA, E.; FAVRET, E.; CÁRDENAS, M. H., A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. Terceiro Encontro Americano do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p.20.
MILLER, J.-A. “A arte do diagnóstico: O rouxinol de Lacan”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.15-33.
TELLES, H. “Desditas da infância”, In: MACHADO, O.; DEREZENSKY, E. (Orgs.), A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, 2013, p.272-280.
VIGANÓ, C. “Servir-se do pai além do Édipo”, In: ALKIMIM, W. (Org.), Novas conferências. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p.175.

Jeannine Narciso
Psicanalista, responsável pelo Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental – Montes Claros e Ipatinga. Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail: jannarciso31@gmail.com