A Exceção Que Depõe A Regra

BERNARDO MICHERIF CARNEIRO

 

Atualmente, nas instituições públicas, os analistas têm assumido não só funções clínicas ou técnicas, mas, em escala ascendente, a formulação e implantação de políticas. Se a psicanálise estabelece sua prática pelo modo como aborda o caso excepcional, esse movimento, contudo, leva a um questionamento inevitável: como pensar a exceção na abordagem da lógica de funcionamento de uma instituição? Isso exige não só um empenho na formação clínica, mas uma dedicação aos assuntos institucionais. É a isso que este texto se propõe.

Para investigar esse assunto, Giorgio Agamben é aqui eleito como um autor que reflete sobre as questões políticas da época atual, lançando luz sobre o pensamento de outros autores como Carl Schmitt e Michel Foucault.

Carl Schmitt introduz o que ele entende ser o cerne da ordem política: “A exceção é mais interessante do que o caso normal. O que é normal nada prova, a exceção comprova tudo… quando se quer estudar corretamente o caso geral, somente se precisa observar uma real exceção” (SCHMITT, 1922/2006, p. 15). Agamben faz dessa concepção de Schmitt um princípio que norteia seu pensamento.

Para justificar sua investigação, Agamben parte de uma constatação de Schmitt sobre a ausência de uma teoria do estado de exceção no direito público. Mais do que uma ausência, Agamben aponta para uma recusa do direito em reconhecer uma esfera da ação humana em si extrajurídica, o que confirma a premissa de que, se a lei tem lacunas, o direito não as admite.

Mas, se, por um lado, o vazio jurídico do estado de exceção se mostra impensável pelo direito, por outro lado, esclarecer a relação do direito com o estado de exceção se reveste de uma relevância estratégica decisiva.

Visando a ultrapassar essa barreira, Agamben eleva uma frase de Schmitt à dignidade de matema: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Matema que articula três elementos indissociáveis: soberania, decisão e estado de exceção.

Agamben formula o paradoxo da soberania na mesma linha em que Lacan formaliza o pai primevo de “Totem e tabu”, em sua lógica da sexuação, ou seja: “Eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2002, p. 23).

O soberano é aquele que fixa os limites de uma ordem jurídica e territorial desde que não se inclua nela. Essa topologia introduz, na interseção entre política e direito, no nexo entre localização e ordenamento, uma zona ilocalizável de exceção. O ordenamento do espaço não se dá pela fixação de seus limites e a expulsão da exceção, mas pela captura do fora, da exceção, incluída no ordenamento sem pertencer a ele.

Agamben enfatiza o fato de que o estado de exceção atual não é um legado da tradição absolutista ou dos regimes ditatoriais, mas uma consequência da democracia-revolucionária.

A Revolução Francesa conduziu a um modelo de Estado que vê sua soberania reduzida ao poder do carimbo. O Estado de Direito, anônimo e impessoal, declara-se o guardião da Constituição. O sonho de uma burocracia previsível e formada juridicamente realiza-se: um estado que administra, mas não governa. Miller ratifica: “Na maior parte do tempo, o que se decide num governo? O preço do bilhete do metrô. Administra-se. Não é preciso política para isso” (MILLER, 1997/2005, p. 213).

Tudo que não é legalmente reconhecido é suprimido, como um elemento impuro. Com a eliminação do problema da exceção, a unidade do Estado democrático se sustenta sob o desconhecimento do que o funda como potência política. Diante de uma real exceção, ergue-se o lema: “Aqui termina o Estado de Direito”.

Contudo, Miller extrai desse modelo político sua lição: “Estabeleçam um regime administrativo puro e vocês verão o retorno do Mestre, de um verdadeiro Mestre. É de fato perigoso procurar apagar a soberania pela administração” (MILLER, 1997/2005, p. 211). Quanto mais a ordem jurídica pretende homogeneizar-se, forcluindo a exceção, mais ela propicia que a decisão soberana ressurja de fora, como um elemento autônomo e sem legitimidade.

A partir do momento em que a regra se pretende sem exceção, o tempo não tarda em fazer surgir justamente a exceção, esmagando a ordem vigente entre os dedos. A decisão ressurge sem nenhuma roupagem jurídica, e o soberano se eleva como uma lei viva. Baseado nesse cenário, Agamben confere valor axiomático à frase de Walter Benjamin: “O estado de exceção tornou-se a regra”.

Todavia, tornar o estado de exceção um paradigma de governo marca uma ruptura entre política e direito. O soberano confirma que, por estrutura lógica, não precisa do direito para fundar o direito. Por isso, Agamben se esforça em estabelecer uma nova topologia da exceção no universo jurídico. Em uma época em que o estado de exceção se configura como técnica de governo, trata-se de constatar a inevitabilidade estrutural da exceção.

O estado de exceção, na medida em que suspende a ordem vigente, ergue-se como a figura que preserva o poder do Estado em detrimento do direito, fazendo subsistir uma ordem pública sem validade jurídica. Na atualidade, a ação de Estado é trazida para fora do direito, e os conceitos jurídicos se indeterminam, sendo substituídos por termos como “bom costume”, “iniciativa imperiosa”, “motivo importante”, “segurança e ordem pública”, “estado de perigo”, “caso de necessidade”, os quais não se referem a uma lei, mas a um acontecimento. Na contemporaneidade, a segurança predomina como técnica de governo. Toda medida de Estado se justifica em nome de uma situação de perigo à ordem pública.

É impossível definir, com certeza, quando se está diante de um verdadeiro estado de emergência, mas é justamente essa incerteza que se torna o fundamento para o exercício da soberania estatal. O Estado subtrai um caso particular da aplicação da lei e decide sobre algo que se apresenta como indecidível de fato e de direito.

O Poder Executivo se incumbe de remediar uma lacuna do direito com uma ação da qual não há garantia de que promova a salvaguarda da Constituição. O estado de exceção se desenha como a tentativa de suturar a fratura existente entre o estabelecimento da lei e a possibilidade de sua aplicação prática. Ele é o instituto que distingue lei e decisão, no qual “o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e vice-versa” (AGAMBEN, 2004, p. 58).

Diante da indecidibilidade dos problemas jurídicos, a decisão soberana se revela a matriz anômica sobre a qual a ordem jurídica repousa. Para Agamben, o estado de exceção se expõe como o fundamento secreto de toda lei.

Para esclarecer esse fato, o autor retorna à noção de Estado moderno. Agamben formaliza a estrutura do Estado a partir da articulação entre três elementos: uma localização delimitada, em que funciona um ordenamento estabelecido, a partir do qual se define o modo de inscrição da vida no território. Ou seja, o nascimento de uma pessoa em uma determinada nação o constitui como cidadão perante a Constituição nacional.

Contudo, a dinâmica do poder, atualmente, implica um pressuposto: o corpo biológico e a saúde da nação se revelam o fator politicamente decisivo. O Estado territorial é transposto para um Estado população, no qual a vida humana se tornou a aposta em jogo nas estratégias políticas do exercício do poder.

Miller confirma: “O gozo se tornou um fator da política” (MILLER, 2004, p. 19). Vive-se uma época de nacionalização dos corpos, em que organismos são propriedade estatal. O Estado não mais se ancora no laço social, na exterioridade das representações coletivas em relação aos indivíduos, mas na rotina produzida pela organização dos corpos.

Assim, como o poder público assume para si os cuidados com o corpo biológico dos cidadãos, a política se torna, então, biopolítica. Mas o que determina a biopolítica contemporânea não é o fato de a vida ter-se tornado objeto dos cálculos do poder do Estado, algo que já prevalecia, mas a constatação de que o corpo biológico, até então um elemento exterior ao ordenamento estatal, torna-se o espaço político por excelência.

Nesse sentido, a ruptura com o Estado territorial não se efetivou na interseção entre política e direito, mas no modo de inscrição da vida na ordem estatal. O nexo entre nascimento e nação, com que se pretendia definir a noção de cidadania no modelo tradicional de Estado, perde seu automatismo. A cidadania converte-se em algo do qual era preciso provar-se digno, produzindo como resto uma vida humana que cessa de ter valor jurídico. A essa manifestação da vida, que não se inscreve no direito dos homens, Agamben denomina “vida nua”, uma espécie de dejeto social.

Desnuda-se uma vida humana que se tornou politizada por meio de seu abandono a um poder incondicionado. Por isso, ele aponta a implicação da vida nua na cena política como o núcleo originário do poder soberano. A contribuição da decisão soberana à cena política é a produção do corpo biopolítico como a figura humana a ser capturada fora de qualquer jurisdição.

Seguindo essa trilha, Agamben traz à luz um modo de captura coletiva do poder soberano, ao qual denomina “bando”. Para ele, o que está em bando é abandonado ao poder de quem o baniu. Essa junção entre a insígnia da soberania e o banimento da comunidade é o suporte da configuração do espaço público em que hoje se vive.

Nesse sentido, Agamben evidencia o campo de concentração como a matriz oculta da inscrição da vida no espaço público, o paradigma biopolítico do exercício de um poder indeterminado e, portanto, fora dos limites da lei. O campo de concentração surge como o protótipo da estratégia estatal para traçar um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico. Com isso, Agamben reatualiza o matema da soberania, de Schmitt, propondo: “Na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2002, p. 149)

O Estado instaura uma espécie de epidemiologia social, na qual autoriza a eliminação da vida indigna de ser vivida, o que corresponde ao aniquilamento de categorias de indivíduos julgados como não integráveis ao corpo da nação. A tarefa política de nosso tempo consiste em suturar a fratura biopolítica fundamental que divide o povo. De um lado, o corpo político integral, uma inclusão que se espera sem restos. Do outro, um amontoado de corpos carentes, uma exclusão que se pretende sem retorno.

A esperança que anima o sentimento nacional é que a separação da vida nua possa garantir a unidade do povo. Mas a sobrevivência dos excluídos constitui um elemento embaraçoso para a comunidade. A sociedade reclama ao Estado por controle, para que este elimine os indivíduos que ameaçam a integridade da nação. Por isso, o paradigma da política estatal se restringe à polícia, que se torna o mecanismo efetivo de tutela da vida dos cidadãos e luta contra os inimigos da nação.

Apesar do tom apocalíptico, Agamben mantém sua expectativa por “uma renovação categorial atualmente inaudível, em vista de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal” (AGAMBEN, 2004, p. 141).

Agamben adverte que ainda há um lugar viável para o direito após a deposição de sua articulação com a soberania. Segundo ele, a política viveu um longo período de atrofia na sua relação com o direito, restringindo-se ao seu papel de validação formal da previsão legal. Porém, ele conclui que a ação verdadeiramente política é aquela que corta o laço que une o direito à soberania.

Não se trata da anulação do direito, mas da desativação do dispositivo jurídico, que, por meio do estado de exceção, não cessa de tentar capturar a vida humana em seus confins. Milner enfatiza: “O silêncio da lei é o que a faz funcionar” (MILLER; MILNER, 2006, p. 7). Trata-se de expor o direito em separação absoluta da vida, como mera vigência formal, e a vida em sua condição originária de abandono fora dos limites da lei. Abrir esse espaço entre o direito e a vida é o que torna possível o surgimento de uma ação política.

Por isso, Agamben se remete à figura de um direito não praticado, apenas estudado. Trata-se não de negá-lo, mas de introduzi-lo em uma existência indeterminada. O direito reduzido à sua dimensão de semblante e que, somente a partir da ação política, poderia encontrar um valor de uso que não o precede, mas, ao contrário, surge a posteriori, como modo de afirmação de sua existência. Um direito que assume a vida como um elemento impossível de ser inscrito na ordem jurídica.

 

 


Referências
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
MILLER, J.-A. “Lacan e a política”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.40, ago. 2004, p. 7-20.
MILLER, J.-A. (1997) “O ditador dos cegos”, In: ______. O sobrinho de Lacan: sátira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 207-217.
MILLER, J.-A. (1991). “Sobre Carl Schmitt”, In: ______. O sobrinho de Lacan: sátira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 235-241.
MILLER, J.-A; MILNER, J.-C. Você quer mesmo ser avaliado?: entrevistas sobre uma máquina de impostura. Barueri, SP: Manole, 2006.
SCHMITT, C. (1922). “Teologia política I: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania”, In: ______. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 1-60.
(1) Texto apresentado no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 17 de abril de 2013.

Bernardo Micherif Carneiro
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: bernardomcarneiro@yahoo.com.br.



O Corpo Da Criança E Os Discursos

ANDREA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA, MARGARET PIRES DO COUTO E TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY

 

1 Introdução

Na contemporaneidade, a criança e seu corpo tornaram-se objetos privilegiados nos mais diversos saberes. Vários são os discursos que buscam regular, orientar e disciplinar o corpo da criança, esquecendo-se, frequentemente, de que ela é um sujeito capaz de interpretar e expressar seu próprio saber.

Hiperativos, deprimidos, fóbicos, autistas, agressivos, etc., são alguns dos nomes distribuídos a partir das avaliações escolares e científicas, configurando o momento atual em que grande parte das crianças encontra-se categorizada, apagando o traço da singularidade que concerne a cada sujeito.

Ao abordar esse tema, pretendemos investigar como, na atualidade, os discursos — enquanto modos de aparelhar e/ou produzir o gozo — buscam regular as relações dos sujeitos crianças e seus corpos. Para isso, trabalharemos com a hipótese, formulada pelo ensino de Lacan, de que o discurso da ciência, e não a ciência, pode funcionar segundo a lógica do discurso universitário e do discurso do capitalista. A obra científica genuína não exclui a causa, e, por isso, afirma Lacan (1973/1993, p. 40), “o discurso científico e o discurso histérico têm quase a mesma estrutura”. Assim, nessa estrutura discursiva, a verdade, como encontro com o real, não é eliminada, mas confrontada.

Por outro lado, a psicanálise, destinada sempre a ser uma ciência do particular, permite demonstrar que o discurso analítico, ao acolher a criança e seu saber, produz efeitos de histericização sobre seu corpo, demonstrando que esse corpo pode recusar a ditadura dos significantes-mestres produzidos pelo discurso da ciência.

2 O Corpo Da Criança No Discurso Científico

Em “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan (1967/2003) afirma que o corpo é mantido na ignorância pelo sujeito da ciência e indaga se chegaríamos a ter direito de desmembrá-lo em nome dessa ignorância. Qual é a verdade sobre o corpo que a ciência tende a ignorar?

Submetida ao imperativo da harmonia, a ciência desconhece aquilo que Lacan demonstrou ser a diferença entre ter um corpo e ser um corpo. “É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza” (Lacan, 1954-1955/1985, p. 97). De acordo com Miller (2004), por mais corporal que seja, o ser falante, ao ser feito pelo significante, divide seu ser e seu corpo, produzindo uma falha de identificação. É por isso que, nesse corpo, se passam coisas imprevistas, coisas que escapam, acontecimentos que deixam traços desnaturais e disfuncionais.

Ao longo da história, o corpo se constituiu, gradativamente, como objeto da ciência, sendo concebido ora como natureza, ora como máquina, até tornar-se objeto de intervenções que vão além da finalidade terapêutica. Na tentativa de aprisioná-lo no discurso da ciência, o corpo padece, atualmente, cada vez mais, de transtornos inespecíficos, que fazem proliferar os diagnósticos médicos. Ele faz sintoma, é assolado pela angústia, escapando à estratégia de domá-lo. O grande número de sintomas no corpo que chega às nossas clínicas constitui-se em evidências daquilo que fora excluído, ignorado pelo discurso da ciência, e que retorna na cena do mundo.

No campo da história, Foucault já demonstrou que, desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de poder, de manipulação e treinamento, na tentativa de torná-lo obediente e dócil. Para o autor, o século XVII inaugurou novos métodos de controle minuciosos do corpo, que ele nomeou como “métodos disciplinares”. Esses métodos foram-se tornando fórmulas de dominação cada vez mais aprimoradas. Em Vigiar e punir, publicado originalmente em 1975, Foucault define a disciplina como o “poder da norma” (Foucault, 1975/1993, p. 164), que, ao conduzir à homogeneidade, permite medir os desvios, tendo como função maior o adestramento. Demonstrou a difusão da sociedade disciplinar e de seus mecanismos por meio da vigilância permanente, exaustiva e onipresente. Para ele, o sucesso do poder disciplinar se deve ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação em um procedimento que lhe é específico, o exame.

De acordo com Foucault (1975/1993), a técnica do exame permite que cada indivíduo seja descrito, mensurado, medido e comparado a outros. Essa técnica faz com que a individualidade de cada corpo entre para uma documentação administrativa em que tudo é anotado, as atitudes e comportamentos são registrados em detalhes. Os corpos tornam-se legíveis, dóceis e objetivados. Não seria esse esquadrinhamento do corpo o que encontramos nas técnicas de avaliação e de seus protocolos, que visam a descrever e mensurar o comportamento dos sujeitos?

Isso se esclarece, por exemplo, quando observamos a criação do protocolo de “Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil” (IRDI), utilizado tanto em creches como nos consultórios pediátricos, que tem o objetivo de diagnosticar e tratar o autismo.i Fundamentado em pressupostos teóricos psicanalíticos sobre a constituição psíquica de crianças de 0 a 36 meses, ele foi elaborado e validado com 31 indicadores clínicos de risco para a detecção precoce de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança. O IRDI aparece como um instrumento de promoção de saúde mental nos primeiros estágios do desenvolvimento da criança, pois se entende que os cuidados psíquicos na infância reduzem a incidência de distúrbios mentais tanto nessa fase quanto na vida adulta (BERNARDINO; MARIOTTO, 2009).

Será possível observar e registrar o inconsciente? Não será essa proposta mais uma a alimentar a série: avaliação, classificação e medicalização?

Quanto ao fenômeno contemporâneo da medicalização das crianças, pensamos que essa seria uma nova técnica disciplinar com o objetivo de controle dos corpos. Porém, como operaria essa nova forma de “disciplinarização”?

A teoria dos discursos, desenvolvida por Lacan (1969-1970/1992), em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, pode ajudar a responder a essa questão. Lacan apresenta os discursos como laço social, uma estrutura que ultrapassa a palavra, antecede a fala dos sujeitos, organiza-as, permitindo dar um tratamento ao que escapa à articulação significante, quer dizer, um tratamento ao gozo que se encontra presente em todo laço social.

Os quatro discursos que Lacan matemiza — o discurso do mestre, o discurso histérico, o discurso universitário e o discurso analítico — correspondem a quatro tramas discursivas, quatro lugares de enunciação e quatro configurações significantes diferentes. Eles se diferenciam pela sua posição espacial e pela rotação que os quatro significantes (sujeito, significante-mestre, saber e o objeto a) fazem nos quatro lugares do discurso que, por sua vez, são fixos.

Os quatro lugares, lugar do agente, lugar do outro, lugar da verdade e lugar da produção, estão assim dispostos:

 

Nossa hipótese, como dito anteriormente, é que a ciência possa desenvolver-se a partir da lógica do discurso universitário e também do capitalista, como veremos adiante. A estrutura do discurso universitário ajuda a pensar como o saber científico, sustentado na lógica do poder disciplinar descrita por Foucault, ocupa-se dos corpos das crianças:

Trata-se, então, da lógica do discurso universitário, matemizado por Lacan da seguinte forma:

 

Nesse mesmo seminário, Lacan analisa as consequências ou os efeitos produzidos quando o saber (S2) está no lugar de agente ou na posição dominante do discurso. Para Lacan, no discurso universitário, o S2, o saber, ocupa o lugar da ordem, do mandamento, de forma anônima, pois se encontra separado de seu autor. No lugar da verdade (S1), está o significante-mestre operando para portar a ordem do mestre. O mestre não está mais aí na posição de domínio, o que permanece é seu mandamento, seu imperativo categórico, por meio do saber científico universal e generalizante. O efeito dessa configuração é o desconhecimento da verdade inconsciente e a tirania do saber que se apresenta como “verdade científica”. A verdade do sujeito, verdade, essa, sempre particularizada, é rejeitada em prol de uma verdade universal, aquela produzida pela ciência.

Assim, quando o agente do discurso é o saber, ele sempre se dirige ao Outro como objeto, “objetalizando-o”. É o mestre que ocupa o lugar da verdade, e o que se produz, nesse discurso, e, ao mesmo tempo, se perde, se exclui, é o próprio sujeito do inconsciente, com sua divisão.

Na contemporaneidade, verificamos uma perigosa aliança entre o saber científico e o capital, potencializando aquilo que Foucault descreveu como objetivação dos corpos e que, com o ensino de Lacan, extraímos como “objetalização” do sujeito.

Lacan matemizou um quinto discurso, o do capitalista, como uma nova modalidade do discurso do mestre, definindo-o como o laço social dominante em nossa sociedade:

Diferentemente da lógica dos outros discursos, o discurso do capitalista tenta eliminar a dimensão do impossível ao prometer o acesso direto do sujeito aos objetos e do mestre ao saber. Efetivamente, ele não promove o laço entre os sujeitos, mas a relação do sujeito com o objeto, supostamente capaz de recuperar o gozo perdido, que a entrada do ser falante na linguagem instaura.

Nesse sentido, o saber científico tem como objetivo produzir os objetos de consumo e colocá-los à disposição do sujeito. A divisão é transformada em déficit, fazendo com que o sujeito transforme seu mal-estar estrutural, a falta da estrutura, em um menos, na ilusão de que poderá ser preenchido com um objeto produzido e elevado pelo mercado à categoria do objeto a. Esse circuito faz funcionar a máquina da produção incessante de novos objetos a serem consumidos, transformando o próprio sujeito em um desses objetos. O efeito de toda essa maquinaria é o rechaço da divisão e sua consequente anulação do desejo, ao fazer crer que seria possível, e não mais impossível, o encontro com o objeto de satisfação. Os medicamentos entrariam na série desses produtos a serem produzidos, ofertados e consumidos. Então, como pensar a relação entre o corpo da criança e o saber científico, partindo da lógica do discurso capitalista?

Temos, no lugar da verdade, o significante-mestre representado pelos interesses do capital e a lógica do mercado. Esse significante-mestre comanda o saber científico e impõe a produção cada vez maior de novos objetos a serem consumidos: por exemplo, o medicamento. No lugar do agente, temos o sujeito criança com seu corpo não mais tomado como um corpo marcado pela falta, pela dimensão traumática que todo corpo apresenta para o ser falante. Ao contrário, temos um corpo marcado pelo signo do déficit, mesmo que pela vertente do excesso, ao escapar ao padrão considerado normal. Por isso mesmo, é um corpo a ser docilizado, domado, domesticado, silenciado, ao se endereçar, sem intermediários, ao saber científico e ao seu produto: o medicamento. Eliminada a dimensão do impossível (sem barras), nesse discurso demonstrado pelas setas que indicam a conexão direta, o corpo da criança se torna o objeto da ação do saber científico, sem as mediações necessárias que poderiam manter a disjunção entre a verdade e a produção presente nos outros discursos.

3 O Corpo Da Criança No Discurso Analítico

Qual o lugar que o corpo da criança assume no discurso analítico?

Para Cristina Drummond (2012), o conceito de objeto a construído por Lacan fornece importantes elementos para tratar a relação da criança com o corpo.

No texto “Nota sobre a criança”, de Lacan (1969/2003), podemos isolar as duas posições da criança na estrutura familiar: como sintoma do par parental e como objeto do fantasma da mãe. Nessa segunda vertente, o autor afirma que a criança se torna o objeto da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto (Lacan, 1969/2003, p. 369). Trata-se, afirma Lacadée (1996), de uma situação em que a criança é tomada no fantasma da mãe de tal maneira que vem realizar a presença desse objeto a em seu fantasma. A criança satura esse modo de falta, dando-lhe corpo ou oferecendo seu corpo como objeto condensador de gozo da mãe. Ela vem saturar a falta da mãe, condensando sobre seu ser a verdade desse objeto.

Ao comentar o texto “Alocução sobre as psicoses da criança”, de Lacan (1967/2003), Drummond (2012) isola duas consequências dessa teorização da criança como objeto a para sua mãe. A primeira delas diz respeito ao questionamento do mito de completude presente na teorização dos pós-freudianos sobre a relação da criança com a mãe. Extrai, daí, uma orientação ética ao tratamento analítico de crianças: “opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a” (Lacan, 1967/2003, p. 366). Trata-se, portanto, de impedir que a criança seja fixada na fantasia materna. A segunda consequência situa o achado clínico de Winnicott, afirmando que o ponto central dessa formulação “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para sua mãe” (Lacan, 1967/2003, p. 366).

Ainda de acordo com Drummond (2012), há, em muitos dos sintomas das crianças, na atualidade, a impossibilidade de fazer a operação de separação desse lugar de objeto que ela é para o outro, e essa impossibilidade retorna sobre o corpo da criança. Há, nelas, uma enorme dificuldade de interrogar sobre o desejo materno e fazer dessa interrogação um enigma. Além disso, encontramos nesses sintomas a dificuldade da criança para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou de um gozo que a produziu.

A problemática que se coloca quando o sintoma se aloja no corpo é se o analista poderá constituir-se como um destinatário da fala do sujeito, dividindo-o, fazendo surgir sua demanda de saber, enfim, pondo em funcionamento o discurso do inconsciente.

Nesse sentido, a estrutura do discurso analítico ajuda a pensar a operação possível e esperada pelo analista:

Trata-se do lugar do analista que, ao se fazer de objeto, endereça-se à criança como um sujeito dividido e, ao manter seu saber abaixo da barra, permite a ela produzir seu próprio saber e se separar dos significantes-mestres que a capturavam. Nesse sentido, o efeito dessa operação seria a histericização do sujeito — demonstrada por Lacan por meio da lógica do discurso histérico — que pode encontrar nesse dispositivo um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Ao poder endereçar-se ao campo do Outro, a partir de sua divisão, o sujeito pode supor o inconsciente e produzir um saber sobre esse real que toma seu corpo.

Em outro texto, “A criança objetalizada” (2007), Cristina Drummond ressalta que o discurso científico fez do corpo da criança uma mercadoria que pode ser usada e descartada pela ciência. Desalojá-la desse lugar e se opor que a ciência faça do corpo da criança um objeto comercializado, disciplinarizado e medicalizado é, portanto, uma orientação ética da psicanálise.

 


 

Referências
BERNARDINO, L. M. F.; MARIOTTO, R. M. M. “Detecção de riscos psíquicos em bebês de berçários de Centros Municipais de Educação Infantil de Curitiba”, In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 9. E ENCONTRO SUL BRASILEIRO DE PSICOPEDAGOGIA, 3., Curitiba, PUCPR, 26 a 29 de outubro de 2009.
DRUMMOND, C. “A criança objetalizada”, Almanaque on-line, Revista Eletrônica do IPSM-MG, n. 1, jul./dez., 2007.
DRUMMOND, C. Como se opor a que se seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a. Belo Horizonte: Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças, Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas de Gerais, 2012.
FOUCAULT, M. (1975). Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1993.
LACADÉE, P. “Duas referências essenciais de J. Lacan sobre o sintoma da criança”, Opção Lacaniana, São Paulo, n. 17, p. 74-82, nov. 1996.
LACAN, J. (1954-1955). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1967). “Alocução sobre as psicoses da criança”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.359-368.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LACAN, J. (1973). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”, Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 41, p.7-67, dez. 2004.
1 O protocolo IRDI foi desenvolvido pelo Grupo Nacional de Pesquisa sob a Chancela do Ministério da Saúde e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no período entre 2001 e 2008.

Andrea Eulálio De Paula Ferreira, Margaret Pires Do Couto E Tereza Cristina Côrtes Facury
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com. Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br. Tereza Cristina Côrtes Facury – Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. E-mail: terezafacury@gmail.com



Almanaque On-Line Entrevista

 SÉRGIO LAIA – DIRETOR EXECUTIVO DO VI ENAPOL PELA EBP

 

1) O Corpo Está Em Discussão. O IPSM-MG Tem-Se Ocupado Da Exploração Do Tema Do VI ENAPOL E Propõe, Para Esta Entrevista, A Articulação “O Corpo Sob Transferência”, O Corpo Tomado Pela Incidência Do Discurso Analítico No Século XXI. O Título Do VI ENAPOL, Falar Com O Corpo, E Seu Subtítulo, “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real”, Apresentam, Segundo Seu Texto Publicado No Site Do Encontro (LAIA, 2013), Um Programa Da Psicanálise De Orientação Lacaniana, Frente Ao Desencanto Contemporâneo Com Os “Poderes Da Palavra”, Em Sua Decisão De “Falar Com O Corpo” E Persistir Na “Trama Corpo-Linguagem” Para Ler Os Sintomas E Abordar A Generalização Das Normas Como Uma Crise Das Normas, Uma Resposta Ao Seu Fracasso Através De Um Recrudescimento.

Que Tratamento A Psicanálise Pode Oferecer Ao Corpo, Considerando Os Novos Usos Que Se Apresentam Na Clínica De Hoje?
Mesmo com todas as críticas e até perseguições que a psicanálise vem sofrendo nestes tempos, estimo que estamos em um momento oportuno, ainda que isso não implique qualquer conforto. Primeiro, porque essas críticas e essas perseguições podem e devem ser enfrentadas por nós, analistas (e aqui já introduzo o tema que vocês elegeram para esta entrevista), como uma transferência apresentada na faceta que Freud já chamava de “transferência negativa”. Além disso, vivemos em um mundo onde é intenso o apelo que se faz ao corpo:

No que concerne mais especificamente às terapêuticas, uma boa parte das propostas atuais reduz os sintomas a “transtornos” que, embora qualificados de “mentais”, encontram nos corpos um lugar em que eles ganham consistência e no qual devem ser feitas as intervenções terapêuticas. Afinal, “localizações cerebrais” e “marcadores biológicos” são buscados como formas de se conferir maior objetividade ao diagnóstico e ao tratamento, que, muitas vezes, é necessariamente associado ou mesmo restrito a medicamentos.

Quanto ao que caracteriza, de modo geral, nossa civilização, senão tudo, certamente, uma grande parte do que se propõe e se experimenta, hoje, como “modos” ou “estilos” de vida implica o corpo em sua exigência de satisfação constante.

Ora, a psicanálise é uma experiência que se faz com o corpo e no corpo. Portanto, ela tem toda condição para responder às incitações que nossa civilização faz aos corpos como campo privilegiado de satisfação, bem como às reduções pelas quais muitas terapêuticas atuais tomam os sintomas, identificando-os apenas como o que é somático. Nossa diferença (e também nosso desafio em termos de implantação e reiteração neste mundo) é que, para nós, os corpos são o que eu chamaria de caixas de ressonância e também de dissonância, ressaltando que esses “sons” corporais não são captáveis nem pelos tradicionais e também cada vez mais sofisticados aparelhos de “ultrassonografia”, nem pela tecnologia de ponta instrumentalizada como “ressonância magnética”. Afinal, esses sons manifestam-se, segundo nos ensina Lacan, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18), ou seja, eles são pulsionais. Embora sejam às pulsões que a civilização procura responder (silenciando-as, nos tempos mais repressivos, ou, como acontece mais em nossa atualidade, mais permissiva, incitando-as), embora seja também algo das pulsões que muitas terapêuticas contemporâneas — mesmo sem usarem tal nome — propõem controlar (como no caso dos “hiperativos”), ou incitar (como no caso dos “deprimidos”), é a psicanálise que consolidou modos efetivos para que possamos abordá-las e vivê-las. É na experiência analítica que se pode constatar o quanto as palavras afetam os corpos e o quanto ansiamos para falar com os corpos e também para fazê-los falar. Por conseguinte, embora se tente muito isso hoje em dia, não há como livrar os corpos vivos desse tipo de afecção. Por isso, conforme eu lhes dizia inicialmente, temos de nos haver hoje com uma enorme transferência negativa quanto à psicanálise e nos encontramos, concomitantemente, em um momento oportuno.

2) Segundo Éric Laurent (2013), “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real” Remetem-Nos A Uma Dupla Série Causal: De Um Lado, “Os Corpos São Muito Mais Deixados Por Sua Própria Conta, Marcando-Se Febrilmente Com Signos Que Não Chegam A Lhes Dar Consistência E, Por Outro Lado, A Agitação Do Real Pode Ser Lida Como Uma Das Consequências Da ‘Ascensão Ao Zênite Do Objeto A’.”
Quais As Consequências Dessa Constatação Na Direção De Um Tratamento Em Nossos Dias, Que Pretende Fundamentar-Se Na Teoria E Ética Lacanianas?

Parece-me que minha resposta à questão anterior já antecipa elementos que respondem a esta segunda. Quais são os “signos” (para tomar aqui a passagem de Éric Laurent citada por vocês) que não chegam a “dar consistência” aos corpos, mas que os marcam “febrilmente”? Há uma multiplicidade deles: “tatuagens”, “drogas”, “baladas”, “silicones”, “energéticos”, “celulares”, “roupas”, “TPM”, “ponto G”, “Viagra”, “sexo”… etc…. Essa variedade, que cada vez se multiplica mais, mostra, concomitantemente, como o “objeto a”, por ser efetivamente um “condensador” de gozo, ou seja, de satisfação, encontra-se em ascensão no mundo contemporâneo, mas ela também evidencia, especialmente para quem é sensível à escuta analítica, o fracasso desses signos em dar aos corpos alguma consistência. Em outros termos, há uma produção de múltiplos objetos e uma busca incessante por eles porque não há efetivamente objeto capaz de suturar o vazio que faz os dizeres ecoarem nos corpos. Por sua vez, a experiência analítica tem como cingir e responder a tal vazio sem ser pela proliferação dos objetos. Nossos consultórios de psicanálise, bem como os atendimentos e intervenções que muitos de nós fazem nas instituições de saúde, de defesa social e de ensino comportam muitos exemplos de como os corpos são objetos de intensos investimentos, de incisivas intervenções, mas sem que isso resulte em alguma consistência para aqueles que se apresentam com eles, visando a um tratamento, um acolhimento, uma resposta. Entre esses exemplos, eu citaria: a busca incessante pelo “over” nas toxicomanias, que ganha, com o crack, um viés ainda mais tenebroso, o “menor abandonado”, cuja trajetória de infrações o faz sempre ser abandonado, o entediado, que vaga pelas noites ou pelos shoppings, sem encontrar o que ele não sabe que está procurando, a anoréxica, que recusa o alimento para, insistentemente, comer nada, aquele que não encontra mais lugar no corpo para mais uma tatuagem…

Sobre como a psicanálise pode tratar essas inconsistências, essas experiências de esvaimento dos corpos manifestada na própria apresentação dos corpos como objetos, eu já destaquei, na primeira resposta, e também no meu texto (LAIA, 2013), que se encontra no site do VI ENAPOL (evocado também, a princípio, por vocês): nossas intervenções se valem da “trama corpo-linguagem”, da escuta do que ecoa, inclusive nessas inconsistências corporais, como dizer. A transferência, nesse contexto, é decisiva, pois os corpos inconsistentes de hoje não param de buscar os corpos, e, nessa trajetória, o corpo do analista pode fazer diferença entre os múltiplos corpos que servem como anteparo, âncora, bússola, mas também como diluição, errância, perdição aos corpos agitados de hoje. Por fim, se a ética da psicanálise se vale da orientação de não ceder quanto ao desejo, de agir em conformidade com o desejo (segundo os termos de Lacan, no Seminário 7, 1959-1960/1988, p. 373-390), encontro, em uma passagem do primeiro testemunho de Marcus André Vieira como A.E. (Analista da Escola), uma indicação preciosa para articularmos tal orientação com a definição lacaniana da pulsão, no Seminário 23, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18). Tematizando exatamente como a transferência permitiu-lhe abrir “um espaço corporal sem lugar e forma claros” e também marcado por “nada do Outro”, ou seja, alheio a qualquer referência, no qual “ecoavam as intervenções sonoras do analista e que sentia sua presença, reagindo à sua voz de outra forma”, Marcus André Vieira nos mostra como a experiência analítica deu-lhe alguma consistência para o “tanto de gozo fora do corpo, de vida que não cabe na vida e se manifestava como vontade” de ele, Marcus, se “lançar para dentro e não para fora, para o encontro com um desejo a descobrir e não a antecipar” (VIEIRA, 2013, p. 31, grifos do entrevistado). Considero preciosa tal passagem, no que concerne à ética da psicanálise e à experiência analítica hoje, porque, em nosso mundo, tomado pelo imperativo da satisfação, os corpos estão sempre às voltas com o desejo a antecipar, e à experiência analítica cabe suscitar o que poderá apresentar-se como um desejo a descobrir. É desse desejo a descobrir que não se deve ceder, e é esse desafio que sustentamos na experiência analítica, particularmente hoje em dia, quando o mundo é assolado pela urgência de se antecipar o desejo para que se possa garantir a onipresença da satisfação.

3) Ainda Hoje, Poderíamos Constatar, Como Freud, Que “Sempre Resta O Sintoma, Na Medida Em Que Ele Interroga Cada Um Sobre O Que Vem Incomodar-Lhe O Corpo”. Entretanto, Éric Laurent (2013) Nos Alerta De Que “Precisamos Conceber O Sintoma Não Com Base Na Crença No Nome-Do-Pai, Mas Baseados Na Efetividade Da Prática Psicanalítica”.
O Que Significa, Para A Apresentação E O Manejo Da Transferência, Ir Para “Além Do Sintoma Histérico, Que Supõe, No Horizonte, O Amor Ao Pai”?

O amor ao analista, isto é, o investimento que liga o analisando ao analista, pode ter o amor ao pai como uma das formas pelas quais a transferência se processa. Freud mesmo fala do analista como um “substituto” dos primeiros objetos de investimento libidinal, e o pai se encontra entre esses objetos. Mas a transferência e seu manejo não se reduzem a isso. Mesmo quando tomamos a transferência, tal qual Freud, como uma forma de “neurose” forjada na própria experiência analítica, ela não é mera repetição do que se passou e não foi elaborado. A parte em que o sintoma se trama com o amor ao pai é, a meu ver, mesmo sob a forma de “neurose de transferência”, aquela que é decifrável, inclusive porque o Nome-do-Pai tem, segundo podemos ler na “metáfora paterna”, a função de traduzir, decifrar o enigma do “Desejo da Mãe” (LACAN, 1957-1958/1998, p. 563). Entretanto, como nos vai ensinar um Lacan mais tardio em relação àquele dessa operação de metaforização, “uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma” (LACAN, 1973/2003, p. 550). Assim, quanto ao sintoma, ele comporta, como tem insistido Jacques-Alain Miller, uma opacidade ao sentido e à decifração, e, nesse viés, o analista como parceiro-sintoma, na transferência, não é pura e simplesmente um substituto do pai.

4) Em TEXTOaCORPO #18, Lemos: “O Novo Status Do Sintoma Significa Muito Mais Que Constatar Que Não Há Sintoma Sem Corpo. Ao Ser Acontecimento De Corpo, O Sintoma É Um Real Contingente E Singular, Pois Nenhum Acontecimento É Necessário E Universal. O Corpo, Como Sede Deste Acontecimento, Ademais De Ser Gozável, Deve Poder Receber, Como Letra, A Marca Escrita Pelo Sintoma, E Por Isso É Literável” (ARENAS, 2013). Miller (2012) Refere-Se Ao Ultimíssimo Lacan Apontando Que: “No Lugar De Função Da Fala, Campo Da Linguagem E Instância Da Letra, Temos Lalíngua, Apalavra E Lituraterra, Que Esboçam Certamente Um Outro Lacan”.

Já Que O Sintoma Se Inscreve No Corpo, Como Escutá-Lo E Interpretá-Lo, Se Há, Nos Tempos De Hoje, Uma Dificuldade No Relato Pelo Falasser? Como Articular Escuta E Leitura (Do Sintoma Que Se Escreve), Uma Vez Que O Corpo É Tomado Como Aquilo Do Qual Goza O Sujeito? Como Fica A Transferência?
O que vocês estão chamando de “dificuldade no relato” se manifesta, muitas vezes, como uma dificuldade de dizer, de contar o que se passou, de falar do que está acontecendo, de decifrar o sintoma, ou, pelo menos, de ser sensível à sua decifração. Entretanto, se a psicanálise faz diferença, em um mundo onde, o tempo inteiro, se insiste que “falar faz bem”, é porque, para nós, a dificuldade para relatar não é menos um dizer. Por isso, a experiência analítica não se reduz a uma trama biográfica: os analisantes se surpreendem com o que escapa à suas biografias e que, ainda assim, os determinam, mobilizam seus sintomas, constituem seus desejos. Nesse viés, quando pretendemos discutir, no VI ENAPOL, as diferentes nuances de “Falar com o corpo”, essa fala se processa mesmo quando não há muita disposição do falante ao relato, porque o corpo é uma espécie de “estranho” com o qual, contrariando o que dizem, primordialmente, nossos pais, insistimos em falar, porque ele, com sua presença inusitada, enigmática, nos faz falar. A transferência é decisiva nesse contexto porque, como constatamos na orientação lacaniana, um analista é talhado, por sua análise pessoal e pelas supervisões, a tomar a forma desse “estranho” que é o corpo com que falamos, muitas vezes, sem escutar qualquer palavra, e, como esse “corpo estranho”, na transferência, um analista poderá fazer ecoar (ou mesmo amplificar) o inaudível não para que este seja propriamente escutado ou relatado, mas para que possamos cingir e nos virar com tal opacidade.

5) Acompanhamos, No Momento Atual, A Agitação Dos Corpos Dos Jovens, Em Uma Série De Manifestações, Nas Quais Os Analistas Políticos Identificam Uma “Crise Da Representação”.
Que Articulação Se Pode Fazer Entre O Lugar Ocupado Pelo Corpo Na Atualidade E As Novas Formas De Identidade?

As manifestações recentes parecem evidenciar que a crise das normas atinge inclusive o campo mesmo dos protestos. Afinal, no início, o que surpreendeu a todos foi o fato de não se saber de onde surgiu tanta gente que, até então, supunha-se que estava mais conectada à internet do que à suposta “realidade do país”. Uma faixa dos manifestantes proclamava: “Somos a rede social”, e encontro nela um excelente exemplo do que Lacan chamava de interpretação pelo equívoco. Afinal, nesses tempos de Facebook, Instagram, WhatsApp e Twitter, o sintagma “rede social” refere-se a corpos imersos no chamado “mundo virtual”, mas, nas manifestações, eis que esses corpos, que ninguém sabia muito bem onde estavam, aparecem nas ruas sob a forma das “manifestações”. Em outros termos, os corpos dos manifestantes “pularam” do “mundo virtual” para as “manifestações” em várias cidades brasileiras, da mesma forma como a anamorfose pintada por Holbein, no quadro Os embaixadores (comentado por Lacan, no Seminário 11), “pula”, enigmática, do que esse quadro representava em termos dos objetos da ciência, das artes e dos representantes da diplomacia, ou seja, da “realidade” do então século XVI (LACAN, 1964/1988, p. 84-115).

À medida que os protestos foram-se multiplicando, tudo parecia ter-se tornado motivo de protesto, e, nesse sentido, a própria concepção do que seria “protestar” se mostrou, senão diluída, certamente ainda mais opaca. Dessa surpresa frente a essa diluição e à opacidade, algo me pareceu manter-se e que tem a ver com o que, na pergunta, vocês chamaram de “agitação dos corpos”. Fazendo aproximação entre o subtítulo do VI ENAPOL e essas manifestações recentes no Brasil, parece possível sustentar que a “agitação do real” é uma “agitação dos corpos”, e que, quando há “crise das normas”, os corpos se agitam. Pergunto-me, nesse aspecto, se o sintoma “social” corporificado por essas manifestações não pode ser lido na vertente do que, graças a Jacques-Alain Miller, temos podido encontrar em Lacan como “acontecimento de corpo”. Assim, se uma das faixas ostentadas nessas ocasiões dizia: “Não são só 20 centavos”, eu não a leio apenas como ressaltando que há mais motivo para protestos do que o aumento das passagens de ônibus ou o direito à gratuidade do transporte público para estudantes. Prefiro lê-la assim: os “20 centavos” de aumento nas tarifas de ônibus não foram apenas o “significante” que causou a agitação dos corpos sob a forma de protestos, eles são o significante que acionou o gosto, ou, se quisermos usar um termo mais lacaniano, o gozo dos corpos de se manifestarem, especialmente porque as manifestações se tornaram mais frequentes depois que alguns corpos que se batiam por transporte público mais barato ou gratuito foram alvos de inusitada violência policial na cidade de São Paulo. Com base no que alguns analisantes me contaram sobre suas participações nas manifestações e acompanhando-as direta ou indiretamente, eu diria que não eram apenas os “20 centavos”, porque o que se descobria ali, a cada manifestação, era a satisfação dos corpos que, como também se pôde logo notar, não era apenas a dos corpos se encontrarem, mas também de se deixarem tomar por colisões e ímpetos mortíferos. Assim, retomando minha referência ao quadro de Holbein, é importante lembrar que a anamorfose que “pula” da representação é um crânio de caveira, e, se ela me permitiu fazer essa relação com os corpos cuja agitação surpreendeu a todos nessas recentes manifestações, parece-me igualmente importante que, como analistas, nós certamente não temos que desprezá-las (afinal, o que agita os corpos nos concerne desde os sintomas histéricos os mais clássicos), tampouco temos que tomá-las como uma crise da representação manifestando, como pretenderia um Badiou, o irrepresentável na política como uma solução inequívoca.

Duas frases de Lacan, que faz do equívoco um bem-dizer, surgem-me, aqui, como uma posição interessante frente às manifestações: “Eu aguardo, mas não espero nada” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 133). Essa passagem é instigante porque, comportando um enigma ao lidar com os verbos “aguardar” e “esperar”, atribui-lhes uma diferença que não é tão clara ao senso comum, nem para os dicionários, mas que é real para a psicanálise de orientação lacaniana. Afinal, “esperar” ressoa em “esperança” e, portanto, em uma expectativa de que há um sentido, um ideal, mesmo que (mortiferamente ou não) inalcançáveis e que comportem uma convocação do Outro, de um lugar ao qual se pode chegar, aspirar, fazer consistir. Bem diferente, “aguardar” implica a presença viva de um corpo, sem lugar para uma expectativa ou uma convocação quanto ao sentido, ao ideal ou ao Outro. Assim, um analista é aquele que, frente à agitação dos corpos, aguarda sem esperar, transmitindo-lhes, assim, inclusive, alguma serenidade. Novamente, posso verificar aqui com vocês o quanto vivemos um momento oportuno para a psicanálise de orientação lacaniana, mesmo que essa oportunidade não nos reserve qualquer conforto.

 


 

Referências
ARENAS, G. O corpo, gozável e literável. TEXTOaCORPO #18. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/Boletines/018.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 537-590.
LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1973). “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 550-556.
LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LAIA, S. Falar com o corpo, um solilóquio e a experiência analítica. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Textos/Hablar-con-el-cuerpo-un-soliloquio-y-la-experiencia-analitica_Sergio-Laia.html. Acesso em: 21/07/2013.
LAURENT, É. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento.html. Acesso em: 21/07/2013.
MILLER, J.-A. “O escrito na fala”. Opção Lacaniana online, nova série, ano 3, n. 8, jul. 2012. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_escrito_na_fala.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
VIEIRA, M. A. “Mordidavida”, Opção Lacaniana, n. 65, abr. 2013, p. 31.



A Educação E Os Corpos De Hoje

HEBE TIZIO

 

O presente trabalho toma como ponto de partida a desregulação dos corpos na escola e em outros espaços educativos como decorrência da mudança das coordenadas que organizavam esse espaço e a consequente perda da função educativa. Nesse sentido, tomam-se esses problemas como sintomas sociais na medida em que assinalam uma disfunção no mencionado aparato educativo.

Isso não implica esquecer a determinação individual que se encarna em cada sujeito, e, nesse sentido, deve-se estabelecer uma diferença entre sintoma social e sintoma subjetivo. O sintoma social dá a aparência de homogeneidade e é aí nesse ponto que devemos isolar o singular de cada caso para desagregá-lo do conjunto.

Para desenvolver o tema proposto, buscou-se lançar sobre o assunto um olhar retrospectivo, a fim de verificar o que se conhecia sobre ele no passado e constatar o que se concebe a seu respeito no presente, com vistas a apresentar algumas propostas para sua abordagem.

Retrospectiva

Tradicionalmente, a escola necessitou de corpos regulados para poder levar adiante seus objetivos curriculares. Porém não só se tratava de que a criança tivesse alguns hábitos adquiridos que lhe permitissem ficar tranquilamente sentada em sua carteira. A escola sabia que, para manter essa regulação, era preciso desenvolver um trabalho permanente, e isso se atingia, por um lado, por meio das mesmas aprendizagens e, por outro, por intermédio do controle disciplinar.

Tome-se como exemplo a leitura. Nela, a pontuação determina que, se há uma vírgula, deve-se fazer uma pausa, ou, se se depara com um ponto e parágrafo, isso implica que se deve dar uma parada mais demorada e lançar um olhar para o mundo. Com base nessas determinações se observa que a respiração, a voz e o olhar são afetados pela leitura em um esforço civilizatório sobre o pulsional. A partir dessa perspectiva, pode-se entender a leitura como uma regulação desses objetos pulsionais, a fim de poder entender o texto. Se isso não se realiza, não se entende o que se lê, e muito menos os ouvintes compreendem o que se deseja comunicar.

Na escola do passado, a disciplina se encarregava de reduzir o que resistia e se sustentava em uma autoridade reconhecida como tal porque se assentava no valor do saber que prometia um futuro. A regulação se dava, então, pelas vias do interesse e do castigo.

Progressivamente, esse exercício foi abandonado em função das mudanças sociais que se produziram. A regulação do corpo pelos métodos tradicionais passou a não mais funcionar. A disciplina, no sentido kantiano, como regulação do capricho, não se exerce em um mundo que promove o consumo e, portanto, o apetite desmesurado. E também porque a oferta educativa não se utiliza mais para esse fim, e o ideal do esforço foi substituído pela busca da felicidade.

Insistindo nessa perspectiva clássica, cabe lembrar, ainda, a função do exercício físico como forma de cansar o corpo a fim de deixá-lo dócil para a aprendizagem. Sabia-se que as crianças deviam cansar-se para depois poderem aprender e então descansar, dormindo as horas necessárias. A escola era considerada o lugar de trabalho da criança, e o jogo, um dos entretenimentos no tempo livre. Sobre esse ponto, Hannah Arendt escrevia, referindo-se à crise da educação nos Estados Unidos, que a distinção entre jogo e trabalho foi apagada a favor do primeiro como uma forma insidiosa de promover a infantilização, já que isso não prepararia para o mundo adulto.

É verdade que um mundo que não pode oferecer muitas oportunidades laborais se volta cada vez mais para o entretenimento como forma de controle social. O notável, nesse ponto, é que se conta com o consentimento dos controlados, pois o entretenimento engata bem com o ideal de felicidade. Observa-se, assim, uma promoção do apetite em oposição ao trabalho, e a pergunta é como se produz a abertura ao desejo, pois, na perspectiva freudiana, a proibição era estruturante, nesse ponto.

Se aqui se faz referência a essa escola é porque, hoje, as formas de regulação que a sustentavam e as que lhe davam autoridade se modificaram. Não se remete, com isso, à escola da brutalidade, do castigo, mas à dos últimos 30 anos, que quis retomar suas raízes de renovação pedagógica e introduziu o consenso como forma de trabalhar a disciplina. Não se trata de nostalgia, mas de verificar como uma instituição criada sob determinadas coordenadas de funcionamento, hoje, tem dificuldades de cumprir seu encargo frente às mudanças operadas. Essa escola renovada necessitava de um corpo que respondesse ao que se entendia por solidariedade, um corpo que se tentava regular com os “bons modos” e a palavra, a realização de atividades conjuntas e o interesse.

Aquilo que a escola não pôde regular foi expulso para as redes de exclusão social, e foi aí que a educação social encontrou seu campo e onde se colocam interessantes questões para a psicanálise aplicada.

Miscelâneas

a) Hoje, aparecem, na escola, os corpos chamados hiperativos, o corpo ameaçado ou maltratado no que se conhece como bullying, os corpos anoréxicos, as bulimias, os sobrepesos, as drogas… Sintomas que produzem sujeitos pouco dispostos à aprendizagem porque a dificultam. Além disso, o encargo social que se atribui à escola aumenta dia a dia, e, agora, ela deve-se haver também com outras tarefas, como educar para a saúde, a sexualidade, as drogas… Em outras palavras, ela deve regular os corpos — porém, como, se não há, hoje, espaços para o saber que é sua única possibilidade de operar? A escola vai-se inclinando perigosamente para o controle social direto dos corpos e para um futuro de administradora de fármacos, como já acontece nos Estados Unidos.

Se se passeia pelas cantinas escolares, pode-se verificar as dificuldades existentes em relação à alimentação. O que as crianças de hoje querem comer? Batatas, pizzas, macarrão… e a famosa dieta mediterrânea se transforma em medicação… Fala-se muito sobre educação para a saúde, mas, em geral, nas cantinas, vigora a economia, que se esconde, às vezes, por trás do capricho da criança, pautando-se por ele as propostas de cardápios.

A alimentação carrega as marcas da época, mais precisamente, as formas de comer. A geração dos pais dessas crianças da atualidade devia comer de tudo que se punha no prato, porque nada se podia descartar, sobretudo se se pensasse nos que não tinham nada para comer, as crianças famintas do mundo, as crianças das guerras. E se forçava a comer, não importava o tempo que demorasse a criança em amassar o bolo que fazia com a comida em sua boca, acabaria engolindo. Hoje, basta observar os pratos para perceber que a desconstrução da comida é uma nova vertente que se apresenta, e, à diferença dos cozinheiros famosos, os sujeitos de hoje produzem restos. A decomposição da comida nos elementos que a compõem deixa uma coroa de restos, ao redor do prato, e um vazio central.

Não se trata de apressar-se em tapar esse vazio com o significante anorexia, mas de interrogar-se sobre sua função. Por que não pensar em formas de recusa difusas frente a um “demasiado cheio de porcaria”, como dizia uma menina. Pois isso é, muitas vezes, a comida das cantinas escolares.

Poder-se-ia fazer um novo estudo sobre as particularidades do gosto em um momento em que tudo “sabe” igual, e isso as crianças o sabem, pois saber e sabor se homogeneízam cada vez mais e por isso se recusam. A atrofia do paladar gera recusas ou ingestão indiscriminadas porque se perdeu a bússola do prazer que leva ao objeto oral. É curioso que hoje seja o mercado o que trata de “educar” o gosto, ou deveria dizer: colonizá-lo para o consumo? Observa-se que, cada vez mais, são abertos cursos de “degustadores” de vinho, azeite, chocolate, águas!

Na prática, o não comer se modaliza de diferentes formas. Pode-se tratar de um “comer nada” que funciona em relação ao Outro. Esse objeto “nada” é produzido como anulação simbólica do objeto real. Nada como resposta ao excesso. E esse nada é muito ativo, hiperativo, às vezes, e tem, especialmente quando se trata de comportamentos transitórios, a função de uma recusa facilmente situável.

Pode-se ler também como uma luta para não desaparecer como desejante. O esmagamento na satisfação mata o desejo, e, por isso, há discordâncias. Os imperativos sociais atuais têm a força de uma demanda insaciável: consuma! E o excesso de objetos extermina o desejo, produzindo um tipo de “anorexia generalizada”. Não é casual que a metade do mundo morra de fome e a outra metade de excesso, e que isso se sintomatize nos transtornos da moda. Sem dúvida, existem diferentes formas de relacionar-se com a comida, porém todas encarnam modos de tratamento do objeto e do vazio.

b) A escola se apoiava na família, que lhe dava crianças disciplinadas, com hábitos adquiridos e necessidades atendidas, e, além disso, dava suporte nas tarefas para casa, sustentando e fixando as aprendizagens… Hoje, essa relação se inverteu, e à escola se solicita, em muitos casos, que seja o suporte da família. A família mudou, e isso repercute na forma de alimentar-se, nos hábitos e costumes, nas horas de sono, produzindo efeitos sobre os corpos.
Isso mostra que, na realidade, muitos desses sintomas em adolescentes — que costumam aparecer de maneira muito espetacular — constituem apelos à regulação, no momento em que se dá o encontro com o gozo sexual.

Os “meninos do garrafão”ii ocupam a rua para mostrar a conformação de um particular objeto oral que coloniza um espaço que não é seu e no qual deixam, por essa via, suas marcas. Não se trata de judicializá-los nem de dar tanto espaço a tertulianos que pregam o pior sobre eles. Deve-se oferecer a eles lugares habitáveis que sejam capazes de regular ao seu modo. Os jovens de hoje se queixam de que não podem aceder a certos lugares por falta de recursos. Por acaso, o incipiente movimento pela moradia não diz algo sobre isso? Esses jovens sabem que correm o risco de transformar-se em resto social e contra isso lutam, ainda que, às vezes, de maneiras confusas. Não querem ser o resto no prato dos políticos neoliberais.

c) Hoje, pode-se ver que, por detrás da promoção da imagem do corpo, há uma profunda recusa do mesmo. O individualismo crescente e a solidão que dele deriva não expõem as palavras que são o caminho necessário para o encontro com o outro. O celular, que é o parceiro da moda, cada vez menos é usado para falar. Mais além da economia nas contas telefônicas, “fazer uma perdida” é quase um modelo de comunicação: a comunicação com chamadas perdidas. Deve-se assinalar que o amor se nutre de palavras e que sempre operou como véu sobre o gozo para assegurar o encontro com o parceiro. A dimensão do amor aparece, hoje, modificada, o que torna, às vezes, mais difícil o contato corpo a corpo.

Miller retoma o termo de Lacan “rechaço do corpo”, porém o modaliza em diferentes aspectos. O rechaço do corpo do outro como parceiro sexual e o rechaço do próprio corpo com todos os matizes que isso apresenta, inclusive, o filho… Creio que se pode falar também sobre o rechaço pelas crianças e adolescentes e por tudo o que encarna modalidades de gozo que questionam a ordem estabelecida.

A educação fazia, pela via da cultura, esse caminho de palavras que não só agita os corpos no abraço, mas também os pacifica. Hoje, fala-se, até a saciedade, sobre a violência na escola, sem se perceber que esse problema é efeito do desanodamento da educação e da subjetividade. Quando se perde o efeito regulador da educação sobre o corpo — não pela via disciplinar, mas pelo interesse, pela curiosidade, que promove o patrimônio cultural — só resta acionar o mero controle social. A disciplina sobre o corpo não golpeia mais com palmatória. Por trás da máscara do body building e da realidade dos corpos empilhados e desnutridos nos campos de refugiados e nos cayucosiii, atinge com as distintas estratégias da biopolítica, com as quais a educação frequentemente colabora sem sabê-lo. O cool é, hoje, farmacopeia, a Supernanny propõe castigos públicos, e, há pouco, foi denunciada uma residência para menores em Girona subvencionada pelo governo suíço. Os rebeldes, encerrados em jaulas como castigo, eram tratados fora das próprias fronteiras. O modelo guantânamo se estende e pede “time out”.

Propostas

É verdade que parece haver certa tendência catastrofista quando se reflete sobre as mudanças. Tudo o que não se entende seria um anúncio potencial de “fim do mundo” e, na realidade, o é… Trata-se de um “mundo” que acaba para dar passagem a um novo, que, embora não seja conhecido, se anuncia de muitas maneiras.

A autoridade modificou-se, já se disse, porém isso não pode ser visto como uma catástrofe; trata-se, apenas, de se verificar que modelo de autoridade convém para esse novo tempo. Sabe-se que vários modelos já caducaram, mas não há dúvidas de que limites são sempre necessários. A ideia de limite tem a ver com a possibilidade de se dizer não a isto, mas sim à outra coisa. Deve-se saber que tanto o autoritarismo, como o “deixar fazer sem limite” são as duas faces do pior, ou seja, de um funcionamento superegoico. Trata-se de conceber, então, a autoridade como um instrumento que só poderá ser reconhecido se ajuda o sujeito a construir algo a que possa agarrar-se e que lhe permita, dessa maneira, encontrar o caminho do desejo.

É verdade que o saber foi depreciado, entretanto, é bastante compreensível que isso tenha acontecido porque os atuais suportes de armazenamento o mantêm a nosso alcance, sem necessidade de fixá-lo. É o que faz uma adolescente que começa a escrever em seu celular durante uma das primeiras entrevistas. Quando lhe pergunto o que ela está fazendo, diz-me que guarda algumas das coisas que foram ditas durante a sessão em um arquivo, assim, poderá consultá-lo quando quiser, sem necessidade de usar a sua própria memória. Diante disso, que tipo de saber deve-se pôr em jogo? Pode-se pensar em um saber minimalista que permita construir redes, não somente conectar-se, mas ler de link em link, gerar produtos e saber alocá-los.

Fala-se muito sobre a função do educador que “causa” o interesse do sujeito para provocar seu consentimento à oferta educativa. Hoje, isso se obtém quando se consegue descompletar, quer dizer, produzir um vazio no campo do saber, nunca se colocando em situação de demanda, perguntando à criança o que ela quer. A anorexia de saber produzida pelo excesso só pode ser tratada com um “menu degustação”, pequenos pratos variados que o sujeito pode reconstruir com seus tempos tão diferentes da pressa do sistema. É interessante apreciar a resistência pela via do ritmo lento que muitos adolescentes e crianças apresentam, não querendo ser forçados pela voracidade do tempo que a eles se impõe.

Para a construção da subjetividade, é preciso haver um desejo que não seja anônimo, e se pode dizer que essa é uma questão crucial também para a educação. Isso tem como resultado a necessidade de contar com educadores que vivifiquem a transmissão e com sujeitos que possam saborear os saberes. Assim, abre-se para cada um a particularidade de seu regime de satisfações, e isso é o que se aproxima da felicidade. Afinal, como não perceber que a tão atual busca pela felicidade aponta para o fato de que, hoje, se vive com um menos de satisfação? Os corpos sofrem, assim, pela emergência de um gozo não regulado. Por isso, as políticas repressivas são caracterizadas pelo ódio ao gozo, e a psicanálise sabe que, se o gozo é atacado diretamente, produz-se a transferência negativa, em termos atuais, instaura-se a violência. O gozo deve envolver-se com palavras, interpelar-se com semblantes, distender-se com jogos e esportes, ressoar na música, e, ali, o sujeito elegerá, a partir da temática fantasmática, a que porto se atar, com que meios, sintomaticamente, se sustentar.

 


 

Referências
ARENDT, H. “A crise na educação”, In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 221-147.
FREUD, S. (1930). “O mal-estar na civilização”, In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1990, vol. XXI, p.81-171.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Paidós: Buenos Aires, 2005.
NÚÑEZ, V. “Hacia una reelaboración del sentido de la educación. Una perspectiva desde la Pedagogía Social”, In: Educación no formal. Fundamentos para una praxis. Ministerio de Educación y Cultura de Uruguay, 2006.
Tradução: Kátia Mariás Pinto
Revisão da tradução: Márcia Mezêncio
1 “La educación y los cuerpos de hoy”. Conferência realizada na Universidade de Deusto em 7 de abril de 2006. Publicada originalmente em Freudiana, Revista de psicoanálisis de la ELP – Catalunya, n. 47, Barcelona, 2006. p.31-37.
2 N.T.: “Chicos del botellón”. Refere-se ao costume, principalmente entre os jovens, de consumir grandes quantidades de bebidas alcoólicas em vias públicas, comum na Espanha desde finais do século XX.
3 N.T.: Embarcação indiana muito pequena, menor que a canoa, na qual não cabe mais do que uma pessoa.

Hebe Tizio
Hebe Tizio – Psicanalista em Barcelona, Membro da AMP. E-mail: hebe@tizio.e.telefonica.net



As Saídas Do Tratamento Nos CAPS A

MARIA WILMA S. DE FARIA E ANA REGINA MACHADO

Considerações Iniciais

As saídas do tratamento no Centro de Atenção Psicossocial Álcool/Drogas – CAPS ad podem ser pensadas a partir das diferentes lógicas que permeiam a política de saúde na área de álcool e drogas, a saber: a reforma psiquiátrica, a redução de danos e a clínica. Inúmeras, então, são as perguntas que podemos elaborar sobre essas saídas. Quando se conclui a passagem de um paciente pelo CAPS ad? A partir de que lógica poderemos construir o encerramento, ainda que temporário, de uma passagem pelo CAPS ad? A saída do CAPS ad coincide com o fim de uma proposta de tratamento? O que deve ocorrer no serviço para que a saída se apresente como possibilidade?

Pretendemos, inicialmente, neste texto, problematizar as saídas do CAPS ad, a partir das diferentes lógicas que permeiam a atenção ofertada nesses serviços. Em um segundo momento, a partir da experiência clínica do Centro Mineiro de Toxicomania-CMT (um CAPS ad) e dos referenciais teóricos que a norteiam, trabalharemos os momentos de saída do serviço, articulando-os com os de entrada e seus impasses. Nesse percurso, tentaremos desenvolver respostas, ainda que parciais, às inúmeras perguntas que o tema suscita.

As Diferentes Lógicas No CAPS Ad: Diferentes Orientações Sobre As Saídas Do Tratamento?

Antes de apresentarmos nossas formulações sobre as saídas do tratamento nos CAPS ad, parece-nos pertinente compreendermos as diferentes funções que esses serviços podem assumir para as pessoas que os frequentam.

Sabemos que se trata de um espaço destinado ao tratamento de pessoas dependentes ou em uso prejudicial de álcool e outras drogas. Na maioria das vezes, o que se coloca como demanda, nesse serviço, é o sofrimento intenso de um sujeito ou de seus acompanhantes devido ao uso das substâncias, a demanda primeira é interromper o consumo. Tal como Zenoni preconiza:

[…] a instituição existe para acolher, colocar o sujeito à distância, assisti-lo. A instituição existe como uma resposta social a fenômenos clínicos de alguns estados de psicose, de passagens ao ato, de depauperamento físico e uso excessivo de drogas (ZENONI, 2000,p.14)

Enfim, muitas vezes, torna-se necessário o recurso à instituição para se lidar com modalidades de gozo que fazem retorno no corpo e empurram o sujeito ao agir. Dessa forma, estabelece-se, para a instituição, uma função social, que não é incompatível com sua função clínica.

Na perspectiva da política de saúde, que também é uma resposta social ao fenômeno da dependência de drogas, o CAPS ad tem como uma de suas funções contribuir, no plano individual e no coletivo, para a redução dos danos e prejuízos associados ao consumo dessas substâncias. A perspectiva da redução de danos se faz presente no serviço, relativizando sua função e os objetivos de suas práticas, que deixam de corresponder, exclusivamente, à promoção da abstinência ou à interrupção do consumo. Trata-se de uma proposta ousada, ainda polêmica, mas que permite a pergunta: o que é possível em cada caso que se apresenta?

Ainda na perspectiva da política de saúde, os princípios e as diretrizes da reforma psiquiátrica devem estar presentes nos CAPS ad, traduzindo-se em formas de atenção que não segreguem os usuários, que contribuam para sua inserção ou reinserção social. A proposta, então, é oferecer cuidados em redes de atenção, que viabilizem a retomada dos diversos laços sociais, que, em algum momento e por algum motivo, foram comprometidos.

Além disso, ainda dentro da proposta da política, espera-se que, no CAPS ad, aconteça um trabalho clínico. Fala-se sobre uma clínica ampliada ou em uma clínica reinventada. Em uma instituição que tem a psicanálise como referência teórica, a dimensão clínica se coloca desde a entrada no serviço. Não cabe aqui ofertar a psicanálise para todos os que chegam ao serviço, mesmo porque um paciente não busca uma análise ao se endereçar a um CAPS. No entanto, podemos colher efeitos que a presença e o encontro com psicanalistas podem causar sobre cada um que se endereça ao serviço e também no modo de esse serviço funcionar. Receber o caso em sua unicidade é prioritário, não temos um modelo pronto, um “pacote” a ser apresentado a todos. É somente a partir de uma escuta atenta e cuidadosa e de intervenções que retornem sob o sujeito, que saídas podem ser construídas.

Desenvolver propostas de tratamento nos CAPS ad, considerando a interface entre essas lógicas, torna-se um desafio a ser enfrentado. Embora tenhamos diretrizes claras em relação à forma de funcionamento desses serviços, percebemos que cada serviço tem um modo de fazer diferente do de outro, priorizando uns mais a clínica, outros mais a reinserção social, outros as urgências, outros a redução de danos. Não há um único modo de fazer. Quando pensamos em CAPS, um convite à invenção de práticas de atenção, um apelo à singularidade de cada caso, bem como um direcionamento do tratamento são pontos que precisam ser pensados, na medida em que os sujeitos não são iguais, bem como as relações que estabelecem com o uso de álcool e outras drogas.

Se considerarmos que é na interface dessas três lógicas que os tratamentos nos CAPS ad se desenvolvem, é também a partir delas que poderemos pensar as saídas do tratamento nesses serviços. Dessa forma, tais saídas comportariam: sob a lógica da redução de danos, o estabelecimento de um padrão de consumo de drogas menos prejudicial à saúde; sob a lógica da reforma psiquiátrica, o reestabelecimento de laços sociais, a inserção em uma rede de cuidados; e sob a lógica da clínica, a retificação do sujeito frente ao gozo, buscando outras formas de satisfação que incluam a divisão subjetiva.

Redimensionando Os Momentos Da Entrada E Construindo Saídas

A experiência do Centro Mineiro de Toxicomania aponta que parece ser imprescindível, ao falarmos sobre “saídas”, considerarmos a questão da “entrada”. Esta poderá acontecer de inúmeras maneiras, apresentando diversos aspectos: o real do corpo e seu limite aos excessos; a devastação e a errância; o mal-estar colocado no campo do outro social; o insuportável da angústia de viver com e sem as drogas e o álcool; o rompimento com os laços sociais, tais como emprego, família, escola; a busca de um convívio moderado com a substância. Enfim, toda uma gama de apresentações pode tornar-se presente.

Parece indispensável, no momento de entrada, não se ter pressa. O que cada um está buscando? Pergunta primeira que não deve ser desprezada. Aqui, a questão do tempo se coloca. “Dilatar” o tempo de entrada, escutar, precisar com cuidado o que é possível e o que é necessário.

Muitas entradas e saídas poderão acontecer via intervenção no corpo. Recursos como o leito de desintoxicação ou a intervenção médica podem fazer todo um diferencial. Fazer um “semblant” de internação, através do leito de desintoxicação e repouso, ou mesmo a “internação domiciliar consentida”, pactuada com o usuário e seus familiares, via transferência, pode funcionar como um ponto de basta a uma posição até então não imaginada. Aqui, a “suposição de saber”, endereçada ao outro da instituição, pode ser um instrumento valioso para se operar clinicamente na condução de um caso.

Em relação à atenção que a instituição oferece, alguma tensão faz-se necessária. A porta “entreaberta” pode ser uma estratégia: não se oferece demais, não se escancara a porta, ofertando tudo para o outro, como se soubéssemos o que é o bem para alguém, mas também não se fecha a porta, deixa-se um espaço para que o sujeito possa querer adentrar. O fato de um paciente ter demandado, inúmeras vezes, uma ajuda e não ter correspondido a um “ideal” esperado pela equipe não nos autoriza a dificultar uma nova tentativa. Assim, um novo tempo para um sujeito poderá advir, ainda mais que nessa clínica o ir e vir se faz constante.

Alguma aposta deve estar presente, por exemplo, quando se oferta a permanência-dia, visando a uma retificação da posição do sujeito com o seu fazer. A permanência-dia não se deve constituir apenas como um espaço de assistência ou de uma certa acomodação que pode até favorecer uma moderação na relação com a droga. Mais do que isso, é importante que, nesse espaço, ocorra uma escuta, o acompanhamento dos casos. Pois estar simplesmente na instituição não se constitui em si um tratamento, não basta um paciente ficar todo o dia na unidade, se isso não retorna sobre ele, se não se consegue extrair disso algum efeito. Portanto, um cálculo temporal deve também nortear a passagem pela instituição. A dimensão da saída deve ser pensada desde a entrada, evitando a cronificação nesse espaço. Introduzir essa dimensão parece necessário para viabilizar a construção de saídas do tratamento ou da instituição. Recentemente, em uma reunião diária, conduzida por uma técnica do CMT, quando estavam presentes 40 pacientes, essa dimensão foi problematizada, a partir da seguinte pergunta: o que cada paciente estava fazendo para não precisar estar mais no CMT? Dessa forma, o momento de saída da instituição foi antecipado, cada um foi interpelado a dizer sobre o que desejava em relação à própria vida, para além daquilo que a instituição ofertava. Sabemos que, muitas vezes, a saída da instituição é significada como algo da ordem da punição, da perda de uma atenção. Todo um trabalho é necessário para que a saída possa ser possível. Sabemos o quanto é difícil reatar laços familiares, construir novos vínculos sociais, modificar a relação com a droga e retificar a posição diante do gozo.

Nesse ponto, parece ser de fundamental importância apontar a dimensão do desejo colocada também no campo da equipe que assiste. O espaço de discussão dos casos para conseguir lidar com o real do gozo, da morte, dos limites e embaraços torna possível a construção do caso clínico. Uma equipe deve operar o menos rígida e prescritivamente possível, para que a posição superegoica não produza ressonâncias.

Saídas Possíveis No Cotidiano De Um CAPS Ad

M., de 54 anos, foi encaminhado por um hospital geral, onde esteve, por 60 dias, internado, em decorrência do uso intenso do álcool. Traz em seu corpo o que lhe restou: “uma caldinha do pâncreas”. Acredita que consegue sobreviver com esse resto, desde que não retorne ao consumo. Do ponto de vista clínico e da desintoxicação, temos um sujeito recuperado, abstêmio há meses. Foi aceito no CAPS, medicado para uma ansiedade constante e por um tempo acompanhado em um trabalho de escuta. Isso se fez necessário, pois, para além da perda vivida no corpo, consentir em perder o álcool, que sempre o acompanhou, mostrava-se demasiadamente doloroso.

S., paciente de 35 anos, psicótico, morador de rua desde os 15, consegue fazer um bom uso da instituição. Em situações de crise, sabe onde ser acolhido. O álcool entra como uma forma de apaziguamento frente às vozes que o invadem. Quando em excessiva quantidade, toma a cena do caso. Mantém a abstinência por algum tempo, mas ela não parece ser a meta a se alcançar. Nesse caso, as saídas são sempre temporárias, não se fala sobre término de tratamento.

A., adolescente de 15 anos, nos procurou fazendo uso excessivo de maconha, droga que lhe permitia lidar com o feminino via identificação a uma gangue MMM (Mulheres, Magrelas, Malvadas). Realizou um percurso na instituição, onde questões referentes às dificuldades com o sexual e com a relação “grudada” à mãe puderam-lhe retornar, por meio de um trabalho de escuta. A resposta que ela encontrava nas atuações, ao invés de separá-la da mãe, fazia com que ficasse ainda mais presa à identificação “mulher má”, forma como até então essa mãe era apresentada. No período de cinco meses, A. pôde construir “o se fazer mulher” de uma outra maneira.

Podemos pensar também em saídas quando acontece uma regulação do gozo desmedido, ao qual o sujeito estava entregue; quando uma nova orientação calcada no desejo se anuncia; quando a droga e o álcool caem, e um novo sintoma se produz; quando até mesmo o sujeito se contenta com alguns efeitos terapêuticos alcançados. Essas podem ser consideradas boas saídas. Mas temos também saídas por abandono. Aquelas em que o sujeito não consente em abrir mão das substâncias e continua em seu desvario. Mesmo assim, podemos perceber que, se, de alguma forma, o técnico ou mesmo a instituição conseguem inscrever-se para o paciente como um Outro, um êxtimo, a quem se possa endereçar a qualquer momento, talvez a “função CAPS” não tenha deixado de se cumprir.

Considerações Finais

Nos CAPS ad, podemos pensar as diferentes saídas do tratamento a partir das diferentes lógicas: redução de danos, reforma psiquiátrica e clínica. Também podemos esperar por uma coincidência, uma convergência dessas três lógicas, em algumas saídas. Quando isso não acontece, um tensionamento entre as três lógicas poderá ocorrer, de maneira a favorecer a construção de uma saída possível. Sabemos que algo deve ser construído nos serviços, ainda que esse algo não corresponda ao ideal de uma equipe, o que não deixa de ser profícuo. Entendemos que não há primazia de uma lógica sobre a outra e acreditamos que é somente nessa interface, na tessitura construída nesses dispositivos, que, para cada sujeito, o CAPS poderá ter uma função.

 


Referência Bibliográfica
ZENONI, A. Qual instituição para o sujeito psicótico? In: Revista Abrecampos, Ano 1, nº 0. Belo Horizonte: FHEMIG, 2000. p 12-31.

Maria Wilma S. De Faria E Ana Regina Machado
Ana Regina Machado – Psicóloga, especialista em Saúde Mental, mestre em Saúde Pública. Coordenadora do Núcleo de Redes de Atenção à Saúde da Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais. E-mail: anarmachado@uol.com.br. Maria Wilma S. de Faria – Psicóloga, psicanalista, especialista em Saúde Mental, terapeuta do CAPS ad Centro Mineiro de Toxicomania/FHEMIG. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Responsável pela Rede TyA Brasil. E-mail: mwilma62@gmail.com.



Entrevista Com Luis Darío Salamone

Entrevista Com Luis Darío Salamone[1]

Didier Velásquez: Luis Darío, conte-nos sobre sua experiência no TyA durante o seu longo percurso de trabalho.

Luis Darío Salamone: O trabalho começou com um convite, antes da criação da EOL — Escola de Orientação Lacaniana — em Buenos Aires. Naquele momento, eu pertencia a uma instituição chamada “Simpósio do Campo Freudiano”, que foi uma das que convergiram na EOL. Maurício Tarrab convidou-me para um grupo, que ele pretendia formar, para trabalhar a questão das adições. Éramos três pessoas e fizemos uma apresentação clínica no Simpósio. Recordo que fui mal interpretado por alguns participantes, naquela noite, que pensavam que não era o caso de ocupar-se dessa questão de modo particular, a partir da psicanálise, que a psicanálise ia além de qualquer especialidade, o que, seguramente, era levado em consideração por nós. Mas a questão não era, precisamente, a de fazer disso uma especialidade, mas compreender a “relação específica que alguém pode chegar a ter com uma substância tóxica”. Em seguida, a Escola foi criada, e a partir dessa aproximação, que trouxe muitos analistas que trabalhavam em diferentes grupos, reunimos aqueles que vinham trabalhando o tema, e ficou decidido o que seria o TyA, a partir de então, vinculado ao Campo Freudiano. Jacques-Alain Miller orientou sua criação, e Éric Laurent foi, por longo tempo, seu assessor.

Adotamos a sigla TyA, com base nas iniciais de Toxicomanias e(y) Alcoolismo. Usamos Toxicomanias porque o termo ‘adições’, na Argentina, estava muito desgastado e transformado em um rótulo. Então, escolhemos um termo velho (toxicomania), que ainda não estava impregnado, e alcoolismo. Pensávamos que a experiência do tóxico e a intoxicação pelo álcool tinham algumas especificidades e trabalhamos, então, ambas as questões, separadamente, e seu entrecruzamento. O grupo se formou em 1992, no mesmo ano da fundação da EOL. Seus primeiros diretores foram Mauricio Tarrab, Ernesto Sinatra e Daniel Silliti. Depois, transformou-se em um departamento que hoje é o Instituto Clínico de Buenos Aires (ICdeBA). Atualmente, os responsáveis somos eu, Darío Galante, Mabel Levato e Fabián Naparstek. Mauricio Tarrab e Ernesto Sinatra continuam trabalhando como assessores.

Didier Velásquez: Quais foram as principais conquistas da Rede TyA? Sabemos que esse trabalho não se realiza somente em Buenos Aires, e isso nos parece muito interessante.

Luis Darío Salamone: Acredito que uma das principais conquistas se relaciona justamente com o fato de que a Rede TyA já não é somente um grupo de trabalho em Buenos Aires, já que existe um grupo, em Córdoba, bem consolidado. Existe um grupo também em Rosario, outro praticamente formado em Santa Fé, e, além disso, existem vários grupos no Brasil, há também gente trabalhando em Madri, Bruxelas e Paris (onde havia um grupo que se chamava GRETA). Os diferentes agrupamentos assumiram a terminologia TyA para o que se configurou o Primeiro Colóquio Internacional de TyA, realizado no marco do último Congresso da AMP e aberto por Judith Miller.

Estamos em expansão, para além da consolidação do grupo, em algumas províncias da Argentina, como Mendonza, existem pessoas interessadas. Assim como em outros lugares da América, como Chile, México e Bolívia, e gostaríamos muito que a Colômbia também participasse desse movimento. Tive a oportunidade, anos atrás, de visitar a Colômbia, a Bolívia e o México, trabalhando esses temas. São países onde realmente deveria haver pessoas da psicanálise refletindo sobre essa problemática, pela abrangência que essas questões têm na atualidade. Há uma recomendação de Lacan: que os analistas devem estar à altura da época em que vivem, e me parece que, na época em que vivemos, a relação dos sujeitos com o consumo é algo de grande relevância, de que não podemos nos furtar.

Didier Velásquez: Depois de 20 anos de trabalho, tive a oportunidade de assistir ao I Colóquio Internacional de TyA, no qual se estabeleceram quatro eixos de trabalho. Você poderia falar brevemente sobre cada um deles? Em primeiro lugar, “a psicanálise é colocada à prova pela adição generalizada”. Particularmente, enfatizo a expressão “adição generalizada”, porque, como sabemos, já não se restringe aos tóxicos e ao álcool.

Luis Darío Salamone: Foi Ernesto Sinatra que, de alguma forma, assinalou, a partir de uma leitura do seminário ministrado por Miller e Laurent, “O outro que não existe e seus comitês de ética”, que a questão em jogo é a de uma toxicomania generalizada. O termo adição generalizada foi reintroduzido por Judith Miller, que é quem sempre acompanha o trabalho dos diferentes grupos de TyA no mundo. Ela também se interessa pela revista, que também está entre as conquistas, não somente temos vários livros publicados, mas também uma revista internacional, que se chama Pharmakon e que está no número 12. Judith se ocupa, pessoalmente, da montagem da revista, como dos encontros internacionais que temos em cada Congresso ou cada Encontro Americano. Foi ela quem preferiu o termo “adições”, que não tem, ao que parece, o mesmo uso na França e na Argentina e que, talvez, lá não estivesse tão desgastado. Além disso, o termo “toxicomania generalizada” dá conta da relação aos tóxicos, em contrapartida, o termo “adição” permite a entrada de outras questões. Em algum momento, eu havia trabalhado a questão do “consumo generalizado”. O que acontece é que também existe uma forma de pensar essa questão, que é considerar, como defende Mauricio Tarrab, que o “gozo é tóxico”. Assim, o gozo que se põe em jogo no consumo, para além da substância, sempre é tóxico. Isso permite pensar sobre a dimensão de uma toxicomania generalizada.

No Colóquio, o que se fez foi adotar eixos que permitissem considerar essa questão, a partir de um texto de Jacques-Allain Miller, que lhes recomendo para trabalhar: “Uma fantasia”[2]. Nesse texto, ele retoma a tese de Lacan sobre o “objeto a” elevado ao zênite da civilização, para situar as problemáticas que se apresentam a partir do momento em que se põe em jogo o discurso hipermoderno e que levam a essa questão do “consumo generalizado”.

Didier Velásquez: Outro eixo importante foi o que expõe a diferença entre “especialidade e especificidade”. Estamos na época de “especialistas e experts”. Parece-me muito interessante essa oposição delineada dessa forma.

Luis Darío Salamone: Especialidade não existe dentro da psicanálise, o que se pode fazer é trabalhar o que denominamos de “a relação específica que cada sujeito tem com o gozo”. Muitas vezes, isso está mediatizado pelo tema de alguma prática de consumo, pela ingestão de alguma substância, que, no organismo, surte seus efeitos e que se trata de poder conhecer, como eu defendia recentemente, no seminário, essa relação específica: conhecer os efeitos, conhecer qual é a função que uma substância cumpre na “economia psíquica de um sujeito”, e, por outro lado, ver como isso se aborda clinicamente. Essa é a questão, a psicanálise com sujeitos toxicômanos não é diferente de qualquer psicanálise, em todo caso, apresenta alguma questão específica, como ocorre em cada análise.

Didier Velásquez: Em relação ao eixo das “práticas institucionais e o analista na instituição”, penso que há uma proliferação inusitada desse tipo de instituições (particularmente em cidades vizinhas a Medellín), e o analista é convocado nessas ocasiões. Há uma grande dificuldade, nesse encontro com outros discursos, para possibilitar um “lugar para o discurso analítico”, particularmente, nessas instituições. Como você analisa essa situação?

Luis Darío Salamone: Em geral, as instituições não têm uma prática que se relacione com a psicanálise. Estão baseadas, por exemplo, na experiência de comunidades terapêuticas, ou nos Alcoólicos Anônimos, por mais que, em Buenos Aires, a psicanálise esteja muito presente e haja vários psicanalistas nas instituições. A maioria das instituições é herdeira de práticas policiais, nas quais o que está em jogo é o “Discurso do Mestre”, das quais alguns colegas se aproximam para tentar mudá-las e, às vezes, conseguem. A psicanálise está em condições de mostrar outro tratamento do gozo, essa seria a aposta. Eu acredito que se deve ter muito cuidado para que não se perverta a prática da psicanálise, e esse é o grande problema que sempre houve com esse tipo de questão.

Há um preconceito em pensar que um sujeito viciado se cura em uma instituição. A maioria dos integrantes que dirigiram o TyA na Argentina não trabalha em instituições especializadas e, que eu saiba, não trabalhou, nem eu, nem Ernesto Sinatra, nem os colegas Mauricio Tarrab, Daniel Silliti, Claudio Godoy, Fabián Naparstek e Mabel Levato. Já Darío Galante participa de um serviço hospitalar com essas questões, e Silvia Botto dirigia uma instituição que abordava a questão a partir da psicanálise, quando ela era a responsável. Mas os que trabalharam em instituições eram exceções, o mesmo acontecia com os participantes das diferentes atividades.

Sim, supervisionamos e estamos em contato com instituições, mas jamais criamos uma instituição de assistência clínica. Cada um trabalha em seu consultório. No entanto, há alguns anos, o jornal “La Nación” entrevistou um paciente meu que se havia recuperado do consumo de várias coisas, e informaram no jornal que ele havia recorrido à clínica de Luis Salamone. Não tenho, nem jamais tive, nenhuma clínica. Sempre trabalhei em meu consultório e, com isso, quero dizer que existem certos preconceitos que levam a pensar que essas questões se resolvem em uma instituição especializada; se perguntássemos às comunidades terapêuticas qual a porcentagem de sucesso que eles alcançam na recuperação desses tipos de casos, ficaríamos surpresos. Se disserem a verdade, em geral, é menos de 10%. Ao longo de todos esses anos de trabalho, foram poucas as pessoas com as quais tive que recorrer a uma internação. Acredito que foram umas três, a pedido delas mesmas, porque não havia outra forma para que pudessem frear o uso e irem ao consultório. A internação lhes proporciona uma espécie de corte, de separação, mas não a cura. A aposta é que haja outro lugar, nessas clínicas, algo diferente que permita a inserção de analistas, sempre com o cuidado de não terminar rechaçando-se, sem querer, o discurso analítico, pervertendo-o, degradando-o.

Didier Velásquez: Nas publicações que tive a oportunidade de ler, em particular a Pharmakon, suas elaborações concentraram-se, desde muito tempo, no problema da “relação entre toxicomania e psicose”. Qual é a atualidade dessa discussão, dado que é um tema de interesse, a partir da psicose ordinária e da recorrência de sujeitos consumidores inscritos sob esse diagnóstico?

Luis Darío Salamone: Uma das problemáticas que se discute com relação às internações é que, no princípio de tudo, está a abstinência. Existem sujeitos aos quais se dá alguma medicação para substituir a droga, mas o que se descobriu é que existiam pessoas que eram psicóticas e encontravam uma estabilização no tóxico e que, ao tentarem manter a abstinência, elas se desestabilizavam. Então, tentava-se alguma cura substituindo-se a droga por outra substância, e isso pode cumprir sua tarefa ou não, deve ser verificado se se alcança uma estabilização mais satisfatória do que aquela que se consegue com a droga. O que se deve considerar, em cada sujeito, é a função que o tóxico cumpre. No caso da psicose, pode ser a de estabilizar o sujeito. Isso leva, no trabalho de uma análise, à necessidade de se pesquisar outros modos de estabilização, porque é certo que a substância que o sujeito usava para estabilizar-se não só o equilibrava como também complicava sua vida.

Defendo algo básico, como, por exemplo, alguém poder estabilizar-se com o álcool, mas também matar-se com ele. Trata-se de trabalhar para que se conquiste outro tipo de ancoragem, também pode ocorrer, por que não, que se busque um psiquiatra que prescreva alguma medicação, se é o que se faz necessário, mas não apostando unicamente nisso, e sim no trabalho analítico do sujeito.

Didier Velásquez: Acabamos de conhecer seu último livro Álcool, tabaco e outros vícios. Que outros aspectos você desenvolve atualmente em seu trabalho?

Luis Darío Salamone: O título responde simplesmente aos muitos trabalhos que tenho produzido ao longo desses anos, na TyA, e, quando fui organizar o livro, havia material para dois ou três! Nesse primeiro, decidi incluir alguns trabalhos sobre generalidades das toxicomanias e alcoolismo e, fundamentalmente, os que se referem à questão do álcool, do tabaco e também de outros vícios, entre os quais há textos sobre o jogo e outro sobre uma adição às cirurgias.

No próximo livro, estarão reunidos textos que se relacionam com outras substâncias tóxicas, mais ligados ao tema das toxicomanias, possivelmente, receberá o título O silêncio das drogas, que é também o título de uma conferência que ministrei no México. Nele, estarão agrupados outros textos sobre outros tipos de consumo. Mas um dos eixos centrais de meu trabalho é o que apresentei hoje, no seminário, quase sempre, se não é a clínica, é o que podem ensinar-me escritores que consomem, músicos ou qualquer pessoa que esteja disposta a dar um testemunho de sua particular relação com a substância, é isso que me interessa trabalhar. Assim se produz um ensinamento.

Didier Velásquez: O que implicaria a ampliação da Rede TyA em outras sedes e, em particular, em nosso caso, na NEL Medellín?

Luis Darío Salamone: Parece-me que isso não ocorre por outra via que não seja a do desejo dos analistas, como nós fizemos, dando forma, agrupando-se e tentando trabalhar essa problemática. O que se espera, pelo menos, sob a lógica que sempre foi própria ao Campo Freudiano, é que se ponham a trabalhar; uma vez que se esteja trabalhando, vejam a forma de articular-se com outros. Ou seja, se você me pergunta, concretamente, sobre como começar, parece-me que se deve iniciar reunindo-se, trabalhando o tema, quando já houver certa questão para transmitir, organizando os espaços de transmissão (seminários, jornadas) e, uma vez que isso esteja funcionando, então dizer: queremos fazer parte da Rede. Seguramente, serão bem-vindos, porque o trabalho o justifica, como acontece sempre.

Didier Velásquez: Finalmente, queria fazer uma pergunta relativa ao título do seminário que você realizou em Cali e do qual surgiu o texto “Quando a droga falha”. Você mencionava, agora, no seminário, que todos os consumidores de substâncias desejam uma “substância perfeita”, mas ela sempre falha. O que falha? É a substância? Ou é algo da estrutura subjetiva?

Luis Darío Salamone: Parece-me que uma coisa está ligada à outra. O sujeito acredita que encontra, na droga, uma solução, que, em um momento, mostra seu ponto de falha, e o demonstra, precisamente, porque a falha subjetiva não se soluciona escondendo-a. O que precisa ser feito é um trabalho de elaboração, um trabalho de análise, para poder relacionar-se de outra maneira com isso, senão, as coisas escapam das mãos. Mas você se expressou de uma maneira mais exata, apontando para um retorno disso que sempre falha.

 


 

Tradução: Maria Rachel Botrel
Revisão da tradução: Márcia Mezêncio
[1] Esta entrevista foi realizada em Buenos Aires, na sede da EOL, no dia 03 de maio de 2012.
[2] N.T.: MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. In: Opção Lacaniana, nº 42. Rio de Janeiro: Edições Eólia, fevereiro de 2005.



Entrevista Com Fabián Naparstek

Entrevista Com Fabián Naparstek [1]

Didier Velásquez: Em primeiro lugar, qual a razão de seu interesse na problemática das toxicomanias e do alcoolismo?

Fabián Naparstek: Na Argentina, há um grupo que, desde o começo da Escola, se chamou “TyA – Toxicomanias e Alcoolismo”. Esse grupo surge no mesmo momento da criação da EOL — Escola de Orientação Lacaniana. Quem estava ali, naquele momento, era Maurício Tarrab, Ernesto Sinatra e Daniel Silliti. Tanto Luis Salamone quanto eu estávamos presentes quando da criação desse grupo, e, com o tempo, passamos a ser responsáveis por ele. Assim, há uma tradição de trabalho de TyA em Buenos Aires, e, com o surgimento de diferentes grupos da Rede Internacional, uma parceria se formou, com trabalhos de colegas da Bélgica, Brasil, Espanha, Suíça, etc. Há algum tempo, compartilhamos um profundo trabalho sobre o tema, de diferentes maneiras.

Por outro lado, pessoalmente, foi possível instaurar uma disciplina na Universidade de Buenos Aires, uma cadeira eletiva que se chama “Clínica das Toxicomanías e do Alcoolismo”. É oferecida de modo bastante inovador, sendo a primeira matéria com esse modelo na Universidade de Buenos Aires, dentro do curso de Psicologia. Os alunos cursam dois espaços diferentes: em um espaço, tomam conhecimento de casos atuais tratados por colegas que, em geral, têm ligação com o Campo Freudiano, casos publicados. Em cada aula, tomam contato com um diferente caso clínico publicado. Por outro lado, há os trabalhos teóricos sobre os temas das toxicomanias e do alcoolismo, a partir da Orientação Lacaniana. Isso tem sido importante porque convoca as pessoas, e, a partir disso, direciona parte delas ao seminário do grupo TyA, que funciona desde 1992. Ou seja, são 20 anos de funcionamento ininterrupto.

Didier Velásquez: A partir deste “Primeiro Colóquio Internacional da Rede TyA”, renova-se a pergunta: Qual é a importância, na atualidade, da abordagem das toxicomanias e do alcoolismo?

Fabián Naparstek: A toxicomania é um dos modos de manifestação sintomática que representa, paradigmaticamente, nossa época, uma era de consumo generalizado, como Jacques-Alain Miller nos indicou. De fato, tanto Miller quanto Laurent têm falado, em diferentes momentos, sobre toxicomanias e alcoolismo, porque representam um modo de gozo próprio da época atual.

Do meu ponto de vista, é o que tenho escrito em meus livros, entendo que a Orientação Lacaniana oferece respostas muito claras e muito fortes para fazer frente às toxicomanias, desde a perspectiva da clínica lacaniana, naturalmente, com as limitações próprias com que nos vemos confrontados na clínica atual. Porém, o que tenho comprovado, não somente aqui, mas em diferentes partes do mundo onde tenho compartilhado com colegas que trabalham com sujeitos toxicômanos, é como a Orientação Lacaniana é uma ferramenta muito forte para fazer frente a esse tipo de patologia.

Didier Velásquez: A propósito dos conceitos da Orientação Lacaniana, há um texto de Laurent que tem sido uma referência, “Tres observaciones sobre La Toxicomania” (1994). Em sua segunda observação, ele aponta como o tóxico estabelece “uma ruptura com as particularidades do fantasma” (LAURENT, 1994, p.19). Não esquecendo ainda a discussão ali presente sobre “a ruptura com o falo” como fórmula válida para a neurose, você pode esclarecer o que implica para um sujeito “a ruptura com as particularidades do fantasma”?

Fabián Naparstek: É uma tese fundamental e básica em nossa orientação, ao longo dos 20 anos de percurso de TyA. É uma questão extraída de uma conferência de Lacan no encerramento de uma Jornada de Cartéis, em que ele formula que “a droga é o que permite romper o casamento com o faz pipi”[2], fazendo uma referência a Hans. O que Éric Laurent marca muito bem, nesse texto, é que essa tese é muito coerente com as neuroses, mas não se ajusta às psicoses, uma vez que, nestas, a “ruptura com o falo está presente desde o início”.

Em minha tese de doutorado em Paris, desenvolvi esse aspecto de como pensar a toxicomania dentro do campo das psicoses, com as diferentes variantes dos distintos tipos de psicoses (esquizofrenia, paranoia, etc.). Existem também muitos trabalhos de colegas sobre isso.

A ruptura com o falo e com o fantasma é uma ferramenta muito apropriada para pensar a clínica com as neuroses, permite-nos pensar e colocar no horizonte, em alguns casos, o restabelecimento ou o reenlaçamento do casamento com o “faz pipi”, como uma maneira de saída da toxicomania. Na verdade, eu também proponho dessa forma o que chamamos estritamente a entrada em análise, em que, ao colocar em jogo a transferência, um laço amoroso no dispositivo analítico, isso mesmo já poderia indicar a saída da toxicomania, sem que, necessariamente, implique deixar de consumir. Não fazemos equivalência entre o consumo feito por todo mundo com o que chamamos, estritamente, de toxicomania, na qual há uma mania pelo tóxico. Por isso, preservamos o termo toxicomania, porque inclui, em seu nome, esse aspecto clínico que é a mania, na medida em que implica soltar-se do laço com o falo, que é o que impõe limite. Ainda, quanto a Lacan, teria que se desenvolver um pouco mais; para Freud, a mania sempre implicou um desenganche com o Outro e, naturalmente, com o limite e com o falo.

Didier Velásquez: Haveria, então, uma relação estreita entre a problemática da ruptura com o falo e o particular do fantasma. Esse seria um ponto necessário de se elaborar?

Fabián Naparstek: Sim, claro, porque o fantasma é um marco que limita certa satisfação para o sujeito e o que mostra a ruptura com o falo e, portanto, com o fantasma, é um gozo desenfreado, excessivo, por fora da singularidade própria do fantasma de cada um.

É algo que observam bem os toxicômanos, que esse gozo que obtêm com o consumo do tóxico não é o gozo enquadrado em um fantasma, é muito habitual localizar a toxicomania, Miller dizia, como fora do campo sexual, apresentada como a greve do sexual. O sexual no sentido da perversão, que, na neurose, se encontra dentro de um fantasma perverso, isso implica certo enquadramento. No entanto, a toxicomania está fora desse campo, e, nesse sentido, temos que dizer que há uma ruptura com o fantasma também.

Didier Velásquez: Outra problemática importante é o que foi denominado como “função do tóxico”, que ordena e orienta o trabalho atual com as toxicomanias. Você poderia precisar o que se entende pela função?

Fabián Naparstek: No caso das toxicomanias, quando alguém tenta fazer um diagnóstico, além de poder estabelecer se é neurose, psicose, ou perversão, há de poder estabelecer que função cumpre o tóxico para um determinado sujeito. Isso implica certa prudência por parte do analista, porque, em muitas ocasiões e em muitos casos, fundamentalmente de psicose, o tóxico pode cumprir uma função de estabilização, de compensação ou de amarração, em que não convém tocar, ao menos, não até estar claro qual lugar ocupa o tóxico e se isso poderia ser suplementado ou estabilizado de outra maneira.

Inúmeras vezes, temos notícias de casos de psicose nos quais foi removido ou interrompido o consumo do tóxico, pelo simples fato de que deve haver abstinência, e o que encontramos, após tal prescrição, é um desencadeamento, quando há uma psicose ainda não desencadeada. A primeira questão que precisamos pensar é que, se um sujeito faz uso do tóxico, é porque este pode cumprir uma função para sua estrutura, que vale a pena diagnosticar, e a partir daí orientar a cura.

Em muitos casos, esse uso do tóxico não somente não é uma ruptura, como é o que permite que o sujeito se enlace ao campo do Outro. Temos que refletir sobre o que fazer com esse modo de enlaçar-se ao campo do Outro, e que, claramente, lhe pode trazer sofrimento, mas pode, ao mesmo tempo, cumprir uma função de compensação para o sujeito, de modo que não seja conveniente tocar.

Outra questão, muito comum, na psicanálise, em algum momento e em certos meios psiquiátricos, é pensar que a droga impede o diagnóstico porque gera fenômenos clínicos. Por exemplo, ela pode gerar certos delírios paranoicos, o que não permitiria fazer um diagnóstico de estrutura. Do meu ponto de vista, como defendi em minha tese de doutorado sobre toxicomania, penso que poder localizar a função da droga permite fazer um diagnóstico muito mais preciso do que pretendendo tirar a droga do meio. Ou seja, a função cumprida pela droga, o uso que faz dela determinado sujeito, em muitos casos, permite também fazer um diagnóstico de estrutura, e vale a pena, leve o tempo que levar, tomar, prudentemente, esse trabalho, para orientar a cura. Além do mais, é preciso ressaltar que estamos em uma época em que todo mundo, de uma ou outra maneira, é consumidor.

Didier Velásquez: O que acontece, tanto do lado do analista quanto do lado do paciente, após encontrar essa função?

Fabián Naparstek: Precisamos verificar como se orienta a cura a partir desse diagnóstico, porém, como, na clínica de Orientação Lacaniana, partimos do caso a caso, a questão é, em alguns casos, quando se trata de uma toxicomania verdadeira, como afastar do sujeito a mania pelo tóxico e possibilitar que encontre uma forma de laço com o Outro que não o leve à morte. Devemos observar se se trata de uma neurose ou de uma psicose e, a partir daí e da função que possui esse tóxico para esse sujeito, orientar a cura, levando em conta o Lacan clássico que divide a orientação da clínica em política, estratégia e tática. Seguindo esses princípios, sempre adotamos uma mesma política que é a ética da psicanálise. Conhecemos inúmeras apresentações e uma grande casuística, na Orientação Lacaniana, sobre como se orienta, em cada caso, a direção da cura.

Didier Velásquez: Freud relaciona a intoxicação com o problema da economia libidinal. Na clínica atual, fala-se sobre economia de gozo e, inclusive, de economia psíquica. O que implica esse modo de designar esse campo, em que se situa tal problemática, ou seja, da economia libidinal a uma economia de gozo ou psíquica, no momento atual?

Fabián Naparstek: As mudanças no ensino de Lacan estão ligadas não somente à elaboração que ele mesmo vai fazendo ao longo de seu ensino e o que implicam os passos que Lacan pode dar, senão que ele vai alterando sua elaboração a partir da clínica de sua época. Ou seja, que o último ensino de Lacan está muito mais adaptado às apresentações sintomáticas da época, do que o primeiro ensino, e que as mudanças têm a ver com as mutações da subjetividade da época. Pensar a toxicomania a partir do último ensino de Lacan, no qual o gozo é o centro da questão, um gozo sem sentido, nos dá muitas ferramentas para se pensar esse tipo de patologia.

Esse é o nosso desafio, como formular, como fazer uso do último ensino de Lacan em relação a esse tipo de patologia, em que podemos nos servir desse ensino de Lacan? Como fazer uso desses últimos ensinos é o desafio atual de TyA. Toda a comunidade analítica está abordando esses últimos seminários de Lacan. No campo de TyA, é um desafio importantíssimo, porque nos permite pensar a toxicomania não somente a partir do falo, que era o que nos vinha orientando, senão a partir do último ensino de Lacan, que já não está regido somente na perspectiva e diretriz do falo, mas a partir da impossibilidade da relação entre o gozo e o significante. Do meu ponto de vista, esse é o desafio atual da toxicomania.

Didier Velásquez: Em alguns de seus textos, você situa dois momentos no uso das substâncias: um momento de controle e o outro da perspectiva maníaca. Qual seria a origem do momento maníaco nessa relação?

Fabián Naparstek: A origem é o que há de se buscar em cada sujeito e é um dado central no diagnóstico, tratar de situar o ponto em que “algo se soltou”, e, em geral, isso está muito ligado à singularidade de cada sujeito. É central, porque isso vai orientar-nos na direção da cura. O ponto em que isso se soltou, isso que estava agarrado e se solta, responde à singularidade de cada caso. É tudo ao contrário de quando nos querem fazer pensar que a toxicomania é uma classe uniforme. Eu sustento, já faz tempo, que não há nada mais diferente de um toxicômano que outro toxicômano. Quando nos querem fazer crer que não há nada mais parecido com um toxicômano que outro toxicômano, a clínica lacaniana mostra o contrário. Ao contrário das comunidades terapêuticas, em que um ex-toxicômano conta a outro o que lhe vai acontecer, nós temos a ideia de que um toxicômano não sabe nada a respeito de outro. Não quero dizer que não devam existir comunidades terapêuticas, porém, deve-se estar advertido disso. E as clínicas ou as comunidades terapêuticas e os diferentes lugares onde os toxicômanos estão internados mostram, claramente, esse fato, demonstram que, verdadeiramente, cada toxicômano implica uma singularidade bem diferente de outra.

Didier Velásquez: Finalmente, Fabián, o que estamos situando, esse ponto de desregulação, a origem subjetiva, isso que há que situar em cada um, parece-me estar em relação com isto: que lugar assume a angústia na clínica das toxicomanias?

Fabián Naparstek: A angústia é central, porque parte do problema dessa clínica é o fato de que certos sujeitos não se angustiam. A angústia, em muitos casos, é o que faz que um sujeito venha consultar um psicanalista, e, quando, às vezes, está na deriva maníaca, não aparece a angústia, que é um freio à mania, é algo que detém a mania. Por outro lado, nesses casos, às vezes, não aparece a angústia, e, então, como dizia Lacan, ela é sempre uma bússola, porque, na clínica, trata-se do real, então, o ponto de angústia é central para nós. Há que se pensar como, em cada caso, ocorre a irrupção da angústia.

 


Tradução: Maria Wilma S. de Faria
Revisão da tradução: Márcia Mezêncio
[1] Entrevista realizada em Buenos Aires, Argentina, em 08 de maio de 2011, pouco antes da realização do “Primeiro Colóquio Internacional de TyA”.
[2] N.T.: Faz pipi, faz xixi, wiwimacher, gozo fálico, essas têm sido as inúmeras traduções para essa referência de Lacan.
Referências Bibliográficas
LAURENT, É. “Tres observaciones sobre la toxicomania”, In: Sujeto, goce y modernidad: fundamentos de la clínica II – Instituto del Campo Freudiano. Buenos Aires: Atuel –TyA, 1994. P.15.

 


Didier Velásquez
Psicanalista em Medellín, Colômbia. E-mail: didiervelasquezv@une.net.co



O Que É Que Tem Um Corpo E Não Existe? Resposta: O Grande Outro

SANDRA ESPINHA

O Outro Que Não Existe

É no contexto do Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970/1992), em que Lacan define o “campo lacaniano” como o campo do gozo estruturado pelos discursos como laços sociais, que se encontra a citação que dá título a este trabalho (LACAN, 1969-1970/1992, p.62).

Segundo Miller, com os quatro discursos, Lacan introduz, em seu ensino, a ideia de uma “relação primitiva e originária” entre o significante e o gozo (MILLER, 2000, 95), que implica sua renúncia à autonomia do simbólico. O gozo é apresentado como o ponto de inserção do aparelho significante, que veicula tanto o sujeito barrado como uma falta, quanto o gozo como uma perda. O acento passa a incidir sobre o significante como aparelho de gozo e sobre a repetição como retorno do gozo.

“O discurso — diz Lacan — toca nisso sem cessar, posto que é dali que ele se origina. E o agita de novo, desde que tenta retornar a essa origem” (LACAN, 1969-1970/1992, p.66). Lacan formula, então, que “não há discurso — e não apenas o analítico — que não seja do gozo” e que “o saber é um meio de gozo” (LACAN, 1969-1970/1992, p.74). O significante é não apenas causa do gozo, mas emerge dele.

A ordem simbólica torna-se impensável sem essa conexão com o gozo e sem um retorno ao corpo, uma vez que o corpo é a condição do gozo. O significante é apresentado como suscetível de se materializar no corpo, e Lacan faz do fantasma “Uma criança é espancada” uma articulação significante que não realiza um efeito de verdade, mas de gozo. Por meio dessa frase fantasmática, o sujeito “recebe sua mensagem sob a forma invertida — aqui, isto quer dizer seu gozo sob a forma do gozo do Outro” (LACAN, 1969-1970/1992, p.62).

No seminário O Outro que não existe e seus comitês de ética, Miller afirma que Lacan substitui o grande Outro pela estrutura do discurso, após reconhecer sua estrutura de ficção e sua consistência apenas como laço entre os sujeitos que falam. O Outro que não existe traduz esse estatuto inconsistente do Outro, reduzido ao semblante, do qual resta apenas o seu significante — S(A). “O Outro, do qual dizemos que não existe […] não é da ordem do real”, diz Miller (2005a, p.121), o real é o gozo.

A estruturação dos quatro discursos é uma nova edição do Outro “como estrutura no real” (MILLER, 2005a, p.115), ou seja, como o que “assegura a conjunção do significante e do significado e a relação com o referente” (MILLER, 2005a, p.121) e funda o laço social. Essa inclusão do real na estrutura do discurso apresenta a inexistência do Outro, não como antinômica do real, mas correlativa deste.

A noção de discurso unifica o que Lacan havia formalizado, em dois tempos, sob os nomes de alienação e separação, como a matriz lógica do inconsciente. Por intermédio da alienação, definida como um processo simbólico de identificação significante do sujeito, que comporta uma perda, Lacan concebe o recalque freudiano. A separação, por sua vez, é uma irrupção de gozo, é o momento pulsional pelo qual a pulsão é apresentada como resposta ao recalque. A separação é uma resposta de gozo correlativa da operação puramente simbólica da alienação. Nesse momento do ensino de Lacan, o gozo é modelado a partir do sujeito, e o inconsciente é descrito sob o modelo da pulsão como uma borda que se abre e se fecha. Por meio do mito da lamínula, a libido passa a ser definida “não mais como desejo significado […], mas libido como órgão, objeto perdido e matriz de todos os objetos perdidos” (MILLER, 2000, p.94).

Uma Extração Corporal: A Libra De Carne

A função da separação, que encontra seu desenvolvimento no binário alienação-separação, é introduzida no Seminário 10: a angústia como uma separação de órgãos e promove a queda da primariedade do falo simbólico como paradigma da passagem de um órgão do corpo ao significante. A concepção da libido como um órgão e novo paradigma do objeto perdido substitui o falo em causa na castração. Como órgão perdido, a libido não é separada pela castração, mas é o resultado de uma perda em que não há um agente. Isso significa que, nesse momento do ensino de Lacan, “o princípio da angústia de castração […] não se inscreve no Édipo” (MILLER, 2005b, p.35), mas se situa no nível do órgão como tal. Lacan faz da detumescência do órgão, ou seja, do apagamento da função fálica no ato sexual, o princípio da angústia de castração.

Segundo Miller, no Seminário 10, ao visar a um status do objeto anterior à lei e ao desejo, anterior à sua simbolização fálica e à constituição da função paterna, Lacan realiza uma “des-edipianização” da castração. A função da separação realiza a disjunção do Édipo e da castração e, “simultaneamente, abre o catálogo dos objetos a” (MILLER, 2005b, p.40).

A angústia, cuja definição como sinal do real passa a prevalecer sobre a sua noção de signo do desejo do Outro, torna-se a via utilizada para aceder a esse objeto real, cujo paradigma é o seio, objeto de satisfação da pulsão, ou seja, objeto de uma satisfação que é gozo. O Édipo surge, então, como uma elucubração de saber sobre a separação, que é do registro de uma automutilação.

Para Miller, o Seminário 10 constitui um corte no ensino de Lacan em relação ao objeto e ao corpo. Nele, Lacan deixa de lado a forma especular unitária do corpo e interessa-se pelas suas descrições realistas e anatômicas, opondo à noção de traço, como o que transforma o corpo em significante, a noção de corte, que, ao contrário, separa um resto que é gozo, um resto-órgão. “O objeto a é elaborado essencialmente como uma pura e simples extração corporal” (MILLER, 2005b, p.66). Nesse seminário, pode-se ler, com Lacan, o seguinte:

O que nos interessa nessa questão, e ao qual é preciso reduzir a dialética da causa, não é o corpo participante em sua totalidade. […] mas é que sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne (LACAN, 1962-1963/2005, p.242).

E, ainda, sobre essa função da causa:

Pois bem, se essa causa se revela tão irredutível, é na medida em que […] é idêntica em sua função ao que lhes venho ensinando a delimitar e manejar, este ano, como a parte de nós mesmos, a parte de nossa carne que permanece necessariamente aprisionada na máquina formal, sem o que o formalismo lógico, para nós, não seria absolutamente nada. […] Nós lhe damos não simplesmente a matéria, não apenas nosso ser de pensamento, mas o pedaço carnal arrancado de nós mesmos. […] É essa parte de nós que é aprisionada na máquina e fica irrecuperável para sempre. Objeto perdido nos diferentes níveis da experiência corporal em que se produz seu corte, é ela que constitui o suporte, o substrato autêntico, de toda função da causa. Essa parte corporal de nós é, essencialmente e por função, parcial. Convém lembrar que ela é corpo e que somos objetais, o que significa que não somos objetos do desejo senão como corpo (LACAN, 1962-1963/2005, p.237).

O Corpo Para Além Do Especular

Lacan inventa uma nova espécie de objeto cujo estatuto determina um outro corpo que aquele do estágio do espelho [corpo = i(a)] ou que o corpo significantizado do esquema ótico [corpo = I(A)  i(a)]. O objeto a é, no Seminário 10, particularmente, corporal. Aqui, a libra de carne é um pedaço do corpo que o sujeito precisa entregar como garantia da ordem significante. O órgão a ser perdido não é o órgão transformado em significante, mas é um órgão gozo, um resto real. O gozo é liberado de sua armação significante, fálica, e o objeto a é apresentado como não especularizável, como objeto da angústia. Sua intrusão no campo visual, cuja consistência supõe o Nome-do-Pai e a castração [i(a)/-], produz aparições ansiogênicas (MILLER, 2005b, p.63).

A separação do objeto real incide não sobre o corpo imaginário ou “visual” do espelho, mas sobre o corpo libidinal, o corpo das zonas erógenas. O Um do corpo da boa forma dá lugar ao corpo do informe (MILLER, 2005b, p.64). O Seminário 10 fornece uma nova descrição dos objetos parciais. O seio, que, no Seminário 4: as relações de objeto, era descrito como um objeto da necessidade, tornado simbólico, objeto do dom ou signo do amor do Outro, passa a ser concebido como um objeto da criança e não da mãe. O seio é um objeto separado da criança que é “aplicado, implantado na mãe” (LACAN, 1962-1963/2005, p.256). Daí, essa topologia estranha do corpo, que não se reduz a um esquema de duas dimensões, que não é mais estruturado como um dentro/fora ou como o face a face do espelho, pois, como diz Lacan, “[…] o que mais existe de mim está do lado de fora, não tanto porque eu o tenha projetado, mas por ter sido cortado de mim […]” (LACAN, 1962-1963/2005, /p.246).

Ter Um Corpo

Lacan apresenta o corpo como alguma coisa que necessita sempre de um princípio de articulação para sustentar-se, formalizando-o de várias maneiras no percurso de seu ensino. “Para Lacan, o corpo é o resultado de uma construção que se realiza em um ponto exterior ao sujeito […]. O corpo é alguma coisa que se constitui fora e que é apossado pelo sujeito” (MANDIL, 2010, p.6).

O corpo não é uma evidência inaugural, ele é segundo em relação ao organismo vivente. Ele não é um dado da natureza, mas um produto transformado pelo discurso. O organismo, tornado corpo, pode ser abordado pelo Um de sua forma, do lado da imagem, mas também a partir do Um do gozo, do lado dos buracos de suas zonas erógenas pulsionais. Pelo Um de sua forma, o corpo se separa do organismo, e pelo Um de seu gozo, ele é um organismo que “desliza até seu verdadeiro limite, que vai mais longe que o do corpo” (LACAN, 1998, p.862). Se, de um lado, é o corpo que oferece sua matéria ao significante e se transforma em significante, de outro, é o significante que se materializa no corpo. Temos uma “significantização” do corpo e uma “corporização” do significante (MLLER, 2004, p. 65)

No ensino do Lacan, o corpo é um efeito da linguagem, ele é “o leito do Outro”. Em “Radiofonia” (1970/2003), o corpo é feito “deserto de gozo” ou superfície na qual se inscrevem os traços mortos de um gozo perdido, mas ele é também buraco ou borda corporal, por meio da qual o gozo é cativado para fora do corpo por objetos que o condensam e que são peças separadas do corpo: seio, fezes, olhar e voz. Mortificado pelo significante, o corpo se confunde com o Outro, com o corpo do simbólico, mas ele é também gozo pulsional, que busca restaurar o que lhe resta de vida na parcialidade dos objetos. Entre ambos, o encontro será para sempre faltoso.

Diz Lacan, em “Radiofonia“:

Volto ao primeiro corpo do simbólico, que convém entender como nenhuma metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lho confere, a tal ponto que ele não existiria, se não pudesse falar. O primeiro corpo faz o segundo, por se incorporar nele. Daí o incorpóreo que fica marcando o primeiro, desde o momento seguinte à sua incorporação. […] Mas é incorporada que a estrutura faz o afeto, nem mais nem menos, afeto a ser tomado apenas a partir do que se articula do ser, só tendo ali ser de fato, por ser dito de algum lugar. […] O corpo, a levá-lo a sério, é, para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-lo numa sequência de significantes. A partir dessa marca, ele é suporte da relação, não eventual, mas necessária, pois subtrair-se dela continua a ser sustentá-la (LACAN, 1970/2003, p.406).

Tem-se, aqui, a tese de Lacan de que é a linguagem que, ao se incorporar, nos concede um corpo. O Outro é definido como um corpo simbólico prévio à constituição do corpo como tal, que, sendo segundo, só se sustenta pela marca necessária que o situa em uma sequência de significantes. Só tem corpo, só toma posse de seu corpo o ser cujo corpo foi concedido pela linguagem. O corpo do ser falante é da ordem de uma incorporação da qual se trata de tomar posse, o que o uso dos pronomes possessivos “meu”, “teu”, quando nos referimos ao corpo, é uma indicação. Essa apropriação, no entanto, não se realiza inteiramente, pois, uma vez incorporado, o grande Outro permanece incorpóreo, restando dele apenas o seu significante: S(A).

O Órgão Incorporal Da Libido E O Circuito Autoerótico Da Pulsão

A admissão do corpo no simbólico transforma-o em significante. O corpo perde seu ser de vivente e ganha a perenidade que a mortificação significante da vida lhe confere. A admissão do simbólico no corpo é, todavia, outra coisa. Lacan a traduz como a criação de um novo órgão, o órgão incorporal da libido, definido, no Seminário 11, como um órgão irreal, “de modo algum imaginário”, mas articulado ao real, ou seja, passível de se encarnar. A tatuagem é o exemplo que Lacan dá da encarnação desse órgão irreal no corpo.

O entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de lá situar o sujeito, marcando seu lugar no campo das relações do grupo […] ao mesmo tempo, ela (tatuagem) tem, de maneira evidente, uma função erótica […] (LACAN, 1964/1985, p.195).

A libido é um órgão incorporal que estende o ser do organismo a um limite que vai mais além dos limites do corpo. Aqui, o termo organismo é utilizado por Lacan para significar a libido como o que resta de vida ao corpo mortificado pelo significante. Ao tornar-se corpo, o significante fragmenta seu gozo, localizando-o nas zonas erógenas, fontes da pulsão, e condensando-o, fora do corpo, nesse incorpóreo que é o objeto a. Designado por uma letra, índice de um impossível de ser simbolizado, esse objeto, pelo gozo que condensa, é o mais substancial do corpo, embora não tenha a sua materialidade. Concebido como imaginarizável, mas sem imagem e sem significante que o represente, o objeto a não faz parte da realidade corporal. Agora, sua consistência deixa de ser corporal para tornar-se puramente lógica.

No esquema lacaniano da pulsão, o ser do organismo libidinal é uma espécie de pseudópode que, mais além da realidade do corpo, estende-se sobre o campo do Outro, do qual se serve para contornar o objeto e retornar sobre o mais-de-gozar do corpo próprio. O trajeto significante da pulsão desenha o vazio mediador do objeto que articula esses significantes entre si. Aqui, não se trata do corpo deduzido a partir da imagem, mas a partir da forma pulsional do buraco do objeto, em uma relação direta do simbólico com o real, que não passa pela imagem. Esse esquema comporta o autoerotismo da pulsão, o objeto sendo apenas o meio da via de retorno da pulsão sobre ela mesma, um lugar vazio que pode ser ocupado por objetos diversos. Se o desejo é o desejo do Outro, “a pulsão é a pulsão do Um” (MILLER, 2011, aula 12). O Outro, “nesse nível, pode-se dizer que sua inexistência é verdadeiramente saliente” (MILLER, 2011, aula 15). A pulsão não necessita da presença dos corpos e, embora seu território possa estender-se até os limites do universo da cultura, sobre o conjunto das representações que a metonímia da linguagem torna possível, ela não dá nenhum acesso ao gozo do Outro.

A definição lacaniana da pulsão como o “eco no corpo do fato de que há o dizer” faz alusão não apenas a esse retorno sobre o corpo, mas à sua insistência. A pulsão fala sozinha e diz sempre a mesma coisa: “há Um”. O dizer se distingue dos ditos, que se edificam da dimensão da verdade. O dizer é o ato de produzir os ditos.

Em “Radiofonia” (1970/2003), ao invés de se referir à alienação-separação, Lacan resume a entrada do sujeito e seu corpo na linguagem com a operação de incorporação, fazendo corresponder à intrusão significante a extrusão do gozo (LACAN, 1970/2003, p.407).

Na ordem simbólica, os significantes falam aos significantes, e o sujeito está ausente, mantendo-se fora da vida e fora do corpo, sob as formas da verdade e do desejo (MILLER, 2000, p.97). Quanto ao corpo, o significante surte efeitos, não de representação, mas de afeto. Seu efeito maior é o afeto da angústia, concebido por Lacan como sendo não do sujeito, mas do corpo. A angústia é o traço deixado pela afetação traumática essencial, que é incidência da língua sobre o corpo. Para Lacan, “[…] o núcleo do acontecimento traumático não é relacionável a um acidente, mas à possibilidade mesma do acidente que deixa traços de afetação” (MILLLER, 2000, p.53). Portanto,

[…] não é a sedução, não é a ameaça de castração, não é a perda do amor, não é a observação do coito parental, não é o Édipo que é o princípio do acontecimento fundamental, traçador de afetação, porém a relação com a língua (MILLLER, 2004, p.53).

O corpo é feito “tabuleiro de jogo” onde a disputa é travada com as cartas do significante em seus efeitos de significado e de afeto. Foi com esse corpo disputado entre dois mestres que Freud começou. O corpo da histérica, apresentado no sintoma conversivo, é o corpo disputado entre a autoconservação e o gozo pulsional fragmentado, entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais. No exemplo freudiano da cegueira histérica, um órgão, o olho, “cessa de obedecer ao saber do corpo […] para tornar-se suporte de um se gozar” (MILLLER, 2004, p.48). O olho é separado de sua função de visão para consagrar-se ao gozo do olhar. Miller, aqui, distingue dois corpos. De um lado, o corpo-prazer ou o corpo-eu, que é um corpo que sabe o que é necessário para sobreviver e que é regulado pelo prazer; de outro, o corpo-gozo, que é um corpo libidinal, que não obedece ao eu e não é o corpo de um prazer regulado, mas de um prazer que ultrapassa ou elimina a finalidade vital, tornando-se gozo.

Lalíngua: O Um Que Existe E O Corpo Vivo

É sob essas coordenadas que Miller afirma ser possível dar vida à definição do “sinthoma” como acontecimento de corpo. No final de seu ensino, Lacan parte da evidência de que “há o gozo” como propriedade de um corpo vivo e que fala. O corpo é introduzido como substância, mas apenas na condição de que esta seja definida como aquilo de que se goza, ou seja, como substância gozante. O corpo é o lugar do gozo em oposição ao sujeito sem substância da falta-a-ser. O homem, feito sujeito do significante, não pode identificar seu ser com seu corpo. Essa implicação da pulsão no sintoma faz Lacan substituir o sujeito pelo falasser, que inclui o corpo e que é coerente com a noção de que não há sentido que não seja do gozo, nem significante que não esteja conectado à pulsão. “O falasser é aquele que por falar supõe um ser ao corpo que ele tem, supõe um ser ao ter, e seu ter essencial é o corpo”, não é o falo. O falasser é “o que apenas tem um corpo” (MILLER, 2011, aula 14). O falasser é o que fala com seu corpo.

Essa primazia do gozo conduz ao Um-totalmente-só, separado do Outro (MILLER, 2000, p.103) e que fala para si próprio com a pulsão. Fundamentalmente, o gozo é o gozo do corpo próprio e, em oposição à falta-a-ser do desejo, que é do Outro que não existe, o gozo é o que existe. A falta está no nível do ser, enquanto que o gozo é do registro da existência (MILLER, 2011, aula 12). O “há Um”, do gozo que existe, é o correlato da inexistência do Outro. Ele é o significante pensado fora dos efeitos de sentido e concebido como gozo.

A partir de uma abordagem generalizada da psicose, Lacan faz do real o que “foraclui o sentido”, sobre o qual ele tem primazia. O simbólico é definido não como uma articulação, mas como um buraco no real. Aqui, a tese lacaniana é a de que esse furo no real, constitutivo da ausência do Outro do Outro, é o suporte do inconsciente (MILLER, 2010, p.93). A estrutura da linguagem aparece como derivada em relação à invenção lacaniana de lalíngua, que não é sem o corpo. A palavra apresenta-se separada da comunicação e torna-se gozo do blá-blá-blá. Lacan distingue o significante na lalíngua do significante na linguagem. Na lalíngua, o significante não representa o sujeito para outro significante, sua falta-a-ser, mas ele é “signo do sujeito”, signo da presença de seu gozo ou letra de gozo. O significante como o que representa o sujeito deve ser extraído de lalíngua, da qual a linguagem torna-se uma elucubração de saber.

O inconsciente não é mais o discurso do Outro, pois cada um só fala sua própria língua. Ele é definido como um inconsciente real, ele é a lalíngua em sua coabitação com o corpo marcado pelo significante como pura diferença. O inconsciente torna-se uma hipótese que se constrói a partir do simbólico encarnado na matéria mesma de lalíngua (VINCIGUERRA, 2011). A ordem simbólica é reduzida a uma disposição de semblantes.

Miller enumera esse momento do ensino de Lacan como o sexto paradigma do gozo, no qual o conceito de palavra como comunicação, o Outro, o Nome-do-Pai e o símbolo fálico são reduzidos a semblantes e a terem “uma função de grampo de elementos fundamentalmente disjuntos” (MILLER, 2000, p.101). Acrescente-se que o próprio objeto a é reduzido a um semblante e torna-se insuficiente para capturar o real, uma vez que ele é o que desse real do gozo tem algum sentido. Trata-se de um paradigma fundado sobre um “não há”, correlativo do “há Um”, e que se formula através do axioma “a relação sexual não existe”. A pulsão é uma relação com a ausência da relação sexual (MILLER, 2012, p.149).

Ter Um Sinthoma

Lalíngua não é, todavia, um corpo. Ela é uma multiplicidade de diferenças, inconsistente e aberta. Para que haja um corpo, é necessário que se estabeleçam relações entre seus elementos dispersos. Para que lalíngua se converta em corpo, faz falta a incorporação do corpo do simbólico, que não poderia constituir-se como uma linguagem sem o gozo. Há uma incidência do significante sobre o gozo, mas há também uma incidência do gozo sobre o significante e sobre a possibilidade de que ele se ordene ou não em um sistema. Há solidariedade entre o acesso ao corpo do simbólico e “ter um corpo”. Uma perturbação ou uma não constituição do corpo do simbólico engendram efeitos, sempre singulares, no que se designa como “ter um corpo”, que é a possibilidade de fazer uso dele ou “servir-se dele”.

Portanto, o Outro que não existe — ou o Outro inconsistente, do qual só existe o seu significante, que pode ser reduzido a uma série de semblantes ou a um conector que mantém juntos elementos disjuntos — tem um corpo. O “há Um”, que é da ordem da existência, “faz aparecer o Outro do Outro sob a forma do Um” (MILLER, 2000, p.102) do corpo. O corpo surge, então, como o verdadeiro Outro do significante. Ao Outro, lugar do significante, Lacan acrescenta o corpo como lugar do Outro. O Outro, definido como corpo, significa que “o Outro do significante […] é o Outro da verdade apenas na ficção. […] O Outro do significante é o Outro do corpo e de seu gozo” (MILLER, 2011, aula 13).

O corpo como Outro, incluído no conceito de falasser, constitui a versão do inconsciente como real, cujo suporte é a noção de sinthoma como o que resiste ao sentido. O nó que constitui o sinthoma é construído “realmente” para formar uma cadeia com a matéria significante, que não é uma cadeia de sentido como retorno da verdade recalcada, mas uma cadeia de “gozo-sentido” (MILLER, 2011, aula 14). Pode-se dizer que o corpo como Outro é o corpo concebido como um sinthoma.

Na neurose, o corpo tem o estatuto particular do ser vivente afetado pela incorporação do corpo do simbólico. Nela, a separação do objeto se opera. A pulsão se estrutura a partir do objeto perdido, que ela vai buscar na realidade, e que, a rigor, se aloja na fantasia, constitutiva da verdadeira realidade do neurótico. O gozo retorna sobre o corpo sob a forma do sintoma, condensado em um saber que se pode decifrar a partir de seu valor fálico, suportado pelo Nome-do-Pai, e como signo do que se tem de mais real.

Na psicose, o que se passa é que o objeto não é subtraído do corpo. Afetado pela linguagem, o corpo do psicótico não é esvaziado da libido. Esta não encontra uma localização e desloca-se à deriva. O psicótico “tem seu objeto no bolso”.

Em “Embrollos del cuerpo”, Miller esclarece sobre os fenômenos de corpo na psicose, dizendo o seguinte:

[…] no lugar da alienação, não está a repressão, mas a foraclusão. No lugar da separação, estão os fenômenos do corpo, quer dizer, a pulsão não domesticada, a pulsão que não se articula facilmente com o objeto a. […] No que denominamos fenômenos psicóticos do corpo, a pulsão emerge no real, corta suas pernas, parte sua cabeça, atravessa seu corpo. Dito de outro modo, proponho reconhecer nos fenômenos do corpo a pulsão que passou ao real (MILLER, 2012, p.115-116).

Na clínica borromeana, que constitui a última elaboração de Lacan sobre o real psicanalítico, a função “localização” pode ser generalizada e escapar a essa clivagem neurose-psicose ou linguagem-corpo. Os “fenômenos de corpo”, que permitem abordar a não localização do gozo na psicose e os meios necessários para localizá-lo por intermédio de uma suplência sinthomática à forclusão do Nome-do-Pai, estão também presentes no corpo sintomático do neurótico, seja na anatomia fantasmática da histérica, seja nos cortes do pensamento do obsessivo.

Ainda em “Embrollos del cuerpo”, Miller qualifica “os fenômenos de corpo como sinthoma quando se instalam permanentemente, ordenando a vida do sujeito”. Segundo ele, que esses fenômenos permanentes

[…] possam assumir o papel de sinthomas, solicita que se veja uma forma de sinthoma no próprio Nome-do-Pai. O raciocínio de Lacan é que se o Nome-do-Pai pode ser substituído por um tal ‘fenômeno de corpo’, por um sinthoma, então, um não vale mais do que o outro. O que interessa […] é uma busca muito pontual: qual é a articulação significante que produz o fenômeno do corpo? (MILLER, 2012, p.110).


 

Referências Bibliográficas
LACAN, J. (1964/1998). “Posição do inconsciente”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.829-864.
LACAN, J. (1970/2003). “Radiofonia”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.403-447.
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1964/1985). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1969-1970/1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MANDIL, R. A. Semblantes do corpo (1). MOTe digital, Revista digital da Del, RN, n.1, jul.2010, p.6. Disponível em: http://ebp.org.br/PDF/Revista_MOTen01_jul_2010.pdf. Acesso em: 25/03/2012.
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MILLER, J.-A. “Introdução à leitura do Seminário 10”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.43, maio 2005b, p.07-81.
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MILLER, J.-A. “Os seis paradigmas do gozo”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.26/27, abr. 2000, p.87-105.
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
VINCIGUERRA, R.-P. L’ordre symbolique au XXIe siècle. Il n’est plus ce qu’il était. Quelles consequences pour la cure?. Soirées préparatoires au VIIIe Congrès de l’AMP, 2011.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com crianças do IPSM-MG, em 6 de junho de 2012.

Sandra Espinha
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: sandra_espinha@uol.com.br



O Erro Comum E A Paixão Transexual

YOLANDA VILELA

Questões Freudianas

Introduzir a questão do transexualismo exige evocar Freud e suas formulações acerca da subjetivação da diferença sexual. Embora os desenvolvimentos teóricos freudianos não digam respeito diretamente ao fenômeno transexual, uma vez que as transformações corporais que acompanham esse fenômeno foram incrementadas a partir da segunda metade do século passado, as elaborações de Freud sobre os destinos do complexo de Édipo podem ser esclarecedoras se retomadas em uma articulação com as contribuições ulteriores de Jacques Lacan.

Assim, pode-se dizer que Freud aponta saídas possíveis para a trama edipiana e elabora questões relativas à subjetivação da diferença sexual em alguns textos da chamada segunda tópica. Entre os seus artigos mais fundamentais sobre o tema, encontram-se: “A organização genital infantil” (1923), “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924) e “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925). Assim, no que diz respeito ao menino, por exemplo, Freud dirá que a simples ameaça de castração por parte dos adultos não tem grandes efeitos sobre ele; da mesma forma, a visão do sexo das meninas o faz dizer “isso vai crescer”. Em outras palavras, para Freud, é necessário que os dois fatores estejam juntos: ameaça e visão do órgão do outro sexo para que algo do “complexo de castração” possa surgir e operar. Ao admitir a possibilidade da castração, o menino se vê, então, obrigado a renunciar à sexualidade, que se manifesta, nessa época, sobretudo, pela masturbação.

Assim, o “complexo de castração” é determinante quanto à dissolução do complexo de Édipo, pois ele exerce uma função normalizante — função que não é completa nem constante: frequentemente, o menino não renuncia à sua sexualidade, seja porque ele não quer admitir a realidade da castração, dando prosseguimento à masturbação, seja porque, apesar da interrupção da masturbação, a atividade fantasmática edipiana persiste e até mesmo se acentua, incidindo sobre a vida sexual na idade adulta.

Ao estabelecer a primazia do falo para os dois sexos, Freud insiste sobre o fato de que o justo valor da significação do “complexo de castração” só pode ser apreciado com a condição de considerarmos que ele se dá na fase do primado do falo. É possível extrair daí duas consequências.

A primeira é que as experiências prévias de perda (do seio, das fezes) não têm a mesma significação que a castração, visto que elas acontecem no âmbito da relação dual entre mãe/criança, ao passo que a castração é justamente o que pode colocar um fim nessa relação (para os dois sexos). Em outros termos, para Freud, só se pode falar em complexo de castração a partir do momento em que a representação de uma perda está associada ao órgão genital masculino.

A segunda consequência é que o complexo de castração diz respeito tanto ao homem quanto à mulher. O clitóris da menina se comporta, inicialmente, exatamente como um pênis. Porém, na menina, a visão do órgão do outro sexo desencadeia imediatamente o complexo. A partir do momento em que ela percebe o órgão masculino, ela se sente vítima de uma castração. Ela se considera, de início, uma vítima isolada, depois estende progressivamente essa ideia às outras crianças e aos adultos do mesmo sexo, que lhe parecem, então, desvalorizados. Tal é a tese de Freud em “A dissolução do complexo de Édipo”. A forma de expressão que toma na menina o complexo de castração é a inveja do pênis: “Logo de entrada ela julgou e decidiu, ela viu isso, sabe que não o tem e quer tê-lo”: eis o que afirma Freud em “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”.

A inveja do pênis pode subsistir como inveja de ser dotada de um pênis, mas a evolução normal é aquela em que ela encontra seu equivalente simbólico no desejo de ter um filho, o que leva a menina a escolher o pai como objeto de amor. O “complexo de castração” exerce, portanto, uma função normalizante, fazendo a menina entrar no Édipo, orientando-a para a heterossexualidade.

No entanto, Freud não deixa de evocar as consequências patológicas do complexo de castração na mulher: a inveja do pênis pode persistir indefinidamente no inconsciente e ser um fator de ciúmes e depressão.

Esse resumo das questões freudianas aponta, a nosso ver, para as dificuldades que envolvem a questão da subjetivação da diferença sexual. Se, nesses desenvolvimentos, a hipótese da psicose não é aventada por Freud, os impasses da sexuação retomados por Lacan encontram aí um terreno fértil para nos orientar sobre as sutilezas do transexualismo enquanto fenômeno (clínico) moderno.

O Aporte Lacaniano

Ao retomar, portanto, o “complexo de castração” freudiano, Lacan vai limitar-se ao termo “castração”, que ele irá definir como uma operação simbólica que determina uma estrutura subjetiva.

Assim, para Lacan, a castração não diz respeito ao órgão real; é precisamente quando a castração simbólica não acontece, isto é, nas psicoses, que se podem observar mutilações de partes do corpo (do pênis, por exemplo) que confirmam que aquilo que foi foracluído do simbólico retorna no real.

A castração incide, portanto, sobre o falo na medida em que ele é um objeto imaginário, e não real. É por isso que Lacan não considera as relações do “complexo de castração” e do “complexo de Édipo” de maneira oposta, segundo os sexos.

Para ele, a criança (menino ou menina) quer ser o falo para captar o desejo da mãe (o chamado primeiro tempo do Édipo). A interdição do incesto (segundo tempo) deve desalojá-la dessa posição ideal de falo materno. Essa interdição se deve ao pai simbólico, ou seja, uma lei que deve ser garantida pelo discurso da mãe. Tal interdição não visa somente à criança, ela visa também à mãe, por essa razão, é compreendida pela criança como algo que castra a mãe. No chamado terceiro tempo do Édipo, intervém o que Lacan chama “pai real”, aquele que tem o falo ou, mais exatamente, aquele que é suposto tê-lo, aquele que faz uso do falo e se faz preferir pela mãe. O menino, que renunciou a ser o falo da mãe, irá identificar-se ao pai; quanto à menina, esse terceiro tempo lhe ensinou de que lado ela deve-se voltar para encontrar o falo.

A castração implica, inicialmente, a renúncia a “ser o falo”, mas ela leva também à renúncia a “ter o falo”, ou seja, renúncia quanto a ser o mestre, o possuidor do falo.

É notável que o falo, que aparece sob vários aspectos, nos sonhos e nas fantasias, esteja sempre separado do corpo. Lacan explica essa separação como um efeito da elevação do falo à função de significante. Em outras palavras, a partir do momento em que o sujeito é submetido às leis da linguagem, ou seja, a partir do momento em que o significante fálico entra em jogo, o objeto fálico é imaginariamente cortado (castrado). Correlativamente, ele é “negativizado” na imagem do corpo, o que significa que o investimento libidinal que constitui o falo não é representado nessa imagem (a castração desvincula o falo do corpo e afirma uma não correspondência entre falo e órgão).

A castração não incide somente sobre o sujeito, ela incide também, e antes de tudo, sobre o Outro: uma falta simbólica é então instaurada. Como se disse, a castração é apreendida imaginariamente como sendo a da mãe. Mas essa falta da mãe, é preciso que o sujeito a simbolize, ou seja, é preciso que o sujeito reconheça que não há no Outro uma garantia à qual ele se possa agarrar.

A partir dessas considerações, pode-se retomar a máxima de Freud que se encontra em “A dissolução do complexo de Édipo”, segundo a qual “a anatomia é o destino”, a fim de se introduzir algumas questões referentes ao transexualismo. Se a anatomia foi evocada por Freud como um fator inerente aos destinos do complexo de Édipo, ou seja, se tornar-se homem ou mulher é algo que depende da subjetivação da diferença sexual, seria preciso indagar por que o destino estaria, no caso de muitos sujeitos transexualistas, literalmente, vinculado à anatomia.

Considerações Gerais Sobre O Transexualismo

Em seu estudo sobre o transexualismo, Marina C. Teixeira (2012) esclarece que esse fenômeno se intensificou a partir dos anos 1950, instaurando questões de ordem biológica, social, psiquiátrica, política, ética e outras. O transexualista postula, antes de tudo, o direito de pertencer ao sexo de sua escolha, ou seja, não há que se conformar com a anatomia. Com as técnicas desenvolvidas a partir dos progressos da ciência — técnicas de tratamento hormonal, conhecimentos na área da endocrinologia, etc. — as barreiras para se atravessar fronteiras e escolher o próprio sexo deixaram de existir. Assim, o transexualista pode ser definido como o homem ou a mulher que desejam mudar o próprio sexo para viver conforme o sexo oposto ao seu de nascimento, ou que já mudaram o sexo anatômico de origem e adquiriram as características do sexo oposto, por meio de intervenções no corpo.

No final dos anos 1950 e durante a década de 1960, a combinação entre fatores genéticos, hormonais, gonadais e anatômicos tornou-se a verdade biológica sobre a determinação sexual nos seres humanos. Essa afirmação biológica da multiplicidade causal da diferença sexual consolidou a diferença sexual em termos de duas classes (macho e fêmea) e tornou possível determinar a chamada “condição intersexuada”, propiciada por um arranjo patológico (contingencial) entre esses fatores. O hermafroditismo ilustra exemplarmente essa condição intersexuada devido a um distúrbio biológico.

A condição intersexuada acabou fundamentando a hipótese da “identidade de gênero” (“eu me identifico com o gênero tal”…, por exemplo) como o “terceiro nível de diferenciação sexual”, ou uma terceira classe, na qual a identidade passa a ser definida pelos atributos psíquicos, como o gênero. Nessa terceira classe, o sexo seria especificado independentemente da presença ou da ausência de pênis.

Assim, lembra Teixeira (2012), os “estudos do gênero” foram animados pela perspectiva de que existem três níveis do sexual. No nível biológico, a natureza vai além da deformidade, pois, entre o tipo macho e o tipo fêmea, existem seres humanos que apresentam uma mistura dos dois sexos. No nível social, existe um código sexuado por meio do qual a sociedade atribui a cada um um papel segundo o seu sexo, de tal modo que a vida sexual é orientada por esse código. No nível psicológico, trata-se do “sexo subjetivo”, aquele que o indivíduo reconhece em si mesmo.

No nível psicológico, os transexualistas seriam a evidência de que, de fato, existiria o terceiro nível de diferenciação sexual, ou seja, o “sexo psicológico”, pois o sexo que esses sujeitos reconhecem em si mesmos não equivale à determinação anatômica.

Dessa forma, a ausência de adequação entre sexo e gênero, no transexualismo, se dá sem quaisquer perturbações, sejam elas genéticas ou hormonais. Por essa razão, os casos de transexualismo não podem ser incluídos na zona de intersexo; mais do que isso, o sujeito transexual passou a ser a prova viva da existência do terceiro nível da diferenciação sexual. O fenômeno “trans” tornou-se o expoente máximo da verdade da não correspondência entre sexo e gênero.

O Transexualismo Segundo Stoller

Robert Stoller, psiquiatra americano de formação psicanalítica, começou estudando os intersexuados e chegou, em seguida, aos transexuais. Tanto em suas pesquisas como em sua clínica, ele sempre privilegiou a disjunção entre sexo e gênero. Stoller tentava isolar uma estrutura que fosse própria do transexualismo, pois ele acreditava ter cernido a sua forma pura, que, por sua vez, estaria vinculada ao momento de formação do que chamou “núcleo fundamental da identidade de gênero”. Em 1968, Stoller publicou Sex and gender, em que afirmava, entre outras coisas, ter descoberto algo que escapara a Freud: a hipótese de uma identidade de gênero feminina no âmago da sexualidade humana. Para Stoller, o gênero seria o sentimento íntimo de pertencimento a um sexo. O núcleo da identidade de gênero (masculinidade e feminilidade) se formaria no estágio mais precoce da relação de objeto, estágio em que a criança se encontra fundida simbioticamente com a mãe. Assim, toda criança traria a marca de uma impregnação (imprinting) psicológica da feminilidade primitiva devido ao contato simbiótico com a mãe.

Para Stoller, a aquisição da identidade de gênero se processaria em três níveis. Em um primeiro momento, há o encontro da criança com a protofeminilidade (feminilidade primordial); em um segundo momento, o núcleo da identidade de gênero é fixado em função do modo como a mãe conduz a separação ou o afrouxamento do laço simbiótico primitivo entre ela e a criança; e, em um momento posterior, surgem os conflitos propriamente freudianos. Segundo Stoller, o desejo da mãe (segundo momento) seria fundamental na gênese do transexualismo. Ele chega a falar em uma verdadeira “programação” da criança pelo desejo da mãe. Para Stoller, portanto, a origem do transexualismo se deve à prevalência da feminilidade experimentada de modo absolutamente gratificante, e por isso mesmo fixada como núcleo da identidade de gênero.

Vale lembrar que, nos casos acompanhados por Stoller, os sujeitos não deliravam ao modo do Presidente Schreber, isto é, eles não apresentavam uma psicose extraordinária; ao mesmo tempo, esses transexuais eram relativamente apaziguados quanto à identidade de gênero, ou seja, prevalecia a certeza de que o sexo anatômico estava absolutamente na contramão do gênero, e não a dúvida quanto ao pertencimento a este ou àquele sexo. Porém, a grande maioria dos transexuais vivia invadida por sentimentos depressivos, tristeza e angústia pela inadequação entre sexo (corpo) e gênero. Esse quadro contribuiu para que Stoller solidificasse cada vez mais a sua hipótese segundo a qual é uma perturbação da identidade de gênero que se encontra no centro da questão do transexualismo.

No que diz respeito ao tratamento desses sujeitos, Stoller tinha certa prudência, uma vez que os sujeitos operados apresentavam, a médio e a longo prazos, quadros bastante graves. Ele era favorável às terapias iniciadas precocemente com aquelas crianças que apresentassem uma sintomatologia indicando transexualismo: Stoller preconizava a criação de um “complexo de Édipo artificial” para esses casos.

O que interessa ressaltar aqui é que, apesar dos resultados incertos da longa experiência de Stoller com os transexuais, a disjunção entre sexo e gênero consolidou a apreensão social do fenômeno mais em concordância com o pensamento de Stoller e menos em articulação com o campo das psicoses.

Lacan E A Face Psicótica Do Sujeito Transexualista

As referências de Jacques Lacan sobre o transexualismo não são abundantes; porém, suas indicações são precisas e esclarecedoras quanto ao que, de fato, está em questão na grande maioria dos casos de transexualismo, seja feminino, seja masculino. Assim, em 1971, no seminário De um discurso que não fosse semblante, Lacan faz referência a Robert Stoller, nos seguintes termos:

“Como só os reencontrarei na segunda quarta-feira de fevereiro, talvez vocês tenham tempo de ler alguma coisa. Visto que estou recomendando um livro, para variar, isso fará aumentar sua tiragem. Chama-se Sex and gender (Sexo e gênero), de um certo Stoller. É muito interessante de ler. Primeiro porque desemboca num assunto importante — o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre esse transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos” (LACAN, 1971/2009, p.30).

O discurso analítico indica a condição prévia para que um ser falante tenha um sexo, qualquer que seja a sua anatomia inicial. Essa condição prévia é o consentimento com a inscrição na função fálica. Isso implica experimentar o gozo fálico, que é um gozo positivado, localizado em um órgão tornado instrumento (organon) por sua correlação com o significante fálico. Porém, o gozo fálico comporta também a negatividade do complexo de castração freudiano: o sujeito goza de sua castração, a partir de sua castração. Uma vez inscrito na função fálica, o sujeito irá escolher colocar-se como homem ou como mulher — esses termos só têm sentido a partir da abordagem do outro sexo e da maneira segundo a qual ele usará, para isso, a função fálica.

Portanto, para o discurso psicanalítico, não há sexuação sem função fálica. Na psicose, que está excluída disso, o sexo toma formas instáveis, a serem construídas em cada caso, formas que são frequentemente correlatas ao empuxo-à-mullher que Lacan associou ao desencadeamento.

Em O Seminário, livro 19: …ou pior, Lacan faz outra declaração contundente que esclarece quanto ao que está em jogo no caso do sujeito transexualista. Vejamos:

“Nessas condições, para ter acesso ao outro sexo, realmente é preciso pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão só é instrumento por meio disto em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. Sua paixão, a do transexual, é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. O transexual não quer mais ser significado como falo pelo discurso sexual, o qual, como anuncio, é impossível. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual, que, na medida em que é impossível, é a passagem do real” (LACAN, 1971-1972/2012, p.17).

Esse “erro comum” ao qual se refere Lacan é o do meio social, dos pais, que atribuem um sexo ao sujeito em função de sua anatomia. Quando o adulto designa “é um menino” ou “é uma menina”, tal nomeação é feita sob a égide da linguagem e do complexo de castração. O “é um menino” ou o “é uma menina” não permanece apenas no plano do real biológico, anatômico. Dessa forma, um pai (ou uma mãe) que diz “é um menino, é porque ele tem um instrumento fálico e deve-se comportar em conformidade com isso”, ou “é uma menina porque ela não tem esse instrumento fálico e espera-se dela certa feminilidade”, etc. É nesse sentido que menino e menina passam a ser significados do significante falo. Aí está o “erro comum”: isso só será verdade se a criança consentir com o gozo fálico, se ela tirar daí consequências em sua relação com o homem e com a mulher, e as aceitar.

O que ensina Lacan a partir dessas duas elaborações é que, se a criança rejeitar o gozo fálico, ou seja, se houver uma recusa do significante do Nome-do-Pai, os ditos dos adultos serão necessariamente invalidados, logo, falsos. Segundo Lacan, portanto, o transexualista é aquele que quer livrar-se do erro que fez a pequena diferença anatômica passar para o real por meio da linguagem. Ele quer, então, mudar de órgão para liberar-se desse erro, visto que foi a partir do órgão que ele foi significado menino ou menina nas categorias fálicas por ele recusadas. Não é o órgão que o transexual rejeita, mas o significante enquanto significante do gozo sexual que, por não estar correlato ao falo, é demasiado real. Daí a sua ideia de intervir no órgão, realmente, intervir sobre o que ele chamará de “erro da natureza”. Recusar a função fálica o situa como psicótico, sua relação com o sexo escapa à lógica fálica da sexuação. O sexo deverá, então, ser inventado para o sujeito, de modo a fazer suplência à função que lhe falta.

Em um texto publicado na revista La Cause Freudienne, G. Morel (1995) comenta essas elaborações de Lacan e apresenta um caso clínico de transexualismo feminino. Nesse artigo — “Um caso de travestismo feminino” — a autora afirma ter entendido melhor o porquê de esses sujeitos conseguirem convencer médicos e psiquiatras de que o seu único problema é terem nascido do lado errado quanto ao sexo. O que explica o aumento, sobretudo nos EUA, das operações de transexuais mulheres, o que era raro nos anos 1970, quando Stoller publicou Sexo e gênero. Ela afirma:

“A diferença stolleriana entre sexo anatômico e identidade de gênero psíquica referida à consciência íntima de se pertencer a um sexo e não a outro não é de muita ajuda conceitual. Contudo, é sobre ela que se apoiam maciçamente os clínicos americanos e a jurisprudência, principalmente na França” (MOREL, 1995, p.21).

Um Fragmento Clínico

Alguns fragmentos do caso acompanhado por Morel (1995) serão aqui reproduzidos. É possível situar, na descrição das entrevistas, as sutilezas que envolvem a lógica de uma psicose ordinária. A paciente chega ao consultório da analista explicando que é mulher anatomicamente e legalmente, mas que se sentia, se experimentava, como homem. Fora aconselhada a procurar um psicanalista antes de passar pela operação que lhe devolveria seu “verdadeiro corpo de homem”. A cirurgia a ajudaria a encontrar a “prova de seu ser” — o pênis — que harmonizaria seu corpo com a convicção íntima de pertencer ao sexo masculino.

No início, sua convicção era uma impressão estranha, um mal-estar em ser menina. Uma das únicas lembranças de sua infância constituía a matriz de sua decisão de mudar de sexo: aos seis anos de idade, Ven viu um menino urinar em pé e disse a si mesmo: é isso que quero ser, um menino!

De início, a analista considera tal lembrança bastante freudiana, pois, ao ver o pênis de um coleguinha ou de um irmão, “ela julgou e decidiu, ela viu isso, sabe que não o tem e quer tê-lo”, como descreve Freud, em “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”. O que estaria por trás dessa lembrança encobridora, dessa imagem banal: uma cadeia significante articulada e recalcada que remeteria ao complexo de castração freudiano? Ou o vazio da significação fálica, a foraclusão do Nome-do-Pai? Em outras palavras, observam-se, aqui, as sutilezas que envolvem o diagnóstico estrutural, pois a sintomatologia histérica pode, muitas vezes, e até certo ponto, coincidir com aquela de uma psicose não desencadeada.

O plano da paciente de mudar de sexo, apoiado em uma certeza, apontava inicialmente para uma psicose. Porém, o sujeito apresentava uma produção onírica bastante metafórica e passava do masculino para o feminino com certa facilidade, o que fez com que sua formulação parecesse menos segura do que nas primeiríssimas entrevistas. A hipótese de um grande acting-out ancorado em uma fantasia construída a partir de cenas traumáticas violentas da sua infância não estava descartada. Ou seja, foi necessário um certo tempo para descartar a hipótese de histeria e decidir quanto a um diagnóstico de psicose não desencadeada sem nenhum fenômeno elementar.

Outros Detalhes Do Caso

Ven é filha de um funcionário importante de um governo deposto após uma mudança de regime. O pai foi, então, enviado para um campo de refugiados em um país vizinho. A mãe ficou com o filho, que ela julgava frágil. Ven foi enviada para a casa dos avós maternos. Três anos depois, quando Ven tinha seis anos, o pai volta e vai buscá-la. Ela se lembra dessa volta para casa, mas não tem lembrança alguma do período entre seus três e seis anos. Antes de chegar à França, a família ficou um ano em um país vizinho, onde as condições de vida eram deploráveis.

A transformação de Ven em homem foi progressiva: houve a visão do garotinho urinando no campo de refugiados acompanhada da convicção “é isso que sou ou que quero ser”; certa raiva da mãe, que insistia em vesti-la de menina, toda arrumadinha; inveja do irmão, preferido da mãe; quando os seios nascem, ela os esconde; como sua voz não se torna grave na adolescência, passa a exigir que seus colegas a tratem no masculino (em casa era tratada no feminino). Aos 20 anos passa a usar um cilindro dentro da cueca para “obter a protuberância”; corta os cabelos bem curtos e usa as roupas de estudante do pai, “as únicas que lhe caem bem”.

Um primeiro ponto que desvela certa alteração do simbólico diz respeito ao pai e à lei: quando da chegada da família na França, no momento de declarar os filhos, ela acredita que bastaria que o pai a tivesse declarado homem para que tudo fosse diferente. A palavra do pai teria podido não apenas modificar o seu gênero, mas, talvez, metamorfosear sua anatomia aos sete anos de idade. O pai teria podido, assim, reparar esse erro da natureza. É como se o desejo do pai tivesse força de lei. Há aí uma espécie de continuidade entre o simbólico da lei e o imaginário do corpo.

Segundo Morel (1995) a psicose do sujeito aparece justamente em um ponto que poderia ser confundido com uma histeria. Trata-se da questão do retorno, no real, da questão do sexo. Essa questão se enuncia pelo viés do pequeno outro: o olhar das meninas a atormenta, ao passo que aquele dos meninos a deixa indiferente. Diante do enigma representado pelo olhar das meninas, Ven constrói alguns cenários que poderiam remeter à questão histérica “sou homem ou mulher?” Contudo, nesse caso, o olhar é fonte de grande tomento, de angústia e de tentativas de passagem ao ato.

Para Ven, o ato sexual equivale ao estupro. Ela não sente desejo sexual nem por homens nem por mulheres, ela tampouco se masturba. O que ela quer da mulher é um amor platônico, absoluto, uma amizade perfeita, da qual o amor e o gozo estão evidentemente excluídos. Por que, então, um pênis? Para dizer toda a “verdade”. “Sou de fato do sexo macho, mas como prová-lo?”

Para esse sujeito, no lugar do meio-dizer, há a verdade toda, no lugar do falo velado, há o pênis como prova absoluta, e, no lugar da sutil mascarada, a roupa masculina, que a protege de um desvelamento por uma mulher, que, em seu caso, seria trágico, pois Ven não tem o pênis como prova.

O que parece paradigmático, nesse caso, e que pode esclarecer quanto à complexa demanda de certos sujeitos transexuais é a própria função do travestismo: aqui, é o próprio travestismo que, ao funcionar como suplência, permite evitar uma intervenção real no corpo. Afinal, como diz a paciente: “Parecer é ser”.

 


 

Referências Bibliográficas
COUTINHO, L. em “De frente com Gabi”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=uxD1xXvQWYM. Acesso em: 10/08/2012.
FREUD, S. (1923/1976). “A organização genital infantil”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p.179-184.
FREUD, S. (1924/1976). “A dissolução do Complexo de Édipo”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p. 217-224.
FREUD, S. (1925/1974). “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p.309-320.
LACAN, J. (1971/2009). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, p.30
LACAN, J. (1971-1972/2012). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, p.17.
LEA T. em “De frente com Gabi”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=6RZrCRKUXak. Acesso em: 02/10/2012.
MOREL, G. “Un cas de transvestisme féminin”, La Cause Freudienne, Paris: ECF, n. 30, 1995, p.20-26.
NERY, J. W. Viagem solitária. Memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo: Editora Leya, 2011.
NERY, J. W. em “De frente com Gabi”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8hTnTk80GfE. Acesso em: 30/07/2012.
STOLLER, R. Sex and gender. London: Hogart Press, 1968.
STOLLER, R. A experiência sexual. Rio de Janeiro: Imago, 1982.
TEIXEIRA, M. C. A pessoa que se é. As relações entre personalidade e corpo numa sexuação transexualista. Tese de doutorado defendida na FAFICH/UFMG em 2012. Inédita.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicose, no dia 19/10/2012.

 


Yolanda Vilela
Psicanalista membro correspondente da EBP-MG, mestrado (DEA) pela Université de Paris 8, doutorado em Literatura Comparada pelo programa de pós-graduação em Estudos Literários pela FALE-UFMG, pós-doutorado em Literatura Comparada pelo programa de pósgraduação em Estudos Literários pela FALE-UFMG. E-mail: yolandavilela@gmail.com



Almanaque On-Line Entrevista – PATRÍCIO ALVAREZ

PATRÍCIO ALVAREZ

 

 

“A insensatez do sintoma: os corpos e as normas” será o tema de trabalho da Seção Clínica do Instituto, neste semestre. Sua escolha se articula à preparação para o VI ENAPOL e toma como orientação o argumento de Éric Laurent (2013) para esse Encontro. A apresentação do tema parte da afirmação de que, hoje, “o sintoma está no corpo”, não se oferece à interpretação e tem como resposta do mestre contemporâneo variadas tentativas de normatização e padronização dos corpos (medicalização, judicialização, etc), política da qual a psicanálise de orientação lacaniana não compartilha. Se, na França, discute-se, atualmente, a questão da instrumentalização da psicanálise, para justificar a posição contrária ao casamento para todos, no Brasil, estamos sendo chamados a nos posicionar em relação à questão das internações compulsórias de usuários do crack.

Almanaque On-Line: Em Seu Argumento, Laurent Indica Que “Precisamos Conceber O Sintoma Não Com Base Na Crença No Nome-Do-Pai, Mas Baseados Na Efetividade Da Prática Psicanalítica. Essa Prática Obtém, Por Meio Do Seu Manejo Da Verdade, Alguma Coisa Que Toca O Real. A Partir Do Simbólico, Alguma Coisa Ressoa No Corpo E Faz Com Que O Sintoma Responda” (LAURENT, 2013). Ele Diz, Ainda, Que A Questão, Para A Psicanálise, É “Como Falam Os Corpos Para Além Do Sintoma Histérico, Que Supõe No Horizonte O Amor Ao Pai” (LAURENT, 2013). Em Seu Texto De Apresentação Do VI ENAPOL, Sua Pergunta É: “Com Qual Corpo Se Fala?” (ALVAREZ, 2013). Como Se Articulam As Duas Questões?

Patrício Alvarez: Na verdade, no primeiro ensino de Lacan, o corpo está do lado do Nome-do-Pai: é um corpo regulado por esse significante, e, até mesmo o que existe de real, nesse corpo, é regulado pelo significante fálico. Durante esse primeiro ensino, o que fica do lado de fora pertence ao campo da psicose.

O segundo estatuto do corpo, correspondente ao objeto a, já estabelece uma diferença que amplia a clínica e a relação ao sintoma: é a operação lógica da separação o que permite extrair o objeto a e, em torno desse buraco e de sua borda, criar a superfície que constitui o corpo. Portanto, não é o Nome-do-Pai que produz o corpo, mas essa operação lógica inicial. E o Nome-do-Pai funciona como uma duplicação simbólica dessa operação, ao elevar o buraco ao estatuto da falta-a-ser, ou seja, da castração. Então, consegue regular o gozo, constituindo, assim, a perda do objeto a e, em seguida, a sua busca, chamada de desejo, insatisfeito ou impossível. Mas, então, o Nome-do-Pai não é original, e, por isso, nesse momento, Lacan diz que a função do pai é a de “unir o desejo à lei”, porque sua função é secundária: se ocorrer, o gozo é regulado por essa lei. Mas há muitos casos em que não é regulado dessa forma, e Lacan se dedica, nesses anos, a investigá-los: a psicose, a debilidade mental, o fenômeno psicossomático, as tatuagens, a perversão, o luto, a violência e muitos mais são modos em que algo do objeto a não é regulado pelo desejo nem pelo Nome-do-Pai.

O terceiro estatuto do corpo leva mais longe essa diferença: começa em O Seminário, livro 17, quando Lacan afirma, categoricamente, que a castração é operada pela linguagem, ou seja, não pelo pai. É o que permite a Lacan localizar o pai como uma invenção da neurose, situando-o como o mais além do Édipo. Éric Laurent se refere a isso quando diz que o sintoma histérico supõe, em seu horizonte, o amor ao pai. Assim, o que começou em O Seminário, livro 11, ao localizar o pai como a duplicação da operação de separação, culmina com esse conceito e, assim, abre o segundo ensino de Lacan.

Vemos como o mais além do Édipo, que está sendo investigado, atualmente, na Europa, pelo PIPOL VI1, se articula, intimamente, com a nossa pesquisa sobre o corpo. Qual é o corpo que se constitui mais além do Édipo, se a operação do Nome-do-Pai não é o que a constitui? É um corpo diferente, definido por Lacan, em O Seminário, livro 23, como uma caixa de ressonância na qual um dizer produz efeitos: “a pulsão é o eco no corpo de que há um dizer”. Assim, não é o corpo do Nome-do-Pai, nem mesmo o do objeto a: é o corpo do sintoma e do sinthoma. É o instrumento que temos para tocar um real: o simbólico ressoa no corpo pelo sintoma.

Isso interroga a nossa prática e é o que o argumento de Éric Laurent assinala: o modo como o corpo fala mais além do sintoma histérico, isto é, mais além do Édipo.

Almanaque On-Line: Éric Laurent Evoca Jacques-Alain Miller Em Seu Pequeno Tratado Sobre A “Biologia Lacaniana”, Para Destacar A Maneira Como A Linguagem Biológica Se Apodera Do Corpo, Recortando-O Com Suas Próprias Mensagens, Sem Equívoco. Como, Então, Podemos Pensar Sobre A Produção Do Sintoma Analítico, A Partir De Um Corpo Que Não Fala E Que Goza No Silêncio Pulsional De Uma Linguagem Sem Equívocos?

Patrício Alvarez: Não estamos longe de considerá-lo como uma batalha: o corpo que a ciência recorta pode prescindir da linguagem, pode dispensar o equívoco e o mal-entendido, porque foraclui o sujeito.

Deixemos claro que não nos referimos à ciência, tal como concebida pelo Iluminismo e que muitos ainda defendem, destacando seus progressos úteis à humanidade, o que inclui os gadgets que utilizamos tanto. Nós não discutimos esses desenvolvimentos e, de fato, opor-se a eles é uma forma de obscurantismo, contra o qual Lacan adverte insistentemente.

Não é essa a crítica da psicanálise. Referimo-nos a um outro aspecto da ciência, impulsionado pelo discurso capitalista: o que silencia os corpos, foracluindo o sujeito. O corpo da ciência não fala porque os seus meios são outros: o bisturi e os procedimentos tecnológicos não são o problema de primeira ordem, mas as operações políticas e econômicas que constituem a biopolítica. Então, não acho que existam corpos que não falam, mas que a ciência, em conjunção com o discurso capitalista, os silencia. Essa combinação, a que Lacan se refere várias vezes, em seu ensino, é estudada, em filosofia, sob o nome de biopolítica. Agamben, por exemplo, tem demonstrado os instrumentos de que ela se utiliza para manipular os corpos.

Essa é a batalha: ou os corpos são manipulados biopoliticamente, ou os corpos falam. Então, Laurent diz que “as palavras e os corpos se separam na disposição atual do Outro da civilização” (LAURENT, 2013). Para Lacan, o corpo é de um sujeito. Portanto, temos de fazer falar esse corpo que a ciência tenta silenciar, porque é o único meio de resgatá-lo como de um sujeito. E para que o corpo fale, nosso instrumento fundamental é o sintoma: essa “junção das palavras com os corpos”, que Laurent (2013) indica com precisão.

Então, responderia à pergunta, dizendo que eu não acho que, estruturalmente, existam corpos que não falam, mas que são corpos silenciados. Todo corpo pode falar, mesmo aqueles que parecem gozar em silêncio, e a operação da psicanálise consiste, precisamente, em fazê-los falar em sua própria língua: a clínica do autismo, a clínica da toxicomania e a clínica da violência o demonstram a cada dia. Nossa clínica atual trava essa batalha. Trata-se de uma ética, mas, por que não, também de uma épica.

Almanaque On-Line: Como A Psicanálise Pode Contribuir Para Uma Abordagem Desse Novo Status Do Sintoma? Como A Psicanálise Pode Tratar Esses Sintomas Que Não São Passíveis De Interpretação?

 

Patrício Alvarez: Temos de estabelecer uma diferença, que parece sutil, mas produz muitas consequências: quando Laurent alude a um corpo que não fala, trata-se do corpo da biopolítica, que, como dissemos, não é um corpo que não possa falar, mas que foi silenciado. E, como tal, podemos fazê-lo falar, resgatando o sujeito.

Mas é diferente disso considerar o corpo que está para além do Édipo, que Laurent designa como aquele da cadeia rígida: “o corpo tórico furado. O corpo como agenciamento do real, do simbólico e do imaginário se apresenta em torno de um ou dois furos, e se mantém sozinho” (LAURENT, 2013). Esse corpo prescinde do Nome-do-Pai, como Lacan aponta, ao falar sobre as diferentes formas possíveis de amarração, ao mostrar que o Nome-do-Pai é uma duplicação possível de um dos registros — no caso da neurose — mas não é necessário: não toda a clínica depende dele.

Entretanto, não devemos nos confundir: esse corpo tórico pode prescindir do Nome-do-Pai, mas não do simbólico. O novo estatuto do sintoma não prescinde do simbólico. Essa diferença sutil é o que permite que a psicanálise possa operar sobre ele.

As manifestações dessa cadeia rígida são muitas, mas o fator comum que as unifica é que não passam pelo sentido: na verdade, o Nome-do-Pai foi localizado por Lacan desde O Seminário, livro 11, como o que produz o laço entre S1-S2, associando o sem sentido do S1 ao saber inconsciente. Na cadeia rígida, esse laço não se produz, e Laurent diz que Lacan “propõe outra versão de um inconsciente que não é constituído pelos efeitos do significante em um corpo imaginário, mas, sim, um inconsciente constituído desse nó entre o imaginário, o simbólico e o real. Inclui a instância do real que é a pura repetição do mesmo, o que Jacques-Alain Miller, em seu último curso, isolou na dimensão do Um-sozinho que se repete” (LAURENT, 2013), ou seja, o que Miller chama de iteração. Isso implica dizer que o próprio inconsciente é afetado pela dispensa da amarração ao pai. Mas esse inconsciente, que pode prescindir do pai e do sentido, não prescinde do sintoma.

Então, poderíamos responder assim a essa pregunta: a rigor, nenhum sintoma é passível de interpretação, mesmo o sintoma neurótico. “Vocês sabem que o sintoma não pode ser interpretado diretamente, que é preciso haver a transferência, isto é, a introdução do Outro. […] O sintoma, por natureza, é gozo […] não precisa de vocês como o acting-out, ele se basta” (LACAN, 1962-1963/2005, p.139-140), é o que Lacan indica, desde O Seminário, livro 10.

Precisamente, o sintoma não precisa do sentido ou do Outro, é o analista que atua para esse forçamento, o de fazer passar o gozo do sintoma para a palavra, pela operação da transferência. Esse forçamento é o que viabiliza a passagem do inconsciente real ao inconsciente transferencial, o que permite que o gozo do sintoma faça laço com o Outro, e que o S1 faça laço com o S2. Sabemos que não é uma operação fácil e que não é o mesmo na neurose, na psicose ou nos sintomas contemporâneos, mas pode ser feito. Isso é o que queremos dizer ao afirmar que todo corpo pode falar, o que a clínica da psicose ensinou-nos em primeiro lugar.

Também aprendemos que todo corpo pode falar, mas não necessariamente entrar no campo do sentido. E, para isso, as clínicas da anorexia, da violência, da toxicomania, e até o ponto extremo, do autismo, nos ensinaram que esse procedimento de passagem para o inconsciente transferencial não é sempre possível. Nós aprendemos que é possível operar com o sintoma, sem passar necessariamente pelo sentido, e, para isso, é tão útil o conceito que Miller define como iteração, ao que Laurent se referia.

Almanaque On-Line: Sua Apresentação Do ENAPOL Trata Das Três Teorias Do Corpo Em Lacan E Das Clínicas Que Podem Ser Deduzidas De Cada Uma, Mas Levanta Um Problema Em Relação À Dificuldade De Elaborar Uma Clínica Do Acontecimento De Corpo, Que Ainda Teria Que Ser Construída. Considerando Também Sua Hipótese De “Que Uma Clínica Se Baseia No Particular Da Classe, Talvez Não Se Tenha Que Construí-La, Mas Designar O Que Há De Mais Singular Nesse Corpo Que Fala”, Você Sugere Que O ENAPOL Seria A Ocasião Para Elaborarmos Uma Resposta. Poderia Falar-Nos Um Pouco Mais Sobre Isso?

Patrício Alvarez: É o ENAPOL que deveria responder! É uma brincadeira, mas tem um pouco de verdade: geralmente, quando nos referimos ao corpo, usamos conceitos do primeiro ensino e, várias vezes, misturamos a clínica do Nome-do-Pai e a clínica do objeto a com a clínica do acontecimento de corpo. Por exemplo, dizemos, levianamente, que um sintoma histérico é um acontecimento de corpo.

Éric Laurent define, de uma forma muito precisa: “Nessa perspectiva, pode-se distinguir o sintoma como acontecimento de corpo e o sintoma histérico” (LAURENT, 2013), e eles não são a mesma coisa. O corpo tórico, como dissemos, prescinde do Nome-do-Pai e inaugura uma série de manifestações clínicas novas.

Assim, a clínica do acontecimento de corpo é muito mais ampla do que as duas anteriores: não se limita à clínica das estruturas — relativa ao Nome-do-Pai — nem à clínica do que está fora delas — aquela do objeto a — mas se refere aos diferentes modos possíveis de amarração RSI: é um conjunto aberto e, como tal, poderia fazer uma série, mas não uma classificação. Por isso, dizia que o particular da classe não a apreende.

Essa clínica do acontecimento de corpo não anula ou deixa de fora as duas anteriores, mas a sua relação com elas é ainda algo a investigar: trata-se de saber se vão ser incluídas, redistribuídas, ou se operam ao modo de funcionamento do conjunto aberto, formando uma série de singularidades, uma série de possíveis amarrações RSI. É a grande descoberta do inclassificável: o fato de que não se possa fazer uma classificação não nos impede de tratar; sim, é o que nos permite operar com o que é invariável em toda a série, o sintoma.

Essas perguntas que nos fazemos são, muitas mais, as que podemos fazer para nosso Encontro: se pudermos obter um pequeno ganho de saber na construção dessa clínica do acontecimento de corpo, em nosso VI ENAPOL, seria ótimo!

 

Tradução: Márcia Mezêncio.

 

Referências Bibliográficas
ALVAREZ, P. ”Falar com qual corpo?” Disponível em: http://enapol.com/pt/template.php?file=Textos/Hablar-con-cual-cuerpo_Patricio-Alvarez.html. Acesso em: 25 mar. 2013.
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LAURENT, É. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento.html. Acesso em: 25 mar. 2013.
[1] O encontro internacional do continente europeu ocorrerá em Bruxelas, em 6 e 7 de julho de 2013, com o título “Depois do Édipo, as mulheres se conjugam no futuro”