A Segregação Nossa De Cada Dia

LUÍS TUDANCA

É um prazer estar aqui, trabalhando com vocês as questões levantadas em meu último livro.[2] Agora posso dizer “meu último livro”, já que são dois.

Trata-se, então, da política pensada a partir da psicanálise e, mais estritamente, da política da psicanálise que chamo de “uma política do sintoma”, que é o título do livro. Tento sustentar-me nessa linha. Nesse sentido, parece-me que há uma ideia de Lacan da qual não se deve desviar, que é sua definição de política em relação à psicanálise. Lacan diz, textualmente: “O sintoma institui a ordem em que se revela nossa política, implica, por outra parte, que tudo o que se articula por essa ordem, quer dizer, a ordem do sintoma, seja passível de interpretação”. Assim, o que Lacan indica — e ele não se afastou nunca disso — e que faz com que Miller retome todas as discussões sobre a política e a psicanálise, nesse ponto, gira ao redor de três termos: política, sintoma e interpretação. Isso quer dizer que, em psicanálise, a política é a política do sintoma, e, com isso, o outro passo agregado por Lacan é aquele segundo o qual, se a política da psicanálise é a política do sintoma, a única ferramenta de que dispomos para essa política é a interpretação. Esses são os três eixos que vamos encontrar nos dois livros e em todas as ideias nas quais Miller insiste, e insiste muito, ultimamente.

Isso abre duas perspectivas, uma é a perspectiva para dentro, ou seja, para a psicanálise pura, e outra é a perspectiva para fora, quando dizemos ir desde a psicanálise ao social, ir desde a psicanálise à cidade.

Para dentro, a política da psicanálise é a política do sintoma, e isso nos leva ao passe. Por quê? Porque o dispositivo do passe investiga o sintoma, e essa é a política da psicanálise pura. Por outra parte, no dispositivo do passe, tenta-se verificar o que se passou com a interpretação em uma análise, se essa interpretação conseguiu fazer algo ou não com o sintoma do sujeito, e se houve modificação a tal ponto que se possa falar de sinthome no final de análise, um novo enodamento, isso é para dentro.

Para fora, em relação ao social, ocorre o mesmo, porém aí surgem nossos problemas. Porque a política para fora teria que estar restrita unicamente a localizar o sintoma, o sintoma no social, a cada vez; não há outra perspectiva senão essa. De modo que o trabalho em instituições, o trabalho no Estado, inclusive, etc., se alguém o aborda como psicanalista, tem que abordá-lo unicamente na perspectiva do sintoma, e aí sim se abre a perspectiva de interpretar esse sintoma que aparece no social, na sociedade concreta, na qual vivemos. Qual seria, no entanto, a especificidade dessa interpretação? Porque, se o abordamos, numa perspectiva geral, poderíamos dizer que todos interpretam o sintoma. O que quer dizer todos? Os filósofos, os sociólogos, os cientistas políticos, os literatos… Na televisão, há um excesso de interpretação do sintoma. O problema é que todas essas interpretações apontam para o sentido. A questão é: o que isso quer dizer? Eles convocam, na televisão, na Argentina é assim, aqui deve também, um cientista político, um deputado, um médico e um psicanalista.

Se alguém vai a essas mesas multidisciplinares, como psicanalista, deveria perguntar-se se pode dizer algo diferente. O algo diferente teria que estar fora dos sentidos que as demais disciplinas vão apresentar. É nisso que se torna tão difícil a intervenção de um psicanalista na mídia, seja em um jornal, na televisão, etc. Porque ele sempre deveria apontar para o que chamamos, em psicanálise, o fora de sentido.

É assim que a interpretação, como Miller a pensa e eu a retomo neste livro, é leitura do sintoma, sempre se trata de ler o sintoma. Ler o sintoma é interpretá-lo, interpretá-lo é, se não ir diretamente ao fora do sentido, é, pelo menos, tratar de podar os outros sentidos que estão em jogo em relação a esse sintoma. Essa me parece que é a intervenção mínima.

O outro ponto que Lacan assinala, e que sempre nos traz dificuldades, é sustentar nosso discurso num meio-dizer.

Há um exemplo que Lacan dá, no Seminário 17, e que sempre gerou, inclusive entre nós, os colegas, discussões. Lacan diz “evitando a denúncia”, não denunciando. Mas, se alguém permanece somente nessa frase, parece-me que não termina de entender a ideia de Lacan. Ele disse, efetivamente, “evitando denunciar, porque denunciar reforça o denunciado, salvo…”, e aí vem a segunda parte, “salvo que se o faça com um meio-dizer”. Então, não é exatamente não denunciar, mas denunciar de outra maneira, uma maneira difícil, uma maneira para a qual eu penso que é preciso preparar-se, porque a que nos ocorre é a outra, é a do filósofo, a do sociólogo, nos ocorrem estas. Não nos ocorre a denúncia como um meio-dizer, sem dizer tudo, apontando ao vazio, diminuindo o sentido, podando-o, rasurando-o. Parece-me que merece uma prática, uma maneira de ir-se instalando, aos poucos, nessas questões. Isso, como linha geral.

Como isso se encarna na ação política concreta?

Porque, de alguma maneira, e essa é a segunda parte, deve-se pensar a política já não somente a partir da psicanálise: a política, em geral, é ação. Vocês podem verificar a multidão de filósofos políticos que, pelo positivo ou negativo, sempre vai indicar que política é ação. Assim, o importante é pensar qual ação política, a cada vez, sem esquecer a perspectiva de que a ação política deve estar dirigida a ler um sintoma e interpretá-lo, essa é a política da psicanálise.

Não é pouco, ler um sintoma e interpretá-lo pode interferir diretamente no real de uma situação, não se deve pensá-lo como algo localizado fora da política concreta, ao contrario, isso é política concreta, e pode fazer mudar as políticas. A questão é: como mudar as políticas sem chamar muita atenção? Aí se coloca o impolítico,[3] porque a ação política permite uma dupla leitura: a da ação política pensada em direção a conseguir uma eficácia direta; e a da ação política pensada como o impolítico, possibilitando a leitura da ação política sustentada em uma eficácia indireta.

Aqui tenho que fazer uma pequena confissão: no primeiro livro, eu pensava que o impolítico sempre devia guiar a ação política. Hoje, não penso exatamente o mesmo, há uma variação entre o primeiro e o segundo livro. Não falo de complemento entre ambos, mas sim de suplemento; assim como falamos do gozo feminino como suplemento, podemos falar do impolítico como suplemento. Porém, às vezes, necessita-se da ação política sustentada na ação direta, na eficácia direta. Por exemplo, quando Miller funda a Associação Mundial de Psicanálise, aí não há nenhum ato impolítico, é um ato político de eficácia direta e com consequências, nesses 20 anos em que já se encontra estabelecida a AMP. É uma ação política concreta direta, não tem nada de indireto, com uma mensagem ao resto da psicanálise, com uma presença nova no real dos psicanalistas de orientação lacaniana em nível mundial. De forma que, há, nisso, uma política que não podemos chamar de impolítica.

O impolítico deve ser pensado como um dos nomes do que, em psicanálise, se chama de não-todo. Para mim, o impolítico é uma maneira de pensar o político sustentado no não-todo, o que corresponde à lógica feminina e não à lógica masculina, que aponta sempre para o todo, corresponde ao que eu transmitia, em meu testemunho de passe, como apontando ao A, A história, A política, A mulher. O impolítico é o que aponta ao não-todo sustentado na lógica feminina, que é, por outro lado, a lógica com base na qual Lacan pensa a posição do analista, mais do lado da lógica feminina, quer dizer, do não-todo, que do lado da lógica masculina, que aponta ao todo.

Por isso, digo, neste livro: há a ação política propriamente dita, que é a que remete à eficácia direta, e há a ação política mais sustentada no impolítico, que é a que assinala para a eficácia indireta, a ser atingida de lado.

Isso acrescenta um problema, o da decidibilidade, da decisão. Ou seja, cada um tem que escolher que coisa, a cada vez. Não se pode escapar da decisão. Isso é exatamente o contrário de um efeito de massa, porque, se alguém tem que decidir, a cada vez, elimina por completo o plano da sugestão e o efeito de massa, ou o efeito de grupo, esse é um tema a considerar.

O livro Uma política do sintoma deve um reconhecimento a um outro livro que não é de um psicanalista e que me permitiu entender alguns temas da psicanálise, de modo a iluminar alguns pontos obscuros para mim em relação à teoria psicanalítica. Esse livro é de Michel Foucault, e seu título é É preciso defender a sociedade.[4] Há uma tese central, nesse livro, que não é exatamente o que se toma em geral como a tese central que está no último capítulo, que é onde ele define a biopolítica. Há um capítulo do meu livro dedicado à biopolítica. Porém o desenvolvimento que se dá a ver no livro de Foucault é muito mais importante que o de seu último capítulo, ou seja, os quatro primeiros capítulos. Pelo menos, eu penso assim, porque a biopolítica é uma consequência do desenvolvimento que Foucault faz nesse curso, nas quatro primeiras aulas. Eu o recomendo especialmente, porque é um livro que serve a nós, psicanalistas, não para saber de filosofia política, mas para saber de nossos temas, nossos problemas. Nesse livro de Foucault, estão duas ideias fundamentais para mim, que constituem as hipóteses que sustento em meu livro.

A ideia de Foucault está sustentada na análise de uma fórmula. Ele diz que, antes, no discurso do mestre antigo, havia o direito, por parte do mestre, de “fazer morrer ou deixar viver”, essa é a fórmula que ele analisa. Ou seja, que o mestre, com relação ao súdito (para não dizer escravo, porém poderíamos dizer escravo), tinha o direito de fazer morrer, de matá-lo concretamente, e essa era uma lei inerente ao mestre. Ou de permitir-lhe viver, deixá-lo viver. Foucault expõe que, na sociedade contemporânea, no capitalismo contemporâneo, essa fórmula sofre uma transformação, que nos leva ao tema central do livro. Essa fórmula é substituída pelo poder de “fazer viver e deixar morrer”, é uma fórmula que deve ser destrinchada.

Em primeiro lugar, há um deslocamento do termo “direito” ao termo “poder”, e aí estamos na essência de todo o desenvolvimento de Foucault a respeito do que seja o tema central de sua obra, que é o poder e como um sujeito sofre em relação ao poder. A segunda questão é a inversão dos termos, antes era “fazer morrer”, agora a fórmula passa a “fazer viver”, antes era “deixar viver”, agora passa a “deixar morrer”. A inversão de vida e morte na fórmula mesma. O fundamental, e o que nos permitiria interpretar a inversão da fórmula, é que começam a nos dizer como viver. Isso eu creio que é claro para qualquer um.

Antes de dar um exemplo, no mesmo curso de Foucault, encontramos a ideia de que o mundo está basicamente dividido em duas raças. Essas duas raças podemos traduzir como dois bandos, dois grupos, e Foucault pensa que isso constitui a essência mesma de nossa sociedade. Na Argentina, pode ser River e Boca, pode ser peronismo e antiperonismo, os millerianos e os antimillerianos… Isso é essencial, na sociedade contemporânea, não ocorria tanto na sociedade antiga. Inclusive, quando se produziam guerras, nunca havia exatamente essa questão de dois bandos, isso é o que constitui um racismo contemporâneo, é o que eu chamo de o racismo nosso de cada dia. Aqueles que, alguma vez, rezaram o Pai Nosso recordarão essa fórmula, na parte em que se diz ”o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Faço uma ironia com ela, tomo da oração maior da religião cristã essa frase e a transformo em “o racismo nosso de cada dia”. Assinalo o pequeno racismo de todos os dias, que acontece quando tomamos um táxi, com o taxista, não ao racismo que termina no nazismo, por exemplo, e que pode resultar numa guerra, etc. A mim me preocupa esse racismo nosso de cada dia, que é o que cada analisante leva à análise e do que, a partir da psicanálise, devemos tentar dizer algo.

Também podemos dizer algo sobre o outro racismo, de fato um capítulo do livro que dedico às ideias de Lacan sobre o racismo e ao que acrescenta Miller a essas ideias, que são três. O racismo dos discursos em ação, a fórmula do racismo sustentado no ódio ao gozo do outro e uma terceira de que não me recordo neste momento, porém são três. Pode-se fazer isso também, e, de fato, é importante, mas, na condição de psicanalista, procuro elucidar o ponto do pequeno racismo, que é esse do qual ninguém escapa, incluídos nós, os psicanalistas. De forma que este é clínico, o interesse é político, mas também é clínico, porque depois é o que se escuta no discurso dos analisantes.

Então, agora sim, o exemplo, correndo o risco de que, ao ser dado, se constituam dois bandos. Na sociedade contemporânea, cada vez mais, pode-se fumar em menos lugares. Então, alguém pode dizer que isso é indicar-nos como viver. Impõem-nos que há um gozo que não devemos ter, outros não importam tanto, porém esse é um gozo em cuja erradicação a sociedade contemporânea, cada vez mais, tem decidido investir. Por quê? Já sabemos, como psicanalistas, que quanto mais se aponta à erradicação de um gozo, este volta por outro lado, isso já sabemos. Vamos deixar de fumar e seguramente nós iremos talvez às drogas, não importa.

Porém não sabemos tampouco quem detém o poder, porque uma das teses de Foucault é a de que se perde onde está o poder, cada vez mais. Antes, localizava-se o poder num rei, por exemplo, ou em alguém que mandava, agora não se sabe muito bem, o poder está completamente desfocalizado.

Voltemos ao exemplo: se eu pego um cigarro, vão me dizer: “não, aqui não, em Belo Horizonte, não se fuma aqui dentro, podemos ir lá fora para fumar”. Isso imediatamente constitui dois bandos, e é a sociedade na qual vivemos. Na Argentina, continua-se avançando no como viver, e agora não se pode colocar um saleiro na mesa dos restaurantes, é preciso pedi-lo ao garçom, se alguém quer colocar sal na comida. Então, indicam-nos que devemos consumir pouco ou nada de sal, e assim será com a água, que será com gás ou sem gás, de acordo com o que pense o poder, continuará com as comidas, não haverá mais carne de porco nos restaurantes… Exagero para que entendam a minha ideia.

Essa ideia está em Foucault e se verifica no que os analisantes nos contam de seus dramas. É o mesmo, porque os bandos devem ser pensados em termos psicanalíticos, em termos de homem e mulher. Por isso, é um milagre que tenham ocorrido a Lacan as fórmulas da sexuação, que eliminam os dois bandos: há dois gozos, não dois bandos, e cada um pode-se localizar de acordo com o gozo que tem. Um homem pode estar do lado direito, de fato estar do lado esquerdo, a estrutura da histeria o faz estar do lado esquerdo. Para a mulher, valem as quatro fórmulas, no homem, ao contrário, as duas da esquerda, e ele tem muito mais dificuldades para orientar-se para o lado direito. As fórmulas da sexuação são um exemplo, uma resposta ao problema dos dois bandos. Obviamente, não me imagino indo à televisão para explicar, numa mesa com filósofos e sociólogos, que o que dá a possibilidade de solucionar o problema das duas raças são as fórmulas da sexuação. É impossível, por isso, nossa intervenção é muito limitada. Mas temos que nos perguntar como podemos intervir, tendo essa ideia em mente. A partir desse ponto de vista, a filosofia política tomou as fórmulas da sexuação para explicar o mundo contemporâneo. Isso é feito por Milner, Badiou, assim como Ernesto Laclau, todos os filósofos políticos que consideram o pensamento de Lacan. Porém, do pensamento de Lacan, o que tomam fundamentalmente são as fórmulas da sexuação, não somente, mas fundamentalmente, repito.

E, nesse ponto, para dar-lhes outro exemplo, há outro capítulo que eu chamo “a época da vizinhança”. Vizinhança é um termo que Lacan usa no Seminário 21, e em todo o último ensino. É um termo que corresponde à lógica do não-todo, do pas-tout, inclusive como oposição a outra lógica, que é a lógica da fronteira. É sempre o mesmo tema, com distintos nomes. A lógica da fronteira é uma lógica de segregação, porque, onde há uma fronteira, há um bando e outro bando, e, a partir daí, começam as guerras, porque “você avançou um pouquinho, cem metros, e ocupou meu território, então, tenho que te expulsar”.

A lógica da fronteira é uma lógica da inclusão/exclusão, não tem nada de não-todo. Ao contrário, por isso, Lacan pensa que a lógica da vizinhança é a eliminação total das fronteiras.

Então, a filosofia política começa a pensar se poderia haver uma maneira de eliminar as fronteiras. Gostemos ou não, estejamos completamente de acordo ou um pouquinho em desacordo, o Mercosul é uma ideia de vizinhança, não é uma ideia de fronteira. E todas as discussões do Mercosul — “me impediste a importação”, “agora não me mandas aquilo, mas queres o meu” — isso é um retorno da lógica das fronteiras. Ou seja, a lógica da vizinhança é muito difícil de sustentar, no entanto, pareceria que há elementos que pouco a pouco se vão instalando na sociedade contemporânea, pelo menos na América Latina.

Isso teria que nos servir para pensar os problemas nas instituições psicanalíticas. Nelas, deixamo-nos levar pelo não-todo, pela lógica da vizinhança, ou caímos todo o tempo, como sintoma, na lógica das fronteiras, na lógica dos bandos, dos grupos? E, como sempre, ao cair nisso, deve-se interpretar o sintoma e encontrar soluções parciais para esse sintoma. Pelo pouco que conversei, em São Paulo e aqui, sei que isso acontece do mesmo modo como na Argentina, o tempo todo, e é necessário, a cada vez, interpretar o sintoma: como ele se deslocou e apareceu em outro lugar, como se deslocou e voltou a aparecer no outro lado, e como se pode resolvê-lo a cada vez. Para consumo interno, isso tem uma vigência extraordinária.

Debate

Sergio de Castro: Pergunta não audível a respeito da diferença entre o Mercosul e o mercado comum europeu.

Luis Tudanca: Sim, torna-se mais duro se se mantém a lógica das fronteiras, porque o que se mostra no mercado comum europeu é que está mantida a lógica das fronteiras, porque os maus alunos são castigados, os alunos que não fazem os deveres. Isso nos leva à lógica da avaliação, há um poder que avalia quem merece permanecer. Neste momento, é muito mais interessante a lógica do Mercosul que a do mercado comum europeu. Deve-se ver se isso vai seguir assim ou não, o Mercosul é uma mistura das duas lógicas, vamos ver o que acontece. Nesse sentido, Lacan era pessimista, falava do pessimismo da estrutura e somente localizava o otimismo do lado da ação. Então, devem-se pensar todas essas questões do lado da ação, porque, se as pensamos do lado da estrutura, já sabemos, como psicanalistas, o que acontece do lado da estrutura, nesse ponto.

O problema é a convivência de lógicas, e qual vai tendo maior peso em cada situação, essa é a questão.

Jésus Santiago: Porque, além da questão da fronteira e da vizinhança, tem um aspecto mais estrutural que, a meu ver, é a própria lógica do capital. Lacan, de alguma maneira, aponta para se considerar os mercados comuns como uma espécie de estímulo ao racismo. O que os mercados comuns denotam é o avanço do capitalista, portanto, da homogeneização, e isso iria contra os distintos modos de gozo. Não sei o que você pensa, mas talvez tivéssemos que introduzir a ideia, em torno do problema da vizinhança e da fronteira, de que, para além dele, haveria um certo processo de homogeneização, e que, em última instância, é a base do fenômeno do racismo, não?

Luis Tudanca: Essa é a distinção que temos de realizar, o que você disse é preciso. Em certo sentido, a lógica da fronteira já não existe, devido à uniformização que o capitalismo tem produzido, a homogeneização, porém a lógica da vizinhança não é isso. Então, deve-se extrair de Lacan essa ideia. Talvez a AMP possa dar uma injeção de vizinhança no capitalismo. Isso é o que temos que começar a pensar.

Jésus Santiago: Porque a ideia que eu penso que a própria Orientação Lacaniana introduz em relação à crise que vive a Europa, dos processos de homogeneização no nível da própria economia, a impressão que me dá é a de que, para se contrapor ao racismo, a resposta que tem que ser dada não é tanto uma resposta pela via do nacionalismo. Pois o nacionalismo reforça a lógica da fronteira. O que estaria em jogo seria um processo de civilização, não um projeto jurídico, não uma certa orientação da própria integração, de mercado comum, de propor uma unificação dos mercados, sem ter uma orientação em relação ao próprio estilo da vida civilizada.

Ludmilla Faria: A homogeneização, na verdade, traz como resposta a fronteira, leva à fronteira. Contra dois bandos, todos iguais, a tentativa é de constituir diferença, introduzir fronteira, acho que a gente tem fronteiras hoje, uma lógica de fronteiras. Parece-me que a homogeneização introduz a tentativa de diferenciação.

Pergunta não audível.

Luis Tudanca: A homogeneização deve ser pensada em termos de gozo. Quem idealiza as fronteiras torna os sujeitos idiotas e casados com seu gozo. Isso é o que chamamos de consumo, a homogeneização é o que Miller chama de “a ditadura do mais-de-gozar”. Sustentada numa ciência, que não é ciência, mas técnica, que produz objetos para alcançar essa homogeneização do consumo. A partir desse ponto de vista, a discussão da fronteira ou vizinhança passa para um segundo plano, porque já não há sujeito, por isso, Lacan recorre ao termo parlêtre, para designar alguém diretamente casado com o gozo. Já não há dois bandos, já não há dois grupos, na medida em que o que triunfa é o autismo do um, que não se dirige ao Outro de nenhuma maneira. Isso é clínica, e é clínica porque o que começamos a ver, em todas as nossas discussões sobre psicoses ordinárias, é isso. Percebe-se que, cada vez mais, está impossibilitado o enlace como tal.

É desde esse ponto de vista que se deve começar a pensar que política é possível nesse ponto. Sem a possibilidade de um retorno nostálgico à solução Nome-do-Pai, que já não tem retorno, mas tampouco sem uma solução para sustentar isso. Esse é o problema que temos, insisto, não se pode dar uma fórmula, não se pode dar uma lei, não se pode assegurar uma generalização, é a cada vez, em cada situação, a solução que nos venha à mente. A distinção entre fronteira e vizinhança está sustentada (tento fazer isso no livro), fazendo primeiro uma distinção de qual é a lógica do capitalismo atual, depois se verá como intervir a cada vez, porque não há receita, esse é o problema.

Texto estabelecido por Ernesto Anzalone (revisto pelo autor)
Tradução: Maria das Graças Sena

(1) Intervenção realizada em 18/05/2012, na sede do IPSM-MG, em atividade extraordinária do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito, coordenada por Ludmilla Féres Faria.
(2) TUDANCA, Luis. Una política del síntoma. Buenos Aires: Grama ed., 2012.
(3) A categoria do impolítico designa uma política que busca intervir em relação ao poder, mas sob a forma de uma “ação não atuante”, contrária à despolitização contemporânea.
(4) FOUCAULT, Michel (1976). É preciso defender a sociedade. [S.l.]:Livros do Brasil, 2006.

Luís Tudanca
Psicanalista, AME, Analista Membro da Escola, da EOL – Escuela de la Orientación Lacaniana e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: tudancaluis@fibertel.com.ar



A Sintonia Do Eu Com O Sintoma: A Problemática Da Angústia Na Neurose Obsessiva

SIMONE SOUTO 

A despeito de sua complexidade, se acompanhamos Freud no texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1976), acabamos por nos render a seu interesse e entusiasmo ao constatar a importância do estudo da neurose obsessiva para a compreensão dos mecanismos da formação do sintoma e sua relação com a angústia.

Assim, é “na esperança de aprender alguma coisa a mais sobre o sintoma” (FREUD, 1926/1976, p.135) que, a certa altura desse texto, Freud passa ao estudo mais detalhado da neurose obsessiva. Em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud considera a neurose obsessiva o tema mais interessante e compensador da pesquisa analítica. Possivelmente, porque, como veremos, no que se refere à formação dos sintomas, encontramos, na neurose obsessiva, uma multiplicidade de mecanismos que se sobrepõem e/ou se sucedem, cada um visando a compensar o fracasso do outro. É também na neurose obsessiva que encontramos uma maior sintonia do eu com o sintoma, não só porque, com a ajuda desses diversos mecanismos, o eu, em certa medida, incorpora o sintoma em sua organização, mas principalmente porque, como sublinha Freud, na neurose obsessiva, a forma que o sintoma assume torna-se muito valiosa para o eu, pois obtém para este não apenas certas vantagens — ganhos secundários, como no caso da histeria — mas uma satisfação narcísica. Esta é, a meu ver, o aspecto mais importante da relação do eu com o sintoma na neurose obsessiva: o sintoma, na neurose obsessiva, é acompanhado de uma sensação de prazer, e não de desprazer, como na histeria.

Como nos esclarece Freud, os sistemas que o neurótico obsessivo constrói lisonjeiam seu amor próprio, fazendo-o sentir-se melhor que as outras pessoas porque é especialmente limpo, ou especialmente consciencioso, ou especialmente organizado, etc. Dessa forma, podemos dizer que, se o sintoma, na histeria, nos coloca diante da dificuldade de reconhecer uma satisfação no desprazer, a neurose obsessiva nos coloca o desafio de lidar com um sintoma que é reconhecidamente uma fonte de satisfação, de prazer, do qual o sujeito não quer abrir mão.

Podemos inferir, portanto, que o grande interesse demonstrado por Freud em “Inibição, sintoma e angústia”, no estudo da neurose obsessiva, se deve ao fato de que, nessa neurose, encontramos, de maneira mais evidente, o sintoma como sendo a “significação de uma satisfação” (FREUD, 1926/1976, p.135) (Bedeutung eine Befriedigung). Ou seja, parece-me que Freud, nesse texto, não está interessado no sentido do sintoma, no sintoma como algo que pode ser decifrado, mas no sintoma como uma satisfação. É essa vertente do sintoma que, a meu ver, designa essa “alguma coisa a mais” que Freud pretende entender, quando recorre ao estudo pormenorizado da neurose obsessiva.

Como eu dizia anteriormente, na neurose obsessiva, os mecanismos de defesa se constituem de forma complexa e múltipla. Assim, podemos destacar três mecanismos de defesa presentes na formação dos sintomas na neurose obsessiva:

– Recalque

– Regressão

– Formações reativas

Recalque

A neurose obsessiva se constitui a partir do mesmo mecanismo presente na histeria: o recalque, que é, por excelência, o mecanismo de formação da neurose. O recalque é um mecanismo de defesa que, segundo Freud, visa a manter afastadas da consciência as experiências traumáticas vividas na infância, ligadas ao Complexo de Édipo. Isto é, o recalque visa a desviar as exigências libidinais do complexo edipiano e o consequente perigo da castração. Mas, apesar de se constituir a partir do mesmo mecanismo que a histeria, a neurose obsessiva vai-se modelar de forma bem diferente. Como já vimos, na histeria, as experiências da infância ligadas ao Complexo de Édipo são acompanhadas de uma sensação de desprazer, uma falta de prazer, um prazer a menos (-). Um exemplo disso é a repulsa ligada à cena primária de sedução, isto é, ao sexo. No caso da neurose obsessiva, ao contrário, as experiências da infância ligadas ao Complexo de Édipo serão acompanhadas de um intenso prazer, um prazer a mais (+).

Se seguirmos a lógica freudiana a propósito do mecanismo do recalque, constataremos que uma experiência só se torna traumática se causar desprazer, e esse seria o motivo pelo qual a lembrança dessa experiência seria afastada da consciência, ou seja, recalcada. Na verdade, é exatamente assim que ocorre, segundo Freud: a condição para que o recalque aconteça é que a força motora do desprazer adquira mais vigor do que o prazer obtido na experiência de satisfação. Estamos, então, com uma dificuldade no que concerne ao mecanismo do recalque na neurose obsessiva. Como explicar o recalque na neurose obsessiva uma vez que nela as experiências ligadas ao Complexo de Édipo são acompanhadas de intenso prazer? Por que, então, elas precisariam ser recalcadas?

Freud parte da constatação de que o aparelho psíquico funciona a partir do princípio de constância, ou , como diz Lacan, por homeostase. Isso significa que o aparelho psíquico busca sempre manter o nível de tensão o mais baixo possível. Assim, qualquer coisa que ameace esse equilíbrio, seja um prazer a menos (como na histeria), seja um prazer a mais (como na neurose obsessiva), é sentida pelo aparelho psíquico como um aumento de tensão que causa desprazer, tornando-se, assim, uma condição para o recalque. Porém, existe ainda outro fator a ser considerado, porque, no que concerne à experiência de satisfação, ela nunca se completa, ou seja, a satisfação obtida nunca será toda. Sempre haverá uma diferença entre a satisfação obtida e aquela que era esperada. Assim, no caso da neurose obsessiva, por mais prazer que o sujeito obtenha, isso terá um limite que também será sentido como desprazer, tornando-se, portanto, condição para o recalque. O recalque opera quando entra em jogo algo que não pode ser absorvido pela homeostase, isto é, algo que está para além do princípio do prazer.

A partir daí, podemos entender por que, para o neurótico obsessivo, o prazer a mais ou, para usar um termo lacaniano, o gozo, é muitas vezes acompanhado de sentimentos de angústia, pânico, culpa, depressão, etc. Ou, ainda, por que, muitas vezes, o obsessivo acaba por evitar o prazer para não ter que se haver com essa diferença entre a satisfação obtida e a satisfação esperada. É por isso que, na base da experiência do obsessivo, existe sempre o que Lacan chamou de “certo receio de desinflar” (LACAN, 1960-1961/1992, p.235), relacionado com o que resulta do encontro com a satisfação. Aqui, Lacan nos lembra da fábula da rã que queria fazer-se tão grande quanto o boi: “O miserável animal, como sabem, inchou tanto que estourou” (LACAN, 1960-1961/1992, p.235).

O testemunho de um paciente exemplifica bem esse impasse obsessivo: segundo ele, o sucesso lhe era proibido porque qualquer coisa que lhe deixava feliz, que lhe dava prazer, seja no amor, seja no trabalho, chegava sempre em um ponto, em um limite no qual se transformava em um sofrimento horrível. Assim, preferia evitar qualquer situação que o deixasse feliz, que lhe desse prazer. Dessa forma, isolava-se cada vez mais: não saía de casa, evitava o contato com as pessoas , etc.

Esse exemplo nos permite entender a constatação de Freud segundo a qual o resultado desse processo, na neurose obsessiva, será “um eu extremamente restringido que ficará reduzido a procurar satisfação nos sintomas” (FREUD, 1926/1976, p.141).

No início do texto “Inibição , sintoma e angústia”, Freud define o sintoma da seguinte forma: “o sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente; é uma consequência do processo de recalque” (FREUD, 1926/1976, p.112). Isso quer dizer que, primeiramente, o recalque não é totalmente eficaz, e que, de algum modo, a satisfação pulsional encontra um substituto, apesar dele. Mas, como substituto da satisfação pulsional, o sintoma tende a cumprir o mesmo destino desta, ou seja, tende a manter sua existência fora da organização do eu, mas que, no entanto, não deixa de ter incidências sobre ele, tal qual “um corpo estranho que mantém uma sucessão constante de estímulos e reações no tecido no qual está encavado” (FREUD, 1926/1976, p.120). De acordo com Freud, o sintoma é, portanto, uma peça do mundo interno (do eu) que é estranha a ele (pois advém do isso). Sendo assim, a luta inicial do recalque contra a satisfação pulsional se prolonga na luta contra o sintoma. O neologismo criado por Lacan, “extimidade”, localiza, de maneira precisa, essa posição do sintoma como algo que está excluído, mas internamente, ou seja, algo que é estranho, exterior, mas, ao mesmo tempo, íntimo.

Dessa maneira, observa-se que, na neurose obsessiva, nessa luta secundária contra o sintoma, o eu apresenta “duas faces com expressões contraditórias” (FREUD, 1926/1976, p.120): ao mesmo tempo em que luta contra a satisfação pulsional, utiliza o seu poder de síntese para impedir que os sintomas “permaneçam isolados e alheios, empregando todos os métodos possíveis para agregá-los a si e para incorporá-los em sua organização por meio desses vínculos” (FREUD, 1926/1976, p.120). Assim, os sintomas que fazem parte dessa neurose se enquadram, em geral, em dois grupos de tendências opostas:

1) sintomas negativos (proibições, precauções e expiação);

2) sintomas positivos (satisfações substitutivas que amiúde aparecem com um disfarce simbólico).

Segundo Freud, o grupo defensivo, negativo, dos sintomas, é o mais antigo dos dois, mas, no decorrer do processo, “as satisfações, que zombam de todas as medidas defensivas, levam vantagem” (FREUD, 1926/1976, p.135). Assim, como observa Freud, a formação dos sintomas, na neurose obsessiva, assinala seu triunfo, ao conseguir combinar a proibição com a satisfação, de modo que o que era originalmente uma ordem defensiva ou proibição acaba adquirindo, também, a significância de uma satisfação. Aqui, é preciso fazer um parêntese e sublinhar a importância do supereu na formação dos sintomas da neurose obsessiva, uma vez que o supereu, como nos esclarece Lacan, é exatamente essa instância que incorpora a proibição e a satisfação ao mesmo tempo, ou seja, a lei e o gozo. O supereu ordena o gozo.

Dessa forma, “o eu faz uma adaptação ao sintoma e passa a se comportar como se reconhecesse que o sintoma chegara para ficar e que a única coisa a fazer é aceitar a situação de bom grado” (FREUD, 1926/1976, p.121). Ou seja, o eu se adapta a esse corpo estranho que é o sintoma, ele o incorpora. Portanto, na neurose obsessiva, o sintoma se funde cada vez mais com o eu, colocando-se cada vez mais em sintonia com este, que passa a se apresentar, em sua glória, com todos os seus sintomas, que se tornam, dessa maneira, traços fundamentais de sua personalidade. Parece-me, então, que é na neurose obsessiva que temos a oportunidade de constatar a frase de Freud segundo a qual “o eu é idêntico ao isso, sendo apenas uma parte especialmente diferenciada do mesmo” (FREUD, 1926/1976, p.119).Por outro lado, o sintoma, por sua vez, para fugir ao recalque e ser aceito pelo eu, apresenta-se como um substituto da satisfação pulsional, mas de forma muito mais reduzida, deslocada e inibida. No entanto, a despeito desse disfarce, o sintoma renova continuamente suas exigências de satisfação, obrigando o eu, por sua vez, a dar um sinal de desprazer, ou seja, a se deparar com a angústia. Então, para fazer frente a essa falha do recalque e à consequente presentificação da angústia, o obsessivo lança mão de outro mecanismo defensivo fundamental: a regressão.

Regressão

Segundo Freud (1917/1976, p.419), os neuróticos repetem, na atualidade, através de seus sintomas, uma experiência traumática do passado, experiência na qual parecem ter-se fixado. Isso acontece desse modo porque, diante da impossibilidade de satisfação (perigo da castração), a libido é compelida a tomar o caminho da regressão para tentar encontrar satisfação em períodos anteriores do seu desenvolvimento. Podemos dizer, então, que há um retorno da libido para um ponto de fixação onde, ao mesmo tempo, a libido ter-se-ia fixado e interrompido seu percurso. Esse ponto de fixação nada mais é do que a experiência de satisfação ligada ao Complexo de Édipo, que, uma vez recalcada, passa a funcionar como um ponto de atração da libido no inconsciente.

fixação recalque

De acordo com Freud, no caso da neurose obsessiva, essas experiências traumáticas em que a libido se teria fixado possuem uma significação sádico-anal, isto é, são experiências, lembranças, que não teriam alcançado uma significação fálica, sexual. Segundo Freud, na neurose obsessiva,

“[…] a organização genital da libido é débil e insuficientemente resistente, de modo que, quando o eu começa seus esforços defensivos, a primeira coisa que ele consegue fazer é lançar a libido de volta, no todo ou em parte, ao nível anal-sádico, mais antigo” (FREUD, 1926/1976, p.136).

Assim, por exemplo, a cena de uma relação sexual entre os pais pode ser compreendida como uma agressão sadomasoquista, ou como coito anal.

Toda questão que aqui se coloca é que compreender o significado sexual significa se deparar com a castração feminina. Como todo neurótico, o obsessivo tem acesso à significação fálica, mas, para não ter que se haver com a castração feminina, ele acaba por desconhecer a significação sexual, fálica, regredindo a um modo de satisfação sádico-anal. Freud deixa bem claro que, na ocasião em que se entra em uma neurose obsessiva, a fase fálica já foi alcançada.

satisfação sádico-anal castração feminina

Assim, através da regressão, não só os impulsos agressivos iniciais serão despertados de novo, mas também uma proporção de novos impulsos libidinais terá que seguir o caminho prescrito para eles pela regressão e surgirá, também, como tendências agressivas destrutivas: “O eu nada poderá empreender que não seja atraído para a esfera desse conflito” (FREUD, 1926/1976, p.141).

Dessa forma, com o intuito de evitar a castração, os impulsos eróticos, na neurose obsessiva, tomarão o disfarce da agressividade. Como nos diz Freud:

“A luta contra a sexualidade, doravante, será levada sob o estandarte de princípios éticos. O ego recuará com assombro das instigações à crueldade e à violência não tendo qualquer ideia de que, nelas, está combatendo desejos eróticos, inclusive, alguns em relação aos quais não teria aberto exceção alguma” (FREUD, 1926/1976, p.139).

Freud chama atenção para o fato de que, no interesse da masculinidade, isto é, para fugir da castração, por vezes toda a atividade que pertence à masculinidade é paralisada; como observamos, por exemplo, em alguns casos de disfunções sexuais (impotência, ejaculação precoce, etc.). Nesse contexto, “devido à regressão da libido, na neurose obsessiva, o conflito é agravado em duas direções: as forças defensivas se tornam mais intolerantes e as forças que devem ser desviadas, se tornam mais intoleráveis” (FREUD, 1926/1976, p.140).

O problema é que esse mecanismo também fracassa no objetivo de evitar a irrupção das exigências pulsionais e, consequentemente, da angústia. Por isso, o obsessivo utilizará, ainda, outro recurso: as formações reativas.

Formações Reativas
As formações reativas são técnicas auxiliares e substitutas do recalque e da regressão, mas que, ao mesmo tempo, os pressupõem. São elas:

Desfazer o que foi feito

Isolar

Desfazer o que foi feito: o sujeito se esforça para dissipar a impressão traumática por meio de um simbolismo motor, repetindo, de maneira diferente, o que não aconteceu de forma desejada, fazendo-o como se não tivesse acontecido, ou seja, ele tenta consertar o que julga que aconteceu de maneira errada, repetindo a ação como se ela não tivesse sido feita. Dessa forma, uma primeira ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram. Freud nos diz que é uma tentativa de tornar o próprio passado inexistente. Mas o que acaba por acontecer é uma repetição infindável de ações motoras que, no esforço de desfazer a impressão traumática, acaba por repeti-la. O que o sujeito repete é o fracasso da ação.

Isolar: diante de uma impressão traumática, o paciente interpola um intervalo, suas conexões associativas são interrompidas, permanecendo isoladas. A experiência não é esquecida como acontece, por exemplo, na histeria, em que temos a amnésia. Ao invés disso, a experiência traumática é destituída de afeto, permanecendo isolada, não sendo reproduzida nos processos comuns do pensamento. O isolamento motor destina-se a assegurar uma interrupção da ligação de pensamento, e o efeito acaba sendo o mesmo que o da amnésia histérica, com a diferença que, uma vez destituídas do afeto, as coisas podem ser ditas, mas não são relacionadas, não são ligadas ao trauma, isto é, incluídas nas associações relativas à significação traumática. O efeito disso é que ficamos impressionados como na neurose obsessiva as coisas podem ser tão ditas e, ao mesmo tempo, serem tão desconhecidas do próprio sujeito. Isolar, segundo Freud, é remover a possibilidade de contato. É um método para evitar que alguma coisa seja tocada, e, quando um paciente isola uma impressão interpolando um intervalo, ele permite que se compreenda que não deixará que seus pensamentos entrem em contato associativo com outros pensamentos. Freud observa que “nesse esforço de impedir associações e ligações de pensamento, o eu está obedecendo a uma das ordens mais antigas e fundamentais da neurose obsessiva: o tabu de tocar” (FREUD, 1926/1976, p.145). Segundo Freud, o toque, ou seja, o contato físico, é uma finalidade imediata das catexias objetais tanto agressivas como amorosas:

“Visto que a neurose obsessiva começa por perseguir o toque erótico e, depois, após ter se verificado a regressão, passa a perseguir o toque erótico sob a forma de agressividade, depreende-se daí que nada é tão fortemente proscrito nessa neurose como tocar, nem tão bem adequado para tornar-se o ponto central de um sistema de proibições” (FREUD, 1926/1976, p.145).

O fragmento de um caso clínico nos demonstra claramente essa estratégia obsessiva: um músico que fez um sintoma no braço a partir do qual não podia mais tocar. Isso acontece logo depois da traição da namorada que ele idealizava, mantendo por ela um amor sublime que a conservava intocada. Subjacente ao problema do braço, aparece um sintoma de impotência como forma de evitar o toque erótico. A cena de traição lhe remete, depois de alguns anos de análise, a uma cena de infância na qual ele escutava os ruídos provenientes da relação sexual entre o padrasto e a mãe.

A Angústia: Um Resto A Concluir

Gostaria de concluir dizendo que, em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud, apesar de relacionar a angústia com a perda do objeto e não com a presença do objeto, como o fará Lacan, mais tarde (1962-1963/2005), acaba por reconhecer, no decorrer desse texto, que a exigência pulsional, ou seja, a iminência da satisfação, é o que faz surgir a angústia. Sendo assim, podemo-nos perguntar se a criação dos sintomas, na neurose obsessiva, toda essa parafernália que o obsessivo cria, não seria uma tentativa de fugir da angústia, sem abrir mão da satisfação. Para isso, ele se identifica ao sintoma, incorporando-o ao eu, ou seja, dando-lhe uma conformação narcísica, o que lhe custa o preço da anulação do desejo, tanto dele próprio, como do outro.

Talvez, seja este o cerne da análise, nos casos de neurose obsessiva: como ir além do narcisismo, como identificar-se ao sintoma sem anular o desejo.

[1] Texto apresentado nas Lições Introdutórias, atividade do IPSM-MG, em 19/06/2012.

Referências Bibliográficas:
FREUD, Sigmund (1926/1976). “Inibição, sintoma e ansiedade”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XX, p.107-198.
______ (1917/1976). “Os caminhos da formação dos sintomas”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XVI, p.419-439.
LACAN, Jacques (1960-1961). O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
______ (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

Simone Souto
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Diretora da Seção Clínica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais- (IPSMMG). E-mail: ssouto.bhe@gmail.com



Apontamentos Acerca Da Transferência

ALEX KEINE DE ALMEIDA SEBASTIÃO

A transferência foi tomada por Lacan como um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Enquanto a importância da transferência sempre foi reconhecida ao longo da história da psicanálise, seu significado foi objeto de controvérsias entre linhas teóricas diversas. Há autores que defendem um conceito restrito de transferência, enquanto outros tendem a fazê-la coincidir com o próprio tratamento psicanalítico. Um repertório das teorias da transferência formuladas a partir da obra de Freud pode ser encontrado em “Le problème du transfert” (1952/1975), de Daniel Lagache. Lacan observa que o referido trabalho evidencia a parcialidade dos debates em torno da transferência, bem como a predominância de sua abordagem mais discutível, em que é tomada como “a sucessão ou a soma dos sentimentos positivos ou negativos que o paciente vota a seu analista” (LACAN, 1958/1998, p.608).

É de se observar, entretanto, que não se trata exclusivamente de construir um conceito teórico da transferência, mas também de delinear o seu manejo. Na verdade, o “manejo da transferência é idêntico à noção dela” (LACAN, 1958/1998, p.609). Ou seja, sustentar uma determinada noção de transferência implica já o modo de manejá-la, revelando um posicionamento do analista frente à prática da psicanálise. Se a psicanálise é marcada por uma relação de mão dupla entre teoria e prática, isso se torna muito mais evidente no que concerne ao conceito de transferência. Como nota Lacan, “este conceito é determinado pela função que tem numa práxis. Este conceito dirige o modo de tratar os pacientes. Inversamente, o modo de tratá-los comanda o conceito” (LACAN, 1964/1998, p.120).

Para Lacan, “a transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista”. Por consequência, não faria sentido distinguir a transferência, atribuída ao analisante, e a contratransferência, atribuída ao analista. Nesse sentido, “aquilo que se nos apresenta […] como contratransferência, normal ou não, não tem, realmente, qualquer razão de ser especialmente qualificada como tal. Trata-se aí apenas de um efeito irredutível da situação de transferência, simplesmente, por si mesma” (LACAN, 1961/1992, p.194).

Dizer que a transferência inclui tanto o sujeito quanto o analista não implica que eles aí estejam incluídos do mesmo modo. A assimetria se faz evidente. Lacan utiliza a expressão “disparidade subjetiva” e esclarece: “entendo com isso que a posição dos dois sujeitos em presença não é de modo algum equivalente” (LACAN, 1961/1992, p.197). Ainda assim, a transferência se estabelece a partir do encontro do desejo do sujeito em análise com o desejo do analista. Na base da transferência, Lacan aponta para o desejo do analista. A presença fundamental do desejo do analista na transferência se faz sob duas perspectivas. Da perspectiva do próprio analista, o que se chama desejo do analista é algo que se produziu nele a partir da experiência de seu próprio inconsciente, como resultado de “uma mutação na economia de seu desejo” (LACAN, 1961/1992, p.187). O analista é “possuído por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar às vias de fato com seu paciente, de tomá-lo nos braços ou atirá-lo pela janela” (LACAN, 1961/1992, p.187). Da perspectiva do analisante, o desejo do analista aparece como o desejo do Outro, sob o modo da interrogação “O que ele quer?”. As duas perspectivas estão diretamente conectadas, visto que a presença do desejo do analista como resultado de sua própria análise é condição indispensável para que o analisante possa interrogar-se sobre o que quer o analista, ou seja, sobre o desejo do Outro.

A análise busca permitir a emergência do desejo do sujeito. Considerando que “o desejo do homem é o desejo do Outro” (LACAN, 1964/1998, p.223), o analisante deverá passar pela questão do desejo do Outro, enquanto condição constitutiva de seu próprio desejo. A assunção pelo analista do lugar desse Outro requer que ele seja capaz de deixar fora da cena seu desejo enquanto sujeito, criando uma certa vacância nesse lugar e remetendo o analisante a seu próprio desejo. É justamente o desejo do analista que permite essa operação.

Uma importante contribuição lacaniana ao conceito de transferência é a noção de sujeito suposto saber. Segundo Lacan: “A transferência é impensável, a não ser tomando-se partida do sujeito suposto saber” (LACAN, 1964/1998, p.239). Além do laço propriamente libidinal que envolve analisante e analista, há um laço epistêmico que marca a relação entre eles. Ao lado da questão “o que ele quer?”, estaria a convicção “ele sabe”, em que ao analista seria atribuído pelo analisante o papel de sujeito suposto saber. O que ele seria suposto saber? Segundo Lacan, “pura e simplesmente, a significação”. Qual significação? A significação da fala, dos sintomas, enfim, do próprio ser do analisante.

Como nota Jacques-Alain Miller, “o sujeito suposto saber só intervém na teoria de Lacan em uma data relativamente tardia, pelos anos de 1964-1965” (MILLER, 1984a/1999, p.56). Ele destaca que Lacan atribuía ao sujeito suposto saber o papel de pivô da transferência. Sobre o sentido comumente dado à expressão, Miller afirma: “Pensou-se que o analisante começa supondo que o analista está de posse do saber que lhe concerne, e progressivamente descobre que não é assim, mas que a análise se estabelece sobre a base dessa suposição” (MILLER, 1984a/1999, p.56-57). Mas, na verdade, não é bem isso, aponta Miller:

“Sujeito suposto saber não é de modo algum, como se imagina, que o psicanalisante, aquele que vem pedir uma psicanálise, imagine que o psicanalista sabe tudo. […] Pode até desconfiar de seu psicanalista e, em vez de supô-lo tão sábio, colocar sua capacidade em dúvida” (MILLER, 1984a/1999, p.69).

Na origem do sujeito suposto saber, está o convite que se faz ao paciente para dizer tudo o que lhe vem à mente, o convite a se entregar à associação livre. Seria algo que se liga menos à pessoa do analista e mais ao dispositivo do tratamento. Isso que se diz sempre quer dizer alguma coisa, mesmo que não saibamos o quê.

Por outro lado, o próprio analista faz parte do dispositivo do tratamento, e ele o faz, oferecendo-se para ocupar o lugar de sujeito suposto saber. A suposição do saber no analista só ocorre na medida em que o analisante está em busca da verdade sobre si mesmo, sobre seu desejo. Como observa Miller,

“[…] o ouvinte, sua resposta, seu aval, sua interpretação decidem o sentido do que é dito e, ainda mais […], a própria identidade de quem fala. A esse respeito, existe o que Lacan não vacila em chamar de um poder, o poder do analista sobre o sentido” (MILLER, 1984b/1999, p.73).

Esse poder invoca uma responsabilidade correlata do analista que é a de se pautar pelo silêncio e de não se “precipitar a satisfazer a demanda do paciente, que é a demanda de: quem sou? qual é meu desejo? que quero de verdade?” (MILLER, 1984b/1999, p.73).

Importante destacar que oferecer-se para ocupar o lugar de sujeito suposto saber não é o mesmo que identificar-se com esse lugar. A análise progressiva da transferência deve desembocar na descoberta do que Lacan designa no título mesmo de um de seus escritos: “O engano do sujeito suposto saber” (1967/2003). É então fundamental a presença do desejo do analista, na medida em que ele é desejo de “não se identificar com o Outro, de respeitar o que Freud em sua linguagem chama de individualidade do paciente, não ser um ideal, um modelo, um educador, e sim deixar espaço para a emergência do desejo do paciente” (MILLER, 1984b/1999, p.89).

É comum haver no decurso de uma análise variações na economia da transferência tomada em seus dois vieses: o libidinal e o epistêmico. Em primeiro plano, está ora o analista como sujeito suposto saber, ora o analista como objeto libidinal. Na prática, o analista é um só, mas, dependendo do analisante e do momento que ele vive, a combinação entre a busca de amor e a busca de saber se apresentará de modo distinto. Miller aponta para uma variação no ensino de Lacan no que concerne a essa questão. Se, inicialmente, tinha-se o sujeito suposto saber como pivô da transferência, no último Lacan, tem-se a transferência como pivô do sujeito suposto saber, ou seja, “o que faz existir o inconsciente como saber é o amor” (MILLER, 2005, p.18). Em outras palavras, sem o investimento libidinal do analista pelo analisante, não se pode falar em transferência, tampouco se pode produzir a suposição de saber.

Há análises em que, já de início, observa-se uma emergência da transferência em seu viés epistêmico. A inflação do sujeito suposto saber corresponde a uma preeminência da interpretação e da busca pelo sentido como sendo a chave que permitirá o acesso do sujeito à sua verdade mais íntima, ao seu desejo. É como se ali se tratasse somente de uma decifração ou de uma pesquisa cujo termo garantiria a conquista da verdade do sujeito e a solução de seus sintomas. Com o decurso do tratamento, por vezes, ocorre uma deflação do sentido e surge a possibilidade de se reservar um lugar para o sem sentido ou para algo que não se sabe, nem se saberá. Tem-se, então, o reconhecimento de um papel maior à transferência em seu viés libidinal. É porque o analisante investe o analista como objeto libidinal que seu inconsciente se atualiza ali, na sessão de análise. E ainda que o significado de muita coisa possa escapar a ambos, essa atualização do inconsciente e o tratamento que lhe é dado pelo analista geram efeitos.

Pode-se traçar um paralelo entre essas análises em que a busca pelo significado assume inicialmente um papel predominante e a evolução da técnica psicanalítica, descrita por Freud, no Capítulo III de “Além do princípio de prazer”. Inicialmente, a psicanálise era, sobretudo, uma arte interpretativa. Visava-se a descobrir representações inconscientes e torná-las conscientes. Visto que, em muitos casos, isso era insuficiente para produzir a cura, a análise passou a cuidar não só da rememoração, mas também da repetição do material reprimido. O trabalho do analista envolve não só buscar o sentido oculto na fala do analisante, mas também manejar a neurose de transferência e a atuação do analisante, tomado pela compulsão à repetição. Na verdade, desde o relato do tratamento de Anna O. por Breuer, sabemos que o desafio maior que se apresenta ao analista não está no trabalho interpretativo, e sim no manejo da transferência como investimento libidinal do analista pelo analisante. Mais do que escutar, o analista deve estar preparado para suportar ser objeto do amor e do ódio que lhe poderá dirigir o analisante. É somente o percurso efetuado em sua análise pessoal que possibilitará ao analista não se precipitar nos desfiladeiros da transferência, manejando-a de modo a fazer o analisante deparar-se com a questão em jogo no seu desejo.


Referências Bibliográficas:
LACAN, Jacques. (1958) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.591-652.
______. (1961) O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
______. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______. (1967) “O engano do sujeito suposto saber”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p.329-340.
LAGACHE, Daniel. (1952) La teoria de la transferencia. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1975.
MILLER, Jacques-Alain. (1984a) “A transferência de Freud a Lacan”, In: Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.55-71.
______. (1984b) “A transferência: o sujeito suposto saber”, In: Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.72-89.
______. “Uma fantasia”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.42, 2005, p.7-18.
i Este trabalho começou a ser produzido ao término da Unidade I – O tratamento psicanalítico – do Curso de Psicanálise do IPSM-MG, ministrada por Helenice de Castro e Lilany Pacheco, no segundo semestre de 2010. Agradeço a Sérgio Laia pela orientação.

Alex Keine De Almeida Sebastião
Mestre em Filosofia, aluno do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. E-mail: keine74@uol.com.br.



Prematuridade, Trauma E Constituição Subjetiva

MÁRCIA REGINA DOS SANTOS RENDA

Cada bebê tem uma história — segundo filho, gravidez desejada ou indesejada, inseminação artificial. A singularidade da narrativa produz marcas que determinam a inserção do frágil filho do homem no romance familiar, suscitando, nos personagens desse romance, questões sobre como ser mãe, pai, irmão, avô, avó… Os envolvidos na trama da vida declaram, de algum modo, o investimento nessa nova empreitada.

Entretanto, entre o nascimento e a constituição do sujeito, existe um espaço que revela o encontro traumático com o real, e, quando esse evento é marcado por parâmetros inimagináveis, como os aparatos ligados à reanimação neonatal, o hiato é exacerbado de modo dramático.

O bebê que “chega antes da hora”, com síndromes, pode ser atado a representações que colocam em risco o laço com o Outro, pois a narrativa pode privilegiar os aparatos que cercam o teatro da reanimação, capturada por uma rede imaginária, em detrimento do nascimento psíquico do bebê (MOHALLEM, 2005).

Quando o bebê não sustenta a fantasia daqueles que o esperavam, as certezas vacilam, fazendo as frágeis garantias frente ao desamparo desaparecerem. Como investir, libidinalmente, esse bebê tão inesperado, no qual não se reconhece ninguém de sua linhagem? O encontro com o real inassimilável produz horror em cada ser que dele se aproxima: pais, familiares, equipe clínica. É como um trauma que desaloja. O instante de ver instaura o abismo que interfere na operação do tempo de compreender e do momento de concluir.

Dessa maneira, o cenário da neonatologia faz desmoronar o que sustentava a história. A eminência de morte concorrendo com o nascimento é da ordem de uma incerteza insuportável. “Vida e morte se encontram misturadas, sem que se possa distingui-las. É o traumatismo absoluto” (ANSERMET, 2003, p.49).

Contudo, necessário se faz dar sentido ao traumático. Caso contrário, há o risco da fixação em significantes alienantes, passando o sujeito a ser o “que o traumatizou: prematuro, deficiente, dependente” (MOHALLEM, 2005, p.103).

Diante dessas circunstâncias, como reencontrar o equívoco e o desejo? Como ultrapassar o horror e encontrar a “liberdade significante”? Essas interrogações põem em cena a intervenção do analista em um centro de neonatologia, pois a prematuração é uma desordem fecunda, falha bem-sucedida da vida, que arrasta o ser humano a diferir de sua essência para descobrir sua existência (LACAN, 1946).

1. O Real, Traumático, No Bebê

A representação do nascimento e da morte é incognoscível no real, pois confronta o ser humano com algo subjetivamente inassimilável (ANSERMET, 2003).

Embora a concepção do ser humano seja fruto de uma história, entra em jogo aí algo para além dessa história. Todo nascimento atualiza questões, tanto para aqueles que já estão no mundo e ajudam a produzir a narrativa para o novo integrante, quanto para o próprio recém-chegado, no caso, o bebê, mais tarde.

Portanto, a questão freudiana de saber de onde vêm os bebês pode ser tomada como o enigma (da vida) por excelência. Circunscrever esse saber à esfera da biologia da reprodução ou da história familiar não parece suficiente para encaminhá-lo.

Tentar articular esse enigma implica fazer referência ao que vem antes — ao que antecede. Contudo, nascer também representa corte, ruptura. A questão comporta dupla face: ligação e separação. Entretanto, como ir além do que precede? Como escapar de certo determinismo, quer seja biológico, genético ou histórico-familiar?

Em uma das facetas dessa dupla face, o nascimento de um bebê traz a questão da morte. Podemos supor que, talvez, a criança, mesmo sem o saber, ou recordar, posteriormente, a perceba também. A vida, em seus primórdios, é frágil, prematura, convocando cuidados intensos e, por vezes, extremos. Muitos pais e familiares vivenciam, de forma dramática, esses primeiros momentos, quando os bebês necessitam de procedimentos (reanimação) cotidianos, observados em unidade de tratamento neonatal: “Logo vem o tumulto das máquinas de suporte à vida. Em meio a um odor de muco, sangue, baba e sabão, esse ateliê recupera o corpo […]. As perfurações, aspirações e sondas não são suficientes para separar a vida da morte” (ANSERMET, 2003, p.97-98).

Desse modo, muitas vezes, inaptos para viver, os bebês retornam, sem nome, para a terra de onde foram retirados.

No nascimento, assim como na morte, algo é extraído. Nessa operação, uma hiância é produzida de forma inexorável. A chegada de um bebê põe em marcha essa fenda.

De acordo com as teorias freudianas sobre o narcisismo (FREUD, 1914/1996), a vinda de um filho desperta os aportes narcísicos dos pais:

“A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida […]; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – Sua Majestade o Bebê […]. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram […]” (FREUD, 1914/1996, p.98).

Logo, essa ferida narcísica também é transmitida, pois o bebê lembra ao adulto uma parte dele mesmo à qual jamais terá acesso. O enigma da origem segue intacto, rompendo laços com qualquer anterioridade.

Além disso, o infans que se apresenta diante dos pais não é, exatamente, como ele é, visto que não deve ser restringido à realidade carnal ou biológica, pois ele já estava lá antes de seu nascimento e sempre estará lá depois da morte.

Estar diante de um bebê implica encontrar-se também com o resto de uma simbolização que escapa a qualquer designação histórica, pois se trata do real (ANSERMET, 2003). Algo da ordem de uma estranheza que não produz laço, que, paradoxalmente, evidencia, igualmente, a presença da pulsão de morte. “A vida é a forma mais pura em que reconhecemos o instinto de morte” (LACAN, 1953, p.321).

Mais uma vez, a dupla face do enigma da vida se faz notar, apontando para a continuidade da descendência e a descontinuidade do sujeito. Em uma face, a indução linguajeira que o constitui como sujeito do significante, submetido ao simbólico que o antecede. Na outra face, a hiância, um inassimilável que convoca uma escolha por parte do sujeito. Escolha esta imprevisível. Resta a possibilidade de escapar ao sintoma dos pais ou a perpetuação de ocupar o lugar de objeto de suas fantasias:

“É a partir dessa necessidade que as funções da mãe e do pai são julgadas. Da mãe: uma vez que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, mesmo que pela via de suas próprias faltas. Do pai: uma vez que seu nome é o vetor de uma encarnação da lei do desejo” (LACAN, 1969/1986).i

Quando essas funções parentais falham, a angústia extrema emerge, pois não se apresentam os meios de abordagem para o intransmissível que o real comporta. Dessa forma, a estruturação da subjetividade é fruto da contingência da resposta de uma criança a uma parte inabordável que lhe foi, de alguma forma, transmitida.

2. O Simbólico, Anterior, Ao Bebê

Ao estudar a síndrome de hospitalismo, Spitz (1987) enfatizou a importância da qualidade do vínculo mãe-bebê para que este pudesse escapar da depressão e da morte.

Interessante, nesse estudo, é a hipótese que o autor formula para a ocorrência da condição depressiva no bebê: o fato de as enfermeiras dos orfanatos usarem máscaras sobre o nariz e a boca, o que impedia o bebê de dirigir seu olhar para a parte inferior do rosto do adulto que dele se ocupava.

Vale a pena lembrar a consideração de Freud sobre o sorriso de Gioconda — sorriso estranho, enfeitiçante, enigmático (FREUD, 1910).

Pesquisas recentes sobre a atividade do bebê em relação ao meio ambiente, como, por exemplo, a descoberta dos neurônios-espelhos, apontam que as afirmativas sobre a incapacidade sensorial do bebê estão obsoletas. O pequeno ser humano possui, desde muito cedo, a capacidade de reconhecimento. Desse modo, na pesquisa de Spitz, a visão do bebê das expressões faciais e dos movimentos do adulto encarregado de seus cuidados — usualmente, a mãe, oferece pontos de referência para o pequeno ser. O bebê solicita à mãe e esta lhe atende, fato que também provoca uma resposta do bebê. Essa experiência produz efeito sobre a mãe, que interpreta as solicitações do filho, recobrindo-as com seus conteúdos fantasmáticos. Tal movimento coloca em evidência a condição de necessidade, por parte do bebê, da intervenção do Outro. O real da prematuração biológica do filho do homem cede lugar à presença do Outro.

De que Outro se trata? Podemos configurá-lo nos domínios do semelhante mais experiente?

Circunscrevê-lo às dimensões da mãe ou da realidade do mundo pode-se revelar insuficiente, pois o bebê, de algum modo, já estava lá antes mesmo de sua concepção. A expectativa de sua presença se fazia notar através do discurso de seus pais e familiares.

Nessa perspectiva, o outro necessário à manutenção da vida ultrapassa a noção utilitária dos cuidados autoconservativos. Trata-se de um Outro anterior que precede o sujeito — Outro simbólico, que é necessário para a sobrevivência tanto biológica quanto para a assunção subjetiva.

Considerações Finais

O bebê que chega à unidade de reanimação é filho de mãe confrontada, mais do que qualquer outra, com a imagem da mãe má, por não lhe ter dado uma vida bela, saudável e que, talvez, tenha desejado a sua morte.

Diferentemente do nascimento sem problemas, o nascimento precipitado se passa no horror e na urgência, impedindo que o narcisismo da mãe seja renovado. Nesse caso, “a realidade reencontra o fantasma e surge o trauma” (MATHELIN, 1999, p.17). Por ser impensável, o trauma permanece sem fala. Dessa forma, busca-se uma causalidade que dê conta de explicar esse acontecimento. Porém, é necessário dar ao evento traumático uma significação, um estatuto. Persistir na tentativa de reconstrução da verdade histórica. Esse trabalho de elaboração é indispensável nessas circunstâncias.

Caberá ao analista, nesses tempos de rupturas, trabalhar a questão da perda, possibilitando o acesso à simbolização desse nascimento que, ambientado na urgência, no drama e na morte, não pôde ser falado.

Freud ([1929] 1930/1996) formula o conceito de pulsão de morte operando em silêncio no interior do organismo, com vistas à sua destruição. Entretanto, ressalta que uma porção dessa pulsão pode ser posta a serviço da vida, se desviada para um objeto externo, em vez de voltar-se contra o próprio ser. A perspectiva freudiana permite articular que o encontro com o real porta a potência criadora. É justamente a hiância que permite escapar de qualquer determinismo. Ao psicanalista resta a responsabilidade de fazer emergir o espaço para a indeterminação, o vislumbre de um ponto de suspensão — abertura que possibilite o surgimento da imprevisibilidade, fundamental para que o sujeito possa advir.

[1] LACAN, Jacques. (1969) “Deux notes sur l’enfant”, Ornicar?, Revue du Champ freudien, Paris, n.37, 1986, p.13-14. No original: “C’est d’après une telle nécessité que se jugent les fonctions de la mère et du père. De la mère: en tant que ses soins portent la marque d’un intérêt particularisé, le fût-il par la voie de ses propes manques. Du père: en tant que son nom est le vecteur d’une incarnation de la Loi dans le désir.”


Referências Bibliográficas:
ANSERMET, François. “O pavor da origem”, In: Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003. p.21-104.
FREUD, Sigmund. (1910/1996) “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v.XI, p.69-141.
______. (1914/1996) “Sobre o narcisismo: uma introdução”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v.XIV, p.77-108.
______. ([1929] 1930/1996) “O mal-estar na civilização”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v.XXI, p.67-148.
LACAN, Jacques. (1946) “Formulações sobre a causalidade psíquica”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p.152-194.
______. (1953) “Função e campo da fala e da linguagem”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p.238-324.
______. (1969) “Deux notes sur l’enfant”, Ornicar?, Revue du Champ freudien, Paris, n.37, 1986, p.13-14.
MOHALLEM, Lea. “’Nada como o tempo…’: prematuridade e trauma”, In: MOURA, Marisa Decat de. (Org.) Psicanálise e hospital 4: versões do pai, reprodução assistida e UTI. Belo Horizonte: Autêntica/FCH FUMEC, 2005. p.93-105.
MATHELIN, Catherine. “O sorriso da Gioconda”, In: O sorriso da Gioconda: clínica psicanalítica com bebês prematuros. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. p.5-32.
SPITZ, René. “A constituição do objeto libidinal”, In: O primeiro ano de vida: um estudo do desenvolvimento normal e anômalo das relações objetais. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1987. p.27-146.

Márcia Regina Dos Santos Renda
Psicóloga, aluna do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, pós-graduada em Teoria Psicanalítica. E-mail: mrenda@scaimex.com.br



V. 5 – Nº 9 – 2º semestre de 2011

ENTREVISTA


ENTREVISTA


DE UMA NOVA GERAÇÃO




A Escuta Analítica Numa Instituição Prisional

MYNÉIA CAMPOS OLIVEIRA SANTOS

Este trabalho tem por objetivo pesquisar o papel da escuta psicanalítica e seus efeitos numa unidade de triagem do sistema prisional da região de Belo Horizonte. Trata-se de uma investigação sobre as possibilidades de instalação da transferência, com suas implicações e nuances, no contexto dessa instituição. Para tal, faremos uma breve descrição de seu funcionamento e de suas particularidades em relação às demais unidades do sistema.

O Ceresp – São Cristóvão surgiu no contexto de delineamento de uma nova política estadual de Segurança Pública a partir da criação da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), no ano de 2003. [1] O modelo de gestão implantado estabeleceu como diretriz o combate à criminalidade e a reforma e profissionalização do sistema prisional, visando à reintegração social do preso, à qualificação das vagas do sistema, à racionalização da gestão das unidades prisionais e, por fim, à transferência gradativa dos presos da polícia civil para a Subsecretaria de Administração Prisional (SUAPI).

A partir dessa nova configuração e rearranjo de papéis, o Ceresp – São Cristóvão foi criado como estratégia fundamental na articulação de vagas, como um ponto de interseção entre a prisão realizada pelas polícias militar e civil e o posterior remanejamento dos presos para as demais unidades prisionais, de acordo com a situação jurídica de cada detento.

Trata-se, portanto, de um centro de triagem, responsável pela admissão do preso no sistema, sua identificação e matrícula, constituindo-se como um aparato burocrático e operacional necessário ao funcionamento da engrenagem do sistema prisional. Como porta de entrada, caracteriza-se pelo fluxo intenso de entrada e saída diária de presos (homens adultos) flagrados ou detidos na capital por mandado de prisão. [2]

Apesar da alta rotatividade e curta permanência do preso na instituição, o Ceresp deve disponibilizar os primeiros cuidados referentes à atenção ao preso, e, para isso, conta com uma equipe mínima de técnicos, dentre eles, o psicólogo. Entretanto, apesar do aparato formado, são inúmeras as dificuldades enfrentadas pela equipe (psicossocial e de saúde), como a ausência de um local adequado para a realização dos atendimentos com a privacidade e o sigilo necessários, a falta de uma política efetiva que oriente a atuação dos profissionais e, principalmente, os atravessamentos da Segurança.

O discurso da Segurança tem como imperativo a manutenção de todo um conjunto de procedimentos para garantir a ordem e a disciplina. Os atendimentos da equipe técnica, bem como os encaminhamentos externos para tratamento, são submetidos ao seu aval, o que dificulta a regularidade dos atendimentos e a efetivação do trabalho, pois, no caso de qualquer desfalque no contingente de escolta da unidade, a atuação da equipe é restringida. Constata-se que não existe, na cultura da instituição, um trabalho realizado “entre muitos” [3], que possa abrir espaço ao trabalho dos técnicos, permitindo, assim, a introdução de outros discursos.

Além disso, detém-se uma forma de saber sobre o preso, difundida em toda a unidade, que torna difícil sua desconstrução, mostrando-se resistente a mudanças e refletindo-se num “não querer saber” próprio da instituição a outras formas de intervenção que possam vacilar suas certezas. Desse modo, certas nomeações encerram em si significações precisas sobre o comportamento do preso e ditam fórmulas sobre como lidar com ele. Como exemplo, tem-se o preso “lero-lero”, aquele cujo discurso é vazio e sem valor, constituindo-se como mera enrolação ou fingimento com o intuito de obter alguma vantagem. Um outro personagem muito conhecido é o preso “vinte e dois”, ou o louco, muitas vezes confundido com o “lero-lero”, e aquele cujas manifestações são vistas com descrédito e até mesmo com divertimento, quando não atrapalham a disciplina na carceragem.

Considerando o exposto até aqui, levantamos algumas questões. É possível, em instituições de discurso tão consistente como essa, introduzir uma nova forma de saber que possa fazer vacilar essa certeza sobre o sujeito, e, a partir daí, desconectá-lo desses significantes que o definem, abrindo espaço para a instauração de uma transferência? Como introduzir um furo nesse saber que é construído para garantir que tudo funcione?

Pois bem, contrapondo-se os obstáculos institucionais às exigências do Estado em desenvolver ações pautadas em conceitos como ressocialização e reintegração social, chegamos a um ponto delicado. De acordo com a legislação, [4] “o tratamento reeducativo consiste na adoção de um conjunto de medidas médico-psicológicas e sociais, com vistas à reeducação do sentenciado e à sua reintegração na sociedade” (Lei nº 11.404 de 25 de janeiro de 1994, art.8º). O tratamento do detento, que se propõe individualizado, baseia-se na observação do preso em todas as situações da execução da pena, mas, principalmente, é determinado pela construção de um saber sobre ele, baseado em avaliações médicas, psicossociais, exames criminológicos, entre outros.

Todo o aparato referente à execução da pena acaba por evidenciar uma vigilância e observação constantes (com respaldo técnico-científico), ligadas a medidas de controle, cujo produto final seria um indivíduo normatizado e adaptado aos padrões estabelecidos para retornar ao convívio na sociedade.

Miller (2008), no texto “A máquina panóptica de Jeremy Bentham”, destaca o panopticismo como um princípio geral que preconiza a vigilância e o controle sobre tudo aquilo que é contingencial. Nessa lógica utilitarista, não há espaço para o acaso, tudo é quantificável e ajustável a uma finalidade. Essa concepção cai bem ao discurso da Segurança, na medida em que este busca silenciar o sujeito e abafar qualquer manifestação que possa obstruir a lógica de funcionamento da instituição, tornando-se, assim, um discurso, por vezes, autoritário.

Entretanto, constatamos que o sujeito escapa ao enquadre institucional: ele resiste, recusa-se a comer, faz exigências, entra em crise, surta, subverte a disciplina. É preciso escutar isso, saber do que se trata esse real em jogo que, muitas vezes, pode levar ao pior, como as passagens ao ato.

Pois bem, apesar do discurso consistente da instituição, baseado nas estratégias de vigilância e controle do comportamento do preso, existe um lugar de acolhimento do particular. O psicólogo, orientado pela escuta analítica, aparece como aquele que quer saber sobre a história do sujeito e, ao assumir esse lugar de “não saber”, introduz a contingência por meio da “escuta interessada”, [5] aquela que faz laço, abrindo espaço para o efeito surpresa no discurso e para a possibilidade de que esse encontro exerça um efeito sobre o sujeito.

Guy Briole (2002), psicanalista francês, afirma que o analista leva com ele a questão do desejo de saber e de aprender com o paciente. Seu desejo é o que faz obstáculo à aplicação de saberes estabelecidos e aquilo que nos coloca a trabalho, fazendo com que nos tornemos sujeitos supostos interessados. Ainda segundo o autor, a instituição pode ser um espaço de acolhimento daquilo que, no discurso, não faz mais laço social. Dar lugar a um questionamento sobre o real em jogo na instituição é se centrar sobre o paciente e sobre seu lugar na mesma, considerando o gozo e suas modalidades de expressão.

Éric Laurent (2008) chama a atenção justamente para a impossibilidade de tratar o sujeito por meio da padronização das condutas e categorização das técnicas de intervenção, pois, para a Psicanálise, o que há de verdadeiramente humano é, decerto, o sintoma, ou seja, aquilo que é singular de cada um e que permite aos homens fazer laço social. Uma proposta de “humanização” do tratamento pautada na política do “todos iguais” desconsidera esse pressuposto ético, pondo em xeque seu ideal de integração ou reintegração. Miller destaca justamente que a prática lacaniana não inclui a noção de sucesso, baseada num princípio do “isso funciona”. Trata-se de uma prática a ser inventada e que opera na dimensão de um real que falha, pois a “falha não é contingente, é a manifestação da relação com um impossível” (MILLER, 2005, p.12).

O discurso analítico, portanto, privilegia o sujeito, marcado por sua falta. Opera num lugar diferente do discurso do Mestre, que solidifica o Sujeito Suposto Saber numa figura encarnada, sem furo, e que detém o saber sobre o indivíduo (BENETI, 2008).

O Ceresp – São Cristóvão é um lugar de urgências, e a atuação do psicólogo não se desvencilha desse imperativo. Porém, não se trata de aceitar o discurso instituído nem tampouco confrontá-lo de forma a inviabilizar o trabalho, mas sim promover uma torção nesse discurso para daí instituir o novo. Resta inventarmos, no cotidiano da instituição, essa torção. E, para tal, é preciso fazer aparecer o sintoma do sujeito em relação à instituição, para não operarmos do lado do regulador.

Destituir algo desse discurso burocrático e, de alguma forma, desfazer o movimento de massa na equipe de segurança, que desqualifica o sujeito, mostra-se um desafio. Como introduzir, na relação com os agentes penitenciários, um desejo de querer saber sobre o sujeito que ali se apresenta? A questão não se refere apenas à possibilidade de instalação da transferência no caso a caso dos atendimentos, mas se trata da necessidade de instalação de uma transferência de trabalho com o grupo, o que permitiria a passagem do discurso da Impotência para o discurso do Impossível. A transferência de trabalho se inscreve no laço de um sujeito com o outro, do um ao um, no qual estes se põem a trabalho, movidos pelo desejo de saber (MILLER, 2000). Quando se supõe o saber ao outro, e este saber não dá espaço para o contingente, não há lugar para o trabalho.

Do que se trata, portanto, quando o detento, determinado pela lógica institucional que o submete como objeto, tem um encontro com o psicólogo na unidade prisional? Nossa aposta é que esse encontro, mesmo quando limitado a um único atendimento, mesmo distante do enquadre analítico habitual e na ausência de demanda espontânea, pode gerar um efeito surpresa no discurso do sujeito, pois se trata de colocá-lo em jogo através do ato analítico. Se, a partir da escuta oferecida ao sujeito, abrir-se a possibilidade de que este se questione sobre o motivo que o traz ali, introduzindo uma pergunta sobre aquilo que o causa, obteve-se uma conquista.

O essencial — ou seja, o modo de encontro — é inventar sempre, no instante em que acontece o encontro. A posição psicanalítica não é a de compreender, mas deixar um lugar para a surpresa, para o encontro, para a contingência. Trata-se de nós mesmos aprendermos a ser leves, a fim de descongelar o outro, para que se abra novamente um espaço de potencialidade […] (ANSERMET; BORIE, 2007, p.154).


REFERÊNCIAS:
ANSERMET, François; BORIE, Jacques. Apostar na contingência. In: PERTINÊNCIAS da Psicanálise Aplicada: trabalhos da Escola da Causa Freudiana reunidos pela Associação do Campo Freudiano. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.152-158.
BENETI, Antonio. Crença e sintoma. Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas, n.27, p.39-44, nov. 2008.
BRIOLE, Guy. Dês pychanalystes en institution. La Lettre Mensuelle, Paris, École de la Cause Freudienne, n.211, p.19-24, sept. 2002.
LAURENT, Éric. El delírio de normalidad. Conferência pronunciada em 20/11/2008 no Rio de Janeiro, no marco da semana preparatória do XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano (Psicanálise e Felicidade), manhã dedicada às relações entre a psicanálise e o campo da “saúde mental”. Trad. Carolina Alcuaz. Revisão Clarisa Kicillog. Disponível em: <http://virtualia.eol.org.ar/019/template.asp?dossier/laurent.html. Acesso em: 12 jun.2011.
Lei Delegada nº 56 de 29/01/2003 (Dispõe sobre a SEDS), revogada pelo art. 14 da Lei Delegada 117/07, de 25/01/2007 (Dispõe sobre a estrutura orgânica básica da SEDS). Disponível em:
<http://www.almg.gov.br/index.asp?grupo=legislacao&diretorio=njmg&arquivo=legislacao_mineira>. Acesso em: 12 jun.2011.
Lei nº 11.404 de 25 de janeiro de 1994 (Institui a Execução Penal no âmbito do Estado).
Disponível em: <http://www.conselhos.mg.gov.br/ccpc/page/legislacao/lep-estadual> Acesso em: 12 jun. 2011.
MILLER, Jacques-Alain. Transferencia de trabajo. In: El Banquete de los analistas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2000. p.179-195.
______. Uma fantasia. Opção Lacaniana, São Paulo, Eólia, n.42, p.7-18, 2005.
______. A máquina panóptica de Jeremy Bentham. In: TADEU, Tomaz. (Org.) O panóptico: Jeremy Bentham. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.89-124.
[1] Lei Delegada nº 56 de 29/01/2003 (Dispõe sobre a SEDS), revogada pelo art. 14 da Lei Delegada 117/07 de 25/01/2007 (Dispõe sobre a estrutura orgânica básica da SEDS).
[2] O Ceresp – São Cristóvão chega a receber até 30 presos por noite e o número de presos transferidos para as demais unidades ultrapassa 120 por semana.
[3] A prática feita por muitos se fundamenta sobre o desejo de saber sobre o sujeito e é o que orienta o trabalho da equipe. Foi desenvolvida por Antonio Di Ciaccia no contexto do tratamento de crianças psicóticas, e a expressão foi denominada como tal por Jacques-Alain Miller. Para maiores informações sobre o tema, cf. CIACCIA, Antonio. Da fundação por Um à prática feita por muitos. Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise, Belo Horizonte, n.13, p.60-65, set. 1999.
[4] Lei nº 11.404 de 25 de janeiro de 1994 (Lei de Execução Penal Estadual).
[5] Termo utilizado por Elisa Alvarenga durante encontro do Núcleo de Psicanálise e Direito, no dia 21 de março de 2011, ao tratar sobre a ação lacaniana nas instituições.

Mynéia Campos Oliveira Santos
Psicóloga, servidora pública efetiva, atuou na Secretaria de Estado de Defesa Social, atualmente trabalha na Fhemig, no Instituto Raul Soares. E-mail: myneiacampos@yahoo.com.br



A Transferência E O Diagnóstico De Discurso Na Metodologia Da Construção Do Caso Clínico

DIEGO ALONSO SOARES DIAS

O diagnóstico, em psicanálise, tomado por Miller como uma arte (MILLER, 2003), e o conceito de transferência, desde a época de Freud, são caracterizados por diversas sutilezas, o que exige de nós extremo rigor no uso desses termos. Afinal, o sentido atribuído a uma noção em um determinado período da teorização psicanalítica pode não corresponder ao de outro momento. Algumas nuances podem surgir, o que abre novas perspectivas e formas de abordagem, não necessariamente se excluindo ou remetendo a uma ideia de evolução conceitual. Esse ponto se torna fundamental, dizendo de uma especificidade da psicanálise: a de que ela se caracteriza por ser sempre algo a se construir, ou melhor, a se reconstruir. Em certo sentido, o acompanhamento de um caso se torna similar à construção da teoria psicanalítica. Ambos comportam desdobramentos, aberturas, fechamentos, questionamentos e até mesmo abandonos de perspectivas. De que forma então poderíamos trabalhar os conceitos de diagnóstico e transferência sem corrermos o risco de cairmos em uma extensa revisão de literatura e em um delicado trabalho de apropriação da relação entre os dois? O que nos parece é que se faz necessário um terceiro elemento que possa auxiliar nessa amarração. Trabalhemos esses conceitos, portanto, sob a égide da construção do caso clínico, tal como formula Viganò (1999), procurando apreender em que medida tais perspectivas se entrecruzam para que um caso clínico possa efetivamente ser construído.

O que Viganò (1999) nos revela é que a construção do caso clínico deve ser entendida como uma prática que leva em conta prioritariamente a presença de um sujeito. É esse sujeito que, de maneira particular, nos revela algo do que se passa com ele e que direciona de que forma devemos intervir ou não. Dizermos então que é o sujeito quem nos conduz implica considerarmos que fundamentalmente não sabemos a priori muito a seu respeito. É necessário que ele fale sobre o que lhe ocorre. O sujeito será o guia na construção, o que se difere radicalmente de eventuais interpretações de sua situação, já que essas interpretações pressupõem a existência de algo sob a forma de um enigma. Não é isso que está em jogo nesse momento. Nesse sentido, a construção se dará a partir de palavras e atos, amarrados dentro de uma lógica norteadora. De acordo com Viganò:

A construção é o preliminar do ato analítico. Trata-se de um preliminar lógico, que concerne todo o movimento que caracteriza o tempo para compreender. […]. Esse tempo de compreender é, pois, o tempo para o diagnóstico inicial, é o tempo em que o diagnóstico vem a ser reconstruído (VIGANÒ, 1999, p.55).

A construção, dessa maneira, em seu momento inicial, implica a gradual construção de um diagnóstico. Que tipo de diagnóstico seria esse?

Miller, em seu texto denominado “A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan” (MILLER, 2003), trabalha a ideia do diagnóstico enquanto uma arte. Diz-se então a arte do diagnóstico. A arte, por sua vez, e com base em Kant, é definida por ele como uma “finalidade sem fim” (MILLER, 2003, p. 30). A finalidade sem fim do diagnóstico. O que poderia significar isso? O que Miller enfatiza, por meio dessa colocação, é a dimensão de sujeito à qual o diagnóstico deve servir. O diagnóstico, portanto, trata de uma “finalidade sem fim” por dois vieses. O primeiro, se entendermos finalidade sem fim como o que não acaba, relaciona-se às diversas formas contingenciais de manifestação do sujeito. Não há uma regra que dê conta dessas contingências, elas são particulares. Por outro lado, é possível estabelecermos outro sentido para tal afirmação, também depreendido da argumentação de Miller. Aqui, encontramo-nos com a noção do diagnóstico enquanto uma arte, uma vez que ela nos lança na tentativa de avaliar um caso sem uma regra que o predetermine. Trata-se de uma finalidade sem uma finalidade, pois, em última instância, o que se coleta do sujeito não poderá ser sistematizado ou englobado em classes.

Dessa forma, o que é digno de nota e é próprio da psicanálise é que a sua prática busca localizar justamente o que é a exceção à regra. Noções que dizem de alguma classificação ou enquadramento se revelam dimensões que anulam o sujeito. Para Miller, “chamamos de ‘sujeito’ o efeito que desloca, sem parada, o indivíduo da espécie, o particular do universal e o caso da regra” (MILLER, 2003, p. 27). Essa localização do que é a exceção à regra, por sua vez, implica um momento fundamental, que é o da capacidade do julgamento, referindo-se à aptidão de se julgar de que forma o caso pode-se inserir na regra.

Nesse sentido, de que maneira devemo-nos apropriar do diagnóstico estrutural? As estruturas clínicas formalizadas por Lacan (neurose, psicose e perversão) devem ser analisadas sob qual prisma, uma vez que é possível encará-las a partir da noção de categorização e classificação dos casos? Isso não poderia também dificultar a emergência do sujeito?

O que nos parece é que, ao pensarmos em estruturas clínicas, não devemos perder de vista a noção de sujeito. Para além de qualquer estrutura clínica, há sempre o sujeito. Ainda, é válido dizer que o sujeito, em certo sentido, lacaniano por excelência, é um efeito de estrutura, o que aproxima as duas perspectivas de maneira muito importante; uma se depreende da outra. Por outro lado, e de um ponto de vista mais operacional, quando se recorre ao “universal” da estrutura, em último caso, o que se procura é o que foge a qualquer classificação, a singularidade. O uso que se faz da estrutura procura, assim, potencializar a emergência do inclassificável. Mais uma vez, somos remetidos à noção do diagnóstico enquanto uma arte, já que é preciso que se julgue se o caso cabe na regra e, mais além, de que forma esse julgamento pode permitir o aparecimento dos efeitos de sujeito: “julgar, isto é, utilizar categorias universais num caso particular, não é o mesmo que aplicar uma regra, mas é decidir se uma regra se aplica” (MILLER, 2003, p. 28).

Temos, nesse contexto, a arte do diagnóstico como a complexa tarefa de julgar de que forma é possível que se dê a relação entre o caso e a regra. Viganò (1999), em suas colocações a respeito do caso clínico, pontua que a construção remete diretamente ao estabelecimento de um diagnóstico inicial, que, por vezes, deve ser reconstruído. Dessa forma, reconstruir um diagnóstico relaciona-se a um esforço constante, em que se presentifica a necessidade do julgamento para que se encontre o momento clínico a partir da lógica do caso. Nesse sentido, um mesmo caso pode-nos revelar diferentes diagnósticos, uma vez que o que se procura na construção do caso clínico é o diagnóstico do discurso (VIGANÒ, 1999). E o que seria isso?

Na perspectiva da construção, o diagnóstico do discurso refere-se a um momento específico, em que o sujeito revela qual a sua relação estabelecida com o Outro. Localizam-se, por meio disso, elementos que dizem de dificuldades e tensões próprias daquele sujeito em seu dia-a-dia e até mesmo em seu tratamento. De acordo com Viganò:

A construção do caso, dentro do grupo, é um trabalho que tende a trazer à luz a relação do sujeito com o seu Outro, portanto tende a constituir o diagnóstico do discurso e não do sujeito. […]. Não é um diagnóstico que afirma que ele é neurótico, psicótico, etc. A construção, ela serve para operar o deslocamento do sujeito dentro do discurso (VIGANÒ, 1999, p.58).

O diagnóstico do discurso, portanto, diz de uma manobra que procura incidir sobre o sujeito. Implica na busca de constâncias, ou de pontos invariáveis, que possam revelar a forma como o sujeito se posiciona frente ao Outro e de que modo o concebe. Além de comportar em si o ato do julgamento, que estabelece a ponte entre a teoria a que recorremos para caminharmos com o caso e o caso em si, o diagnóstico do discurso faz um apelo de que esse juízo se repita diversas vezes. O que se revela aqui é que, para se construir, são necessários juízos e que serão os efeitos que se coletam desses juízos que legitimarão uma conduta ou levarão a um esforço a mais de formalização.

A pergunta que orienta o estabelecimento de um diagnóstico de discurso refere-se ao Outro, ou seja, quem, ou como é o Outro, para o sujeito. Uma relação dialética se esboça entre o sujeito e o Outro, de inquestionável importância para o trabalho, seja no âmbito do trabalho nas instituições ou não. Nesse sentido, é o conceito de transferência que parece possibilitar-nos um aprofundamento maior em nossa investigação.

Viganò (2010) procura argumentar que o método da construção do caso clínico demonstra a possibilidade de um trabalho norteado pela transferência, enquanto um elemento clínico diferencial, motor de um trabalho possível. Dessa forma, a transferência se coloca como uma alternativa aos ideais culturais da eficácia e classificação, que anulam em diversos momentos a dimensão do sujeito.

A transferência, de acordo com o artigo de Freud denominado a “A dinâmica da transferência” (1912/1996), é definida como o veículo de cura e condição de sucesso (FREUD, 1912/1996, p.112). Caracteriza-se como um elemento indispensável para que um tratamento se dê. Ainda não nos interessa se ela, apesar de indispensável, é também uma das maiores resistência que se erguem no trabalho, conforme Freud mesmo pontua (1912/1996). O fato é que essa ideia de um veículo de trabalho também é enfatizada por Viganò (2010) na metodologia da construção do caso clínico. A transferência, para ele, ganha um lugar de destaque, na medida em que favorece a construção do caso por meio de uma abordagem que se coloca de maneira peculiar, estritamente desvinculada de ideais de cura ou mesmo de adaptação.

O que nos surge de maneira radical é a intrínseca relação entre a perspectiva do diagnóstico do discurso e a transferência. A transferência parece-nos como um momento privilegiado que permite que o diagnóstico do discurso se efetue. É ela, a partir do que é coletado pelo próprio caso, que poderá fornecer os caminhos a serem seguidos e os que devem ser abandonados. Se o diagnóstico do discurso objetiva, em última instância, possibilitar que ocorra um deslocamento discursivo por parte do sujeito (VIGANÒ, 2010) a transferência parece ser fundamental para a localização do momento de intervenção para o alcance de tal deslocamento.

Contudo, a forma peculiar como a transferência se insere no tratamento nos leva novamente ao texto de Freud e à pontuação de que, além de motor, a transferência também se configura como a maior das resistências ao trabalho analítico (FREUD, 1912/1996).

Dizer de tal resistência, no âmbito da construção, implica a localização do sujeito ao Outro. O Outro, muitas vezes o sujeito o concebe como aquele de quem advêm todos os seus males e desgraças. Todos os seus infortúnios se localizam aí, o que também diz de uma não retificação por parte do sujeito. Dessa forma, as resistências que se mostram até o momento em que o analista possa responder de outro lugar que não seja aquele esperado pelo sujeito são inúmeras. Porém, é importante que se leve em conta esse momento, pois ele é único em revelar a forma como se deve intervir para que se alcance essa modificação discursiva.

O que nos parece, portanto, é que a construção do caso clínico nos revela, de forma operativa, de que maneira diagnóstico e transferência se enlaçam na condução e reflexão dos mais diversos casos. O diagnóstico, tomado especificamente enquanto um diagnóstico de discurso, evoca a transferência como um elemento determinante para todo o manejo possível. A transferência, no sentido abordado pelo texto, deve ser encarada de maneira a comportar suas sutilezas, no trabalho institucional ou não. Ela, de fato, diz de uma resistência. Por um lado, revela as resistências de um sujeito frente ao Outro, muitas vezes encarado como a sede de todo mal. Por outro, em uma perspectiva mais ampla, relaciona-se a uma das principais orientações da construção do caso clínico, que age no sentido de fornecer uma alternativa aos ideais da contemporaneidade, resgatando a noção de sujeito e colocando-a em primeiro plano.


REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund. (1912) O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p 111-119. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.12).
VIGANÒ, Carlo. A construção do caso clínico em saúde mental. Curinga, Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte, EBP-MG, n.13, p.50-59, 1999.
______. (2010) A construção do caso clínico. Opção lacaniana online nova série, ano 1, n.1, mar. 2010. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero1/texto6.html>. Acesso em: jun. 2011.
MILLER, Jacques-Alain. A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan. Carta de São Paulo, São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, Seção São Paulo, v.10, n.5, p.18-32, 2003.

Diego Alonso Soares Dias
Psicólogo, aluno do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Email: dasdias@gmail.com



Uma Política Para Álcool E Drogas: Como Podemos Contribuir?

CONVERSAÇÃO

Henri Kaufmanner: Eu gostaria apenas de pontuar algumas questões rápidas, antes de passarmos à conversa. Tocarei em dois pontos rapidamente para nos aquecermos um pouco. São duas vinhetas clínicas que exemplificam bem essas diferenças apontadas por Beneti, que diferenciam dois momentos distintos das adições.

Na primeira, trata-se de uma senhora já idosa. Uma senhora muito interessante, psicótica e que está passando um tempo lá comigo no consultório. É uma senhora que viveu intensamente os anos 70, com boa parte desse receituário assinalado por Beneti. Um dia, ela me falou sobre seu filho, que também penso ser psicótico e estável. Ele teria chegado de uma viagem à Europa, dizendo-lhe sobre umas drogas novas que teria experimentado na Alemanha, fantásticas, segundo ele, e sem efeitos colaterais. Ela, então, me diz: “Fiquei com uma raiva dele, porque eu queria ter experimentado também. Fiquei com inveja”. Não é exatamente uma fala maternal tradicional.

Na outra vinheta, abro a porta de meu consultório e encontro na sala de espera os pacientes que me esperam, cada um olhando fixamente para seu smartphone e teclando feericamente. Assim, temos pequenos exemplos desses distintos tempos já apontados.

Em sua fala, Rose nos apresenta alguns dados contundentes sobre a dimensão do uso de drogas do ponto de vista estatístico. Surpreende saber qual é, de fato, a presença da droga em si, e somos levados a pensar que o problema em jogo é realmente outro, que existe uma outra questão, e que é da ordem da segregação. Isso me remete também à noção de epidemia, apresentada por Beneti. Ele nos fala da epidemia da passagem-ao-ato homicida. Parece-me, então, que a dimensão epidêmica com a qual nos deparamos refere-se muito mais à questão da violência. A partir dos dados que a Rose traz e que são muito contundentes — eu os achei muito impressionantes — vemos que há um certo excesso presente nas informações sobre o consumo de drogas. A questão realmente parece ser outra.

Há uma epidemia, e ao que parece, não nesse sentido do uso da droga em si, mas há alguma coisa que se espalha, que contamina, que se dissemina pela sociedade, e que, de alguma forma, aponta no sentido de uma exclusão, de uma segregação, e que tem como resposta práticas violentas. É como se os aditos, aqueles que, de alguma maneira, ocupam o lugar de resto da sociedade, fossem tratados como nossos terroristas, não é?

Há mais um ponto que eu gostaria de assinalar para nossa conversa, aproveitando a referência de Beneti ao discurso capitalista. Podemos delimitar dois circuitos fechados, digamos assim, nesse discurso. O primeiro é esse com o qual estamos acostumados a lidar, no qual localizamos essa ligação direta do sujeito com o objeto ($a). Podemos dizer que aí reside a essência do capitalismo, quer dizer, o sonho de todo capitalista é ter um consumidor que consuma o seu produto de forma incessante. Se eu sou um empreendedor capitalista e tenho um produto, e meu consumidor não consegue ficar sem ele, eu estou realizado. Então, essa é uma questão. É interessante porque todas as práticas, pelo menos a grande maioria das práticas que, de alguma maneira, tentam intervir no consumo de drogas, substâncias, etc., seguem a lógica da abstinência, reduzindo a questão das adições a um problema de consumo — o que é certamente um equívoco. Trata-se, como Rose nos mostra muito bem, de práticas hipócritas.

Se temos o crack e o oxi, se cada vez se produz um resto novo, isso não se dá apenas no campo restrito do uso de drogas. Vemos o mesmo acontecer com os computadores, os iphones, as roupas de grife. Eles estão circulando e produzindo seus restos piratas. De alguma maneira, a Rose aponta que existe, nessa circulação, algo que leva essas pessoas a se haver com esses restos da cultura, da cidade, da nossa sociedade. O que nós fazemos com nossos restos? Que lugar nós damos aos nossos restos? Não é por acaso que as práticas sanitaristas retornam, que a epidemiologia e o higienismo ganham espaço. Pois, na verdade, o que está em jogo é uma maneira de se lidar com os restos. Como? Excluindo-os? É uma tentativa na qual se vem insistindo.

Nós, na psicanálise, sabemos, contudo, que há um resto que permanece como um resto. E isso me parece fundamental, fazendo-me pensar no outro circuito fechado do discurso do capitalismo, um vetor que nos interessa muito, esse vetor (S1S2). Eu o chamo de holófrase, porque, na verdade, um outro efeito do discurso capitalista é a redução, isso que os dois apontaram, dos significantes-mestres singulares de cada sujeito a uma nomeação holofrasística. Quando se diz toxicômanos e se joga todo mundo no mesmo balaio, isso tem efeito de holófrase, produz todo um campo semântico, todo um campo de sentido, toda uma lógica que reduz pelo efeito de nomeação. Sabemos que o mundo hoje funciona assim, todos dentro dessa mesma perspectiva, sob o imperativo de gozo produzido por um nome.

O que nós escutamos dos dois apresentadores na mesa de hoje tem a ver com a importância de se produzir um corte nessa nomeação, abrir a possibilidade para que cada sujeito possa colocar em jogo os seus significantes fundamentais, aquilo que, de alguma maneira, ordena o singular de seu gozo. São parâmetros interessantes para operarmos, pois qual seria, verdadeiramente, o problema em questão, ou quais são as variáveis do problema que está em jogo? Acho que é uma boa maneira para não reduzirmos a discussão ao consumo. Temos discutido muito isso. Acreditamos que se trata de um problema ético, e não de um problema de consumo. Estamos diante de um problema que toca à responsabilidade de cada sujeito com seu gozo. Se partimos desse pressuposto, qual seria o problema em questão? Parece-me que a questão da criminalidade está aí colocada. Toda a discussão, por exemplo, sobre o tráfico, sobre a criminalização, não criminalização, o uso de droga, parece-me que toda essa discussão da epidemia da violência diz respeito também ao estatuto que o consumo de drogas tem em nosso país.

Bem, esses são os pontos que eu queria destacar. Está aberta a conversação.

Antônio Beneti: Acho que sua fala me ajudou a esclarecer mais essas questões. Se pegarmos o discurso capitalista, nós vamos colocar o S1 como toxicômano, e o S2, que está com o saber-fazer do mestre antigo, é substituído pelo saber da ciência. Saber da ciência que, no lugar da produção, vai produzir os objetos. Se não ficarmos atentos, vamos ter esses objetos sob a forma de drogas para tratar o toxicômano, vamos produzir manicômios ou instituições científicas para tratar o toxicômano, ou objetos institucionais para se tratar o toxicômano. É aqui que nós temos de novo a dimensão da segregação do sujeito do inconsciente, sua exclusão, segregação no discurso capitalista.

Fernanda Otoni: Quero agradecer a generosidade da transmissão. Realmente, foi possível nos orientarmos a partir do que o Beneti e a Rose apresentaram, dando um norte para nossa conversa. Chamaram-me a atenção os números, as estatísticas e a análise que Rose nos oferece, no sentido de que há um discurso geral que aponta para uma gravidade, embora não seja isso que se verifica nas pesquisas e nas práticas dos serviços.

Eu me recordei de uma conversação do CIEN, realizada pelo laboratório “Entre as fronteiras das práticas socioeducativas”, que aconteceu no Morro do Papagaio. Uma das pessoas da comunidade tomou a palavra para desconstruir o discurso de que a favela é o lugar da violência. Trouxe-nos a informação de que menos de cem pessoas estariam envolvidas com a criminalidade, com ficha na justiça, em uma comunidade com milhares de habitantes. Os que estão envolvidos com o crime são conhecidos na favela, eles conhecem nomes e endereço, etc. Por outro lado, o discurso corrente sobre as favelas não nos deixa saber que as pessoas que moram lá andam nas ruas e saem para namorar à noite, andam de mãos dadas, trabalham, estudam… Ali existe uma comunidade que funciona, apesar do discurso de que ali seria um lugar muito violento. Estou trazendo esse dado, pois aqui também temos essa disjunção entre o discurso e o real da experiência.

A fala do Beneti, nesse sentido, me fez pensar que existe um discurso sobre uma periculosidade social epidêmica. E a que serve esse discurso? Se temos que dar uma resposta política, como o Henri destaca — razão pela qual nos reunimos aqui hoje — nós teríamos que decifrar que produto esse discurso da periculosidade tem produzido. Beneti, nesse sentido, nos deixa saber, a partir do que ele anotou no quadro, que os objetos para consumir não são só as pedras, mas também as clínicas, os remédios, etc., etc. Internar, medicar, prender têm sido algumas das respostas desse discurso moral, e, para tal, coloca-se, no mercado, uma profusão de clínicas e remédios para tratar essa “epidemia”. Rose perguntou se não estaríamos diante de uma epidemia moral. Então, haveria um discurso capitalista operando por detrás desse discurso sobre uma periculosidade social epidêmica? Eis uma questão, considerando a resposta do discurso analítico que aponta outra direção para o tratamento.

Outra questão colocada por você, Rose, que achei muito interessante, é a que se refere ao uso dos intervalos pela equipe do consultório de rua. Queria que você falasse um pouco mais sobre isso. Lacan vai-nos transmitir que o sujeito se apresenta no intervalo entre um significante e outro. Você nos transmite que, entre uma pedra e outra, a equipe faz bom uso do intervalo, procurando estar ali, junto a esses sujeitos, para conversar, pois, ali, o sujeito pode-se apresentar. Queria que você falasse mais um pouco a respeito de como tem acontecido com o consultório de rua, e como esse dispositivo tem operado para escutar e dar a palavra, apostando no sujeito para além do crack.

Cristiane Barreto: Eu queria agradecer pelas falas. Para contribuir com a nossa conversa, trouxe o fragmento de um texto do Éric Laurent que me diz um pouco do que está acontecendo aqui nesta mesa. A presença de trabalhadores da Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte, pessoas que têm laço com a psicanálise, uns mais, outros menos estreitos, mas o bastante para estarem aqui, me fez pensar sobre o que esta mesa hoje representa. O Laurent [3] vai dizer assim:

Teremos que renunciar não somente às soluções do supereu, mas também às do ideal do eu. Não há uma solução universal, teremos que passar ao múltiplo, a considerar os efeitos da droga em sua especificidade própria. Precisamos nos introduzir em uma tolerância com relação ao impossível, sem ceder nem à resignação, nem ao cansaço, diante de uma carreira que concerne ao impossível. Isso implica uma modéstia ativa dos políticos, dos terapeutas, dos psicanalistas, psiquiatras e de todos os que estão envolvidos nessa carreira multidisciplinar, a modéstia de como abordar este impossível em todas as suas facetas (LAURENT, 2011, p.61).

“Uma modéstia ativa”, esse é um significante importante para nós. Esta mesa me parece ser o exercício de uma “modéstia ativa”.

Essa fala do Laurent está numa conferência que ele fez na Bahia, em 2010, cujo título é “Post-War on Drugs”? Como a psicanálise pode contribuir o debate político sobre as drogas. Conversando com a Rose, essa semana, falei desse texto — eu trouxe o livro para dar de presente a ela— e não resisti em fazer uso dele para ler essa parte. Eu acho que todos aqui estávamos com uma espécie de “síndrome de abstinência”, todo mundo queria discutir o tema das drogas já há algum tempo.

Acho também que esta mesa tocou em três pontos fundamentais. Um se relaciona muito de perto com a minha experiência, de alguma forma, com as drogas e com os adolescentes infratores do Liberdade Assistida — programa que coordenei durante oito anos — no qual a primeira coisa que observamos se aproxima muito de um dado que a Rose apresenta e que está de acordo com a forma certeira como o Beneti enuncia: se podemos falar em epidemia — e uma epidemia que inclusive a saúde reconhece a partir dos dados estatísticos — são dados de homicídios entre os jovens que colocam o Brasil ora em 2º, ora em 6º lugar, no ranking internacional da violência. Homicídios de crianças e adolescentes das periferias, no entorno dessa violência, tangenciam a questão da droga, envolvendo e agregando uma série de fatores, como o tráfico de armas, a formação de gangues, a corrupção policial, etc. Não o uso abusivo da substância em si, mas a droga como o objeto em torno do que vem sustentando o discurso do capitalista, enquanto ponto de produção, que ultrapassa os ganhos da indústria de cosméticos e de armas. É isso, a meu ver, que caracteriza o maior índice de violência no Brasil.

Os números também, tanto os registrados nos dois anos em que passei na coordenação do Programa de Proteção aos Adolescentes Ameaçados de Morte, quanto no Liberdade Assistida, não apontavam o uso abusivo de drogas como algo alarmante. Em muitos casos, a função era de tratar ou ofertar um tratamento possível à toxicomania, mas a gravidade recaía sobre outros aspectos.

Outro ponto importante, que faz interlocução com o que o Henri comenta, é o que o Laurent vai explicar a respeito do Keith Richards, que lançou o livro Life. Acho que todo mundo sabe dessa história. Durante 20 anos, ele foi cotado na lista de apostas das pessoas que estavam próximas de morrer, no ano seguinte, por causa do uso abusivo de drogas. Nesse livro, Life, ele diz que, como outros, ele se salvou porque usou a “nata da nata”, um produto de boa qualidade. O que nos remete ao caso da mãe e filho citado pelo Henri.

Acho que esse é um problema contemporâneo relevante e que atualmente reúne a posição em destaque do nosso ex-presidente e até a de juristas pertencentes a uma associação internacional, que se posicionam a favor da legalização das drogas. A legalização das drogas também abrangeria certo controle a respeito do que se consome.

Um outro aspecto que surgiu aqui — que também pontuo com o que li como uma certa anedota — trata-se do episódio de uma discussão de Laurent com um taxista. Diz mais ou menos assim: na ida do aeroporto para casa, depara-se com um grande representante da figura do supereu: o taxista. Todo e qualquer argumento que utilizava, na tentativa de convencer o sujeito de que existia uma forma de tratar, politicamente, com mais “ânimo e coragem”, a questão dos homeless que circulam pela Europa, fazendo uso de crack, o tal taxista combatia, reafirmando que, para isso, não havia solução, a não ser eliminá-los de alguma forma.

Então, acho que pegamos esse gancho. Belo Horizonte tem, talvez, uma sorte perigosa, é um momento em que vamos ter que pôr à prova algumas coisas do nosso fazer político. Verificaremos se temos coragem e ânimo na rede para acolher isso ou não. Porque existe um arcabouço de sustentação para tratar algumas questões de forma não segregativa, que pode ou não vir a acolher esse tema e os sujeitos com suas drogas, de forma relevante. Queria agradecer não apenas as falas, mas por promovermos esta conversação.

Cristina Nogueira: Bom dia! Parabéns à mesa pelas questões importantes que trouxe. Gostaria de dizer que participei, desde o início, do Núcleo de Psicanálise e Toxicomania do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, em função também de ter trabalhado na saúde, inicialmente no Centro Psicopedagógico, atual CEPAI, depois no Centro Mineiro de Toxicomania-CMT, por nove anos. Aprendi muito com essa metodologia da clínica com a instituição.

Há um caso clínico descrito na Curinga (revista da EBP-MG) em que podemos atestar a eficácia dos dispositivos: clínica médica, hospital-dia, oficinas e a clínica do sujeito. Nesse caso, particularmente, há o momento de uma intervenção fundamental. Trata-se de um paciente que fazia uso de crack em determinado momento do tratamento, e, nessa ocasião, na frente do meu consultório, eu o vejo pedindo dinheiro a transeuntes. Fiz uma supervisão e disse ao paciente, num momento preciso, que ele não era aquele objeto que ele estava se fazendo, e sim um artista. A partir disso, ele buscou internar-se durante dois meses em uma comunidade terapêutica, interrompeu o uso da droga e continuou o tratamento após sair da internação. Ele disse que esses dispositivos — CMT, fazenda — foram “tijolos úteis na decisão íntima de mudar, que se constrói na terapia”.

Quando eu trabalhava no CMT com o Jésus e o Beneti (respectivos diretores clínico e geral da instituição), o Jésus falou que nós teríamos que fazer da instituição um i(a), aludindo à importância de a instituição ficar num lugar de causar a demanda. Percebemos que — mas é uma percepção — e uma pergunta — o que vem dando força para esses movimentos de internação compulsória talvez seja uma ausência de dispositivos e de locais que possam ocupar o lugar de favorecer o surgimento da demanda de tratamento. Por exemplo, na Vara Infracional de Belo Horizonte, vemos os adolescentes iniciando e saindo em função da idade (até 18 anos). E aqueles que necessitam de tratamento, mas não aderem ao que é ofertado, onde vão parar? No CERESP. Alguns psicóticos graves, que foram trabalhados no CERSAM, apesar dos esforços da equipe, estão hoje na justiça comum. Outra questão é que há adolescentes que param de se tratar porque não têm vale-transporte para irem ao tratamento. Tivemos algumas experiências através do convênio da Vara Infracional de Belo Horizonte com a secretaria antidrogas, na execução de medidas protetivas 101-VI [4], de programas com a ABRAÇO e com a Associação Imagem Comunitária-AIC, que foram interessantes e possibilitaram o tratamento de adolescentes encaminhados pela Vara Infracional, além de toda uma discussão de acompanhamento dos casos com a rede envolvida.

O que vocês têm pensado nesse sentido para o adolescente? Em Belo Horizonte, por exemplo, criou-se o mito de que não se pode colocar nos CAPS (permanência-dia) o adolescente, porque ele não pode ficar com adulto. Para proteger, tudo bem; mas, por exemplo, existe um CAPS no Rio de Janeiro que trabalha especificamente com tratamento em função de álcool e drogas para jovens (CAPS Raul Seixas). Por que é que não podemos ter um CAPS para os adolescentes? É nesse sentido que percebemos que há uma ausência desses locais que favoreceriam a questão antimanicomial.

Não sei se vocês sabem, eu estou achando que isso vai ser fantástico, mas Belo Horizonte vai ser uma das primeiras cidades do Brasil a ter a saúde no CIA [5]. Mas o que é o CIA? É um local onde o atendimento ao adolescente que comete um ato infracional é imediato. Isso demorou oito anos para ser criado em Belo Horizonte, e é modelo nesse sentido. O adolescente comete o ato, é levado pela polícia, no mesmo local atuam a Promotoria, Defensoria, Judiciário e, muitas vezes, ele já sai dali com a Medida aplicada, encaminhado com uma grande celeridade para a Prefeitura. Então, nós vamos ter, a partir do segundo semestre, a presença da Prefeitura dentro do CIA (assistência, saúde e educação). Estou achando que isso vai ser uma revolução, porque muitos desses casos nós já estamos discutindo com a Saúde, mas vai ser uma experiência diferente esse atendimento imediato para os jovens logo ao sair de uma audiência.

Eu discordo um pouco, em termos, dos dados. Penso que a gravidade, no caso de uso de crack e de thinner, realmente, é uma questão séria.

Beneti, queria que você falasse um pouco mais sobre esse ponto da morte, porque temos alguns casos que esbarram nesse impasse, em que ao adolescente é ofertada toda uma série de dispositivos da saúde, e, às vezes, ele continua recusando o tratamento, em um movimento mortífero, seja pelo uso, seja pelo envolvimento com a delinquência.

Antônio Beneti: A questão da periculosidade não é exclusividade do toxicômano, digamos assim, e também não é uma questão só de discurso. Tem um uso que se faz disso. No caso, a associação ao crack, ao uso de crack, é, vamos dizer assim, muito espetacular, e fatura-se muito em cima disso. Então, eu acho que a periculosidade é inerente ao contemporâneo, em que esse mais-de-gozar comanda, tanto que a periculosidade está em todos os laços, não é só a questão da droga. De fato, o discurso capitalista utiliza isso, eu tentei formalizar no quadro, porque o discurso capitalista tem que faturar sempre, inclusive com aquilo que se apresenta como um resto, também isso pode ser rentável. Essa é a primeira marcação que eu faria. Ao mesmo tempo, o crack coloca essa dimensão espetacular, extraordinária, os crimes são bárbaros, são chocantes, ofendem. Então, o sujeito mata o pai e a mãe, chega e vai para o motel, são coisas escandalosas… Essa é a primeira marcação.

A segunda, eu creio que de fato é muito interessante o que a Rose nos mostra em termos de dados estatísticos, porque o discurso de hoje é muito sensível a isso. Essa é uma boa arma para desmontar certas iniciativas do discurso capitalista hoje, em cima da questão da toxicomania, mas eu creio que vai aumentar o uso, o consumo do crack e de outras drogas que virão. Acho que essa dimensão, consumo das drogas, vai ser cada vez mais intensa. Não tenho uma posição otimista de que isso possa diminuir. Acho que nós estamos até no início desse consumo. A coisa vai ser muito mais pesada. Eu começo a perceber, na minha própria clínica, que não é uma clínica específica de tratamento de toxicômanos, a quantidade de sujeitos que usam droga. De fato, quando você pega um jovem, uma criança, que entra nisso, é difícil sair… Eu temo que esse consumo possa aumentar muito, mas apresentar uma estatística, como você fez, é uma boa arma. E desse texto seu eu gostei muito.

Rosimeire Silva: Bom ser elogiada em público. Obrigada!

Cristiane, muito obrigada pela “modéstia ativa” e pelo presente, eu estava aguardando o texto, ansiosamente, e acho que é um bom nome para redução de danos, algo que precisamos conhecer melhor. Apesar de já ser uma cinquentona na Holanda, a redução de danos, que começa na Holanda, na década de 60, ainda é uma novidade extremamente polêmica no Brasil. É difícil porque se depara, a todo tempo, com os limites impostos pelo discurso moral, que vai nessa vertente de que só é possível tratar isso que o sujeito coloca, a sua compulsão, pela abstinência, pela ausência. Uma imposição cruel demais, uma exigência severa demais. Seria preciso introduzir, de fato, uma tolerância nessa relação como medida para se conseguir aproximar daquilo que esse sujeito nos traz. Para que, de fato, ele possa nos trazer alguma coisa, senão, nós vamos continuar submetendo o outro a essa prescrição, castigando esse sujeito e extraindo disso um gozo. O que estamos fazendo é isso, porque o que nós, enquanto sociedade fazemos, é isso, castigar as pessoas. Há um imperativo.

Concordo com Beneti, infelizmente, não acho que podemos pensar que o consumo de drogas vá reduzir-se, vá cair. Fiquei impressionada quando peguei a lista — acho que o importante dos dados é desmontar os mitos, desmistificar algumas verdades que circulam — mas, quando pegamos a lista do CEBRID, ela é imensa, o número de drogas é imenso, tem uma pluralidade de ofertas. Muitas delas são produto do discurso do capital, são drogas para tratar. Existem muitas pessoas se drogando com novos remédios.

Fernanda, essa foi uma das primeiras surpresas, boas surpresas com o consultório de rua. Consultório de rua é um dispositivo super-recente da rede de saúde mental. É um dispositivo que trouxemos para a rede a partir de uma indicação feita pela política nacional de álcool e outras drogas, estabelecida pelo Ministério da Saúde como uma oferta aos municípios e que decidimos implantar. São equipes volantes que atuam no território, que vão à cena do uso, onde o usuário está, trabalhar com esse sujeito. Por que fazer isso? Estamos trabalhando numa política de saúde, uma rede para acolher efetivamente esse usuário. Ela ainda carece, na cidade de Belo Horizonte, mas não tanto como faz parecer, de alguns serviços, mas hoje eu não tenho dúvida de que, se tivéssemos muitos CERSAMs, muitos CERSAMIs — já temos hoje profissionais de saúde mental em todos os centros de saúde — ainda assim, continuaríamos sem conseguir acessar uma parte dessa população. Esta está na rua, fazendo seu uso, e não acessa a rede de saúde pelas próprias pernas; ou, só acessará a rede e a saúde, no momento grave da urgência. Uma urgência clínica, não a urgência em saúde mental, seja do lado dos meninos, seja do lado dos que estão na Pedreira. Eles só acessam quando alguma coisa, alguma ameaça real, no corpo, instaura essa dimensão do cuidado. Entre os meninos, os adolescentes do Centro, escutamos que a grande maioria acessa a rede de saúde não pelas questões postas pela droga. Só um caso acessou a rede pela questão da droga, no momento de intoxicação. Fizemos um bom arranjo, um projeto articulando UPA, consultório de rua, e ainda estamos “apanhando” desse caso. É um caso que nos escapa a todo o tempo. No Centro, os meninos já oferecem uma entrada, acolhem, fazem a roda.

Na Pedreira, escutamos o usuário dizer: “Quando eu tô usando crack, não chega perto não”. Porém, eles também começam a dizer: “Num vamos fumar agora não, porque a equipe chegou”. A orientação é que, na hora em que eles estão usando, vamos à Pedreira, são três, quatro usando, um do lado do outro, mas ninguém fala com ninguém. Naquela hora ali, não dá, não rola. Mas se rolar de conversar antes do uso, então a orientação é: sejam espertos, façam a conversa mais atrativa, vamos ver o que podemos colocar nessa roda. Surgem propostas como, por exemplo, a intervenção e a adesão de outros profissionais. Como um dentista que se apresenta e diz: “Vamos fazer um trabalho com esses usuários, pois a boca está muito machucada”. O cachimbo do crack é feito de lata ou de PVC, esquenta, queima, corta toda a boca, e é fonte de muitas doenças. O dentista sai do centro de saúde, vai à Boca cuidar da boca. Afinal de contas, lugar de dentista é na boca… Vai conservar com os usuários, dizer: “Olha, vamos pensar um jeito, vamos ver se vocês vêm pro centro de saúde”. “Quem sabe, o dentista está aqui, essa coisa rara na saúde para a população ainda, o dentista veio”. Aí se iniciam alguns movimentos.

Outro movimento, por exemplo, é quando a equipe começa a perceber uma curiosidade, especialmente dos adolescentes, sobre as questões relacionadas ao sexo. A vontade de perguntar sobre o sexo. Ninguém quer fazer a pergunta em público, então, criou-se uma caixinha para as perguntas. As perguntas foram deixadas lá, num outro momento, foram abertas numa roda e dialogadas entre os usuários, essa equipe e quem está em volta.

Eu não tinha pensado, Fernanda, mas é isto, é o intervalo para que o sujeito possa emergir de fato. É muito interessante, porque, quando chegamos, houve muita aposta. Escutamos: “Como assim? A equipe vai até a Pedreira? Vai até lá no Buraco Quente, na Vila Senhor dos Passos?” (São os lugares da Pedreira). E as pessoas desacreditando: “Ali só vai traficante”. De fato, ali chegam o traficante e a polícia; e, hoje, a equipe do consultório de rua. E não são eles que estão dizendo, foi a comunidade que me disse. Quando o governo do Estado fez uma intervenção no sentido de limpar, de atender, de forma maciça e compulsória, os que lá estavam, fomos dialogar com a comunidade para dizer: “Olha, isto não tem nada a ver conosco, é importante que vocês saibam”. Porque a nossa entrada foi toda construída e pactuada com essa comunidade.

Nós nos apresentamos antes de chegar, dizendo o que pretendíamos, como é que poderíamos ser parceiros, e aí eles pediram autorização. Eles nos dizem: “É muito bacana, porque hoje só tem consultório de rua ali onde a gente sabe que está o traficante, a polícia perturbando a nossa vida”. Porque a polícia não está ali protegendo a vida de quem lá mora.

Quando começamos e nos envolvemos em coisas assim, em desafios, é bom correr atrás e tentar conhecer o que é isso. Indo da Pedreira ao PPCAAM, ao João XXIII, as equipes vão construindo um pouco esse conhecimento da realidade. Eu tinha uma hipótese — e olha que, como muitos, não sou tão desavisada das questões sociais — de que os meninos que sofriam ameaça de morte pelo tráfico eram meninos que estavam devendo para o traficante, que eles estavam ameaçados em função do seu vício e de não terem tido condições de quitar o vício.

Fui procurar o PPCAAM, Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, e de lá me chegou outra informação. Eu me apresentei para eles, toda metida, e disse: “Gente, como é que é, os meninos estão devendo, qual é a ética do tráfico?” Eles me falaram que eu estava muito enganada. Os meninos não chegam ao PPCAAM porque estão devendo para o tráfico, eles ficam ameaçados de morte porque estão trabalhando para o tráfico. Eles sequer usam, a parcela que faz uso de drogas é mínima. Eles estão ameaçados porque estão na Boca, a polícia dá uma batida, toma a droga do menino. Na primeira vez, o traficante faz de conta que não viu, na segunda, na terceira, na quarta, ele quer matar o menino. Ele vai ameaçar de morte, ou então a própria polícia. Outra situação: a polícia faz a batida e o menino entrega o nome do traficante — é a hora que a vida dele vira nada.

Cristina, eu acho que é importante mesmo nós dialogarmos. Existem dimensões que só esta discussão, da forma como ela está posta, vai-nos esclarecer sobre a relação com a droga. Os dados que a equipe de saúde da família levanta, dos meninos privados de liberdade, a partir de uma pergunta que nos colocamos — esse dado nos chega do relatório do CIA — dos meninos que têm contato com a droga, são informações que nos indicam o quê? Quais os meninos que usam? Porque, maciçamente, esses dados não dizem nada, ou podem, simplesmente, ser usados dentro de um certo discurso. Desdobrando os dados, o que vemos é que a realidade é um pouco diferente e tem outros agravantes.

O contato com a droga não é da ordem do uso para a imensa maioria — coincide com o que informa o PPCAAM. Então, acho que é importante pensarmos juntos, para não continuarmos trabalhando na máxima de que a droga faz o toxicômano, pois é o toxicômano que faz a sua droga. Outra coisa importante também é lembrar que a rede de tratamento é muito mais ampla, tem lugares muito diferenciados e possíveis para esse tratamento. Temos insistido, nesse diálogo, para que criemos um dispositivo, que é o de conversar sobre os casos antes de prescrever uma medida. Nessa orientação, encontramos uma boa saída para isso que angustia todos os lares, toda a cidade, sem precisar repetir o que não nos interessa.

Antônio Beneti: A questão da morte, na pergunta da Cristina que não respondi. A morte é o limite. E, diante desse limite — que é um limite da palavra — nós temos que fazer algum ato para que possamos restituir algo ao corpo que está em sofrimento, no limite. Diante de um sujeito quase em pele e osso, nada sensível a qualquer fala, a nenhuma intervenção verbal, é necessário restituir condições de vida, para que ele possa seguir uma análise ou um tratamento possível depois, durante anos. De forma que não existem regras, é no caso a caso. Se temos uma família que pode dedicar-se a estar com o sujeito dentro de casa, com todas as medidas médicas, cuidando do corpo, tratando o sujeito, não faz necessária nenhuma internação. A internação se faz imperativa pelas consequências físicas do uso de drogas como o crack.

Elisa Alvarenga: Queria agradecer essa iniciativa do Henri e as falas do Beneti e da Rose, que, de alguma forma, me ajudaram a pensar sobre a experiência que vivemos no Instituto Raul Soares, na enfermaria de mulheres. São muitas usuárias de crack, e uma coisa que me impressiona muito nessa experiência é que não existem duas iguais, são sempre totalmente diferentes. Interessou-me essa possibilidade diagnóstica que o Beneti aponta: temos as neuróticas, aquelas cuja política é perder tudo, que jogam tudo que têm fora — família, vida amorosa, trabalho, filhos; temos as psicóticas, com várias funções diferentes da droga, no caso delas; e temos aquelas das quais realmente não sabemos muito bem qual é a estrutura, mas para as quais a droga é totalmente indispensável. Isso que a Rose disse também, das que usam para trabalhar, nós temos várias mulheres que, como são pau para toda obra, usam a droga para trabalhar, para poder conseguir dinheiro para os filhos. Enfim, temos todos esses usos.

Quando o Beneti fala da questão dos homicídios, eu acho que o problema maior que temos é o pouco valor da vida hoje em dia, parece que a vida não vale nada. Então, o problema é a droga, é a violência, é a sociedade capitalista. O que é a sociedade capitalista em última instância? É um imperativo de gozo, ou, em última análise, se voltarmos a Freud, como faz a Rose, é pulsão de morte, quer dizer, não existe uma solução que vá retornar para o grande “I”, como aponta o Beneti, no início, ou seja, não existe uma solução fundamentalista de que possamos lançar mão para começar a atacar o problema. Então, vai ter que ser um problema tratado caso a caso. Nesse sentido, eu queria dar uma notícia. Não sei se vocês estão sabendo que a ONU reconheceu a Associação Mundial de Psicanálise como ONG Consultante Especial. Isso significa que o que estamos fazendo aqui em dimensão micro, quer dizer, a Prefeitura conversar com o Instituto, para pensarmos numa política, a ONU também está fazendo, ao reconhecer a AMP como uma consultora que pode ajudar a pensar os problemas da atualidade. Nesse sentido, estou levando à AMP-América — que é a parte da AMP composta das três escolas da América — uma proposta de pensar numa política para as drogas. Não sei nem se a melhor expressão seria política para as drogas, mas uma política para a violência; enfim, uma política para essa desvalorização da vida diante da qual estamos hoje, e que só podemos tratar no um a um, me parece.

Wellerson Alkmim: Parabéns à mesa, ao belo texto da Rose e à intervenção do Beneti, que foi muito esclarecedora. Outro dia, eu recolhi duas questões importantes de uma intervenção do Políbio. Ele apresenta uma série de dados. O Beneti tem razão, o uso do dado é importante porque tem toda uma política de avaliação em curso. Em sua intervenção, Políbio destaca duas coisas que eu gostaria de submeter à avaliação desta mesa. Primeiro, ele fala de algo que Beneti corrobora hoje, que é a questão da criminalização do uso e do tráfico de drogas, principalmente, e que tem muito mais a ver com a relação comercial, econômica, com o tráfico e com o traficante, do que propriamente com a intoxicação. Assim, temos um deslocamento que eu acho importante destacar.

A segunda coisa, que também foi apontada por Beneti, são as novas formas de respostas sanitárias, respostas higienistas. Essas respostas têm um nome, têm uma cara, são as comunidades terapêuticas. Sei que existe um movimento importante, inclusive oficial, com relação às questões das comunidades terapêuticas, que hoje usam uma outra nomeação para algo que tinha uma significação diferente há 50 anos. Eu queria saber se a Rose podia trazer alguma informação, algum dado de como está essa discussão. O Políbio aponta que, se esse é um movimento que não conseguimos conter, pelo menos o poder público pode intervir para regulamentar a forma de funcionamento dessas instituições.

Sérgio de Castro: Inicialmente, quero agradecer as intervenções de Rose e Beneti, muito agudas e interessantíssimas. Elas me fizeram lembrar uma entrevista recente, do dia 18 de agosto de 2011, de Jacques-Alain Miller ao jornal Francês Le Point, que, com certeza, já deve estar circulando mais amplamente [6], em que ele elege ou indica quase como um paradigma do sujeito contemporâneo, o sujeito da adição, o toxicômano. Isso me impressionou muito, o alcance e a amplitude da questão com a qual nós vamos lidar, e vamos lidar cada vez mais, e numa escala cada vez maior. Nessa entrevista, Miller indica como fundamento para isso a tendência contemporânea de tudo quantificar e avaliar. Ele vai dizer: o fundamento da quantificação é o Um, e essa prevalência do “Um-todo-só” que nós vemos tendo um alcance cada vez mais amplo e radical no mundo contemporâneo. E o modelo desse “Um-todo-só” com seu gozo, por excelência, vai ser o toxicômano. Nesse sentido, lembra também Miller, nessa entrevista, tudo pode se tornar droga: o uso do smartphone, a prática de um esporte, etc. Daí o sujeito toxicômano, o sujeito da adição como paradigma do sujeito contemporâneo — ele não usa esse termo. A contrapartida do tudo quantificar a partir do Um é a violência, que não é, portanto, uma exclusividade de certas condições brasileiras, ainda que ela se manifeste de maneiras próprias e específicas em cada sociedade, cada circunstância e cada país.

Nessa mesma entrevista, Miller toma o ato terrorista e assassino do norueguês, que assassinou setenta e tantos jovens [7]. Ele se refere àquele episódio como um espelho do mundo contemporâneo, baseado nesse sujeito, do Um inteiramente só com o seu consumo, com seu gozo, visto que ele mata sozinho. Ricardo Seldes, nosso colega argentino, que esteve conosco há uma ou duas semanas, em nossas Jornadas de Cartéis, nos lembrou disso também. Cada país, cada sociedade, cada circunstância com modalidades próprias de passagem-ao-ato, de tendência homicida, como observou também Beneti hoje.

Isso tudo me veio à cabeça para lembrar a dimensão da questão que nós temos pela frente e com a qual vamos nos haver cada vez mais. A lembrança da expressão de Laurent, que Cristiane Barreto nos trouxe: “modéstia ativa”, pode nos orientar diante dessa imensidão, visto que não adianta falarmos de retorno aos ideais, de exército da salvação.

Miriam Abou-Yd: No dia 18 de maio passado, comemoramos os 50 anos do livro História da Loucura e, curiosamente, a última ala do desfile representava que a história não tinha terminado. Só que era no bom sentido, ela não tinha terminado porque tínhamos construído uma rede substitutiva. Claro que Foucault iria apontar todos os nossos furos. No entanto, passados alguns meses, desde 18 de maio, estamos vendo que a história realmente não acabou, o preconceito não acabou. Na verdade, ele se deslocou: a mudança que estamos vendo é a de que o perigoso assassino já não é mais o psicótico, o perigoso assassino agora é o usuário de crack, o usuário de drogas.

Quando, há alguns anos, abríamos os jornais, víamos, o tempo todo, essa história de que um louco, um psicótico, havia matado várias pessoas. Naquela época, o louco, assassino, violento e incapaz, eram os psicóticos; agora, esse sujeito louco, assassino, incapaz, é o usuário de droga, de crack. Concordo com Beneti que está começando, mas com uma rapidez muito grande, a associação de discursos que nossa sociedade está conseguindo fazer em torno dessa concepção, dessa nomeação do usuário de drogas como esse pária a ser excluído do nosso campo. Esse discurso está muito potente, muito poderoso.

Concordo que existe todo um movimento, que o capitalismo pressiona para que se construa, e que nós também o elegemos para que tal aconteça, e tem também, como disse o Sérgio, uma peculiaridade que é brasileira. Por exemplo, quando vemos, há dois anos e pouco, a Associação Brasileira de Psiquiatria tentar questionar a reforma psiquiátrica, justamente nesse ponto de onde a questão do álcool e drogas não estava colocada — isso nos abala, mas não tanto. Tínhamos com o que responder. O que vai acontecer em seguida, justamente no período de eleição presidencial, é que eles começam a bater numa tecla que é realmente o nosso ponto fraco, a questão do álcool e das drogas. Tanto o discurso da Associação Brasileira de Psiquiatria quanto o discurso do Serra estavam voltados para essa questão.

Infelizmente, tivemos o segundo turno nas últimas eleições presidenciais. Digo infelizmente porque isso significou perder um pouco aquilo que poderia distinguir o PT da proposta do Serra, que foi o tema do aborto. Acredito que todos se lembrem de que, durante o primeiro turno, veio à tona a questão do aborto. E, no segundo turno, alguns acordos políticos tiveram que ser feitos, e é aí que entram em cena a questão das comunidades terapêuticas e tudo aquilo que elas representam. Porque não é só a existência da comunidade terapêutica, é toda a concepção que as comunidades terapêuticas representam e também o acordo feito pelo Governo Dilma com todas as igrejas brasileiras, sendo que todas elas têm comunidades terapêuticas. Então, isso é muito complicado, pois, nessa composição de forças nacionais, nós estamos perdendo.

Nesse momento, o Governo Federal, devido a esse acordo feito no segundo turno, também começa a esboçar e apresentar uma política totalmente diversa da política que nós defendemos. Temos ainda um outro problema grave que é a privatização do SUS, as OSs, as OSCIPs, as PPPs — parcerias público-privadas que também nos fragilizam muito, em qualquer proposta que venhamos a apresentar. E o que incomoda muito é o silêncio dos descontentes. Eu ouvi aqui um discurso dos descontentes com essa situação, acredito que todos nós sejamos os descontentes, em relação à política que vem sendo colocada, ao discurso que está sendo veiculado no Brasil. Fica então um apelo. Até então poucos setores têm-se posicionado publicamente contra essa maré que vem vindo contra nós.

Temos alguns textos, um é do Lancetti [8], o outro é do Dartiu [9]. Isso é pouco, três ou quatro artigos nacionais que tiveram uma certa divulgação, poucos. Quando conversamos com alguns deputados, senadores, todos eles concordam, mas não falam. Há alguma coisa que está dificultando.

Fica aqui um apelo. A psicanálise tem uma boa veiculação na mídia, acho que isso é importante, não é à toa que ela tem essa representação, ela fez por merecer. Temos aqui pessoas que poderiam posicionar-se mais publicamente, para termos coragem mesmo de romper com esse fluxo. Acredito que dê tempo, está no início, está violento, está difícil, mas vamos correr o risco. Se não fizermos isso, não teremos participado de uma linda história, mas também teremos participado da derrocada dessa história. Eu não tenho dúvida disso. Fica aqui o apelo.

Maria Wilma: Eu não sei se sou otimista demais, mas acho que a política de álcool e drogas avançou. Até 2002, não tínhamos nenhum CAPS álcool e drogas com uma proposta política para este país. Nós víamos alcoólatras e toxicômanos nas urgências, à mercê das fazendas e das comunidades, por falta de um orientador, de um princípio, de uma política de fato. Agora precisamos avançar, acreditar na política do CAPSad, e é nesse sentido que Belo Horizonte tem que se debruçar sobre esse problema. Eu acho ótima essa oportunidade de estarmos aqui para poder dizer que dois CAPS para atender uma cidade com três milhões de habitantes é uma situação muito difícil. Por mais que se saiba do atravessamento do discurso da ciência, sabemos também que existe o discurso do toxicômano, que bate todos os dias à porta dos serviços especializados querendo ser atendido, e não damos conta de atender todo mundo. Por isso é preciso avançar.

O Beneti disse uma coisa importante sobre a transferência, pois ela continua sendo a mola ainda hoje. Aprendi com Beneti que nós nos devemos colocar dealers no lugar do traficante, como alguém que pode oferecer outra coisa para o toxicômano, que não sejam só outras drogas modernas, mas que essas drogas modernas, às vezes, podem ser apresentadas via transferência.

Como a Rose disse, não é uma única instância que vai dar conta dessa problemática do sujeito que usa droga e álcool. Então, nós estamos aqui porque todas as instâncias estão sendo convocadas: a Escola, o jurídico, a saúde, mas uma sozinha não vai dar conta. A psicanálise nos ensina o convite à invenção, ao caso a caso; na clínica, nos dispositivos do SUS, nos consultórios de ruas, nos CAPS, nos PSFs. É preciso conseguir articular uma rede, e essa rede não é algo pronto, mas alguma coisa a ser tecida em torno de cada usuário de droga e álcool.

Márcia Parizzi: Eu trabalho na Secretaria Municipal de Saúde, sou coordenadora de Atenção e Saúde da Criança e do Adolescente do município. Gostaria de falar um pouco da nossa experiência com relação ao atendimento dos adolescentes em conflito com a lei. Estranhei a fala da Cristina Nogueira, pois ela fala que agora teríamos a saúde com o CIA, mas a Secretaria Municipal de Saúde já está no CIA desde que começamos a trabalhar com adolescente. A Secretaria tem uma interlocução constante com esse serviço e com o Liberdade Assistida também fora do CIA. Temos equipes de saúde da família atuando dentro dos Centros de Internação Provisória, há mais de um ano, o que seria impossível sem uma interlocução com o CIA. Uma das orientações que a equipe de atenção à saúde do adolescente recebeu foi a de atender esse adolescente em toda a sua integralidade, olhar todas as dimensões do adolescente.

Quando a Rose fala que não temos visto, dentro dos Centros de Internação Provisória — para onde são encaminhados os adolescentes que teoricamente teriam cometido algum ato infracional mais grave — síndrome de abstinência, nem sintomas de intoxicação, queremos dizer que o que vemos são adolescentes que apresentam quadros de insônia, de náusea, que poderiam ser tomados como sintomas de síndrome de abstinência. O que notamos é que, ao conversar, escutar, entender o que esse adolescente tem a dizer, isso possibilita que passe essa insônia, e isso sem drogas. A nossa equipe não precisa dar drogas para esses meninos dormirem. Ela conversa, atende esses adolescentes. E o que esses adolescentes dizem para justificar essa insônia aponta para uma situação grave de violação dos direitos. Eles estão dentro desses Centros de Internação Provisória numa situação precária, compartilhando os seus alojamentos às vezes com ratos, passando frio, inseguros com relação à medida socioeducativa que vão receber. Às vezes, o adolescente está preocupado com o filhinho que nasceu, preocupado de ser usado, ser abusado à noite, numa situação de superlotação dos centros. Essa é uma circunstância que sempre nos preocupa muito, principalmente quando ela é reduzida à droga, pois não é essa a questão.

Outro ponto preocupante é quando pensamos na questão da estatística, dos dados epidemiológicos, pois a estatística não considera o sujeito, fica todo mundo igual. Não podemos querer ter uma política igual para todos, sem considerar a singularidade. Podemos pegar como exemplo de fracasso, ao considerar uma situação como epidemia, a questão da obesidade. Desde que foi considerada uma epidemia em 1997, a obesidade só tem aumentado. Tratar a obesidade de forma reducionista, assim como tratar a droga, sem considerar o sujeito em toda a sua singularidade, inclusive porque, no caso desses adolescentes em conflito com a lei, eles estão em uma situação grave, é nos levar ao fracasso de novo.

Ludmilla Féres: Gostaria de escutar um pouco mais sobre a experiência do trabalho do consultório de rua, pois acredito que, nesses casos de usuários de droga e álcool, e também adolescentes envolvidos em situações graves de violência, a proposta de ir onde eles estão é fundamental. Todos sabemos da dificuldade dessas pessoas em procurar ajuda. Na maioria das vezes, eles ficam entrincheirados em seus territórios, ou sozinhos com sua droga, enquanto as políticas públicas ficam também “entrincheiradas” em seus consultórios. Modelos como o que vocês apresentaram com o consultório de rua e outros tantos que temos na cidade, que são políticas públicas “nômades”, parecem possibilitar uma aproximação com esse público. A experiência com o Programa Fica Vivo, que trabalha dessa forma, pode-nos demonstrar a importância de usar o “nomadismo” como uma boa forma de pensar uma política pública, já que, de início, parece-me importante fundar com esse público um espaço, um campo de transferência, lá mesmo onde eles estão, e só a partir daí podermos pensar, de fato, no caso a caso.

Lilany Pacheco: Achei interessante as citações de Freud: a regra da abstinência tem que estar do lado do analista, e essa oferta dos tratamentos para os jovens, de alguma outra coisa, que seja sem droga. E que os profissionais estejam abstinentes do gozo da droga, de gozar com a droga deles (disso que é o espetáculo), e do gozo do olhar que está incluído nesse contexto. É só uma ideia.

Raquel Pinheiro: Gostaria de ressaltar somente três pontos: A questão do intervalo, do consultório de rua: acho que não só a abordagem da rua, o tratamento também atua nesse intervalo — ficar durante o dia é um intervalo. A questão de criar a possibilidade de alternação do gozo coloca-se também como uma função do tratamento. Uma “modéstia ativa” de abordar o impossível é perfeito para falar sobre o que nós fazemos. Eu falo muito do que é possível fazer no tratamento. Abordar o impossível, e fazer o que é possível, e nem sempre é possível, é o que todo mundo quer; é o que as pessoas querem. A preocupação com os portadores de sofrimento mental e usuários, talvez nós precisássemos voltar a conversar para mudar a forma de pensarmos os acolhimentos.

Nós temos uma mudança do perfil dos moradores de rua. Antes, era um morador de rua de uso alcoolista, usuário de thinner e de cola. Os adolescentes, esses continuam o uso de cola e thinner. O fato de o crack provocar um baque muito grande familiar faz com que o seu usuário também vá para a rua. Então, nós temos hoje portador de sofrimento mental, usuário de crack e moradores de rua, e, se ainda insistirmos em ficar atendendo, todos nós, só a crise, quem vai acolher é o hospital, e aí temos 70% de pessoas dentro de um hospital psiquiátrico, nem todos necessariamente portadores de sofrimento mental, porque está ali pela internação involuntária, internação ordenada pelo Juiz, e o único lugar que ele tem para enviar esses sujeitos é o hospital. Como Miriam disse, é uma preocupação dela. Essa é uma preocupação minha também. Nós andamos para trás nesse ponto.

O que está acontecendo agora é que o pessoal está pedindo para abrir leito, usando a Organização Mundial de Saúde. A Organização Mundial de Saúde disse que tem que ter x por cento, uma porcentagem da população, nós temos menos que x, portanto, vamos chegar no x. Assim, acho que temos, a todo momento, que levantar essa conversa. Acho ótimo que o pessoal do Instituto esteja entrando nessa diálogo. Acho que são pessoas que podem ajudar-nos muito a pensar o caso a caso. Somos convocados a falar da droga o tempo todo, e não do usuário. Quando você fala do usuário, as pessoas falam que não pode ser caso a caso. Temos que estar presentes nessa discussão, mas temos que ter mais voz a favor dessa discussão, do caso a caso, do sujeito, e não da droga.

Frederico Feu: A conversa me estimulou em vários pontos, mas eu queria retomar a questão política. Há várias propostas clínicas em jogo, certamente nós vamos poder retomar. Devemos retomar isso, talvez colocando numa forma de texto, em função disso que a Miriam estava lembrando, de que há um silêncio, que tanto pode ser pensado do lado de uma certa hipocrisia social, como também do lado de uma desorientação. Então, se estamos nos propondo como instrumento uma conversação, é porque não sabemos ainda o que fazer, embora constatemos que operamos clinicamente, podemos operar clinicamente. Até porque somos especialistas, digamos assim, do fracasso, principalmente devido a essa posição de psicanalistas.

Há um ponto que Henri uma vez mencionou e me chamou a atenção. Você falou que se incomodava com o termo toxicomania, e talvez fosse melhor pensar na compulsão. Acho que é um significante interessante para levarmos em conta, porque o tempo todo nós estamos colocando aqui que se trata de uma questão de discurso, uma questão de um resto de discurso. A Cracolândia surpreende pela ostentação, ela não está exatamente num lugar do resto, no canto, escondido, realmente na lógica da transgressão, como colocava Beneti, é de uma mostração que, como Rose estava lembrando, tem um apelo ao pensamento nesse ponto, de que é preciso coragem para colocar, coragem estratégica.

Então, eu penso que trazer à cena esse termo compulsão é uma coisa que faz quebrar um pouco esse círculo que o Beneti desenhou, que é um círculo compulsivo, e eu me lembro de que Lacan definiu o discurso do capitalista a partir da inépcia em se tornar mais lento. Até o próprio discurso da ecologia entra no circuito que tem a ver com essa operação sobre o resto, essa coisa incessante. Então, eu penso que adotar o termo compulsão, pensar a compulsão, abrir um fórum para pensar as compulsões, abrange uma perspectiva discursiva mais ampla que é a toxicomania. Talvez seja mais interessante.

Antônio Beneti: Conversação é uma elaboração coletiva. Eu acho muito, mas muito importante a quantidade de coisas que surgiram aqui. Cada um faz uma reflexão particular, e é nesse sentido que eu queria propor às pessoas que estão dirigindo o Instituto, a Seção Clínica e o Núcleo de Toxicomania, que essa conversação fosse transcrita, fosse veiculada no site do Instituto, passada também para o pessoal da Prefeitura, porque eu estou dando a ela o estatuto de um certo documento, dentro de um movimento político dos trabalhadores de saúde mental, dos analistas, na abordagem de uma questão extremamente pertinente, num momento fundamental. Essa é uma oportunidade a partir da qual podemos começar a ter ações dentro desse campo, junto com a saúde mental.

A questão do “todos toxicômanos”, ou da toxicomania contemporânea, “é o sujeito contemporâneo”, são as mulheres da terapia de reposição hormonal e os homens com Viagra, a “sexualidade sem inconsciente” — sabemos que são os jovens os que mais consomem o Viagra. Porque, se isso está posto dessa forma, parece que, dentro do discurso capitalista, a vida só tem sentido intoxicada, ou pela química, ou pelos objetos de consumo.

A discussão não se resume somente à questão da comunidade terapêutica e similares. Tive dois casos na clínica que me indicam: O que o discurso da ciência pode fazer? Um sujeito histérico, que fez uma depressão em determinado momento, foi tido como portador de “fibromialgia” pelo DSM-IV, e foi injetada nele uma bomba de morfina, que já era, digamos assim, a número quatrocentos, de um neurologista de São Paulo que instalava essa “bugiganga”. Um quadro dramático, porque não podia tirar isso, e ele totalmente na transferência com o neurologista. Enfim, um ato de “descuido” da ciência.

Eu tive um outro sujeito obsessivo com síndrome de pânico no qual foi feita uma psicocirurgia. Eu não acho difícil que para os usuários de drogas (eu estou apontando isso) o discurso capitalista invente “bugigangas” para serem consumidas, que vão entrar no tratamento do sujeito toxicômano. Não duvido de que, tipo “laranja mecânica”… venha ocorrer, pelo discurso da ciência, com drogas, instrumentos de intervenção no nível cerebral, porque se trata do cérebro no comando. Então, instituições desse tipo não virão pelo serviço público, mas podem vir no particular, e, assim, abre-se uma brecha enorme para isso.

Rosimeire Silva: Bom, eu queria agradecer, em nome das últimas intervenções, a todas as intervenções feitas hoje aqui, agradecer à Lilany, agradecer à Ludmilla, nesse conjunto das últimas intervenções, pelas pérolas que vocês trazem, que são frases e pensamentos que organizam e nos ajudam a avançar nessa elaboração. E ao Sérgio, pela tradução do sujeito da adição como o sujeito do contemporâneo, que também nos vai ajudando a esclarecer uma série de situações nessa nossa clínica, dentro da rede pública, com os usuários de álcool e drogas, mas também com os portadores de sofrimento mental. Como o sujeito não é uma abstração localizada fora de um tempo histórico, ele responde às máximas de seu tempo, não é à toa, temos o sujeito da adição como esse sujeito da contemporaneidade.

Concordo com Wellerson que a comunidade terapêutica continua sendo um ponto tenso nessa discussão. Mas eu queria agregar a essa proposta de divulgação dessa conversação alguma outra forma de tomada de posição pública da psicanálise. Acho que esse é um momento que nos pede, à psicanálise, à gestão, aos diferentes movimentos sociais, uma posição de defesa da política. Ainda que a política tenha avançado, ela ainda é tímida. Reconhecemos todos, no campo de álcool e drogas, que ela precisa ser protegida nesse momento, porque, senão, nós vamos perder essa política. O risco que vivemos, e aí o risco colocado é muito bem evidenciado por esse movimento que é político (das comunidades terapêuticas, da federação das comunidades que atrás de si articulam vários setores sociais), é um movimento que traz sérios riscos para a continuidade da reforma psiquiátrica e para o próprio SUS. A forma como o Governo, o Ministério da Saúde, vem muito embaraçadamente se posicionando coloca riscos para todos nós.

Nesse momento, acho que é preciso assumir mesmo, exercer nossa cidadania, e fazer a defesa de qual política pública de saúde esse país terá, e nós queremos que esse país tenha, ou continue a ter, ou continue a sustentar, para continuar a se orgulhar dela. Não vale o Ministro da Saúde dizer que o SUS é um patrimônio da sociedade brasileira, e, num mesmo momento, acenar com a possibilidade de ceder à pressão, que é uma pressão real, uma pressão intensa sobre o Governo Federal, que tem a ver com o acordo de campanha, e aí, nesse momento, quem vai pagar a fatura é o SUS. É a única política pública desse país que vem sendo corajosamente sustentada. Então, é disso que estamos tratando.

Existe um manifesto feito pelo Conselho Federal de Psicologia (está no site do conselho), e eu convido todos para aderirem a esse manifesto, e também fazer parte de outros movimentos, outros movimentos de cidadania de manifestação pública da nossa posição, porque o coro dos aflitos está por aí cantando, sozinho, de forma hegemônica. Nós temos que destoar dessa música, essa epidemia moralista: se tem uma epidemia, é do discurso moral no tratamento dessa questão.

Então, esse movimento é supertenso, e nós estamos tentando, mais que regular, acho que é preciso ter clareza do que isso traz de limitação, de atravessamento, de problemas para a construção de uma política da saúde. E, além disso, ter claro também qual a intervenção possível a ser feita junto dessas instituições. São instituições que se constituíram no vácuo de uma política pública, isso é verdade, 30 anos de ausência de resposta, elas se constituem como iniciativas da sociedade, da boa caridade, dos bons sentimentos em relação ao outro; mas querer o bem nem sempre é o bem, e, em nome disso, se faz muita coisa. Há muita denúncia de violação de direitos humanos, de maus tratos e até de morte nesses lugares. Não é possível aceitar isso tão passivamente! Pretendo que esse governo que se faz de esquerda vá fazer seu lado moralista da história, vá fazer o que nem Fernando Henrique fez. É o movimento de segurarmos mesmo essa tentativa de retrocesso, é um retrocesso real, que se articula com o pedido, com essa demanda de internação compulsória.

Eu escuto tanto esse negócio todo dia, então resolvi pegar a Lei Federal 10.216 para reler. A lei coloca três tipos de internação: voluntária, involuntária e compulsória; a compulsória, decidida pelo Juiz, mas decisão singular. Então, não dá para acreditar, para ser ingênuo, nessa falação sobre internação compulsória como outra coisa senão estratégia de limpeza do espaço social, porque, para esse discurso, ele não coloca nem a possibilidade de um sujeito singular recebendo uma medida determinada por um juiz: é instrumento para a justiça vir varrer a cidade.

Concluindo, Ludmilla, obrigada pelo “território” e “nomadismo”. Acho que, com o consultório de rua, nós vamos aprendendo a importância de chegar lá no território, ir até onde o povo está, mas, no caso da saúde, sem fazer o que a saúde fez historicamente, que é fazer polícia sanitária. Então, é ir onde o sujeito está para encontrar de fato o sujeito, e aí sim, permitir que ele chegue às redes, ajudá-lo a chegar às diferentes redes. Curiosamente, eu conferi, com a equipe do Consultório da Pedreira, os casos mais facilmente encaminhados da Boca da Pedreira para a rede são os dois que estão usando crack. Aí sentimos um alívio, porque a propalada deficiência da Rede de Saúde Mental de BH fica muito mais amena. Nós temos dois CAPS para dar conta dos neuróticos que se intoxicam nessa cidade, e temos sete CAPS para dar conta de todos os outros, e aí eles estão chegando e dão muito mais link.

Obrigada pelas intervenções. Foi muito, muito bom estar aqui. Nós vamos nos encontrar noutros lugares, exercendo nosso direito de cidadania.

Henri Kaufmanner: Quero fazer ainda um comentário antes de encerrarmos, aproveitando a fala do Frederico Feu. Era minha intenção, neste final, retomar o incômodo que a nomeação toxicomania me provoca. Penso que é um nome que não funciona no um a um de nossa prática. Parece-me que as apresentações de Rose e Beneti nos mostram como esse conceito é insuficiente para dar conta do que está acontecendo. Como psicanalistas, não temos a priori quaisquer problemas com o consumo. Nossa questão é com o gozo, e é a responsabilidade do sujeito com esse gozo que está em jogo. Não podemos desconhecer, e o mundo mostra isso, que a tendência do consumo, em nossas vidas, é aumentar, seja com as drogas, os smartphones, os computadores, ou com tudo aquilo que o capitalismo produz. Diante dessa realidade, a questão que se apresenta parece ser: como é que cada sujeito, no seu Um de gozo, algo que Sérgio nos traz com essa referência a Miller, vai poder lidar com essas ofertas?

Nesse sentido, acho muito interessante a lembrança do que ocorreu na Noruega. Com toda aquela dramaticidade, isso traz também seus ensinamentos. Eu fiquei pensando, quando aconteceu, como é que seria o funcionamento a partir de agora nos aeroportos, se todos os “loiros de olhos azuis” passassem a ser revistados. Vejam que o que se passou com aquele sujeito coloca em questão, por exemplo: O que é o terrorismo? É, no mínimo, intrigante pensar nas razões que levaram boa parte da mídia a se recusar a chamar o que se passou de um ato terrorista, nomeando o sujeito apenas como um atirador. Todo esse problema me remete às preocupações de Lacan presentes em seu texto sobre a criminologia. Lá ele escrevia sobre o ressurgimento do racismo e das novas formas de segregação. Isso me parece realmente estar em jogo na problemática atual das drogas. Obviamente, há sujeitos com os quais precisaremos de uma aproximação clínica de seu problema. Mas, de maneira mais ampla, há algo aí que nos convoca como psicanalistas na cidade e como atores políticos dessa cena. Essa foi a intenção que nos moveu ao convocarmos essa conversação.

Certamente, vamos conversar mais, e, certamente, vamos ter outros desdobramentos disso. Agradeço a presença de todos.


[1] Conversação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, realizada em Belo Horizonte, em 10 de setembro de 2011.
[2] Também publicadas nesta edição do Almanaque online.
[3] LAURENT, Éric. Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum/EBP, 2011.
[4] Medida protetiva prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina a inserção em programa oficial ou comunitário de tratamento em função do uso de drogas.
[5] Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional. Funciona em Belo Horizonte e atende os adolescentes que cometem ato infracional. Participam do CIA: Polícia Militar, Civil, Defensoria, Promotoria, Tribunal de Justiça, Defesa Social e Município.
[6] Publicada no Brasil em dezembro de 2011, no n.70 de Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, p.7-12, com o nome de “As profecias de Lacan”.
[7] O ato terrorista de Anders Behring Breivik, autor confesso da explosão no centro de Oslo e do massacre na ilha de Utoya, que juntos deixaram 76 mortos na Noruega, em 22/07/11.
[8] Antônio Lancetti, psicólogo, psicanalista, artigo intitulado “A droga da mídia”. Disponível em: http://drogasecidadania.cfp.org.br/revista-brasileiros_edicao-47_junho-de-2011/. Acesso em: 17 mar. 2012.
[9] Dartiu Xavier da Silveira, médico psiquiatra, é professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e diretor do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da mesma universidade. Trata-se do artigo “Dependência não se resolve por decreto”. Publicado em 25/06/2011, na Folha de São Paulo.



No Meio De Todo Caminho Sempre Haverá Uma Pedra

ROSIMEIRE SILVA

Bom dia a todos! Eu quero começar, como convidada que sou, agradecendo o convite para estar aqui e a todos pela presença e resposta a esse convite. É muito bom poder estar aqui. Para mim, que venho das barrancas do São Francisco, do Sertão, este lugar, este momento, se constitui como uma vereda, um bom momento, um bom lugar para parar e pensar a vida. No meio do sertão, é sempre difícil, sob o sol escaldante, no meio da terra ressequida, pensar a vida no caminhar dela, daí a importância de ter uma vereda, por isso o grande sertão tem dois pontos, e é vereda também. Então, considero este momento como um momento de refresco, porque, como coordenadora da política de saúde mental da cidade, tenho sido interpelada, todos os dias, várias vezes por dia, a responder algo sobre as drogas, sobre esse novo fenômeno, essa nova dimensão que a toxicomania coloca hoje para a sociedade.

E, infelizmente, nem sempre somos convidados a pensar. E quando ousamos fazê-lo, não nos recusamos a pensar, não é do nosso feitio recuar, pagamos o preço por introduzir, no coro dos aflitos, uma nota dissonante. Então, estar aqui e poder conversar, conversar com pessoas que querem pensar sobre o assunto, e não se anestesiar com o tema, que é o que a droga vem produzindo hoje, uma intoxicação da sociedade que nos impede de pensar o que isso nos diz sobre nós mesmos, é muito bom. Henri já introduziu, um pouco, a história que nos trouxe aqui. E, de fato, é essa a história, à qual fazemos apenas um acréscimo. Ou melhor, dois agradecimentos: primeiro, ao Fred e à Helenice e, depois, à Cristiane Barreto, por termos dialogado em momentos distintos e delimitado quais eram as preocupações de lado a lado. Aos três e ao Henri, nosso obrigado.

Vamos lá. Quero dividir com vocês um pouco da elaboração que temos feito dentro da política de saúde mental de Belo Horizonte, não sem antes destacar que entendemos que uma política de atenção aos usuários de álcool e outras drogas não é uma política que se reduz à intervenção da saúde, tampouco da saúde mental. Mas deve ser fruto de uma ação intersetorial. Quando o Henri me pergunta o que pensa a Prefeitura, eu posso dizer a todos o que tem sustentado, e não sem dificuldades, a saúde mental, e que a Prefeitura reflete o que está posto na sociedade. Tem o nosso pensamento e tem o pensamento moralista, dentro dela, e é na discussão, no debate, no enfrentamento, no diálogo cotidiano, que temos construído as possibilidades para continuar a sustentar a política na qual acreditamos: uma política não segregativa, como já anunciou o Beneti. Vamos ao texto.

No meio de todo caminho, sempre haverá uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas
nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra.
(Carlos Drummond de Andrade, 2009, p.267)

Após se confrontar, inventar respostas para a questão: é possível um novo lugar social para a loucura? — pergunta que a fez surgir como uma política — a Reforma Psiquiátrica é, hoje, convocada a responder a outro e novo desafio. Qual o lugar e como responder aos que encontram nas drogas o modo de se experimentar humano? Encontro, vale dizer, nem sempre saudável ou feliz, mas ainda assim um encontro. Um modo de resposta ou solução adotada por alguns para tratar o mal-estar, sua falta de lugar. Enfim, uma solução, um dos destinos possíveis para a pulsão que pode e deve ser assim escutado e tratado. Um modo de resposta que pede à sociedade para não recuar diante de uma das expressões do dano causado pela civilização, sendo ainda capaz de formular a esse mesmo mal respostas solidárias, cidadãs e, sobretudo, singulares.

Um bom desafio. Ou melhor, um desafio que, para ser verdadeiramente bom e produtivo, deve provocar mais perguntas que respostas, mais dúvidas que certezas, menos expertise e mais vida. A política do mal-estar deve, ao mesmo tempo, ser capaz de ofertar e sustentar uma clínica cidadã, tratando em liberdade e com dignidade os que sofrem e, indo além de si, deve intervir sobre a cultura da exclusão que os ameaça. Uma clínica antimanicomial da toxicomania não pode se furtar a questionar os nomes com os quais a sociedade define a drogadição e os sujeitos que se intoxicam. Drogado, delinquente, criminoso, pecador ou doente são, sem exceção, identidades marginais e, como tais, coladas a um destino previamente traçado: fora da cidadania. Desconstruir tais identidades é condição preliminar para tratar a singularidade de cada experiência de drogadição.

A articulação entre a clínica e a política, pressuposto que há algum tempo nos orienta, novamente mostra sua validade. Campos distintos, porém conexos, que podem ser mais fecundos se e quando perpassados por uma mesma orientação ética. Tratar a drogadição, em sua dimensão singular, convoca o Estado e a sociedade a adotarem e oferecerem estratégias e recursos de proteção que reduzam os danos à vida, criando dispositivos de suporte necessário a cada situação, ampliando, desse modo, as respostas possíveis para o sofrimento, sem, no entanto, ceder à armadilha fácil do ecletismo, do vale-tudo. A complexidade e diversificação necessárias à criação de uma rede de atenção precisam de eixo, carecem, sempre, de orientação.

Se ao Estado e à sociedade cabe a tarefa de recusar o ecletismo produtor de excesso de ofertas sem orientação, repudiando também o atalho reducionista que adequa os sujeitos a um único lugar, do lado dos usuários, também ocorrem mudanças. O convite passa a ser outro: de submisso à norma contra a qual se revolta em sua escolha de satisfação pulsional, este é agora convidado a responder pelo próprio prazer, a encontrar sua medida, seu jeito próprio de minimizar os riscos, aceitando o desafio de “exercer sua liberdade”, como definiu um usuário de crack. Coisa difícil de fazer! Fácil, mesmo, é prescrever, ditar e escutar regras para disciplinar o prazer ou gozo, ainda que saibamos de antemão que são grandes as chances de fracasso.

Muitos são os desafios que espreitam a Reforma Psiquiátrica, nesse encontro com os usuários de álcool e outras drogas. Dentre estes, destaco dois. Primeiro, o desafio e a necessidade de distinguir, no meio da algazarra autoritária e silenciadora, a voz a ser escutada: a do usuário. Discurso ainda ausente no debate sobre a política, a palavra do usuário deve ser sempre a bússola a indicar o caminho. E, segundo, o desafio de manter a firmeza necessária para não ceder a pressões e chantagens políticas e sociais ofertando uma pluralidade de serviços orientados por éticas opostas. Querer conciliar o inconciliável é optar pelo atalho. Um tipo de solução ao mesmo tempo simplista e total, que quase sempre camufla diferenças em nome de interesses, por vezes, incompatíveis com os interesses públicos.

A Pedra No Meio Do Caminho: Epidemia Do Discurso Moral?

A pedra que se impôs ao caminho da Reforma: o crack, curiosamente, não é o principal anestésico adotado para tratar o mal-estar pela maioria dos jovens brasileiros. Ao contrário do que se afirma, os índices de consumo de crack no Brasil não chegam a 1%. De acordo com o último levantamento realizado pelo CEBRID, 0,7% dos jovens fez uso dessa droga uma única vez, ou seja, encontraram no crack, em algum momento de suas vidas, o lenitivo ou a distração que buscavam. E 0,2% estabeleceu com o mesmo uma relação de dependência. O número dos que usaram uma única vez, de acordo com o professor Elisaldo Carlini, um dos autores da pesquisa, permanece estável sete anos depois (0,7%). Ou seja, em 2011, o índice de consumo de crack entre jovens está longe de configurar uma epidemia. E, de acordo com o Prof. Carlini, o último levantamento sobre consumo de drogas revela que foi insignificativo o número dos que usaram crack mais de 20 vezes. Ainda de acordo com o CEBRID, as drogas mais utilizadas pelos jovens são o álcool, seguido pelo tabaco, depois os solventes, maconha, cocaína, crack, anfetamínicos, ansiolíticos, entre outros. Como se vê, são as drogas lícitas os meios mais utilizados para afastar o mal-estar.

Os dados do CEBRID coincidem com os levantados pela Equipe de Saúde da Família dos adolescentes privados de liberdade. Dispositivo de cuidado criado pela Secretaria Municipal de Saúde para atenção aos adolescentes infratores que leva a saúde ao encontro dos adolescentes, no tempo do cumprimento de uma medida. Entre os adolescentes privados de liberdade, o crack é utilizado por menos de 1%, sendo também bastante reduzido o número de ocorrência de crises de abstinência de drogas entre estes. E isso indica um modo de uso da maioria desses adolescentes que não se caracteriza como dependência.

Entre os meninos e meninas em situação de rua, público atendido pelo consultório de rua, dispositivo da rede de saúde mental criado para atender, prioritariamente, crianças e adolescentes nessa situação e que façam uso de álcool e outras drogas, ou seja, vivendo numa dupla situação de vulnerabilidade, a droga utilizada não é o crack. O tóxico que os anestesia é o mesmo de 30 anos atrás: thinner e loló.

Embaraçados e em conflito com a lei, os novos e pequenos sujeitos do perigo social têm recebido um duro tratamento para suas questões. O leque de opções ou de ardis, com os quais nosso tempo tem respondido a esses sujeitos, não os convida a fazer parte da comunidade humana. A resposta que nossa sociedade tem dado ao que escapa à norma, aos atos dos adolescentes que transgridem ou perturbam a norma social, tem condenado e conduzido parte de nossos jovens ao encarceramento precoce. Uma realidade que pede denúncia e reivindica oferta de dispositivos capazes de acolher o estrangeiro que habita esses pequenos corpos. Respostas que deem lugar ao mal e à loucura de cada um, possibilitando a invenção de modos singulares de inscrição da diferença no universal da cidadania.

Cabe, então, indagar aos que sustentam a existência de uma epidemia de crack no país sobre o que estão falando ou do que querem falar e quais são suas reais preocupações. Serão os perturbadores efeitos da drogadição hoje? Ou será o drama real dos que sofrem com a dependência?

Tratar o uso de crack ou de qualquer outra droga como uma epidemia pode, facilmente, nos conduzir à adoção e autorização de medidas de força, à implantação de ações repressivas que, além de precipitar intervenções sanitárias de caráter higienista, trarão pouco ou nenhum alívio à dor dos que, de fato, sofrem com as consequências de uma dependência. O tratamento de uma epidemia requer uma ação imediata e autoriza o Estado a intervir sobre a vida privada, e essas medidas costumam causar mais dor. Caso não se faça o corte, não se entoe a nota dissonante ao coro dos aflitos, a crença na existência de uma epidemia de crack acabará nos conduzindo ao desrespeito à democracia e aos princípios legais, reguladores do viver comum. É preciso cautela na escolha, pois já nos advertiu Guimarães Rosa: “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode estar sendo se querendo o mal, por principiar” (ROSA, 1984, p.16).

Um outro dado que chama a atenção não tem sido destacado no debate sobre as drogas, ou seja, o número dos jovens que estabelecem com as drogas uma relação de trabalho. A inserção de crianças e adolescentes nas redes de tráfico foi definida pela ONU como uma grave violação de direitos humanos, como a pior forma de trabalho infantil. E o Brasil é um dos países signatários desse tratado, fato que impõe a seus governantes e à sociedade a tarefa de responder a essa realidade com a urgência e a delicadeza necessárias. Crianças e adolescentes fora da escola, trabalhando para o tráfico, retratam uma violência socialmente produzida e sustentada. Trabalhar para o tráfico não é necessariamente uma escolha individual. Mas condição intimamente associada à miséria e à falta de escolhas.

Crack, Lixo, Cracolândia: O Que Essa Associação Indica?

O debate que coloca o crack como seu ponto central produz nomeações, inventa lugares e reedita políticas de segregação e exclusão como resposta para o mal-estar. Entre as nomeações propostas e os lugares inventados, uma faz eco pelo país: a chamada cracolândia. A imprensa insiste em sua existência, conhece o mapa de sua localização e afirma haver na cidade o lugar que é a pátria dos craqueiros. As imagens desse país distante/próximo, desse lugar êxtimo — distante porque ali se conjura e se tenta expiar todo o mal, toda a ameaça, demarcando a fronteira do inimigo a ser combatido, e próximo, porque, ainda que se insista e se repita a localização desse lugar como estrangeiro, apartado de nós, ele, entretanto, está encravado no corpo da cidade e traz os signos do imundo. Esse pedaço da cidade tem em comum com seus habitantes três condições: a sujeira, a ausência de beleza e a violência. É assim em São Paulo, também é assim em Belo Horizonte. Nesse ponto equidistante, porém cravado no corpo da cidade, a sociedade busca conjurar e expiar todo o mal, toda ameaça, demarcando a fronteira do inimigo a ser combatido. A população desse território, seus moradores e os usuários de crack vivem na mesma condição: à margem de quase todos os direitos sociais.

Cracolândias não são lugares em si, são efeito de discurso. Portanto, móveis, deslizantes. Hoje, na Pedreira, amanhã, poderá ser na Serra ou em outra favela qualquer da cidade. Essa alcunha preconceituosa, cracolândia, é, sobretudo, o modo como a imprensa e a cidade localizam e conjuram seu mal em territórios esquecidos pelo Estado. Lugar dos abandonados e pobres, onde lixo e sujeira se acumulam. Lugar onde homens e mulheres, invisíveis à cidade, dividem com o lixo um mesmo território.

O lixo que cerca os homens e serve de espelho para sua condição não é, contudo, uma escolha individual. É negligência pública, é hipocrisia social, que vê, nos corpos, sujeira e degradação, sem enxergar, ou melhor, ignorando a responsabilidade que cabe a todos e ao poder público na produção e tratamento adequado dos resíduos diários. Eis aqui uma tarefa que nos compete: o trabalho de desconstruir a articulação significante crack/lixo, pois sabemos que a mesma, além de evocar uma identificação com o dejeto, autoriza a violência e a arbitrariedade.

Cada época tem sua própria droga, afirmam alguns estudiosos. A nossa não poderia ser outra, senão o crack. Veículo que conduz ao prazer fugaz e imediato, bem de acordo com o ideal do nosso tempo, que prediz o consumo como um imperativo e uma necessidade inadiável. Uma máxima para a nossa sociedade poderia ser assim formulada: consumir, é preciso; viver, não é preciso. [1] Nessa sociedade de consumidores, diz Bauman,

[…] a percepção e o tratamento de praticamente todas as partes do ambiente social e das ações que evocam e estruturam tendem a ser orientados pela síndrome consumista, que, encurtando drasticamente o lapso de tempo que separa o querer do obter, coloca, entre os desejos humanos, a apropriação, rapidamente seguida pela remoção de dejetos, no lugar de bens e prazeres duradouros (BAUMAN, 2009, p.109)

Ou, nos dizeres de Saramago: “como tudo na vida, o que deixou de ter serventia deita-se fora. Incluindo as pessoas” (SARAMAGO, 2000, p.130). Noutras palavras: somos uma sociedade produtora de lixo, de restos materiais e sociais, viciada em consumo e em descarte.

A Pedreira Prado Lopes não é a cracolândia, mas continua a ser um bairro pobre, onde a violência é cotidiana. E onde, hoje, o uso do crack se faz em público. A fantasia do mal que circula pela cidade diz que o crack é próprio daquele lugar. Mas sabemos, ou temos razões para desconfiar, que ele está em todos os lugares: nos becos, nas bocas, nas favelas, mas também nos bairros nobres ou da classe média, nas escolas, nas casas, nas prisões. Circula pela cidade, de mão em mão, ou de boca em boca, e funciona não só como anestésico para a dor, ou via de acesso ao prazer solitário e pleno. É também objeto de trabalho e aditivo do qual alguns lançam mão, para poder produzir mais e melhor.

O efeito de adesão ao ideal capitalista é evidente no modo de uso do crack adotado, por exemplo, por pescadores e cortadores de cana-de-açúcar. No universo dos craqueiros, nem todos o utilizam para se desligar do mundo. Alguns, submetidos a desumanas condições de trabalho, usam crack para melhor se ajustar ao modo de produção capitalista, cada dia mais cruel e impiedoso. Muito bem ajustados à engrenagem capitalista, nem por isso esses sujeitos se salvam. Aqui, na Pedreira, encontramos uma versão desse modo de uso: trabalhadores, de áreas diversas (encrachazados, como brinca a equipe), sobem o morro, no fim do dia de trabalho, em busca de crack. Lá, fazem seu uso, retornam a suas casas e vidas, depois de um breve intervalo entre o labor e o prazer.

Em nossas andanças pelos becos e ruas, ao lado de usuários de álcool e outras drogas, vamos cuidando, recolhendo palavras, resíduo humano que ajuda a tecer o laço, e aprendendo com o que a realidade nos traz.

Extraímos da prática cotidiana pontos de orientação. Identificamos traços de diferença na relação com as drogas: efeitos e modos de uso. Aprendemos a reconhecer as drogas presentes em cada território e os cenários que propiciam ou que se criam no momento do uso. Com as crianças e adolescentes, por exemplo, identificamos um traço comum e sempre destacado nos estudos sobre população em situação de rua: o uso da droga como um momento de convívio e troca. Em torno do thinner e do loló, as crianças e adolescentes de rua, assim como os adultos de rua fazem com o álcool, se juntam, se conectam, dividem histórias e superam a solidão da vida nas ruas. A droga, nesse cenário, aparece como remédio para a dor singular, mas também como antídoto contra a solidão.

Nessa cena de uso de drogas, trabalhamos usando a disposição para o laço a favor de um tratamento possível, ou seja, estimulamos o convívio entre eles e a cidade, introduzindo na roda outros objetos: tinta, pincel, ingresso de cinema, circo, passeio, atividades, como modos substitutivos de satisfação pulsional, e convidamos a outros laços com a vida, com o mundo, com o Outro.

Esse tem sido o momento mais ameno, mais fácil. A dificuldade com essas crianças não é dada pela dependência do thinner ou do loló. Não é ditada pela droga, mas pelo osso da vida. Sem redes, equilibrando-se sobre o abismo da desproteção, “alimentando-se de blues” (HOLLANDA, 1984), esses meninos e meninas atiram pedras, ficam nus, caem, riem, são ameaçados de morte, esquivam-se ao contato, à aproximação, e resistem a abandonar o laço com a rua e seus perigos. Dizem: “prá casa não volto”. O nó dessa experiência passa pela conquista de uma morada para o cidadão que também acolha as questões do sujeito. Encontrar a via de retorno a casa e à família, sem tolas imposições de adequação ao que fracassou (a família) e sem tampouco precipitar a saída, enxergando casa onde há apenas simulacro desta, teto e cama, sem singularidade e afeto, traços marcantes da institucionalização das diferenças, tem-se mostrado uma dificuldade real. A saída aqui pede recursos de outras políticas, demanda o trabalho em rede, efetivo e potente.

Com o crack, a história é outra. “Quando uso isto aqui, não gosto de nada, não”, palavras de um usuário que demarcam o momento em que a abordagem não é bem-vinda. Gozo solitário, breve, desconectado do Outro, mesmo quando próximo, cuja possibilidade de entrada passa pelo adiamento de outra experiência de satisfação, gerando um intervalo que também é redução de danos.

Na estratégia de reduzir os danos, a saúde vai aprendendo a medida da satisfação com cada sujeito, oferecendo a cada um recursos parciais, pequenas estratégias que convidam a outro modo de cuidado de si. Deixando a droga à margem, cria chances para o sujeito, distraída, disfarçada ou decididamente, fazer perguntas, pedir ajuda, aceitar o laço com o Outro e se deixar acompanhar. Buscar o laço é orientação também nesse cenário. E aqui tiramos partido do intervalo. Entre uma pedra e a próxima, a acolhida e a conversa com a equipe, eis que surge uma novidade: a instituição, pelos usuários, da regra fundamental. “Não fumar, para conversar”. É preciso falar, colocar palavras, e não pedras, sobre o vazio, para fazer margem e circunscrever o gozo. A equipe se posiciona e trabalha buscando dilatar o tempo, fazendo mais atrativa e interessante a conversa que enlaça uns aos outros, permitindo que a palavra circule e crie possibilidades para que um pedido ou um convite ao tratamento encontrem condições para acontecer. E isso confirma que o contrário da dependência não é a abstinência, mas a liberdade.

É assim, na semeadura e coleta diária no campo de trabalho, com palavras e artefatos distintos, que se tecem os laços entre usuário, equipe e moradores do território, possibilitando a quem deseja e pede acessar as redes para escapar à destruição, seja pelo gozo irrefreado do objeto ou pela violência que envolve seu consumo e comércio.

Temos aprendido, a cada dia e com cada usuário, que o que toca a flor da pele, [2] convulsiona, aperta o peito e faz delirarem meninos, mendigos, malucos, bandidos, santos, padres e juízes não pede mais remédio, pede pensamento. Solicita mais poesia, mais arte, mais cultura, mais sublimação, contornos e direitos. Grades e prisões são dispensáveis. Para o humano, o que produz humanidade não é a grade, mas o Outro: seu desejo, seu corpo, cheiro, suas palavras, seu afeto e aconchego. É o laço com o outro e com a rede — invenção que se faz com homens, ideias e afetos para fazer caber homens, ideias e afetos — o que permite a construção de saídas possíveis.

Concluindo: “Enquanto todo mundo espera a cura do mal, e a loucura finge que isto tudo é normal, eu finjo ter paciência” (LENINE; FALCÃO, 2000).

O que fez surgir uma política pública de atenção aos portadores de sofrimento mental foi a ousadia de pensar diferente do estabelecido, num momento em que isso era uma ofensa mais grave do que hoje. Além do questionamento à instituição psiquiátrica, tida como insubstituível, pensar diferente do que propunha o Estado, naquele momento político, podia ter consequências muito diversas e mais duras que a mera diferença de ideias.

Pensar o inexistente, a sociedade sem manicômios, desejá-la real num futuro que fosse a consequência de nosso presente e a substituição rigorosa e efetiva de nosso passado antecedeu toda e qualquer condição de fazer existir um novo locus para uma prática democrática e viva de trato e relação com a loucura. Portanto, foi da força de uma ideia, de uma proposição desconcertante, vinda de um lugar não autorizado socialmente como produtor de pensamento — o movimento social — que um acontecimento histórico se forjou e se inscreveu como condição de vida a ser inventada na liberdade.

Patrimônio de uma luta e fonte renovável de recursos que a permite ir além e enfrentar obstáculos, cuja valorização e defesa se fazem necessárias, num tempo que busca, por diferentes estratégias, reduzir a tudo e a todos à dimensão de algo a ser contabilizado, medido. Um tempo no qual todo excesso, não importa se de vida, de desejo, sonho, tristeza ou dor, deve ser reduzido ao padrão da norma, deve ser enquadrado, anestesiado, silenciando toda pergunta. Eis aqui um sutil obstáculo ou desafio posto no caminho da Reforma Psiquiátrica e da psicanálise: a redução do homem a um objeto contabilizável e do psiquismo às reações neuronais ou bioquímicas.

O acúmulo ético/prático e teórico construído pela Reforma Psiquiátrica tenta alcançar os novos sujeitos do perigo social: os cidadãos que fazem uso ou abusam de drogas lícitas e ilícitas. A política que ousou romper com a exclusão e a segregação, como modos de respostas à loucura, toma posição e busca responder às questões postas pelos que encontraram nas drogas a via para escapar ao mal-estar, sem ceder à demanda social que demoniza e criminaliza uma experiência eminentemente humana. Seu encontro com os usuários de álcool e outras drogas terá mais chances de êxito, caso saibamos, todos, tirar proveito de um dos aprendizados da clínica com a loucura em liberdade, que é a capacidade de saber ver além do que o olho da razão é capaz de captar, para escutar a verdade do desejo de cada um de nós. Essa é nossa real expertise e é o que de melhor temos a oferecer aos novos e antigos demônios. Não é mais técnica, e sim mais vida.

O presente e o destino da Reforma Psiquiátrica e dos que fazem uso de álcool e outras drogas nos convocam a tomar posição política.

A nós: militantes da causa e descoberta freudiana e da luta contra todos os manicômios; a nós, meio tortos, que nascemos com a sina de não nos furtamos de tentar ajustar um mundo torto; que nos recusamos a ser reduzidos à condição de servidores de uma normalização do homem, que não recuamos da posição de testemunhas de uma prática e de um pensamento de insubmissão, em que solidariedades se buscam, na construção de um tempo melhor, terminamos lembrando o que nos ensina Freud: “[…] a vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis” (FREUD, 1929, p.93). E pede-nos, acrescentamos com Guimarães Rosa, coragem. Coragem, para viver e seguir fazendo valer nosso desejo, a despeito de todas as pedras no meio de nossos caminhos.


REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 64.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Record, 2009.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
HOLLANDA, Chico Buarque de. O que será (a flor da pele). In: ______. Meus caros amigos. São Paulo: Phonogram, 1976. Vinil.
______. Brejo da cruz. In: ______. Chico Buarque. São Paulo: Universal, 1984. Vinil.
CEBRID. Centro Brasileiro de Estudos sobre Drogas Psicotrópicas. V levantamento sobre consumo de drogas psicotrópicas entre estudantes do ensino fundamental e médio da rede pública das 27 capitais. 2004.
FREUD, Sigmund. (1929) O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.75-171. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXI.)
LENINE; FALCÃO, Dudu. Paciência. In: LENINE. Na pressão. São Paulo: Sony BMG Brasil, 2000. CD, digital, estéreo. Acompanha livreto.
PESSOA, Fernando. Palavras de pórtico. In: ______. Poesias. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 16.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[1] Paráfrase dos versos: “navegar é preciso; viver não é preciso”, de Fernando Pessoa (PESSOA, 2007).
[2] Referência à canção “O que será (a flor da pele)”, de Chico Buarque de Hollanda (1976).

Rosimeire Silva
Psicóloga, coordenadora de saúde mental de Belo Horizonte. E-mail: Silva-rosemeire2004@ig.com.br



A toxicomania não é mais o que era

ANTONIO BENETI

O mundo das toxicomanias, em 28 anos, aqui em Belo Horizonte, mudou. No Brasil mudou, no mundo mudou! Então, temos que pensar no fenômeno da toxicomania contemporânea, seu lugar, sua função, sem exclusão da singularidade de cada um dos consumidores. Foi assim que eu desenvolvi o que eu vou colocar para vocês, no sentido de algumas considerações para se pensar a questão do tratamento do toxicômano hoje. Isso porque, se, nesses 28 anos, esse mundo mudou, temos que pensar na toxicomania ontem e hoje, para refletir sobre o tratamento do toxicômano ontem e hoje.

Eu entendo que, no tratamento do toxicômano, hoje, nós estamos engatinhando, estamos num momento de não saber como fazer com as novas formas da toxicomania; e entendo que isso aqui nos aproxima hoje do campo da psicanálise e do campo da saúde mental. É evidente que se Lacan nos deixou um “não recuar diante da psicose”, e nós assim o fazemos hoje, ontem, não recuamos diante da toxicomania, do tratamento do toxicômano. Isso a partir do estabelecimento de um princípio ético não segregativo: “Necessário hoje não recuar diante desse real contemporâneo, que é o consumo de drogas”. Então, enquanto analista, estou de acordo com ele, devemos desejar saber o que se passa e nos posicionarmos a partir do que temos como princípio político (não segregação do sujeito do inconsciente), com suas estratégias e táticas para lidar com a questão.

Então, o que ocorria ontem? Ontem, em Belo Horizonte — estávamos em 1983 — nossos usuários de drogas, indistintamente, quando eram surpreendidos, pegos usando droga, eram “encarcerados” no depósito de presos da Gameleira enquanto “objetos de tratamento” da polícia. Não havia a inscrição desse tipo de sujeito nos campos da medicina, da psiquiatria e da saúde mental. Nem mesmo um discurso jurídico tinha tanta importância nessa época, mesmo já com a existência da presença dos advogados, do relaxamento da prisão, etc… E mesmo com somente os traficantes, que eram poucos, sendo enquadrados numa lei, como ato criminoso, etc.

Na época, qual o ato que calculamos fazer e fizemos?

— “Vamos escutar esse tipo de sujeito, vamos dar a palavra a esse tipo de sujeito”, desejando saber por que ele consome essa “substância-droga”, esse “significante encarnado”; por que ele se droga; qual o lugar e a função desse objeto droga nas três dimensões da economia psíquica do sujeito (Real, Simbólica e Imaginária); por que isso era importante para o sujeito; o que ele queria com isso… Foi assim que começamos a construir uma “clínica não segregativa com o sujeito dito (pelo Outro do social) toxicômano”.

Nessa época — eu vou dizer “o mundo de ontem” com uma formulazinha: o “i” grandão, o I maiúsculo, maior que o a minúsculo (I>a). Os “Ideais na cultura maiores que os objetos mais-de-gozar”. Isso, ontem. Então, toda clínica construída no tratamento do sujeito dito toxicômano, nomeado assim, porque consumia droga, teria que ser referida a essa estrutura de funcionamento do mundo, estrutura de funcionamento da cultura. Aí, tínhamos então que o sujeito podia, muitas vezes, passar ao ato de se drogar, e ele passava a se drogar com o objeto fora da lei. Chamávamos isso de uma “transgressão”. Era uma “passagem-ao-ato transgressiva”, nomeado, o sujeito, enquanto toxicômano. Começamos a pensar que deveríamos escutar o sujeito nessa passagem-ao-ato, em sua singularidade, um-a-um.

Introduzimos, então, no que foi possível, um deslocamento do problema, que estava no campo policial, primeiro para o campo médico, e depois para o campo, talvez eu deva chamar, da saúde mental. Porque não era a psiquiatria, a saúde mental não tinha essa força, era um trabalho praticamente isolado, iniciativa de alguns analistas, no caso, eu, Jésus Santiago e José Mário Simil Cordeiro, que fomos para construir esse serviço.

Abrimos espaço, então, para profissionais orientados analiticamente, com informação analítica, que estavam na experiência analítica enquanto analisantes e analistas em formação, para começar a escutar esses sujeitos, dentro de um determinado lugar, que viemos a chamar de Centro Mineiro de Toxicomania. Não sem antes passar como “pontos significantes” de um percurso, por uma instituição chamada de Centro de Recuperação Social, onde eles estavam colocados como delinquentes, no então depósito da Gameleira, como marginais. Depois, para Centro de Reintegração Social, e depois, Centro Mineiro de Toxicomania. Se nós prestarmos atenção a esses dois significantes, recuperação social e reintegração social, o sujeito estava colocado “fora”, ou seja, deveria reintegrar-se a um bom tipo de comportamento. Se nós pensarmos bem nesse primeiro momento, que era então encarcerar o toxicômano para proteger a sociedade, já operava um fundamento da lógica manicomial que é a “díade proteção-exclusão”: “Nós te internamos para te proteger, mas, ao mesmo tempo, te excluímos do laço social”. Esse é o principal fundamento da lógica manicomial.

É a esse fundamento manicomial que nós temos que estar atentos hoje. Fundamento que, politicamente, põe a ênfase, o acento, no objeto droga, o que leva a uma nomeação do sujeito generalizadamente, independentemente da singularidade, da subjetividade, das relações do sujeito do inconsciente com o mais-de-gozar, com o gozo, colocando a dimensão de uma díade da proteção-exclusão que nós devemos combater. Esse é o divisor de águas, é o ponto de combate: o princípio de tratamento centrado na abstinência do consumo com exclusão da subjetividade, da singularidade de cada usuário ou consumidor. O pressuposto oficial — a droga faz o toxicômano — que nos afirma imperativamente que se você usa a droga, você é toxicômano, e que todos que se drogam são toxicômanos, determina um “são todos iguais”, com uma homogeneização nominativa e um tratamento dos chamados toxicômanos numa clínica que chamamos de “segregativa”. Segregativa no sentido de que, a partir de um “nós”, todos são comandados por esse nome, excluindo a subjetividade. Vou colocar no quadro o que chamamos de segregação:

Discurso do Inconsciente

No lugar de S1, eu tenho um nome: toxicômano. Temos um: “Você é toxicômano!”, e isso comanda um S2, “saber fazer” do sujeito que consome a droga para sustentar essa nomeação vinda do Outro, do social (“Sim, eu sou toxicômano!”), para fazer gozar — lugar do mais-de-gozar essa nomeação enquanto produção nesse discurso, o discurso do inconsciente. No lugar da verdade, nesse discurso, enquanto verdade dessa lógica terapêutica, centrada no princípio da abstinência, nós temos a exclusão do sujeito do inconsciente. Então, é a exclusão da subjetividade inconsciente. Uma clínica que chamamos de segregativa. No discurso da segregação, temos a amputação do sujeito do inconsciente em suas relações com o mais-de-gozar. É o discurso do mestre amputado no lugar da verdade, transformando-se num discurso segregativo de três termos apenas:

Discurso da Segregação

Então, nós temos que estar atentos com o que, hoje, isso pode operar novamente, vamos dizer assim: todos os que usaram crack ou que usam crack são “crackeiros”. Eu acho que não é bem assim. Então, o sujeito está fora. Temos que introduzir o sujeito e enfrentar toda essa lógica do discurso oficial que diz que todos os que usam drogas são toxicômanos, e que a droga faz o toxicômano.

O que fizemos? Introduzimos a subversão dessa lógica com uma frase vinda de nosso colega e amigo francês Hugo Freda (na ocasião, Diretor do Centro de Acolhimento e Tratamento de Toxicômanos de Reims, França), que trouxemos a Belo Horizonte para fundarmos nosso serviço no campo ético do tratamento dos toxicômanos. Com as mesmas palavras, Hugo modificou essa frase: “O toxicômano faz a droga!”.

“Se a droga faz o toxicômano”, Hugo Freda propôs que: “Para eu abrir uma porta, eu tenho que construir uma chave, e a minha chave é a seguinte: o toxicômano faz a droga”. São as mesmas palavras, as mesmas letras, só que a ênfase que era posta no objeto droga é posta, agora, no sujeito.

Introduz-se, então, o sujeito do inconsciente, lá onde não havia esse sujeito — ele estava excluído. Restitui-se ele ao lugar dele, e restitui-se o discurso que rompe com a segregação. Então, é a introdução do sujeito do inconsciente nas suas relações com o gozo. Dar a palavra ao sujeito para que ele venha a nos dizer o que ele, inconscientemente, quer com o consumo de drogas. O que ele quer com esse objeto e não o porquê do uso de drogas. Qual a importância desse objeto, qual o lugar desse objeto, qual a função desse objeto droga.

Nós introduzimos o sujeito, introduzimos a singularidade do sujeito, as particularidades das estruturas clínicas. Era assim na época, época de uma clínica psicanalítica estrutural, das estruturas clínicas — Neuroses, Psicoses e Perversões — característica do primeiro ensino de Lacan. Então, rompemos com o princípio de abstinência, porque nós percebíamos que, quando o sujeito parava de se drogar, em muitos deles, eclodia um quadro psicótico, desencadeava-se um quadro psicótico, o que já furava aquela lógica, permitindo-nos propor que: nem todos que se drogam são toxicômanos. Muitos que se drogam são psicóticos. Isso, centrado na escuta, nos sinais da forclusão do Nome-do-Pai, impedindo-nos de pensar a questão generalizadamente.

E havia outros que não aceitavam essa nomeação de toxicômanos. Eles não a aceitavam porque foram surpreendidos se drogando, que um outro, representante desse Outro do social, dissesse: “Você é toxicômano!”. Esses diziam: “Eu não sou toxicômano, eu uso droga quando vou a uma festa, quando vou sair com os amigos, recreativamente”. Uma posição de consumo de drogas com a droga posta como um S1 identificatório grupal, de enlaçamento social.

Então, distinguimos usuários de drogas, geralmente neuróticos, e os psicóticos que faziam desse uso de droga algo que viria a substituir a produção de um delírio, impedindo a produção desse delírio, como uma suplência imaginária a isso que Lacan chamou de forclusão do Nome-do-Pai. E existiam os outros que, de fato, não eram psicóticos, não eram neuróticos, e sustentavam essa modalidade de gozo, do consumo de drogas, com certa característica de ironia em relação à lei. Eles sempre transgrediam as normas da instituição; não se comportavam como os psicóticos, nem como os neuróticos. É aí, nesse ponto, que escutamos, um tempo depois, um texto de Jacques-Alain Miller — “Algumas considerações sobre gozo auto-erótico” — em que ele introduz a dimensão de um gozo cínico na toxicomania, um gozo autoerótico, fazendo menção ao cinismo de Diógenes, o cínico. Cinismo com relação aos ideais da polis grega. Diógenes se masturbava em público, gozando, extraindo o gozo do próprio corpo, dispensando os significantes que vinham do Outro da cultura grega, do corpo de Ideais da polis grega. Então, a esse gozo, Miller chamou cínico. Isso nos ajudou muito clinicamente.

Então, vejam bem que, a partir desse momento, há um enriquecimento da clínica com o toxicômano, trabalhando um-a-um para saber o lugar e a função desse objeto droga para a economia psíquica do sujeito.

É verdade que, naquela época, e isso mudou também, as drogas eram quais? Optalidon, barbitúricos, analgésicos, maconha, os xaropes antitussígenos à base de codeína — que produziam os “boiadeiros”, assim chamados porque, após beberem um ou dois vidros desses xaropes, ficavam “pastando”, andando cambaleando, com alteração de consciência. Eram chamados de “boiadeiros” por eles mesmos. O curioso é que eles, às vezes, chegavam a ter convulsões tônico-clônicas que chamavam de “pala”. A “pala” era interpretada como um ponto de basta no consumo da droga, uma convulsão que fazia as vezes de “Um-Pai” interditor do excesso do mais-de-gozar. Era preciso atingir a “pala” para depois parar de se drogar. Havia ainda o tetracloroetileno (um vermífugo), a metaqualona (Mandrix e Mequalon, hipnóticos), o LSD e a cocaína. Essas eram as drogas de ontem.

Então, vejam bem que nós nos posicionamos aí com a ferramenta que temos: com o discurso analítico, a ética da psicanálise enquanto bem-dizer e um combate à clínica oficial segregativa. Tínhamos para nós o seguinte: há casos que não conseguimos tratar sem uma parceria institucional, o que justificava a instituição para tratamento dos toxicômanos. E nós dizíamos que a instituição elimina, forclui, não deixa que o discurso analítico seja incluído entre os discursos que estruturam o lugar terapêutico que é a instituição. A instituição é o lugar dos quatro discursos formalizados por Lacan (mestre, histérico, universitário e analítico).

Então, deve haver o analítico. Isso fundou de alguma maneira essa nossa instituição, que não trabalhava com internação. Tinha o hospital-dia e o ambulatório. Era assim que dirigíamos os tratamentos nesses espaços institucionais.

Então, nós dissemos: Centro Mineiro de Toxicomania. Toxicomania aí não é nada mais, nada menos, que um significante que utilizamos estrategicamente para justificar a instituição e trazer os toxicômanos a ela, a partir dessa nomeação “toxicômanos”. Fazendo um semblante de que estávamos preocupados com o objeto droga, mas a preocupação era mais além do objeto droga, era com o sujeito do inconsciente em suas relações com o mais-de-gozar.

E qual era a política? Dar a palavra ao sujeito da fala e estabelecer uma clínica sob transferência, um-a-um nesse tratamento. Tratava-se de estabelecer, entre os princípios de cura, na clínica dos toxicômanos, princípios fundamentais para uma clínica não segregativa, fora da lógica manicomial, fora da díade da proteção-exclusão do laço social, fora do princípio da abstinência, que se aplica a um “universal” de que “a droga faz o toxicômano”, e como o DSM-IV, que coloca o todos iguais enquanto “dependentes químicos”.

Os princípios eram: “O toxicômano faz a droga”.

1- Introdução do sujeito do inconsciente.

2- Introdução de uma clínica sob transferência.

3- Nem todos que se drogam são toxicômanos verdadeiros.

4- Questão da singularidade de cada um em questão.

5- A Instituição enquanto lugar terapêutico.

6- A Instituição enquanto lugar dos quatro discursos tem que incluir o discurso do analista.

Isso ontem.

O que ocorre hoje? Hoje, há uma mudança radical: os objetos mais-de-gozar maiores do que os ideais (I<a). As palavras de ordem, medidas socioeducativas, etc… Então, nós temos a maior que I.

Hoje, podemos dizer de uma outra forma: “Todos toxicômanos!” Todos consumistas, consumidores, não somente dessas drogas ditas ilícitas, foras da lei, mas as drogas legalizadas que todo mundo, praticamente, consome.

Eu gostei muito de um texto que chegou a partir do Fórum de Saúde Mental para eu ler, que se chama “A Doença Mental Medicalizada” (in Revista Piauí, n.59). Eu recomendo a leitura desse texto para todo mundo psi. Impressionante esse texto. É um tema que me interessa muito, e aí podemos observar, escutar, como o discurso da ciência via indústria farmacêutica constrói, fabrica, o “todo mundo se drogando”.

Então, o mundo mudou! Aí é que entra a questão de que essa mudança implica a mudança do mestre de ontem para o mestre de hoje. Se o mestre de ontem era o discurso do mestre, discurso do inconsciente, hoje, nós temos o mestre contemporâneo, o discurso capitalista, em que há um declínio dos significantes dos Ideais na cultura. Assim, o S1 cai, o sujeito sobe, e aqui nós temos o saber da ciência produzindo objetos mais-de-gozar.

Discurso Capitalista

O discurso da ciência, inerente ao discurso capitalista, é responsável, então, pela produção dos gadgets, das drogas supostamente terapêuticas, e por esse consumo impressionante de drogas, de químicas, de ascensão do saber químico ao comando, colocando os consumidores como objetos comandados por esse saber químico.

Então, o que ocorre, hoje, como essa mudança e as mudanças na sociedade?

De repente, aparece uma população à margem dos laços sociais, à margem do sistema de produção e que consome uma substância quase que de forma epidêmica, que coloca a dimensão do sujeito como resto, dejeto, dentro dessa sociedade de hoje, resto social, resto dessa produção, desse discurso, simples objetos degradados e que colocam uma dimensão de passagem ao ato diferente daquela que presenciamos ontem.

E é aí que a coisa é preocupante. E é por isso que estamos aqui reunidos.

Como fazer com isso? Porque é a preponderância da passagem-ao-ato homicida, não é mais uma passagem ao ato transgressiva, no sentido de se conseguir algo do qual se podia gozar mais além do interdito da lei. É uma passagem-ao-ato homicida, uma associação com o tráfico que tem um poder econômico muito forte e coloca a dimensão de uma periculosidade social epidêmica. Então, nós vivemos numa dimensão de risco o tempo todo… de bala perdida, de gente matando, criança morrendo, sendo assassinada, e não temos muita solução até o momento.

Eu li aquela revista Brasileiros, em que tem um colega, Antônio Lancetti, eu não o conheço, dizendo da passagem do basagliano Franco Rotelli por São Paulo. Quando eles foram visitar a Cracolândia, ele falou: “Isso é um manicômio a céu aberto!” É uma expressão importante, mas será que a saída seria um manicômio a céu fechado? Não creio, porque aí entrariam todos dentro dessa lógica, nós retrocederíamos e perderíamos muito daquilo que conseguimos fazer a partir de 79. Foi a reforma psiquiátrica. Mesmo que tenhamos muitas dificuldades, há muitos avanços. Seria, então, algo da ordem de um retrocesso.

Dever-se-ia pensar uma nova modalidade de lidar com essas novas toxicomanias, diferente da do mundo de ontem. E o crack é o representante maior. Nós temos, hoje, drogas diferentes, com o discurso da ciência produzindo o ecstasy, skank, óxi, etc… são drogas completamente violentas, que colocam o sujeito numa alienação, numa posição de objeto, resto degradado, lixo da sociedade, que quando sai dessa dimensão, é sob a forma de uma passagem-ao-ato homicida, como se fossem delinquentes, mas então vamos retroceder. Esse é um problema que nós temos que pensar: como construir soluções novas, contemporâneas.

Então o que temos a pensar? Se a instituição mais adequada ontem era a instituição enquanto lugar terapêutico, lugar dos quatro discursos, fora da díade da lógica manicomial proteção-exclusão, como pensar uma instituição hoje que considere o discurso analítico como algo muito importante, para zelar por essa não exclusão do sujeito, para zelar por essa não segregação, sabendo que existe mais um discurso dentro de qualquer instituição que venha a ser fundada hoje, que é o discurso capitalista?

Vai ser ele que vai fundar. Então, nós teríamos que fazer parceria sim, discurso do analista com o discurso do mestre, discurso do estado, discurso externo, discurso de instituição de saúde mental, sabendo que, na verdade, nós temos algo coletivamente, chamado o coletivo desses, o conjunto desses quatro discursos para combater um que é o discurso capitalista, senão nós vamos ter instituições capitalistas malucas e não vamos poder fazer quase nada. O motor desse discurso é o discurso da ciência, vamos dizer assim, da ciência e tecnologia, e não vai ser difícil pensar que nós teremos futuras instituições, manicômios a céu fechado, para tratamento dos “crackeiros”, com drogas, com substâncias, porque tudo vai ser pensado no nível do cérebro. Então, para tratar o consumo de droga, nós vamos fazer outro consumo de droga para tratar esse tipo de sujeito, excluindo de novo a dimensão da subjetividade, da singularidade, do um-a-um, do caso a caso.

Evidentemente, há situações em que o sujeito está à beira da morte; há situações dramáticas, quando devemos colocá-lo numa clínica, pelo menos durante uma semana, para que ele se recupere, se alimente, se hidrate, para depois seguir um tratamento.

Bom, eu estava dizendo desse quadro dramático, que o crack preocupa mesmo. Ontem, eu vi um desses jornais, Aqui, esses que “têm sangue”, esses tabloidezinhos, e vi uma coisa impressionante: aparece uma foto de dois pés do sujeito com sapato, acorrentado. A mãe desesperada, não sabia mais o que fazer. Eu entendi assim, que ele foi pego pelo pé, amarrado ali, para que o sujeito não saísse. “Única maneira que eu tive foi amarrar os pés dele para ele não sair para a rua, não roubar as coisas, não vender isso, não se drogar, porque eu tenho que trabalhar para sustentar meus filhos”, disse a mãe.

Então, nós temos situações que chegam a esse nível dramático e violento, do sujeito correndo risco de vida, de matar ou de morrer. Bom, minha opinião é a de que qualquer tentativa de se construir algo que não seja simplesmente dar a palavra, e que tenhamos que proteger o indivíduo e resgatar ali o sujeito, não deve passar pela exclusão social.

Como pensar algum lugar terapêutico? Primeiro: é hora de somar os esforços — que inclua decididamente os analistas, o pessoal da saúde mental, as equipes multidisciplinares para combater esse mestre contemporâneo que vem ditando todas as normas baseadas no “Deus cérebro” para tratar tudo.

Eu fico por aqui.

Obrigado!

[1] Intervenção pronunciada na VII Conversação da Seção Clínica do IPSMMG, realizada em 10/09/2011. Texto estabelecido por Ana Elisa Maciel, revisado por Márcia Mezêncio e pelo autor.

Antonio Beneti
Psiquiatra e psicanalista, Analista Membro da Escola (A.M.E.) da EBP-CF /AMP – Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano / Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: aabenetti.bhz@gmail.com