A urgência do falasser e a presença sutil do analista: qual encontro possível?1

Laura Rubião
Psicanalista, membro da EBP/AMP
lauralustosarubiao@gmail.com

Resumo: O texto explora certas nuances do que se pode conceber como “presença do analista” em nossa época, diferenciando-a de algumas concepções tradicionais que evocam o analista como figura neutra, passiva ou desinteressada.  Ao contrário, o analista se faz presente como aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo. 

Palavras-chave: analista; urgência; gozo; sinthoma.

Abstract: The text explores certain nuances of what can be conceived as the “presence of the analyst” in our time, differentiating it from some traditional conceptions that evoke the analyst as a neutral, passive or disinterested figure. On the contrary, the analyst is present as the one who chooses to be beside the urgency of the parlêtre and the symptomatic solution of each one in the face of the real of jouissance. 

Keywords: analyst; urgency; jouissance; sinthome. 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

O XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano tem por título um dizer que, a partir do modo exclamativo – “Analista: Presente!” –, nos conclama a trabalhar o lugar por meio do qual o analista pode se fazer presente nos dias de hoje, tanto na análise quanto fora dela, nas questões de sociedade, como nos aponta Fernanda Otoni Brisset em seu texto de orientação, renovando a pertinência de recolocarmos a questão de como o analista pode estar à altura do horizonte de sua época.

Esse título teve como inspiração – certamente não a única, conforme nos observou Romildo Rêgo Barros – os embaraços provocados sobre a nossa prática a partir do acontecimento imprevisto da pandemia, quando, por força das circunstâncias, recorremos aos aparatos tecnológicos para recebermos nossos analisantes. A partir daí, teve início todo um debate em torno das implicações decorrentes dessa nova forma de presença virtual do analista na clínica.

Seja no modo virtual, seja no modo presencial, na esfera clínica ou política, no divã ou nas instituições, o lugar de onde o analista pode dizer “Presente!” implicará sempre o regime das sutilezas analíticas, tal como definido por Miller em seu curso de 2011.

Inspirado por Freud, ele vai buscar em Pascal uma orientação para o que se entende por “coisas de fineza”, ou “sutilezas” analíticas, em oposição às coisas de geometria, que são racionalidades, inferências e construções baseadas em premissas lógicas demonstráveis pela cadeia das razões. As tais “coisas de fineza” são aquelas que “se sentem” e devem ser apreendidas “subitamente em um só golpe de vista” (MILLER, 2011, p. 28). Essa apreensão súbita nos envia ao modo como Lacan identifica, em seu último ensino, o rastro do Ics real como une bévue (um tropeço), ou seja, o que irrompe inesperadamente no espaço de um lapso e se realiza como acontecimento de dizer, e não como um desdobramento de saber. É o que celebra o choque da linguagem sobre o corpo e dá lugar a um significante novo, uma invenção da língua. O que importa e se torna genuíno no último ensino de Lacan é que a linguagem produz um acontecimento disruptivo no corpo e é exatamente essa efração que faz brotar o elemento heterogêneo que não se deixa reabsorver pela estrutura, a qual tece incessantemente a trama do destino.

O analista faz par com essa urgência do falasser (LACAN, 1976/2003, p. 569) e isso nos autoriza a dizer que o analista marca sua presença, tomando partido do inconsciente real. Ele renuncia, desse modo, a encarnar a postura que lhe é atribuída tradicionalmente, a saber, a da “neutralidade benevolente”, sem, tampouco, adotar qualquer postura “ativa”, tal como preconizado por Ferenczi. 

Estar presente e não bancar o mestre

O lugar de onde se pode dizer “Presente!” inclui, portanto, uma sutileza dessa ordem: não operamos mais no campo da neutralidade, que serviria como um refúgio para o analista, mas também não adotamos, como nas psicoterapias, uma postura ativa que reforçaria o engodo de um lugar de mestria. Essa sutileza evoca, como apontou Freud, uma dificuldade no caminho da própria psicanálise, que não se furta em lidar com as irrupções do não todo, com aquilo que não cede à lógica da decifração e da ampliação do sentido.

Em seus chamados “Artigos sobre a técnica”, Freud nos dá um testemunho vigoroso desse cristal analítico, numa época em que ainda trazia ao mundo a novidade da psicanálise. A partir da densidade de seu projeto clínico, ele tratava de diferenciar a arte da psicanálise das chamadas psicoterapias pautadas na técnica da sugestão. Lembremos, por exemplo, retornando ao texto “Os caminhos da terapia analítica”, que Freud (1919/2017) se opôs radicalmente à chamada “postura ativa” do analista defendida por Ferenczi. Essa técnica tinha um propósito claramente ortopédico e foi estabelecida como uma suposta solução para momentos em que o trabalho analítico parecia se estagnar, sem surtir os efeitos esperados, a saber, os efeitos de ampliação do sentido e rememoração no âmbito do Ics transferencial.

Em seu comentário, Freud refere-se ao artigo de Ferenczi intitulado “Dificuldades técnicas de uma análise de histeria”, no qual relata-se o caso de uma jovem que se mantinha estagnada em relação aos avanços de sua análise. Ele pré-fixou, sem sucesso, o prazo final do tratamento, interrompendo-o prematuramente. A jovem acaba retornando à análise com sintomas agravados; foi quando o analista observa a posição das pernas crispadas sobre o divã em postura masturbatória. Entendendo que esse movimento absorvia a energia psíquica empobrecendo o material associativo, ele intervém proibindo essa postura, o que deu lugar às rememorações de cenas traumáticas da infância. Desses experimentos clínicos, Ferenczi pôde extrair uma regra geral para o tratamento, que consistia em coibir as tendências das atividades autoeróticas dos pacientes que acabavam consentindo com a renúncia a esse tipo de prazer infantil, substituindo-o pelo regime da satisfação genital normal.

Freud se mostra bem mais cauteloso quanto ao manejo dos percalços transferenciais na análise, inclusive reconhecendo situações em que o curso do desenlace de uma cura é obstruído pela formação de “novas satisfações sintomáticas substitutivas” (FREUD, 1919/2017, p. 198) que se interpõem no caminho da análise, bloqueando o rumo em direção à cura. Enquanto Ferenczi pretendia normatizar o corpo tomado pelo excesso de gozo pela via do sentido edípico, Freud soube ler esses excessos como uma verdadeira pedra que se impõe no caminho de uma análise, a larva do real que não se absorve pelo sentido, persistindo como resíduo sintomal. Esse resíduo pode assumir, na clínica, o formato da chamada reação terapêutica negativam que atua como obstáculo ao desenlace da análise. 

O real e o mistério do corpo falante

Ainda assim, e apesar dos esforços do próprio Freud em reconhecer que a ficção simbólica não drena todo o impacto do inconsciente real sobre o modo de gozo dos sujeitos, sabemos que a psicanálise ficou reconhecida como uma espécie de hermenêutica, que teria trazido ao mundo a chave do mistério do corpo histérico recortado pelo significante. O próprio Lacan, nos anos 1950, atribui a Freud a coragem de “interrogar a vida em seu sentido” por ter sabido desvendar, tal como um iniciado dos antigos mistérios, o falo enquanto significante ímpar na regulação dos impasses da falta a ser (LACAN, 1958/1998, p. 648-649). Com efeito, a interpretação analítica dificilmente se separa da suposição de um saber incrustado no real do corpo, um saber que conjuga o mistério e seu desenlace através da operação significante que nos permite reconhecer o desejo articulado à trama ficcional na qual se apoia Outro da verdade.

O último ensino de Lacan se empenha em desconstruir, até certo ponto, essa vertente sólida do analista intérprete que está sempre disposto a correr atrás da verdade a partir de uma escuta ancorada na suposição de saber. Miller (2012) localiza o modelo do corte como o paradigma da clínica no último ensino de Lacan, um corte que faça florescer o esp d’un laps e opere contra a debilidade mental do Ics ficcional.

Sustentar a dignidade ética desse ato que visa cernir o impossível a partir da contingência é a sutileza maior da presença do analista no mundo hoje, e isto acontece em uma dimensão que nada tem a ver com passividade ou com a atividade, mas com uma espécie de escolha forçada muito particular.

Em seu texto “Ponto de basta”, Miller opõe à chamada neutralidade benevolente – em alusão à postura clássica de reclusão e isenção atribuídas ao analista freudiano – a questão da escolha que envolve o gosto, o sabor, que estão enraizados no corpo, “no gozo do corpo, e no sinthoma” (MILLER, 2018, p. 27).

Essa posição standard do analista (da neutralidade benevolente) teria sido extraída, de acordo com Miller, a partir de uma leitura enviesada do cenário da técnica freudiana, sobretudo do que se pôde ler em um dos conselhos dirigidos aos médicos em 1912, no qual Freud retoma o caráter cirúrgico da operação analítica, “deixando de lado toda reação afetiva e até mesmo toda simpatia humana, para só ter um único objetivo: levar a bom termo sua operação” (MILLER, 2018, p. 29) Esse intervalo que Freud convoca como pressuposto da efetividade do ato analítico que não deve se render ao domínio imaginário da escolha pautada na identificação (via da simpatia humana) pôde ser interpretado por alguns como postura fria e desumana ou, em última análise, estranha ao campo dos afetos – lembremos da acusação dirigida a Lacan de ser indiferente ao afeto –, e, por outros, como consagração do êxito da tal neutralidade benevolente.

Sabemos que Lacan respondeu oportunamente à acusação de seu pendor formalista, mostrando nunca ter negligenciado o domínio dos afetos. É certo que ele nos mostra também que, para a psicanálise, esse domínio não se coaduna ao campo das emoções, do calor humano, das humanidades ou desumanidades. O afeto para a psicanálise diz respeito ao domínio do gozo que habita o corpo como lugar da incidência do significante que produz uma irrupção rumo a um significante novo, que será a invenção singular de cada analisante:

A história de que eu negligenciaria o afeto é farinha do mesmo saco. Que me respondam apenas uma coisa: afeto diz respeito ao corpo? Uma descarga de adrenalina é ou não é do corpo? Que perturba suas funções é verdade. Mas em que isso provém da alma? O que isso descarrega é pensamento. (LACAN, 1973/2003, p. 522)

O caráter cirúrgico do ato analítico dispensa o Outro da sustentação identificatória imaginária, acionando a dimensão do corte que, como nos aponta Laurent, não mais precisa fazer apelo à função de pontuação que mobiliza o sentido retroativo da cadeia significante em busca de um efeito de verdade. Para nos transmitir o modo incisivo como a interpretação pode operar como corte que não mais relança o sentido inconsciente, Laurent (2020, p. 174) retoma Miller:

Não se trata de saber se a sessão é longa ou curta, silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semântica, aquela em que S2 vem pontuar a elaboração – delírio a serviço do Nome do pai –, muitas sessões são assim, ou então a sessão analítica é uma unidade assemântica, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo (…).

Desse modo, resta-nos ler, a partir do último ensino de Lacan, a dimensão do mistério como pura cifra de gozo e que não faz apelo a qualquer revelação. Se cada palavra assume na “bateria significante de lalíngua” uma gama enorme e disparatada de sentidos heteróclitos, conforme nos é esclarecido em “Televisão” (LACAN, 1973/2003, p. 515) – tal como, de modo exemplar, nos demonstram os escritos joyceanos –, o que permanece insondável é o instante da mordida do significante no gozo, esse instante em que se fisga o afeto, sempre desalojado, numa escrita original que produz uma marca de gozo. Essa escrita se faz por um forçamento poético, nos diz Laurent, ou seja, por um acontecimento de dizer que, no entanto, não é prerrogativa de poetas. Os Analistas da Escola (AE), por nos darem testemunho “d’isso de que se goza” e que acontece no corpo, não se apresentam como um grupo de iniciados, ou seja, como aqueles que, nos antigos cultos de mistério, costumavam compartilhar um segredo em comum.

O encontro com um analista hoje, ou como se fazer presente na era do outro que não existe

A partir da queda dos semblantes e do declínio dos ideais, o corpo se impõe, cada vez mais, como uma caixa de ressonância para lalíngua, cujo correlato analítico é o que Miller (2015) chamou de clínica acontecimento, mais próxima dos efeitos de gozo do que dos efeitos de verdade. Nela, prepondera o estranhamento do gozo feminino dito não todo sobre o universal do gozo fálico; a emergência da equivocidade da letra que faz do ato analítico, ele próprio, um acontecimento interpretativo ou, ainda, o modo inaudito como o sexo chega aos seres falantes, produzindo arranjos sinthomáticos os mais diversos.

Em todas essas declinações, o analista pode comparecer, inclusive com seu corpo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo opaco do sintoma, que aponta para o “lugar de mais ninguém”, o lugar do exílio de lalangue que testemunha o ponto em que o gaio issaber vem “roçar” (piquer) o sentido para além de toda compreensão. (LACAN, 1973/2003, p. 525). Nesta direção, Laurent segue as indicações propostas no Seminário 23, de 1975-76, para evidenciar que o analista não seria mais visto como essa subjetividade segunda, que se instala no rigor de uma escuta dos efeitos de sentido que fazem brotar a verdade do sujeito em análise, mas como aquele que segue a via do sinthome, buscando ressoar (resón) no corpo o eco do dizer pulsional. Trazendo seu próprio corpo para a ordem do dia, o analista usa a interpretação pela via do equívoco que faz vibrar o “escrito na fala”, que é da ordem não do sentido, mas de lalangue.  Ele já não opera com a razão (raison),2 ou com o Logos do Inconsciente, mas com essa ressonância que “libera algo do sinthome” (LAURENT, 2016, p. 81). Haveria, no que concerne à prática da psicanálise, um novo uso da interpretação, que opera por um deslocamento da verdade ao gozo.

Para finalizar, gostaria de trazer um breve recorte do testemunho de Veronique Voruz que, no relato “Exorcizada pela psicanálise”, publicado em 2017, conta como cresceu assolada pelo gozo mortífero que lhe fora transmitido tanto pela avó, quanto pela mãe – ser um monstro a ser exorcizado via religião. Ela nos transmite como conseguiu escapar desse destino sórdido pela experiência da análise, que promoveu o verdadeiro exorcismo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo. Certa vez, quando falava de seu problema d’yeux (doença dos olhos), a analista lhe retorna: “Ah, sim, agora eu escuto Dieu (Deus)”. Essa nova escrita depura a angústia de ser um monstro aos olhos do Outro, encarando-o de outro modo, em vez de ser vista como tal. O final da análise encaminha-se para essa operação de ser arrancada dessa identificação. Sua mãe era alpinista e muito jovem sofreu um terrível acidente na montanha, que lhe arrancou uma das pernas. Em um sonho, ela se vê subindo uma montanha à l’arrache (por arrancos/atalhos), no mesmo cenário do acidente sofrido pela mãe:

Eu interpreto este sonho de subjetivação do acidente de meus pais, dizendo que finalmente meu S1 é à l’arrache. Subindo pelo caminho da montanha, à lárrache eu me arranco de meu destino de ser uma parte do corpo do Outro. Esse significante nomeia o que chamarei de “meu estilo pulsional”. Estou sempre um pouco à l’arrache, mas não me é mais necessário arrancar-me do corpo do Outro para me separar. (VORUZ, 2017)

Esse fragmento nos mostra como a psicanálise de orientação lacaniana pode se colocar ao lado da urgência do falasser, promovendo uma nova escrita para o gozo. No caso de Veronique, o lugar de dejeto com o qual o sujeito se identificará ao longo da vida torna-se um jeito de caminhar que, embora claudicante, é o que lhe permite avançar.  

 


Referências 
FREUD, S. (1919). Os caminhos da terapia analítica. In: Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
LACAN, J. (1958). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1973). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, E. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 50, jul./dez. 2020.
MILLER, J-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. Ponto de basta. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 79, jul. 2018.
VORUZ, V. Exorcizada pela psicanálise. Opção Lacaniana, n. 75/76, maio 2017.

1. Aula Inaugural proferida no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 08/08/2022.
2. Conferir nota do tradutor do livro O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo, em que se esclarece a assonância em francês entre os termos raison e rézon, inventado pelo poeta François Ponge e utilizado por Éric Laurent em sua leitura do Seminário 23. Aqui, a solução do tradutor foi pelo neologismo “ressonar”, para transmitir a ideia de que o significante pulsa (ressoa) no corpo.



Almanaque on-line entrevista Margarida Elia Assad

Margarida Assad
Psicanalista, membro da EBP/AMP e professora aposentada da UFPB.

 

CAROLINA BOTURA. CABEÇA

 

ALMANAQUE ON-LINE: Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. Não são poucos os testemunhos dessa forma de laço, como vemos, por exemplo, nos grupos terapêuticos ligados às adições. Seguindo ainda com Miller, ele também destaca uma outra forma de enlaçamento social presente nos chamados grupos extremistas, que, mais recentemente, surgem também no Brasil, nos quais o que estaria em jogo seria a articulação entre a identificação e a pulsão de morte. Que leitura é possível extrair dessa “psicologia de grupo” contemporânea?

MARGARIDA ASSAD: A psicologia de grupo freudiana certamente está sendo renovada pela queda do patriarcado presente na atualidade. Mesmo na falta dos significantes para os Nomes-do-Pai, que sustentavam os ideais dos grupos, os laços sociais se fazem demonstrando que sua causa não é o amor ao Pai, mas uma falha irredutível, causa do inconsciente. Essa falha irredutível se introduz pela via da estrutura de linguagem, pelo Outro, tornando o corpo, objeto dessa marca, um ser destinado ao social, destinado a fazer laços. Assim entendo o aforismo lacaniano “o inconsciente é a política”, uma vez que, por política, a psicanálise entende esse laço irredutível que o corpo falante mantém com o social. E, por ser um laço irredutível, uma unidade perdida, resta ao falasser fazer, desse furo marcado em seu corpo, uma identificação para si mesmo. Laurent esclarece que seria uma identificação a “dar sentido” a essa “experiência fora-de-sentido inerente a todo falasser” (2016, p. 65).

Temos assistido no mundo uma nova configuração social, desenhada por grupos com diferentes identidades. Nem todos apresentam identidades de gozo articuladas à pulsão de morte. Alguns desses grupos se reúnem em torno de um significante que possa permitir que o laço social seja mantido, impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem. Marcus André propõe a identidade como forma de pertencimento a um grupo, o que o insere na cidade, destacando que no Brasil, em especial, a identidade salva vidas (VIEIRA, 2022, p. 65). Nesse sentido, precisamos fazer distinções sobre a interpretação que o discurso analítico pode fazer sobre a “psicologia de grupo contemporânea”. Alguns grupos e coletivos certamente se constituem numa lógica das paixões de gozo, que se radicalizam de forma feroz sobre a sociedade. Alguns são nomeados terroristas, pois seu desejo se expressa pela via da destruição e morte, como assistimos na depredação feita aos símbolos da República Brasileira no dia 8 de janeiro passado. Claro que nesses grupos existem diferentes identidades, das fascistas até os que imaginam que servem a um gozo imaginário, com valor de nomeação, como vimos no chamado grupo de “patriotas”, enrolados em bandeiras. Patriotas dá a eles um nome, uma identificação, que sustenta o vazio do não-saber quem são e, menos ainda, de seu desejo. Há muito a refletir sobre a formação moderna dos grupos. Nesses últimos, o que une tais indivíduos não é da ordem de um semblante, mas do puro real marcado pela vontade de morte no Outro, e não do Outro. Podemos pensar que há aí uma identificação construída sobre o que há no Outro de desejo de morte e que capitanearia, numa ordem de ferro, seus seguidores, satisfazendo sua vontade de gozo mortífera. Mecanismo semelhante à histeria moderna, na qual o sintoma é sintoma de um outro corpo, um sintoma em segundo grau (LAURENT, 2016, p. 28).

Fazer distinções sobre tais grupos é fundamental. Há grupos nos quais as identidades salvam e inserem seus participantes na cidade de forma civilizatória. E há grupos nos quais a identificação não se cristaliza na identidade, como diz Lacan1, podendo levar a um aumento da angústia do grupo ou levar ao pior, que seria a passagem ao ato na forma de destruição e morte pela absoluta identificação ao desejo de morte no Outro.

 

AOL: Ainda nesse tema sobre o discurso do mestre em nossa época, lembramos que a psicanálise aplicada é uma tentativa de diálogo com esse discurso. Hoje, um de seus pontos fundamentais seriam as classificações universalizantes próprias a uma psicopatologia que se apresenta como científica, cuja perspectiva se baseia, em última instância, na homogeneização do sintoma, reduzindo-o a um transtorno especializado. Nesse sentido, o que parece estar em questão é uma tentativa de enquadrar o gozo em um diagnóstico prêt-à-porter, ignorando, portanto, o efeito único e irredutível do encontro de cada sujeito com a linguagem. Diante disso, que diálogo se faz possível?

M.A: O discurso psicanalítico tem hoje uma tarefa da maior importância para o mundo contemporâneo. O discurso científico, ao tentar homogeneizar os sintomas, de forma a classificá-los por sintomas comuns a cada classe, replica o que vem ocorrendo na proliferação de grupos, em que se buscam nomeações que possam preencher o vazio das identificações. Temos hoje uma excelente demonstração dessa liquefação das identificações em identidades sem nenhuma relação com a singularidade do sujeito. Carolina Castelliano, da Defensoria Pública da União e secretária de Atuação no Sistema Prisional, afirmou, durante o UOL News, que muitos dos golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília, na maioria mulheres, apresentam sintomas de desconexão com a realidade e que elas próprias não entendem como praticaram os atos de violência. Foi criada uma identidade de grupo, ela diz, que eliminava a subjetividade de cada um: ao que o grupo determina, o sujeito adere. A pessoa se tornou o grupo, diz Carolina, “elas sentem falta do grupo quando são mantidas isoladas”. Essas observações da defensora pública nos ajudam a interpretar o que vem acontecendo com o sujeito moderno.

O neoliberalismo associado ao discurso capitalista vem oferecendo soluções às questões subjetivas para todos, indiscriminadamente. As famílias e as instituições sociais são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguir sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo. Hoje, por exemplo, temos formas diferentes de parentalidade que não assombram mais seus filhos, para usar um termo que Laurent isolou em Lacan: épater (assombrar, chocar). Cabe ao discurso analítico ofertar um diálogo com essas novas coordenadas do simbólico escutando as irrupções, as manifestações de angústia, fazendo frente, fazendo um judô (LAURENT, 2016, p. 36) com esses novos discursos. Laurent propõe que se investigue, nas novas formas do masculino e do feminino, “o que serve de pai na configuração dos gozos de hoje” (BARROS, 2022, p. 123). Podemos ficar com essa indicação, que pode orientar a prática dos analistas nesses grupos e coletivos, escutando de que forma a sexuação se mantém na ordem do dia definindo os sintomas contemporâneos.

 

AOL: No tocante à clínica, ela tem nos mostrado, nas últimas décadas, casos que se manifestam, predominantemente, sob formas de gozo, que convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Na sessão clínica de Angers, Miller interroga se essas novas formas como as psicoses podem se apresentar na atualidade, designadas, por fim, como psicoses ordinárias, não exigiriam uma nova posição do analista, propondo pensá-la sob a forma de uma neotransferência. Você pode nos esclarecer o que a particularizaria? E poderia nos dar alguma referência de sua clínica?

M.A: O último ensino de Lacan nos traz novas leituras para a transferência. Se a fala do analisando produz efeitos, não é certo que isso se deva exclusivamente à transferência, ou seja, que seria pela suposição de saber em análise que tais efeitos tenham surgido. A extensão feita por Lacan do significante à letra nos permitiu ler de outra forma o inconsciente em análise. Lacan reenvia, cada vez mais em seu ensino, a fala à escrita. Um escrito feito pela letra de gozo presente no acontecimento de corpo. Essa nova modalidade de leitura para o inconsciente exige que a prática do analista o leve a escutar, pela sonoridade de lalíngua, a fixação de gozo no que se diz. Escutar deixando-se ir além do que se diz, escapando à rotina de aparolaNesse sentido, a fineza da escuta analítica é estar à altura da interpretação feita pelo inconsciente sobre o trauma da linguagem. Isso promove uma nova leitura do conceito de transferência, levando-a ao estatuto de lalíngua, fazendo do analista um parceiro do corpo-intérprete. Podemos lembrar da paciente de Helenice Saldanha, citado em um texto recente da Correio (CASTRO, 2002, p. 90), quando a queixa de ser indigente ganha uma nova leitura a partir de se descobrir negra. Não se trata de um deslizamento de um significante a outro, mas de uma ruptura entre o simbólico e o imaginário, eclodindo um efeito real, um novo dizer que tem aí o estatuto de acontecimento de corpo.

Entrevista realizada por Letícia Mello, Márcia Bandeira, Patrícia Ribeiro e Renata Mendonça.

 


Referências 
ASSAD, M. “O impossível e o laço, o analista e a época”. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Analista: Presente. 2022.
BARROS, M. R. C. R. “Como viver a infância hoje? O que Lacan nos ensina sobre a sexuação na atualidade”. Latusa, 26. Rio de Janeiro, 2022, p. 123.
CASTRO, H. S. “Notas Sobre a Dimensão Política do Corpo”. Correio 87. São Paulo: EBP, 2022. p. 90.
LACAN, J. (1945). “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 213.
LAURENT, É. “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Entrevista à La Cause du Désir. Correio 87. São Paulo: EBP, 2016. p. 28.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 65.
UOL. “Golpistas presos alegam que não sabiam objetivo do ato no DF, diz defensora”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/19/golpistas-presos-alegam-que-nao-sabiam-objetivo-do-ato-no-df-diz-defensora.html.
VIEIRA, M. A. “O que se cristaliza em uma identidade”Latusa, 26. Rio de Janeiro: 2022. Seção Rio-EBP.

1. LACAN, J. O seminário, livro 24. Lição 12-11-1976. Citado por VIEIRA, 2022.



Defender-se de uma incompatibilidade na vida representativa

Virgínia Carvalho
Psicanalista, membro da EBP/AMP, doutora
e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.
virginiacarvalhopsicanalise@gmail.com

 

Resumo: A autora trabalha a noção lacaniana de “des-montar” (déranger) a defesa a partir de uma releitura dos textos de Freud “As neuropsicoses de defesa” (1894) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896), nos quais localiza a “incompatibilidade na vida representativa” como o ponto chave do qual o sujeito se defende, indicando algumas perspectivas clínicas dessa concepção.

Palavras-chave: Defesa; clínica psicanalítica; pulsão.

TO DEFEND FROM AN INCOMPATIBILITY IN A REPRESENTATIVE LIFE
Abstract: The author works with the Lacanian notion of “dis-assembling” (déranger) the defense, based on a reading of the Freud’s texts The neuropsychoses of defense (1894), and Additional observations on the neuropsychoses of defense (1896), in which she localizes the “incompatibility in representative life” as the key point from which the subject defends himself. She also indicates some clinical perspectives of this notion.

Keywords: Defense; psychoanalytic clinic; drive.

 

CAROLINA BOTURA. SHEILA NAJIG

 

Na 58ª edição das Lições Introdutórias à Psicanálise, propusemos o desafio de ler Freud a partir da orientação lacaniana de que des-montar a defesa é o “coração”, a matriz mesma da operação analítica (MILLER, 2020, p. 36). O termo utilizado por Lacan é dérange, que optamos por traduzir como desmontar, desordenar. Também incluímos um hífen no des-montar para realçar a ideia de que há uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa. Essa “des-montagem” parece se aproximar do que vemos no trabalho Disassembled/Things come apart, do fotógrafo Todd McLellan (2013). O artista desmonta alguns objetos e faz desses objetos desmontados uma bela e interessante nova montagem. As fotos encontram-se disponíveis em seu site.

Ler Freud com Lacan, Lacan com Freud e Miller fazendo a costura: eis nossa metodologia de trabalho. Mas é preciso fazer isso sem apagar a complexidade do texto freudiano. Em seu seminário sobre as psicoses, o Seminário 3 (1955-1956), Lacan nos orienta nesse desafio que é ler Freud:

“só mesmo ele [Freud] é que, em vida, tenha preparado os conceitos originais necessários a atacar e ordenar o campo novo em que descobria. Esses conceitos, ele os prepara cada um com um mundo de questões. O que há de interessante em Freud é que ele não as dissimula, essas questões. Cada um de seus textos é um texto problemático, de tal modo que ler Freud é reabrir as questões” (LACAN, 1955-1956/1995, p. 128).

Com-texto

Centrar-nos-emos sobre dois textos cuja temporalidade remonta a um tempo anterior ao que Freud localiza como o da “psicanálise propriamente dita” (1925/1996): “As neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1896/1996). Ambos são anteriores ao abandono por Freud da teoria da sedução, ou seja, ele ainda acreditava que a experiência traumática da qual seus pacientes lhe falavam referia-se a reminiscências de episódios de abuso ocorridos na infância, algum tipo de sedução por um adulto. É somente três anos após esses textos que Freud escreve a Fliess sua “Carta 69” (1892-1899/1996), dizendo que não acreditava mais em sua neurótica.

Em 1897, duas questões o atordoavam: por que ainda não havia sido possível levar uma análise à sua conclusão real e exitosa?, será que todos os pais são perversos e abusam de suas filhas? Como resposta, Freud se deparou com o papel “extraordinariamente grande desempenhado na vida mental dos neuróticos pelas atividades da fantasia” (FREUD, 1924/2016). Isso o fez constatar o “erro” que cometia ao privilegiar a sedução como um fato e, ao mesmo tempo, permitiu-lhe sustentar ainda mais a ideia de que, no psiquismo humano, existe uma instância em que a verdade e a ficção coexistem lado a lado (FREUD, 1892-1899/1996), o inconsciente.

Em 1925, ao revisitar a cena do abandono da teoria da sedução, conclui que tal abandono implicava em reconhecer que “os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade efetiva” (FREUD, 1925/1996, p. 29). Isso nos leva à ideia que vem sendo trabalhada por Miller a respeito de que, em Freud, tudo é sonho e que todo mundo é louco — mas não nos apressemos com isso.

Também convém lembrar que, quando escreveu “Neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996), ele ainda não dispunha de uma teoria consistente do recalque — o que se consolidou melhor em sua metapsicologia, em 1915, quando o relaciona ao “pilar sobre o qual repousa o edifício da psicanálise” (FREUD, 1915/2010), mas que ele localiza ainda mais no texto sobre “Inibição, sintoma e angústia” (FREUD, 1926/1996), que será posteriormente trabalhado aqui. Também não havia formulado suas constatações acerca da pulsão de morte, o que vai acontecer em 1920, não sem antes questionar de diversas formas sua maneira de formalizar o conceito de pulsão.

Inicialmente, Freud (1910/1996) considerava que havia dois grupos distintos de pulsão. Um que estava a serviço da autoconservação, que nomeou de pulsões do Eu, e outro que serviria às demandas sexuais. Esse primeiro dualismo pulsional ancorava suas bases no poeta Schiller, que acreditava que “fome e amor” moviam as engrenagens do mundo. Em “A perturbação psicogênica da visão” (1910/1996), Freud nos dá algumas imagens para compreendermos como uma mesma fonte poderia obedecer às duas correntes pulsionais. Diz Freud:

“A boca serve tanto para beijar como para comer e para falar; os olhos percebem não só alterações no mundo externo, que são importantes para a preservação da vida, como também as características dos objetos que os fazem ser escolhidos como objetos de amor — seus encantos” (FREUD, 1910/1996, p. 201).

Segundo Freud nos indica em sua conferência sobre “Angústia e vida pulsional” (1932/1996), quando começa a estudar o Eu e se aprofunda no conceito de narcisismo, “a distinção entre pulsão do Eu e sexual perde o sentido”, já que o Eu é sempre o principal reservatório da libido. Nesse momento, abrem-se algumas perguntas para ele sobre um tipo de pulsão bastante destrutiva, que revela uma propensão a restaurar uma situação anterior, um retorno ao inorgânico: uma “estranha pulsão que se volta para a destruição de sua própria morada orgânica essencial” (FREUD, 1932/1996). Desse modo, a hipótese de Freud passa a ser a de que existiriam duas classes de pulsão: “as pulsões sexuais, compreendidas no sentido mais amplo — Eros, se preferem esse nome —, e as pulsões agressivas, cuja finalidade é a destruição” (1932/1996, p. 129). A ideia freudiana de que vida e morte se mesclam no processo de viver e que as pulsões de morte estariam amalgamadas às de vida permitiu a Lacan (1964/1998) considerar que a pulsão é pulsão de morte e que a pulsão de vida já seria um tratamento dado à pulsão.

A pulsão é considerada por Lacan (1964/1998) um dos mais importantes conceitos fundamentais da psicanálise. Segundo a metapsicologia de Freud (1915/2016), elas podem ser consideradas “uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico, em decorrência de sua relação com o corporal” (p. 25). Por isso é um “conceito fronteiriço entre o anímico e o somático” (FREUD, 1915/2016, p. 25). Ela é uma pressão (drang) constante, da qual não se pode fugir, e que tem como meta a satisfação. Como esta implicaria numa suspensão do estímulo corporal, e isso não é possível, a pulsão insiste como demanda. Sua fonte é corporal, mas seu objeto é o que há de mais variável, pois não está nunca atrelado a ela. É sempre um objeto faltoso, pois será sempre um substituto, o que está escrito por Freud, nos “Três ensaios sobre a sexualidade”, do seguinte modo: “o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (1905/1996, p. 210). Lacan (1964/1998) a configura como uma montagem surrealista, tal como um sujeito acéfalo, sem pé nem cabeça.

A pulsão não pode ser satisfeita nem eliminada, no entanto, pode sofrer alguns destinos. Freud (1915/2016) enumerou quatro: 1) reversão em seu oposto, que seria a mudança da finalidade da pulsão, como a mudança de atividade para passividade; 2) retorno em direção à própria pessoa; 3) sublimação, que consiste na modificação da finalidade sexual da pulsão para uma finalidade não sexual e também em uma inibição do alvo, sem restrição da intensidade; e o 4) recalque, que consiste na separação entre a ideia e o afeto que a acompanha, mantendo a ideia afastada da consciência.

O recalque ganhou um texto próprio, e, nesse, Freud (1915/2010) o articula à formação dos sintomas, sendo estes últimos seus derivados. Indica que é o recalque originário (Urverdrangung) o responsável pela divisão entre os sistemas pré-consciente/consciente e inconsciente e que esse primeiro recalque consiste em negar o acesso do representante pulsional à consciência, através de um “contrainvestimento” (1915/2016). O recalque propriamente dito é o que vai cuidar de sua continuidade e funciona mantendo uma ideia afastada da consciência.

Mas o recalque é a defesa? Freud  os separa e os mistura, chegando a localizar, no texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1996), que o recalque não é a mesma coisa que a defesa, classificando o recalque como “um caso especial de defesa”, pois a defesa seria algo “que pode abranger todos os processos que tenham a mesma finalidade — a saber, a proteção do eu contra as exigências” pulsionais (p. 159). Miller (2020) nos ajuda a entender a ideia de que a defesa não se equivale ao recalque. Enquanto o recalque incide sobre o significante, separando a ideia do afeto, a defesa não recairia sobre um significante. Ela qualifica, já em Freud, “uma relação com a pulsão” (MILLER, 2020, p. 52). A defesa é defesa ao real. Falarei sobre isso depois.

Feito esse com-texto freudiano, podemos agora retornar aos textos de 1894 e 1896 para entendermos melhor o que Freud chama de “incompatibilidade na vida representativa” e nos permitirmos, ainda hoje, cento e vinte seis anos após, a aprender com Freud sem nos apressarmos tanto para chegar ao ultimíssimo Miller.

A incompatibilidade representativa

Adentremos, então, em “As neuropsicoses de defesa”, cujo subtítulo é “tentativa de formulação de uma teoria da histeria adquirida, de muitas fobias e obsessões e de certas psicoses alucinatórias” (FREUD, 1894/1996). Isso nos dá uma orientação sobre o rumo que Freud imprime a esse texto: há algo comum entre a neurose histérica, a neurose obsessiva, a fobia e a psicose. Embora circunscreva esse ponto em comum, em nenhum momento Freud iguala essas categorias, borrando suas diferenças. Não faz uma despatologização, como a que tem ocorrido em nossa cultura e que Miller (2022) vem apontando como uma “igualdade” que acaba por apagar a clínica, dando lugar a uma substituição dos princípios clínicos por princípios jurídicos, já que tudo passa a se relacionar a estilos de vida. Não sei se vocês estariam de acordo, mas me pareceu que, nesse texto de Freud (1894/1996), fica evidente seu esforço, com os recursos que tem naquele momento, para dar lugar à loucura de cada um.

Leio a questão central desses textos da seguinte maneira: “como alguém pode não se defender?”. Isso me faz lembrar a pergunta feita por Lacan em seu Seminário 23 (1975-1976/2007), a propósito do paciente que relatava sofrer de “falas impostas”, dizendo-se afetado pela telepatia, de modo que todo mundo era avisado de suas reflexões. O “telepata emissor” havia tentado se matar, tamanho sofrimento na experiência desses fenômenos elementares. Joyce também vivenciava essa sensação de “palavras impostas”, uma vez que sua relação própria com as palavras evidencia o modo como as “experimenta como algo estranho, heterogêneo, ‘imposto’, que não vai por si” (MANDIL, 2003, p. 249). Joyce produz um anteparo ao caráter excessivamente vivo da linguagem, desarticulando-a. Mas, para fazer tal desarticulação, ele preserva a letra, mantendo sua escrita em inglês (MANDIL, 2003). Lacan (1975-1976/2007) destaca que a escrita deu um tratamento à dimensão parasita que está presente para todo falasser: “a questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (p. 92).

Em Freud (1894/1996), ao buscar em sua experiência clínica alguma resposta, indica:

“Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento em que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa — isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento” (p. 55).

Luiz Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud (1996), se dedica ao termo unverträglich (p. 277). Quer dizer inassimilável, indigesto (faz mal à saúde), inconciliável, intratável e aponta para uma impossibilidade de coexistência. Hanns (1996) concorda com a tradução de “incompatível” presente na Imago, mas aponta que, com ela, “perde-se a ideia de uma incompatibilidade visceral, bem como a noção de que se trata de uma impossibilidade de coexistência” (p. 281). Interessante nos perguntarmos sobre o que seria essa “representação incompatível” de que Freud tanto fala. Estaríamos aí no terreno que Lacan nos ensinou a ler como o registro do real?

Freud (1894/1996) lembra que seus pacientes histéricos “conseguem recordar com toda precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de ‘expulsar aquilo para longe’, de não pensar no assunto, de suprimi-lo” (p. 55). Como faz Elizabeth Von R., que se culpava por pensar em um rapaz que lhe causara uma “leve impressão erótica” justamente no momento de cuidar de seu pai enfermo, ou Miss Lucy, ao experimentar um sentimento de paixão por seu patrão. Indico a vocês retomar os casos trabalhados por Freud em seus “Estudos sobre a histeria” (1893-1895/2016), texto que se encontra no segundo volume das Obras Completas.

Em “As neuropsicoses de defesa” (1894/1996), Freud ressalta que o fato de nos defendermos não é patológico. Os sintomas que levam os sujeitos a procurar uma análise surgem, ao contrário, quando a defesa não funciona: quando “esse tipo de esquecimento não funcionou” (FREUD, 1894/1996, p. 55). Quando a defesa não é eficaz, há uma série de reações patológicas.

O eu se impõe uma tarefa, em sua atitude defensiva, de tratar a representação incompatível como “non-arrivé”, como se ela não tivesse chegado. Mas o que ocorre é que “tanto o traço mnêmico quanto o afeto ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não podem ser erradicados” (FREUD, 1894/1996, p. 56). O eu promove, então, uma transformação dessa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto. Separa-se, portanto, o afeto e a ideia, o que Freud mais adiante vai formalizar como sendo o mecanismo do recalque.

O afeto que resta livre precisa ser utilizado de alguma forma, e, nesse texto de 1894, Freud localiza que histeria, fobia e neurose obsessiva se encontram nesse modo de funcionar, mas não de forma semelhante. Embora todos eles tentem se defender da “representação incompatível”, a maneira como fazem com esse afeto livre é distinta. Vejamos essa distinção tão clínica que Freud nos apresenta.

Na histeria, esse afeto se converte em algo somático. Como ocorre com Miss Lucy, que procura Freud com uma “rinite supurativa cronicamente recorrente”, aparentemente derivada de uma cárie no osso etmoide, mas que persistia sem que seu colega clínico pudesse continuar atribuindo o problema “a uma afecção local” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134). Ela havia perdido todo o sentido do olfato e “era quase continuamente perseguida por uma ou duas sensações olfativas subjetivas, que lhe eram muito aflitivas. Além disso, estava desanimada e fatigada e se queixava de peso na cabeça, pouco apetite e perda de eficiência” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134).

Ela constantemente sentia um cheiro perturbador de pudim queimado, sintoma que foi “o ponto de partida da análise”. Nessa, Miss Lucy trouxe à luz a primeira lembrança desse cheiro, e os desdobramentos do caso mostram que Freud tentava localizar nesse momento algo que pudesse levá-lo à representação incompatível. Nos “Estudos sobre a histeria”, vemos o movimento de Freud (1893-1895/2016) de tentar levantar a barreira imposta pelo recalque. Miss Lucy havia chegado à ideia de que sua paixão pelo patrão era sua fonte de sofrimento, e isso tornou desnecessário o sintoma de sentir cheiro de pudim queimado, porém, abriu caminho para um deslocamento, passando a experimentar um outro odor: o de fumaça de charuto. Freud (1893-1895/2016) relata não ter ficado “muito satisfeito com os resultados do tratamento”. Em suas palavras: “eu apenas eliminara um sintoma só para que seu lugar fosse ocupado por outro” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 145). Ele segue ainda o caminho do segundo odor, tentando liberar mais lembranças traumáticas, e chega a uma cena que supõe ter desencadeado os sintomas. Trata-se de um momento em que o patrão havia gritado com ela sem que ela fosse responsável pela situação em questão, o que, em sua concepção, evidenciava sua ausência de sentimentos ternos para com ela. Ao chegarem a essa cena, uma lembrança aflitiva, ela se libera dos sofrimentos que ensejaram o início da análise, que durou nove semanas.

Voltando ao texto que estamos trabalhando, Freud (1894/1996) acreditava que, se na histeria esse afeto livre se transpõe para “enormes somas de excitação para a inervação somática”, na neurose obsessiva haveria uma carência na “aptidão para a conversão” (p. 59). Não obstante, os sujeitos parecem também “rechaçar uma representação incompatível”. Quando tal representação é separada de seu afeto, ele fica obrigado a permanecer na esfera psíquica. Como está livre, “liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa ‘falsa ligação’ tais representações se transformam em representações obsessivas” (FREUD, 1894/1996, p. 59).

No caso do Homem dos Ratos, de 1909, isso fica muito evidente. Vale muito a pena a retomada desse caso, que se encontra no volume X, no texto intitulado “Nota sobre um caso de neurose obsessiva”. Trata-se de um jovem senhor de formação universitária que se apresenta a Freud (1909/1996) com obsessões que o acompanham desde a infância e que se intensificaram nos últimos quatro anos. O caso tem como cenário os ratos (Ratten), que tomam relevo a partir do relato de um castigo feito pelo capitão “cruel” quando prestava o serviço militar. Tal castigo consistia em amarrar o criminoso e introduzir ratos dentro de suas nádegas. Esse relato se transforma em ideia obsessiva, produzindo sintomas que se referem ao termo: Ratten (ratos), Spielratten (ratos de jogo), Raten (prestações, pagamentos), Heiraten (casamentos, acasalamentos). Para Freud (1909/1996), no final das contas, o que se coloca é uma questão sobre sua própria existência como rato, por ver no animal uma “imagem viva de si mesmo” (p. 188).

No início de seu tratamento, o paciente relata a Freud sobre o episódio da morte de seu pai, que ocorreu exatamente no momento em que ele havia se deitado para descansar, enquanto o acompanhava por ocasião da doença no pulmão. Soube, pela enfermeira, que o pai o havia chamado, o que aumentou ainda mais sua recriminação: “passara a tratar a si próprio como criminoso” (FREUD, 1909/1996, p. 156). No caso do Homem dos Ratos, o rato foi o objeto erotizado. É o que faz com que esse sujeito inclua os ratos em sua economia, o que pode ser visto na associação que faz entre “tantos ratos, tantos florins” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 250).

Para Freud (1894/1996), “a obsessão é, em primeiro lugar, a fonte do afeto agora colocado numa falsa ligação” (p. 59). O paciente chega se queixando de suas obsessões, mas o afeto ligado a uma determinada ideia parece estar desalojado e transposto.

No caso de uma substituição da qualidade do afeto, estamos no terreno da fobia: a angústia liberada cuja origem sexual não deva ser lembrada pelo paciente irá apoderar-se das fobias primárias comuns da espécie humana, relacionadas com animais, tempestades, escuridão, e assim por diante, ou de coisas inequivocamente associadas, de um modo ou de outro, com o que é sexual — tais como a micção, a defecação ou, de um modo geral, a sujeira e o contágio. Podemos aqui fazer referência a Hans e sua fobia de cavalos, caso que se encontra no volume XVII sob o título “História de uma neurose infantil” (FREUD, 1909/1996).

Em “Neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/1996) lembra que, embora sejam distintas as maneiras de lidar com o afeto liberado da representação incompatível recalcada, “em todas as situações, é a vida sexual o que desperta o afeto aflitivo”.

Mas, e a psicose? Considero que esses dois textos com os quais estamos trabalhando nos trazem luzes importantes para o trabalho com a psicose, mesmo que sejam ainda muito incipientes e que Freud ainda não tenha localizado a diferenciação entre a defesa e o recalque. Vejamos o que ele escreve:

“a defesa contra a representação incompatível [na neurose] foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas, a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como ‘confusão alucinatória’” (FREUD, 1894/1996, p. 64).

Vemos como Freud, já em 1894, aponta para a rejeição da representação incompatível na psicose, o que Lacan irá trabalhar a partir de sua concepção de foraclusão, que pode ser lida no Seminário 3 (LACAN, 1955-1956/1995).

Interessante o fragmento clínico, trazido por Freud (1894/1996), da moça que experimentava sua paixão por um homem e que acreditava, de modo erotômano, que ele também a amava, e que, diante da recusa deste, vive a chegada do seu amor como um sonho. Freud (1894/1996) lembra que ali “o eu rechaçou a representação incompatível através de uma fuga para a psicose” (p. 65). Ele

“rompe com a representação incompatível; esta porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu obtém esse resultado, também ele se desliga total e parcialmente da realidade. […] Assim, quando a defesa consegue ser levada a termo, ele se encontra num estado de confusão alucinatória” (FREUD, 1894/1996, p. 65).

Freud (1894/1996) conclui o texto com a ideia de que há “três métodos de defesa” (p. 66) e podemos convidar Lacan e Miller para essa conversa, mas não sem antes percorrermos suas “Observações adicionais às neuropsicoses de defesa”, texto de 1896 que nos traz ainda mais elementos. Neste, ele afirma que a defesa é “o ponto nuclear no mecanismo psíquico” tanto da histeria como da neurose obsessiva e da psicose alucinatória (FREUD, 1896/1996).

Ele vai tentando explicar a neurose e a psicose a partir do traço mnêmico deixado por perturbações sexuais vividas antes do advento da maturidade. Na neurose histérica, o afeto vinculado à experiência seria colocado no corpo, enquanto, na neurose obsessiva, se deslocaria para outra ideia. Para ele,

“a natureza da neurose obsessiva pode ser expressa numa fórmula simples. As ideias obsessivas são, invariavelmente, auto-acusações transformadas que reemergiram do recalcamento e que sempre se relacionam com algum ato sexual praticado com prazer na infância” (FREUD, 1896/1996, p. 169).

O sujeito recalca e substitui a lembrança dessas ações prazerosas por “um sintoma primário de defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). A conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança são sintomas dessa espécie, que dão início a um período de aparente saúde mas que, na realidade, apontam para uma defesa bem-sucedida.

“O período seguinte, o da doença, é caracterizado pelo retorno das lembranças recalcadas — isto é, pelo fracasso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). Esse fracasso leva a formações de compromisso entre as representações recalcadas e as recalcadoras; os sintomas. Ele usa um termo interessante, apontando que se trata de um “colapso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 171).

Nesse texto bastante clínico, Freud (1896/1996) mostra algumas estratégias da neurose obsessiva. Considero que nos auxilia grandemente na clínica porque nos ajuda a entender que os sintomas dos quais o obsessivo se queixa no início do tratamento não são a causa de seu sofrimento, mas sim sua maneira de se defender dele. Ou seja, a dúvida, a compulsão, a autoacusação, a ruminação, as medidas penitenciais, a vergonha, a hipocondria, as medidas de proteção e de colecionar objetos, assim como a busca incessante por assegurar “o entorpecimento da mente” são manifestações de uma defesa secundária, diante do colapso da defesa primária.

Diferentemente da neurose, na paranoia a defesa é muito bem sucedida, daí Freud (1896/1996) a considera uma psicose de defesa. Ao mesmo tempo, ele indica que no desencadeamento psicótico haveria um total fracasso da defesa:

“Em vista do que se sabe da paranoia além disso, inclino-me a supor que há um gradual comprometimento das resistências que enfraquecem as auto-acusações, de modo que, por fim, a defesa fracassa por completo e a auto-acusação original, o termo real do insulto de que o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua forma inalterada” (FREUD, 1984/1996, p. 181).

Mais tarde, ele indica que o que foi abolido do simbólico retorna no real.

“Parte dos sintomas provém da defesa primária — a saber, todas as representações delirantes caracterizadas pela desconfiança e pela suspeita e relacionadas à representação de perseguição por outrem” (FREUD, 1896/1996, p. 182).

Outra passagem interessante é quando ele diz que “nenhuma defesa pode valer contra os sintomas de retorno aos quais, como sabemos, liga-se uma crença” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Parece-me que podemos extrair algumas consequências dessa frase quando estivermos nos dedicando a desenvolver algo sobre o delírio.

Na paranoia, a autoacusação é defendida pela projeção, ou seja, a desconfiança passa a ser de outras pessoas: “o sujeito deixa de reconhecer a autoacusação; e como que para compensar isso, fica privado de proteção contra as autoacusações que retornam em suas representações delirantes” (FREUD, 1896/1996, p. 182). Essas autoacusações retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta. As representações delirantes que chegam à consciência através de uma formação de compromisso (os sintomas de retorno) “fazem exigências à atividade de pensamento do eu, até que possam ser aceitos sem contradição” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Assim, o que corresponde aos sintomas de defesa secundária na neurose obsessiva, na psicose se faz como uma formação delirante combinatória: “delírios interpretativos que terminam por uma alteração no eu” (FREUD, 1896/1996, p. 183).

Esse desenvolvimento é realizado por Freud a partir do caso da Sra. P. e evidencia uma certa confusão entre a paranoia e a esquizofrenia, ponto que também no texto anterior se verifica. Digo isso pela nota que ele apresenta em 1924, reforçando que se trata de um caso de dementia paranoides.

A Sra. P., caracterizada por Freud (1894/1996) como “uma mulher inteligente”, levava “uma vida saudável” em seus últimos anos até que o nascimento de seu filho “mostrou os primeiros sinais de sua atual enfermidade” (p. 175). Ela tornou-se pouco comunicativa e desconfiada, acreditando que as pessoas a estavam menosprezando, o que, pouco tempo depois, se transformou numa queixa de que as pessoas liam seus pensamentos e sabiam tudo o que ocorria em sua casa. Isso era transposto a seu corpo e a sensação que ela experimentava em seu baixo abdome era atribuída à certeza de que sua criada, com quem estava a sós, havia tido uma “ideia imprópria” (FREUD, 1894/1996, p. 175). Sentia seus órgãos genitais “como se sente uma mão pesada” e começou a ver coisas que a horrorizavam, como alucinações de mulheres nuas e genitálias femininas e masculinas. Essas imagens a aterrorizavam porque ela também sentia seu corpo exposto. Começou a ser importunada por vozes que a censuravam e passou a não mais querer sair de casa e não se alimentar.

Com Freud, a Sra. P. pôde percorrer algumas cenas infantis, entre elas, uma em que se despia sem nenhuma vergonha na frente de outras crianças, o que leva Freud a considerar que haveria algo por aí. Mas “a depressão da paciente começou na época de uma discussão entre seu marido e seu irmão, em consequência da qual este passou a não mais frequentar sua casa” (FREUD, 1894/1996, p. 178). Ele não dá muitos elementos sobre esse ponto, mas traz uma nova cena em que sua cunhada a visitara e lhe dissera que “em toda família acontecem coisas sobre as quais eu gostaria de pôr uma pedra. Mas quando uma coisa desse tipo acontece comigo, eu a trato com descaso” (FREUD, 1894/1996, p. 178). O significante “descaso” havia impregnado o delírio de P. Seria interessante sabermos mais sobre onde entra o bebê de P. nessa história, mas Freud não nos deu elementos a esse respeito, mesmo tendo localizado que o desencadeamento ocorreu após o nascimento da criança.

No texto que estamos trabalhando, de 1894, Freud afirma que pode reproduzir com sua paciente “várias cenas de seu relacionamento sexual com o irmão” e, nessas revivescências, seu corpo “participou da conversa”, o que nos aponta algo sobre a importância do atendimento presencial. Para ele, “depois de percorrermos essa série de cenas, as sensações e imagens alucinatórias desapareceram e (ao menos até o presente) não retornaram” (FREUD, 1894/1996, p. 179). Não deixem de ler as notas de rodapé escritas por Freud. Elas nos mostram, tal como a arte de Todd McLellan (2013), que há algo que se monta e se des-monta, formando novas montagens. Arranjos e desarranjos.

Des-montar a defesa

O desenvolvimento de Freud nos leva à ideia de que a defesa é algo basal que está presente tanto na neurose como na psicose e que é defesa ao sexual, ou à pulsão, como ele irá trabalhar mais adiante. Em um texto intitulado “Clínica irônica”, de 1988, que vocês encontram publicado no livro Matemas I (1996), Miller indica que nos defendemos do real e que “todos os nossos discursos não passam de defesas contra o real” (p. 190). Lembra que, para Lacan, a clínica psicanalítica é “o real como o impossível de suportar”. Nesse sentido, as formas clínicas não passam de modos de defesa, até mesmo “no caso limite dito esquizofrênico, onde o sujeito aparece sem defesa diante do impossível de suportar” (MILLER, 1996, p. 198).

Miller (1996) considera que “o delírio é universal porque os homens falam e porque há linguagem para eles. Eis, então, o a-b-c ao qual se volta: a linguagem [o Outro] tem como tal, efeito de aniquilamento” (p. 192). Anteriormente, trabalhamos com a ideia de que não há Outro do Outro, ou seja, não há um Outro que diga o verdadeiro sobre o verdadeiro. Para falar com Guimarães Rosa (1956/2019), “mente pouco quem a verdade toda diz”. Nesse sentido, Miller (1996) propõe que nossa clínica seja irônica, ou seja, fundada sobre a inexistência do Outro como defesa contra o real (a neurose tenta fazer existir o Outro, ao preço de um apagamento subjetivo; na psicose, o Outro não está separado do gozo).

Dez anos após, em seu curso sobre A experiência do real na cura psicanalítica, Miller (2014) afirma que “na psicanálise se trata do real e da defesa contra este”. Mas, o que é o real? Milner (2006) nos ajuda na definição dos três registros, real, simbólico e imaginário, do qual depende a estruturação da realidade:

“existem três suposições. A primeira, ou melhor, uma delas, pois já é demais por ordem nisso, por mais arbitrária que seja, é que há: proposição tética que só tem por conteúdo sua própria posição — um gesto de corte, sem o qual não há nada que exista. Chamaremos isso de real ou R. Outra suposição, dita simbólica ou S, é que há alíngua, suposição sem a qual nada, e singularmente nenhuma suposição, poderia ser dita. Uma outra suposição, enfim, é que há semelhante, na qual se institui tudo o que constitui laço: é o imaginário ou I” (p. 7).

Para Lacan (1975-1976/2007), o real é o impossível porque “é sem lei” e “não tem ordem”1 (p. 133). Exatamente por isso, para que o homem possa, talvez, “reencontrar alguma coisa que seja da ordem do real” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 120), é necessário se colocar no lugar de lixo, o que significa dispensar o sentido. Quanto mais tenta apreender o real pelo sentido, mais longe está dele.

Miller (2012) ressalta que o real psicanalítico é desprovido de sentido e não corresponde a nenhum querer-dizer. Ele não é “um cosmo, não é um mundo, nem uma ordem; é um pedaço, um fragmento assistemático porque separado do saber ficcional” (MILLER, 2012, n.p.). O real é o que se produz no choque pulsional do encontro do significante com o corpo. O real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real ao acaso, contingente, na medida em que falta a lei natural da relação entre os sexos. O sentido escapa a esse real e, quando há doação de sentido, ela ocorre através da elucubração da fantasia. Favret, ao se perguntar sobre O que ilumina o passe no Ultimíssimo ensino de Lacan? (2014), propõe que, no final de uma análise, trata-se de como cada um tenta se aproximar de um ponto, de um pedaço de real, apesar de sua opacidade.

Frente ao real, nos defendemos. A defesa, segundo Miller (2014), qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. “A abordagem do real se inscreve em primeiro lugar em termos de defesa, e não de apetite, harmonia ou cálculo” (MILLER, 2014, p. 51). Miller (2012) indica que, “para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se concentrar em desmontar a defesa, desordenar a defesa contra o real”. Em uma análise, o inconsciente transferencial é uma “defesa contra o real”, ou seja, uma tentativa de fazer o Outro existir. Isso ocorre porque, “no inconsciente transferencial, continua vigente uma intenção, um querer dizer, um querer que me seja dito algo” (MILLER, 2012). Isso não ocorre no inconsciente real, que não é intencional, apenas “é”. Isso abriria para mais outra pesquisa que encontraria sua ancoragem no “Prefácio para Edição Inglesa do Seminário 11” (LACAN, 1976/2003).

Essa indicação de que nossa clínica precisa “des-montar a defesa” provém da afirmação lacaniana, em seu Seminário, livro 24: l’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre (LACAN, 1976-1977), de que o falasser fala sozinho e sempre a mesma coisa, a não ser que se abra para falar com um psicanalista e receba deste algo que desordena, desarranja (dérange) sua defesa (LACAN, 1976-1977). Gueguen (2014) propõe a utilização do termo “desmontagem da defesa” em detrimento da expressão “perturbar a defesa”, pois, para ele, “a desmontagem da defesa supõe que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado” (p.103). Nos testemunhos de passe vemos essa des-montagem, assim como buscamos fazer nas construções de casos clínicos. É também essa nossa aposta de leitura ao texto freudiano: des-montá-lo e nos permitir sermos tocados por ele.

 


Referências
FAVRET, A. O que ilumina o passe no Ultimíssimo ensino de Lacan? [Podcast]. Rádio Lacan, 2014. Disponível em: http://www.radiolacan.com/pt/topic/156/3. Acesso em: 02 de jan. 2023.
FREUD, S. (1892-1899). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1893-1895). Estudos sobre a histeria. InObras Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD, S. (1894). As neuropsicoses de defesa. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1896). Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1909). Duas histórias clínicas: o “Pequeno Hans” e o” Homem dos ratos”. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1910). A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 11. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1915). A repressão. InObras Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1915). As pulsões e seus destinos. InPulsões (Obras Incompletas de Sigmund Freud). Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
FREUD, S. (1920). Além do Princípio do Prazer. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1924). A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Neurose, Psicose, Perversão. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016.
FREUD, S. (1925). Estudo autobiográfico. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 20. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1926). Inibição, sintoma e ansiedade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 20. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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SANTIAGO, J. (2022). A escrita real no passe não é autoficçãoInédito.

1. Vemos aqui que houve uma modificação no pensamento de Lacan a esse respeito, levando em conta que, no Seminário 11 (1964/1998), ele acreditava que o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar (MILLER, 2012). Jésus Santiago (2022), em A escrita real no passe não é autoficção, indica que “É somente no Seminário ‘De um discurso que não fosse semblante’ que surgem os sinais mais evidentes de uma formulação mais acabada e genuína do real, na medida em que sua concepção se faz sem os instrumentos da linguística. Em outras palavras, o real deixa de estar submetido ao algoritmo do significante/significado e passa a ser distinto tanto do sentido (imaginário) quanto do saber (simbólico)”.



As TCCs e sua tentativa de reduzir o ser falante ao organismo

Margaret Pires do Couto
Aderente da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise.
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação/UFMG e
pós-doutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
coutomargaret@gmail.com

 

Resumo: O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo.

Palavras-chave: Corpo; Psicanálise; Gozo.

The TCC’s and it’s attempt to reduce the speaking being to the organism 

Abstract: The article discusses how the belief in the existence of a natural body supports the attempt operated by Cognitive Behavioral Therapies (TCC) to reduce the speaking being to the organism. It is a body that supposedly should be quantified, domesticated and, therefore, adapted to the ideals of culture. On the contrary, psychoanalysis teaches us that a habitable body is not a biological datum. It is the fruit of the clash with language, the place of jouissance.

Keywords: Body; Psychoanalysis; Jouissance.

CAROLINA BOTURA. LONGEEUMLUGARQUENAOEXISTE

 

Um dos modos de rechaço à psicanálise que temos enfrentado no cotidiano de nossa clínica tem ocorrido por meio do encaminhamento em massa, especialmente de crianças e adolescentes, para as psicoterapias de orientação cognitiva comportamental. Os pais ou responsáveis relatam que esse direcionamento é realizado pelo médico pediatra, por diferentes profissionais da saúde, como também pelos profissionais da educação. Com a promessa de eficácia, objetividade e rapidez nos resultados, a terapia cognitiva comportamental (TCC) opera uma nova forma de governo da infância e da subjetividade.

Constatamos também a invasão dos ideais adaptativos dessa abordagem terapêutica na formação tanto dos profissionais da saúde como dos profissionais da educação.

A suposição de um corpo naturalizado, que existiria de forma independente da linguagem, ancora a tentativa de reduzir o ser falante ao organismo. O fascínio provocado no meio médico e educacional por essa proposta terapêutica se verifica em função da crença que é possível se ter o acesso a esse corpo de forma direta e, assim, quantificá-lo, padronizá-lo e adaptá-lo aos ideais vigentes. A promessa da eficácia promove uma verdadeira simplificação que exclui o sujeito, o gozo e o real na difícil tarefa de habitar um corpo.
Desconstruindo a TCC

Encontramos, de acordo com Aflalo (2012), uma aliança neo-higienista da psiquiatria biopsicossocial e o ideário da TCC. Nessa aliança, a clínica psiquiátrica é esvaziada de seu conteúdo e a investigação diagnóstica é substituída pela prática de questionários. Seus métodos contribuem para a propagação de uma ideologia duvidosa que sustenta um novo racismo científico. A psiquiatria psicobiossocial se faz passar por um humanismo científico, embora seja especialmente uma espécie de biorreligião a serviço das TCCs.

A discussão de cinco pontos nos permitirá estabelecer as bases da TCC e seus limites teóricos:

1. O pretenso cognitivismo das TCCs

Para Laurent (2007), a cognição a que se refere o termo terapia cognitivo comportamental não é a cognição definida pelas chamadas ciências cognitivas. Ela não permite estabelecer nenhum laço demonstrativo entre a prática das TCCs e os modelos teóricos propostos pelas ciências cognitivas. O pretenso cognitivismo das TCCs é, antes, uma bricolagem teórica. As terapias do mesmo nome são, na verdade, uma aplicação direta e técnica de duas teorias, inclusive opostas em seus princípios: a teoria comportamental e a teoria cognitivista. A concepção da natureza humana não é a mesma para os partidários do comportamentalismo e do cognitivismo. Para os primeiros, homem e animal são idênticos, pois não há diferença entre a adaptabilidade do comportamento humano e a do rato em laboratório. O humano seria apenas a soma de comportamentos, haveria apenas o organismo. Para os cognitivistas, o ser humano estaria identificado com um de seus órgãos, o cérebro, reduzido ao funcionamento de um computador. O pensamento não passaria de uma soma de programas informáticos e haveria apenas linguagem, porém, reduzida a um código.

Os dois projetos se opõem fundamentalmente. Entretanto, o que uniu essas duas formas de pensar o ser humano, apesar de suas diferenças de origem, foi a rejeição do humano como um ser de fala. Sua abordagem reducionista lhes permite afirmar que o psiquismo obedece apenas ao determinismo do organismo. Sejam quais forem os ideais em jogo, a etologia do comportamentalismo ou a máquina artificial do pretenso cognitivista, nega-se a dignidade do ser falante e a verdade de sua queixa.

2. A falsa ideia da saúde mental

A crença na existência de uma “saúde mental” é uma viga central do edifício da TCC. Entretanto, sabemos que é impossível definir cientificamente o que seria essa “saúde mental”; ela é, contrariamente, definida por uma norma moral. Os especialistas da TCC mascaram esse impossível, fazendo da saúde mental um conceito estatístico. Substituem a realidade dos fatos pela realidade estatística como se os cálculos bastassem para fazer existir a realidade do que é calculado.

Após definirem que existe uma norma mental e uma normalidade psíquica, todos os que dela se afastam, que não se tornaram a média estatística, são os desviantes, portadores de patologias mentais a serem reeducadas.

Assim, os teóricos da TCC desconhecem que a condição de ser sexuado e mortal do ser falante está na origem de vários sofrimentos “psi” e que o real do psiquismo, do mental, é o gozo.

3. Protocolos e questionários: a propagação de um cientificismo

O método dos questionários busca garantir que os comportamentos possam ser observados, codificados e quantificados. Desse modo, os comportamentos são reduzidos às listas de questões simples, às quais são atribuídos valores numéricos. A metodologia se resume à fabricação do questionário com o objetivo de formular questões objetivas e elaborar um protocolo, entendido como um conjunto de perguntas.

A prática dos questionários se afasta muito da experiência clínica. A cotação das respostas da avaliação substitui a qualidade pela quantidade, a descrição dos fenômenos por números que são organizados em estatísticas feitas para velar a falha estrutural do saber. Essa máquina enlouquecida da avaliação pretende uniformizar tudo em uma espécie de código universal.

4. O supermercado dos diagnósticos e a demissão da clínica

A psiquiatria é a única disciplina médica em que os diagnósticos são estabelecidos com base não na causa real da doença, e sim no efeito que os medicamentos têm sobre ela. As classificações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) são fabricadas com o mesmo procedimento de avaliação: são objeto de cálculos estatísticos. O DSM não originou nenhuma verificação independente que levasse em consideração o princípio da falseabilidade ou refutabilidade de suas descobertas, princípio fundamental de certificação de um conhecimento científico de acordo com Karl Popper.

Nessas classificações, nunca se trata do sujeito nem da clínica do caso. Está em jogo apenas o consenso dos psiquiatras. Trata-se de uma espécie de “ditadura do consenso” (AFLALO, 2012), ou seja, o que se leva em conta não são fatos em si, mas sim o consenso dos especialistas, que devem satisfazer também as companhias seguradoras para as quais trabalham. Na impossibilidade de verificar os sintomas “psi”, os especialistas os negociam, mantendo apenas o que pode fazê-los concordar entre si.

5. Sintoma: um erro cognitivo

As TCCs tentam impor a ideia segundo a qual o sintoma “psi” é um distúrbio, cuja origem seria tripla: falta de aprendizagem, componentes biológicos e sociais, motivo pelo qual se tornou “biopsicossocial”. Há uma operação de redução do sintoma “psi” por meio de três operações:

1) Transforma o normal em normativo: esconde o fato que a norma “psi”, inacessível à ciência, sempre se fundamenta num julgamento de valor, ou seja, decorre da moral.

2)Transforma o mental em orgânico: utiliza-se das estatísticas para assentar o mental com as ferramentas conceituais aplicáveis ao organismo. Na falta de poder ver o órgão mental, cujas disfunções valeriam para todos, a norma do mental é fabricada com estatísticas que se fazem passar por uma verdade universal.

3) Utiliza-se do artifício do cálculo estatístico forçando a passagem do patológico para o normal, da doença mental para a saúde mental. A média estatística se torna a norma estatística e, por fim, a normalidade mental.

Para se tornar avaliável, o sintoma é transformado numa grande quantidade de itens simplórios. É reduzido a pequenas unidades de comportamentos ou de cognições, a fim de encontrar uma significação constante, facilmente calculável. O sintoma é reduzido a uma quantidade excessiva a ser corrigida. Desse modo, estabelecem listas de sintomas, ou seja, “faltas observáveis de comportamento e de pensamentos” que sempre esbarram nas questões do ser vivo e sexuado. A ineficácia dessa fabricação de sintomas impele sempre a inventar outros, principalmente ditos de personalidade. Assim, as TCCs tropeçam sempre no problema da persistência dos sintomas e das personalidades desviantes, refratárias às recompensas dadas para normatizá-las ou fazê-las desaparecer.

O sintoma é concebido como um erro que não tem a ver com a verdade, mas como um erro de consciência, do cognitivo. Nessa perspectiva, as terapias da TCCs são aprendizagens padronizadas, metódicas e breves.

Por fim, encontramos, nesse empuxo à quantificação e nesse modo de abordagem terapêutica, a tentativa de desembaraçar-se do sujeito, do gozo e do real. Por outro lado, o sujeito da experiência analítica demonstra ser intraduzível às neurociências e ao código das TCCs e demonstra como a consistência do corpo do falasser depende de uma amarração singular.
O corpo sinthomatizado e a presença do analista

No último ensino de Lacan, o corpo é abordado em sua vertente de gozo, em sua vertente real para além do campo da imagem. Para se manter unido, necessita estar amarrado aos registros imaginário e simbólico indicando que sua consistência não se dá naturalmente, ao contrário, precisa sempre de algum artifício para se sustentar. Um corpo relativamente habitável, unificado e estável não é um dado biológico. A maneira como esse corpo se mantém e a forma pela qual se dá a união entre o corpo, a substância gozante e a fala torna-se para Lacan um verdadeiro mistério (LACAN [1972-73]1985).

Como uma caixa de ressonância, o corpo é o lugar onde se experimentam os afetos e as paixões, muitas vezes desconhecidos pelo ser falante. Denominar o corpo de “falante” significa dizer que ele é traumatizado por essa língua primeira, que deixa marcas de gozo. Nele se deposita o gozo, que não é subjetivado e nem transformado em enunciação, e, por isso, não pode ser apropriado pelo sujeito. Trata-se, portanto, de um corpo parasitado pela linguagem, marcado por signos que evocam a presença muda de um gozo que ultrapassa o registro fálico (MILLER, 1999).

Desse modo, o corpo traumatizado por alíngua se difere radicalmente do corpo, supostamente natural e já dado por antecipação da TCC. Para as TCCs, o corpo é uma máquina, regulado por leis naturais, separado do campo da linguagem, do Outro e especialmente do gozo.

Nessa perspectiva, Laurent, em “O avesso da biopolítica” (2016), discute como o discurso da ciência busca identificar o ser falante ao seu organismo, eliminando o gozo. O discurso da evidência orgânica recorre à imagem do corpo para fazer desaparecer o real do gozo. O corpo-máquina faz par com o corpo-imagem, por um lado, dividindo esse corpo em unidades sempre mais numerosas e mais complexas, e, por outro, fazendo uma falsa imagem unificada, que se reproduz em variadas telas. A forma do corpo, bem como a multiplicação de suas imagens, fascinam e se oferecem como remédio contra a angústia contemporânea.

“A força da imagem em todos os níveis é encarnar, num objeto separado, o que da lógica subjetiva escapa à representação. Não se vê o sujeito, mas se veem as imagens do corpo, de sua forma e de seu funcionamento. Querer reduzir o sujeito ao seu corpo faz parte da tentativa de identificar o ser falante (être parlant) ao seu organismo” (LAURENT, 2016, p. 16).

Lacan, ao contrário desse discurso da tecnociência, enfatizou a divisão entre o sujeito e sua imagem. A ideia de si mesmo como um corpo implica uma crença, a crença de tê-lo diante do fato que ele, o corpo, escapa o tempo todo. O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN [1975-1976], 2007 p. 64).

É o que nos ensina Samantha, uma garota de 12 anos que, após ter passado por uma TCC e serem constatados problemas relativos ao corpo, nomeados desordem do movimento postural-ocular e déficit de integração, chega à análise. Tratado como um caso de um organismo defeituoso, como um transtorno, nada do corpo, como caixa de ressonância do gozo de lalíngua, é vislumbrado nesse tratamento. Como consequência, seu modo singular de vivificação e amarração desse corpo vacilante, que ameaçava escapar o tempo todo, foi desconsiderado. É durante o tratamento analítico que Samantha inventa uma solução validada pela analista: ela passa a se utilizar do cosplay1, um recurso imaginário que lhe permitiu dar consistência ao seu corpo e protegê-lo de um gozo devastador.

 


Referências
AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007
LAURENT, É. As TCCs não fazem parte do programa cognitivo. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
LAURENT, É. El cognitivismo o el cuerpo sinthomatizado. In: Blog-Note del sintoma. Buenos Aires: Tres Haches, 2006.
LAURENT, É. El atravesamiento del sistema de la ciência. In: El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches, 2010.
LAURENT, É. O falasser político. In: O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
MILLER, J.-A.  Elementos de biologia lacaniana. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – MG, 1999.

1. Cosplay é um termo em inglês, formado pela junção das palavras costume (fantasia) e roleplay (brincadeira ou interpretação). É considerado um hobby no qual os participantes se fantasiam de personagens fictícios da cultura pop japonesa. 



Os pais traumáticos, a data do trauma e a criança troumatisé1, 2

Philippe Lacadée
Psicanalista, A.M.E. da ECF/AMP
phlacadee@wanadoo.fr

 

Resumo: A criança é, desde suas primeiras relações com o Outro, traumatizada. Lacan forjou o neologismo troumatisme para indicar que o trauma está ligado a uma experiência relacionada ao sem-sentido, ao encontro com um real, enfim, a um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro.

Palavras-chave: criança; troumatisme; trauma.

THE TRAUMATIC PARENTS, THE DATE OF THE TRAUMA AND THE TROUMATISÉ CHILD

Abstract: 
The child is, from its first relations with the Other, traumatized. Lacan forged the neologism troumatisme to indicate that the trauma is linked to an experience related to meaninglessness, to the encounter with a real, or simply to a hole in the understanding of things or words that it receives from the Other.

Keywords: child; troumatisme; trauma.

CAROLINA BOTURA. O SEGREDO

 

Comecemos por uma observação de Jacques Lacan. Trata-se de um encontro que ele teve com uma criança pequena, certamente de sua família, e que ele relata em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, logo após ter mencionado sobre o sobrinho-neto de Freud. Lacan (1964/2008, p. 67) nos diz:

Eu vi, também eu, vi com meus olhos arregalados pela adivinhação maternal, a criança, traumatizada com a minha partida a despeito de seu apelo precocemente esboçado na voz e daí em diante mais renovado por meses e meses – eu a vi, bastante tempo ainda depois disso, quando eu a tomava, essa criança, em meus braços – eu a vi abandonar a cabeça sobre meu ombro para cair no sono, o sono unicamente capaz de lhe dar acesso ao significante vivo que eu era depois da data do trauma.

O encontro traumático do significante vivo

A criança, da qual Lacan nos fala aqui, é uma criança traumatizada que encontra no Outro a paz simbólica e que ali adormece. Observemos primeiro como Lacan nos falou dessa criança traumatizada pelo fato de que o Outro, isto é, ele mesmo, a deixou, apesar de seu apelo; essa criança que, a partir de então, diante da falta de resposta do Outro, não endereça mais um apelo, caindo numa espécie de mutismo, ou de autismo, e que encontra através do sono nos braços de Lacan “acesso ao significante vivo que eu era depois da data do trauma”. O Outro, para a criança, é sobretudo um significante vivo que ilustra como o encontro com o Outro é traumático, e como também pode ser apaziguador. Lacan nos indicou que o significante não é somente simbólico ou apaziguador, mas é vivo, isto é, pode gozar de sua vida de significante sozinho e, como tal, portar um gozo sem-sentido; esse gozo é traumático para a criança porque ele lhe escapa, enquanto outro significante não vem para lhe dar significação. A criança não compreende nada, isso a traumatiza, fica sem recurso – o Outro ao sair a abandona, não responde ao seu apelo, o Outro, portador do significante, vive e goza em outro lugar, para além dela.

O apelo ao Outro e o encontro com os objetos

Observamos que Lacan ressalta os danos da palavra para uma criança quando seu apelo não é atendido. Ele diz que entre o Outro e a criança existe “seu apelo precocemente esboçado na voz”. Remarcamos, finalmente, como ele introduz a importância para a criança, no apelo ao Outro, de um objeto que lhe vem do desejo do Outro: a voz, esse objeto voz, é tomado por todo sujeito em sua relação com o Outro. Esse objeto voz e a pulsão invocante a ele vinculada, assim como o objeto olhar e a pulsão escópica, são dois objetos fundamentais na clínica que Lacan destacou para a criança. Assim, o objeto olhar e a pulsão escópica são essenciais nessa cena: “vi com meus olhos” e o “olhar da mãe”. Ao elaborar o “estádio do espelho”, Lacan primeiro apontou esse momento em que a criança, diante do caos e da fragmentação de seu ser, tenta recuperar uma unidade na imagem especular que ela investe libidinal e imaginariamente para se fazer um eu. Mais adiante, ele enfatizará a importância do olhar do Outro e da pulsão escópica. Da mesma forma, durante essa cena da criança que ele toma nos braços, o Outro, Lacan é testemunha da ruptura do ser que abala essa criança, mas o olhar que ele oferece faz com que ele participe do acontecimento até ocupar a posição causal que faz com que essa cena exista porque é vista. O Outro, por seu olhar, torna-se aquele que acompanha a criança no momento de sua entrada no mundo e acaba sendo o elemento ativo fundamental que, ao criá-lo, transforma esse mundo hostil em mundo apaziguado. O Outro enquadra a experiência da criança com seu olhar.

Os pais traumáticos e a marca de um significante no corpo

A psicanálise, indica Lacan, é “a demarcação do que se compreende de obscurecido, do que se obscurece como compreensão, em virtude de um significante que marcou um ponto no corpo” (LACAN, 1971-72/2012, p. 145). Um psicanalista reproduz uma produção da neurose, indica Lacan, e nisso todos estão de acordo. Essa neurose é atribuída, não sem razão, à ação dos pais, e isso na medida em que “converge para um significante que emerge dela que a neurose vem a se ordenar segundo o discurso cujos efeitos produziram o sujeito” (LACAN, 1971-72/2012, p. 145). Lacan fala então dos pais traumáticos: “Todo pai ou mãe traumático está, em suma, na mesma posição que o psicanalista” (LACAN, 1971-72/2012, p. 146). Lacan precisa que se o psicanalista, de sua posição, reproduz a neurose, “o pai ou mãe traumáticos a produzem inocentemente” (LACAN, 1971-72/2012, p. 146). É o que nos mostra esse exemplo de Lacan, psicanalista e também pai traumático, mas inocente.

Observamos ainda como Lacan, nessa vinheta clínica, ilustra sua posição em relação à mãe. Ele indica que seus olhos são abertos pela adivinhação materna. É o olhar dessa mãe sobre seu filho, sua adivinhação materna, que o faz adivinhar o trauma, que o torna visível a ele. Vemos aqui como o significante “adivinhação” opera um deslizamento, etimologicamente fundado, entre adivinho e divino, deixando aparente esse divino que está ligado à figura da criança, da criança como se ela fosse um Deus, da criança “inocente e alegre”, tal como Victor Hugo retrata em seu poema intitulado “Quando a criança aparece”,3 e tal como Freud a designa em “Introdução ao narcisismo”: His Majesty the baby.

A criança lacaniana não é uma inocente

Observamos também como, para Lacan, a criança freudiana é culpada de se deixar levar pelo gozo masoquista que ela sentiu ou sofreu, ou seja, que dela decorreu. Há na criança uma inclinação que a impele a se tornar o objeto caído do Outro. Ser tratada como um objeto, como um cão (LACAN, 1958-59/2016, p. 141). Há nela uma disposição precoce para a degradação, um masoquismo primordial que a impele de sofrer com sua própria degradação e de tirar dela uma satisfação fundamental, um gozo. Algo insiste no âmago do ser, cuja existência Lacan afirmou como uma necessidade primária, esse algo que põe cada ser à mercê de ser abandonado por aquele que o sustenta simbolicamente em sua experiência de nomeação.

Para Lacan, a criança não é uma inocente, ela é culpada do gozo que extrai usando o significante, mas também deixando-se levar por seu masoquismo primordial. Para Freud, e depois para Lacan, a neurose infantil não vem propriamente do encontro traumático com o Outro, mas do real, do gozo em jogo nesse encontro, gozo sobre o qual a criança não pode colocar nenhuma palavra e do qual pode fazer certo uso. A criança lacaniana não conhece a negligência, pois, por causa da linguagem, não há para ela simbiose possível com o autor de seus dias, mas há sempre a discordância do mal-entendido.

A discórdia da criança nascida mal-entendida: o trauma (le troumatisme) 

A criança é separada desse mundo no qual o nascimento a lançou, que já estava lá antes de sua chegada. Ela é uma imigrante no país da fala, no país onde o apelo pode não encontrar resposta. Uma criança nasceu, um rasgo se produziu, uma falha se abriu, uma distância permanece irredutível. Houve um corte, uma separação. A criança jamais desvelará o mistério de sua origem e, diante da pergunta “Quem é esta criança aí?” (LACADÉE, 2010), é preciso ter cuidado para não acreditar que essa problemática da origem se tornaria alcançável. A amnésia infantil testemunha a impossibilidade de qualquer sujeito responder a essa pergunta – a criança não volta à origem, ela é introduzida pela via do mal-entendido à dimensão do real. Algo escapa ao sujeito, algo do qual ele está sempre separado; esse real não simbolizável pode retornar, pode emergir na virada de cada história. À pergunta “Quem é esta criança aí?” poderíamos, então, propor a resposta de que a criança, por ser uma criança, é fundamentalmente traumatizada. “Do trauma, não há outro: o homem nasce mal-entendido” (LACAN, 1981, p. 12). Para devolver vigor e rigor ao termo “trauma”, Lacan forjou o neologismo troumatisme (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974), como dizer da melhor forma que isso que faz trauma na criança é o encontro com um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro. Há para a criança um furo no saber, ela não consegue colocar em palavras o que vive, o que sente, o que encontra. Ela experimenta uma experiência fora do sentido, uma experiência de gozo no sentido de um encontro com um real que ela não pode assimilar. A criança lacaniana é, portanto, uma criança traumatizada (troumatisé) porque exposta a momentos traumáticos.

 

Tradução: Giselle Moreira
Revisão: Letícia Mello

Referências
LACADÉE, P. Qui est-il, cet enfant-là. In: Le malentendu de l’enfant. Paris: Éditions Michèle, 2010.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1958-1959). O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LACAN, J. (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Texto inédito).
LACAN, J. (1980). Le malentendu. Ornicar?, n. 22/23, Lyre, Paris, 1981.

1. Texto apresentado na Conversação em torno do livro Janela da Escuta: o adolescente especialista de si e a tessitura de uma rede sob medida, promovida pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina da Seção Clínica do IPSM-MG, em 24/09/2022.
2. Título original: “Le parent traumatiquela date du trauma et l’enfant troumatisé”. O autor se serve do neologismo lacaniano troumatisé, que será desdobrado ao longo deste texto. Optamos aqui por mantê-lo em francês.    
3. No original, “Lorsque l’enfant paraît” (1831): Lorsque l’enfant paraît, le cercle de  famille/Applaudit à grands cris./Son doux regard qui brille/Fait briller tous les yeux,/Et les plus tristes fronts, les plus souillés peut-être,/Se dérident soudain à voir l’enfant paraître,/ Innocent et joyeux. Em português: Quando a criança aparece, o círculo familiar/Aplaude com grande clamor./Seu doce olhar que brilha/Faz brilhar todos os olhos,/E os rostos mais tristes, talvez os mais sujos,/De repente se animam ao ver a criança aparecer,/Inocente e alegre. (Tradução nossa)



Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat
Psicanalista, doutora pelo Programa
de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ
clarisse.boechat@gmail.com

 

Resumo: Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época.

Palavras-chave: Psicanálise; presença; ruas; errância.

ABOUT A CERTAIN PRESENCE OF PSYCHOANALYSIS IN THE STREETS

Abstract: In this text, I return to questions that emerged from the experience of working on the streets of the city of Rio de Janeiro, between 2012 and 2019, and the lessons I was able to extract from that. Highlighting especially the wandering that the streets showed me as one of the names of the real of our time. From that, it was possible to locate and point out what, for each one, worked as guidance, as well as sustain our bet on the “errant methods” of those I have met. The work turned out to be a learning experience, coinciding with what I also find in my, more traditional, clinical practice. Whether in the office or on the streets, wandering seems to present itself as a privileged mode of operation in times when the Name-of-theFather no longer serves as the main highway. As we live in a wandering world, the patients who come to us in our offices are also taken by their own wanderings and atypical solutions, as a symptom of our time.

Keywords: Psychoanalysis; presence; streetswandering.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Retomo, neste texto, questões que começaram a surgir a partir do trabalho iniciado em 2012, como psicóloga do Consultório na Rua do Centro do Rio de Janeiro. A primeira delas tornou-se mais consistente no título de minha tese de doutorado1: “Quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?”. Para respondê-la procurei localizar o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico. Em outros termos, considerando as grandes diferenças entre os encontros que aconteciam nas ruas e uma experiência de análise, qual é a pertinência do interesse da psicanálise em relação a um campo, à primeira vista, tão distinto daquele das análises tradicionais? As experiências de errância das ruas nos ensinariam sobre a abordagem psicanalítica dos sintomas ou é muito mais a experiência com essa abordagem que pode orientar nossas intervenções nas ruas?

Tais questões se endereçaram ao Núcleo de Pesquisa “Práticas da Letra”, ligado ao Instituto de Clínica Psicanalítica da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio. A pesquisa do núcleo, coordenado à época por Ana Lucia Lutterbach-Holck, interrogava os “usos possíveis da psicanálise na cidade”, convocando-a a se fazer presente “nas ruas, de portas abertas a quem possa interessar testemunhar sua experiência” (LUTTERBACH-HOLCK, 2014, p. 43). Dessa aproximação surgiu, num segundo tempo, o ateliê “Escreve-se história”, que funcionou semanalmente em frente à Central do Brasil, entre 2014 e 2019, permitindo-nos estar em contato com o que me parece possível considerar como a presença do real na cidade.

Nesse ateliê, uma dupla de psicanalistas se colocava em uma calçada próxima a essa Central, sob o anúncio “Escreve-se história”, com um banquinho reservado a quem se aproximasse. A este, dizíamos algo como “caso queira nos contar uma história, podemos escrevê-la e entregá-la, ao final, para você”. Enquanto o primeiro integrante da dupla se oferecia como destinatário, ouvindo a história, o segundo operava como uma espécie de “escrevente” e, em silêncio, registrava os pontos que se destacavam quando um pedestre tomava a posição de narrador de sua experiência. Ao fim, oferecíamos o original, ficávamos com uma cópia do material e, caso houvesse interesse, dávamos um cartão com data e horário do próximo encontro.

Ofertávamos a escuta e a escrita daquilo que, na abertura ao imprevisto, em uma fala, se precipita, ressoa, causados pelo desejo de ler a cidade de nosso tempo, inventando formas de ocupá-la. Contudo, essa ocupação das ruas, embora tivesse como bússola a psicanálise, não deu margem a experiências que pudessem ser chamadas de análise. Do ponto de vista mais formal, que tampouco demarca o que é uma análise, havia uma radicalidade no despojamento do setting. Os atendimentos eram feitos em meio a carros e transeuntes; não havia pagamento nem como recolhermos os efeitos do só-depois — pois muitas vezes o depois não existia, devido ao trânsito mesmo daqueles com os quais pontualmente nos encontrávamos.

A oferta de escuta e registro das histórias que alguns teriam a nos contar foi o ponto de partida para que pudessem, cada qual a seu modo, e de formas muito distintas, servir-se daquela espécie de trabalho de “edição” que fazíamos sobre o que nos ressoava como orientação. Tanto o “ouvinte” das histórias quanto seu “escrevente” tinham a função de “editar” o “texto” que nos era endereçado. Por vezes, tal “edição” consistia em apontar o que se esboçava como uma localização subjetiva; em outras, havia a tentativa de instauração de um espaçamento mínimo, localizando frestas que furassem a consistência de um Outro invasivo, permitindo-nos apostas nas possibilidades de uma extração de algo perturbador; e ainda, em certas ocasiões, visávamos aos significantes que indicavam uma modalidade de gozo, seja pela possibilidade de ela se constituir como ancoragem, seja pela aposta de promover algum descolamento. Buscávamos extrair, da errância, uma leitura, na medida em que pudéssemos seguir o fio daquelas andanças, nos constituindo como lugar de endereçamento e, a partir daí, víamos se era possível apostar na localização de um fio, por vezes roto e puído, daquelas histórias.

Certa vez, perguntei a uma mulher o seu nome, ao que, de uma só vez, respondeu: “Maria da Silva. Vim do Maranhão depois que me tiraram à força pra fazer sexo. Minha irmã não conseguiu fazer nada (chora). Meu irmão mais velho morreu cortado pra me defender”. Interrogo: “Como você se virou?”. Ela diz: “Tomando distância. Porque eu meto a faca, se eu voltar é pra matar ou morrer”. Em casos assim, tentávamos recolher algo que funcionasse como uma espécie de orientação vital. Digo a ela: “sua vinda foi uma aposta na vida”, apontando, mesmo diante do horror, para a dimensão vivificante dessa escolha que se impôs.

Era recorrente que aquelas histórias fizessem referência a um antes e um depois de acontecimentos que desfizeram arranjos com os quais seus narradores se sustentavam, deixando-os sem uma rede de proteção e expostos à queda de identificações que os ligavam ao Outro, que os inseriam no laço social, levando-os, com certa frequência, a desmoronar feito um castelo de cartas diante do sopro de uma infeliz contingência. Acontecimentos dessa natureza parecem apontar para o furo de um real traumático, frente ao qual a rua responde como espaço para a errância.

Tocar em amarrações tão vitais requer um manejo delicado para, por exemplo, não destacar uma identificação mortífera, abrir buracos em estradas acidentadas demais, sob o risco de interditá-las. Diante de tamanhas devastações, estávamos atentos ao que despontava como recurso, orientação, extraindo os “pontos cardeais” que o “escrevente” tomava como norteadores naquelas histórias. O que chamamos de “pontos cardeais” são os arranjos e soluções que apostávamos fazer a função de ancoragem diante daquilo que, para cada um, apresentava-se como deriva: pequenas bússolas que operassem como orientação.

Em “O exílio e a identificação”, Cristiane Alberti aborda questões relativas ao exílio estrutural do falasser em relação à linguagem, mas também quanto à perspectiva mais radical do exílio, que nos chamou a atenção pela proximidade com o que as ruas apresentam: “Destaquemos aqui que alguns sujeitos estão sempre fora de, jamais em casa, um exílio existencial, nenhum lugar, parte alguma” (ALBERTI, C., 2020, n.p.). Entendemos que “nenhum lugar”, “parte alguma” apontam para uma metonímia incessante, marca do que não se localiza, excesso de extravio. O que chamamos de errância relaciona-se a essa deriva pulsional, em que o circuito da fantasia, a formalização de um sintoma, ou mesmo a consistência de um delírio, não se apresentam de forma tão localizável.

A errância no ensino de Lacan não possui o estatuto de um conceito nem é um tema recorrente em seus seminários. Mas podemos nos ater aqui à menção que lhe é feita no título de seu Seminário 21: les non-dupes errent, que joga com a homofonia que remete tanto aos “não-tolos erram” quanto à pluralização de “Os Nomes-do-Pai”, apontando para as soluções atípicas que um sujeito pode lançar mão para se virar na vida. A temática da errância, tal como Lacan a esboça ali (1973-74, inédito), pode constituir-se como fio condutor de uma clínica que precisa se haver com impasses e soluções surgidas quando o Nome-do-Pai não se faz estrada principal que orienta os caminhos. Ao contrário, na errância há a iteração insistente do Um do gozo desarticulado de um itinerário ou mesmo do que pode se apresentar como montagem da pulsão.

Tal errância se traduz como certo “desenraizamento” e nos evidencia o que se passa quando um sujeito perde o que poderia ter-lhe sido referenciais, vendo-se ultrapassado pela iteração do Um do gozo, sem sentido. Os não-tolos, segundo Lacan, são aqueles que se apresentam como errantes, porque se fixariam à pretensão de seguir sempre a direção inequívoca que a iteração comporta, ou mesmo nos mandamentos provenientes do supereu e nas rotas determinadas pelo Nome-do-Pai.

Fernanda Otoni-Brisset, em “O povo e a peste”, testemunha, de sua prática na rede pública “junto a pessoas sem renda, sem documentos, sem trabalho, sem família, sem teto, sem lei, sem razão, sem muita coisa” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.), e situa que eles têm muito a dizer quando encontram um analista: “Diria que portam sem saber, um saber que não é suposto. Um saber a forçar suas escolhas, de forma irrecusável” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.). Otoni parece também se encontrar com o que nomeamos como a dimensão da iteração presente na errância, que, em seu texto, tender-se-ia a localizar como “esse saber a forçar suas escolhas” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.).

Eis o desafio: como nos incluirmos como destinatários do endereçamento de um saber que se sabe sozinho, que não é suposto? Diante da dimensão implacável da iteração do gozo descolada da suposição de saber no Outro, cabe, ao analista, a aposta de fazer incluir nesses circuitos, a fim de se constituir como parceiro, por exemplo, na relação com o gozo opaco do Um, que itera, instaurando uma modesta margem de manobra a partir do saber que se recolhe.

Quando Claudionor pergunta meu nome e lhe respondo “Clarisse”, ele observa: “Olha! 2 C: Claudionor e Clarisse”. Em seguida, diz que gostaria de escrever um livro com dedicatória para 3 K. Destaco: “Você gosta de letras!”. Ele diz que sim, me mostra uma tatuagem com o 3K, explicando se tratar da inicial dos nomes das três filhas. A letra K surgiu quando aguardava o nascimento de sua primeira filha na maternidade, ao ler uma revista em quadrinhos em que tinha uma mulher chamada Kelly: “Fiquei com o K e escolhi o nome de Késia pra ela”. Ou seja, esse K ele extrai no momento do nascimento de sua primeira filha, parindo um significante que lhe permitiu ser pai. Desse K, retirado da revista, partirão os nomes das demais filhas: Késia, Keyla, Kamile — 3K. O que recolhemos dos encontros, que duraram cerca de um ano, nos ensina sobre o uso sinthomático do 3K, invenção marcada pela tolice de se deixar guiar por essa espécie de Um sozinho, que lhe orienta a deriva, a lógica de sua errância, funcionando à semelhança de um itinerário.

Seguíamos aqueles sujeitos em seu ir-e-vir, às vezes sem rumo, buscando fazer ressoarem as formas pelas quais eles poderiam se valer de seus próprios arranjos, inventando ou aprimorando modos de lidar com o gozo que itera sempre em suas derivas.

Jacques-Allain Miller, em O parceiro sintoma (2008), considera o sinthoma, no último Lacan, como uma construção que envolve uma parte de gozo solta e uma parte de gozo apreendido no âmbito do discurso. Nessa dimensão sinthomática, os itinerários, as montagens, podem ser variados — são formas de dar lugar à errância inerente ao gozo, que é sempre singular.

Ao nos fazermos presentes nas ruas, com a psicanálise, nos acostamentos e “quebradas”, no burburinho caótico da cidade, às margens da rodovia do Nome-do-Pai, aprendemos a garimpar os “pontos cardeais” que podem fazer as vezes de caminhos, conforme Sérgio Laia nos indica mostrando que as errâncias possuem seus próprios métodos sinthomáticos. Fora da estrada principal, mas também não deixando os falasseres imersos na solidão do Um-sozinho, podemos encontrar invenções marcadas por esse norteamento de se fazer tolo de um real, para que se possa dar outro lugar a um gozo que é errante e próprio de cada um. Nos casos que acompanhamos, buscamos situar nossa aposta quanto a um norteamento, ainda que esse trabalho não tenha passado, necessariamente, pela construção da fantasia ou de uma estabilização via construção delirante. Esse norteamento pôde, em alguns casos, fazer as vezes de um itinerário, acolhendo a errância do gozo em vez de pretender, em vão, contê-la. Essa era a parceria a que nos oferecíamos: seguir os indícios — que, com o Lacan do Seminário, livro 23, podemos situar como sinthomáticos — daqueles sujeitos que se endereçavam a nós para que lhes escrevêssemos suas histórias errantes.

Seja nas ruas, seja no consultório, a psicanálise se vale dos desarranjos da rotina; é nessa lacuna que relampeja o que mostra a efetividade do discurso analítico em sua via de extrair, onde quer que ele se aplique, enunciações com efeitos de verdade, ancoragens, deslocamentos, leituras, enfim. Também no consultório testemunhamos do mal-estar próprio ao nosso tempo, da iteração do gozo mais além de qualquer enquadre ou norma, quando a estrada principal do Nome-do-Pai já não faz mais tanto as vezes da grande rodovia.

Então, abordamos a errância como um dos nomes do real que as ruas, ao mesmo tempo, acolhem e dispersam, mas, na medida em que vivemos em um mundo errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são também tomados por suas próprias errâncias, como um sintoma de nossa época. A errância diz respeito ao que, do gozo, não se normatiza nem se normaliza, não sendo propriamente específica da neurose ou da psicose, embora possa ser mais disruptiva nos contextos em que o Nome-do-Pai não faz as vezes de norteador.

Em A sociedade do sintoma, Éric Laurent propõe que, “quando o laço se rompe, a cidade se torna o império do vazio, escavado pela escritura, gozo fora do sentido que circula na cidade” (2007, p. 110). As ruas são labirintos por onde o extravio do gozo circula, mas onde ele também se enlaça em arranjos muito singulares, como pude verificar em minha experiência de alcançar as ruas com a psicanálise. Essa presença permitiu-nos testemunhar as formas pelas quais o mais singular de um gozo, que, muitas vezes, dá lugar à segregação, pôde se relançar e até encontrar algum lugar no coletivo em uma renovada, embora muitas vezes lábil, forma de laço social dessegregativo (LAIA, 2020). Um laço que, intermitentemente, pode se enganchar e se desconectar do Outro, compondo diferentes soluções provisórias. Nas ruas ou no consultório, nossa tarefa consiste em instalar pequenas brechas porosas à passagem das operações singulares de cada sujeito, que portam a vitalidade de uma ação psicanalítica extensiva ao campo social. Situado na conjunção entre a clínica e a política, o analista tem como incumbência apostar na emergência da diferença, na abordagem dessegregativa do gozo errante, na diversi-cidade dos laços, tornando-se “aquele que segue” as soluções atípicas (LAURENT, 2018).

 


Referências:
ALBERTI, C. O exílio e a identificação. Disponível em: https://ebp.org.br/rj/2020/10/19/o-exilio-e-a-identificacao/. Último acesso em 09/04/2021.
LACAN, J. (1973-74). O seminário, livro 21: les non dupes-errent. Inédito.
LACAN, J. (1975-76). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAIA, S. O ventríloquo e a biruta analítica: das versões do corpo falante… no momento de conclui. In: Curinga. Nº 49, 2020.
LAURENT, É. A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. In: Opção Lacaniana. Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, n. 79. São Paulo, 2018.
LUTTERBACH-HOCLK, A. L. Sobre o método e o objeto. In: LUTTERBACH-HOLCK, A. L.; GROVA, T. [orgs.] Ao pé da letra: leituras e escrituras na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Subversos, 2014.
MILLER, J-A. Le partenaire-síntoma. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
OTONI-BRISSET, F. O. O povo e a peste. Disponível em: http://lalibertaddepluma.org/fernanda-otoni- brisset-o-povo-e-a-peste/. Último acesso em: 09/04/2021.

1. Tese defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2020, que teve como orientadores Heloisa Caldas e Sérgio Laia.



Um corpo de angu1

Nathália Temponi Natal 
Psiquiatra das Redes de Saúde Mental de Itabirito, Mariana e Ouro Preto
nathtemponi@uol.com.br
 Cláudia Reis 
Psicanalista, membro da EBP/AMP
claudia.r.reis@terra.com.br

Resumo: Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e ,Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro.

Palavras-chave: Toxicomanias; psicose; instituição; analista.

A BODY OF ANGU

Abstract: This writing was constituted from a presentation at a Clinical Section of the Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, in which Nathália was responsible for writing about the clinical case and ,Cláudia, for the comments. Our field of interest was to investigate the relationship that a subject can maintain with a toxic substance and the analyst’s position in conducting the clinical case and, consequently, verify the effects of this encounter.

Keywords: Drugaddictions; psychosis; institution; analyst.

 

CAROLINA BOTURA. OCORPOABRIGA

 

Rogério foi acolhido na instituição de Saúde Mental em 2007, encaminhado pela Unidade Básica de Saúde com relato de que havia chegado agressivo e alcoolizado. Quando lhe perguntado o motivo do encaminhamento, respondeu:

“eu bebo desde o dia em que nasci, minha mãe colocava cerveja na mamadeira e me dava. Meu pai que mandava ela fazer isso, porque eu era muito agitado. Bebo para ver se alivia minha cabeça e se diminui meu estresse. Acho que tô piorando minha cabeça; já tentei parar de beber várias vezes e não consigo. Não consigo resolver meus problemas. Tem hora que eu penso que vou machucar alguém de tanto estresse. Quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram. Quero parar! Ninguém gosta de cachaceiro!”

Relata que, quando criança, via pouco o pai; sentia sua falta e, quando o encontrava, este lhe dava cerveja.

Assumo esse caso em 2019. A todos os plantões, ele chegava alcoolizado, falava muito alto, entrava nos consultórios e interrompia os outros atendimentos. Traz no corpo diversas escoriações, marcas de cortes e cicatrizes de suturas em sua face, por vezes fraturas de partes dos membros superiores, costelas e dentes quebrados. Sua marcha é atáxica, devido a sequela em trauma do quadril na ocasião de um acidente. Observa-se uma piora de sua marcha nos dois últimos anos, provavelmente pelo consumo acentuado do álcool.

Tem chegado cada vez mais machucado; a cada dia, um corte e uma nova sutura em alguma parte do seu corpo, geralmente no rosto e couro cabeludo, por consequência de quedas da própria altura pelo consumo intenso de álcool. Costuma dizer: “o cadáver chegou!”.

Em março de 2020 eclodiu a pandemia do coronavírus e Rogério acentuou o uso do álcool. Ao ser acolhido pela instituição, conseguia passar o dia sem beber, fazendo uso apenas quando chegava em casa e aos fins de semana. A equipe observou o quanto foi importante esse acolhimento devido à urgência que se apresentava nesse caso.

Destaca-se da fala de Rogério sua revolta na infância por ver pouco seu pai e a afirmação de que, quando se encontravam, este lhe dava cerveja. Dos prontuários da instituição, extrai-se, já no acolhimento, que, em sua realidade psíquica, mamava cerveja. Quando se refere a parar de beber, nos traz uma colagem com a morte: “quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram”. Mais adiante: “Eu já estou morto, quem bebe esse tanto já está morto”.

Tem-se uma queixa da falta do pai, relatos de um sentimento de abandono e desamparo e nota-se a presença da pulsão de morte. Esses pontos nos levaram a tomar o Lacan do início de seu ensino, em Complexos Familiares (LACAN 1938/2003), em que relaciona a toxicomania com o desmame. Aponta que o desmame representa a forma primordial da imago materna e que é um momento fundador dos sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. Portanto, instaura marcas importantes na formação do sujeito. Segue suas elaborações afirmando que, traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo a marca permanente da relação biológica que ele interrompe. O desmame é aceito ou recusado, e a continuação do desenvolvimento evocará as marcas daquela crise. É a recusa do desmame que tende a restabelecer esses primeiros conteúdos experimentados. Importante destacar que se trata de um período anterior ao advento do objeto. Diz ainda que esses conteúdos moldam as experiências psíquicas posteriores e são reevocados por associação. Quanto à imago, cito:

“tem que ser sublimada, para que novas relações se introduzam com o grupo social e para que novos complexos se integrem no psiquismo. Na medida em que resiste a essas novas exigências […] a imago, salutar em sua origem transforma-se num fator de morte. […] Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma original que lhe dá o desmame, revela-se nos suicídios […] naqueles que se evidencia a forma oral do complexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas. A análise desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe” (LACAN, 1938/2003, p. 41).

Que efeitos de sentido pode Rogério ter dado ao escutar que era cerveja que mamava?

Notamos uma desordem. Trata-se de um sujeito disfuncional. A forma como leva a própria vida, como não se conecta com o mundo que o cerca, o modo como experimenta seu corpo e o jeito de se relacionar com suas próprias ideias nos levam a tal afirmação. Não consegue ajustar-se socialmente, demonstra uma impotência em relação a conseguir encaixar-se num trabalho, suas relações são problemáticas. Seu corpo vagueia e tem a coordenação motora prejudicada. Um corpo que cai, corta, sutura, não se fixa; um angu, como bem nomeou a analista. Subjetivamente notamos um desenganche do Outro; a cabeça é ruim, porta um mal-estar, uma identificação com o objeto a como dejeto. Não se trata de uma identificação simbólica, mas real: “o cadáver chegou”.

A solução encontrada para todo esse mal-estar é beber. Poderíamos construir uma hipótese, a de que, diante da queixa da falta do pai, este lhe transmitiu esse modo de gozo? Ao aproximar a toxicomania da psicose, teríamos no gozar com o corpo uma forma de substituir o Nome-do-Pai?

Que lugar o objeto álcool ocupa para esse sujeito? O que essa substância representa, uma vez que sabemos que a intoxicação não é da substância, mas do significante?

Rogério está intoxicado pelo que essa droga representa para ele. Qual é o drama subjetivo que essa representação vem a responder?

Colhe-se em sua fala que se trata do encontro com o pai, o elo que os une. Desde seu nascimento (“a cerveja na mamadeira”), até a morte deste pai (“meu pai morreu bebendo comigo”), temos uma trajetória marcada pela presença dessa substância. Desde a falta do pai, sentida no início de sua vida, até a morte enquanto falta, Rogério encontra uma solução, um objeto que tampona, e até transborda: o álcool.

Como fazer desconsistir a droga e trilhar nosso objetivo, que é cavar a passagem do gozo da substância ao gozo pela palavra?

O gozo do toxicômano exclui o corpo do Outro, é autoerótico. Constitui-se como o suposto saber sobre o gozo, ou seja, tem-se uma certeza de gozo com a droga que é um objeto causa de gozo. A aposta da psicanálise é que existe o sujeito do gozo e o sujeito da palavra, e esta circula. Ao oferecer a escuta para que o toxicômano fale, pode despertar algo pulsional.

Nossa orientação teórica acredita que tem um sujeito do inconsciente no doente, por isso operamos a nível do sujeito, e não da droga, exigindo abstinência, por exemplo.

No que toca uma instituição para toxicômanos, sabe-se que esta precisa ser construída a partir do real e conviver com a ideia de que não há tratamento sem recaídas, e, exatamente por isso, tem que contar com algumas estratégias, como pudemos ver no relato do caso. Diante das transgressões do paciente, observa-se um vínculo, mas não muito apertado; um vínculo frouxo. Talvez por isso Rogério, aos trancos e barrancos do seu caminho, lá coloca seu corpo há 15 anos, e parece que ali endereça seu desamparo.

Tarrab (2000) fala da importância de se estar advertido e não ser tragado pelos discursos que circulam nas instituições. Deixar-se surpreender e apostar, sem garantias. Uma posição ética de escutar o sujeito mais além do nome que traz e o marca e dar lugar a sua particularidade. Delinear a entrada na transferência como uma possibilidade de saída.

Interessante o ponto de impasse da equipe diante da condução de tratamento. A solicitação de supervisão clínico-institucional foi uma saída importante. Encaminha-se, pela linguagem, o desafio de Rogério ao saber da equipe, que a colocava impotente e angustiada. Esta, a partir daí, sente-se mais segura para se posicionar e fazer o que precisava ser feito. Existem momentos em que as palavras faltam, e os pacientes passam ao ato para serem atendidos. Do ponto de vista terapêutico, é necessário realizar a internação, que muitas vezes lhes dará o limite corporal. As internações pontuais promovem um intervalo, um respiro.

Tivemos um dado importante que se deu durante a pandemia. Inserido como caso de exceção na PD, diminui o consumo. Nas enchentes deste ano, sem atendimento por duas semanas, a equipe o encontra com os cabelos e barba crescidos e humor deprimido. Poderíamos ter aí um indicador de que uma estratégia de mantê-lo em regime mais próximo poderia ser interessante?

Parece ser esse o desafio do caso. Algo da ordem de uma escuta mais regular, da construção de algum laço que lhe desse um lugar e possibilitasse modificar a posição do gozo desse sujeito, mais compatível com um corpo com outra consistência, que não a de angu.

 


Referências
LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003
TARRAB, M. Las salidas de la toxicomania. In: Más alla de las drogas: estudios psicoanalíticos. La Paz: Plural, 2000.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022.

 




EDITORIAL – ALMANAQUE Nº30

Patrícia Ribeiro

CAROLINA BOTURA. 2018

 

Com este número comemoramos, com muita alegria, a 30ª edição da Almanaque On-line, cujo formato digital se iniciou há pouco mais de 15 anos!

Desta vez, norteados pelo tema O encontro com um psicanalista hoje, seus artigos dão testemunho da importância da presença do discurso psicanalítico em nossos dias, face à presença hegemônica de um discurso que impele a um imperativo de gozo, consoante com a sociedade atual de consumo em seu pacto com a ciência.

Essa aliança promoveu profundas modificações nos laços sociais e em nosso modo de viver, conforme destaca  Margarida Assad, nossa colega e entrevistada desta edição. Como ela aponta, vivemos em uma época marcada, por um lado, pela prevalência de um empuxo ao mais de gozar e, por outro, pela preponderância de soluções universais às questões subjetivas, saberes prontos para usar de forma indiscriminada. Não por acaso, acrescenta Margarida, as instituições sociais, entre elas, a família, “são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguirem sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo”. Ela ainda nos esclarece sobre o que está em jogo na formação atual dos grupos, tomando como exemplos grupos estruturados a partir de significantes que traem a presença da pulsão de morte em seus fundamentos — algo que muito recentemente assistimos, perplexos, em nosso país. Todavia, conforme Margarida, outras formações de grupos de nossa época permitem, ainda que de modo peculiar, manter o laço social “impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem”.

Abrindo a rubrica Trilhamentos, Laura Rubião nos convida para pensar como o analista pode se fazer presente em nossa época, distante das “concepções tradicionais que evocavam o analista como figura neutra ou desinteressada”. Ao contrário, ela salienta a importância de que ele se faça presente como “aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo”. Gilles Chatenay aborda a presença do real na experiência analítica tomando como ponto de partida o seminário de Lacan sobre a transferência. Esteban Pikiewicz percorre os textos de Freud e de Lacan para elucidar o que estaria implicado no sintagma “presença do analista” e sua articulação ao desejo do analista em sua dimensão real.

Em Encontros, Margaret Couto discute a crença na existência de um corpo natural sustentada pelas terapias cognitivas comportamentais, corpo passível de ser quantificado, domesticado e adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, uma vinheta clínica por ela apresentada atesta os efeitos da presença do psicanalista na clínica com crianças, verificando, uma vez mais, que o corpo não se reduz aos dados biológicos. Clarisse Boechat nos oferece suas reflexões sobre sua experiência de trabalho como psicóloga do “Consultório na Rua”, no centro do Rio de Janeiro, orientada pela pergunta “quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?” e buscando, por fim, localizar “o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico”. Florencia Shanahan interroga sobre os modos de presença em uma análise apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona a possiblidade de um final de análise, caso assim permanecesse. Fechando essa rubrica, Guy de Villers nos brinda com o relato dos efeitos de seu primeiro encontro com Lacan, causa da interpelação de seu desejo de “tudo compreender”. A partir desse encontro, o autor discute o que a presença de Lacan introduziu na prática da psicanálise.

Os 15 anos da Almanaque On-line são também comemorados pela presença, a partir desta edição, de uma nova rubrica, que apresentará ao leitor os trabalhos apresentados nas Lições Introdutórias — atividade ligada à Seção de Ensino do IPSM-MG cujo objetivo é transmitir à nossa comunidade os textos seminais de Freud e Lacan. Nessa rubrica de estreia, vocês terão a oportunidade de conhecer artigos que tiveram como horizonte de pesquisa o tema Des-montar a defesa. Como nos explica Virgínia Carvalho, esse título ressoa a orientação lacaniana de que “des-montar a defesa é o ‘coração’, a matriz mesma da operação analítica”, e a inclusão do hífen no ‘des-montar’ visa ressaltar “a ideia de que há sempre uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa”. A autora revela que a questão que permeou sua leitura se condensa na frase “como alguém pode não se defender?”. Em sua rigorosa leitura dos textos freudianos e das contribuições de Lacan e Miller sobre o conceito de defesa, ela esclarece pontos fundamentais quanto à inexorável presença da defesa em todo falasser, frisando suas particularidades nos quadros clínicos das neuroses e psicoses. Cristina Drummond, por sua vez, aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Tal conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias. Mônica Campos destaca que, para Freud, a própria definição de sintoma pressupõe a conexão entre gozo e defesa, pois, “no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela”. E, lembra a autora, desse vínculo entre gozo e defesa decorre a observação de Lacan quanto ao “paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles”. A leitura de Cristiana Pittella do texto freudiano “Neurose e psicose” explora a ideia desse conflito defesa e gozo “que perpassa a obra de Freud”, isto é, “entre forças antagônicas, a defesa e as moções pulsionais”, e esclarece que é a partir da posição do eu nesse conflito que Freud vai delimitar a neurose e a psicose como modos de defesa. Já em seu texto, Luciana Silviano Brandão trata do debate desde cedo aberto por Freud, que culminou em seu artigo de 1937, “A análise finita e infinita”, indagando sobre as possibilidades de um final de análise. A questão de fundo, enfatiza a autora, seria a pergunta sobre a possibilidade de resolver de forma definitiva o conflito entre a pulsão e a defesa. Fechando essa nova rubrica, Lucia Mello se detém sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientando-se pelas leituras de Lacan e Miller e suas preciosas contribuições sobre esse tema para a atualidade do trabalho clínico.

Na sequência apresentamos, em Incursões, trabalhos dos núcleos da Seção Clínica do IPSM-MG. Sérgio de Campos e Fernanda Otoni discorrem sobre a particularidade da presença do analista em relação à psicose ordinária, casos que se manifestam na clínica sob formas de gozo que “exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça”, não restrita a respostas sobre sim ou não à presença do Nome-do-Pai. Campos acrescenta que, longe de se tratar de uma nova categoria diagnóstica, ela “expressa a ponta de um iceberg de uma psicose clássica que se encontra submersa e subjacente”. Já Otoni, comentando o texto de Campos, indaga se o sintagma “psicose ordinária” não seria um convite para explorarmos as consequências da afirmativa de Miller quanto à “igualdade clínica fundamental entre os falasseres” e, por conseguinte, fazermos um deslocamento da pergunta de “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Philippe Lacadée traz importantes elementos para pensarmos as primeiras relações da criança com o Outro sobre o prisma dos “pais traumáticos”, expressão que encontramos em Lacan para indicar que “todo pai ou mãe é traumático” por portar um gozo cuja significação escapa à criança, e, seguindo em sua leitura do Seminário 19, evoca a aproximação lacaniana entre essa posição traumática dos pais e a posição do psicanalista. Ondina Machado traz uma importante reflexão sobre as implicações da criminalização do aborto sob a perspectiva da psicanálise, tomando como premissa que o desejo de ter um filho “não é solução para todas as mulheres”. O neologismo adixões, cunhado por Ernesto Sinatra, é trazido à discussão em seu texto. Inspirado pelo X freudiano da expressão fixierung, o autor pretende ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Nathália Temponi e Cláudia Reis se valem de uma vinheta clínica para se perguntarem sobre a natureza da relação de um sujeito com a substância tóxica e sobre os efeitos de seu encontro com uma psicanalista. Sílvia Soares reflete sobre os efeitos da incidência massiva do mundo digital (jogos e celulares) na clínica com crianças e adolescentes interpelando sobre as possibilidades de estabelecimento de uma abertura ao saber inconsciente no caso de sujeitos que creem ter o objeto em suas mãos, e, em vista disso, sobre como convocá-los a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco. Alessandra Rocha trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças, tomando a questão do grito e do silêncio em Lacan para evidenciar a sua importância na psicanálise.

De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise e se inicia com a discussão trazida por Isadora Urbano sobre o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta norte-americana Sylvia Plath, buscando, em trechos de seus diários, cartas, poemas e no romance A redoma de vidro, as dimensões que a escrita assumiu na vida dessa autora. Wallace Faustino Rodrigues, por sua vez, examina, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, a paternidade na neurose obsessiva a partir de fragmentos da obra do escritor norueguês Karl Ove Knausgard. Fechando a rubrica, Marina del Papa nos transmite o relato de sua experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital, salientando que sua prática lhe trouxe a possibilidade de não apenas revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como fez ressoar a potência da presença do analista com seu corpo.

Esta edição do aniversário de 15 anos contou com as belas e instigantes imagens generosamente cedidas por Carolina Botura. Graduada pela Escola Guignard – UEMG em Pintura e Escultura, Carolina trabalha com cruzamento e prolongamento de linguagens, tendo a ação como disparadora de sua produção em desenho, pintura, escultura, instalação, performance, vídeo, música e cerâmica. Suas pesquisas estão relacionadas à transformação e ao movimento, ao caos e à origem, atravessados pelo viés do tempo para tratar de temas como animalidade, amor, morte, magia, perda, sexualidade, espiritualidade, energia, política e natureza. Paulista de Botucatu, vive e trabalha em Belo Horizonte e já participou de diversas mostras, individuais e coletivas, e residências artísticas no Brasil e no exterior. É também poeta e performer.

Antes de convidá-los para a leitura, gostaria de parabenizar os colegas que estiveram presentes durante todos esses anos na produção da Almanaque On-line, seus diretores de publicação, membros das equipes da revista e os autores que, desde 2007, contribuem para a sua importância como meio de divulgação do trabalho de pesquisa e ensino da psicanálise de orientação lacaniana realizado no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. E, mais uma vez, quero deixar o agradecimento aos colegas da equipe atual.

Obrigada pela parceria tão dedicada e entusiamada!

 

Carolina Botura:
https://www.instagram.com/carolabotura/
https://www.carolinabotura.com



Toxicomanias◊Adixões1

Ernesto Sinatra
Psicanalista, AME da EOL/AMP
ernestossinatra@gmail.com

 

Resumo: Ernesto Sinatra fundamenta as suas razões para a criação do termo adixões, escrito com o X freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Sem abandonar o termo toxicomanias, a proposta do termo adixiones encontra um fundamento ético em que o X aponta para a marca singular do gozo sinthomático de cada Um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação de objetos de gozo que pretende para todos o mesmo. O X marca a singularidade do gozo e a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação. Dessa forma, Sinatra aponta que a psicanálise oferece a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos que intoxicaram sua existência. Nessa clínica, o singular é a bússola que cabe ao analista seguir.

Palavras chaves: adixões; fixação; toxicomanias; gozo sinthomático.

DRUG ADDICTIONS  ADIXIONES

Abstract: Ernesto Sinatra justifies his reasons for creating the term adixões, written with the freudian X of fixierung, to emphasize the mark of the singular fixation of satisfaction with which each ONE responds to the trauma of non-relationship and, thus, differentiate it from the given generalizations to the term addictions, to which any and all forms of consumption apply. Without abandoning the term drug addiction, the proposal for the term adixiones finds an ethical foundation in which the X points to the singular mark of the synthomatic jouissance of each One that resists, being cataloged by the banalization of the consumer market with its manufacture of objects of jouissance that intends to for all the same. The X marks the uniqueness of enjoyment and the subjective responsibility for one’s own satisfaction. In this way, Sinatra points out that psychoanalysis offers the possibility of questioning the alienation of each One to the objects that intoxicated their existence. In this clinic, the singular is the compass that the analyst must follow.

Keywords: adixões; fixation; drug adicctions; synthomatic jouissance.


CAROLINA BOTURA. LU3


De jeito nenhum lhes digo que o discurso capitalista seja medíocre; é, pelo contrário, algo loucamente astucioso. Loucamente astucioso, mas destinado a explodir. (…) É insustentável… num truque que poderia lhes explicar… porque o discurso capitalista está aí, vocês veem… [
indica o discurso no quadro-negro]… uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $… que é o sujeito… basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consuma, se consuma tão bem que se consome. (LACAN, 1972)

 

  1. Introdução: Um discurso que ao se consumar causa o consumo

Ao consideramos a extensão dos tóxicos na vida cotidiana, chegamos – já se vão trinta anos – à tese da toxicomania generalizada: drogas cada vez mais sofisticadas produzidas em escala planetária, atravessando as mais variadas fronteiras, assim como os diferentes estratos sociais; drogas cada vez mais ao alcance de todos e de todo tipo – inclusive as lícitas.

De nossa parte, continuamos afirmando que as adições constituem um dos sintomas mais relevantes do estado atual da civilização, mas me apresso em conjeturar que já não se trata do mesmo sintoma com o qual caracterizávamos o século passado. Hoje as “cicatrizes da evaporação do pai” se aderem aos corpos a partir da multiplicação dos gozos: a pais pulverizados, gozos pluralizados.

“Adições” se emprega hoje como uma chave para todo uso, e quase todos os flagelos atribuídos à pós-modernidade caem sob essa denominação: tudo é “tóxico”. Assistimos a uma implosão das “adições” impulsionada pelo imperativo do mercado2 com listas de novos adictos, designados não só a partir de substâncias, mas a partir dos objetos de consumo – sexo, sexting,3 videogames, pornografia, telefones celulares, séries, esportes, Internet, compras… A lista ameaça ser infinita, inclusive, recentemente, o filósofo Byung Chul-Han fazia referência a “uma sociedade adita aos likes”.

A partir de nossa orientação, interpretamos que o discurso capitalista – “loucamente astuto” – se consome com o franqueamento do impossível que impõe a circularidade de sua orientação.

É o que impulsiona o consumo desenfreado de objetos que saturam o mercado, objetos que são oferecidos a cada indivíduo – transformando-o por esse mesmo fato em um consumidor – para suturar o furo da não-relação e negar o perecível.

“Nada é impossível!” é a frase que identifica a marca líder em vestuário, cujo logotipo – minimalista – antecipou o like das redes sociais: Nike = Like! E, por seus efeitos comerciais – ou seja, por seu sucesso no mercado de consumo –, bem poderíamos acrescentar, seguindo a referência de Lacan a Marx, que, uma vez mais, com um sorriso cínico-canalha, “o capitalista ri”.

Consuma-se dessa maneira o destino fantasmático que cifra o discurso capitalista (impulsionado por essa frase); mas, ali, onde o mercado impulsiona a um gozo ilimitado com os objetos, o sujeito, “senhor e mestre” de suas ações apenas em aparência, não cessa de fazer saber através de suas inibições, sintomas e angústias: “Não posso! Ainda que queira, não posso!.

  1. ADIXÕES, um conceito adulterado4

As adixões tornaram a se generalizar, quer dizer, a se banalizar, pois enquanto o mercado promove com suas classificações infinitas as adixões a tudo, a causa real que as determina volta a ser negada.

Tal generalização do tóxico tem sido também o fundamento com o qual certos especialistas, fundamentados na biologia, realizam classificações cotidianas com as quais nutrem – até a bulimia – os Manuais de Saúde Mental, a partir de números que identificam transtornos, que, por sua vez, se autorizam em estatísticas, aos quais são atribuídas etiquetas que fixam tais transtornos que costumam ser, como corolário, complementados com psicofármacos.

A partir de nossa investigação, caracterizamos o nov@ sintoma com o termo “adixões”, a fim de cifrar o princípio da toxicidade mesma do gozo como tal, mais além do objeto eleito.

Desta forma, destacamos que qualquer ação pode portar uma satisfação,5 com a condição de marcar6 com um X a incógnita da singularidade do gozo de – e para – cada um, e marcar, para além disso, a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação.

As adixões encontram assim seu fundamento ético. Para verificarmos isso, analisemos um sintagma cristalizado que circula com inquietante familiaridade: as “pessoas tóxicas”. Aqui nos encontramos em um enredo teórico com consequências clínicas: referir-se à toxicidade de alguém induz a uma prática segregativa fundada em uma concepção paranoica do mundo, pois, ao identificar uma pessoa como uma droga, ela não somente é segregada por essa mesma condição, mas a condição da rejeição implica em situá-la como a causa do mal: o Outro é mau e é preciso me afastar dele – ou dela – e estigmatizá-lo por essa condição tóxica.

Fica claro até que ponto essa concepção contradiz o ensinamento fundamental da psicanálise, pois comprovamos na clínica analítica que o gozo é tóxico e recai sobre cada Um a responsabilidade por seus atos, condição que aqui é negada: se ele é tóxico, eu sou inocente… exceto se eu o consumo.

Com nosso desenho epistêmico, o x de adixões mostra a marca singular do obscuro gozo sinthomático de cada um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação tecno-seriada de objetos de gozo,7 que pretende o mesmo para todos.

  1. O fundamento bipolar do consumo

O princípio das adixões: as mercadorias têm em si um valor aditivo, já que se inserem na própria fenda da subjetividade que causa o artificioso da sexualidade humana8 e desencadeia o consumo. O vazio, depois de suturado, é saturado com objetos pelas tecnociências, destinados a produzir o gozo complementar dos sexos que não existe, já que em seu lugar há um vazio. Sublinhemos que o que se substitui, como objeto do mercado, não é um objetomas um gozo, entretanto um gozo que não existe – este é o paradoxo central –, o gozo do qual se busca produzir o equivalente, com o auxílio das tecnociências, imitando aquele da relação sexual que não existe!

Reencontramos aqui o fundamento das adixões como novo sintoma: a proliferação dos objetos em série oculta, pois, o que realmente se trafica, que é a substância do gozo como tal (como se existisse). Em seu lugar, outro gozo desliza entre as mercadorias.

A iteração do gozo, então, causa o movimento dos objetos que se substituem uns pelos outros: 1 gadget; 1 gadget; 1 gadget… É a infinitização dos objetos que o mercado produz e que nunca chega a produzir o objeto adequado, embora prometa satisfazer ao parlêtre fazendo-o, finalmente, existir!

Além disso, devemos incluir uma subsérie na sequência principal do vazio central, já que um gadget pode não se substituir por outro gadget, senão por outro modelo do mesmo gadget: antes de sair o IPhone 7 no mercado, já se dizia que apenas o IPhone 8 transformaria a tecnologia celular, etc., mas já chegamos ao 14? E tudo continua igual!!!!

A temporalidade que se constrói a partir da subsérie é inquietante: por um lado, a infinitização nega o perecível – já que o objeto tem sempre o mesmo nome, há apenas uma diferença real (quer dizer: ordinal, como no caso dos reis) –, mas, por outro lado, a iteração produz a obsolescência do gadget a um ritmo vertiginoso.

O segredo do gozo do gadget é que nenhum objeto final jamais será capaz de satisfazer plenamente, porque há uma defasagem no próprio gozo que falta no lugar onde ele não existe. Essa é a falácia que se compra – na verdade, que causa o comprar – e que produz a moral a aditiva do consumidor, dividida entre a tristeza, produzida pela abstinência, e o triunfo, produzido pelo ter. Tal é o fundamento maníaco-depressivo, ou bipolar, do consumo, sobre o qual se instalam as adixões – as que designamos e assim o preferimos, com x.

O mercado simula oferecer uma lógica – fálica – sustentada no campo do desejo e na produção de bens, mas seu fundamento real é o mais além do princípio do prazer. Ou seja, é o campo do gozo orientado pelo consumo insaciável dos indivíduos, aqueles que, quanto mais consomem, mais são consumidos como objeto de gozo do mercado. Entre a exaltação maníaca da possessão do objeto e a queda depressiva, a partir de sua falta, mostra-se, descaradamente, o vazio, o ponto exato da não-relação, o que, por um lado, recicla o processo de consumo em uma metonímia assintótica, mas, por outro lado, segrega os indivíduos que caem do consumo, fora do processo de produção.

Mais uma vez localizamos a segregação na via rápida do consumo, a partir de sua rodovia principal. A inquietante familiaridade das drogas sublinha este componente aditivo do circuito de consumo que inclusive pode nos intoxicar com uma palavra. Assim “nasceram” as adixões, que continuarão a se reproduzir a partir do circuito bipolar que explora o mercado uma e outra vez, construindo a moral do consumo, quer dizer: a do consumidor.

  1. O mercado é Um mesmo!

Depreende-se que a prática da psicanálise vai contra a operação do mercado que sabe-fazer, sabe consumar o negócio do consumo a partir da falha inaugural da subjetividade. Ao contrário da perspectiva de promover uma satisfação ilimitada, autoerótica, de uma felicidade para todos a partir do ter O objeto adequado, a psicanálise só pode oferecer a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos com os quais “intoxicou” sua existência.

É claro que não se trata de sustentar uma premissa tola “antiprogressiva”, nem de promover uma ascese mística em prol de possibilitar um desprendimento dos objetos de gozo, senão de evitar que se continue sendo o objeto real do consumo; se alguém quer gozar dos objetos, que eles não gozem dele!

Talvez, nessa orientação, a verdadeira subversão da política lacaniana consista em ir contra o mercado em si mesmo, ou seja, contra-a-produção-inconsciente-em-série- de-objetos, com os quais alguém se havia revestido em orientação contrária ao desejo de viver. Isso implica avançar na análise até localizar o gozo singular que o impulsionou ao encontro dessa série, para questionar, o que não implica necessariamente rejeitar, senão, mais propriamente, discriminar os objetos investidos.

O mercado se tornaria assim o nome do inferno em si mesmo, sede das ADIXÕES, a partir das quais se tentou sustentar o transe de uma felicidade impossível, processada entre drogas, redes e telas.

  1. TOXICOMANIAS <> ADIXÕES: dois casos de duplo comando

5.1 Mercanta

Sete momentos localizados em uma análise especificam a lógica que determinou o consumo de um homem dividido entre o gozo obtido com a cocaína e um gozo masturbatório em frente às telas. Seu isolamento permitiu evitar uma passagem ao ato ao estabelecer o circuito do gozo sob transferência, localizado a partir de um detalhe e produzido apenas ao final da elaboração, adicionando, através da intervenção analítica, um oitavo momento.

O triunfo (1) se produz sempre que algo de certa relevância ocorre como esperado (um sucesso profissional, por exemplo); um sentimento estranho (2) no corpo, uma resposta extravagante que afeta seu corpo e que, depois de muito tempo, ele consegue circunscrever em uma frase – “Posso tudo!” –, chamando-a de euforia (3), estado do corpo que diferencia da alegria: presença de uma agitação corporal irreprimível, contínua, que inclui em algo maior o estranho e a onipotência (mencionados nos dois momentos anteriores); a euforia deriva em erotização (4) e, geralmente, se resolve pela via autoerótica diante de uma tela combinada com uma condição fantasmática precisa; empurrando ao consumo (5) sempre realizado em solidão, circunscrito por ações temerárias para conseguir a substância, que sustentam a erotização e canalizam a euforia.

Uma vez desencadeado o consumo de cocaína (às vezes combinado com álcool), não pode parar. É assim que chegamos ao desenganche subjetivo em que a degradação do Outro (6) adquire um papel central, cifrando um duplo movimento indicado pela ambiguidade do termo degradação: a) genitivo objetivo: perseguido pelo “monstro que me consome as entranhas”, chega sempre à beira do colapso físico e mental, perturbado por alucinações que se misturam a pesadelo. Ali, o pai morto retorna para acusá-lo de seus pecados, dando lugar a delírios desencadeados por situações triviais do entorno que promovem nele signos inequívocos da maldade inescrutável do Outro. Nelas, ele está certo de que será vítima da brutal figuração assassina do Pai, a quem acusa de todos os seus males, com todas as injúrias imagináveis. Depois advém b) a forma genitivo-subjetiva da degradação que o empurra para a devastação, pois, após a fúria inicial, é arrastado por uma culpabilidade que o deixa vários dias preso, chorando, sem se alimentar e desejando sua morte, sem animar-se a buscá-la. Finalmente, sua frase Não peço isso, é meu corpo”(7) orienta a saída: deixa de consumir em um estado de perplexidade e desespero. Mas, devido à iteração do circuito, cada vez era mais reduzida sua capacidade de alcançá-la.

Um dia, em plena degradação, decidiu com extrema dificuldade interromper o consumo para ir à sua análise. Já na sessão, enquanto tentava explicar a satisfação que lhe produzia o consumo, produziu um lapso, na realidade uma formação neológica: mercanta (8).

A partir daquele momento, pôde com ela não apenas nomear o circuito de gozo que o consumia, mas, também – e muito especialmente –, contar com uma ferramenta para aceder a uma saída, mais além da insuficiente resposta do corpo, único limite com o qual contava até então, e que, a essa altura, se encontrava seriamente comprometido.

No início das entrevistas, foram recebidas e tratadas interferências parasitárias que produziam frases interrompidas que o levavam ao mutismo, determinadas por uma interceptação mental reprovadora. O resultado foi um alívio que deu acesso à análise, pois o sujeito se encontrava afetado por uma sólida transferência negativa ao seu analista anterior e, por fim, à psicanálise.

O que resulta é que a função da cocaína (o gozo toxicômano) habitava um lábil desejo sexual não suficientemente articulado ao gozo fálico e resolvido pela via masturbatória, sua única via de resolução sexual sustentada pelo gozo escópico (adixão às telas), com um duplo consumo que condensava seu fulgurante e paroxístico êxito; esse circuito que fracassa em um segundo momento por uma nova irrupção do Pai real9 que volta a deixar as coisas no lugar onde estavam antes do consumo.

No campo das toxicomanias, estamos habituados a receber indivíduos que sofrem do furor maníaco do consumo; a particularidade, neste caso, é que ele evidencia o que poderíamos chamar de uma passagem à análise reforçada por um significante prêt-à-porter, por um neologismo produzido sob transferência e que permitiu ao sujeito contar com um artefato sinthomático para tentar, pelo menos, desbastar o gozo de um circuito mortífero com o qual ele desdobrava seu consumo entre um gozo toxicômano e uma adixão às telas.
5.2 Smartwatches10 / “Viver… mata”

Talvez o mais recente paradoxo da tecnologia seja o emprego que os consumidores encontraram para um dos apps mais viralizados. Ao descrevê-lo, encontraremos uma interface entre as adixões e as toxicomanias.

Os smartwatches oferecem uma ferramenta destinada a favorecer a vida saudável – como seus desenvolvedores frequentemente alegam – ao incorporar funções de monitoramento cardíaco, pressão arterial, açúcar no sangue e outras destinadas à promoção da saúde.

Seguindo a oferta ao pé da letra, os consumidores de tecnologia têm respondido com um emprego desse aplicativo que se tornou popular entre outros consumidores… de drogas.

De acordo com entrevistas realizadas – publicadas em reportagem do canal de finanças CNBC –, o app é utilizado como um dispositivo de monitoramento para se informar, em tempo real, das alterações produzidas no organismo pelo consumo de drogas, a fim de interrompê-las e evitar uma overdose, sempre e quando o consumidor assim decidir.

A tecnologia que produziu os relógios inteligentes talvez não tenha contado com essa outra inteligência, a dos consumidores de duplocomando, que têm sabido empregá-la para aquilo que esses gadgets foram criados: retardar a morte, até onde seja possível, enquanto dure a vida. Por exemplo, fóruns Reddit,11 dedicados a investigar o tema,12 com múltiplos comentários de consumidores que chegaram à conclusão de que o limite “saudável” para o consumo de cocaína é de 150 batimentos por minuto; dessa maneira, eles evitariam uma overdose que induziria a uma morte fulminante.

Decorre disso que o consumo do app acompanha o consumo de drogas: enquanto um consumo não ocorre sem o outro, os desenvolvedores, fabricantes, consumidores, todos felizes! Sucesso garantido! Já que o empuxe à intoxicação – com as drogas de escolha – encontraria agora, com os relógios inteligentes, uma poderosa ferramenta de prevenção. Poderíamos agora formulá-la desta forma: drogas sim, morte não!…? Os consumidores de duplo-comando encontrariam, assim, um limite – paradoxal, por fim – para seus excessos?

Nada é menos certo, pois não importa quantas medidas exatas e estatísticas precisas sejam responsáveis pelo procedimento preventivo, os usuários de drogas já terão sentido em seus próprios corpos o “limite” que comanda tal procedimento: uma satisfação imparável de querer ir mais além. É esse “limite ilimitado” dos partidários do duplo-consumo o que produzirá – inevitavelmente – o fracasso do procedimento.

Uma vez que o gozo está à espreita, o saber nunca alcança, mesmo que o indivíduo tente com o delírio do sentido encobrir seu – irrefreável – impulso mortífero. Ou também, uma vez mais, entre toxicomanias e adixões, os desenganados se enganam.

  1. Adixões ficcionalizam isso o que as toxicomanias realizam?

Tendo chegado a essa interface de duplo comando – e somente na condição de não esquecermos que nenhuma classificação pode apagar a diferença de Um com os outros (Uns)13 –, não serão as adixões contemporâneas a tentativa em cada Um de armar-se um corpo vivível, com os objetos oferecidos pelo mercado e que muitas vezes portam ficções a partir de identificações às quais aderir?

adixão ao consumo mostra aqui seu papel como protagonista que, ao declinar na chamada “adixão às compras” com sua subespécie “adixão à roupa”, constitui um paradigma do que podem vestir, ou seja, o que de certas adixões podem ficcionar.

Proponho isso, uma vez que, no espectro mencionado do gozo, as adixões podem, desse modo, sustentar-se em realizações fantasmáticas, em muitas ocasiões mais próximas das cócegas,14 enquanto os usuários das drogas duras, como têm sido chamadas, tendem a prescindir de ficções em seus consumos e a presença do gozo encarcerado neles se mostra mais decididamente pelas devastações corporais e subjetivas, sobre si mesmos ou sobre terceiros.

Deixemos agora a hipótese das adixões como ficcionalização das “adições”, o que denominamos: toxicomania. Quer dizer que, ali, onde nas toxicomanias o gozo da substância tóxica se infiltraria no corpo – para que isso goze –, as adixões tentam “infiltrar” ficções nesse corpo, para que “eu”, de alguma forma, deseje?

Se assim fosse, a recusa do inconsciente levaria a um empuxo com uma dupla tração: por um lado, a partir das toxicomanias, e, por outro lado, a partir das adixões, deste lugar produzindo uma prótese ficcional que ofereceria um semblante de consistência (narcisista?), permitindo esquecer – nem que seja por alguns momentos – a insatisfação do desejo e a fenda real do gozo.

A pura repetição do Um do gozo que se manifesta nas toxicomanias – e que o Outro social teve que inventar, promover, em nossos dias com o termo “adição” – se apresenta nas adixões por meio de uma “solução do desejo”, ou seja, daquilo que no gozo produz sentido (MILLER, 2011).

Mais uma vez devemos ser cautelosos em nossas classificações, pois o gozo canalizado pela pulsão de morte não deixa de espreitar, lançando os indivíduos que pretendiam gozar do lado-cócegas – nas adixões light, aquelas supostamente orientadas pelo desejo de viver – em direção ao encarceramento com apenas um movimento. Tal como precisamente ilustra o trágico destino que aguarda a esposa de Tony Takitani, ficção literária de Haruki Murakami (2019), quando ela é levada pelo amor a abandonar sua adição às compras.

Sem chegar a tais extremos, podemos agora re-situar as crises de angústia – incompreensíveis ao senso comum – que costumam se produzir em consumidores furiosos, uma vez que tenham adquirido o objeto mais valorizado, precisamente aquele que parecia inacessível. Uma mulher em análise, ainda em lágrimas, não conseguia se livrar da sensação que havia vivido dias atrás, antes de ir às compras com sua melhor amiga e ter conseguido “aqueles sapatos tão especiais” que ambas tanto tinham desejado. Logo depois de sair da loja, eufórica, ela parou, de repente, e disse à sua amiga, agarrando-a pelo braço: Mão é isso o que eu queria… não é isso o que eu quero!”, chorando desconsoladamente, interrompendo os olhares dos transeuntes. O gozo da adixão explodia assim em seus sapatos, mostrando o mestre que realmente comanda o desejo insatisfeito.

Porém, mais além das classificações (inclusive das nossas), as toxicomanias – decididamente, e até o final – mostram a pura (re)iteração no real do Um do gozo, enquanto as adixões – das narinas desse mesmo gozo-Um, também elas – persistem numa tentativa, que não cessa de fracassar, na iteração do consumo, de “infiltrar” a cada vez algo de sentido naquilo que, de início, já não o tem, convocando um desejo que se desvanece: o desejo de viver.

Salientamos que esse núcleo duro do gozo toxicômano permanece no cerne do conceito de ADIXÕES, advertindo-nos que, por mais que o mercado pretenda, é necessário destacar que NÃO HÁ ADIXÕES LIGHT, já que a pulsão de morte sempre espreita o indivíduo, envolta em insuspeitadas estruturas formais dos sintomas que distribui.

  1. As toxicomanias, mais além das adixões

As toxicomanias realmente mostram o próprio paradoxo da existência: por um lado, a tentativa de saturar o vazio produzido pelo apagamento do Um original, com as poli-substâncias tóxicas que o mercado fornece; por outro lado, a presença apocalíptica, real, desta falha geológica: a própria fenda do gozo humano que ameaça aniquilar a cada um. Por isso, as toxicomanias constituem o protótipo do que a época elevou ao zênite da civilização, evidenciando o fundamento autoerótico da existência.

Adixões: com esse significante, dizíamos, temos interpretado a multiplicidade de nomes com os quais o Outro social e o mercado pretendem dar valor etiológico e classificatório às substâncias, a ponto de explodir seus confortáveis escaninhos: desde “pessoas tóxicas”, à “dependência do trabalho”, até a “dependência do sexo”, tudo pode ser classificado. Mas a implosão do não-todo estoura sob seus narizes, infinitizando essas mesmas classificações a partir do que resiste a ser encerrado em um nome: a toxicidade do gozo insiste e transborda qualquer classificação. Por isso, o nome de adixões tem o valor por marcar a iteração do gozo que se trafica, para contrariar o paratodo do mercado de consumo, destacando em cada “adicção” a fixação singular de gozo que empuxa a cada falasser.

Ao contrário, as toxicomanias estão mais aquém das adixões, já que toxicomanias é o nome que conservamos – a partir de nossa epistemologia psicanalítica – para denotar a operação da pulsão de morte que tenta fazer existir o gozo infiltrando-se no corpo, instigando a recusa do inconsciente por esse mesmo meio: tóxico-maníaco.

Paradoxalmente, dizíamos, esta é a particularidade sintomática da época atual: fazer Um com o corpo de modo autoerótico – mas, acrescentamos: sem corpo. Curiosamente, poderíamos conjecturar que o irrisório, quer dizer, a pretensão do toxicômano, é fazer existir o gozo no corpo e fora do corpo… que não haja nada mais, que não se adicione nada mais.

Mas à noite… a solidão desespera (Cordera dixit15). Aí o vazio realmente (re)emerge, o original, aquele do “eclipse do Um” que o toxicômano tentou saturar com a substância artificial do mercado e a abstinência da droga é o pedágio imposto pela pulsão de morte para recordá-lo disso.

Enquanto isso, a solidão globalizada constitui um resto das adixões contemporâneas que recordam a nós, consumidores – já que nesse ponto somos todos adit@s (SINATRA, 2016) –, que mais aquém da fenda do gozo o vazio espreita, também o gozo das drogas. E tem sido a partir daí, desse vazio, a tentativa, que deixamos em aberto, de nos servir das adixões para localizar com elas o fundamento bipolar, o caráter tóxico e maníaco do consumo.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Lilany Pacheco

Referências
LACAN, J. Do discurso psicanalítico: Conferência em Milão (12 de maio 1972). (Texto inédito).
MILLER, J.-A. Curso de la Orientación Lacaniana, “El Uno solo”, Sesión del 30-3-2011. (Texto inédito).
MURAKAMI, H. Tony Takitani. Barcelona: Tusquets Editores, 2019.
SINATRA, E. @s nov@s adit@s: a implosão do gênero na feminização do mundo. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2013.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 04/10/2022.
2. Encarnado e patrocinado, por exemplo, pela frase super adictiva: “imposible is nothing!”slogan de lançamento de uma marca líder do mercado, cujo logotipo minimalista coincide com os likes do Facebook.
3. Junção das palavras “sex” e “texting”, que pode ser traduzida livremente como “sexo por mensagens de texto”. Atualmente, a palavra tem um significado mais abrangente e se refere também ao envio de fotos, vídeos e mensagens de áudio. (N. T.)
4. Sobre esse neologismo adixão, conferir em: SINATRA, E. AdiXiones. Buenos Aires: GRAMA Ediciones, 2020. Ver também nota 6.
5. Essa hipótese de trabalho, “nada é sem gozo”, destacada por Miller em Sutilezas Analíticas, nos levou, no Seminário do TyA, a verificar, a partir da prática analítica, seus diferentes modos de manifestação.
6. Seguindo Jacques-Alain Miller, escrevemos adixiones, com o x freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com a qual cada Um respondeu ao trauma da não-relação.
7. Especialmente, a exploração do gozo do olhar que se dissemina pelas múltiplas tecno-telas que o mercado oferece.
8. Que não haja relação sexual quer dizer, para aplicá-la à ocasião, que não há complementariedade de gozo entre o lado macho e o lado feminino, para evidenciar a fenda própria da sexualidade nos humanos, o que J. Lacan denominou com um neologismo: sexuação.
9. A manifestação do ódio ao pai era tão intensa que não podia deixar de injuriá-lo, apesar de saber perfeitamente que o pai não era o culpado pelo que lhe sucedia, do que ele não conseguia fazer, especialmente, porque estava morto.
10. Acrescentaríamos para os não-incautos que – outra vez – erram.
11. Portal da internet, site de marcadores sociais com áreas de discussão, que atribui pontos a seus usuários por votos favoráveis realizados aos seus envios.
12. O tema é, para nós, o do duplo consumo – smartwatches+drogas –, ou o do consumo de duplo comando na interface adixões e toxicomanias, como podemos denominá-los.
13. Recordemos que escrevemos adixões – com o x freudiano de fixierung – para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada Um respondeu ao trauma da não relação; não o esquecer implica ter presente não só os riscos da generalização que vale para todos (Todos adictos!), senão uma das consequências do estrago do ser nomeado para: o empuxo à segregação que porta a identificação das massas.
14. Isso vale, especialmente, nos casos dos “adictos” das minisséries.
15. Cordera dixit. Consideramos que seria o desdobramento de cordeiro, o filhote de ovelha, com “dixit” com o jogo de cartas Dixit criado por Jean-Louis Roubira e publicado pela Editora Libellud, no qual um dos participantes sugere características da ilustração de uma carta da mão, possibilitando que cada adversário também selecione um card que se encaixe com a descrição dada. Reveladas as cartas, os oponentes devem adivinhar qual era a ilustração originalmente anunciada. (N. T.)



Modos de presença1

Florencia F. C. Shanahan
Psicanalista, A.P. da NLS/AMP
florenciashanahan@gmail.com

 

Resumo: A autora levanta algumas questões, a partir de sua própria experiência, sobre os modos de presença em uma análise, apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona se haveria um final de análise caso assim permanecesse.

Palavras-chave: presença; analista; fim de análise; virtual.

MODES OF PRESENCE 

Abstract: In this essay the author questions, through her own experience, the modes of presence in an analysis, while recognizing that the online sessions were very important for her. However, she questions if there would’ve been an end of analysis had it continued to be virtual.

Keywords: presence; analyst; end of analysis; virtual.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Penso que a análise não é um quebra-cabeça, mas um mosaico, feito não de peças preexistentes para as quais haveria um lugar predeterminado e cuja disposição daria uma forma toda bem-feita, mas de peças, tesselas que vão cortando, encontrando, descartando ou tirando do outro na transferência, compondo um quadro que não se completa, mesmo que esteja acabado.

Vou tentar dizer algumas coisas. Podem às vezes ser contraditórias. Não respondem a nenhuma pergunta geral. Tampouco, creio eu, se prestam a qualquer dedução. São pequenos fragmentos que emergem no tempo de elaboração em que me encontro. Eles encontrarão um lugar no mosaico que continua a ser criado após o passe.

Meu primeiro analista nunca teve meus dados: nem endereço postal, nem número de telefone. Muitas vezes fantasiei que desaparecia e que ele não poderia me contatar, não saberia onde me procurar, se perguntaria se eu havia morrido. Por quase oito anos assisti religiosamente às sessões de tempo fixo. A três quarteirões de onde morava. Quarenta e cinco minutos. Um enquadramento ritualizado que alimentava meu já excessivo supereu e que mortificava meu corpo. O silêncio e a quietude do analista muitas vezes me deixavam à mercê do mutismo pulsional do qual me tornei parceira. Aprendi ali que o sentido não se engorda apenas com palavras.

O analista que me permitiu sair disso — e encontrar um fim lógico para a experiência do inconsciente do qual sou sujeito — se mexia muito. Ele também falava muito pouco, mas movia seu corpo constantemente. Cortava pedaços de papel freneticamente ou digitava forte no teclado. Ele atendia ligações durante as sessões, às vezes resmungava coisas. Ali aprendi que o silêncio não era do Outro.

Eu poderia ter continuado a seguir a vida se ele não tivesse me atendido por telefone todos os dias quando minha mãe e meu irmão morreram inesperadamente? Não sei.

Poderia ter ido ao encontro do bom furo se ele não tivesse me atendido por Skype, sustentando o olhar na tela, diariamente, por mais de um mês, durante a travessia pela angústia mais radical no tempo da destituição subjetiva que deu passagem ao final? Não acredito.

No entanto, acredito que minha análise não poderia ter concluído se tivesse sido “virtual”. Especialmente porque o impulso de sair surgiu, como relatei em meu primeiro testemunho, a partir do momento em que deixei meu isqueiro no divã. Sem dúvida, isso não poderia ter acontecido em uma sessão telefônica ou por chamada de vídeo. Aquele pequeno objeto que fica para trás imprime a urgência que me faz pegar um avião para voltar; e abre a porta da última sessão. A voz como objeto, como entrou em jogo em minha análise — em sua extração e incorporação — não é de forma alguma a voz da comunicação. Sobre isso tentarei avançar em meu próximo escrito.

Sem dúvida, a prática on-line ou por telefone existe. É um fato. Que estatuto tem? As questões que derivam disso dizem respeito à psicanálise como tal, e não apenas a que circunstâncias atuais elas nos confrontam.

Acho que se trata, sobretudo, de encontrar posições na enunciação que vão na direção do que Lacan chamou de bem-dizer e contra as posições que a neurose está sempre pronta a alimentar: buscar explicações para o que se faz ou deixa de fazer; tentar obter do Outro a validação do que se faz ou não; forçar os pinos a entrar nos buraquinhos para acomodar o real à realidade…

Trata-se de não se preparar muito rápido para dizer o que é psicanálise e o que não é, ignorando a implicação de um desejo singular na base de cada ato que, como tal, não tem garantia. Trata-se de não se sustentar, na tradição, os significantes congelados na boca da autoridade ou o saber morto do que já foi dito, com a ilusão de proteger a psicanálise de sua degradação fantasiada.

Obviamente, quando se trata de justificar a prática em si como meio de subsistência2, ou sua permanência no mercado como mais um dos objetos oferecidos para consumo, aí o problema é outro. E diz respeito à formação do analista.
Tradução: Rodrigo Almeida

Revisão: Cecília Batista

 


1. Texto originalmente publicado em: https://zadigespana.com/2020/04/11/coronavirus-modos-de-la-presencia/.

2. Pergunta feita por Lacan em seu último texto escrito, “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567.