Implicações da criminalização do aborto a partir da psicanálise1 

Ondina Machado
Psicanalista, membro da EBP-RJ/AMP
E-mail: ondinamrm@gmail.com

 

Resumo: Em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise? Se A Mãe existe, sob a perspectiva da norma fálica, e A Mulher não existe, conforme formulado por Lacan, o que é um filho para uma mulher? Considerando que uma mulher não pressupõe um filho, fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, excluindo o lado não-todo fálico no qual ela também pode se situar. Uma mulher não pode não querer ser mãe? A criminalização do aborto quer punir essa mulher, desconsiderando que o filho não é solução para todas as mulheres. Assim, a criminalização do aborto compromete a assunção do desejo por um filho. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho?

Palavras-chave: criminalização do aborto; mulher; mãe; desejo.

IMPLICATIONS OF THE CRIMINALIZATION OF ABORTION THROUGH THE LENS OF PSYCHOANALYSIS

Abstract: What would the criminalization of abortion imply from the point of view of psychoanalysis? If The Mother exists, from the perspective of the phallic norm, and The Woman does not exist, as formulated by Lacan, what is a son for a woman? Considering that a woman does not presuppose a son, to make abortion a crime is to make every woman The mother, excluding the not-all phallic side in which she can also find herself. Can a woman not want to be a mother? The criminalization of abortion wants to punish this woman, disregarding that the son is not the solution for all women. Thus, the criminalization of abortion compromises the assumption of desire for a son. How can a woman sign this desire if she is required by law to have a son?

Keywords: criminalization of abortion; woman; mother; desire.
 

CAROLINA BOTURA. NIUNAMENOS

 

Proponho nos centrarmos na questão da “criminalização” do aborto, e não no aborto em si, porque entendo que a decisão de abortar cabe a cada mulher. Mas gostaria de pensar com vocês em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise. Sobre isso acho que posso dizer alguma coisa.

O desejo materno:

Supõe-se que o desejo materno é inerente à mulher. Aquela que não deseja um filho entra em um escaninho à parteé uma aberração. As soluções freudianas do Édipo também levam em conta que mulher e mãe se equivalem ou, pelo menos, que a maternidade tem papel fundamental na vida de uma mulher. Não podemos mais dizer isso nos dias de hoje.

A discussão sobre criminalização do aborto demonstra que filho não é solução para todas as mulheres. A criminalização do aborto pune a mulher que se recusa a ser mãe, pelo menos naquele momento. Como assim? Uma mulher não pode não querer ser mãe, independente das condições em que essa gravidez ocorreu? Ela estaria negando sua vocação natural, biológica e social?

Sabemos que, na criminalização, a questão é que o desejo da mulher não entra nessa discussão. Sabemos também que existem outras “intenções”, como o controle do corpo feminino pelo patriarcado, a manutenção do poder sobre ele e uma misoginia estrutural que Freud chamou de “rechaço à feminilidade”. Assim, gostaria de apresentar a vocês o que seria um filho sob o ponto de vista da psicanálise.

O que é um filho para uma mulher? Reforço a pergunta destacando o “para uma mulher”. Costumamos fazer essa pergunta de outra maneira: o que é um filho para uma mãe? No entanto, quero propor pensar o filho para alguém que ainda não o tem, que ainda não é mãe, que não pretende ser, nesse momento ou mesmo nunca.

Uma mulher não pressupõe um filho; uma mãe, sim, esta pressupõe um filho, mas uma mulher não. O aborto entra na vida de uma mulher exatamente nesse momento, quando ela não quer ser mãe.

Um filho não é um dado natural na vida de uma mulher. Quando uma mulher quer ter um filho é porque ela supõe que ele lhe falta, falta imaginariamente como um complemento. Não ter um filho pode ser entendido, por essa mulher, como uma falta, por muitos motivos. Ou porque ela entende que ser mãe é uma consequência socialmente prevista, ou por querer dar um filho ao seu parceiro, ou, ainda, porque é algo que ela quer viver como uma experiência de cuidado ou da própria gestação.

A relação amorosa não supõe um filho, nem a heteroafetiva, nem a homoafetiva. Mas vamos examinar essa parceria pelo ponto de vista do casal homem e mulher, sabendo que não é o gênero que define as posições no amor, e sim o modo de gozo. 

Vamos ao clássico:

Supõe-se que o homem coloca uma mulher como causa de seu desejo, o que faz daquela mulher um sintoma para aquele homem, e faz daquele homem um amante para aquela mulher. Nada a ver com filho. O filho não entra na parceria amorosa, o filho é uma parceria da mãe com o próprio filho.

A fala de Jair Bolsonaro sobre as mães solo como “mães sem marido” mostra o erro sobre o que é um filho para sua mãe. A mãe, em tese, não precisa de marido, e isso se demonstra na multidão de mães que criam seus filhos sozinhas. O pai entra como aquele que, por amor, vai cuidar dos filhos dela. Aqui podemos identificar uma das maneiras pelas quais fica evidente que a relação sexual não existe: não existe como relação porque cada um quer uma coisa diferente; diferente e não complementar.

Chegamos, então, à fórmula lacaniana na qual um filho é o objeto a para uma mãe. Esse é um ponto que considero de suma importância para pensar a criminalização do aborto e suas consequências, pois fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, é encerrar toda mulher no regime fálico, excluindo o lado nãotodo fálico no qual ela também pode se situar. Mas vejamos isso com calma.

A mãe e a mulher:

No Seminário 20, ao mesmo tempo em que Lacan diz que A Mulher não existe, ou seja, que não há uma representação inconsciente que universalize o ser mulher, ele diz também que “a mulher só existe como mãe” (LACAN, 1972-73/1985, p.133), ou seja, somente A mãe entra como um significante que se representa para outro significante. A Mãe existe, A Mulher não existe.

Dizer que A mãe existe é colocá-la no lado fálico da sexuação, é tomá-la sob a perspectiva da norma fálica, portanto, pela visão do homem, do patriarcado, sobre a mulher. Nada a ver com a mulher. Dá para entender o raciocínio de Lacan, pois, para o homem, como todo alicerçado no falo, existe A mãe, ele sabe o que é uma mãe. O que ele não sabe, nem nós as mulheres sabemos, é o que é uma mulher. Cada uma terá que construir seu ser de mulher na articulação do corpo com o significante. 

Pensem isso no macro:

Uma cultura falocêntrica só pode incluir em si A mãe. É sempre como mãe que as mulheres entram no social, nas políticas públicas, por exemplo. É como mãe também que as mulheres são idealizadas, é como mãe que elas são “as rainhas do lar”.

Com as mulheres não se sabe o que fazer, não se sabe lidar com seus corpos sangrantes, sua TPM, sua menopausa, seu destemor, seu “dom de iludir”, enfim. O espaço público é para as mães, para as mulheres só o privado. As políticas e as leis não contemplam o desejo das mulheres, porque dele nada se sabe e, assim, torna-se temerário. Por isso dão uma resposta que aprisiona a mulher: deduzem que toda mulher quer um filho.

Agora voltemos ao micro, ao “a cada mulher”:

A criminalização do aborto, então, recai sobre a mulher, comprometendo a assunção do desejo por um filho pois, se a lei obriga, como saber se se quer, ou não? Assim, as mulheres, efetivamente, não podem decidir, nem tampouco se responsabilizarem pela decisão, afinal foram obrigadas. A criminalização impõe um permanente “sim” como resposta, na medida em que dizer “não” obriga a buscar soluções fora da lei. Leva as mulheres a uma transgressão perigosa que põe suas vidas em risco, em especial a das mulheres pobres que ficam sujeitas a abortos em péssimas condições técnicas e de higiene. A ONG Rede Feminista de Juristas reporta mais de 850 mil abortos ao ano, pelos dados de 2017, a maioria deles sem condições adequadas.

E aqui podemos ver que quem é excluída é a mulher, não a mãe. Somos minoria por essa exclusão, não pela quantidade de nós na população, mas pela exclusão de nosso ser de mulher.

Mas um filho não é só da mãe, vocês me diriam. Sim, um filho é o resultado de uma demanda por um complemento imaginário articulado a uma lei. O resultado dessa articulação é o desejo. A lei à qual Lacan se refere é associada ao pai, à função pai. O que é essa função? Como função, ela se descola da figura do pai. Lacan coloca nesse lugar o pai real, não o pai imaginário, nem o pai simbólico. Como real, ele é contingente, é sem palavras, é um lugar vazio de significação. Como função, pode ser exercido por qualquer um ou por qualquer coisa: o pai da mãe, a mulher da mãe, o trabalho, outros filhos, outros homens. O que importa é que haja uma articulação entre a pulsão e uma ordenação simbólica que inclua o objeto a/filho na subjetividade da mãe como uma promessa de satisfação, ou seja, como um semblante do que lhe falta. Vejam como aqui se separa a mãe da mulher: o filho é um objeto da fantasia da mãe, portanto, está no mesmo lugar do objeto fetiche, objeto de um gozo fixado, pré-determinado na fantasia e independente de suas características, ou seja, o objeto é tomado como um tampão, um simulacro. Já quando pensamos no filho articulado a uma rede simbólica, trata-se de um lugar de objeto que pode deslizar para diferentes formas de satisfação. Se fixado, é gozo e exclui a cadeia significante, exclui o Outro. Quando o objeto ocupa um lugar simbólico, ele cria uma demanda endereçada ao Outro e instaura o desejo que, justamente por ser desejo, não se fixa. É a famosa frase de Lacan: só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. É essa dialética que separa o corpo da mãe do corpo do filho, é o que faz com que a mãe assine um desejo pelo filho supondo que ele vá satisfazê-la. O desejo não pode ser anônimo, no sentido de ser o desejo de alguém e não de qualquer um, ou mesmo a obediência a uma lei. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho? É essa assinatura que fará de uma mulher mãe de um filho. Um filho, caso ele saiba fazer semblante de complemento, se torna um sintoma na subjetividade da mãe.

Vejam que o problema da criminalização do aborto recai sobre umas e não outras, pois aquelas que querem ter, podem ter.

Gostaria de encerrar minha participação com uma vinheta clínica que, espero, exemplifique o que falei até aqui.

Vivendo uma vida de muitos excessos, uma mulher descobre que está grávida e, mesmo tendo condições financeiras para abortar, descobre em si um desejo de ser mãe até então inimaginável. Seguiram todas as recomendações médicas durante o pré-natal por perceber que disso dependeria o futuro do filho.

Minha hipótese é que esse filho, concebido em um momento de vida desregrada, funcionou como um ponto de basta na iteração insana de um gozo que colocava sua vida em risco. Quando seu filho pergunta sobre o pai, ela diz não saber quem é, que o que sabe é que o queria como filho.

A maternidade como um desejo, e não uma condição, fica bem clara na definição que Romildo do Rêgo Barros (2003, p. 130) dá sobre o desejo materno: “O que pode definir uma mãe não são as prerrogativas do personagem, nem sequer o lugar na família, mas o fato de ser um desejo”.
Referências 

 


LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais, aindaRio de Janeiro: Zahar, 1985.
BARROS, R. do R. Sobre a função materna. In: VIEIRA, M. A. (Org.). Mães. Rio de Janeiro: Subversos, 2003.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 30/09/2022.



 Tem alguém aí?1

Esteban Pikiewicz
Psicanalista, membro da EOL/AMP
epikiewicz@yahoo.com.ar

 

Resumo: O autor percorre os textos de Freud e de Lacan buscando elucidar o que estaria implicado na expressão presença do analista”. Ele destaca a ideia inicialmente desenvolvida por Freud sobre o analista como objeto e retomada por Lacan quanto à função do “desejo do analista” e do analista enquanto semblante do objeto a causa de desejo, vinculando a sua presença ao próprio conceito de inconsciente. Porém, acrescenta o autor, trata-se de uma presença real e, nesse sentido, nos reenvia a Lacan para afirmar que há, nesse desejo, algo de impuro.

Palavras-chave: presença do analista; inconsciente; desejo do analista; objeto a; real.

IS ANYONE THERE?

Abstract: The author goes through Freud’s and Lacan’s texts seeking to elucidate what would be implied in the expression.: “presence of the analyst”. He highlights the idea initially developed by Freud about the analyst as object, which is revisited by Lacan regarding the function of the “analyst’s desire” and of the analyst making semblance as “objet a cause of desire”, linking its presence to the very concept of the unconscious. However, the author adds, it is a real presence and, in this sense, he sends us back to Lacan, to affirm that there is something impure in this desire.

Keywords: presence of the analyst; unconscious; analyst’s desire; objet petit a; real. 

 

CAROLINA BOTURA. ORAÇÃO

 

Do título e da presença do analista

O que vou propor é um desenvolvimento preliminar, uma aproximação ao que foi trabalhado neste seminário sobre a questão da presença e, em particular, da presença do analista. Vou me valer desse termo para tentar vinculá-lo ao título desta aula: Existe alguém aí? é o título do livro de um grande poeta argentino, Joaquín Giannuzzi (1999), publicado pouco antes de sua morte. O título assemelha-se a uma significação vazia, pois exprime o conjunto de poemas encontrados no livro e não há nenhum poema dentro dele que se intitule assim. O conjunto de poemas, pode-se dizer, circunscreve algo do objeto que é o livro, cujo nome é o nome próprio do autor. O estilo de Gianuzzi é o da ironia, ou humor ácido, o “falar” das coisas cotidianas, insignificantes; da morte, da incerteza, o que se costuma chamar de poesia objetivista.

Agora, a covid-19, como acontecimento, virou nosso cotidiano de cabeça para baixo e, portanto, nossa prática e nossa experiência. Isso acentua ainda mais a pergunta: tem alguém aí? A cada vez que se produz o contato entre nós por esses meios, ou também entre analista-analisando, há, de algum modo, uma preparação, algo prévio, que se reitera, uma espécie de constatação ligada a essa insistência introdutória nas perguntas “Você me escuta?”, “Eles me veem?”, como perguntas sobre esse alguém aí.

Presença: o dicionário diz que se trata da circunstância de estar ou de existir algo ou alguém em determinado lugar. Deriva do latim praesentia, que descreve esse termo como a qualidade de estar diante. Algo que me parece importante destacar é o que se refere à condição de algo físico, algo que tem uma corporeidade. No dicionário se esclarece que o termo está ligado aos traços de algo ou alguém. Não tanto ao que o senso comum menciona como a aparência, mas sim aos traços. Nessa pandemia, precisamente, em que predomina a coronalíngua, se produz, inversamente, a limitação da presença dos corpos.

Sigmund Freud, mediante o sonho da injeção de Irma (FREUD, 1900/1996) — momento fundador da psicanálise —, constrói todo o aparato psíquico de três, que, como diz Germán Garcia, é um aparato patafísico, cuja propriedade é a de não existir dentro do tempo e do espaço euclidiano.

Nesse momento fundador, ele mostra algo que tem o atributo de ser um atrativo, algo que funciona como um ímã e que ele chamou de umbigo do sonho. Trata-se de algo que aparece no limite da decifração, pela via da fórmula química da trimetilamina — ela própria carente de sentido — e do que se apresenta mais além como indecifrável.

Dez anos mais tarde, quando já havia feito uma prática de seu invento, encontra algo homólogo ao umbigo do sonho. Estamos falando dos escritos técnicos (FREUD, 1912/1996). Eu me refiro à dinâmica da transferência, onde ele encontra a detenção nas associações em seus pacientes. Aí se faz presente um obstáculo, no qual Freud constata que se trata da pessoa do médico, sua presença. E, por sua vez, ressalta que é nesse momento que há uma maior produção transferencial: o amor de transferência como obstáculo.

Assim, pode-se fazer uma série de metáforas do irredutível: umbigo do sonho; bate-se em uma criança; o Kern/osso de toda neurose; o grão de areia na pérola neurótica etc. Não são esses conceitos, esses termos ou noções, os que poderiam se articular, fazer uma ponte, uma conexão em sua expressão, com a presença do analista? Lacan, no Seminário 1: os escritos técnicos de Freud (1986), fala da presença do analista “a brusca percepção de algo que não é tão fácil definir, a presença” (LACAN, 1953-1954/1986, p. 54) que é seu acontecimento e “frequentemente tinto de angústia (LACAN, 1953-1954/1986, p. 66). Mas acrescenta que há algo na presença que permite ao paciente tomar consciência de um enigma, um mistério. Aqui, nesse seminário, falou-se do enigma do mal, como algo cuja presença, enquanto humana, é um mistério. Talvez possamos pensar em algo que remeta à marca, uma marca. Lacan acrescenta ainda que há algo do enigma que não se pode experimentar constantemente porque se tornaria insuportável. Diz também que o humano vive tentando apagar isso que é a presença, e não perceber isso que é presença.

Voltando, se Freud forjou o aparelho psíquico com seus outros três — refiro-me ao consciente, pré-consciente, inconsciente e, mais tarde, Eu-Isso-Supereu —, sabemos que Lacan nos orienta com seus três: imaginário-simbólico-real.

Com esses três pode-se ajustar um pouco essa questão, dizer que a presença do analista dá conta de algo que não passa pelo simbólico — ou seja, não há associações — nem pela significação imaginária. No entanto, se nos remetemos ao Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ali se acentua que a presença do analista é uma manifestação do inconsciente (LACAN, 2008, p. 121–123). Podemos pensar se existe uma equivalência entre manifestação e formação do inconsciente. A manifestação parece “direta”, sem mecanismos que intervenham. Uma formação responde a certas leis. Lacan disse que há que integrar essa presença ao conceito de inconsciente. Eu acrescentaria presença do analista enquanto uma presença real. Vimos, anteriormente, nas “Conferências introdutórias à psicanálise: a transferência”, de 1916–1917, que Freud situa o analista na qualidade de objeto, de objeto no centro da neurose de transferência. Quer dizer, um Freud muito lacaniano no qual a presença, então, que é inconsciente, na medida em que está incluída no próprio conceito de inconsciente, aparece onde imagens e palavras claudicam. Em suma, é o que já conhecemos como instituição do objeto a, o parceiro essencial do sujeito, a essa altura (Seminário 11), causa do desejo.

Por que razão, ou por que, é relevante que, reproduzida essa neurose de transferência, nos encontremos com esse obstáculo que evidencia, com a presença, que ali não há memória ou representações?

Então, me atrevo a enfatizar que, justamente pela via dessa presença real do analista, sugere que não se trata apenas de interpretação ali. Ou, pelo menos, também deixo como proponho: trata-se — diria — de uma operação que põe em jogo, justamente, as sucessivas definições que nos são apresentadas sobre o que é interpretar. Ou uma interpretação que tem a ver com presença, ou seja, ligar algo ali com as variações e voltas que podem ser dadas sobre o que será interpretar, ou, se preferir, a diferença entre ato e interpretação.

Se o seminário sobre os conceitos fundamentais da psicanálise é um seminário que tem o caráter de dobradiça, no qual o ensino de Lacan começa a dar uma guinada em torno da conceituação desse objeto — o objeto a, causa do desejo —, isso se estrutura em torno dessa função que chamamos a função de causa do desejo: o objeto a, analista. Precisamente, o capítulo 10 do Seminário 11 se intitula “A presença do analista” (LACAN, 2008).

Presença e amor real

Penso que é muito interessante sublinhar algumas coisas, como fiapos. Primeiro, Lacan diz que é um termo muito bonito, ele o expressa assim. Em segundo lugar, para retomar algo que indiquei antes — essa presença e a transferência —, Lacan ali começa a debater com os pós-freudianos sobre a transferência; se nomeiam a transferência como um sentimento, se se trata de ambivalência, separa-se a transferência da repetição, etc. Mas ele enfatiza novamente a questão da transferência e o problema de saber se ali se trata como significação — o amor como algo autêntico —, nesse ponto máximo suscitado pela presença do analista. Um amor que, poderíamos dizer, não é identificação, mas que está do lado do real. Ele também usa outra palavra, que é a palavra essência. Ele a usa apenas uma vez para se referir a algo desse amor e, também, à presença. O significado de essência é interessante. Segundo o dicionário, significa, entre outros significados, algo permanente, invariável, que não muda em relação a uma coisa. Trata-se, justamente, de que essa presença é a que dá testemunho, ou seja, “há alguém ali” presente. E de que coisa essa presença testemunha? Da perda que é originária, sem compensação, sem saldo a favor do sujeito que fala. Algo que, por sua vez, faz a posição do analista, um lugar (e o acentua) que é muito conflitante.

Vou tentar dizer de outra forma, com noções que são limites: falta de rememoração, algo opaco, misterioso na presença; uma falta de significação — mas uma significação quase absoluta que é o amor — e que não remete à verdade. É a transferência como resistência, o fechamento do inconsciente enquanto pulsátil. Ou, como Lacan o chama em uma antecipação topológica, um nó górdio.

Então, nesse limite, o analista, ali em sua operação, atua ou não atua? Opera ou não opera? Intervém, interpreta? Através do eco? Pela ressonância? Por algo que lhe vem de suas próprias marcas, de suas próprias cicatrizes como o analisante que é ou o analisante que foi?
Inevitavelmente, poderia surgir algo que aparece indiretamente ali, ou ligado ali, no lugar do analista: a pergunta se se trata de algo que implica a função do desejo do analista com um algo a mais.

Porque função, reconheçamos, é aquilo que, em Lacan, remete a sua ambição de ter feito da experiência e da prática da psicanálise uma disciplina absolutamente lógica, matematizável, reduzida a fórmulas, sem equívocos. Mas surge aí algo interessante, pois, para formular isso, no final do Seminário 11, Lacan vai dizer que o desejo do analista é impuro (2008, p. 260). Portanto, se o desejo do analista é impuro, parece-me que não há razão para não pensar a função do analista como tocada, salpicada de algo de uma impureza.

Lacan diz que, se se trata do desejo de obter a diferença absoluta, essa diferença absoluta o é na medida em que implica tocar, obter aí algo de uma marca: isso que é diferença, mas enquanto absoluta. Parece-me que o absoluto não se refere ao todo, mas a algo à parte. Eu diria, é isso que, na medida em que é absoluto, não é permutável, não é modificável. O significante, por outro lado, é permutável, intercambiável um pelo outro.

A pergunta que me fazia era: não seria essa impureza o que levaria Lacan, nos próximos dez anos, a deixar e abandonar tudo o que é lógica, a matematização, discursos, em relação à prática analítica? Não é justamente a partir do Seminário 11 que o psicanalista está posto no banco?

Se o semblante é aquilo que tem a ver com um vazio e uma significação ao mesmo tempo (é a definição um pouco mais rudimentar de semblante), ou dito a partir dos três registros, ele implica algo real bordejado, circunscrito, ajustado pelo imaginário/simbólico, a função do analista pela via do desejo acaba por permanecer pelo que ela tem a ver com a presença. Esse limite, essa aparição, talvez a marca — e aqui acrescento algo mais — seja a encarnação disso, encarnando-se ali como tal. A coisa impura tem a ver com a encarnação disso.

Do estilo como presença encarnada

Desvio-me um pouco. Eu lhes falei de Giannuzzi, do estilo. E quero me valer de algo da referência ao estilo que Jorge Faraoni havia utilizado; Ricardo Gandolfo também falou em um certo momento sobre o estilo, quando se trabalhou no seminário algumas dessas aulas sobre o tema.

Para dizer apenas algumas coisas, certamente, mais tarde, vocês poderão, melhor do que eu, adicionar algumas referências sobre isso, pois meu comentário sobre estilo não é exaustivo; do que se trata? A pergunta tácita que agora exponho é: está ou não em jogo o estilo do analista? A função “desejo do analista”, estando na veia lacaniana da lógica, da matematização, frente a isso, o estilo é isso que, me atreveria a dizer, se aproxima dessa outra questão, digamos, “não lógica”, a presença encarnada; onde a função, em sua pureza, devido à impureza, vacila um pouco, não se faz suficiente.

Voltemos então a nos colocar nesse lugar, no lugar do semblante do objeto a, não representável, não significante, mas que, por enquanto, vale como significante, como esclarece Jacques-Alain Miller. A aposta que o objeto a não é um significante, mas vale como significante, responde a esse afã lacaniano da matematização, da lógica, das fórmulas, mas, diria, marcado por algo que aparece, uma presença, um algo impuro em relação a ele. Pode-se dizer que é algo a mais, pois é encarnado.

Eu vou dizer de outra forma. A função do analista como um significante qualquer, mas ao nível do a como presença do analista, encarnação desse algo, se trata de alguém. E, a esse respeito, me apoio em uma frase de Germán García. Você poderá encontrá-la em um de seus livros (que são uma série de cursos que Germán deu no norte da Argentina), intitulado Derivas analiticas del siglo: ensayos y errores (2014). É um curso de 1988, uma compilação de todas as aulas em que Germán García, quando fala do semblante, diz:

“(…) quer dizer, como diz Lacan, poder ser um objeto qualquer para depois ter um nome. Se se diz que o analista é qualquer um, deve-se dizer também que o analista é sempre alguém, e que alguém tem um nome, o único traço que o analista põe em jogo é o de um nome, os demais são postos pelo analisante” (GARCÍA, 2014, p. 45. Tradução nossa).

Se tomarmos esse ponto pela via do estilo, sabe-se que, em linhas gerais, o estilo é algo que se trabalha e é muito trabalhado no campo da estética, da arte, da literatura, enfim, da criação. Mas aceita-se que não se trata tanto do autor em si, do nome próprio, mas da obra, que o estilo esteja em sintonia com o objeto de que se trata.

Por exemplo, Witold Gombrowicz propôs incomodar com estilo. Poder-se-ia dizer que é em sua literatura que existe o traço do desconforto, o estilo, mais além do próprio Gombrowicz. Na tradição literária, estilo refere-se a algo que é singular, algo que é um traço destacado dentro do que é um movimento cultural, dentro de um autor, de um momento cultural, uma época.

Isto também é interessante: há um traço do que poderia ser pensado como o humano, a condição disso que, por sua vez, é alcançada. Há uma estética acabada, não modificável no nível do que se alcança no objeto artístico e que, por sua vez, tem uma aura enigmática, de mistério. Novamente Germán García vem em meu auxílio; no mesmo livro, algumas páginas depois, ele diz algo que me parece relacionado comisso do estilo. Se o Real implica esse gozo relativo ao corpo, aproximamo-nos então da presença como o que ela encarna. Cito Germán García:

“No real a pergunta é de que goza [enquanto corpo e de que se goza]… A frase de Lacan ‘o desejo do analista não é um desejo puro’ é um desejo conectado a um corpo, a uma substância gozante. Quer dizer que o enigma da interpretação é um eco do enigma do próprio gozo do analista” (GARCÍA, 2014, p. 50. Tradução nossa).

Ou seja, haveria um estilo do analista enlaçado ao nome próprio, que faz o estilo enquanto uma presença. Um traço que tem algo estético, uma forma acabada, singular, e que é eco do próprio gozo do analista, é uma maneira que encontrei de dar uma volta na frase de Germán. Tensão com o Lacan anterior aos Seminários 10 e 11. Dado que, se Lacan estava extremando esse afã lógico, matematizável, de nos propor o inconsciente estruturado como discurso, chegando a preferir um discurso sem palavras, para depois dizer que não há mais do que semblante, vemos que, já no fim do Seminário 19, ou pior…, começa a dizer, a assinalar, a situar que há algo a respeito disso que se impõe, do que aparece. Nessa instância, o chama de um suporte para esse giro dos discursos e nos diz “(…) fazer desse de-ser o suporte com esse des-ser de ser o suporte…” (LACAN, 2012 p. 226).

Acrescenta: “(…) se existe algo que se chame discurso analítico, isso se deve a que o analista em corpo, com toda a ambiguidade motivada por esse termo, instala o objeto a no lugar do semblante. (LACAN, 2012 p. 222)”.

Quer dizer, temos o discurso, o objeto, o semblante e o corpo. Então, se estou tratando de transmitir, de expor nesses apontamentos, é porque me parece que, diante da reformulação lacaniana — a partir dos seminários 10 e 11 —, da prática e da experiência analítica, surge a pergunta se se trata de um corte. Podemos debater se é um corte ou uma continuidade topológica. São debates. Isso porque uma das razões (entre outras) é essa encarnação, esse no corpo (un corps, homófono de encore) que começa a ter toda uma presença diferente em nossa prática, na experiência, no ensino, na sua relação (se houver) com o lugar do analista. Também me atrevo a assinalar que, de modo geral, acostumamo-nos a falar do gozo como pulsional. É o mais clássico entre nós. Articulado, certamente, ao objeto. É por isso que o analista representa, ou está nesse lugar; ele é semblante de objeto. Por isso, temos a parte elaborável desse gozo.

Mas a ideia seria a seguinte: se não é, precisamente, pelo semblante de objeto a, a partir dos seminários 20 e 21, que aparece a presença por essa encarnação nesse lugar e nessa função impura do desejo do analista, que se revela ou se afirma a questão de um gozo que não é somente pulsional. Ou, dito de outro modo: se o objeto a (do qual o analista é semblante) é o elaborável do gozo, resta ao analista, em presença, ser aquele que encarna o não elaborável do gozo. Se podemos pensar que se possa tocar em algo desse aspecto do gozo, nomear, incidir sobre ele, para que isso aconteça, é imprescindível a presença. Mesmo que ela não garanta que isso aconteça.

O semblante se vincula, se ajusta, ele implica em si um vazio. Por isso, Miller assinala: “(…) se Lacan se lançou aos nós, foi para tentar lhe dar, fora da articulação linguística saussuriana, dar substância a esse vazio” (MILLER, 2008).

Visto de um outro ângulo, se diria que já não se trata de um só gozo. Sim, do campo do gozo, mas pluralizado. Por isso a questão do corpo e seu mistério falante faz sua aparição.

É a partir do texto “A Terceira” (sobre o qual lhes recomendo “Leituras da Terceira”, texto de Gabriela Rodríguez e outras colegas de La Plata) que encontramos os três registros lacanianos no esquema do nó aplanado. Na base de tal esquema, encontramos o objeto a. Deixando de lado o que, a partir desse esquema, será o desenvolvimento do ensino de Lacan em torno dos nós, me interessa fixar em uma recomendação lacaniana nesse texto. Para se referir ao analista, Lacan utiliza figuras e personagens como o palhaço, o bufão. E aconselha a não o imitar e fazer como ele: descontraídos, naturais, sem presunções, bufões, palhaços. Por que motivo Lacan incorpora essas figuras do palhaço, do bufão e as relaciona com o analista quando este está formulando um mais além da matematização, do Nome-do-Pai, do falo? A maneira que encontrei de abordar essa pergunta foi através disto, que trato de lhes colocar: a presença, o corpo, a encarnação ali do analista.

O gesto inesquecível

Para aproximarmos a responder algo sobre isso, pode-se mostrar com um exemplo muito conhecido e difundido entre nós. Um, ao menos assim me parece, que abona o que venho desenvolvendo. É o conhecido testemunho de Suzanne Hommel. Esse testemunho expõe, no meu entender, que ali se tratou de uma operação de Lacan, por sua presença em corpo com esse gesto leve na pele de Suzanne Hommel, quando ela fala repetida e insistentemente de seu sofrimento, de se despertar sempre às cinco da manhã com a recordação atormentadora da Gestapo, do Holocausto, da perseguição aos judeus. E, quando Lacan salta da cadeira do analista, de modo surpreendente, acaricia suave e levemente sua bochecha, é ela quem depois interpreta translinguisticamente Gestapo (do alemão) por geste à peau — em francês “gesto na pele”.

Gesto lacaniano que é bufonesco. Esclarecendo o seguinte: não caiamos rapidamente em pensar que o bufão (que também tem sua origem, sua inserção, tal como o menestrel, no popular, para o povo) era somente a diversão e o canto na corte. Também aliviava os sofredores. Ele ia ou se aproximava do leito dos enfermos, dos enterros, ou do que poderiam ser, nessa época, os enterros. Vá saber se havia enterros como existem agora. Mas havia algo do bufão (como também o menestrel) acompanhar ali, em presença, aquele que sofria, no limite da vida. A tal ponto que era a Igreja que se encontrava muito incomodada a respeito dessa função, pois não recorriam a ela. E com uma habilidade que, creio ser atribuída a Assis, o santo, que se pode, com alguma manobra, captar isso para o interior da religião. Porque o bufão cumpria uma função que a religião não cumpria, que tinha a ver com isso da vida que não é só o gracioso. Então, recordemos que temos que associar isso também ao bufonesco e aos menestréis. Como aqueles que tinham o nome próprio como algo singular, relativo a algo corporal, a um traço que os caracterizava. Algo como uma deformidade, ou defeito particular do corpo, e que, com isso, lhes permitia exercer essa função poética, teatral, comediante, de cantos, ou seja, uma espécie de um condensado da condição humana, não tanto por suas características de brilho, etc. E Suzanne Hommel diz: o gesto de Lacan é um gesto de humanidade. Porque introduziu um algo a mais vivo, que ela diz, até hoje, sentir na pele, ainda que o sofrimento, como rememoração, não cesse. Mas, para ela, algo ali está amortecido, algo está ali capturado, tocado nesse geste à peau que lhe trouxe um mais de vida e um menos de sofrimento iterativo. Creio que esse é um gozo que não podemos classificar de pulsional, que se introduz com esse gesto, esse ato de Lacan, mais além do sentido e da lógica fálica.

O outro exemplo, no qual vou me apoiar e vou resumir brevemente, talvez vocês o conheçam. É um dos testemunhos de Berta Mildner, publicado na revista Lacaniana. Mildner explica que, ao longo de sua experiência, sempre teve imbróglios com o corpo. Fazia dos livros um recurso permanente, ao saber exposto neles, e que se manifestava nela como alterações da respiração. Uma respiração constantemente agitada. E que, diante da insistência disso, há uma intervenção do analista que lhe disse: “esse saber não lhe serve para nada” (MILDNER, 2017, p. 59). Primeiro ela o localiza assim. Silêncio. Silêncio do analista.

Quer dizer, fazer sentir uma presença ali pelo silêncio. Ela assinala que o efeito disso é uma grande e intensa angústia. Apontamos, de passagem, que já falamos disso. Lacan afirma, em “A Terceira”, sobre a angústia como sintoma tipo articulado ao corpo. E Mildner diz: “separação máxima entre o corpo e as palavras” (2017 p. 59). E só uma recordação. A última das lembranças encobridoras é produto de um relato do Outro materno. Ela era muito pequena, com crise de bronquite e agitação. Corre às emergências médicas. Diante dessa recordação, ela chora e chora e não há mais que choro. Sem parar. Há uma intervenção nesse relato, de um pediatra — nessa recordação materna — que recomenda algo absolutamente natural: ar livre, que respire ar livre, ar fresco. Uma segunda intervenção do analista, ela diz: “A intervenção do analista foi nomear isso como o trauma” (MILDNER, 2017, p. 60). O que diz Mildner em seu trabalho? Há queda de todo sentido, esvaziamento do sentido, um vazio, mas com um nome. Surge-lhe uma imperiosa angústia, uma vontade de ir ver o analista e lhe falar, como retorno transferencial. É muito interessante porque ela diz que, no meio da sessão, levanta-se bruscamente do divã, senta-se diante do analista e lhe fala da lógica do seu fantasma, do analista como objeto a olhar, o “dizer silencioso” (MILDNER, 2017, p. 60). E que, tratando de recuperar o analista-olhar, mais e mais… surpresa. Aqui surge o interessante, que ela ressalta. Frente a frente ao analista, Mildner ressalta que lhe parecia a pura presença do corpo, de olhos fechados, analista angustiado. Poderíamos dizer aparição, pura presença do analista enquanto corpo, olhos fechados: “encontrei o analista fazendo semblante do acontecimento de corpo (MILDNER, 2017, p. 60)”. E, depois, outra surpresa. Cito: “Saí da sessão com uma vitalidade desconhecida, plus de vida, sem Outro, que transformaria o modo de viver o corpo” (MILDNER, 2017, p. 60).

Nenhum sentido, efeito de um outro enodamento, um vazio de significação. E dir-se-ia “tudo” (o tudo é irônico) pela presença.

Me vali da noção de presença do analista e de todas essas derivadas, que entendo ter uma característica inconclusa, insuficiente, porque abre muitas pontas: marca, objeto, semblante, interpretação, operação, encarnação, função do desejo do analista impuro, o corpo, etc. Porém, em todo caso, me surgia a pergunta se podemos fazer como Lacan diz: “natural”, sejam naturais, sejam soltos, palhaços, bufões. Ou como também diz no Seminário 21, “Les non dupes-errent”: recomeço.

Voltaria ao título: Tem alguém aí? Por que volto ao título? Porque, com essa noção da qual me vali, presença do analista, para aproximar-me desse limite, desse lugar limite, disso que não se pode elaborar, dessa opacidade, desse gozo mais além, mais além do Nome-do-Pai, podemos colocar os nomes que vocês quiserem… Minha pergunta, então, é: o que aí se pode obter da análise como marca disso? Germán García disse por aí que a marca e/ou as marcas de uma análise são as cicatrizes da experiência. Ou, senão, como diria Éric Laurent, enquanto o “inesquecível” dela. Como Suzanne Hommel o testemunha. É inesquecível. Algo ali é inesquecível. Ou, se a marca ou as marcas dizem respeito a esse gozo indecifrável, “fazer-se uma conduta com seu gozo” (OSCAR, 2012, p. 100).

Outra maneira de dizer o que poderia se esperar, entre outras coisas, da experiência de uma análise, eu encontrei na poesia de Joaquín Giannuzzi, de quem lhes falei no princípio e que me impulsionou a intitular a exposição “Tem alguém aí?”. Eu a transmito com um poema que lerei a vocês, porque entendo que expressa algo disso que apresentei. Chama-se “Uma palavra virgem”:

Só ela sobreviveu
de um texto que esqueci. Desde então
é presença musical em minha cabeça.
Era-me desconhecida e, no entanto,
mantive fechado o dicionário
onde segue esperando, em estado puro,
para entregar-me seu segredo. Deste modo
preferi livrá-la da servidão do significado
e criar-lhe um paraíso contra o conhecimento.
Resgatada
do contexto e da confusão conservo-a
como uma joia pessoal.
Agora, nas noites de insônia,
quando o nome das coisas cai na fadiga
apalpo-a e saboreio
como a uma mulher amada na escuridão.
Somente seu som, sem identidade, sem assunto,
percorre sussurrando minhas entranhas:
hipálage, hipálage, hipálage.
Algo deve haver ali dentro que resiste
como um desconhecido gozo triunfante.

 

Tradutores: Jônatas Casséte e Luciana Romagnolli
Revisora: Renata Mendonça

Referências
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII,. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIANUZZI, J. Obra completa. Buenos Aires: Ediciones del Dock, 1999.
GARCÍA, G. Diversiones psicoanalíticas. Buenos Aires: Otium Ediciones, 2014.
LACAN, J. O seminário. Livro 19:… ou pior. Zahar: Rio de Janeiro, 2012.
LACAN, J. O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud (1953-54), 3ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LACAN, J. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MILDNER, B. De la resolución matemática al régimen del encuentro. Lacaniana, 22, Buenos Aires: Grama, abril 2017.
MILLER, J.-A. Sutilezas Analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2008, lição de 8 de abril, p.246.
OSCAR, Z. Los decires del amor. Buenos Aires: Grama, 2012.
RODRIGUEZ, G. Lecturas de la Tercera. Buenos Aires: Tres Haches, 2019.

1. Publicado em:  Vaschetto, E.,Faraoni,J.(coord.)  ¿Podemos vivir en una civilización sin Dios? Segundas Marcas. Seminarios de Psicoanálisis. Barcelona:Xoroi Edicions, 2021 



EDITORIAL – ALMANAQUE Nº30

Patrícia Ribeiro

CAROLINA BOTURA. 2018

 

Com este número comemoramos, com muita alegria, a 30ª edição da Almanaque On-line, cujo formato digital se iniciou há pouco mais de 15 anos!

Desta vez, norteados pelo tema O encontro com um psicanalista hoje, seus artigos dão testemunho da importância da presença do discurso psicanalítico em nossos dias, face à presença hegemônica de um discurso que impele a um imperativo de gozo, consoante com a sociedade atual de consumo em seu pacto com a ciência.

Essa aliança promoveu profundas modificações nos laços sociais e em nosso modo de viver, conforme destaca  Margarida Assad, nossa colega e entrevistada desta edição. Como ela aponta, vivemos em uma época marcada, por um lado, pela prevalência de um empuxo ao mais de gozar e, por outro, pela preponderância de soluções universais às questões subjetivas, saberes prontos para usar de forma indiscriminada. Não por acaso, acrescenta Margarida, as instituições sociais, entre elas, a família, “são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguirem sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo”. Ela ainda nos esclarece sobre o que está em jogo na formação atual dos grupos, tomando como exemplos grupos estruturados a partir de significantes que traem a presença da pulsão de morte em seus fundamentos — algo que muito recentemente assistimos, perplexos, em nosso país. Todavia, conforme Margarida, outras formações de grupos de nossa época permitem, ainda que de modo peculiar, manter o laço social “impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem”.

Abrindo a rubrica Trilhamentos, Laura Rubião nos convida para pensar como o analista pode se fazer presente em nossa época, distante das “concepções tradicionais que evocavam o analista como figura neutra ou desinteressada”. Ao contrário, ela salienta a importância de que ele se faça presente como “aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo”. Gilles Chatenay aborda a presença do real na experiência analítica tomando como ponto de partida o seminário de Lacan sobre a transferência. Esteban Pikiewicz percorre os textos de Freud e de Lacan para elucidar o que estaria implicado no sintagma “presença do analista” e sua articulação ao desejo do analista em sua dimensão real.

Em Encontros, Margaret Couto discute a crença na existência de um corpo natural sustentada pelas terapias cognitivas comportamentais, corpo passível de ser quantificado, domesticado e adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, uma vinheta clínica por ela apresentada atesta os efeitos da presença do psicanalista na clínica com crianças, verificando, uma vez mais, que o corpo não se reduz aos dados biológicos. Clarisse Boechat nos oferece suas reflexões sobre sua experiência de trabalho como psicóloga do “Consultório na Rua”, no centro do Rio de Janeiro, orientada pela pergunta “quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?” e buscando, por fim, localizar “o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico”. Florencia Shanahan interroga sobre os modos de presença em uma análise apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona a possiblidade de um final de análise, caso assim permanecesse. Fechando essa rubrica, Guy de Villers nos brinda com o relato dos efeitos de seu primeiro encontro com Lacan, causa da interpelação de seu desejo de “tudo compreender”. A partir desse encontro, o autor discute o que a presença de Lacan introduziu na prática da psicanálise.

Os 15 anos da Almanaque On-line são também comemorados pela presença, a partir desta edição, de uma nova rubrica, que apresentará ao leitor os trabalhos apresentados nas Lições Introdutórias — atividade ligada à Seção de Ensino do IPSM-MG cujo objetivo é transmitir à nossa comunidade os textos seminais de Freud e Lacan. Nessa rubrica de estreia, vocês terão a oportunidade de conhecer artigos que tiveram como horizonte de pesquisa o tema Des-montar a defesa. Como nos explica Virgínia Carvalho, esse título ressoa a orientação lacaniana de que “des-montar a defesa é o ‘coração’, a matriz mesma da operação analítica”, e a inclusão do hífen no ‘des-montar’ visa ressaltar “a ideia de que há sempre uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa”. A autora revela que a questão que permeou sua leitura se condensa na frase “como alguém pode não se defender?”. Em sua rigorosa leitura dos textos freudianos e das contribuições de Lacan e Miller sobre o conceito de defesa, ela esclarece pontos fundamentais quanto à inexorável presença da defesa em todo falasser, frisando suas particularidades nos quadros clínicos das neuroses e psicoses. Cristina Drummond, por sua vez, aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Tal conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias. Mônica Campos destaca que, para Freud, a própria definição de sintoma pressupõe a conexão entre gozo e defesa, pois, “no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela”. E, lembra a autora, desse vínculo entre gozo e defesa decorre a observação de Lacan quanto ao “paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles”. A leitura de Cristiana Pittella do texto freudiano “Neurose e psicose” explora a ideia desse conflito defesa e gozo “que perpassa a obra de Freud”, isto é, “entre forças antagônicas, a defesa e as moções pulsionais”, e esclarece que é a partir da posição do eu nesse conflito que Freud vai delimitar a neurose e a psicose como modos de defesa. Já em seu texto, Luciana Silviano Brandão trata do debate desde cedo aberto por Freud, que culminou em seu artigo de 1937, “A análise finita e infinita”, indagando sobre as possibilidades de um final de análise. A questão de fundo, enfatiza a autora, seria a pergunta sobre a possibilidade de resolver de forma definitiva o conflito entre a pulsão e a defesa. Fechando essa nova rubrica, Lucia Mello se detém sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientando-se pelas leituras de Lacan e Miller e suas preciosas contribuições sobre esse tema para a atualidade do trabalho clínico.

Na sequência apresentamos, em Incursões, trabalhos dos núcleos da Seção Clínica do IPSM-MG. Sérgio de Campos e Fernanda Otoni discorrem sobre a particularidade da presença do analista em relação à psicose ordinária, casos que se manifestam na clínica sob formas de gozo que “exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça”, não restrita a respostas sobre sim ou não à presença do Nome-do-Pai. Campos acrescenta que, longe de se tratar de uma nova categoria diagnóstica, ela “expressa a ponta de um iceberg de uma psicose clássica que se encontra submersa e subjacente”. Já Otoni, comentando o texto de Campos, indaga se o sintagma “psicose ordinária” não seria um convite para explorarmos as consequências da afirmativa de Miller quanto à “igualdade clínica fundamental entre os falasseres” e, por conseguinte, fazermos um deslocamento da pergunta de “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Philippe Lacadée traz importantes elementos para pensarmos as primeiras relações da criança com o Outro sobre o prisma dos “pais traumáticos”, expressão que encontramos em Lacan para indicar que “todo pai ou mãe é traumático” por portar um gozo cuja significação escapa à criança, e, seguindo em sua leitura do Seminário 19, evoca a aproximação lacaniana entre essa posição traumática dos pais e a posição do psicanalista. Ondina Machado traz uma importante reflexão sobre as implicações da criminalização do aborto sob a perspectiva da psicanálise, tomando como premissa que o desejo de ter um filho “não é solução para todas as mulheres”. O neologismo adixões, cunhado por Ernesto Sinatra, é trazido à discussão em seu texto. Inspirado pelo X freudiano da expressão fixierung, o autor pretende ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Nathália Temponi e Cláudia Reis se valem de uma vinheta clínica para se perguntarem sobre a natureza da relação de um sujeito com a substância tóxica e sobre os efeitos de seu encontro com uma psicanalista. Sílvia Soares reflete sobre os efeitos da incidência massiva do mundo digital (jogos e celulares) na clínica com crianças e adolescentes interpelando sobre as possibilidades de estabelecimento de uma abertura ao saber inconsciente no caso de sujeitos que creem ter o objeto em suas mãos, e, em vista disso, sobre como convocá-los a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco. Alessandra Rocha trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças, tomando a questão do grito e do silêncio em Lacan para evidenciar a sua importância na psicanálise.

De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise e se inicia com a discussão trazida por Isadora Urbano sobre o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta norte-americana Sylvia Plath, buscando, em trechos de seus diários, cartas, poemas e no romance A redoma de vidro, as dimensões que a escrita assumiu na vida dessa autora. Wallace Faustino Rodrigues, por sua vez, examina, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, a paternidade na neurose obsessiva a partir de fragmentos da obra do escritor norueguês Karl Ove Knausgard. Fechando a rubrica, Marina del Papa nos transmite o relato de sua experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital, salientando que sua prática lhe trouxe a possibilidade de não apenas revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como fez ressoar a potência da presença do analista com seu corpo.

Esta edição do aniversário de 15 anos contou com as belas e instigantes imagens generosamente cedidas por Carolina Botura. Graduada pela Escola Guignard – UEMG em Pintura e Escultura, Carolina trabalha com cruzamento e prolongamento de linguagens, tendo a ação como disparadora de sua produção em desenho, pintura, escultura, instalação, performance, vídeo, música e cerâmica. Suas pesquisas estão relacionadas à transformação e ao movimento, ao caos e à origem, atravessados pelo viés do tempo para tratar de temas como animalidade, amor, morte, magia, perda, sexualidade, espiritualidade, energia, política e natureza. Paulista de Botucatu, vive e trabalha em Belo Horizonte e já participou de diversas mostras, individuais e coletivas, e residências artísticas no Brasil e no exterior. É também poeta e performer.

Antes de convidá-los para a leitura, gostaria de parabenizar os colegas que estiveram presentes durante todos esses anos na produção da Almanaque On-line, seus diretores de publicação, membros das equipes da revista e os autores que, desde 2007, contribuem para a sua importância como meio de divulgação do trabalho de pesquisa e ensino da psicanálise de orientação lacaniana realizado no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. E, mais uma vez, quero deixar o agradecimento aos colegas da equipe atual.

Obrigada pela parceria tão dedicada e entusiamada!

 

Carolina Botura:
https://www.instagram.com/carolabotura/
https://www.carolinabotura.com



Almanaque on-line entrevista Margarida Elia Assad

Margarida Assad
Psicanalista, membro da EBP/AMP e professora aposentada da UFPB.

 

CAROLINA BOTURA. CABEÇA

 

ALMANAQUE ON-LINE: Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. Não são poucos os testemunhos dessa forma de laço, como vemos, por exemplo, nos grupos terapêuticos ligados às adições. Seguindo ainda com Miller, ele também destaca uma outra forma de enlaçamento social presente nos chamados grupos extremistas, que, mais recentemente, surgem também no Brasil, nos quais o que estaria em jogo seria a articulação entre a identificação e a pulsão de morte. Que leitura é possível extrair dessa “psicologia de grupo” contemporânea?

MARGARIDA ASSAD: A psicologia de grupo freudiana certamente está sendo renovada pela queda do patriarcado presente na atualidade. Mesmo na falta dos significantes para os Nomes-do-Pai, que sustentavam os ideais dos grupos, os laços sociais se fazem demonstrando que sua causa não é o amor ao Pai, mas uma falha irredutível, causa do inconsciente. Essa falha irredutível se introduz pela via da estrutura de linguagem, pelo Outro, tornando o corpo, objeto dessa marca, um ser destinado ao social, destinado a fazer laços. Assim entendo o aforismo lacaniano “o inconsciente é a política”, uma vez que, por política, a psicanálise entende esse laço irredutível que o corpo falante mantém com o social. E, por ser um laço irredutível, uma unidade perdida, resta ao falasser fazer, desse furo marcado em seu corpo, uma identificação para si mesmo. Laurent esclarece que seria uma identificação a “dar sentido” a essa “experiência fora-de-sentido inerente a todo falasser” (2016, p. 65).

Temos assistido no mundo uma nova configuração social, desenhada por grupos com diferentes identidades. Nem todos apresentam identidades de gozo articuladas à pulsão de morte. Alguns desses grupos se reúnem em torno de um significante que possa permitir que o laço social seja mantido, impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem. Marcus André propõe a identidade como forma de pertencimento a um grupo, o que o insere na cidade, destacando que no Brasil, em especial, a identidade salva vidas (VIEIRA, 2022, p. 65). Nesse sentido, precisamos fazer distinções sobre a interpretação que o discurso analítico pode fazer sobre a “psicologia de grupo contemporânea”. Alguns grupos e coletivos certamente se constituem numa lógica das paixões de gozo, que se radicalizam de forma feroz sobre a sociedade. Alguns são nomeados terroristas, pois seu desejo se expressa pela via da destruição e morte, como assistimos na depredação feita aos símbolos da República Brasileira no dia 8 de janeiro passado. Claro que nesses grupos existem diferentes identidades, das fascistas até os que imaginam que servem a um gozo imaginário, com valor de nomeação, como vimos no chamado grupo de “patriotas”, enrolados em bandeiras. Patriotas dá a eles um nome, uma identificação, que sustenta o vazio do não-saber quem são e, menos ainda, de seu desejo. Há muito a refletir sobre a formação moderna dos grupos. Nesses últimos, o que une tais indivíduos não é da ordem de um semblante, mas do puro real marcado pela vontade de morte no Outro, e não do Outro. Podemos pensar que há aí uma identificação construída sobre o que há no Outro de desejo de morte e que capitanearia, numa ordem de ferro, seus seguidores, satisfazendo sua vontade de gozo mortífera. Mecanismo semelhante à histeria moderna, na qual o sintoma é sintoma de um outro corpo, um sintoma em segundo grau (LAURENT, 2016, p. 28).

Fazer distinções sobre tais grupos é fundamental. Há grupos nos quais as identidades salvam e inserem seus participantes na cidade de forma civilizatória. E há grupos nos quais a identificação não se cristaliza na identidade, como diz Lacan1, podendo levar a um aumento da angústia do grupo ou levar ao pior, que seria a passagem ao ato na forma de destruição e morte pela absoluta identificação ao desejo de morte no Outro.

 

AOL: Ainda nesse tema sobre o discurso do mestre em nossa época, lembramos que a psicanálise aplicada é uma tentativa de diálogo com esse discurso. Hoje, um de seus pontos fundamentais seriam as classificações universalizantes próprias a uma psicopatologia que se apresenta como científica, cuja perspectiva se baseia, em última instância, na homogeneização do sintoma, reduzindo-o a um transtorno especializado. Nesse sentido, o que parece estar em questão é uma tentativa de enquadrar o gozo em um diagnóstico prêt-à-porter, ignorando, portanto, o efeito único e irredutível do encontro de cada sujeito com a linguagem. Diante disso, que diálogo se faz possível?

M.A: O discurso psicanalítico tem hoje uma tarefa da maior importância para o mundo contemporâneo. O discurso científico, ao tentar homogeneizar os sintomas, de forma a classificá-los por sintomas comuns a cada classe, replica o que vem ocorrendo na proliferação de grupos, em que se buscam nomeações que possam preencher o vazio das identificações. Temos hoje uma excelente demonstração dessa liquefação das identificações em identidades sem nenhuma relação com a singularidade do sujeito. Carolina Castelliano, da Defensoria Pública da União e secretária de Atuação no Sistema Prisional, afirmou, durante o UOL News, que muitos dos golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília, na maioria mulheres, apresentam sintomas de desconexão com a realidade e que elas próprias não entendem como praticaram os atos de violência. Foi criada uma identidade de grupo, ela diz, que eliminava a subjetividade de cada um: ao que o grupo determina, o sujeito adere. A pessoa se tornou o grupo, diz Carolina, “elas sentem falta do grupo quando são mantidas isoladas”. Essas observações da defensora pública nos ajudam a interpretar o que vem acontecendo com o sujeito moderno.

O neoliberalismo associado ao discurso capitalista vem oferecendo soluções às questões subjetivas para todos, indiscriminadamente. As famílias e as instituições sociais são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguir sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo. Hoje, por exemplo, temos formas diferentes de parentalidade que não assombram mais seus filhos, para usar um termo que Laurent isolou em Lacan: épater (assombrar, chocar). Cabe ao discurso analítico ofertar um diálogo com essas novas coordenadas do simbólico escutando as irrupções, as manifestações de angústia, fazendo frente, fazendo um judô (LAURENT, 2016, p. 36) com esses novos discursos. Laurent propõe que se investigue, nas novas formas do masculino e do feminino, “o que serve de pai na configuração dos gozos de hoje” (BARROS, 2022, p. 123). Podemos ficar com essa indicação, que pode orientar a prática dos analistas nesses grupos e coletivos, escutando de que forma a sexuação se mantém na ordem do dia definindo os sintomas contemporâneos.

 

AOL: No tocante à clínica, ela tem nos mostrado, nas últimas décadas, casos que se manifestam, predominantemente, sob formas de gozo, que convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Na sessão clínica de Angers, Miller interroga se essas novas formas como as psicoses podem se apresentar na atualidade, designadas, por fim, como psicoses ordinárias, não exigiriam uma nova posição do analista, propondo pensá-la sob a forma de uma neotransferência. Você pode nos esclarecer o que a particularizaria? E poderia nos dar alguma referência de sua clínica?

M.A: O último ensino de Lacan nos traz novas leituras para a transferência. Se a fala do analisando produz efeitos, não é certo que isso se deva exclusivamente à transferência, ou seja, que seria pela suposição de saber em análise que tais efeitos tenham surgido. A extensão feita por Lacan do significante à letra nos permitiu ler de outra forma o inconsciente em análise. Lacan reenvia, cada vez mais em seu ensino, a fala à escrita. Um escrito feito pela letra de gozo presente no acontecimento de corpo. Essa nova modalidade de leitura para o inconsciente exige que a prática do analista o leve a escutar, pela sonoridade de lalíngua, a fixação de gozo no que se diz. Escutar deixando-se ir além do que se diz, escapando à rotina de aparolaNesse sentido, a fineza da escuta analítica é estar à altura da interpretação feita pelo inconsciente sobre o trauma da linguagem. Isso promove uma nova leitura do conceito de transferência, levando-a ao estatuto de lalíngua, fazendo do analista um parceiro do corpo-intérprete. Podemos lembrar da paciente de Helenice Saldanha, citado em um texto recente da Correio (CASTRO, 2002, p. 90), quando a queixa de ser indigente ganha uma nova leitura a partir de se descobrir negra. Não se trata de um deslizamento de um significante a outro, mas de uma ruptura entre o simbólico e o imaginário, eclodindo um efeito real, um novo dizer que tem aí o estatuto de acontecimento de corpo.

Entrevista realizada por Letícia Mello, Márcia Bandeira, Patrícia Ribeiro e Renata Mendonça.

 


Referências 
ASSAD, M. “O impossível e o laço, o analista e a época”. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Analista: Presente. 2022.
BARROS, M. R. C. R. “Como viver a infância hoje? O que Lacan nos ensina sobre a sexuação na atualidade”. Latusa, 26. Rio de Janeiro, 2022, p. 123.
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VIEIRA, M. A. “O que se cristaliza em uma identidade”Latusa, 26. Rio de Janeiro: 2022. Seção Rio-EBP.

1. LACAN, J. O seminário, livro 24. Lição 12-11-1976. Citado por VIEIRA, 2022.



A experiência analítica de testemunhos de perda no hospital

Marina del Papa
Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG e aluna do IPSM-MG
marina.delpapa09@gmail.com

Resumo: Este trabalho visa a transmitir o relato de uma experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital. Parte-se da premissa de que, quando um sujeito busca uma instituição hospitalar, ele o faz, a princípio, pela urgência biológica e traumática de seu corpo; porém, de maneira concomitante, pode-se verificar uma atualização psíquica e singular de sua relação com a castração e o real. A prática psicanalítica passa fundamentalmente por algo desta ordem: um testemunho de perda, seja em sua construção teórico-clínica, seja na travessia do fantasma no final de uma análise. Trabalhar em um hospital traz a possibilidade de não só revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como também fazer ressoar a potência da presença do analista com seu corpo, enquanto via transferencial de testemunho para o sujeito.

Palavras-chave: Psicanálise; testemunho de perda; hospital.

THE PSYCHOANALYTICAL EXPERIENCE OF TESTIMONIALS OF LOSS IN THE HOSPITAL

Abstract: This work aims to convey the report of a clinical experience guided by psychoanalysis within a hospital. It is assumed that, when a subject goes to a hospital, he does so, at first, because of the biological and traumatic urgency of his body; however, at the same time, it is possible to verify a psychic and singular update of his relationship with castration and the real. The psychoanalytic practice fundamentally passes through something of this order: a testimony of loss, whether in its theoretical-clinical construction, or in the crossing of the phantasm at the end of an analysis. Working in a hospital brings the possibility of not only revisiting important concepts for clinical listening, but also echoing the power of the psychoanalyst’s presence with his body, as a transferential path of testimony to the subject.

Keywords: Psychoanalysis; testimony of loss; hospital.

CAROLINA BOTURA. CASA PARA UM ANIMAL

 

Em vista das discussões levantadas durante o segundo período de formação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, as quais se baseavam na prática do analista em instituições, e da temática proposta para o Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “Analista: Presente!”, vi-me interessada em escrever sobre minha experiência de trabalho dentro de um hospital de Belo Horizonte (MG). O fragmento de caso que compartilho a seguir tornou oportuna a retomada de conceitos importantes da psicanálise, como a localização subjetiva e a transferência, e, igualmente, abriu margem para uma reflexão sobre a presença do analista como via de testemunho, posição esta que torna possível um giro a partir do qual o sujeito pode avançar sobre seu dito e sua implicação com a perda.  

O caso Rubens

Rubens era um senhor de 76 anos para o qual foi requisitada assistência psicológica devido à angústia da equipe médica que o tratava, que não conseguia realizar o diagnóstico de sua doença. O que se sabia desse paciente é que ele sofria de algo relacionado ao pâncreas, embora isso não ficasse claro nos exames tumorais.

Esse sujeito não recebia visitas. Era educado com a equipe, mas bastante solitário. Acompanhei-o por cinco meses, até o momento de sua morte. Boa parte desse período — quatro meses exatamente — se destinou à definição de seu diagnóstico. Sempre o encontrava deitado; nisso, sentava-me a seu lado e buscava investigar sua história. Ele falava muito pouco sobre si e, por isso, pude colher apenas poucos dados: “fui diagnosticado com bipolaridade muitos anos atrás”, “perdi uma filha quando ela era criança por um câncer”, “tenho filhos, mas não são próximos” e “um casamento perdido”.

O paciente sempre interpunha à continuação de sua história queixas de dor. Revirando-se na cama, ele dizia das dores que tinha no corpo. A propósito, fazia uma descrição detalhada delas. Permaneci acompanhando-o, sentando-me ao lado de sua cama, na presença constante de suas queixas. Seu corpo não mais respondia a uma série de funções. Houve dias em que apenas o acompanhei em seu silêncio. Aliás, por alguns meses, essa foi a forma de acompanhamento que pude ofertar: uma presença e uma disponibilidade de escuta, indo a seu leito quase diariamente.

Depois de alguns meses, durante uma sessão, teve início o giro do caso. Nesse dia, Rubens afirmou sentir muita dor. Ele mal conseguia se movimentar no leito, contorcendo-se agoniado e com febre, o que o fazia ter calafrios. Ele, então, sorriu para mim e disse: “Que profissãozinha ruim a sua, hein?! Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Eu o respondi dizendo: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. O paciente tremia de frio. Em vista disso, levantei-me e o cobri com o cobertor. Nesse momento, ele demonstrou espanto com meu gesto, agradecendo-me em seguida.

Após essa sessão, ocorreram algumas mudanças com Rubens: ele passou a se sentar na cama para os atendimentos, dando amostras de que um sujeito começou a se presentificar ali. Outro modo de dizer se instaurou. O paciente pôde construir uma elaboração sobre um momento traumático de sua vida, que foi a perda de sua filha: “Briguei com tudo e todos”. Ele considerava justa sua solidão: “Fiz mal a meus filhos e minha esposa; é natural que não venham. Eu causei tudo isso, fiz coisas muito erradas. É justo que eu morra sozinho, mas não gostaria de morrer com dor. […] Está perdido, não tem mais o que ser feito”. Cortes, interpretações, desconstruções e conclusões foram sendo produzidos pelo paciente. Outra elaboração foi sobre como ter uma morte mais digna dentro das coisas que ele fez na vida e de outras que ele perdeu, sem possibilidade de restauração. Em uma das sessões, já com um sujeito instaurado, pude dizer a ele: “Hoje você trabalhou”. Nisso, ele me respondeu: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”.

Rubens veio a falecer pouco tempo depois. Como ficou acordado pela equipe médica após o diagnóstico de câncer no pâncreas, ele não seria submetido a tratamentos com poucas chances de êxito, tendo sido realizado apenas um paliativo. Juntamente à equipe, foi possível colocar em jogo a posição desse paciente: ele não poderia evitar a morte, mas poderia morrer sem grandes dores. Essa foi a ética possível para esse sujeito, que pôde realizar algum trabalho sobre suas perdas.  

Considerações iniciais

Quando oferecemos um espaço de escuta, como no caso de Rubens, algumas vezes nos deparamos com sujeitos em uma posição apagada, posição essa mais voltada à descrição corporal dos sintomas e a uma verificação queixosa da manifestação destes. Digo algumas vezes porque entendo que a maioria dos casos não é assim. Nesse sentido, o primeiro ponto que considero importante destacar para compreender a experiência de um testemunho de perda é a presença do analista.  

Presença como testemunha

Clotilde Leguil (2022) escreveu, no boletim extra A presença do psicanalista como testemunha de perda, que a presença do analista é articulada por Lacan não tanto a uma ausência, mas a uma perda. O fato de o analista estar ali com seu corpo, com sua voz, com sua respiração no mesmo lugar em que está o analisante — este também com seu corpo e com sua angústia — tem uma função decisiva. O corpo do analista em sua modalidade de presença exerce uma função de testemunha daquilo que se perde. O surgimento do inconsciente se produz no próprio modo daquilo que aparece e depois desaparece, no modo do que se dá a conhecer e depois se deixa esquecer, no modo do que estava lá, mas que já não está mais. A autora acrescenta que o inconsciente se manifesta como o que se perde, como aquilo que apenas é encontrado, que já está perdido, ganhando consistência se, e somente se, houver uma testemunha de seu surgimento.

Depreendo, do fragmento supracitado, a importância da dimensão da presença, isto é, a importância de manter constantes as idas, de convocar esse sujeito a falar e, mais do que falar, de acompanhar, em meio a seu dito, as dores, as angústias e os odores do corpo: em outras palavras, estar ao lado daquele corpo. A sessão que ocorre como divisor de águas, como ponto de mutação de um sujeito que descrevia suas dores para outro sujeito, que inicia um trabalho analítico, é aquela que tem como marca a constatação de Rubens: “Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Essa é uma indicação passível de ser compreendida como testemunho? O texto de Clotilde Leguil nos leva a recordar da terminologia lacaniana testemunha para abarcar a presença do analista. Lacan (1964) ressalta que, desde o início da psicanálise, quando Freud trabalha a estrutura do inconsciente e instaura uma prática, esse é um campo que, por natureza, se perde. É aí que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda.

Compreendo, a partir disso e tendo acompanhado Rubens por quatro meses, que existe uma sustentação em suportar o corpo real enquanto presença. Enquanto orientação clínica, aposta-se que exista um sujeito que se instaura pela perda. É por essa orientação, não desassociada do ato de suportar o corpo e sua angústia, que se pode dizer: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. Dessa forma, outro elemento indispensável para essa reflexão é a transferência.

O segundo momento do fragmento, em que o paciente inicia seu trabalho e uma abertura subjetiva se instaura, ele nomeia “de amor”: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”. Isso demonstra que a transferência se instaura em uma constatação de localidade subjetiva com o Outro, a qual não seria viável sem a presença da localidade enquanto presença. Assim, como encontramos na orientação lacaniana, a transferência vinculada a uma presença é necessária (LACAN, 1964).

Por fim, tendo sido instaurados esses elementos para Rubens, verifica-se uma ultrapassagem do dito para um sujeito com um inconsciente, pois, quando avançada essa constatação de presença, o paciente se coloca a trabalhar, relacionando a perda traumática de sua filha, que morreu de câncer quando era criança, a um câncer descoberto em estágio avançado, dizendo do trauma que o marcava por ter presenciado a hemorragia no corpo da menina. Rubens constata em sessão que, após a morte da filha, ele se colocou em uma posição desenfreada na vida, enquanto sujeito disposto a perder todo o resto: o casamento, os filhos, o dinheiro, o emprego, nada mais lhe importava. Próximo de morrer, ele pôde julgar a ausência de alguém.

Sendo assim, levanto o último elemento da reflexão: para que haja o testemunho do analista, é necessária a localização subjetiva do sujeito com seu inconsciente; é nesse momento que o que está em jogo não é mais apenas um espaço de escuta, mas, sim, uma experiência analítica. Só existe um testemunho. Se existe um sujeito aberto a essa experiência, é necessária a presença de um analista que queira colocá-lo a trabalho.  

A localização subjetiva

O analista, como testemunha de perda, testemunha, na presença de um sujeito, quando este aparece ou é convocado aparecer. O sujeito surge, como diz Lacan (1966), para além de seus ditos, sendo implicado pela demanda que ele apresenta. Isso equivale a um sujeito com um sintoma que ultrapassa o diagnóstico médico. Como mencionado por Lacan, trata-se de um sintoma como enigma para o sujeito que tem uma fantasia — essa seria uma condição mínima definida como instrumento.

Miller (1997), em Lacan elucidado, nos orienta exatamente sobre essa diferenciação quando toca o método lacaniano para que possa se apresentar como uma análise: o mecanismo dos ditos é falso, pois este não vale mais que o mecanismo da psicologia do eu. A localização subjetiva consiste em distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito. É necessário sempre inscrever algo, com um índice subjetivo do dito, o que verificamos no mal-entendido, naquilo que o paciente apresenta como uma verdade absoluta ou no que é predominantemente falso, no que ele deseja mas teme, ultrapassando o sentido de um dito.  

Considerações finais

A partir dessa experiência, reflito sobre a importância da presença de uma orientação psicanalítica nas instituições. A presença e a conduta dessa orientação implicam uma aposta no inconsciente e em sua abertura. Para isso, é necessário fazer presença, às vezes, com as palavras, outras, com o corpo, mas sempre apostando em uma possibilidade singular para cada sujeito e que este possa se ouvir e se implicar para além do que é dito. Isso ultrapassa qualquer protocolo hospitalar, incluindo tempo de sessão, quantidade de atendimentos por dia, o que o plano de saúde sugere etc. Não se trata de nada disso. É uma aposta em oferecer uma experiência de testemunho, elevando o sujeito à maior dignidade possível: a de ser sujeito de sua própria história.

 

 


 Referências
LACAN, J. (1964). O seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. (1966). Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LEGUIL, C. A presença do psicanalista como testemunha de perda. 2022. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
MILLER, J.-A. Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.



Sylvia Plath: uma escrita para “O caos da experiência”

Isadora Saraiva Vianna de Resende Urbano
Graduada em Estudos Literários e Mestra em
Teoria da Literatura Comparada pela UFMG
isaresendeurbano@gmail.com

Resumo: Este artigo discute o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta Sylvia Plath (1932-1963). Partindo de trechos de seus diários, cartas e poemas, além do romance A redoma de vidro, procuramos investigar as dimensões que a escrita assumiu na vida da autora. Destacadamente, pontuamos que Plath se valia da escrita como um modo de buscar se fazer amar e de organizar o que nomeava como “o caos da experiência”, numa tentativa de sinthoma que funcionou bem o bastante por muito tempo, mas que, a dada altura, mostrou-se uma saída insuficiente para que Plath sustentasse o desejo de viver.

Palavras-chave: Sylvia Plath; escrita; sinthoma.

SYLVIA PLATH: A WRITING FOR “THE CHAOS OF EXPERIENCE”

Abstract: This article discusses the role of writing as a psychic support for the poet Sylvia Plath (1932-1963). Starting from excerpts from her diariesletters and poems, as well as the novel The bell jarwe seek to investigate the dimensions that writing assumed in the author’s lifeNotablywe point out that Plath used writing as a way of trying to make herself loved andalsoof organizing what she called “the chaos of experience”, in an attempt of making a sinthomethat worked well enough for a long time, but eventuallyproved to be an insufficient way for Plath to sustain the desire to live.

Keywords: Sylvia Plath; writingsinthome.

 

CAROLINA BOTURA. EX-DEUS

 

No Seminário 23, O sinthoma, Lacan nos diz que “uma escrita é (…) um fazer que dá suporte ao pensamento” (LACAN, 2007, p. 140). Pouco à frente, acrescenta: “As pessoas escrevem suas recordações de infância. Isso tem consequências. É a passagem de uma escrita para outra escrita” (ibid., p. 143). A passagem de uma escrita para outra escrita, nesse contexto, é algo que podemos ler como a passagem de uma escrita no corpo para uma escrita textual, por meio da qual registramos nossas impressões e as tornamos legíveis para outras pessoas, e também para nós mesmos.

Escrever suas recordações, como afirma Lacan, certamente tem consequências. No caso de James Joyce, por exemplo, Lacan afirma que a escrita é essencial a seu ego, possibilitando a amarração do nó que rateia na tríade R.S.I. Mas para além do caso Joyce, há um sem-número de pessoas que se apoiam no recurso à escrita e fazem dela algo importante em termos psíquicos. Algumas vezes, essa escrita pode alcançar algo de íntimo e quiçá vital para aquele que escreve, para além de qualquer valor prático ou literário que possa vir a ter. Nesse campo, uma escrita pode, por exemplo, dar corpo aos pensamentos, dar destino ao fluxo de ideias, aquietar a ânsia de dizer, dar consistência às próprias palavras, permitir que algo seja esquecido sem que caia de vez no esquecimento, elaborar, expurgar, etc., o que equivale a dizer que uma escrita pode ter o lugar de uma invenção, uma forma criativa de lidar com os temas que nos tocam, que pode alcançar efeitos terapêuticos ou não, e que, em todo caso, não substitui uma análise, mas pode aparecer como uma estratégia suplementar para lidar com a experiência¹.

Para explorar essas questões, das funções e efeitos de uma escrita, proponho passarmos ao caso concreto e ilustrativo de Sylvia Plath e sua relação particular com as práticas da letra, a partir dos materiais deixados em seu romance, poemas, diários e cartas. Não se trata absolutamente de fazer uma análise de Plath a partir da sua escrita, mas de verificar como essa escrita foi apropriada por ela e que lugares pôde ocupar em sua vida psíquica.  

Sylvia: vida & obra, ou vida-obra

Em um dos poemas de sua juventude, escrito em 1948, o eu-poético de Sylvia Plath responde a questões colocadas por um interlocutor indefinido acerca de sua relação com a escrita:

You ask me why I spend my life writing?

Do I find entertainment?

Is it worthwhile?

Above all, does it pay?

If not, then, is there a reason? …

 

I write only because

There is a voice within me

That will not be still.

                               (PLATH, 2011, s/p)

Diante dessa voz inquieta, a jovem Sylvia procura na escrita uma saída para apaziguar uma angústia, como nos sugerem os três últimos versos do poema, que indicam que a escrita é tanto consequência dessa voz como solução provisória para sua inquietude. De fato, a determinação de Sylvia, desde muito cedo, para se tornar uma escritora, nos mostra a importância que dava a essa atividade: mais que um hobby ou uma fonte de renda, Sylvia se valia da escrita como um modo de inventar seu eu artístico, que se confunde com seu eu pessoal, e descobrir uma voz própria. Mas não devemos idealizar: se a escrita, por um lado, podia lhe dar um senso de identidade e uma preciosa ferramenta de elaboração, por outro lado, a preocupação com a qualidade literária dessa escrita, atrelada imaginariamente ao seu valor pessoal, também era uma das suas grandes angústias, como ela escreve, em 1951, em seu diário:

Posso escrever? Conseguirei escrever se me dedicar o suficiente? Quanta coisa preciso sacrificar para poder escrever, de todo modo, até descobrir se sou mesmo boa? Acima de tudo, PODE UMA MULHER SEM IMAGINAÇÃO, EGOÍSTA, EGOCÊNTRICA E INVEJOSA ESCREVER QUALQUER COISA QUE VALHA A PENA? (PLATH, 2017, p. 121).

Dois anos depois, Sylvia foi escolhida para um estágio em Nova York, onde seria editora convidada da revista Mademoiselle. Em agosto, de volta a casa, tentou cometer suicídio, mas foi encontrada ainda com vida e pôde ser salva. Depois disso, foi internada temporariamente no hospital psiquiátrico McLean, onde conheceu a psiquiatra Ruth Beuscher, com quem manteve contato até o fim de sua vida. É dessa experiência traumática que Sylvia se apossou para escrever, quase dez anos depois, aquele que seria seu primeiro e único romance, A redoma de vidro.

É difícil dizer em que medida e de que maneiras o trabalho de rememoração realizado durante a escrita de A redoma de vidro teria ocasionado uma revivificação dos afetos ligados a essa experiência. Algumas pistas deixadas por suas cartas, entretanto, sugerem que a ficcionalização dessa época tenha sido experimentada por Sylvia em termos positivos, ainda que imaginemos que revirar esses conteúdos não tenha sido uma tarefa fácil.

No romance, é Esther Greenwood, o alter-ego ficcional de Plath, quem revive a experiência em Nova York e a tentativa de suicídio, após a qual é internada e conhece a dra. Nolan (correspondente de Beuscher), que parece ser a única a ouvi-la e compreendê-la sem condescendência. A importância de Nolan para Esther reflete a dimensão da relação transferencial de Sylvia com Beuscher, que se estenderá muito depois, mesmo após a partida de Sylvia para a Inglaterra, por meio de cartas2. Não por acaso, quando o casamento de Plath e Ted Hughes entrou em crise, foi a Beuscher que Sylvia recorreu como apoio emocional, e foi ela quem lhe recomendou um divórcio “limpo”… e paciência.

Pela transferência, Beuscher ofereceu a Sylvia uma figura materna alternativa à da própria mãe, e pôde suprir parcialmente uma carência afetiva de Sylvia, para quem o amor da mãe parecia insuficiente. Significativamente, a relação de Sylvia com a mãe se mostra intimamente ligada à sua relação com a escrita, como nos mostram seus diários:

POR QUE NÃO SINTO QUE ELA [a mãe] ME AMA? O QUE ESPERO EXATAMENTE QUE SEJA O “AMOR” POR PARTE DELA? O QUE É QUE NÃO RECEBO E ME FAZ CHORAR? Creio que sempre senti que ela me usa como uma extensão de si mesma; que eu, quando cometo suicídio, ou tento, faço com que ela passe “vergonha”, sinta-se acusada. O que é verdade, claro. Trata-se de uma acusação de que seu amor foi ineficaz. (…) Como, gostaria de saber, mamãe entendeu minha tentativa de suicídio? Como resultado da incapacidade de escrever, sem dúvida. Eu achava que não podia escrever porque ela ia se apropriar de tudo. Só isso? Eu sentia que, se não escrevesse, ninguém me aceitaria como ser humano. Escrever, portanto, era um modo de substituir minha personalidade: se você não me ama, ame o que escrevo & me ame por escrever. Há muito mais: um modo de organizar e reorganizar o caos da experiência (PLATH, 2017, p. 519-520).

Nesse trecho, de 1958, Sylvia revela algo da maior importância: sua sensação de não ser suficientemente amada pela mãe, o significado atribuído por ela à sua tentativa de suicídio, e sua tentativa de, pela escrita, se fazer amar e organizar “o caos da experiência”. Nesse sentido, o lugar que a escrita ocupa para Plath é diferente, ainda que tenha pontos de convergência, daquele que ela tinha para escritores como Joyce, para quem escrever foi um modo de constituir um corpo, ou Virginia Woolf, para quem, como escreve Stella Harrison, tratava-se de “venir à bout de la réalité” (HARRISON, 2010, p. 81). Para Plath, por outro lado, a escrita tomou o lugar de uma invenção imprescindível, não exatamente para superar a realidade nem para fazer um corpo, mas para aquietar a voz interior, para ser validada “como ser humano”, para ser amada e para “organizar e reorganizar” (i.e., para elaborar) a experiência.

Além disso, sua escrita também estava ligada à demanda por reconhecimento, como indicam os fatos de ter publicado seus textos, endereçando-os diretamente ao Outro, e ter buscado estabelecer-se na carreira de escritora, procurando uma validação editorial/crítica para sua literatura. Essa demanda, sabemos, se desdobra em demanda de amor, como nos ensina Lacan em seu Seminário 5As formações do inconsciente, em que demonstra que, no limite, aquilo que uma demanda almeja é sempre o amor (LACAN, 1999, p. 418). Com efeito, é por meio da escrita e do reconhecimento que essa escrita poderia lhe trazer que Sylvia buscava se afirmar como merecedora desse amor que, a seu ver, lhe era negado³.

Uma pergunta se impõe: por que, mesmo com o recurso à escrita, Sylvia optou pelo suicídio? Para essa pergunta, tudo o que podemos afirmar é que, com tantos fatores envolvidos4, sua passagem ao ato não pode ser atribuída a um único evento, sendo necessariamente sobredeterminada. Uma segunda observação é que, em todo caso, uma solução criada pelo sujeito pode vir a falhar: não há, nem é possível haver, uma invenção que nos imunize ao sofrimento e que garanta que vá funcionar para sempre. Na verdade, é justo quando o sofrimento aparece que essa solução é colocada à prova, e nem sempre se mostrará suficiente para sustentar um sujeito em meio à angústia, como aconteceu com Plath.

No caso da autora, a escrita parece ter servido como uma tentativa de sinthoma que durante muitos anos atendeu, com menor ou maior sucesso, às suas necessidades de elaboração, mas em dado momento falhou, como qualquer saída pode falhar. Cabe destacar que o fracasso dessa tentativa não é sinal de que a escrita tenha sido o que lhe fez mal e/ou o que a levou ao suicídio: quanto a isso, é impossível fazer uma afirmação categórica, como aponta Luciana Silviano Brandão (2009, p. 72) ao se interrogar sobre a questão dos escritores suicidas e da suposta toxidez da escrita. Fato é que Plath, que andou ao lado da morte durante tantos anos — com a morte de seu pai, na infância, e a tentativa de suicídio ainda na juventude —, tentou se valer da escrita para elaborar essas experiências e o fez, tanto quanto pôde.

Exemplo disso é que, em 1962, Plath havia escrito a Beuscher que já não achava mais que fazia o tipo suicida, mas, na escrita, continuava o trabalho de elaboração, tanto pela rememoração e ficcionalização do tema, em A redoma de vidro, quanto em suas “confissões” poéticas, como no caso do célebre poema Lady Lazarus, em que Plath escreve: “Dying / Is an art, like everything else. / I do it exceptionally well. / I do it so it feels like hell. / I do it so it feels real. / I guess you could say I’ve a call” (PLATH, 2007, p. 62). Fingidas ou não, as ideias suicidas e a glorificação da morte pertencem, em última instância, à autora que as escreveu, e, escrevendo-as, talvez tenha podido até mesmo adiar sua realização factual.

Desse modo, podemos pensar que a escrita forneceu a Sylvia um espaço em que ideias como essas puderam ser trabalhadas e “colocadas para fora”, promovendo algum efeito de catarse, mas sem a intervenção de um Outro que pudesse interrogar essa convicção mortífera anunciada com tanta clareza sob o manto do “fingimento” literário, tecido a sós. Por razões como essa, o processo de elaboração pela via literária pode ser bastante ambíguo, como pontuou Frieda Hughes, filha de Plath, no documentário Sylvia Plath: inside the Bell Jar, produzido pela BBC em 2018:

“I think [that] to give a voice to an experience is like letting go. I always think the words remember it for us, so we don’t have to carry it anymore (…). We can write it all down, let it go. And they’re all out there. And if we ever wan
to be reminded, they’re all there for us because we have made sure they are, but they are all at a distance. Perhaps it can imbue a sense of freedom, but also, I think: ‘This happened to me. It was real’.”

Há casos, porém, em que a escrita de Plath não se debruçou sobre aquilo que havia acontecido com ela, no passado, mas sim sobre o que se apresentava como questão no então presente, como material que demandava análise com urgência. É o caso de seu último poema, Edge, escrito a poucos dias de seu suicídio, que retrospectivamente pode ser lido como antecipação e sinalização de sua passagem ao ato, dado o novo sentido que os versos adquiriram após a sua morte: “The woman is perfected. / Her dead / Body wears the smile of accomplishment (…)” (PLATH, 2007, p. 96). Nesse caso, a elaboração poética, que performou textualmente a satisfação de sua morte, falhou enquanto elaboração “terapêutica”, sendo incapaz de manter a morte no campo do semblante (ou da fantasia?), e sustentar em si, no espaço restrito do simbólico, uma satisfação suficiente para dar outro destino a essa pulsão destrutiva.

De certo modo, foi ao tirar a própria vida que Sylvia completou o poema, o realizou, entrando em continuidade com a sua produção artística e encontrando uma saída para o sofrimento: aquela que, para nós, é, entre todas, a menos desejável, por custar um preço excessivamente alto. Passando do simbólico ao real, Sylvia saltou do campo da escrita para entrar na zona em que a fina matéria viva se desfaz e se torna matéria inerte. Nessa passagem, não parece ter sido a escrita, e sim o silêncio do Outro, a falta do Outro (a falta de amor, mas também a falta de uma escuta, de uma interpretação, de um ato), o abismo em que a poeta se joga, movida pela certeza em sua incapacidade de “ser ela mesma”, de ser amada e de se amar, como escreve em sua última carta. Passando do simbólico ao real do corpo, Plath deslizou do campo dos sentidos para o sem sentido — o que não nos impede de ler nesse ato a mensagem que, com sua morte, nos convocou a ouvir.

 

 


Referências
BRANDÃO, L. S. Rememoração e reminiscência em De amor e trevas de Amós Oz. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.
HARRISON, S. Virginia Woolf, bataille vers un sinthome. Quarto, n. 97, junho, 2010, p. 79-82.
LACAN, J. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. (Trad. Sérgio Laia). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
PLATH, S. A redoma de vidro. (Trad. Chico Mattoso). São Paulo: Mediafashion, 2016.
PLATH, S. Letters Home. Aurelia Schober Plath (Ed.) Londres: Faber & Faber, 2011. Edição Kindle.
PLATH, S. Os diários de Sylvia Plath: 1950-1962. Org. Karen V. Kukil. (Trad. Celso Nogueira). 2ª ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
PLATH, S. Poemas. (Trad. Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça). 2ª edição. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 127-138
PLATH, S. The letters of Sylvia Plath. Volume II: 1956–1963. Faber & Faber, 2018. Edição Kindle.
SYLVIA Plath: inside The Bell Jar. Dir. Teresa Griffiths. Londres: BBC, 2018. Documentário, 59 min.

1. Porque a escrita, nesse sentido, é uma invenção individual, que servirá bem para alguns, mas não para todos. Além disso, porque ela não conta com a presença de um analista que possa interpretar e atuar com relação ao que se produziu. Sem a presença do analista, o sujeito pode chegar perto, talvez, do que se alcançaria com uma “auto análise”, mas não muito mais que isso. Isso não quer dizer que se deva entender a escrita como uma estratégia prejudicial para o sujeito, nem é justo rotular como “precária” a forma que os sujeitos elegem como seu suporte psíquico, embora, como qualquer saída, ela possa falhar. Afinal, frente à contingência, não há nenhuma garantia. À diferença de uma análise, entretanto, quando a escrita falha, não há mais ninguém ali para evitar que o sujeito se quebre. 
2. Em 1962, quando seu casamento entra em crise, Sylvia tenta fazer dessas cartas um substituto para as sessões de psiquiatria que, por razões financeiras e geográficas, eram inviáveis. Ela chega a implorar a Beuscher que lhe cobre pelas cartas que escrevesse, o que sublinha o estatuto que Sylvia conferiu a esses escritos. 
3. Embora não o diga em termos tão diretos quanto faz em relação à mãe, a própria relação de Sylvia com o marido também passava pela escrita. Ela menciona em seus diários a atração intelectual e admiração que sentia por ele como poeta, e nesse sentido, chama a atenção que Sylvia tenha escolhido em um parceiro marcado pelos significantes “poeta” e “leitor” alguém que pudesse se ligar a ela pelo amor às letras, que ambos compartilhavam, a despeito dos rumos que a relação tomou ao final. 
4. Por exemplo, o divórcio, o sentimento de humilhação, a precariedade da assistência especializada (lembrando que nesses meses Sylvia e Beuscher trocaram cartas, mas não se encontraram), a insegurança financeira, a infraestrutura precária do apartamento em Londres, as dificuldades diante da expectativa de se tornar mãe “solo”, a recepção abaixo da esperada de seu romance, a demissão recente da mãe, o medo de ser internada novamente, a tentativa prévia de suicídio como agravante, etc. 



Um corpo de angu1

Nathália Temponi Natal 
Psiquiatra das Redes de Saúde Mental de Itabirito, Mariana e Ouro Preto
nathtemponi@uol.com.br
 Cláudia Reis 
Psicanalista, membro da EBP/AMP
claudia.r.reis@terra.com.br

Resumo: Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e ,Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro.

Palavras-chave: Toxicomanias; psicose; instituição; analista.

A BODY OF ANGU

Abstract: This writing was constituted from a presentation at a Clinical Section of the Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, in which Nathália was responsible for writing about the clinical case and ,Cláudia, for the comments. Our field of interest was to investigate the relationship that a subject can maintain with a toxic substance and the analyst’s position in conducting the clinical case and, consequently, verify the effects of this encounter.

Keywords: Drugaddictions; psychosis; institution; analyst.

 

CAROLINA BOTURA. OCORPOABRIGA

 

Rogério foi acolhido na instituição de Saúde Mental em 2007, encaminhado pela Unidade Básica de Saúde com relato de que havia chegado agressivo e alcoolizado. Quando lhe perguntado o motivo do encaminhamento, respondeu:

“eu bebo desde o dia em que nasci, minha mãe colocava cerveja na mamadeira e me dava. Meu pai que mandava ela fazer isso, porque eu era muito agitado. Bebo para ver se alivia minha cabeça e se diminui meu estresse. Acho que tô piorando minha cabeça; já tentei parar de beber várias vezes e não consigo. Não consigo resolver meus problemas. Tem hora que eu penso que vou machucar alguém de tanto estresse. Quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram. Quero parar! Ninguém gosta de cachaceiro!”

Relata que, quando criança, via pouco o pai; sentia sua falta e, quando o encontrava, este lhe dava cerveja.

Assumo esse caso em 2019. A todos os plantões, ele chegava alcoolizado, falava muito alto, entrava nos consultórios e interrompia os outros atendimentos. Traz no corpo diversas escoriações, marcas de cortes e cicatrizes de suturas em sua face, por vezes fraturas de partes dos membros superiores, costelas e dentes quebrados. Sua marcha é atáxica, devido a sequela em trauma do quadril na ocasião de um acidente. Observa-se uma piora de sua marcha nos dois últimos anos, provavelmente pelo consumo acentuado do álcool.

Tem chegado cada vez mais machucado; a cada dia, um corte e uma nova sutura em alguma parte do seu corpo, geralmente no rosto e couro cabeludo, por consequência de quedas da própria altura pelo consumo intenso de álcool. Costuma dizer: “o cadáver chegou!”.

Em março de 2020 eclodiu a pandemia do coronavírus e Rogério acentuou o uso do álcool. Ao ser acolhido pela instituição, conseguia passar o dia sem beber, fazendo uso apenas quando chegava em casa e aos fins de semana. A equipe observou o quanto foi importante esse acolhimento devido à urgência que se apresentava nesse caso.

Destaca-se da fala de Rogério sua revolta na infância por ver pouco seu pai e a afirmação de que, quando se encontravam, este lhe dava cerveja. Dos prontuários da instituição, extrai-se, já no acolhimento, que, em sua realidade psíquica, mamava cerveja. Quando se refere a parar de beber, nos traz uma colagem com a morte: “quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram”. Mais adiante: “Eu já estou morto, quem bebe esse tanto já está morto”.

Tem-se uma queixa da falta do pai, relatos de um sentimento de abandono e desamparo e nota-se a presença da pulsão de morte. Esses pontos nos levaram a tomar o Lacan do início de seu ensino, em Complexos Familiares (LACAN 1938/2003), em que relaciona a toxicomania com o desmame. Aponta que o desmame representa a forma primordial da imago materna e que é um momento fundador dos sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. Portanto, instaura marcas importantes na formação do sujeito. Segue suas elaborações afirmando que, traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo a marca permanente da relação biológica que ele interrompe. O desmame é aceito ou recusado, e a continuação do desenvolvimento evocará as marcas daquela crise. É a recusa do desmame que tende a restabelecer esses primeiros conteúdos experimentados. Importante destacar que se trata de um período anterior ao advento do objeto. Diz ainda que esses conteúdos moldam as experiências psíquicas posteriores e são reevocados por associação. Quanto à imago, cito:

“tem que ser sublimada, para que novas relações se introduzam com o grupo social e para que novos complexos se integrem no psiquismo. Na medida em que resiste a essas novas exigências […] a imago, salutar em sua origem transforma-se num fator de morte. […] Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma original que lhe dá o desmame, revela-se nos suicídios […] naqueles que se evidencia a forma oral do complexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas. A análise desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe” (LACAN, 1938/2003, p. 41).

Que efeitos de sentido pode Rogério ter dado ao escutar que era cerveja que mamava?

Notamos uma desordem. Trata-se de um sujeito disfuncional. A forma como leva a própria vida, como não se conecta com o mundo que o cerca, o modo como experimenta seu corpo e o jeito de se relacionar com suas próprias ideias nos levam a tal afirmação. Não consegue ajustar-se socialmente, demonstra uma impotência em relação a conseguir encaixar-se num trabalho, suas relações são problemáticas. Seu corpo vagueia e tem a coordenação motora prejudicada. Um corpo que cai, corta, sutura, não se fixa; um angu, como bem nomeou a analista. Subjetivamente notamos um desenganche do Outro; a cabeça é ruim, porta um mal-estar, uma identificação com o objeto a como dejeto. Não se trata de uma identificação simbólica, mas real: “o cadáver chegou”.

A solução encontrada para todo esse mal-estar é beber. Poderíamos construir uma hipótese, a de que, diante da queixa da falta do pai, este lhe transmitiu esse modo de gozo? Ao aproximar a toxicomania da psicose, teríamos no gozar com o corpo uma forma de substituir o Nome-do-Pai?

Que lugar o objeto álcool ocupa para esse sujeito? O que essa substância representa, uma vez que sabemos que a intoxicação não é da substância, mas do significante?

Rogério está intoxicado pelo que essa droga representa para ele. Qual é o drama subjetivo que essa representação vem a responder?

Colhe-se em sua fala que se trata do encontro com o pai, o elo que os une. Desde seu nascimento (“a cerveja na mamadeira”), até a morte deste pai (“meu pai morreu bebendo comigo”), temos uma trajetória marcada pela presença dessa substância. Desde a falta do pai, sentida no início de sua vida, até a morte enquanto falta, Rogério encontra uma solução, um objeto que tampona, e até transborda: o álcool.

Como fazer desconsistir a droga e trilhar nosso objetivo, que é cavar a passagem do gozo da substância ao gozo pela palavra?

O gozo do toxicômano exclui o corpo do Outro, é autoerótico. Constitui-se como o suposto saber sobre o gozo, ou seja, tem-se uma certeza de gozo com a droga que é um objeto causa de gozo. A aposta da psicanálise é que existe o sujeito do gozo e o sujeito da palavra, e esta circula. Ao oferecer a escuta para que o toxicômano fale, pode despertar algo pulsional.

Nossa orientação teórica acredita que tem um sujeito do inconsciente no doente, por isso operamos a nível do sujeito, e não da droga, exigindo abstinência, por exemplo.

No que toca uma instituição para toxicômanos, sabe-se que esta precisa ser construída a partir do real e conviver com a ideia de que não há tratamento sem recaídas, e, exatamente por isso, tem que contar com algumas estratégias, como pudemos ver no relato do caso. Diante das transgressões do paciente, observa-se um vínculo, mas não muito apertado; um vínculo frouxo. Talvez por isso Rogério, aos trancos e barrancos do seu caminho, lá coloca seu corpo há 15 anos, e parece que ali endereça seu desamparo.

Tarrab (2000) fala da importância de se estar advertido e não ser tragado pelos discursos que circulam nas instituições. Deixar-se surpreender e apostar, sem garantias. Uma posição ética de escutar o sujeito mais além do nome que traz e o marca e dar lugar a sua particularidade. Delinear a entrada na transferência como uma possibilidade de saída.

Interessante o ponto de impasse da equipe diante da condução de tratamento. A solicitação de supervisão clínico-institucional foi uma saída importante. Encaminha-se, pela linguagem, o desafio de Rogério ao saber da equipe, que a colocava impotente e angustiada. Esta, a partir daí, sente-se mais segura para se posicionar e fazer o que precisava ser feito. Existem momentos em que as palavras faltam, e os pacientes passam ao ato para serem atendidos. Do ponto de vista terapêutico, é necessário realizar a internação, que muitas vezes lhes dará o limite corporal. As internações pontuais promovem um intervalo, um respiro.

Tivemos um dado importante que se deu durante a pandemia. Inserido como caso de exceção na PD, diminui o consumo. Nas enchentes deste ano, sem atendimento por duas semanas, a equipe o encontra com os cabelos e barba crescidos e humor deprimido. Poderíamos ter aí um indicador de que uma estratégia de mantê-lo em regime mais próximo poderia ser interessante?

Parece ser esse o desafio do caso. Algo da ordem de uma escuta mais regular, da construção de algum laço que lhe desse um lugar e possibilitasse modificar a posição do gozo desse sujeito, mais compatível com um corpo com outra consistência, que não a de angu.

 


Referências
LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003
TARRAB, M. Las salidas de la toxicomania. In: Más alla de las drogas: estudios psicoanalíticos. La Paz: Plural, 2000.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022.

 




Modos de presença1

Florencia F. C. Shanahan
Psicanalista, A.P. da NLS/AMP
florenciashanahan@gmail.com

 

Resumo: A autora levanta algumas questões, a partir de sua própria experiência, sobre os modos de presença em uma análise, apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona se haveria um final de análise caso assim permanecesse.

Palavras-chave: presença; analista; fim de análise; virtual.

MODES OF PRESENCE 

Abstract: In this essay the author questions, through her own experience, the modes of presence in an analysis, while recognizing that the online sessions were very important for her. However, she questions if there would’ve been an end of analysis had it continued to be virtual.

Keywords: presence; analyst; end of analysis; virtual.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Penso que a análise não é um quebra-cabeça, mas um mosaico, feito não de peças preexistentes para as quais haveria um lugar predeterminado e cuja disposição daria uma forma toda bem-feita, mas de peças, tesselas que vão cortando, encontrando, descartando ou tirando do outro na transferência, compondo um quadro que não se completa, mesmo que esteja acabado.

Vou tentar dizer algumas coisas. Podem às vezes ser contraditórias. Não respondem a nenhuma pergunta geral. Tampouco, creio eu, se prestam a qualquer dedução. São pequenos fragmentos que emergem no tempo de elaboração em que me encontro. Eles encontrarão um lugar no mosaico que continua a ser criado após o passe.

Meu primeiro analista nunca teve meus dados: nem endereço postal, nem número de telefone. Muitas vezes fantasiei que desaparecia e que ele não poderia me contatar, não saberia onde me procurar, se perguntaria se eu havia morrido. Por quase oito anos assisti religiosamente às sessões de tempo fixo. A três quarteirões de onde morava. Quarenta e cinco minutos. Um enquadramento ritualizado que alimentava meu já excessivo supereu e que mortificava meu corpo. O silêncio e a quietude do analista muitas vezes me deixavam à mercê do mutismo pulsional do qual me tornei parceira. Aprendi ali que o sentido não se engorda apenas com palavras.

O analista que me permitiu sair disso — e encontrar um fim lógico para a experiência do inconsciente do qual sou sujeito — se mexia muito. Ele também falava muito pouco, mas movia seu corpo constantemente. Cortava pedaços de papel freneticamente ou digitava forte no teclado. Ele atendia ligações durante as sessões, às vezes resmungava coisas. Ali aprendi que o silêncio não era do Outro.

Eu poderia ter continuado a seguir a vida se ele não tivesse me atendido por telefone todos os dias quando minha mãe e meu irmão morreram inesperadamente? Não sei.

Poderia ter ido ao encontro do bom furo se ele não tivesse me atendido por Skype, sustentando o olhar na tela, diariamente, por mais de um mês, durante a travessia pela angústia mais radical no tempo da destituição subjetiva que deu passagem ao final? Não acredito.

No entanto, acredito que minha análise não poderia ter concluído se tivesse sido “virtual”. Especialmente porque o impulso de sair surgiu, como relatei em meu primeiro testemunho, a partir do momento em que deixei meu isqueiro no divã. Sem dúvida, isso não poderia ter acontecido em uma sessão telefônica ou por chamada de vídeo. Aquele pequeno objeto que fica para trás imprime a urgência que me faz pegar um avião para voltar; e abre a porta da última sessão. A voz como objeto, como entrou em jogo em minha análise — em sua extração e incorporação — não é de forma alguma a voz da comunicação. Sobre isso tentarei avançar em meu próximo escrito.

Sem dúvida, a prática on-line ou por telefone existe. É um fato. Que estatuto tem? As questões que derivam disso dizem respeito à psicanálise como tal, e não apenas a que circunstâncias atuais elas nos confrontam.

Acho que se trata, sobretudo, de encontrar posições na enunciação que vão na direção do que Lacan chamou de bem-dizer e contra as posições que a neurose está sempre pronta a alimentar: buscar explicações para o que se faz ou deixa de fazer; tentar obter do Outro a validação do que se faz ou não; forçar os pinos a entrar nos buraquinhos para acomodar o real à realidade…

Trata-se de não se preparar muito rápido para dizer o que é psicanálise e o que não é, ignorando a implicação de um desejo singular na base de cada ato que, como tal, não tem garantia. Trata-se de não se sustentar, na tradição, os significantes congelados na boca da autoridade ou o saber morto do que já foi dito, com a ilusão de proteger a psicanálise de sua degradação fantasiada.

Obviamente, quando se trata de justificar a prática em si como meio de subsistência2, ou sua permanência no mercado como mais um dos objetos oferecidos para consumo, aí o problema é outro. E diz respeito à formação do analista.
Tradução: Rodrigo Almeida

Revisão: Cecília Batista

 


1. Texto originalmente publicado em: https://zadigespana.com/2020/04/11/coronavirus-modos-de-la-presencia/.

2. Pergunta feita por Lacan em seu último texto escrito, “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567.

 

 




Cisão do eu no processo de defesa — Ichspaltung

Lucia Mello
Psicóloga, psicanalista, membro da EBP/ AMP
Mestre em psicologia e professora do IEC PUC-MINAS

Resumo: Comentário sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientado pelas leituras de Lacan e Miller sobre o tema, que resultaram em contribuições fundamentais para a atualidade do trabalho clínico. Há, na cura psicanalítica, uma experiência da Spaltung, que atravessa dois grandes momentos do ensino de Lacan, do simbólico ao real, e preserva, nesse percurso, seu elemento de surpresa.

Palavras-chave: Cisão; Ichspaltung; defesa; inconsciente; corpo; real; pulsão; perturbar a defesa.

SPLIT OF MYSELF IN THE DEFENSE PROCESS — ICHSPALTUNG

Abstract: A commentary about Freud’s unfinished article “Split of Myself — Ichspaltung” guided by readings of Lacan and Miller, which resulted in fundamental contributions for the current clinical work. There is a Spaltung experience in the psychoanalytic cure that crosses two key moments in Lacan’s teachings, from symbolic to real, and preserves in this course its element of surprise.

Keywords: Split; Ichspaltung; defense; unconscious; body; real; drive; disturb the defense.

 

CAROLINA BOTURA. AU

 

“Uma cisão do Eu — Ichspaltung” reúne o paradoxo de artigo inacabado, publicado postumamente em 1938, escrito em 1924. Tal como ocorre em algumas obras sinfônicas, nas quais o compositor é assediado por uma frase, uma questão, um tema impossível de responder, a obra de Freud indaga, duvida e insiste no decorrer do trabalho incessante, da inquietação não respondida na travessia da construção de um método, verificado e transformado ao longo da experiência psicanalítica.

No início desse artigo, Freud diz que não sabe o que comunicar, dividido que está entre algo há muito conhecido e “algo totalmente novo e estranho”. O que seria? Há muito conhecido estão os conceitos de trauma, recalque, defesa, Eu, repetição, pulsão, satisfação, proibição, realidade, castração, sexualidade, fantasia, sintoma, inconsciente, entre outros.

Desde o início de sua pesquisa, desde os “Rascunhos”, o “Projeto”, os “Sonhos”, os “Estudos clínicos”, o conflito psíquico decorrente de um perigo real e intolerável, surge a dupla exigência variável, entre satisfação pulsional e proibição pela realidade, recalque e desejo. A defasagem, o desacordo entre exigências opostas, o dueto entre duas classes de pulsões além da incompatibilidade representativa são indagações persistentes em Freud.

No artigo inacabado, uma criança responde com essa duplicidade ao conflito diante da ameaça de castração, ameaça que deslizava entre registros diversos e parece nunca localizada no órgão. A solução eficaz sustentada pela Spaltung, cisão do Eu, evidencia o incurável de uma fenda originária que nunca cicatriza e aumenta à medida que o tempo passa. Nesse caso, o menino manobra a ameaça de castração temida, preserva a masturbação e opera deslocamentos através do fetiche, do sintoma e da fantasia. A função sintética do Eu é perturbada, deixando como resto uma sensibilidade angustiante nos artelhos, interpretada por Freud como expressão mais clara da castração, associada ao temor e à fantasia da devoração pelo pai-cronos.

Freud, no “Compêndio de psicanálise”, outro artigo inacabado, retoma a hipótese da cisão do Eu para além da neurose e psicose, visto supor questão mais ampla das “alterações” no processo de defesa, e constata que a função sintética do Eu, sustentada em vários artigos anteriores, se vê abalada pelos efeitos dessa fenda originária. Nos capítulos seguintes relê a cisão do Eu sob vários ângulos, examinada entre as instâncias psíquicas, entre pulsão e realidade, entre realidades diversas, entre o que nomeia mundo interno e mundo externo, diante do reconhecimento da diferença sexual, entre sonho e realidade. O sintoma, a fantasia, o fetiche, a angústia, pela via do temor, as várias formas de negação podem ocorrer como tentativas de conciliação, evitação, negação, recusa, recalque, mas não modificam as duas atitudes contrárias e independentes que se realizam, onde a negação é suplementada pelo reconhecimento.

Se, anteriormente, Freud “apresentava um corpo, campo de batalha pulsional entre e Eu e as pulsões parciais” (MILLER, 2003, p. 366), em Lacan, a dupla impossibilidade acarretada pela demanda, aquém e além do desejo, consuma a fenda — spaltung — sofrida pelo sujeito. O desejo, diz Lacan, não é nem o apetite de satisfação nem a demanda de amor, mas a diferença entre os dois. Desejo sempre agarrado à proibição, visto que o sujeito é ele mesmo marcado pela spaltung significante, subordinação escrita por vezes na tela da fantasia.

A fenda surge também como o preço a pagar na constituição do inconsciente. Preço terrível evidenciado no comentário de Lacan sobre a “Juventude de Gide”, além de frequente nas consequências clínicas de um desejo cindido em duas vias — o menino Gide, situado entre morte e erotismo masturbatório, confinado ao desejo clandestino, prisioneiro das vicissitudes de ter sido amado, mas não desejado. Máscara terrível, outra leitura lacaniana concernente ao ideal.

No livro 11 de seu Seminário, Lacan situa no jogo do Fort-Da não apenas a repetição imaginária da saída da mãe como causa da Spaltung, mas aponta também que “o que o sujeito visa é aquilo que não está lá enquanto representado” (1964/1985, p. 63).

Trata-se aqui de um breve percurso através de artigos situados nas décadas de 50 e 60 que ilustram uma clínica na qual o inconsciente demonstra os impasses entre desejo e a lei, da tela surpreendente da fantasia portadora das nuances fugidias entre sujeito e o objeto, da fixidez do gozo mortífero, perspectivas marcadas pela falta irremediável de um significante no campo do Outro. Impasses em uma construção cuidadosa.

O artigo “Cisão do Eu” prenuncia outra indagação sobre a defesa; parece deter-se diante não apenas do fracasso de síntese do Eu, mas também de algo sem nome, “algo totalmente novo e estranho”. É preciso lembrar que Spaltung pode ser traduzido por separação, desdobramento, divergência, racha, fissura, cisão, elisão, divisão originária, lugar do trauma.

A falta de palavras, a incompatibilidade verificada desde a cena inaugural da hipnose, no nascimento da psicanálise — trauma da sedução, da sexualidade, das palavras que faltam na angústia, assim como nos chamados traumas de guerras, inicialmente enfrentados com a técnica da pressão, seguida das perguntas sobre a causa do sofrimento —, encontrava resposta incompatível. Defasagem entre a demanda do analista e as outras palavras da paciente, a Outra cena entre a pulsão e consciência do eu permanecia, como contradição, discrepância, desacordo.

O traumatismo persiste — indicativo, segundo hipótese freudiana, de aglomerados formando um núcleo separado do Eu que retornam, desconhecidos pelo paciente, como se fossem inéditos, insuspeitos. A repetição em cada clínica demonstra progressivamente o quanto esse núcleo separado do Eu escapa à apreensão.

Anos mais tarde, no depoimento de Suzane Hommel, de sua análise com Lacan, a cena infantil traz o trauma, o conflito entre pulsão e realidade, cena repetida no pesadelo diante da palavra Gestapo, que evocava a cena da morte iminente das famílias judias — o horror da repetição. Mais uma vez, a primeira vez. No lugar das palavras carregadas de sentido, visando o restabelecimento da memória histórica, indagada por Freud no caso da criança ameaçada pela castração, o gesto sobre a pele de Hommel provoca o deslizamento metonímico entre os dois idiomas. “Geste à peau“, traduz a analisante, dando nome a essa alguma coisa, esse algo que incide sobre o real da cena, e, com isso, o sofrimento se torna menos invasivo. Menos. Lacan não demanda palavras, nesse outro tempo, para construção da cena traumática. Suzane formula sua pergunta: “o trauma de qualquer sujeito não é essa fissura que tentamos revestir com elementos de nossa história?” (HOMMEL, 2022, p. 33).

Essa análise indica ato psicanalítico diverso da interpretação anterior, muda de lugar, vai no sentido oposto através de outro caminho, outra configuração. Avesso e direito não excludentes da experiência psicanalítica, mas que privilegia ainda a singularidade do discurso e o desconhecimento do gozo.

O comentário muito esclarecedor de Jean Hyppolite, na década de 50, sobre a tradução da Verneinung, de Freud, e a resposta a esse comentário provocaram em Lacan um remanejamento das questões fundamentais psicanalíticas, resultando em “perturbar um equilíbrio psíquico que descansa na Spaltung“. Esse trabalho de pesquisa e formalização de cada conceito, devidamente orientado pela clínica, vindo de Lacan promove a passagem progressiva do tratamento sobre a resistência inaugural situada nas interpretações do analista para a incidência sobre o real que convoca a responsabilidade subjetiva não apenas na neurose ou psicose, mas na diversidade da clínica.

A leitura do caso “O homem dos lobos”, fragmento citado por Freud no artigo, mereceu, depois da tradução de Hyppolite, diferenciações mais precisas entre recalque, recusa e forclusão. Mais que um caso clínico, a construção conduzida por Lacan destaca elementos preciosos para a experiência da psicanálise e repercute como acontecimento sobre a teoria. Lacan pode demonstrar, a partir da cena infantil do dedo cortado, que o sentimento de realidade e irrealidade demarcam duas bordas experimentadas pela criança, que demonstram muito precisamente os limites entre alucinação e delírio, que a falta quando não advinda no simbólico reaparece no real.

A cena, minuciosamente examinada por Lacan, diferencia a rememoração, que conserva sua articulação simbólica, enquanto a reminiscência impede o sujeito de elaborar sua história, situando-as em temporalidades diferentes, sobretudo rearranjando resistência e defesa em dimensões opostas: a primeira ao lado do sintoma, a segunda decorrente da pulsão. A diferenciação entre resistência e defesa ultrapassa, a partir desse caso, a questão estrutural entre neurose e psicose, visto que a defesa por qualificar a relação com a pulsão fora do significante implica extrema variedade: silêncio, fixidez e desconhecimento do gozo de cada um. “A defesa qualifica uma relação com a pulsão a respeito da qual a interpretação não é a operação prescrita pela psicanálise” (MILLER, 2003, p. 52). Qual seria a operação mais indicada para lidar com a defesa?

Finalmente essa construção franqueia nova leitura do inconsciente, que, por sua vez, amplia os horizontes da clínica contemporânea. É preciso considerar que esse real não é algo suprimido dos traços primordiais, visto se encontrar presente aguardando, digamos assim, um tradutor a sua altura, desde que proposto como hipótese por Freud, no “Projeto para uma psicologia científica”, na Bejahung, o assentimento primordial, oposto à Ausstossung, a expulsão de algo mau — juízos de atribuição e existência, essenciais no processo de responsabilidade do sujeito. Esse assentimento primordial acarreta, curiosamente, para alguns, a cisão irremediável entre afeto e representação. Denuncia a presença de uma exclusão do sentido, exclusão interna e externa, tempos depois trabalhados por Lacan através do conceito de extimidade.

A Outra abordagem do conceito de defesa resultou no percurso lacaniano através da vastidão desse “algo novo e estranho”. Algo situado por Freud como o inconsciente não recalcado, mas, em Lacan, um texto escrito em outro lugar que não a palavra — marca, traço, signo, sobretudo letra —, não apenas no corpo simbólico ou imaginário, mas na dimensão real do corpo. Se o inconsciente inclui um corpo real, a melhor expressão proposta por Lacan é falasser (parlêtre). Essa inclusão convoca outro trabalho, outro “giro”, como diz Miller, da interpretação como perturbação, que convoca a materialidade da palavra, privilegia a surpresa. O sujeito e seu gozo, a falta e a substância. O corpo afetado pela letra ou, em algumas situações, a letra inventando um corpo.

Se a defesa permanece a mesma, situá-la do lado da pulsão, da reminiscência, do real convoca o sujeito a responder de outro modo. Como demonstra a diversidade da clínica contemporânea, abre novos campos de pesquisa. A psicanálise, com isso, tem chance de acompanhar as intensas transformações da civilização, sempre atuais, o que provoca talvez considerá-la em três grandes grupos: mais um recurso operado em três registros, simbólico, imaginário e real, e suas possíveis amarrações onde o sinthoma, em alguns casos, é prevalente.

O último ensino de Lacan ilumina uma noção para além do sentido e do saber, experiência também convocada pelo falasser, por veredas diversas do mal-estar na civilização, situada a partir do feminino e da clínicas do real apresentadas pela criança na psicose e no autismo. A experiência do real resulta em desafio surpresa para a clínica psicanalítica.

O novo mal-estar na civilização

Através das batalhas políticas e sociais no campo sempre minado dos interesses econômicos; dos corpos mutantes, telas a céu aberto nas quais o amor e o ódio se inscrevem como tatuagem; das sexualidades cada vez mais fluidas; das adicções diversas; dos laços sintomáticos que revisitam e atualizam formas de submissão a senhores tirânicos, em formas de servidão voluntária; das crenças marcadas por alucinações e delírios coletivos, a clínica voltada para outras formas de mal-estar convoca a presença fundamental da psicanálise, visto que a instabilidade atual pode provocar o ato analítico instrumentado por novas construções.  

Clínica do feminino

Formalizada por Lacan a partir do Seminário 20, essa clínica encontra-se presente desde suas lições iniciais, visto que as mulheres estão na origem da psicanálise. Lendo Freud, enfrentando o silêncio e os enigmas das histéricas, Lacan extrai do vazio a questão da inexistência, com e sem corpo. Através da sexuação, ele demonstrará o diálogo impossível com os três registros de falta e o papel suplementar das identificações, sempre mentirosas.

Uma das grandes contribuições lacanianas consiste em demonstrar o não-todo para além da sexuação como o que não se pode dizer nem escrever. Diante da falta irremediável de um significante no campo do Outro, a defesa no real traz elementos como aquilo com o que a mulher não tem relação, e é nisso que ela se duplica:

“a clínica da defesa diante do vazio é comum a todo ser falante. Mas a dificuldade feminina se joga na descontinuidade do enlace significante. A outra para si mesma demonstra esse ponto de impossível — de representar e de eludir: onde ela goza se pensa outra” (MASIDE, 2022, p. 269).

Como perturbar essa defesa?

Campo aberto à pesquisa da qual há muito o que extrair nos tratamentos psicanalíticos atuais, principalmente do contraponto essencial do não-todo na política.

Clínica da psicose

As investigações lacanianas sobre a psicose encontram sua expressão no plural bem destacadas na pesquisa empreendida por Sergio de Campos (2022). Lacan refaz suas hipóteses até extrair de seu último ensino a transmissão mais contundente sobre a clínica da psicose. Se, na “Direção do tratamento” (1966/1998), ele diz que o desejo aponta a impossibilidade da fala reduplicada na fenda spaltung pelo simples fato de falar, os casos clínicos e a releitura da Bejahung freudiana produziram mudanças consideráveis. Devido à natureza de sua alienação, a prevalência do real e as vicissitudes com seus objetos, o sujeito do inconsciente psicótico não será agente de uma enunciação, mas permanece identificado ao lugar vazio onde o Um é sem destinatário.

Em um trabalho incessante de construção de uma realidade, o tratamento é possível através de diversos recursos — linguagem, corpo, redução de um excesso de gozo —, suplências diversas que promovem a estabilização e reconfiguram a psicose na sua vertente ordinária. Ao lado desse trabalho ocorre a potencialização das defesas diante da sombra da morte, e o falasser lança para a clínica psicanalítica indagações sobre como perturbar essas defesas através de novas configurações.

Clínica do autismo

A pesquisa psicanalítica sobre o autismo, iniciada com Rosine e Robert Lefort nos anos 80 e desenvolvida posteriormente por Laurent, Maleval e Miller, entre outros, encontra nessa clínica uma defesa radical e precoce contra a linguagem e o gozo da palavra, na qual nenhuma troca vem mediatizar sua relação a um Outro que não existe. Estrutura diferenciada da psicose, decorre da foraclusão do furo da linguagem. Na clínica do real, na qual as inúmeras autobiografias e biografias dos autistas informam, o tratamento contínuo é realizado pelo sujeito contra esse sistema defensivo — a angústia, a construção de recursos específicos — para criar um Outro sob medida, um corpo, uma voz, enfim, para se fazer existir. A batalha dos autistas para se fazerem reconhecer e respeitar é surpreendente porque aponta a importância de um silêncio eloquente.

A defesa autista se caracteriza pela construção de uma borda que se desloca do isolamento para uma borda dinâmica que pode, inclusive, ser apagada. A localização do gozo sobre uma borda constitui finalmente uma defesa característica do autismo. Uma das maiores contribuições ao autismo implementada por Lacan foi destacar o autismo como categoria clínica fundamental, o status nativo que designa, a um só tempo, o sujeito e o corpo, ou seja, o falasser. Como categoria clínica fundamental, reduz o inconsciente ao fato de falar sozinho. É a conversa do real com o real que ocupa um lugar essencial na clínica das crianças muito pequenas, que ainda não passaram pela fala mentirosa e falam com Um-corpo. Lalíngua. Nessa clínica, perturbar a defesa seria, pelo contrário, a construção de um recomeço, de uma existência?

Para concluir, é preciso citar um trecho do emocionante elogio de Lacan a Freud em “A direção do tratamento”, a respeito do artigo “A cisão do Eu — Ichspaltung“:

“Aqui se inscreve a Ichspaltung derradeira na qual o sujeito se articula com o Logos, e sobre a qual Freud começando a escrever nos ia dando, na última aurora de uma obra com as dimensões do ser, a solução da análise “infinita”, quando sua morte ali veio apor a palavra Nada” (LACAN, 1998, p. 643).

 


Referências
CAMPOS, S. Investigações lacanianas sobre as psicoses: as psicoses extraordinárias. vol. 1. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
CAMPOS, S. Investigações lacanianas sobre as psicoses: as psicoses ordinárias. vol. 2. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
FREUD, S. (1924) Cisão do Eu (Ichspaltung). Compêndio de psicanálise e outros trabalhos inacabados. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
GUÉGUEN, P. G. Defesa (desmontar a). Scilicet: um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
HOMMEL, S. Uma História de família no tempo do nazismo. Correio 87. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise. Abril, 2022.
LACAN, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1954) Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1958) Juventude de Gide ou a letra o desejo. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MALEVAL, J-.C. La différence autistique. Saint Denis: PUV, Université Paris 8, 2021.
MASIDE, M. Clínica da sexualidade feminina. Scilicet: a mulher não existe. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2022.
MILLER, J-.A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J-. A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.



O sintoma substituto

Mônica Campos Silva
Psicanalista, mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG, membro da EBP/AMP,

Resumo: o presente artigo visa a tratar o lugar do sintoma como defesa. A partir da diferenciação realizada por Freud entre inibição, sintoma e angústia, é possível observar o funcionamento psíquico em seu aspecto dinâmico, bem como a função do Eu diante das demandas de satisfação. Assim, o sintoma como substituto evidencia tanto sua vertente de verdade como de real, estabelecendo consequências para a clínica e seu manejo.

Palavras-chaves: sintoma; verdade; angústia; defesa.

THE SUBSTITUTE SYMPTOM
Abstract: this article aims to approach the idea of the symptom as a defense. From the differentiation made by Freud between inhibition, symptom and anguish, it is possible to observe the psychic functioning in its dynamic aspect, as well as the function of the Self facing the demands of satisfaction. Thus, the symptom as a substitute reveal both its truth and real aspects, establishing consequences for the clinic and its management.

Keywords: symptom; truth; anguish; defense.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre o sintoma 

Miller (2015) interroga: por que colocamos o sintoma entre as formações do inconsciente? É um fato que o sintoma, por sua permanência, se distingue de todas as outras formações do inconsciente. Para que haja sintoma, no sentido freudiano, é preciso que haja sentido em jogo e que esse possa ser interpretado. Para que haja sintoma, é necessário também que o fenômeno dure. Igualmente, diz Miller, o sintoma é o que a psicanálise nos dá de mais real; o sintoma como o que não cessa de não se escrever, enquanto sua permanência se impõe à experiência. É desse “a mais” que atravessa e marca o corpo que é preciso dar-se conta na formação dos sintomas. Por sua vez, em Freud (1925–1926/1996), o uso do sintoma é sempre o mesmo: pela satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida, a satisfação pulsional.

De tal modo, o sintoma revela duas vertentes: uma de verdade e uma de real. O que Freud descobriu é que um sintoma se interpreta como um sonho, quer dizer, se interpreta em função de um desejo, e que é um efeito de verdade. Mas há um segundo tempo desse descobrimento: a persistência, a permanência do sintoma depois da interpretação.

Freud (1925–1926/1996) aponta que o conceito de recalque não implica uma relação com a sexualidade, separando o recalque, que se refere a um mecanismo semântico — algo que não pode ser dito porque houve um recalcamento —, e o registro da sexualidade. Procura, então, atrelar as duas vertentes, isto é, a da descoberta do inconsciente, dos fenômenos interpretáveis, e a da descoberta da sexualidade infantil e do caráter perverso da sexualidade. Para Lacan, no entanto, o recalque tem a ver com a libido, ou seja, o que se opõe ao dizer tudo é o mesmo que se opõe à realização plena do sexual. Para Lacan, o que está recalcado é o significante, o que Freud nomeia de representante da pulsão (MILLER, 2015).

Freud, em Inibições, sintomas e angústia (1925–1926/1996), caracteriza o sintoma a partir da satisfação pulsional “como o signo e o substituto” de uma satisfação pulsional que não aconteceu, ou seja, a pulsão busca satisfação e, após o recalque incidir sobre ela, há a formação do sintoma como satisfação substitutiva. Mais adiante, o autor trata o trauma e o inconsciente tomando como princípio que, sob cada sintoma neurótico, há sempre um trauma. Toda neurose contém, diz ele, uma fixação dessa natureza. Acrescenta o princípio de que o sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente, afirmando ser “necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir” (FREUD, 1925–1926/1996, p. 287), ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. Freud completa: “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (p. 287). O sintoma como substituto vem no lugar do objeto que convêm à pulsão, mas nem por isso alcança a satisfação, tratando sempre de renovar sua busca.

É importante destacar que, em Freud, a definição de sintoma leva em conta seu caráter de formação de compromisso, de conexão entre gozo e defesa. A observação de Freud é que, no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela. Dessa conexão entre gozo e defesa, Lacan extrairá que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a se defender do gozo que busca, ou seja, o paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles (MILLER, 2020). Porém, é importante notar que o sintoma oferece à pulsão outra satisfação, mas como desprazer. A defesa do Eu contra a satisfação pulsional, através do recalque, produz a conversão da satisfação em desprazer. O desvio e a substituição são realizados pelo Eu, conduzido pelo princípio do prazer em oposição à exigência pulsional. Logo, o que aparece como desprazer no sintoma, como sofrimento, é uma satisfação.

Segundo Miller (2020), a pulsão não conhece o “semblante de gozar”; a satisfação pulsional é um real. Segundo ele, Lacan enfatiza o invólucro formal das formações do inconsciente, mas não lhe escapa que a chave da formação dos sintomas é pulsional, o que permanece. Aponta ainda que o sintoma pode aparecer como um enunciado repetitivo sobre o real. O sujeito não pode responder ao real a não ser sintomatizando.

Logo, há algo do sintoma que se localiza entre a angústia e a mentira, quer dizer, entre algo que mente e algo que não pode enganar. Algo circula entre o que engana sempre e o que não engana jamais. O sintoma mente, a angústia, não. A angústia sinaliza a ameaça, o sintoma defende (MILLER, 2015).

 

O texto de Freud

Ao entrarmos em Inibições, sintomas e angústia (1925-1926/1996), encontramos Freud debruçado sobre as manifestações que considera patológicas. Para ele, a inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente um sentido de verdade ou uma implicação patológica. Mas adverte que, quando a inibição é tomada a partir do sentido, ou seja, limitações e restrições da função do Eu, ela se torna um sintoma.

Freud localiza outro encontro entre os elementos em questão, a inibição e a angústia. Segundo ele, algumas inibições representam o abandono de uma função porque sua prática produziria angústia, ou seja, a inibição como defesa. Nesse ponto de elaboração, reforça que o sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado imóvel, sendo uma consequência do processo de recalque. O recalque, por sua vez, se processa a partir do Eu quando este se recusa a se associar a um investimento pulsional despertado no Isso. Assim, quando o Eu se opõe a um processo pulsional no Isso, ele tem de dar um “sinal de desprazer” com a ajuda do princípio do prazer, a fim de alcançar seu objetivo, o recalque, sendo ainda provável que as primeiras irrupções de angústia de natureza muito intensa ocorram antes de o supereu se tornar diferenciado, devendo o recalque ser descrito como tendo falhado, em maior ou menor grau.

O Eu é uma instância central no dinamismo psíquico. Suas características adaptáveis permitem se organizar e se diferenciar do Isso, realizar intercâmbios e influência, mantendo, nesse sentido, duas posições em relação ao sintoma: a que quer incorporar o sintoma e a que vai tentar manter o recalque.

Freud utiliza o caso do pequeno Hans — apresentado pela primeira vez em 1909 —, uma fobia infantil, para discutir o que está em jogo no sintoma, perguntando que sintoma substitutivo foi encontrado e onde está o motivo de recalque. Hans recusava-se a sair à rua porque tinha medo de cavalos — isso era a matéria prima do caso. O que constituía seu sintoma? O medo? A escolha de um objeto para seu temor? Ter abandonado sua liberdade de movimento? Por que e qual foi a satisfação a que ele renunciou? Hans não sofria de um medo vago de cavalos, mas de que um cavalo fosse mordê-lo. Para Freud, a fobia de Hans foi uma tentativa de solucionar o conflito devido à ambivalência: um amor e um ódio dirigidos para a mesma pessoa, seu pai. Porém, Freud adverte que o medo que faz parte dessa fobia não é um sintoma. Se Hans, apaixonado pela mãe, mostra medo do pai, isso não significa que ele tenha uma neurose ou fobia. Nesse caso, o que transformou a fobia em uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado sintoma. As ideias contidas na sua angústia era a substituição, por distorção, da ideia de ser castrado pelo pai. É sempre a atitude de angústia do Eu que é a coisa primária e que põe o recalque em movimento. A angústia jamais surge da libido recalcada, sendo o recalque apenas um dos mecanismos de que a defesa faz uso.

A angústia

Para Freud (1925-1926/1996), a angústia, em primeiro lugar, é algo que se sente, e, como um sentimento, tem um caráter muito acentuado de desprazer, sendo um sinal para a evitação de uma situação de perigo. A análise dos estados de angústia revela a existência de um caráter específico de desprazer, atos de descarga e percepções desses atos.

Por outro lado, Freud esclarece que a pulsão em si não é um perigo. O que então lhe dá essa qualidade? O alerta de desprazer que o Eu emite, frente à demanda de satisfação da pulsão, colocando em marcha o princípio do prazer para obter esse desvio, é o modo como Freud contextualizou a angústia — sinal que coloca o recalque em marcha. A pulsão, enquanto tal, constitui uma infração ao princípio do prazer, na medida em que sua exigência precisamente não é uma satisfação de prazer, e sim uma exigência de mais de gozar (MILLER, 2015).

Outra questão importante levantada por Freud em Inibições, sintomas e angústia é a relação entre a formação de sintomas e a geração de angústia. Haveria duas hipóteses: a angústia é um sintoma de neurose e os sintomas só se formam a fim de evitar a angústia. A angústia surgiria como reação original ao desamparo no trauma (real), sendo este o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose. Se um paciente agorafóbico que tenha sido acompanhado até a rua for ali deixado sozinho, ele produzirá um ataque de angústia; ou se um neurótico obsessivo for impedido de lavar as mãos após haver tocado algo, ele se tornará preso de uma angústia quase insuportável.

Avançamos, então, ao ponto de dizer que inibição e angústia podem, também, se apresentar como sintoma. No que se refere à inibição, fica claro seu caráter de sintoma quando vemos que a inibição é corporal — sexual, marcha, alimentação e da fala. Isso que toca o corpo — encontro do significante e o corpo.

Perturbar e Des-Montar a defesa

Como fazer com a condição defensiva no sintoma?

Freud nos indica que, quando o analista tenta ajudar o Eu em sua luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios entre o Eu e o sintoma atuam do lado das resistências, não sendo simples de afrouxar, muito menos de separar o Eu e o sintoma. Ele assinala que o Eu é fonte de três resistências: a resistência do recalque; a resistência da transferência, que reanima um recalque para além da lembrança; e a resistência em renunciar a qualquer satisfação ou alívio que tenha sido obtido com a doença. Menciona também a resistência que decorre do Isso, necessitando de ‘elaboração’, e a resistência proveniente do supereu, que se opõe à recuperação do próprio paciente pela análise (FREUD, 1925-1926/1996).

Nessa perspectiva, o sintoma, em análise, deve ser reduzido a seu núcleo. Miller  elucida que “reconduzimos os seres de linguagem a nada, os reduzimos a coisa nenhuma” (2015, p. 18). O paradoxo, segundo ele, é o do resto, havendo um x que resta mais além da interpretação freudiana. Assistimos, então, à confrontação do sujeito com o que Freud chama de restos sintomáticos. Para Freud, como ele partia do sentido, isso se apresentava como um resto, mas, de fato, esse resto é o que está nas origens do sujeito; é, de algum modo, o acontecimento originário e, ao mesmo tempo, permanente, que reitera sem cessar, o núcleo do sintoma. Em um tratamento, passamos, certamente, pelo momento de decifração da verdade do sintoma, mas chegamos aos restos sintomáticos, ao fora de sentido.

Poderíamos falar que perturbar a defesa, em Freud, seria

“quando, na análise, damos ao Eu assistência capaz de situá-lo em posição de levantar seus recalques, ele recupera seu poder sobre o Isso recalcado e pode permitir aos impulsos pulsionais que sigam seu curso como se as antigas situações de perigo não existissem mais” (FREUD, 1925-1926/1996, p. 97)

Entretanto, verificamos que, mesmo após o Eu haver resolvido abandonar suas resistências, ele ainda tem dificuldades em desfazer os recalques, sendo o fator dinâmico o que torna uma elaboração desse tipo necessária e abrangente. Se o perigo neurótico é um perigo pulsional, ao levar esse perigo que não é conhecido do Eu até a consciência, o analista faz com que a angústia neurótica não seja diferente da angústia realística, de modo que, com ela, se pode lidar da mesma maneira.

Para Miller (2015), ler um sintoma consiste em privar o sintoma de sentido. Por isso, diz ele, Lacan substitui o aparato de interpretar de Freud por um ternário que não produz sentido: o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Passa-se assim da escuta do sentido à leitura do fora de sentido. A leitura, o saber ler, consiste em manter a distância entre a palavra e o sentido que ela veicula, a partir da escritura como fora de sentido, como letra, a partir de sua materialidade.

Sabemos que, para perturbar e des-montar a defesa, é preciso um percurso de análise. Esta visa reduzir o sintoma a sua fórmula inicial, quer dizer, ao encontro material de um significante e do corpo, ao choque puro da linguagem sobre o corpo. Logo, para tratar o sintoma, é preciso passar pela lógica do desejo, mas também ir adiante da verdade que essa decifração produz e apontar mais além, a fixação do gozo, a opacidade do real.

Guéguen (2014) afirma que, para além de perturbar a defesa, é preciso ir além e desmontar a defesa, pois é importante supor que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado.

Miller (2020) lembra a pergunta de Lacan: como se vive a pulsão? O próprio Miller elucida que, no percurso de seu ensino, Lacan nos evidencia que não se trata, como em Freud, de resolver o conflito, mas de obter um novo arranjo, um funcionamento menos custoso para o sujeito. Não há pulsão sem sintoma. A fantasia é o curso normal da satisfação e equivale à inércia imaginária (posição do neurótico em relação ao desejo), impedindo de saber fazer com o sintoma. Contudo, sabemos ser possível, em uma análise, definir, localizar a fantasia. Porém, no registro do sintoma, como modo de gozo, o que se pode é saber fazer aí com o sintoma, com esse resto, ou seja, fazer-se amigo do sintoma, montar um novo modo de satisfação, uma nova maneira de satisfação pulsional, uma nova construção que Lacan denomina de sinthoma, pois o sintoma não é algo novo, mas um retorno. Há sempre algo de velho no sintoma, pois este é feito de repetição.

 


Referências:
FREUD, S. (1925-1926). Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
GUÉGUEN, P-G. “Defesa (desmontar a)”. Scilicet: Um real para o século XXI. Scriptum Editora. 2014
MILLER, J. -A. “Os caminhos na formação de sintomas”. Opção Lacaniana. nº 60. São Paulo: Eolia, set. 2011.
MILLER, J. -A. “Ler um sintoma”. Opção Lacaniana. nº 70. São Paulo: Eolia, jun. 2015.
MILLER, J. -A. “Síntoma y pulsíon”. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2020.