Tem alguém aí?1

Esteban Pikiewicz
Psicanalista, membro da EOL/AMP
epikiewicz@yahoo.com.ar

 

Resumo: O autor percorre os textos de Freud e de Lacan buscando elucidar o que estaria implicado na expressão presença do analista”. Ele destaca a ideia inicialmente desenvolvida por Freud sobre o analista como objeto e retomada por Lacan quanto à função do “desejo do analista” e do analista enquanto semblante do objeto a causa de desejo, vinculando a sua presença ao próprio conceito de inconsciente. Porém, acrescenta o autor, trata-se de uma presença real e, nesse sentido, nos reenvia a Lacan para afirmar que há, nesse desejo, algo de impuro.

Palavras-chave: presença do analista; inconsciente; desejo do analista; objeto a; real.

IS ANYONE THERE?

Abstract: The author goes through Freud’s and Lacan’s texts seeking to elucidate what would be implied in the expression.: “presence of the analyst”. He highlights the idea initially developed by Freud about the analyst as object, which is revisited by Lacan regarding the function of the “analyst’s desire” and of the analyst making semblance as “objet a cause of desire”, linking its presence to the very concept of the unconscious. However, the author adds, it is a real presence and, in this sense, he sends us back to Lacan, to affirm that there is something impure in this desire.

Keywords: presence of the analyst; unconscious; analyst’s desire; objet petit a; real. 

 

CAROLINA BOTURA. ORAÇÃO

 

Do título e da presença do analista

O que vou propor é um desenvolvimento preliminar, uma aproximação ao que foi trabalhado neste seminário sobre a questão da presença e, em particular, da presença do analista. Vou me valer desse termo para tentar vinculá-lo ao título desta aula: Existe alguém aí? é o título do livro de um grande poeta argentino, Joaquín Giannuzzi (1999), publicado pouco antes de sua morte. O título assemelha-se a uma significação vazia, pois exprime o conjunto de poemas encontrados no livro e não há nenhum poema dentro dele que se intitule assim. O conjunto de poemas, pode-se dizer, circunscreve algo do objeto que é o livro, cujo nome é o nome próprio do autor. O estilo de Gianuzzi é o da ironia, ou humor ácido, o “falar” das coisas cotidianas, insignificantes; da morte, da incerteza, o que se costuma chamar de poesia objetivista.

Agora, a covid-19, como acontecimento, virou nosso cotidiano de cabeça para baixo e, portanto, nossa prática e nossa experiência. Isso acentua ainda mais a pergunta: tem alguém aí? A cada vez que se produz o contato entre nós por esses meios, ou também entre analista-analisando, há, de algum modo, uma preparação, algo prévio, que se reitera, uma espécie de constatação ligada a essa insistência introdutória nas perguntas “Você me escuta?”, “Eles me veem?”, como perguntas sobre esse alguém aí.

Presença: o dicionário diz que se trata da circunstância de estar ou de existir algo ou alguém em determinado lugar. Deriva do latim praesentia, que descreve esse termo como a qualidade de estar diante. Algo que me parece importante destacar é o que se refere à condição de algo físico, algo que tem uma corporeidade. No dicionário se esclarece que o termo está ligado aos traços de algo ou alguém. Não tanto ao que o senso comum menciona como a aparência, mas sim aos traços. Nessa pandemia, precisamente, em que predomina a coronalíngua, se produz, inversamente, a limitação da presença dos corpos.

Sigmund Freud, mediante o sonho da injeção de Irma (FREUD, 1900/1996) — momento fundador da psicanálise —, constrói todo o aparato psíquico de três, que, como diz Germán Garcia, é um aparato patafísico, cuja propriedade é a de não existir dentro do tempo e do espaço euclidiano.

Nesse momento fundador, ele mostra algo que tem o atributo de ser um atrativo, algo que funciona como um ímã e que ele chamou de umbigo do sonho. Trata-se de algo que aparece no limite da decifração, pela via da fórmula química da trimetilamina — ela própria carente de sentido — e do que se apresenta mais além como indecifrável.

Dez anos mais tarde, quando já havia feito uma prática de seu invento, encontra algo homólogo ao umbigo do sonho. Estamos falando dos escritos técnicos (FREUD, 1912/1996). Eu me refiro à dinâmica da transferência, onde ele encontra a detenção nas associações em seus pacientes. Aí se faz presente um obstáculo, no qual Freud constata que se trata da pessoa do médico, sua presença. E, por sua vez, ressalta que é nesse momento que há uma maior produção transferencial: o amor de transferência como obstáculo.

Assim, pode-se fazer uma série de metáforas do irredutível: umbigo do sonho; bate-se em uma criança; o Kern/osso de toda neurose; o grão de areia na pérola neurótica etc. Não são esses conceitos, esses termos ou noções, os que poderiam se articular, fazer uma ponte, uma conexão em sua expressão, com a presença do analista? Lacan, no Seminário 1: os escritos técnicos de Freud (1986), fala da presença do analista “a brusca percepção de algo que não é tão fácil definir, a presença” (LACAN, 1953-1954/1986, p. 54) que é seu acontecimento e “frequentemente tinto de angústia (LACAN, 1953-1954/1986, p. 66). Mas acrescenta que há algo na presença que permite ao paciente tomar consciência de um enigma, um mistério. Aqui, nesse seminário, falou-se do enigma do mal, como algo cuja presença, enquanto humana, é um mistério. Talvez possamos pensar em algo que remeta à marca, uma marca. Lacan acrescenta ainda que há algo do enigma que não se pode experimentar constantemente porque se tornaria insuportável. Diz também que o humano vive tentando apagar isso que é a presença, e não perceber isso que é presença.

Voltando, se Freud forjou o aparelho psíquico com seus outros três — refiro-me ao consciente, pré-consciente, inconsciente e, mais tarde, Eu-Isso-Supereu —, sabemos que Lacan nos orienta com seus três: imaginário-simbólico-real.

Com esses três pode-se ajustar um pouco essa questão, dizer que a presença do analista dá conta de algo que não passa pelo simbólico — ou seja, não há associações — nem pela significação imaginária. No entanto, se nos remetemos ao Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ali se acentua que a presença do analista é uma manifestação do inconsciente (LACAN, 2008, p. 121–123). Podemos pensar se existe uma equivalência entre manifestação e formação do inconsciente. A manifestação parece “direta”, sem mecanismos que intervenham. Uma formação responde a certas leis. Lacan disse que há que integrar essa presença ao conceito de inconsciente. Eu acrescentaria presença do analista enquanto uma presença real. Vimos, anteriormente, nas “Conferências introdutórias à psicanálise: a transferência”, de 1916–1917, que Freud situa o analista na qualidade de objeto, de objeto no centro da neurose de transferência. Quer dizer, um Freud muito lacaniano no qual a presença, então, que é inconsciente, na medida em que está incluída no próprio conceito de inconsciente, aparece onde imagens e palavras claudicam. Em suma, é o que já conhecemos como instituição do objeto a, o parceiro essencial do sujeito, a essa altura (Seminário 11), causa do desejo.

Por que razão, ou por que, é relevante que, reproduzida essa neurose de transferência, nos encontremos com esse obstáculo que evidencia, com a presença, que ali não há memória ou representações?

Então, me atrevo a enfatizar que, justamente pela via dessa presença real do analista, sugere que não se trata apenas de interpretação ali. Ou, pelo menos, também deixo como proponho: trata-se — diria — de uma operação que põe em jogo, justamente, as sucessivas definições que nos são apresentadas sobre o que é interpretar. Ou uma interpretação que tem a ver com presença, ou seja, ligar algo ali com as variações e voltas que podem ser dadas sobre o que será interpretar, ou, se preferir, a diferença entre ato e interpretação.

Se o seminário sobre os conceitos fundamentais da psicanálise é um seminário que tem o caráter de dobradiça, no qual o ensino de Lacan começa a dar uma guinada em torno da conceituação desse objeto — o objeto a, causa do desejo —, isso se estrutura em torno dessa função que chamamos a função de causa do desejo: o objeto a, analista. Precisamente, o capítulo 10 do Seminário 11 se intitula “A presença do analista” (LACAN, 2008).

Presença e amor real

Penso que é muito interessante sublinhar algumas coisas, como fiapos. Primeiro, Lacan diz que é um termo muito bonito, ele o expressa assim. Em segundo lugar, para retomar algo que indiquei antes — essa presença e a transferência —, Lacan ali começa a debater com os pós-freudianos sobre a transferência; se nomeiam a transferência como um sentimento, se se trata de ambivalência, separa-se a transferência da repetição, etc. Mas ele enfatiza novamente a questão da transferência e o problema de saber se ali se trata como significação — o amor como algo autêntico —, nesse ponto máximo suscitado pela presença do analista. Um amor que, poderíamos dizer, não é identificação, mas que está do lado do real. Ele também usa outra palavra, que é a palavra essência. Ele a usa apenas uma vez para se referir a algo desse amor e, também, à presença. O significado de essência é interessante. Segundo o dicionário, significa, entre outros significados, algo permanente, invariável, que não muda em relação a uma coisa. Trata-se, justamente, de que essa presença é a que dá testemunho, ou seja, “há alguém ali” presente. E de que coisa essa presença testemunha? Da perda que é originária, sem compensação, sem saldo a favor do sujeito que fala. Algo que, por sua vez, faz a posição do analista, um lugar (e o acentua) que é muito conflitante.

Vou tentar dizer de outra forma, com noções que são limites: falta de rememoração, algo opaco, misterioso na presença; uma falta de significação — mas uma significação quase absoluta que é o amor — e que não remete à verdade. É a transferência como resistência, o fechamento do inconsciente enquanto pulsátil. Ou, como Lacan o chama em uma antecipação topológica, um nó górdio.

Então, nesse limite, o analista, ali em sua operação, atua ou não atua? Opera ou não opera? Intervém, interpreta? Através do eco? Pela ressonância? Por algo que lhe vem de suas próprias marcas, de suas próprias cicatrizes como o analisante que é ou o analisante que foi?
Inevitavelmente, poderia surgir algo que aparece indiretamente ali, ou ligado ali, no lugar do analista: a pergunta se se trata de algo que implica a função do desejo do analista com um algo a mais.

Porque função, reconheçamos, é aquilo que, em Lacan, remete a sua ambição de ter feito da experiência e da prática da psicanálise uma disciplina absolutamente lógica, matematizável, reduzida a fórmulas, sem equívocos. Mas surge aí algo interessante, pois, para formular isso, no final do Seminário 11, Lacan vai dizer que o desejo do analista é impuro (2008, p. 260). Portanto, se o desejo do analista é impuro, parece-me que não há razão para não pensar a função do analista como tocada, salpicada de algo de uma impureza.

Lacan diz que, se se trata do desejo de obter a diferença absoluta, essa diferença absoluta o é na medida em que implica tocar, obter aí algo de uma marca: isso que é diferença, mas enquanto absoluta. Parece-me que o absoluto não se refere ao todo, mas a algo à parte. Eu diria, é isso que, na medida em que é absoluto, não é permutável, não é modificável. O significante, por outro lado, é permutável, intercambiável um pelo outro.

A pergunta que me fazia era: não seria essa impureza o que levaria Lacan, nos próximos dez anos, a deixar e abandonar tudo o que é lógica, a matematização, discursos, em relação à prática analítica? Não é justamente a partir do Seminário 11 que o psicanalista está posto no banco?

Se o semblante é aquilo que tem a ver com um vazio e uma significação ao mesmo tempo (é a definição um pouco mais rudimentar de semblante), ou dito a partir dos três registros, ele implica algo real bordejado, circunscrito, ajustado pelo imaginário/simbólico, a função do analista pela via do desejo acaba por permanecer pelo que ela tem a ver com a presença. Esse limite, essa aparição, talvez a marca — e aqui acrescento algo mais — seja a encarnação disso, encarnando-se ali como tal. A coisa impura tem a ver com a encarnação disso.

Do estilo como presença encarnada

Desvio-me um pouco. Eu lhes falei de Giannuzzi, do estilo. E quero me valer de algo da referência ao estilo que Jorge Faraoni havia utilizado; Ricardo Gandolfo também falou em um certo momento sobre o estilo, quando se trabalhou no seminário algumas dessas aulas sobre o tema.

Para dizer apenas algumas coisas, certamente, mais tarde, vocês poderão, melhor do que eu, adicionar algumas referências sobre isso, pois meu comentário sobre estilo não é exaustivo; do que se trata? A pergunta tácita que agora exponho é: está ou não em jogo o estilo do analista? A função “desejo do analista”, estando na veia lacaniana da lógica, da matematização, frente a isso, o estilo é isso que, me atreveria a dizer, se aproxima dessa outra questão, digamos, “não lógica”, a presença encarnada; onde a função, em sua pureza, devido à impureza, vacila um pouco, não se faz suficiente.

Voltemos então a nos colocar nesse lugar, no lugar do semblante do objeto a, não representável, não significante, mas que, por enquanto, vale como significante, como esclarece Jacques-Alain Miller. A aposta que o objeto a não é um significante, mas vale como significante, responde a esse afã lacaniano da matematização, da lógica, das fórmulas, mas, diria, marcado por algo que aparece, uma presença, um algo impuro em relação a ele. Pode-se dizer que é algo a mais, pois é encarnado.

Eu vou dizer de outra forma. A função do analista como um significante qualquer, mas ao nível do a como presença do analista, encarnação desse algo, se trata de alguém. E, a esse respeito, me apoio em uma frase de Germán García. Você poderá encontrá-la em um de seus livros (que são uma série de cursos que Germán deu no norte da Argentina), intitulado Derivas analiticas del siglo: ensayos y errores (2014). É um curso de 1988, uma compilação de todas as aulas em que Germán García, quando fala do semblante, diz:

“(…) quer dizer, como diz Lacan, poder ser um objeto qualquer para depois ter um nome. Se se diz que o analista é qualquer um, deve-se dizer também que o analista é sempre alguém, e que alguém tem um nome, o único traço que o analista põe em jogo é o de um nome, os demais são postos pelo analisante” (GARCÍA, 2014, p. 45. Tradução nossa).

Se tomarmos esse ponto pela via do estilo, sabe-se que, em linhas gerais, o estilo é algo que se trabalha e é muito trabalhado no campo da estética, da arte, da literatura, enfim, da criação. Mas aceita-se que não se trata tanto do autor em si, do nome próprio, mas da obra, que o estilo esteja em sintonia com o objeto de que se trata.

Por exemplo, Witold Gombrowicz propôs incomodar com estilo. Poder-se-ia dizer que é em sua literatura que existe o traço do desconforto, o estilo, mais além do próprio Gombrowicz. Na tradição literária, estilo refere-se a algo que é singular, algo que é um traço destacado dentro do que é um movimento cultural, dentro de um autor, de um momento cultural, uma época.

Isto também é interessante: há um traço do que poderia ser pensado como o humano, a condição disso que, por sua vez, é alcançada. Há uma estética acabada, não modificável no nível do que se alcança no objeto artístico e que, por sua vez, tem uma aura enigmática, de mistério. Novamente Germán García vem em meu auxílio; no mesmo livro, algumas páginas depois, ele diz algo que me parece relacionado comisso do estilo. Se o Real implica esse gozo relativo ao corpo, aproximamo-nos então da presença como o que ela encarna. Cito Germán García:

“No real a pergunta é de que goza [enquanto corpo e de que se goza]… A frase de Lacan ‘o desejo do analista não é um desejo puro’ é um desejo conectado a um corpo, a uma substância gozante. Quer dizer que o enigma da interpretação é um eco do enigma do próprio gozo do analista” (GARCÍA, 2014, p. 50. Tradução nossa).

Ou seja, haveria um estilo do analista enlaçado ao nome próprio, que faz o estilo enquanto uma presença. Um traço que tem algo estético, uma forma acabada, singular, e que é eco do próprio gozo do analista, é uma maneira que encontrei de dar uma volta na frase de Germán. Tensão com o Lacan anterior aos Seminários 10 e 11. Dado que, se Lacan estava extremando esse afã lógico, matematizável, de nos propor o inconsciente estruturado como discurso, chegando a preferir um discurso sem palavras, para depois dizer que não há mais do que semblante, vemos que, já no fim do Seminário 19, ou pior…, começa a dizer, a assinalar, a situar que há algo a respeito disso que se impõe, do que aparece. Nessa instância, o chama de um suporte para esse giro dos discursos e nos diz “(…) fazer desse de-ser o suporte com esse des-ser de ser o suporte…” (LACAN, 2012 p. 226).

Acrescenta: “(…) se existe algo que se chame discurso analítico, isso se deve a que o analista em corpo, com toda a ambiguidade motivada por esse termo, instala o objeto a no lugar do semblante. (LACAN, 2012 p. 222)”.

Quer dizer, temos o discurso, o objeto, o semblante e o corpo. Então, se estou tratando de transmitir, de expor nesses apontamentos, é porque me parece que, diante da reformulação lacaniana — a partir dos seminários 10 e 11 —, da prática e da experiência analítica, surge a pergunta se se trata de um corte. Podemos debater se é um corte ou uma continuidade topológica. São debates. Isso porque uma das razões (entre outras) é essa encarnação, esse no corpo (un corps, homófono de encore) que começa a ter toda uma presença diferente em nossa prática, na experiência, no ensino, na sua relação (se houver) com o lugar do analista. Também me atrevo a assinalar que, de modo geral, acostumamo-nos a falar do gozo como pulsional. É o mais clássico entre nós. Articulado, certamente, ao objeto. É por isso que o analista representa, ou está nesse lugar; ele é semblante de objeto. Por isso, temos a parte elaborável desse gozo.

Mas a ideia seria a seguinte: se não é, precisamente, pelo semblante de objeto a, a partir dos seminários 20 e 21, que aparece a presença por essa encarnação nesse lugar e nessa função impura do desejo do analista, que se revela ou se afirma a questão de um gozo que não é somente pulsional. Ou, dito de outro modo: se o objeto a (do qual o analista é semblante) é o elaborável do gozo, resta ao analista, em presença, ser aquele que encarna o não elaborável do gozo. Se podemos pensar que se possa tocar em algo desse aspecto do gozo, nomear, incidir sobre ele, para que isso aconteça, é imprescindível a presença. Mesmo que ela não garanta que isso aconteça.

O semblante se vincula, se ajusta, ele implica em si um vazio. Por isso, Miller assinala: “(…) se Lacan se lançou aos nós, foi para tentar lhe dar, fora da articulação linguística saussuriana, dar substância a esse vazio” (MILLER, 2008).

Visto de um outro ângulo, se diria que já não se trata de um só gozo. Sim, do campo do gozo, mas pluralizado. Por isso a questão do corpo e seu mistério falante faz sua aparição.

É a partir do texto “A Terceira” (sobre o qual lhes recomendo “Leituras da Terceira”, texto de Gabriela Rodríguez e outras colegas de La Plata) que encontramos os três registros lacanianos no esquema do nó aplanado. Na base de tal esquema, encontramos o objeto a. Deixando de lado o que, a partir desse esquema, será o desenvolvimento do ensino de Lacan em torno dos nós, me interessa fixar em uma recomendação lacaniana nesse texto. Para se referir ao analista, Lacan utiliza figuras e personagens como o palhaço, o bufão. E aconselha a não o imitar e fazer como ele: descontraídos, naturais, sem presunções, bufões, palhaços. Por que motivo Lacan incorpora essas figuras do palhaço, do bufão e as relaciona com o analista quando este está formulando um mais além da matematização, do Nome-do-Pai, do falo? A maneira que encontrei de abordar essa pergunta foi através disto, que trato de lhes colocar: a presença, o corpo, a encarnação ali do analista.

O gesto inesquecível

Para aproximarmos a responder algo sobre isso, pode-se mostrar com um exemplo muito conhecido e difundido entre nós. Um, ao menos assim me parece, que abona o que venho desenvolvendo. É o conhecido testemunho de Suzanne Hommel. Esse testemunho expõe, no meu entender, que ali se tratou de uma operação de Lacan, por sua presença em corpo com esse gesto leve na pele de Suzanne Hommel, quando ela fala repetida e insistentemente de seu sofrimento, de se despertar sempre às cinco da manhã com a recordação atormentadora da Gestapo, do Holocausto, da perseguição aos judeus. E, quando Lacan salta da cadeira do analista, de modo surpreendente, acaricia suave e levemente sua bochecha, é ela quem depois interpreta translinguisticamente Gestapo (do alemão) por geste à peau — em francês “gesto na pele”.

Gesto lacaniano que é bufonesco. Esclarecendo o seguinte: não caiamos rapidamente em pensar que o bufão (que também tem sua origem, sua inserção, tal como o menestrel, no popular, para o povo) era somente a diversão e o canto na corte. Também aliviava os sofredores. Ele ia ou se aproximava do leito dos enfermos, dos enterros, ou do que poderiam ser, nessa época, os enterros. Vá saber se havia enterros como existem agora. Mas havia algo do bufão (como também o menestrel) acompanhar ali, em presença, aquele que sofria, no limite da vida. A tal ponto que era a Igreja que se encontrava muito incomodada a respeito dessa função, pois não recorriam a ela. E com uma habilidade que, creio ser atribuída a Assis, o santo, que se pode, com alguma manobra, captar isso para o interior da religião. Porque o bufão cumpria uma função que a religião não cumpria, que tinha a ver com isso da vida que não é só o gracioso. Então, recordemos que temos que associar isso também ao bufonesco e aos menestréis. Como aqueles que tinham o nome próprio como algo singular, relativo a algo corporal, a um traço que os caracterizava. Algo como uma deformidade, ou defeito particular do corpo, e que, com isso, lhes permitia exercer essa função poética, teatral, comediante, de cantos, ou seja, uma espécie de um condensado da condição humana, não tanto por suas características de brilho, etc. E Suzanne Hommel diz: o gesto de Lacan é um gesto de humanidade. Porque introduziu um algo a mais vivo, que ela diz, até hoje, sentir na pele, ainda que o sofrimento, como rememoração, não cesse. Mas, para ela, algo ali está amortecido, algo está ali capturado, tocado nesse geste à peau que lhe trouxe um mais de vida e um menos de sofrimento iterativo. Creio que esse é um gozo que não podemos classificar de pulsional, que se introduz com esse gesto, esse ato de Lacan, mais além do sentido e da lógica fálica.

O outro exemplo, no qual vou me apoiar e vou resumir brevemente, talvez vocês o conheçam. É um dos testemunhos de Berta Mildner, publicado na revista Lacaniana. Mildner explica que, ao longo de sua experiência, sempre teve imbróglios com o corpo. Fazia dos livros um recurso permanente, ao saber exposto neles, e que se manifestava nela como alterações da respiração. Uma respiração constantemente agitada. E que, diante da insistência disso, há uma intervenção do analista que lhe disse: “esse saber não lhe serve para nada” (MILDNER, 2017, p. 59). Primeiro ela o localiza assim. Silêncio. Silêncio do analista.

Quer dizer, fazer sentir uma presença ali pelo silêncio. Ela assinala que o efeito disso é uma grande e intensa angústia. Apontamos, de passagem, que já falamos disso. Lacan afirma, em “A Terceira”, sobre a angústia como sintoma tipo articulado ao corpo. E Mildner diz: “separação máxima entre o corpo e as palavras” (2017 p. 59). E só uma recordação. A última das lembranças encobridoras é produto de um relato do Outro materno. Ela era muito pequena, com crise de bronquite e agitação. Corre às emergências médicas. Diante dessa recordação, ela chora e chora e não há mais que choro. Sem parar. Há uma intervenção nesse relato, de um pediatra — nessa recordação materna — que recomenda algo absolutamente natural: ar livre, que respire ar livre, ar fresco. Uma segunda intervenção do analista, ela diz: “A intervenção do analista foi nomear isso como o trauma” (MILDNER, 2017, p. 60). O que diz Mildner em seu trabalho? Há queda de todo sentido, esvaziamento do sentido, um vazio, mas com um nome. Surge-lhe uma imperiosa angústia, uma vontade de ir ver o analista e lhe falar, como retorno transferencial. É muito interessante porque ela diz que, no meio da sessão, levanta-se bruscamente do divã, senta-se diante do analista e lhe fala da lógica do seu fantasma, do analista como objeto a olhar, o “dizer silencioso” (MILDNER, 2017, p. 60). E que, tratando de recuperar o analista-olhar, mais e mais… surpresa. Aqui surge o interessante, que ela ressalta. Frente a frente ao analista, Mildner ressalta que lhe parecia a pura presença do corpo, de olhos fechados, analista angustiado. Poderíamos dizer aparição, pura presença do analista enquanto corpo, olhos fechados: “encontrei o analista fazendo semblante do acontecimento de corpo (MILDNER, 2017, p. 60)”. E, depois, outra surpresa. Cito: “Saí da sessão com uma vitalidade desconhecida, plus de vida, sem Outro, que transformaria o modo de viver o corpo” (MILDNER, 2017, p. 60).

Nenhum sentido, efeito de um outro enodamento, um vazio de significação. E dir-se-ia “tudo” (o tudo é irônico) pela presença.

Me vali da noção de presença do analista e de todas essas derivadas, que entendo ter uma característica inconclusa, insuficiente, porque abre muitas pontas: marca, objeto, semblante, interpretação, operação, encarnação, função do desejo do analista impuro, o corpo, etc. Porém, em todo caso, me surgia a pergunta se podemos fazer como Lacan diz: “natural”, sejam naturais, sejam soltos, palhaços, bufões. Ou como também diz no Seminário 21, “Les non dupes-errent”: recomeço.

Voltaria ao título: Tem alguém aí? Por que volto ao título? Porque, com essa noção da qual me vali, presença do analista, para aproximar-me desse limite, desse lugar limite, disso que não se pode elaborar, dessa opacidade, desse gozo mais além, mais além do Nome-do-Pai, podemos colocar os nomes que vocês quiserem… Minha pergunta, então, é: o que aí se pode obter da análise como marca disso? Germán García disse por aí que a marca e/ou as marcas de uma análise são as cicatrizes da experiência. Ou, senão, como diria Éric Laurent, enquanto o “inesquecível” dela. Como Suzanne Hommel o testemunha. É inesquecível. Algo ali é inesquecível. Ou, se a marca ou as marcas dizem respeito a esse gozo indecifrável, “fazer-se uma conduta com seu gozo” (OSCAR, 2012, p. 100).

Outra maneira de dizer o que poderia se esperar, entre outras coisas, da experiência de uma análise, eu encontrei na poesia de Joaquín Giannuzzi, de quem lhes falei no princípio e que me impulsionou a intitular a exposição “Tem alguém aí?”. Eu a transmito com um poema que lerei a vocês, porque entendo que expressa algo disso que apresentei. Chama-se “Uma palavra virgem”:

Só ela sobreviveu
de um texto que esqueci. Desde então
é presença musical em minha cabeça.
Era-me desconhecida e, no entanto,
mantive fechado o dicionário
onde segue esperando, em estado puro,
para entregar-me seu segredo. Deste modo
preferi livrá-la da servidão do significado
e criar-lhe um paraíso contra o conhecimento.
Resgatada
do contexto e da confusão conservo-a
como uma joia pessoal.
Agora, nas noites de insônia,
quando o nome das coisas cai na fadiga
apalpo-a e saboreio
como a uma mulher amada na escuridão.
Somente seu som, sem identidade, sem assunto,
percorre sussurrando minhas entranhas:
hipálage, hipálage, hipálage.
Algo deve haver ali dentro que resiste
como um desconhecido gozo triunfante.

 

Tradutores: Jônatas Casséte e Luciana Romagnolli
Revisora: Renata Mendonça

Referências
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII,. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIANUZZI, J. Obra completa. Buenos Aires: Ediciones del Dock, 1999.
GARCÍA, G. Diversiones psicoanalíticas. Buenos Aires: Otium Ediciones, 2014.
LACAN, J. O seminário. Livro 19:… ou pior. Zahar: Rio de Janeiro, 2012.
LACAN, J. O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud (1953-54), 3ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LACAN, J. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MILDNER, B. De la resolución matemática al régimen del encuentro. Lacaniana, 22, Buenos Aires: Grama, abril 2017.
MILLER, J.-A. Sutilezas Analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2008, lição de 8 de abril, p.246.
OSCAR, Z. Los decires del amor. Buenos Aires: Grama, 2012.
RODRIGUEZ, G. Lecturas de la Tercera. Buenos Aires: Tres Haches, 2019.

1. Publicado em:  Vaschetto, E.,Faraoni,J.(coord.)  ¿Podemos vivir en una civilización sin Dios? Segundas Marcas. Seminarios de Psicoanálisis. Barcelona:Xoroi Edicions, 2021 



A presença real na análise1

GILLES CHATENAY
Psicanalista, AME da ECF/AMP
gilles.chatenay@orange.fr

 

Resumo:   A partir dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência, de Jacques Lacan, o texto se propõe a delimitar o que realmente está presente em uma análise sobre a expressão “presença real”.

Palavras-chave: presença real; transferência; falo; castração, inconsciente.

THE REAL PRESENCE IN THE ANALYSIS 

Abstract: From chapters XVI, XVII and XVIII of the Seminar 8: The transference, by Jacques Lacan, the text proposes to delimit what is really present in an analysis of the expression “real presence”.

Keywords: real presence; transference; phallus; castration, unconscious.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Orientei minha leitura dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência pelos termos de “presença real” (LACAN, 1960-61, p. 246-58). Tentei delimitar o que realmente está presente numa análise. É uma questão crucial, pois se não houvesse a presença do real em uma análise, parece-me que ela seria apenas um jogo de ilusões.

Signo, símbolo, significante

O capítulo que Jacques-Alain Miller intitulou “A presença real” encerra uma série na qual Lacan trata do complexo de castração e do símbolo Phi. No Capítulo XVII, ele diz: “introduzi (…) o símbolo grande Phi. (…) este símbolo nos é indispensável para compreender a incidência do complexo de castração no que tange à transferência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 233). Deduzo disso que a presença real, para Lacan, nesse Seminário – isso mudará mais tarde em seu ensino – tem a ver com o complexo de castração, o símbolo grande Phi e o dispositivo da transferência. Lacan cita Freud em “Análise finita e infinita” (FREUD, 1937/1996, p. 225-231): “A mensagem freudiana terminou nesta articulação, ou seja, que há um termo último (…) o rochedo – o termo está no texto – do complexo de castração” (LACAN, 1960-61/1992, p. 226-227). O final de análise encontra um rochedo impossível de ser dissolvido pelo significante, ele tropeça em um real. É preciso notar que Lacan assinala que “Trata-se do complexo de castração no homem, bem como na mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 227) que “não se trata das relações entre homem e mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 225).

Isto é digno de nota, pois poderíamos ter acreditado, a partir dos desenvolvimentos freudianos sobre ter ou não o pênis, que o falo estaria no princípio da diferenciação sexual e que o complexo de castração seria aquilo pelo qual mulheres e homens se diferenciariam. Mas, antes de entrarmos verdadeiramente na leitura a propósito do complexo de castração e do falo, esses capítulos tratam de signos, símbolos e significantes. Para me orientar na leitura, fiz pequenos esquemas. O signo representa alguma coisa. Eu insisto nessa expressão alguma coisa. O signo aponta para alguma coisa, em direção ao objeto. Digamos que o signo apresenta o objeto. Esquematizo desta forma:

Signo

Objeto

O símbolo, ao contrário, vem na ausência de alguma coisa – basta pensar nos primeiros símbolos gravados sobre os túmulos, quer dizer, sobre os mortos. O símbolo presentifica a ausência. Escrevo esta ausência com o conjunto vazio, e coloco uma barra entre o símbolo e o vazio para marcar que o símbolo vem no lugar do vazio.

Símbolo
_________

O símbolo presentifica a ausência: “aquele buquê de flores (…). Sua presença serve para recobrir o que é para se recobrir, (…) era menos o falo ameaçado de Eros (…), que o ponto preciso de uma presença ausente, de uma ausência presentificada” (LACAN, 1960-61/1992, p. 235). Esse símbolo, Lacan o escreve como grande Φ. E ele diz que “este talvez seja, com efeito, o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).  Escrevo-o assim:

Φ
___

O significante, ele mesmo, vem sob um fundo de ausência. Mas como significante, ele chama a dimensão do significado – senão não seria um significante. Entretanto, o sentido só pode surgir como efeito de uma articulação de vários significantes, de uma cadeia de significantes – quando falo, espero que vocês aguardem até o final das minhas frases para decidirem (mais ou menos) sobre seu sentido, se é que elas têm um sentido. O significante não aponta para o objeto presente, ele não só representa sua ausência, mas também aponta para outros significantes.

S1 → S2

Dito isto, esses esquemas do signo, do símbolo e do significante não são tão discriminatórios quanto poderiam parecer. Por exemplo, na frase que citei, Lacan nos diz que o símbolo grande Phi é um significante. Ou ainda, que os signos podem funcionar como significantes: basta que eles estejam ordenados em um feixe de índices que pede interpretação.

A falta de um significante 

O símbolo grande Phi é um significante, mas um significante bastante singular, pois ele vem “no lugar onde se produz a falta do significante” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).

O que isso quer dizer? Lacan nos dá um exemplo clínico dessa produção com as questões da criança:

O que é correr? O que é bater com o pé? O que é um imbecil? (…) De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de captar o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por esse algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

O momento da pergunta é o momento em que a criança experimenta a ruptura radical entre as palavras e as coisas.

Lacan retornou a esse momento da pergunta no Seminário 11, no qual ele explica que nenhuma resposta pode satisfazer a criança: “ele está me dizendo isso, mas o que ele quer?” (LACAN, 1964/1998, p. 203)

Imagino esse diálogo:

— O que você quer quando me diz isso?

— Eu disse isso porque queria lhe dizer que…

— Mas agora, por que você está me dizendo isso?

— Eu digo isso porque…

— Mas agora, por quê?

Não há fechamento. No momento em que digo não posso dizer por que agora digo o que digo. A questão subjacente às perguntas da criança é: O que você quer? É uma questão sobre o desejo do Outro, e não há nenhum significante do desejo do Outro – apenas signos. O momento da pergunta é o momento em que se experimenta a falta de um significante no Outro que diria sobre seu desejo. Em seu lugar vem o símbolo grande Phi.

É assim que creio entender por que Alcebíades, que sabe que Sócrates o deseja, “demanda vê-lo, quer vê-lo, como signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232): ele rejeita o símbolo grande Phi do falo que apenas presentifica a falta de um significante, o vazio, e pede signos, que apontariam para o objeto, a coisa, o gozo.

E é também por isso que Sócrates recusa. Pois não há ali mais que um curto-circuito. Ver o desejo como signo não é, por este fato, aceder ao encaminhamento por onde o desejo é tomado em uma certa dependência, que é o que se trata de saber. (LACAN, 1960-61/1992, p. 232)

O questionamento socrático está inteiramente orientado para a descoberta desse caminho: em direção à produção de saber. Sócrates pode desejar Alcebíades carnalmente, mas ele dedica sua vida a outro desejo, que é, eu diria, o desejo de saber.

O desejo de saber e o desejo do analista 

Lacan, mais tarde em seu ensino, falará do desejo do analista como desejo de saber. E nesta mesma página, ele também fala do desejo do analista: “Vocês veem, aqui, iniciar-se o caminho que tento forçar em direção ao que deve ser o desejo do analista. Para que o analista possa ter aquilo que falta ao outro, é preciso que ele tenha a nesciência enquanto nesciência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

O dicionário nos diz que a nesciência2 é o estado daquele que não sabe. Lacan é lógico: só se pode desejar saber se ainda não se sabe. Mas para o analista, é preciso pelo menos saber um pouco: “É preciso que ele esteja sob o modo de tê-lo, que ele também não esteja sem tê-lo, que não esteja de forma alguma tão nesciente quanto seu sujeito” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que ele não deve ser sem tê-lo, esse quase nada de saber? Lacan nos diz: “Para que o analista possa ter isso que falta ao outro”. Trata-se da transferência, da suposição de saber que o analisante faz ao analista, da transferência sobre a qual o analista deve estar advertido. Mas esta suposição, é enganosa? Sim e não. Há engano na suposição de saber dirigida ao analista na medida em que se supõe que ele tenha um saber, ele será suposto ter um saber – sobre o analisante – que não deriva apenas de seus ditos: tudo que o analista sabe sobre o analisante, ele constrói a partir disso que ele lhe diz e de como lhe diz.

É justamente outro saber que é exigido ao analista: aquele que ele produziu em sua própria análise, ou seja, por um lado, uma percepção sobre sua fantasia fundamental que lhe permite não interpretar apenas no seu quadro, e, por outro lado, um saber fazer aí com seu sintoma. E há ainda outro saber que o analista produziu a partir de sua análise: que falta um significante no Outro, que o Outro é incompleto e inconsistente, que o Outro da garantia não existe – o que Lacan escreve S(Ⱥ).

O signo da falta de significante e a angústia 

“De fato, ele também não é sem ter um inconsciente. Sem dúvida, ele está sempre para além de tudo aquilo que o sujeito sabe, sem poder dizer isso a ele. Ele só pode lhe fazer um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232). Isso é lógica: ele não pode dizer com significantes a falta significante. Portanto, ele só pode fazer signo disso. “Pois ao signo que há para dar, falta significante (…) porque é aquele que provoca a mais indizível angústia” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que a angústia? O signo aponta para o objeto. Mas, aqui, trata-se do signo da falta significante: esse signo aponta em direção a um vazio. Sartre, por exemplo, falou da angústia do sujeito diante de sua liberdade, ou seja, diante de um vazio de determinismo – em termos lacanianos, diante de uma falta no Outro. Mas eu disse que o signo aponta para o objeto – qual é o objeto aqui em questão? Eu arriscaria, antecipando o ensino de Lacan, que se trata do objeto nada. Dois anos após o Seminário sobre A transferência, Lacan fará seu Seminário sobre A angústia (LACAN, 1962-1963/2005), no qual ele dirá que é a presença do objeto que causa a angústia, que o objeto é causa. Anteriormente, o objeto era o objeto desejado; no Seminário sobre A angústia, o objeto pequeno a torna-se a causa do desejo.

Mas ainda não estamos neste ponto no Seminário sobre a transferência. Nas páginas que comento hoje, com qual objeto o sujeito está lidando?

A análise descobriu (…) que aquilo com o que o sujeito tem a ver é o objeto da fantasia, na medida em que este se apresenta como o único capaz de fixar um ponto privilegiado naquilo a que é preciso chamar (…) uma economia regulada pelo nível do gozo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

O principal exemplo que temos de que a fantasia fundamental regula a economia de gozo está no artigo de Freud “Uma criança é espancada” (FREUD, 1919/1996): os sujeitos confessam dolorosamente a Freud que só atingem o gozo sexual apelando para sua fantasia fundamental.

Mas continuo minha leitura desta página:

A análise nos ensina também que, ao referir a questão ao nível do que quer ele?, do que é que isso quer lá dentro?, encontramos um mundo de signos alucinados, e ela (a fantasia) nos representa a prova da realidade como uma forma de experimentar o quê? – a realidade desses signos. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

A questão é a questão sobre o desejo do Outro, e trata-se aqui da realidade dos signos. Retomo a citação: “O que está em questão, pois, na prova da realidade, vamos observar bem, é certamente controlar uma presença real, mas uma presença de signos” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Lacan disse que o símbolo grande Phi presentificava uma ausência (LACAN, 1960-61/1992).

Φ
___

Mas a presença real é presença de signos. Como percebermos isso, senão que diante do vazio, diante da ausência de significante significado pelo grande Phi, o sujeito convoca a presença real de signos?

O objeto da fantasia e os objetos das fantasias

Signos de quê? Signos “de uma relação com outra coisa” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240). E o que é essa outra coisa? “É isto o que quer dizer a articulação freudiana, que a gravitação de nosso inconsciente diz respeito a um objeto perdido, que jamais é senão reencontrado, isto é, jamais realmente reencontrado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Signo

Objeto a

Qual é esse objeto perdido? “O objeto jamais é senão significado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240) – como entender significado aqui? Escolhi lê-lo assim: do objeto se faz signo.  Qual é a relação do sujeito ao significante? No nível da cadeia inconsciente lidamos apenas com signos. Trata-se de incitar esse outro a quem me dirijo “a visar da mesma maneira que eu, o objeto ao qual se relaciona determinado signo, fazer dele um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Como está perdido, já que existe como tal apenas como perdido, estamos sempre lidando apenas com os signos desse objeto. “O objeto verdadeiro, autêntico, de que se trata quando falamos de objeto (…) está no horizonte daquilo em torno do que gravitam nossas fantasias” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241). No horizonte ele não é alcançado. O verdadeiro objeto não é, estritamente falando, o objeto de nossas fantasias no plural, por exemplo, o chicote fálico em “Uma criança é espancada”. O verdadeiro objeto é um objeto em torno do qual giram nossas fantasias. Isto parece nos convidar a distinguir o objeto verdadeiro, autêntico, em torno do qual giram nossas fantasias – e que não pode ser compartilhado ou intercambiado – dos objetos colocados em jogo nessas fantasias.

E para distinguir da mesma forma a fantasia fundamental, no singular, que implica esse objeto verdadeiro – a voz, o olhar, as fezes, o objeto o oral, o fonema, o nada – dos cenários imaginários fantasmáticos que colocam em jogo os signos desse objeto e que podem ser compartilhados. Os cenários e as imagens fantasmáticas, ao contrário da fantasia fundamental, podem ser compartilhados e intercambiados e, aliás, existe um mercado de fantasias. E, nos diz Lacan (1960-61/1992, p. 240), existe “um mercado de objetos”, objetos aqui a serem tomados no sentido comum do termo, quer dizer, objetos que se pode intercambiar. O que compramos quando nos oferecem o iPhone mais recente? Compramos um signo, signo de que temos o gozo, mas, além disso, o signo que aponta para o objeto pulsional de nossa fantasia fundamental, mas que não é esse iPhone. O mercado de objetos é o mercado dos signos do objeto.

Grande Phi, signo do desejo 

Esses signos, nós podemos desejá-los, mas qual é o signo do desejo? Nesse Seminário, é o falo, o grande Phi.

De todos os signos possíveis, não é aquele que reúne em si mesmo o signo e o meio de ação e a própria presença do desejo como tal? Deixar emergir o falo em sua presença real (…). [Do desejo] Não há signo mais certo (…). (LACAN, 1960-61/1992, p. 241) 

Já sabíamos disso para o significante e para o símbolo, mas acentuo que os signos também têm um efeito em si mesmos, que há uma eficiência dos signos. No fundo, isso é evidente se pensarmos na indústria publicitária, cuja única produção é a produção de signos, e que se baseia no pressuposto de sua eficiência.

E o grande Phi é seu meio de ação. Trata-se de tornar estes signos desejáveis – como? Não há desejo sem falta. Portanto, é necessário introduzir a dimensão da falta, e como melhor fazê-lo senão convocando o símbolo que presentifica a falta, grande Phi:

Φ
___

Ao presentificar a falta, grande Phi presentifica o desejo. Retomo a frase de Lacan: “Que o falo venha à luz em sua presença real”: através do signo ou do símbolo grande Phi, o falo deve vir à luz; o sinal ou símbolo grande Phi deve estar realmente presente. “Do desejo não há signo mais certo”, e Lacan acrescenta, “sob a condição de que nada mais haja além do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Para que o signo do desejo, o grande Phi, que é um signo da falta no Outro, venha à luz em sua presença real, é preciso que se rasgue o véu dos outros signos, que apontam para o objeto, pretendendo preencher a falta. “Do desejo não há signo mais certo, sob a condição de que não haja além do desejo”. O grande Phi é “o puro significante do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 242). O grande Phi foi “o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234). Por isso é um significante, mas um significante da falta de um significante no Outro. Como tal ele é indizível, inominável. Daí seu funcionamento como signo: dele só se pode fazer signo, em silêncio, eu diria.

A falta no Outro, a relação com a linguagem e sua projeção no órgão

Lacan escreve o significante da falta no Outro como S(Ⱥ). O Outro, neste caso, é o lugar do significante – digamos, a linguagem. Como tal, S(Ⱥ) escreve a relação conflituosa do sujeito com a linguagem – pensemos no momento da pergunta da criança:

De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por este algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

A relação inominada, porque inominável, porque indizível, do sujeito com o significante puro do desejo se projetada sobre o órgão localizável, preciso, situável em alguma parte no conjunto do edifício corporal. Daí este conflito propriamente imaginário, que consiste em ver a si mesmo privado, ou não privado, desse apêndice. (LACAN, 1960-61/1992, p. 242)

Acontece com o significante da falta no Outro com um grande A, algo análogo a isso que aconteceu anteriormente com o objeto imutável e não compartilhável da fantasia fundamental. O objeto da fantasia fundamental foi projetado sobre o objeto localizável e intercambiável do mercado. O significante da falta no Outro com A maiúsculo, lugar dos significantes, digamos da linguagem, é projetado no órgão do outro com um pequeno a, quer este pequeno outro seja o parceiro do sujeito ou o próprio sujeito. Escrevo essas projeções com duas pequenas setas:

Objeto pulsional, objeto a → objeto do mercado

S(Ⱥ) → falo imaginário, ϕ

A → outro

Antecipemos um pouco: no Seminário sobre A angústia, o objeto que se deseja se tornará causa do desejo, e no Seminário De um Outro ao outro (LACAN, 1968-1969/2008), o objeto a como causa responderá pelo objeto mais-de-gozar, permutável, compartilhável, mercantilizável.

Objeto causa → objeto mais-de-gozar

O que faz os termos à esquerda passarem para aqueles à direita? O que é colocado em função nessas projeções de localização?

A função grande Φ 

Nós tínhamos o sinal, o símbolo e o significante, agora eu apresento a função. Lacan fala da “função Φ do significante falo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244), e quando fala do neurótico obsessivo, fala de “colocar em função” e fala do “sinal da função fálica” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A clínica do neurótico obsessivo me parece falar particularmente da “da ativação da função fálica”, digamos, da falicização.

A formulação do segundo termo da fantasia do obsessivo faz, precisamente, alusão ao fato de que os objetos são para ele, enquanto objetos de desejo, colocados em função de certas equivalências eróticas – aquilo que temos o hábito de assinalar, ao falar da erotização de seu mundo, em especial de seu mundo intelectual. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Lacan escreve a fantasia do obsessivo da seguinte forma:

(Ⱥ) ◊ Φ (a, a”, a”, a”’, …)

(LACAN, 1960-61/1992, p. 248)

Ele especifica que o poinçon pode ser lido como desejo de. Eu li desta maneira: recuando diante da falta no Outro, face ao A barrado, o sujeito obsessivo deseja os objetos de seu mundo na medida em que eles são falicizados.

Na medida em que são falicizados, porque sua falicidade é medida:

(…) o j é justamente aquilo que é subjacente à equivalência instaurada entre objetos no plano erótico. O j é, de alguma maneira, a unidade de medida, onde o sujeito acomoda a função a, ou seja, a função dos objetos de seu desejo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Medida, equivalência: esses objetos são objetos do mercado:

(…) tantos ratos, tantos florins, não passa de uma ilustração particular da equivalência permanente de todos os objetos naquilo que é uma espécie de mercado (…). Ela se inscreve (…) numa espécie de unidade comum de padrão-ouro. O rato simboliza, ocupa propriamente o lugar daquilo a que chamo j, na medida em que ele é uma certa forma de redução de Φ, e mesmo a degradação deste significante. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Às projeções que já escrevi, acrescento uma:

Φ → φ

E Lacan acrescenta – trata-se sempre do obsessivo –: “a função Φ do falo, enquanto oculta por trás de sua negociação no nível da função do j (LACAN, 1960-61/1992, p. 254). Mas Φ representa “a função do falo em sua generalidade, para todos os sujeitos que falam” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A presença real 

O símbolo grande Φ tem a ver com a presença real: “Sabemos qual é a dificuldade do manejo do símbolo Φ na sua forma desvelada. (…) o que ele tem de insuportável é que não é simplesmente um signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244).

Ele não é simplesmente signo e significante: não é simplesmente imaginário, nem simbólico: ele é real, presença real, real da presença do desejo. “Esta presença real, trata-se, no entanto, de situá-la em alguma parte, e num outro registro que não o do imaginário. (…) que podemos entrever que o desejo vem habitar o lugar da presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 256).

“Mas então por que o falo, neste lugar e neste papel?” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257) – pois há “outros signos do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257). “O falo se apresenta no nível humano, entre outros, como o signo do desejo. É também o seu instrumento, e também sua presença” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257).   

No nível humano, ou seja, não se refere apenas ao perverso de quem Lacan fala nessas páginas. “O que ele designa não é nada que seja significável diretamente. É aquilo que está além de toda significação possível e, especialmente, a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 258).

E, como se trata da presença real na análise, e como essa não pode ser concebida sem a transferência ao analista à qual responde o desejo do analista, eu me arriscaria que a presença real, na análise, está situada de forma privilegiada na emergência do desejo do analista, em suas interpretações, suas escansões, seus cortes… ou em seu silêncio.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Tereza Facury

Referências
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 231-270.
FREUD, S. (1919). Uma criança é espancada. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 193-218.
LACAN, J. (1960-61). O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1962-1963) O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, J. (1968-1969) O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

1. Texto originalmente publicado em Ironik, n.33, boletim da UFORCA.
2. Característica de néscio, de quem não sabe ou não possui conhecimento para compreender alguma coisa. Alguns estudiosos diferem nesciência de ignorância, sendo a última relacionada a falta de conhecimento para compreender algo que se deveria saber. Disponível em: https://www.dicio.com.br/nesciencia/. Acesso em: 19 out. 2022.



A urgência do falasser e a presença sutil do analista: qual encontro possível?1

Laura Rubião
Psicanalista, membro da EBP/AMP
lauralustosarubiao@gmail.com

Resumo: O texto explora certas nuances do que se pode conceber como “presença do analista” em nossa época, diferenciando-a de algumas concepções tradicionais que evocam o analista como figura neutra, passiva ou desinteressada.  Ao contrário, o analista se faz presente como aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo. 

Palavras-chave: analista; urgência; gozo; sinthoma.

Abstract: The text explores certain nuances of what can be conceived as the “presence of the analyst” in our time, differentiating it from some traditional conceptions that evoke the analyst as a neutral, passive or disinterested figure. On the contrary, the analyst is present as the one who chooses to be beside the urgency of the parlêtre and the symptomatic solution of each one in the face of the real of jouissance. 

Keywords: analyst; urgency; jouissance; sinthome. 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

O XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano tem por título um dizer que, a partir do modo exclamativo – “Analista: Presente!” –, nos conclama a trabalhar o lugar por meio do qual o analista pode se fazer presente nos dias de hoje, tanto na análise quanto fora dela, nas questões de sociedade, como nos aponta Fernanda Otoni Brisset em seu texto de orientação, renovando a pertinência de recolocarmos a questão de como o analista pode estar à altura do horizonte de sua época.

Esse título teve como inspiração – certamente não a única, conforme nos observou Romildo Rêgo Barros – os embaraços provocados sobre a nossa prática a partir do acontecimento imprevisto da pandemia, quando, por força das circunstâncias, recorremos aos aparatos tecnológicos para recebermos nossos analisantes. A partir daí, teve início todo um debate em torno das implicações decorrentes dessa nova forma de presença virtual do analista na clínica.

Seja no modo virtual, seja no modo presencial, na esfera clínica ou política, no divã ou nas instituições, o lugar de onde o analista pode dizer “Presente!” implicará sempre o regime das sutilezas analíticas, tal como definido por Miller em seu curso de 2011.

Inspirado por Freud, ele vai buscar em Pascal uma orientação para o que se entende por “coisas de fineza”, ou “sutilezas” analíticas, em oposição às coisas de geometria, que são racionalidades, inferências e construções baseadas em premissas lógicas demonstráveis pela cadeia das razões. As tais “coisas de fineza” são aquelas que “se sentem” e devem ser apreendidas “subitamente em um só golpe de vista” (MILLER, 2011, p. 28). Essa apreensão súbita nos envia ao modo como Lacan identifica, em seu último ensino, o rastro do Ics real como une bévue (um tropeço), ou seja, o que irrompe inesperadamente no espaço de um lapso e se realiza como acontecimento de dizer, e não como um desdobramento de saber. É o que celebra o choque da linguagem sobre o corpo e dá lugar a um significante novo, uma invenção da língua. O que importa e se torna genuíno no último ensino de Lacan é que a linguagem produz um acontecimento disruptivo no corpo e é exatamente essa efração que faz brotar o elemento heterogêneo que não se deixa reabsorver pela estrutura, a qual tece incessantemente a trama do destino.

O analista faz par com essa urgência do falasser (LACAN, 1976/2003, p. 569) e isso nos autoriza a dizer que o analista marca sua presença, tomando partido do inconsciente real. Ele renuncia, desse modo, a encarnar a postura que lhe é atribuída tradicionalmente, a saber, a da “neutralidade benevolente”, sem, tampouco, adotar qualquer postura “ativa”, tal como preconizado por Ferenczi. 

Estar presente e não bancar o mestre

O lugar de onde se pode dizer “Presente!” inclui, portanto, uma sutileza dessa ordem: não operamos mais no campo da neutralidade, que serviria como um refúgio para o analista, mas também não adotamos, como nas psicoterapias, uma postura ativa que reforçaria o engodo de um lugar de mestria. Essa sutileza evoca, como apontou Freud, uma dificuldade no caminho da própria psicanálise, que não se furta em lidar com as irrupções do não todo, com aquilo que não cede à lógica da decifração e da ampliação do sentido.

Em seus chamados “Artigos sobre a técnica”, Freud nos dá um testemunho vigoroso desse cristal analítico, numa época em que ainda trazia ao mundo a novidade da psicanálise. A partir da densidade de seu projeto clínico, ele tratava de diferenciar a arte da psicanálise das chamadas psicoterapias pautadas na técnica da sugestão. Lembremos, por exemplo, retornando ao texto “Os caminhos da terapia analítica”, que Freud (1919/2017) se opôs radicalmente à chamada “postura ativa” do analista defendida por Ferenczi. Essa técnica tinha um propósito claramente ortopédico e foi estabelecida como uma suposta solução para momentos em que o trabalho analítico parecia se estagnar, sem surtir os efeitos esperados, a saber, os efeitos de ampliação do sentido e rememoração no âmbito do Ics transferencial.

Em seu comentário, Freud refere-se ao artigo de Ferenczi intitulado “Dificuldades técnicas de uma análise de histeria”, no qual relata-se o caso de uma jovem que se mantinha estagnada em relação aos avanços de sua análise. Ele pré-fixou, sem sucesso, o prazo final do tratamento, interrompendo-o prematuramente. A jovem acaba retornando à análise com sintomas agravados; foi quando o analista observa a posição das pernas crispadas sobre o divã em postura masturbatória. Entendendo que esse movimento absorvia a energia psíquica empobrecendo o material associativo, ele intervém proibindo essa postura, o que deu lugar às rememorações de cenas traumáticas da infância. Desses experimentos clínicos, Ferenczi pôde extrair uma regra geral para o tratamento, que consistia em coibir as tendências das atividades autoeróticas dos pacientes que acabavam consentindo com a renúncia a esse tipo de prazer infantil, substituindo-o pelo regime da satisfação genital normal.

Freud se mostra bem mais cauteloso quanto ao manejo dos percalços transferenciais na análise, inclusive reconhecendo situações em que o curso do desenlace de uma cura é obstruído pela formação de “novas satisfações sintomáticas substitutivas” (FREUD, 1919/2017, p. 198) que se interpõem no caminho da análise, bloqueando o rumo em direção à cura. Enquanto Ferenczi pretendia normatizar o corpo tomado pelo excesso de gozo pela via do sentido edípico, Freud soube ler esses excessos como uma verdadeira pedra que se impõe no caminho de uma análise, a larva do real que não se absorve pelo sentido, persistindo como resíduo sintomal. Esse resíduo pode assumir, na clínica, o formato da chamada reação terapêutica negativam que atua como obstáculo ao desenlace da análise. 

O real e o mistério do corpo falante

Ainda assim, e apesar dos esforços do próprio Freud em reconhecer que a ficção simbólica não drena todo o impacto do inconsciente real sobre o modo de gozo dos sujeitos, sabemos que a psicanálise ficou reconhecida como uma espécie de hermenêutica, que teria trazido ao mundo a chave do mistério do corpo histérico recortado pelo significante. O próprio Lacan, nos anos 1950, atribui a Freud a coragem de “interrogar a vida em seu sentido” por ter sabido desvendar, tal como um iniciado dos antigos mistérios, o falo enquanto significante ímpar na regulação dos impasses da falta a ser (LACAN, 1958/1998, p. 648-649). Com efeito, a interpretação analítica dificilmente se separa da suposição de um saber incrustado no real do corpo, um saber que conjuga o mistério e seu desenlace através da operação significante que nos permite reconhecer o desejo articulado à trama ficcional na qual se apoia Outro da verdade.

O último ensino de Lacan se empenha em desconstruir, até certo ponto, essa vertente sólida do analista intérprete que está sempre disposto a correr atrás da verdade a partir de uma escuta ancorada na suposição de saber. Miller (2012) localiza o modelo do corte como o paradigma da clínica no último ensino de Lacan, um corte que faça florescer o esp d’un laps e opere contra a debilidade mental do Ics ficcional.

Sustentar a dignidade ética desse ato que visa cernir o impossível a partir da contingência é a sutileza maior da presença do analista no mundo hoje, e isto acontece em uma dimensão que nada tem a ver com passividade ou com a atividade, mas com uma espécie de escolha forçada muito particular.

Em seu texto “Ponto de basta”, Miller opõe à chamada neutralidade benevolente – em alusão à postura clássica de reclusão e isenção atribuídas ao analista freudiano – a questão da escolha que envolve o gosto, o sabor, que estão enraizados no corpo, “no gozo do corpo, e no sinthoma” (MILLER, 2018, p. 27).

Essa posição standard do analista (da neutralidade benevolente) teria sido extraída, de acordo com Miller, a partir de uma leitura enviesada do cenário da técnica freudiana, sobretudo do que se pôde ler em um dos conselhos dirigidos aos médicos em 1912, no qual Freud retoma o caráter cirúrgico da operação analítica, “deixando de lado toda reação afetiva e até mesmo toda simpatia humana, para só ter um único objetivo: levar a bom termo sua operação” (MILLER, 2018, p. 29) Esse intervalo que Freud convoca como pressuposto da efetividade do ato analítico que não deve se render ao domínio imaginário da escolha pautada na identificação (via da simpatia humana) pôde ser interpretado por alguns como postura fria e desumana ou, em última análise, estranha ao campo dos afetos – lembremos da acusação dirigida a Lacan de ser indiferente ao afeto –, e, por outros, como consagração do êxito da tal neutralidade benevolente.

Sabemos que Lacan respondeu oportunamente à acusação de seu pendor formalista, mostrando nunca ter negligenciado o domínio dos afetos. É certo que ele nos mostra também que, para a psicanálise, esse domínio não se coaduna ao campo das emoções, do calor humano, das humanidades ou desumanidades. O afeto para a psicanálise diz respeito ao domínio do gozo que habita o corpo como lugar da incidência do significante que produz uma irrupção rumo a um significante novo, que será a invenção singular de cada analisante:

A história de que eu negligenciaria o afeto é farinha do mesmo saco. Que me respondam apenas uma coisa: afeto diz respeito ao corpo? Uma descarga de adrenalina é ou não é do corpo? Que perturba suas funções é verdade. Mas em que isso provém da alma? O que isso descarrega é pensamento. (LACAN, 1973/2003, p. 522)

O caráter cirúrgico do ato analítico dispensa o Outro da sustentação identificatória imaginária, acionando a dimensão do corte que, como nos aponta Laurent, não mais precisa fazer apelo à função de pontuação que mobiliza o sentido retroativo da cadeia significante em busca de um efeito de verdade. Para nos transmitir o modo incisivo como a interpretação pode operar como corte que não mais relança o sentido inconsciente, Laurent (2020, p. 174) retoma Miller:

Não se trata de saber se a sessão é longa ou curta, silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semântica, aquela em que S2 vem pontuar a elaboração – delírio a serviço do Nome do pai –, muitas sessões são assim, ou então a sessão analítica é uma unidade assemântica, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo (…).

Desse modo, resta-nos ler, a partir do último ensino de Lacan, a dimensão do mistério como pura cifra de gozo e que não faz apelo a qualquer revelação. Se cada palavra assume na “bateria significante de lalíngua” uma gama enorme e disparatada de sentidos heteróclitos, conforme nos é esclarecido em “Televisão” (LACAN, 1973/2003, p. 515) – tal como, de modo exemplar, nos demonstram os escritos joyceanos –, o que permanece insondável é o instante da mordida do significante no gozo, esse instante em que se fisga o afeto, sempre desalojado, numa escrita original que produz uma marca de gozo. Essa escrita se faz por um forçamento poético, nos diz Laurent, ou seja, por um acontecimento de dizer que, no entanto, não é prerrogativa de poetas. Os Analistas da Escola (AE), por nos darem testemunho “d’isso de que se goza” e que acontece no corpo, não se apresentam como um grupo de iniciados, ou seja, como aqueles que, nos antigos cultos de mistério, costumavam compartilhar um segredo em comum.

O encontro com um analista hoje, ou como se fazer presente na era do outro que não existe

A partir da queda dos semblantes e do declínio dos ideais, o corpo se impõe, cada vez mais, como uma caixa de ressonância para lalíngua, cujo correlato analítico é o que Miller (2015) chamou de clínica acontecimento, mais próxima dos efeitos de gozo do que dos efeitos de verdade. Nela, prepondera o estranhamento do gozo feminino dito não todo sobre o universal do gozo fálico; a emergência da equivocidade da letra que faz do ato analítico, ele próprio, um acontecimento interpretativo ou, ainda, o modo inaudito como o sexo chega aos seres falantes, produzindo arranjos sinthomáticos os mais diversos.

Em todas essas declinações, o analista pode comparecer, inclusive com seu corpo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo opaco do sintoma, que aponta para o “lugar de mais ninguém”, o lugar do exílio de lalangue que testemunha o ponto em que o gaio issaber vem “roçar” (piquer) o sentido para além de toda compreensão. (LACAN, 1973/2003, p. 525). Nesta direção, Laurent segue as indicações propostas no Seminário 23, de 1975-76, para evidenciar que o analista não seria mais visto como essa subjetividade segunda, que se instala no rigor de uma escuta dos efeitos de sentido que fazem brotar a verdade do sujeito em análise, mas como aquele que segue a via do sinthome, buscando ressoar (resón) no corpo o eco do dizer pulsional. Trazendo seu próprio corpo para a ordem do dia, o analista usa a interpretação pela via do equívoco que faz vibrar o “escrito na fala”, que é da ordem não do sentido, mas de lalangue.  Ele já não opera com a razão (raison),2 ou com o Logos do Inconsciente, mas com essa ressonância que “libera algo do sinthome” (LAURENT, 2016, p. 81). Haveria, no que concerne à prática da psicanálise, um novo uso da interpretação, que opera por um deslocamento da verdade ao gozo.

Para finalizar, gostaria de trazer um breve recorte do testemunho de Veronique Voruz que, no relato “Exorcizada pela psicanálise”, publicado em 2017, conta como cresceu assolada pelo gozo mortífero que lhe fora transmitido tanto pela avó, quanto pela mãe – ser um monstro a ser exorcizado via religião. Ela nos transmite como conseguiu escapar desse destino sórdido pela experiência da análise, que promoveu o verdadeiro exorcismo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo. Certa vez, quando falava de seu problema d’yeux (doença dos olhos), a analista lhe retorna: “Ah, sim, agora eu escuto Dieu (Deus)”. Essa nova escrita depura a angústia de ser um monstro aos olhos do Outro, encarando-o de outro modo, em vez de ser vista como tal. O final da análise encaminha-se para essa operação de ser arrancada dessa identificação. Sua mãe era alpinista e muito jovem sofreu um terrível acidente na montanha, que lhe arrancou uma das pernas. Em um sonho, ela se vê subindo uma montanha à l’arrache (por arrancos/atalhos), no mesmo cenário do acidente sofrido pela mãe:

Eu interpreto este sonho de subjetivação do acidente de meus pais, dizendo que finalmente meu S1 é à l’arrache. Subindo pelo caminho da montanha, à lárrache eu me arranco de meu destino de ser uma parte do corpo do Outro. Esse significante nomeia o que chamarei de “meu estilo pulsional”. Estou sempre um pouco à l’arrache, mas não me é mais necessário arrancar-me do corpo do Outro para me separar. (VORUZ, 2017)

Esse fragmento nos mostra como a psicanálise de orientação lacaniana pode se colocar ao lado da urgência do falasser, promovendo uma nova escrita para o gozo. No caso de Veronique, o lugar de dejeto com o qual o sujeito se identificará ao longo da vida torna-se um jeito de caminhar que, embora claudicante, é o que lhe permite avançar.  

 


Referências 
FREUD, S. (1919). Os caminhos da terapia analítica. In: Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
LACAN, J. (1958). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1973). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, E. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 50, jul./dez. 2020.
MILLER, J-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. Ponto de basta. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 79, jul. 2018.
VORUZ, V. Exorcizada pela psicanálise. Opção Lacaniana, n. 75/76, maio 2017.

1. Aula Inaugural proferida no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 08/08/2022.
2. Conferir nota do tradutor do livro O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo, em que se esclarece a assonância em francês entre os termos raison e rézon, inventado pelo poeta François Ponge e utilizado por Éric Laurent em sua leitura do Seminário 23. Aqui, a solução do tradutor foi pelo neologismo “ressonar”, para transmitir a ideia de que o significante pulsa (ressoa) no corpo.



A experiência analítica de testemunhos de perda no hospital

Marina del Papa
Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG e aluna do IPSM-MG
marina.delpapa09@gmail.com

Resumo: Este trabalho visa a transmitir o relato de uma experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital. Parte-se da premissa de que, quando um sujeito busca uma instituição hospitalar, ele o faz, a princípio, pela urgência biológica e traumática de seu corpo; porém, de maneira concomitante, pode-se verificar uma atualização psíquica e singular de sua relação com a castração e o real. A prática psicanalítica passa fundamentalmente por algo desta ordem: um testemunho de perda, seja em sua construção teórico-clínica, seja na travessia do fantasma no final de uma análise. Trabalhar em um hospital traz a possibilidade de não só revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como também fazer ressoar a potência da presença do analista com seu corpo, enquanto via transferencial de testemunho para o sujeito.

Palavras-chave: Psicanálise; testemunho de perda; hospital.

THE PSYCHOANALYTICAL EXPERIENCE OF TESTIMONIALS OF LOSS IN THE HOSPITAL

Abstract: This work aims to convey the report of a clinical experience guided by psychoanalysis within a hospital. It is assumed that, when a subject goes to a hospital, he does so, at first, because of the biological and traumatic urgency of his body; however, at the same time, it is possible to verify a psychic and singular update of his relationship with castration and the real. The psychoanalytic practice fundamentally passes through something of this order: a testimony of loss, whether in its theoretical-clinical construction, or in the crossing of the phantasm at the end of an analysis. Working in a hospital brings the possibility of not only revisiting important concepts for clinical listening, but also echoing the power of the psychoanalyst’s presence with his body, as a transferential path of testimony to the subject.

Keywords: Psychoanalysis; testimony of loss; hospital.

CAROLINA BOTURA. CASA PARA UM ANIMAL

 

Em vista das discussões levantadas durante o segundo período de formação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, as quais se baseavam na prática do analista em instituições, e da temática proposta para o Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “Analista: Presente!”, vi-me interessada em escrever sobre minha experiência de trabalho dentro de um hospital de Belo Horizonte (MG). O fragmento de caso que compartilho a seguir tornou oportuna a retomada de conceitos importantes da psicanálise, como a localização subjetiva e a transferência, e, igualmente, abriu margem para uma reflexão sobre a presença do analista como via de testemunho, posição esta que torna possível um giro a partir do qual o sujeito pode avançar sobre seu dito e sua implicação com a perda.  

O caso Rubens

Rubens era um senhor de 76 anos para o qual foi requisitada assistência psicológica devido à angústia da equipe médica que o tratava, que não conseguia realizar o diagnóstico de sua doença. O que se sabia desse paciente é que ele sofria de algo relacionado ao pâncreas, embora isso não ficasse claro nos exames tumorais.

Esse sujeito não recebia visitas. Era educado com a equipe, mas bastante solitário. Acompanhei-o por cinco meses, até o momento de sua morte. Boa parte desse período — quatro meses exatamente — se destinou à definição de seu diagnóstico. Sempre o encontrava deitado; nisso, sentava-me a seu lado e buscava investigar sua história. Ele falava muito pouco sobre si e, por isso, pude colher apenas poucos dados: “fui diagnosticado com bipolaridade muitos anos atrás”, “perdi uma filha quando ela era criança por um câncer”, “tenho filhos, mas não são próximos” e “um casamento perdido”.

O paciente sempre interpunha à continuação de sua história queixas de dor. Revirando-se na cama, ele dizia das dores que tinha no corpo. A propósito, fazia uma descrição detalhada delas. Permaneci acompanhando-o, sentando-me ao lado de sua cama, na presença constante de suas queixas. Seu corpo não mais respondia a uma série de funções. Houve dias em que apenas o acompanhei em seu silêncio. Aliás, por alguns meses, essa foi a forma de acompanhamento que pude ofertar: uma presença e uma disponibilidade de escuta, indo a seu leito quase diariamente.

Depois de alguns meses, durante uma sessão, teve início o giro do caso. Nesse dia, Rubens afirmou sentir muita dor. Ele mal conseguia se movimentar no leito, contorcendo-se agoniado e com febre, o que o fazia ter calafrios. Ele, então, sorriu para mim e disse: “Que profissãozinha ruim a sua, hein?! Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Eu o respondi dizendo: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. O paciente tremia de frio. Em vista disso, levantei-me e o cobri com o cobertor. Nesse momento, ele demonstrou espanto com meu gesto, agradecendo-me em seguida.

Após essa sessão, ocorreram algumas mudanças com Rubens: ele passou a se sentar na cama para os atendimentos, dando amostras de que um sujeito começou a se presentificar ali. Outro modo de dizer se instaurou. O paciente pôde construir uma elaboração sobre um momento traumático de sua vida, que foi a perda de sua filha: “Briguei com tudo e todos”. Ele considerava justa sua solidão: “Fiz mal a meus filhos e minha esposa; é natural que não venham. Eu causei tudo isso, fiz coisas muito erradas. É justo que eu morra sozinho, mas não gostaria de morrer com dor. […] Está perdido, não tem mais o que ser feito”. Cortes, interpretações, desconstruções e conclusões foram sendo produzidos pelo paciente. Outra elaboração foi sobre como ter uma morte mais digna dentro das coisas que ele fez na vida e de outras que ele perdeu, sem possibilidade de restauração. Em uma das sessões, já com um sujeito instaurado, pude dizer a ele: “Hoje você trabalhou”. Nisso, ele me respondeu: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”.

Rubens veio a falecer pouco tempo depois. Como ficou acordado pela equipe médica após o diagnóstico de câncer no pâncreas, ele não seria submetido a tratamentos com poucas chances de êxito, tendo sido realizado apenas um paliativo. Juntamente à equipe, foi possível colocar em jogo a posição desse paciente: ele não poderia evitar a morte, mas poderia morrer sem grandes dores. Essa foi a ética possível para esse sujeito, que pôde realizar algum trabalho sobre suas perdas.  

Considerações iniciais

Quando oferecemos um espaço de escuta, como no caso de Rubens, algumas vezes nos deparamos com sujeitos em uma posição apagada, posição essa mais voltada à descrição corporal dos sintomas e a uma verificação queixosa da manifestação destes. Digo algumas vezes porque entendo que a maioria dos casos não é assim. Nesse sentido, o primeiro ponto que considero importante destacar para compreender a experiência de um testemunho de perda é a presença do analista.  

Presença como testemunha

Clotilde Leguil (2022) escreveu, no boletim extra A presença do psicanalista como testemunha de perda, que a presença do analista é articulada por Lacan não tanto a uma ausência, mas a uma perda. O fato de o analista estar ali com seu corpo, com sua voz, com sua respiração no mesmo lugar em que está o analisante — este também com seu corpo e com sua angústia — tem uma função decisiva. O corpo do analista em sua modalidade de presença exerce uma função de testemunha daquilo que se perde. O surgimento do inconsciente se produz no próprio modo daquilo que aparece e depois desaparece, no modo do que se dá a conhecer e depois se deixa esquecer, no modo do que estava lá, mas que já não está mais. A autora acrescenta que o inconsciente se manifesta como o que se perde, como aquilo que apenas é encontrado, que já está perdido, ganhando consistência se, e somente se, houver uma testemunha de seu surgimento.

Depreendo, do fragmento supracitado, a importância da dimensão da presença, isto é, a importância de manter constantes as idas, de convocar esse sujeito a falar e, mais do que falar, de acompanhar, em meio a seu dito, as dores, as angústias e os odores do corpo: em outras palavras, estar ao lado daquele corpo. A sessão que ocorre como divisor de águas, como ponto de mutação de um sujeito que descrevia suas dores para outro sujeito, que inicia um trabalho analítico, é aquela que tem como marca a constatação de Rubens: “Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Essa é uma indicação passível de ser compreendida como testemunho? O texto de Clotilde Leguil nos leva a recordar da terminologia lacaniana testemunha para abarcar a presença do analista. Lacan (1964) ressalta que, desde o início da psicanálise, quando Freud trabalha a estrutura do inconsciente e instaura uma prática, esse é um campo que, por natureza, se perde. É aí que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda.

Compreendo, a partir disso e tendo acompanhado Rubens por quatro meses, que existe uma sustentação em suportar o corpo real enquanto presença. Enquanto orientação clínica, aposta-se que exista um sujeito que se instaura pela perda. É por essa orientação, não desassociada do ato de suportar o corpo e sua angústia, que se pode dizer: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. Dessa forma, outro elemento indispensável para essa reflexão é a transferência.

O segundo momento do fragmento, em que o paciente inicia seu trabalho e uma abertura subjetiva se instaura, ele nomeia “de amor”: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”. Isso demonstra que a transferência se instaura em uma constatação de localidade subjetiva com o Outro, a qual não seria viável sem a presença da localidade enquanto presença. Assim, como encontramos na orientação lacaniana, a transferência vinculada a uma presença é necessária (LACAN, 1964).

Por fim, tendo sido instaurados esses elementos para Rubens, verifica-se uma ultrapassagem do dito para um sujeito com um inconsciente, pois, quando avançada essa constatação de presença, o paciente se coloca a trabalhar, relacionando a perda traumática de sua filha, que morreu de câncer quando era criança, a um câncer descoberto em estágio avançado, dizendo do trauma que o marcava por ter presenciado a hemorragia no corpo da menina. Rubens constata em sessão que, após a morte da filha, ele se colocou em uma posição desenfreada na vida, enquanto sujeito disposto a perder todo o resto: o casamento, os filhos, o dinheiro, o emprego, nada mais lhe importava. Próximo de morrer, ele pôde julgar a ausência de alguém.

Sendo assim, levanto o último elemento da reflexão: para que haja o testemunho do analista, é necessária a localização subjetiva do sujeito com seu inconsciente; é nesse momento que o que está em jogo não é mais apenas um espaço de escuta, mas, sim, uma experiência analítica. Só existe um testemunho. Se existe um sujeito aberto a essa experiência, é necessária a presença de um analista que queira colocá-lo a trabalho.  

A localização subjetiva

O analista, como testemunha de perda, testemunha, na presença de um sujeito, quando este aparece ou é convocado aparecer. O sujeito surge, como diz Lacan (1966), para além de seus ditos, sendo implicado pela demanda que ele apresenta. Isso equivale a um sujeito com um sintoma que ultrapassa o diagnóstico médico. Como mencionado por Lacan, trata-se de um sintoma como enigma para o sujeito que tem uma fantasia — essa seria uma condição mínima definida como instrumento.

Miller (1997), em Lacan elucidado, nos orienta exatamente sobre essa diferenciação quando toca o método lacaniano para que possa se apresentar como uma análise: o mecanismo dos ditos é falso, pois este não vale mais que o mecanismo da psicologia do eu. A localização subjetiva consiste em distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito. É necessário sempre inscrever algo, com um índice subjetivo do dito, o que verificamos no mal-entendido, naquilo que o paciente apresenta como uma verdade absoluta ou no que é predominantemente falso, no que ele deseja mas teme, ultrapassando o sentido de um dito.  

Considerações finais

A partir dessa experiência, reflito sobre a importância da presença de uma orientação psicanalítica nas instituições. A presença e a conduta dessa orientação implicam uma aposta no inconsciente e em sua abertura. Para isso, é necessário fazer presença, às vezes, com as palavras, outras, com o corpo, mas sempre apostando em uma possibilidade singular para cada sujeito e que este possa se ouvir e se implicar para além do que é dito. Isso ultrapassa qualquer protocolo hospitalar, incluindo tempo de sessão, quantidade de atendimentos por dia, o que o plano de saúde sugere etc. Não se trata de nada disso. É uma aposta em oferecer uma experiência de testemunho, elevando o sujeito à maior dignidade possível: a de ser sujeito de sua própria história.

 

 


 Referências
LACAN, J. (1964). O seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. (1966). Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LEGUIL, C. A presença do psicanalista como testemunha de perda. 2022. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
MILLER, J.-A. Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.



Clínica do funcionamento: a psicose ordinária e a presença do analista1

Fernanda Otoni-Brisset
Psicanalista, membro da EBP/AMP
fernanda.otonibb@gmail.com

 

Resumo: Na atualidade da experiência analítica nos deparamos com uma plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça, evitando, assim, reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai. Cabe sublinhar que a formulação milleriana designada como “psicose ordinária” não é mais uma categoria clínica, mas, conforme, escreveu Sérgio de Campos: “é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto, com a clínica em movimento. Se, para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó, no vasto mundo das psicoses outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Não seria aqui que a presença do analista aconteceria na clínica da psicose ordinária? 

Palavras-chave: clínica do funcionamento; psicose ordinária; nós; presença do analista.

OPERATING CLINIC:

THE ORDINARY PSYCHOSIS AND THE PRESENCE OF THE ANALYST

Abstract: In the actuality of the analytic experience, we are faced with a plasticity of cases that, under transference, requires a longer time for a diagnostic precision to be clarified, thus avoiding reducing the answer to a simple yes or no, presence or absence of the Name-of-the- Father. It should be noted that the millerian formulation designated as “ordinary psychosis” is no longer a clinical category, but as Sérgio Campos wrote: “it is a diagnosis in suspension, a diagnosis of parenthesis, a pause” that installs an investigation plan that goes hand in hand, with the clinic in motion. If, for neurotics, the Name-of-the-Father makes the knot, in the vast world of psychoses, other modes of knots and staples present themselves as if they were a Name-of-the-Father. The flashlight moves from the quarrel of diagnosis to illuminate the real within the treatment; the question shifts from “what is it”, to “how does it work”. Is it not here that the presence of the analyst takes place in the clinic of ordinary psychosis? 

Keywords: operating clinic; ordinary psychosis; knot; presence of the analyst.

 

 SONY DSC

 

Uma alegria estar conversando mais uma vez com os colegas do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Agradeço à Maria de Fatima Ferreira e ao Fernando Casula pelo convite e, mais ainda, ao Sérgio de Campos pela esclarecedora exposição que pode nos oferecer sobre psicose ordinária e a presença do analista, com referências preciosas para pensarmos a clínica contemporânea, o que é o ordinário, o mais comum em nossa experiência, no consultório e fora dele, nas instituições. 

Todos nós sabemos da precariedade da clínica binária diante da atualidade da experiência analítica. Verificamos a plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem seguir adiante antes que uma precisão diagnóstica se esclareça. “O que será que ele é? Neurose, psicose…?”. O pêndulo do sino de Gauss segue balançando conforme a intensidade dos pequenos indícios, dos divinos detalhes.

Impossível reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai, face ao real que a clínica contemporânea nos entrega. Contudo, não se trata de acrescentar “a psicose ordinária” ao rol das categorias clínicas. Miller (2012, p. 412-413) dirá que “o perigo do conceito da psicose ordinária – é o que se chama um asilo para a ignorância”. Sérgio de Campos escreve: “A psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto com a clínica em movimento. Supostas neuroses e psicoses se colocam a investigar… Lembro de Miller (2007, p. 23) dizendo: “A neurose, não é mais sempre, a neurose… tem-se aí o diagnostico diferencial, mas tem também um continuum: ‘todas as mulheres são loucas’; ‘o mundo é louco’. Lancem um olhar sobre a neurose, os delírios de que ela é capaz, aqueles de que ela é feita; a neurose é um patchwork.” Ou seja: todo mundo delira (MILLER, 2005, p. 257). Se seguirmos assim, neuroses e psicoses, guardadas as distinções e segundo a lógica da forclusão generalizada, encontram-se igualmente reunidas no interior do conjunto dos seres que Lacan definiu como, “simplesmente, parlêtre” (OTONI-BRISSET, 2018).

Me pergunto se o termo “psicose ordinária” não é um convite para explorarmos as consequências da “declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres” (MILLER, 2016, p. 31):  um estreito continuum a perseguir e, diria com Lacan que, ao abrir uma pausa, o conceito da “psicose ordinária” desinstala o analista da encruzilhada da querela do diagnóstico e instala o analista como um Outro que segue, uma vez que o saber está do lado do falasser.
Fundamentos de igualdade

Algumas das proposições de Lacan nos permitem declarar que cada um fala a sua lalíngua e que para todos “falar é em si uma perturbação da linguagem” (MILLER, 2012, p. 250). Onde houver um ser falante, no encontro da língua com o corpo verifica-se a desordem na junção mais íntima do sentimento de vida, e é a tensão provocada por essa desordem que força a “conexão bem mais estreita do gozo e do significante” (MILLER, 2012, p. 264). Quando isso acontece, temos uma conexão. Se não acontece, estamos diante de um desligamento… ou um neodesencadeamento, ou desencadeamento clássico. Essa relação do gozo com o significante – ou melhor, a não relação – é um fundamento comum a todos, ainda que sejam distintos os modos como tal conexão acontece, ao enodar esse Um da língua ao Outro. Para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó; e, no vasto mundo das psicoses, outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai.

A passagem da clínica diferencial à borromeana de forma alguma nos permite apagar o modo neurótico ou psicótico de ser, mas exige-nos seguir a finesse dos pequenos sinais, indícios de pinças, amarras ou nós, numa investigação permanente, atentos ao singular do sinthoma, a encarnação do que há de mais singular em cada falasser. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é”, para “como é que ele funciona”. Uma clínica do funcionamento, das conexões, dos ínfimos detalhes em que o toque de singularidade é a bússola.

Com Miller, podemos dizer que as psicoses ordinárias e as outras, neuroses e psicoses, são, a um só tempo, “saídas diferentes para a mesma dificuldade do ser” (MILLER, 2012, p. 242), para o que não cessa de não se escrever e que pulsa na “junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565).  Mas o que é que há e acontece nessa junção mais íntima?
“É a pfuit! do sentido e a busca dos pontos de basta” (LAURENT, 2012, p. 273)

É quando a inexistência da relação eclode e o clips se abre para o nada, exalando a pfuit! cujo eco ressoa. Ao propor o sintagma “psicose ordinária”, Miller (2012, p. 401) desejou provocar um “eco no clínico”. Que eco seria esse, senão o que ressoa de um oco real, incrustrado na junção mais íntima do ser? Só há eco se há presença de um corpo material que acuse efeito de retorno. Não seria aqui que a presença do analista acontece na clínica da psicose ordinária – ao se colocar como testemunha desse pfuit! do sentido e fazer par com a urgência do gozo na busca de um ponto de basta?

Nessa clínica, o analista é aquele que segue sondando os indícios da desordem ordinária e verificando os vestígios da experiência para com a desordem, o furo, quando o nó se afrouxa, ora bambeia, ou até se solta, desatando a junção. A presença do analista aí testemunha a desordem do real: o hors-sens do gozo! E, ao mesmo tempo, ao estar ali ao lado, corpo presente, ressoa o que se apresenta como possível sutura, tal como Sérgio de Campos destacou: uma letra, uma invenção subjetiva, uma bricolagem, uma identificação imaginária, uma nomeação, dentre outras.  Afinal, Lacan ensina que “todos inventamos um troço para tapar o furo no real. Aí onde não há relação sexual, inventa-se o que se pode” (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974). Afinal, as estruturas são como defesas, defesas contra o real (MILLER, 2012, p. 422).

Na minha experiência clínica, a presença do analista nesses casos é uma presença que vibra quando a desordem encontra um jeito de se ordenar, quando a desordem do gozo se ajunta a qualquer coisa… uma letra, um pedaço do corpo, uma imagem, uma rotina… Em muitos casos, percebo que essa junção é um acontecimento contingente, que engendra o pfuit! do gozo a um ponto de basta capaz de agarrá-lo de novo a um arranjo para com o real, que é singular para cada um e constitui seu sinthoma. O sinthoma é a expressão da junção mais íntima que acontece do encontro inédito e impossível de lalíngua e o laço social.

Entretanto, esse acontecimento contingente em muitos dos casos não é suficiente. O falasser aguarda por um efeito de retorno, uma presença discreta que consinta, testemunhe, ecoe, ressoe e confirme sua solução. O que me faz pensar e propor para discussão que o sinthoma, ou o que quer que seja que sirva de uma amarração, acontece e se autoriza por si mesmo e de mais alguns outros. E é aí que a presença do analista acontece, como uma placa sensível que ressoa, testemunha do nó como efeito do real. Não há sentido nisso, só causa e consentimento. O analista aí presente acontece como um fiador que, como disse Sérgio de Campos, se apresenta “dócil para com sua língua particular” ao “se imiscuir na lalíngua do falasser (…) na condição de fiador de sua alíngua”. Acho essa ideia de testemunha e fiador interessante para pensar a presença do analista no circuito da autorização sinthomática, se operamos com o princípio “de que o analista opera como se ele fosse o sinthoma”.

Encontrei ressonância dessa ideia também no exemplo citado por Sérgio de Campos de um sujeito que é indicado pelo padre para ser zelador com a função de guardar as chaves da igreja: “ser nomeado para” confere ao sujeito uma “grande responsabilidade”. Uma sobreidentificaçao que faz laço social.  Contudo, um analista não demanda, é um “Outro que segue”, mas, ao seguir, diz “sim” a uma nomeação que aparece no tecido da linguagem no curso de uma análise e que ressoa como função de grampo. Marca, assim, a função da nomeação para o gozo que corre solto, aposta num funcionamento e lhe confirma um lugar na ordem simbólica. Liga o S1 a um S2. “Não há relação sexual”… mas há o laço social. Uma aposta!

Sérgio de Campos escreve: “na psicose ordinária, há um progressivo desenganchamento do Outro, devido a um empobrecimento dos laços afetivos e sociais que denotam uma marginalização oculta por tempos, em virtude de rupturas repetidas e progressivas que se instalam de modo diacrônico, pouco a pouco, numa crescente intensidade social. Ante à irrupção do gozo, o tecido simbólico parece esgarçar-se gradativamente. Há impossibilidade crescente de o sujeito simbolizar e subjetivar o gozo, de modo que ele experimenta um buraco do real que se manifesta através de um desaparecimento do aparelho significante. Ademais, há uma perda paulatina da fantasia que possibilita uma mediação com o gozo. Nesses casos, no final, toda a significação fálica parece estar extinta”.

De fato, acompanhamos, há muito tempo, casos que chegam aparentemente amarrados, um ponto ou outro estranho, pequenos índices… Há um romance, esboço de fantasia, que parece algo como significação fálica… Mas isso vai se desfazendo aos poucos, a rede de sentido vai ficando mais pobre e o buraco do real e a desordem do gozo mais evidentes, menos ordenadas na cadeia significante e mais exuberantes como desordem no corpo, no social e na língua. A psicose vai se tornando evidente e o sujeito entrega sua desordem sob transferência, talvez numa aposta de encontrar, junto a mais alguns outros, um saber fazer em condições de costurar o incabível de sua desordem num laço social que tenha cabimento.

Uma clínica desse porte, que se orienta do real ao laço social, vive da inquietude permanente. A igualdade clínica fundamental entre os falasseres, ainda mais esclarecida a partir do efeito de retorno à psicose ordinária, ao desfazer as insígnias do déficit, permite-nos explorar o detalhe das nuances/nuages do laço e do desenlace, nos inúmeros tons que vibram conforme a loucura de cada um.

 


Referências

LACAN, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: EscritosRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Inédito).

LAURENT, E. A pfuit! do sentido. In: A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.

MILLER, J-A. La Conversation D’Arcachon. Paris: Le Seuil, 2005.

MILLER, J-A. On n’est pas sérieux quando on a dix-sept ans. La Cause Freudienne, n. 67, out. 2007.

MILLER, J-A. A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012.

MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: o corpo falante. Rio de Janeiro: EBP, 2016.

OTONI-BRISSET, F. Simplesmente, parletrePapers 7.7.7, n. 1, Barcelona, 2018. Disponível em: <https://www.amp-nls.org/nls-messager/towards-barcelona-2018-papers-7-7-7-n1/>. Acesso em: 28 nov. 2022.

 


 

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 07/10/2022 em comentário ao texto de Sérgio de Campos, “A presença do analista na psicose ordinária”, também apresentado na mesma ocasião.




A presença do analista na psicose ordinária1

Sérgio de Campos
Psicanalista, A.M.E. da EBP/AMP
e-mail: sergiodecampos@uol.com.br

 

Resumo: Desde as últimas décadas, nos deparamos com casos clínicos que se manifestam sob formas de gozo, cujas manifestações convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Tendo essas novas formações como casuística principal e sob a perspectiva de uma construção diagnóstica pautada na ética, em argumentos lógicos e baseada em um ponto de vista clínico, este artigo apresenta argumentações sobre a presença do analista na psicose ordinária orientadas pelo esforço de elaboração oriundos do Conciliábulo de Angers, da Conversação de Arcachon e da Convenção de Antibes, que resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito das psicoses. As noções de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências são apresentadas de maneira a orientar a presença do analista diante das tendências contemporâneas da psicose ordinária, demarcando as diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma. 

Palavras-chave: psicose ordinária; presença do analista; sinthome. 

THE PRESENCE OF THE ANALYST IN ORDINARY PSYCHOSIS 

Abstract: In the last decades, we have been faced with clinical cases that manifest themselves in forms of jouissance, whose manifestations call for a non-structuralist diagnostic construction. Having these new formations as the main casuistry and from the perspective of a diagnostic construction based on ethics, on logical arguments and based on a clinical point of view, this article presents arguments about the presence of the analyst in ordinary psychosis guided by the effort of elaboration arising from the Council of Angers, the Arcachon Conversation and the Antibes Convention, which resulted in an update of the concepts of triggering, conversion and transference in the context of psychoses. The notions of neotriggering, neoconversion and neotransferences are presented in order to guide the analyst’s presence in the face of contemporary trends in ordinary psychosis, demarcating the differences between stabilization, substitution and sinthome.

Keywords: ordinary psychosis; presence of the analyst; sinthome.

 

CAROLINA BOTURA. CÁPSULAS DO FUTURO

 

Nas últimas décadas, foram constatados diversos casos clínicos que se manifestam sob várias formas de gozo, incompletas do ponto de vista de suas narrativas, indefinidas sob a perspectiva de seus sintomas e de inconsistências que dificultam o seu enquadramento, resultando na impossibilidade de serem diagnosticados seguramente sob a perspectiva estruturalista. Vale dizer que efetuar um diagnóstico é um ato que implica uma ética, exige argumentos lógicos e é baseado em pontos de vista clínicos.

Miller (2009) aborda, entre 1987 e 1988, o caso “O homem dos lobos”, sem, contudo, firmar um diagnóstico. Em 1996, Miller promove um Conciliábulo de Angers sobre “Enigma e Surpresas nas Psicoses”. Nos estudos iniciais sobre as psicoses promovidos por Miller, acreditava-se estar diante de novas formas raras de psicose, mas depois se verificou que elas eram bastante comuns. Em seguida, em 1997, ele e a École de la Cause Freudienne (ECF) deram impulso ao debate sobre casos raros e inclassificáveis da clínica psicanalítica na Conversação de Arcachon. Por fim, no terceiro encontro de uma série que ocorrera em três cidades com as iniciais de letra A, na Convenção de Antibes, que acontece em 1998, no seio da Seção Clínica da Universidade de Paris VIII, Miller elabora o conceito de psicose ordinária, na acepção de psicoses comuns e em oposição às psicoses extraordinárias no sentido de Schreber.

A psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa para que o derradeiro diagnóstico possa ser detectado. O diagnóstico de psicose ordinária pode ser tomado como uma metodologia de trabalho na medida em que ele expressa a ponta de um iceberg de uma psicose clássica que se encontra submersa e subjacente.

Assim, todo o esforço de elaboração concentrado no Conciliábulo de Angers, a Conversação de Arcachon e a Convenção de Antibes resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito da psicose, designados como neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências, que sem dúvida vieram orientar a presença do analista diante do campo das psicoses.


Neodesencadeamento

A questão que se impõe é como os registros do real, simbólico e imaginário permanecem juntos e o que faz com que eles se soltem e se separarem, desligando o sujeito em sua relação com o Outro. Se o desencadeamento é o resultado de um efeito de abrir e de desencadear, a psicose não desencadeada prescinde do desencadeamento e dos fenômenos produtivos, como a alucinação e o delírio. Em particular, a clínica borromeana acolhe e coloca em evidência uma série de psicoses não desencadeadas, onde novas organizações do gozo se constituem como modalidades subjetivas compensadas, fechando e estabilizando o real da psicose.

Cabe advertir que as psicoses ordinárias não se equivalem às psicoses não desencadeadas, pois elas podem desencadear-se, mas seus desencadeamentos são completamente diferentes das psicoses clássicas. Na Conversação de Arcachon, sob o título de Casos Raros, foram discutidos casos de sujeitos que apresentavam desencadeamentos muito discretos, nos quais os fenômenos elementares, alucinações, delírios e neologismos estavam ausentes.

Assim, os fenômenos das psicoses ordinárias costumam surgir mais dispersos e sutis, emergem como descarrilamentos ínfimos, desconexões entre o eu, o corpo e a pulsão, instalam-se de um jeito fragmentado e discreto, e, por fim, expressam-se de maneira mais pluralizada e múltipla, em razão de serem menos referidos à ausência da ação central do Nome-do-pai (MILLER, 2009, p. 56). Portanto, o diagnóstico de psicose ordinária é mais refinado de ser realizado.

Em síntese, o desligamento é o apanágio da expressão maior do neodesencadeamento e se opõe ao desencadeamento clássico. Pode-se dizer que o desencadeamento se manifesta de dois modos no que se refere ao tempo. O primeiro, em que as variações respeitam um paradigma que concerne à temporalidade do tipo sincronia, apanágio das psicoses clássicas, nas quais os fenômenos psicóticos emergem de forma múltipla, intensa e simultânea, como se fossem uma tempestade, tudo ao mesmo tempo, agora. O segundo modelo concerne à temporalidade do tipo diacronia, atributo das psicoses ordinárias e da estrutura do neodesencadeamento, nas quais os fenômenos psicóticos surgem discretos, esparsos e singulares, numa diacronia de um depois do outro.

Na psicose ordinária, há um progressivo desenganchamento do Outro, devido a um empobrecimento dos laços afetivos e sociais que denotam uma marginalização oculta por tempos, em virtude de rupturas repetidas e progressivas que se instalam de modo diacrônico, pouco a pouco, numa crescente intensidade social. Ante à irrupção do gozo, o tecido simbólico parece esgarçar-se gradativamente. Há uma impossibilidade crescente de o sujeito simbolizar e subjetivar o gozo de modo que ele experimenta um buraco do real que se manifesta através de um desaparecimento do aparelho significante. Ademais, há uma perda paulatina da fantasia que possibilita uma mediação com o gozo. Nesses casos, no final, toda a significação fálica parece estar extinta.

Assim, o neodesencadeamento se expressa como um processo evolutivo que tem indícios, premissas, sinais discretos que são precursores de perturbações futuras e que podem manifestar-se de modo contínuo ou descontínuo na clínica. O sujeito pode experimentar desligamentos gradativos, sucessivos ou descontínuos do Outro social.

Mas, o que impede uma psicose ordinária de se desencadear? Existem pelo menos dois motivos: primeiro, temos o não desencadeamento em virtude da ação de uma identificação imaginária; e, segundo, em razão de uma suplência. Quanto à distinção entre a identificação imaginária e a suplência, podemos dizer que, na distinção, o modelo da identificação se apoia no tipo narcísico, como no caso “O homem dos lobos”, em que uma prótese é construída para o eu; na suplência, como no caso de James Joyce, é posta à prova uma autêntica operação de significante sobre o gozo através do sinthoma. Assim, a suplência é uma forma subjetiva de estabilização, na qual um elemento se torna capaz de enodar os registros RSI, estabilizando o sujeito, de tal forma que ela se torna mais eficaz e articulada do que a compensação imaginária.

Mas, uma vez desligado, como religar? Atualmente, orientamo-nos na clínica pela atenção aos pequenos detalhes, ou em como conseguir localizar na história do sujeito o momento em que ele se desengancha em relação ao Outro. Em grande parte, esse desligamento se faz sutil e gradativamente. Assim, um raciocínio baseado no relato clínico do sujeito pode ser capaz de localizar, apenas a posteriori, o elemento que produzira o desligamento, de tal sorte que se possa permitir uma estratégia com fins a um religamento. A identificação das formas de desligamentos se torna, portanto, essencial para que se possa estabelecer as formas de desencadeamento e os novos contornos clínicos (MILLER, 2012a, p. 22).  Ademais, cabe situar outras maneiras de se ajudar o sujeito a religar-se. Uma delas seria auxiliá-lo a constituir ou descobrir um sinthoma que possa enodar os três registros RSI; e, em seguida, de um modo menos ambicioso, conduzir o sujeito para que ele possa alcançar uma identificação imaginária.
Neoconversão 

Miller, em seu curso Ce qui fait insigne, denota que na conversão existem dois caminhos a partir do S1 de determinados significantes mestres. O primeiro caminho se constitui pela via do registro simbólico, do S2, do saber e do inconsciente; e o segundo, pela via do gozo que está fora do discurso, expresso pelo real que não é decifrável, e, portanto, não interpretável (MILLER, 2012a, p. 103). A conversão clássica abriga um sentido, como uma espécie de conversão na qual o psíquico é uma metáfora do somático. Na segunda clínica, Lacan enfatiza uma conversão, mas como uma continuidade entre o psíquico e o somático, como se um se tornasse o prolongamento do outro, mesmo que seja na condição de avesso.

Enfim, o primeiro paradigma da conversão está fundamentado na metáfora, e o segundo, na metonímia. Na conversão clássica, temos um Outro incompleto que é sustentado por um objeto a equivalente à castração. Em contrapartida, na neoconversão, temos um Outro absoluto que se apoia sobre o objeto a correlato à castração. O resultado da ausência de barra nesse Outro implica uma perda de subjetividade. Logo, a neoconversão, no fundo, é uma inscrição corporal da falta, visto que ela acontece como dimensão sintomática quando há um impossível de reunir o objeto a e a castração simbólica (MILLER, 2012a, p. 158).

O acontecimento de corpo, apanágio da neoconversão, guarda certo enigma, visto que a operação analítica proporciona intervenções sobre o corpo que ocasionam acontecimentos que não fazem ruídos, que são discretos e que, portanto, permanecem desconhecidos. Assim, como os acontecimentos de corpo são em grande parte tênues, eles são experimentados como um sentimento sutil de um deixar cair algo de si do corpo (MILLER, 2012a, p. 394).

A neoconversão mostra o papel prevalente da significação fálica que, mesmo ausente, tem a função de fixar o modo e a possibilidade de leitura do sintoma. Portanto, não se trata mais de uma decifração, mas de uma leitura, de um ler de outro modo (MILLER, 2012a, p. 100). Encontramos casos nos quais o sujeito se mostra incapaz de refletir e de estabelecer uma alteridade, que o tratamento não se apoia mais na direção de uma via simbólica, no discurso, na narrativa, na palavra metafórica e de um saber inconsciente. A alternativa, de acordo com a orientação de Miller, é se amparar pela via do real, pela letra, no que está fora do discurso e que não há um saber inconsciente que revele qualquer significação (MILLER, 2012a, p. 103). Cabe ao analista ajudar o sujeito a inventar algo que possa oferecer-lhe um arrimo, como aquele que diz que escreve no seu diário para apoiar os seus pensamentos.

Não raro, a saída do sujeito é a de construir um corpo, fazer um corpo mediante os piercings, as tatuagens, a vigorexia, as próteses, os implantes, os maneirismos, as estereotipias, as hipocondrias, os dismorfismos corporais, como anorexias ou obesidades, que podem funcionar como uma prótese corporal.

A nomeação também pode funcionar na construção de um corpo, ou mesmo constituir-se mediante um nome, uma vez que a característica do nome está sempre associada à ligação com uma escrita. Nomear não é interpretar, tampouco decifrar. Nomear é uma outra forma de compartilhar o sentido. O que caracteriza o sentido é que se nomeia, mas que ao mesmo tempo não se esclarece, tampouco se compreende (MILLER, 2004-05, p. 149). Assim, a escrita oferece suporte ao pensamento, e com a letra coloca-se um ponto de basta na dispersão do corpo. Enfim, a neoconversão é o paradigma da clínica contemporânea, decorrente do enfraquecimento dos ideais, na era em que ocorre um desaparecimento do Outro simbólico, da promoção do gozo e dos fenômenos do corpo (MILLER, 2012a, p. 158).
 

Neotransferências

No seu texto sobre o caso Schreber, Freud já se manifestava sobre as dificuldades encontradas na transferência, nos casos de tratamentos de psicóticos. Ele explicava esse problema em virtude do narcisismo desses sujeitos, que têm como objeto de amor apenas a si próprios. Ademais, Freud nos deixa um legado ao dizer que a psicose de Schreber se desencadeia quando se instaura a relação de objeto na transferência com Flechsig (MILLER, 2011a, p. 145).

Para Miller, o retorno do gozo não transformado em libido de objeto constitui a dificuldade nuclear das psicoses. Então, o gozo não transformado em libido de objeto se acumula, fazendo com que a libido do eu se torne excessiva. Esse gozo que se retém contribui paradoxalmente para a caída da envoltura narcísica do eu, de maneira que resta para o sujeito apenas o ser do objeto, exposto à invasão do gozo do Outro. Com efeito, a queda do envoltório narcísico do eu ideal diante do gozo do Outro promove os delírios de observação (MILLER, 2011a, p. 146).

A Seção Clínica de Angers interroga se as novas psicoses exigem uma nova posição do analista diante da neotransferência. No âmbito da neurose, o sujeito suposto saber é o pivô da operação analítica. Miller assinala que na segunda clínica de Lacan existe um abandono gradativo da transferência como sujeito suposto. O sujeito suposto saber não é um saber posto, também não é um saber exposto, tampouco é um saber desenvolvido, nem sequer um saber explícito, mas é uma simples significação de saber. O sujeito suposto saber é uma constatação apenas de que o Outro sabe; o saber é seu atributo, sem que disso ele tenha que dar provas, de maneira que não há demonstração ou mostração por parte do analista (MILLER, 2011a, p. 146). Na psicose, por sua vez, não há sujeito suposto saber, visto que o saber está do lado do psicótico. O grupo de trabalho de Angers propôs uma nova transferência nas psicoses como uma alíngua da transferência (MILLER, 2012a, p. 345-346). Ocorre que Miller tem extraído do modelo da psicose elementos para repensar o destino da transferência na segunda clínica de Lacan.

Lacan vai propor, no seu segundo ensino, uma transferência que não se apoie mais no sujeito suposto saber. Trata-se de uma passagem da ontologia à existência e do ser ao Um, na medida em que essa transferência joga com a fuga do sentido. Se a transferência é sustentada pelo sujeito suposto saber, Lacan vai ao âmago do inconsciente estruturado como linguagem que sustenta o inconsciente transferencial para isolar a alíngua como núcleo furado da linguagem. Então, a alíngua da transferência vem ocupar o lugar do sujeito suposto saber, de sorte que ela não é uma alíngua suposta, mas exposta, e que o analista e o analisante devem aprender a lê-la (MILLER, 2012a, p. 348), como uma transferência articulada ao modo de gozo singular do sinthoma, no binário repetição e pulsão, cuja díade funciona como gozo e repetição (MILLER, 2011b, p. 77). Essa díade não constitui uma harmonia, como a antiga parceria do inconsciente transferencial, mas compõe uma parceria dissimétrica, disjunta e correlata ao postulado “não há relação sexual” no que se refere ao sinthoma como um funcionamento positivo de gozo (MILLER, 2011b, p. 78).

A transferência apoiada na alíngua implica um esforço de aprendizagem do analista ou, ainda, na docilidade de aprender a língua particular do sujeito. Miller adverte sobre ser dócil e paciente em relação às invenções do sujeito. Portanto, quando o analista intervém, é do lugar de onde não se sabe; ou da posição que visa a sustentar o falasser nas invenções que ele estabelece para defender-se do Outro gozador; e, por fim, se houver oportunidade, o analista, com a finalidade de esvaziar o Outro, deve trazê-lo para as brincadeiras infantis (MILLER, 2012a, p. 348).

A transferência como alíngua concerne à posição do analista como aquele que permite limitar o gozo, descompletando o Outro, como esvaziar as crises passionais de erotomania ou de odiomania, mostrando-se barrado. Ademais, a posição do analista acolhe o gozo errante, o gozo à deriva, ao se imiscuir na alíngua do sujeito. Ao adotar essa atitude, o analista garante ao sujeito a condição de fiador de sua alíngua; por fim, o analista pode oferecer-se ao sujeito como um lugar não-todo, no qual ele se serve do analista para dizer, na qualidade do Um que dialoga sozinho (MILLER, 2012a, p. 350-51).

A transferência da alíngua jamais se transforma em um lugar do jogo dos semblantes. Mas, ao se consentir adotar um vínculo frouxo que oferece uma justa medida à técnica do holding de Ferenczi, o analista se permite elaborar um saber fazer com a alíngua (MILLER, 2012a, p. 187). A transferência da alíngua possibilita a elaboração de um “saber ler de outro modo”, de maneira que permite ao sujeito grampear o simbólico e o real sobre a dobra do imaginário (MILLER, 2012a, p. 181). Assim, a condição da transferência de a alíngua favorece não apenas ao analista, mas também ao sujeito “aprender a se ler de outro modo”. Enfim, é necessário que o processo analítico crie condições para que o analisante se habilite na função de se “ler de outro modo”. Pode-se dizer que “saber ler de outro modo” possibilita um grampeamento dos três registros – real, simbólico e imaginário – para que permaneçam intactos e com valores equivalentes. Assim, “ler de uma outra maneira” não é ler o sentido, mas a função daquilo que se manifesta em ato, no âmbito da repetição e do gozo.

Enfim, o que importa é que o analista vise, com o trabalho de neotransferência, a obter uma amarração dos três registros – real, simbólico e imaginário – pela via dos nomes do pai, no lugar onde o sujeito se desamarrou ou apresenta a dificuldade de refazer o nó de Borromeo. Caso ocorram contingências favoráveis, o analista pode inclusive proporcionar novas condições que possibilitem ao sujeito amarrar os três registros de outra maneira.

Uma das estratégias da neotransferência na operação analítica faz com que o analista opere como se ele fosse o sinthoma, com uma ajuda-contra aquilo que impele o sujeito na direção de A mulher ou em seu encontro com Um-pai; uma ajuda-contra a consistência do Outro sem barra; uma ajuda-contra a onisciência absoluta do Outro na medida em que implica certa vacilação analítica como furo no saber; uma ajuda-contra a devastação do supereu feminino; uma ajuda-contra a desamarração dos registros; uma ajuda-contra o sintoma, a inibição e a angústia, uma ajuda-contra o gozo feminino e uma ajuda-contra o desvario e a deriva, fruto do Significante do Outro barrado, do Outro que não existe, expresso como S(A/) (MILLER, 2012a, p. 207).

Enfim, fundamentado na interpretação do tipo ajuda-contra, o analista visa à operação de prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de servir-se dele. A operação analítica tem assim a finalidade de instaurar o furo no Outro, o furo no inconsciente para que o contingente possa emergir.

Com isso, o analista coloca em jogo uma nova modalidade de transferência, capaz de incluir o sujeito no discurso, particularmente aqueles que estão fora dele; enodar os registros real, simbólico e imaginário, facilitando a construção de narrativas de sujeitos que estão desamarrados; estabelecer um vínculo transferencial frouxo com o sujeito; e, por fim, descompletar e furar o Outro consistente e onisciente (ALVARENGA, 2018).
Tendências contemporâneas da psicose ordinária

A primeira que se constata na contemporaneidade é a tendência ao múltiplo, que se manifesta nos casos clínicos por conta dos efeitos da pluralização dos nomes do pai. Atualmente, verifica-se na clínica uma pluralidade de significantes mestres que não se organizam em torno de um, mas que se comportam como uma espécie de enxame, como se diz em francês, essaim, homofônico ao S1. Assim, esses casos se produzem como múltiplos, mas não se organizam em um conjunto ordenado, no qual se obedece a uma lógica classificatória.

A segunda tendência que se averigua é a passagem do universal ao singular, do artigo definido O para o artigo indefinido Um. Não estamos mais sob a égide da forclusão do Nome-do-pai, mas sob o prisma de uma forclusão generalizada, denotando uma diversificação das múltiplas formas de gozo num novo contexto clínico, teórico e político, no qual todo mundo delira. Pode-se nomear o caso “O homem dos lobos” como o primeiro paradigma dessa espécie, já que não temos uma forclusão do Nome-do-pai, mas uma forclusão da castração, ou uma forclusão da significação fálica (BROUSSE, 2009).

A terceira tendência que se apura no contemporâneo é uma modificação do estatuto do Nome-do-Pai como função, isto é, há uma migração da função do universal do Nome-do-Pai para uma função no particular, com a designação da nominação (nommer-à) de “nomear para…” (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974). O pai tem uma função nomeante, visto que o pai também é o pai do nome. Mas, a expressão “nomear para…” não detém uma função operativa equivalente ao Nome-do-pai. Com efeito, “nomear para…” é um indicador para se ocupar uma função. Na verdade, trata-se de uma pequena indicação de função, como aquela em que um sujeito é indicado pelo padre para ser o zelador da paróquia com a função de guardar as chaves da igreja.

A indicação do padre de “ser nomeado para…” confere ao sujeito uma “grande responsabilidade” e lhe oferece um lugar na pequena sociedade local que ele não conseguira conquistar sozinho. “A grande responsabilidade” como a função de zelador da paróquia pode ocasionar um recurso à identidade, ou a uma “superidentidade” sem fissuras, que poderá ser capaz de exercer a função de suplência imaginária diante da falência da função fálica. Logo, a “sobreidentificação pode conferir ao sujeito um novo valor ao papel social” (MILLER, 2003, p. 40).

A posição do psicótico ordinário não tem nada de excepcional, de extraordinário; ela é bastante comum, banal e ordinária, como a de ser nomeado para ser um zelador da paróquia, cuja função é a de limpar, cuidar e guardar as chaves da igreja. Portanto, resta ao sujeito encontrar invenções miúdas ou consentir com pequenas nomeações capazes de enodar os registros simbólico, imaginário e real. Essas nomeações funcionam como referência ao pai, mas não são um significante Nome-do-pai propriamente dito. Lacan ressalta que essas pequenas nomeações e invenções mínimas podem ser capazes de estabilizar esses sujeitos em razão de um efeito semelhante ao Nome-do-pai, ressignificando sua função.
Diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma

Embora pareçam ser sinônimos, existem diferenças sutis e discretas entre os conceitos de estabilização, de suplência e de sinthoma, que podem a princípio passar despercebidas. Em síntese, vale demarcar que as estabilizações são pequenas invenções e soluções encontradas – seja pelo próprio ser falante, seja com a ajuda do analista, em um processo terapêutico – para lidar com suas instabilidades psicóticas no intuito de estabilizá-las.

As suplências podem ser consideradas como o modo do ser falante efetuar suas amarrações dos registros do simbólico, do real e do imaginário. E o sinthoma são os restos sintomáticos, o que restou de um processo analítico ou o que é derivado do próprio ser falante sob o paradigma de Joyce, no que concerne ao estilo e ao osso de uma análise e que produz um reganho de gozo positivo capaz de promover efeitos de satisfação.

Dentre os três, de uma direção de dentro para fora, o sinthoma é aquele que se encontra em sua posição mais íntima de núcleo. Em seguida, o sinthoma é circundado pela suplência e, de maneira mais periférica, na adventícia, encontramos a estabilização. Pode-se propor uma equivalência do sinthoma como a finalidade última ou a política do tratamento; a suplência como a estratégia ou os meios pelos quais o falasser encontrou seus pontos de amarração; e, por fim, a estabilização que pode se equivaler às táticas. Enfim, um sinthoma pode proporcionar a suplência e ocasionar as estabilizações. Mas uma suplência pode oferecer estabilização sem ser um sinthoma, e uma estabilização em si só é uma solução que não gera uma suplência, tampouco um sinthoma.
 

Estabilização            

No primeiro ensino, Lacan ressalta que a estabilização pode ser conseguida mediante identificações e bengalas imaginárias que servem de escora para apoiar o ser do sujeito. Existem estabilizações mediante determinados objetos nos autistas ou como resultado de bricolagens bizarras as quais o esquizofrênico utiliza para instituir um novo órgão e reconstituir um corpo (LAURENT, 1998).

O conceito de estabilização surge em virtude da construção delirante de Schreber, ao desenvolver o esquema I, no que concerne ao assentimento com o empuxo à mulher. Portanto, temos a estabilização mediante a metáfora delirante. Mas pequenas invenções psicóticas também são capazes de promover estabilizações, de forma que as estabilizações são múltiplas, em razão da inventividade de cada sujeito. Enfim, a estabilização na psicose pode instaurar-se mediante a função da letra, a invenção subjetiva, a bricolagem, a identificação imaginária, a nomeação, dentre outras.

Em suma, temos, em primeiro lugar, a estabilização pela via do real da passagem ao ato (LACAN, 1932/1987), referida ao caso Aimée, depois do atentado cometido contra a atriz Hugette ex-Duflos e de sua prisão, em que ela alcança sua estabilização; em segundo, temos a estabilização pela via imaginária, mediante a metáfora delirante como A mulher de Deus alcançada por Schreber; e, por fim, a estabilização pela via do simbólico, estabelecida pelo sinthoma da escrita de James Joyce.

Vale dizer que a super-identificação também pode proporcionar a estabilização. O surgimento dessa identificação orienta de maneira sólida o psicótico ordinário. Essa super-identificação é capaz de fazer a função do traço unário, provocando identificações sociais positivas. O ser falante investe a libido em nomes que lhe conferem pequenos valores de autoridades nas tradições familiares e sociais (MALEVAL, 2019, p. 117).

O papel dessa identidade proporciona um misto de ser e parecer que se ajusta a uma mescla entre a seriedade e a autenticidade de aparências dentro das normas sociais. Então, a adesão ao misto de parecer e de ser faz com que o ser falante constitua uma personalidade rígida baseada no “como se”. A aspiração pela ordem desses sujeitos se coloca como defesa com a finalidade de minimizar os efeitos intoleráveis da ambiguidade (MALEVAL, 2019, p. 117). Em virtude de se tornarem escrupulosos para com as normas, esses sujeitos se tornam verdadeiros normopatas.

Enfim, a super-identificação tem a função de suplência e de estabilização na psicose, em razão de que o nome tem um papel de “como se” fosse um patronímico (MALEVAL, 2019, p. 129).  A pluralização dos nomes do pai é possível inclusive para as neuroses nas quais cada sujeito encontra sua maneira de fazer valer a função paterna. A suplência se ancora na função de limitação, que opera sobre o gozo como a castração, onde houve uma falha na significação fálica (MALEVAL, 2019, p. 45).

A escrita pode prestar-se a uma estabilização na psicose. Contudo, pensar que um psicótico se cura escrevendo é insuficiente. Os hospitais psiquiátricos estão cheios de oficinas de escritas. A escrita não pode constituir-se como uma demanda de quem assiste o psicótico. Assim, se o falasser escreve ou toma a iniciativa espontânea de escrever, não se deve interpretar o escrito do psicótico. Mas, deve-se permitir que ele possa manter a ordem das palavras, apoiando-se na dita escritura a qual tem sempre o estatuto de um S1, que se repete na esfera da letra (LAURENT, 1989, p. 30).

Um dos elementos que contribuem para a estabilização na psicose é, sem sombra de dúvida, o manejo da transferência em que o analista assume a função de testemunha e de secretário do alienado. Quando o analista se coloca na posição de testemunha, ele pode favorecer uma articulação entre a linguagem e a alíngua, garantindo uma nova ordem fora do discurso (LAURENT, 1989, p. 33). Como secretário do alienado, o analista deve tomar o relato do psicótico ao pé da letra (LACAN, 1955-56/1985, p. 236).

No caso de Pankejeff, a estabilização não passava por decodificar enigmas em significações, mas de fortalecer o narcisismo que funcionara como uma armadura, como uma espécie de falso ego, cujo papel era o de delimitar as bordas do corpo. A estabilização se dera por duas estratégias: primeiro, mediante o narcisismo, como “o paciente mais celebre de Freud” que funcionara como uma prótese para o ego; e, segundo, por meio da nomeação de “O homem dos lobos”, cunhada pelo movimento psicanalítico, que lhe garantiu a sobrevivência e lhe assegurou um lugar especial e de exceção no laço social (LACAN, 1975-76/2007, p. 146).
Suplência

Lacan recorre aos escritos de James Joyce, particularmente o livro O retrato do artista quando jovem, para descrever um acontecimento de corpo no qual Joyce relata uma experiência na infância de ter sido batido pelos seus colegas de sala quando foi encurralado contra um arame farpado. Após libertar-se, rapidamente ele sente sua raiva evanescer “tão facilmente quanto uma fruta que é despida de sua pele macia e madura”. Nessa quase ausência de afeto, que naturalmente seria uma reação à violência física, o menino toma distância de seu corpo, deixando-o como uma casca (LACAN, 1975-76/2007, p. 37).

Como Joyce havia conseguido, através de sua arte, suprir sua carência paterna, Lacan assinala que ele fez uma suplência. Essa suplência pode ser definida em três planos. Como Joyce não pode contar com o significante Nome-do-pai, o que veio ocupar esse lugar foi, do ponto de vista da dimensão simbólica, a vontade de fazer um nome para si, que não fora reduzido à demanda de reconhecimento.

Assim, foi produzindo o seu nome que Joyce se manteve no sentido fálico. Do ponto de vista do imaginário, Joyce, segundo Lacan, criou um imaginário de suporte, um imaginário de segurança. Trata-se de um imaginário duplicado como um êxtase do ego, por onde Joyce enoda o simbólico e o real. Portanto, a suplência em Joyce destaca como a escrita, como um quarto nó, amarrou os três registros – real, simbólico e imaginário. O imaginário ganha profundidade quando esse imaginário é em latim e totalmente alheio à estrutura de Joyce.  Lacan comenta que há um imaginário duplicado em Joyce que se encadeia com o real. Trata-se de um imaginário encadeado no real de seu gozo.

Pode-se dizer que Pankejeff conseguiu uma estabilização e, de certa forma, até alguma função de suplência com a nomeação de “O homem dos lobos” ou de ser nomeado como “o paciente mais célebre de Freud”. Contudo, ele jamais alcançou o estatuto de sinthoma. A suplência de Pankejeff pode ser verificada mediante o fato de que ele conseguira, através do narcisismo, amarrar o real referente à corrente mais arcaica e profunda, dita feminina; a corrente masculina, inscrita no registro simbólico e, por fim, a corrente fóbica, na qual ele era objeto de decoração no plano imaginário. Enfim, para o analista, é necessário localizar os pontos de suplências, os enodamentos nos pontos de falhas na cadeia borromeana, com a finalidade de protegê-los, de cuidar para que eles não se soltem.

 

Sinthoma

No último ensino, Lacan se inspira na prática da escrita de James Joyce para elaborar o conceito de sinthoma. Miller assinala que foi Joyce que despertara Lacan de seu sono dogmático (MILLER, 2009, p. 134). Então, foi a experiência de Joyce com a escrita que despertou Lacan de seu sonho dogmático com o simbólico para alcançar novas elaborações. Lacan descobre com Joyce que o nome próprio oferece consistência ao Um-corpo. Vale dizer que Joyce é a encarnação do sinthoma na medida em que ele é desabonado do inconsciente e não é apadrinhado pelo Outro. Logo, o sinthoma é a encarnação do que há de mais singular em cada falasser (MILLER, 2009, p. 141).

Lacan, na medida em que propõe ler de uma outra maneira, recomenda uma nova ortografia, uma ortografia arcaica, com fins de escrever o sintoma, de modo que ele possa ser lido com sinthoma. Ler de outra maneira, no último ensino de Lacan, implica em um novo léxico, repleto de neologismos (MILLER, 2009, p. 136).  Assim, no final de seu ensino, Lacan está mais interessado em escutar o sinthoma do Um do que o discurso do Outro (MILLER, 2009, p. 141).

No último ensino, o amor de transferência se apaga em razão do desaparecimento do sujeito suposto saber, de maneira que o falasser que dialoga sozinho recebe sua própria mensagem sob a forma invertida. Afinal é o falasser que sabe sobre si e não o sujeito suposto saber (LACAN, 1976-77). Na análise do Um que dialoga sozinho, o analista faz a função de furo, como uma espécie de tonel das Danaides, que esvazia o sentido, constituindo o insucesso do inconsciente, que resulta em um gozo cujo atributo positivo implica numa satisfação do sinthoma (MILLER, 2012b, p. 55).

Logo, uma satisfação sinthomática ligada ao Um e ao corpo se apresenta como uma nova solução para o falasser. Trata-se de uma repetição articulada ao furo, ao troumaisme, resultado da passagem do real impossível para o real contingente. Assim, na medida em que o sinthoma é indecifrável, a experiência analítica, por fim, coloca em evidência a marca de satisfação com a letra de gozo. Com efeito, trata-se de identificar-se com o sinthoma e, tomando certa distância, assentir com sua identidade sintomal. A tomada de certa distância do sinthoma, com o qual se está identificado, tem a finalidade de se poder fazer alguma coisa com ele, saber manipulá-lo, saber se virar com ele, com esse resto que é do registro da existência (MILLER, 2009, p. 143).

 


Referências 
ALVARENGA, E. A transferência e seu manejo nas psicoses. Revista Arteira, n. 10, out. 2018. Disponível em: <http://revistaarteira.com.br/index.php/manejo>. Acesso em: 26 abr. 2020.
BROUSSE, M-H. A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso. Latusa digital, ano 6, n. 38, set. 2009. Disponível em: <http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_38_a1.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2020.
LACAN, J. (1932). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
LACAN, J. (1955-56). O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Inédito).
LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. (1976-1977). Vers un signifiant nouveau. Ornicar? n. 17-18, Seminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévue s’aille à mourre. (Inédito).
LAURENT, E. Limites em las psicoses. In: Estabilizaciones em las psicoses. Buenos Aires: Manatial, 1989.
LAURENT, E. L’efficacité de la psychanalyse. Acte de l’ECF, out. 1998.
MALEVAL, J.-C. Ratage du nouage borroméen. In: Repéres pour la psychose ordinaire. Paris: Navarin éditeur, 2019.
MILLER, J.-A. La psicosis ordinária: la Convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. Pièce détachées. La cause freudienne, n. 61, 2004-2005.
MILLER, J.-A. Effet retour sur la psychose ordinaire. Quarto – Revue de psychanalyse publiée à Bruxelles. Retour sur la psychose ordinaire. École de la Cause Freudienne2009.
MILLER, J.-A. Clínica de la psicoses bajo transferencia. In: El hombre de los lobos, um seminário de investigación psicoanalítica. Barcelona: Editorial Gredos, 2011a.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. In: Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011b.
MILLER, J.-A. A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012a.
MILLER, J.-A. El tonel de las Danaides. In: La fuga del sentido, Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2012b.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 07/10/2022.



Cisão do eu no processo de defesa — Ichspaltung

Lucia Mello
Psicóloga, psicanalista, membro da EBP/ AMP
Mestre em psicologia e professora do IEC PUC-MINAS

Resumo: Comentário sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientado pelas leituras de Lacan e Miller sobre o tema, que resultaram em contribuições fundamentais para a atualidade do trabalho clínico. Há, na cura psicanalítica, uma experiência da Spaltung, que atravessa dois grandes momentos do ensino de Lacan, do simbólico ao real, e preserva, nesse percurso, seu elemento de surpresa.

Palavras-chave: Cisão; Ichspaltung; defesa; inconsciente; corpo; real; pulsão; perturbar a defesa.

SPLIT OF MYSELF IN THE DEFENSE PROCESS — ICHSPALTUNG

Abstract: A commentary about Freud’s unfinished article “Split of Myself — Ichspaltung” guided by readings of Lacan and Miller, which resulted in fundamental contributions for the current clinical work. There is a Spaltung experience in the psychoanalytic cure that crosses two key moments in Lacan’s teachings, from symbolic to real, and preserves in this course its element of surprise.

Keywords: Split; Ichspaltung; defense; unconscious; body; real; drive; disturb the defense.

 

CAROLINA BOTURA. AU

 

“Uma cisão do Eu — Ichspaltung” reúne o paradoxo de artigo inacabado, publicado postumamente em 1938, escrito em 1924. Tal como ocorre em algumas obras sinfônicas, nas quais o compositor é assediado por uma frase, uma questão, um tema impossível de responder, a obra de Freud indaga, duvida e insiste no decorrer do trabalho incessante, da inquietação não respondida na travessia da construção de um método, verificado e transformado ao longo da experiência psicanalítica.

No início desse artigo, Freud diz que não sabe o que comunicar, dividido que está entre algo há muito conhecido e “algo totalmente novo e estranho”. O que seria? Há muito conhecido estão os conceitos de trauma, recalque, defesa, Eu, repetição, pulsão, satisfação, proibição, realidade, castração, sexualidade, fantasia, sintoma, inconsciente, entre outros.

Desde o início de sua pesquisa, desde os “Rascunhos”, o “Projeto”, os “Sonhos”, os “Estudos clínicos”, o conflito psíquico decorrente de um perigo real e intolerável, surge a dupla exigência variável, entre satisfação pulsional e proibição pela realidade, recalque e desejo. A defasagem, o desacordo entre exigências opostas, o dueto entre duas classes de pulsões além da incompatibilidade representativa são indagações persistentes em Freud.

No artigo inacabado, uma criança responde com essa duplicidade ao conflito diante da ameaça de castração, ameaça que deslizava entre registros diversos e parece nunca localizada no órgão. A solução eficaz sustentada pela Spaltung, cisão do Eu, evidencia o incurável de uma fenda originária que nunca cicatriza e aumenta à medida que o tempo passa. Nesse caso, o menino manobra a ameaça de castração temida, preserva a masturbação e opera deslocamentos através do fetiche, do sintoma e da fantasia. A função sintética do Eu é perturbada, deixando como resto uma sensibilidade angustiante nos artelhos, interpretada por Freud como expressão mais clara da castração, associada ao temor e à fantasia da devoração pelo pai-cronos.

Freud, no “Compêndio de psicanálise”, outro artigo inacabado, retoma a hipótese da cisão do Eu para além da neurose e psicose, visto supor questão mais ampla das “alterações” no processo de defesa, e constata que a função sintética do Eu, sustentada em vários artigos anteriores, se vê abalada pelos efeitos dessa fenda originária. Nos capítulos seguintes relê a cisão do Eu sob vários ângulos, examinada entre as instâncias psíquicas, entre pulsão e realidade, entre realidades diversas, entre o que nomeia mundo interno e mundo externo, diante do reconhecimento da diferença sexual, entre sonho e realidade. O sintoma, a fantasia, o fetiche, a angústia, pela via do temor, as várias formas de negação podem ocorrer como tentativas de conciliação, evitação, negação, recusa, recalque, mas não modificam as duas atitudes contrárias e independentes que se realizam, onde a negação é suplementada pelo reconhecimento.

Se, anteriormente, Freud “apresentava um corpo, campo de batalha pulsional entre e Eu e as pulsões parciais” (MILLER, 2003, p. 366), em Lacan, a dupla impossibilidade acarretada pela demanda, aquém e além do desejo, consuma a fenda — spaltung — sofrida pelo sujeito. O desejo, diz Lacan, não é nem o apetite de satisfação nem a demanda de amor, mas a diferença entre os dois. Desejo sempre agarrado à proibição, visto que o sujeito é ele mesmo marcado pela spaltung significante, subordinação escrita por vezes na tela da fantasia.

A fenda surge também como o preço a pagar na constituição do inconsciente. Preço terrível evidenciado no comentário de Lacan sobre a “Juventude de Gide”, além de frequente nas consequências clínicas de um desejo cindido em duas vias — o menino Gide, situado entre morte e erotismo masturbatório, confinado ao desejo clandestino, prisioneiro das vicissitudes de ter sido amado, mas não desejado. Máscara terrível, outra leitura lacaniana concernente ao ideal.

No livro 11 de seu Seminário, Lacan situa no jogo do Fort-Da não apenas a repetição imaginária da saída da mãe como causa da Spaltung, mas aponta também que “o que o sujeito visa é aquilo que não está lá enquanto representado” (1964/1985, p. 63).

Trata-se aqui de um breve percurso através de artigos situados nas décadas de 50 e 60 que ilustram uma clínica na qual o inconsciente demonstra os impasses entre desejo e a lei, da tela surpreendente da fantasia portadora das nuances fugidias entre sujeito e o objeto, da fixidez do gozo mortífero, perspectivas marcadas pela falta irremediável de um significante no campo do Outro. Impasses em uma construção cuidadosa.

O artigo “Cisão do Eu” prenuncia outra indagação sobre a defesa; parece deter-se diante não apenas do fracasso de síntese do Eu, mas também de algo sem nome, “algo totalmente novo e estranho”. É preciso lembrar que Spaltung pode ser traduzido por separação, desdobramento, divergência, racha, fissura, cisão, elisão, divisão originária, lugar do trauma.

A falta de palavras, a incompatibilidade verificada desde a cena inaugural da hipnose, no nascimento da psicanálise — trauma da sedução, da sexualidade, das palavras que faltam na angústia, assim como nos chamados traumas de guerras, inicialmente enfrentados com a técnica da pressão, seguida das perguntas sobre a causa do sofrimento —, encontrava resposta incompatível. Defasagem entre a demanda do analista e as outras palavras da paciente, a Outra cena entre a pulsão e consciência do eu permanecia, como contradição, discrepância, desacordo.

O traumatismo persiste — indicativo, segundo hipótese freudiana, de aglomerados formando um núcleo separado do Eu que retornam, desconhecidos pelo paciente, como se fossem inéditos, insuspeitos. A repetição em cada clínica demonstra progressivamente o quanto esse núcleo separado do Eu escapa à apreensão.

Anos mais tarde, no depoimento de Suzane Hommel, de sua análise com Lacan, a cena infantil traz o trauma, o conflito entre pulsão e realidade, cena repetida no pesadelo diante da palavra Gestapo, que evocava a cena da morte iminente das famílias judias — o horror da repetição. Mais uma vez, a primeira vez. No lugar das palavras carregadas de sentido, visando o restabelecimento da memória histórica, indagada por Freud no caso da criança ameaçada pela castração, o gesto sobre a pele de Hommel provoca o deslizamento metonímico entre os dois idiomas. “Geste à peau“, traduz a analisante, dando nome a essa alguma coisa, esse algo que incide sobre o real da cena, e, com isso, o sofrimento se torna menos invasivo. Menos. Lacan não demanda palavras, nesse outro tempo, para construção da cena traumática. Suzane formula sua pergunta: “o trauma de qualquer sujeito não é essa fissura que tentamos revestir com elementos de nossa história?” (HOMMEL, 2022, p. 33).

Essa análise indica ato psicanalítico diverso da interpretação anterior, muda de lugar, vai no sentido oposto através de outro caminho, outra configuração. Avesso e direito não excludentes da experiência psicanalítica, mas que privilegia ainda a singularidade do discurso e o desconhecimento do gozo.

O comentário muito esclarecedor de Jean Hyppolite, na década de 50, sobre a tradução da Verneinung, de Freud, e a resposta a esse comentário provocaram em Lacan um remanejamento das questões fundamentais psicanalíticas, resultando em “perturbar um equilíbrio psíquico que descansa na Spaltung“. Esse trabalho de pesquisa e formalização de cada conceito, devidamente orientado pela clínica, vindo de Lacan promove a passagem progressiva do tratamento sobre a resistência inaugural situada nas interpretações do analista para a incidência sobre o real que convoca a responsabilidade subjetiva não apenas na neurose ou psicose, mas na diversidade da clínica.

A leitura do caso “O homem dos lobos”, fragmento citado por Freud no artigo, mereceu, depois da tradução de Hyppolite, diferenciações mais precisas entre recalque, recusa e forclusão. Mais que um caso clínico, a construção conduzida por Lacan destaca elementos preciosos para a experiência da psicanálise e repercute como acontecimento sobre a teoria. Lacan pode demonstrar, a partir da cena infantil do dedo cortado, que o sentimento de realidade e irrealidade demarcam duas bordas experimentadas pela criança, que demonstram muito precisamente os limites entre alucinação e delírio, que a falta quando não advinda no simbólico reaparece no real.

A cena, minuciosamente examinada por Lacan, diferencia a rememoração, que conserva sua articulação simbólica, enquanto a reminiscência impede o sujeito de elaborar sua história, situando-as em temporalidades diferentes, sobretudo rearranjando resistência e defesa em dimensões opostas: a primeira ao lado do sintoma, a segunda decorrente da pulsão. A diferenciação entre resistência e defesa ultrapassa, a partir desse caso, a questão estrutural entre neurose e psicose, visto que a defesa por qualificar a relação com a pulsão fora do significante implica extrema variedade: silêncio, fixidez e desconhecimento do gozo de cada um. “A defesa qualifica uma relação com a pulsão a respeito da qual a interpretação não é a operação prescrita pela psicanálise” (MILLER, 2003, p. 52). Qual seria a operação mais indicada para lidar com a defesa?

Finalmente essa construção franqueia nova leitura do inconsciente, que, por sua vez, amplia os horizontes da clínica contemporânea. É preciso considerar que esse real não é algo suprimido dos traços primordiais, visto se encontrar presente aguardando, digamos assim, um tradutor a sua altura, desde que proposto como hipótese por Freud, no “Projeto para uma psicologia científica”, na Bejahung, o assentimento primordial, oposto à Ausstossung, a expulsão de algo mau — juízos de atribuição e existência, essenciais no processo de responsabilidade do sujeito. Esse assentimento primordial acarreta, curiosamente, para alguns, a cisão irremediável entre afeto e representação. Denuncia a presença de uma exclusão do sentido, exclusão interna e externa, tempos depois trabalhados por Lacan através do conceito de extimidade.

A Outra abordagem do conceito de defesa resultou no percurso lacaniano através da vastidão desse “algo novo e estranho”. Algo situado por Freud como o inconsciente não recalcado, mas, em Lacan, um texto escrito em outro lugar que não a palavra — marca, traço, signo, sobretudo letra —, não apenas no corpo simbólico ou imaginário, mas na dimensão real do corpo. Se o inconsciente inclui um corpo real, a melhor expressão proposta por Lacan é falasser (parlêtre). Essa inclusão convoca outro trabalho, outro “giro”, como diz Miller, da interpretação como perturbação, que convoca a materialidade da palavra, privilegia a surpresa. O sujeito e seu gozo, a falta e a substância. O corpo afetado pela letra ou, em algumas situações, a letra inventando um corpo.

Se a defesa permanece a mesma, situá-la do lado da pulsão, da reminiscência, do real convoca o sujeito a responder de outro modo. Como demonstra a diversidade da clínica contemporânea, abre novos campos de pesquisa. A psicanálise, com isso, tem chance de acompanhar as intensas transformações da civilização, sempre atuais, o que provoca talvez considerá-la em três grandes grupos: mais um recurso operado em três registros, simbólico, imaginário e real, e suas possíveis amarrações onde o sinthoma, em alguns casos, é prevalente.

O último ensino de Lacan ilumina uma noção para além do sentido e do saber, experiência também convocada pelo falasser, por veredas diversas do mal-estar na civilização, situada a partir do feminino e da clínicas do real apresentadas pela criança na psicose e no autismo. A experiência do real resulta em desafio surpresa para a clínica psicanalítica.

O novo mal-estar na civilização

Através das batalhas políticas e sociais no campo sempre minado dos interesses econômicos; dos corpos mutantes, telas a céu aberto nas quais o amor e o ódio se inscrevem como tatuagem; das sexualidades cada vez mais fluidas; das adicções diversas; dos laços sintomáticos que revisitam e atualizam formas de submissão a senhores tirânicos, em formas de servidão voluntária; das crenças marcadas por alucinações e delírios coletivos, a clínica voltada para outras formas de mal-estar convoca a presença fundamental da psicanálise, visto que a instabilidade atual pode provocar o ato analítico instrumentado por novas construções.  

Clínica do feminino

Formalizada por Lacan a partir do Seminário 20, essa clínica encontra-se presente desde suas lições iniciais, visto que as mulheres estão na origem da psicanálise. Lendo Freud, enfrentando o silêncio e os enigmas das histéricas, Lacan extrai do vazio a questão da inexistência, com e sem corpo. Através da sexuação, ele demonstrará o diálogo impossível com os três registros de falta e o papel suplementar das identificações, sempre mentirosas.

Uma das grandes contribuições lacanianas consiste em demonstrar o não-todo para além da sexuação como o que não se pode dizer nem escrever. Diante da falta irremediável de um significante no campo do Outro, a defesa no real traz elementos como aquilo com o que a mulher não tem relação, e é nisso que ela se duplica:

“a clínica da defesa diante do vazio é comum a todo ser falante. Mas a dificuldade feminina se joga na descontinuidade do enlace significante. A outra para si mesma demonstra esse ponto de impossível — de representar e de eludir: onde ela goza se pensa outra” (MASIDE, 2022, p. 269).

Como perturbar essa defesa?

Campo aberto à pesquisa da qual há muito o que extrair nos tratamentos psicanalíticos atuais, principalmente do contraponto essencial do não-todo na política.

Clínica da psicose

As investigações lacanianas sobre a psicose encontram sua expressão no plural bem destacadas na pesquisa empreendida por Sergio de Campos (2022). Lacan refaz suas hipóteses até extrair de seu último ensino a transmissão mais contundente sobre a clínica da psicose. Se, na “Direção do tratamento” (1966/1998), ele diz que o desejo aponta a impossibilidade da fala reduplicada na fenda spaltung pelo simples fato de falar, os casos clínicos e a releitura da Bejahung freudiana produziram mudanças consideráveis. Devido à natureza de sua alienação, a prevalência do real e as vicissitudes com seus objetos, o sujeito do inconsciente psicótico não será agente de uma enunciação, mas permanece identificado ao lugar vazio onde o Um é sem destinatário.

Em um trabalho incessante de construção de uma realidade, o tratamento é possível através de diversos recursos — linguagem, corpo, redução de um excesso de gozo —, suplências diversas que promovem a estabilização e reconfiguram a psicose na sua vertente ordinária. Ao lado desse trabalho ocorre a potencialização das defesas diante da sombra da morte, e o falasser lança para a clínica psicanalítica indagações sobre como perturbar essas defesas através de novas configurações.

Clínica do autismo

A pesquisa psicanalítica sobre o autismo, iniciada com Rosine e Robert Lefort nos anos 80 e desenvolvida posteriormente por Laurent, Maleval e Miller, entre outros, encontra nessa clínica uma defesa radical e precoce contra a linguagem e o gozo da palavra, na qual nenhuma troca vem mediatizar sua relação a um Outro que não existe. Estrutura diferenciada da psicose, decorre da foraclusão do furo da linguagem. Na clínica do real, na qual as inúmeras autobiografias e biografias dos autistas informam, o tratamento contínuo é realizado pelo sujeito contra esse sistema defensivo — a angústia, a construção de recursos específicos — para criar um Outro sob medida, um corpo, uma voz, enfim, para se fazer existir. A batalha dos autistas para se fazerem reconhecer e respeitar é surpreendente porque aponta a importância de um silêncio eloquente.

A defesa autista se caracteriza pela construção de uma borda que se desloca do isolamento para uma borda dinâmica que pode, inclusive, ser apagada. A localização do gozo sobre uma borda constitui finalmente uma defesa característica do autismo. Uma das maiores contribuições ao autismo implementada por Lacan foi destacar o autismo como categoria clínica fundamental, o status nativo que designa, a um só tempo, o sujeito e o corpo, ou seja, o falasser. Como categoria clínica fundamental, reduz o inconsciente ao fato de falar sozinho. É a conversa do real com o real que ocupa um lugar essencial na clínica das crianças muito pequenas, que ainda não passaram pela fala mentirosa e falam com Um-corpo. Lalíngua. Nessa clínica, perturbar a defesa seria, pelo contrário, a construção de um recomeço, de uma existência?

Para concluir, é preciso citar um trecho do emocionante elogio de Lacan a Freud em “A direção do tratamento”, a respeito do artigo “A cisão do Eu — Ichspaltung“:

“Aqui se inscreve a Ichspaltung derradeira na qual o sujeito se articula com o Logos, e sobre a qual Freud começando a escrever nos ia dando, na última aurora de uma obra com as dimensões do ser, a solução da análise “infinita”, quando sua morte ali veio apor a palavra Nada” (LACAN, 1998, p. 643).

 


Referências
CAMPOS, S. Investigações lacanianas sobre as psicoses: as psicoses extraordinárias. vol. 1. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
CAMPOS, S. Investigações lacanianas sobre as psicoses: as psicoses ordinárias. vol. 2. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
FREUD, S. (1924) Cisão do Eu (Ichspaltung). Compêndio de psicanálise e outros trabalhos inacabados. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
GUÉGUEN, P. G. Defesa (desmontar a). Scilicet: um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
HOMMEL, S. Uma História de família no tempo do nazismo. Correio 87. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise. Abril, 2022.
LACAN, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1954) Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1958) Juventude de Gide ou a letra o desejo. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MALEVAL, J-.C. La différence autistique. Saint Denis: PUV, Université Paris 8, 2021.
MASIDE, M. Clínica da sexualidade feminina. Scilicet: a mulher não existe. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2022.
MILLER, J-.A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J-. A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.



Perigos e defesas: a análise finita e a infinita

Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, membro da EPB/AMP

Resumo: O texto acompanha o percurso de Freud sobre o tema do final de análise tendo como referência o artigo “A análise finita e a infinita”, que trouxe desdobramentos importantes na psicanálise. No entanto, Lacan, ao postular a inexistência da relação sexual, desafia a concepção de Freud e abre a possibilidade de um passe de ordem lógica.

Palavras-chave: Psicanálise; finita; infinita; passe.

DANGERS AND DEFENSES: FINITE AND INFINITE ANALYSIS

Abstract: The text follows the path of Freud on the theme of the end of analysis with reference to the article “The finite and infinite analysis” that brought important developments in psychoanalysis. However, Lacan, by postulating the inexistence of the sexual relationship, challenges Freud’s conception and opens up the possibility of a pass of logical order.

Keywords: Psychoanalysis; finite; infinite; pass.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Freud publicou “A análise finita e a infinita” em 1937, mas esse tema já o preocupava desde 1900. Em carta para Fliess, de 16/04/1900, relatava sua inquietação com o caráter “aparentemente sem fim de um tratamento analítico” (FREUD, 1937/2017, p. 362). No entanto, foi apenas em 1937 que dedicou um trabalho inteiro a esse tema. São dignos de nota dois eventos importantes que ocorreram antes da data dessa publicação: as desavenças com Otto Rank (que havia proposto um modelo de terapia breve baseado na teoria de caráter traumático do nascimento) e as polêmicas com Ferenczi, que se queixava da pouca atenção recebida por Freud (“aos sentimentos e fantasia negativos em parte transferidos”) (FREUD, 1937/2017, p. 362), que impedia o fim de sua análise.

Na verdade, esse último ponto foi o que tornou ainda mais relevante a questão que concerne à análise dos próprios psicanalistas e que fez com que Ferenczi formulasse a “segunda regra fundamental” da psicanálise: a análise (finalizada) do analista (FREUD, 1937/2017, p. 362). Essa discussão foi retomada por Lacan nos anos 1960, quando propôs a articulação lógica entre o final de análise e o advento de um psicanalista.

O título desse artigo foi traduzido pela editora Autêntica como “A análise finita e a infinita”, diferentemente de “Análise terminável e interminável”, da Standard. O tradutor explica a escolha ao mencionar a existência dos sufixos usados na língua alemã e que o “infinita” tem a conotação de “sem fim”.

Freud começa seu texto dizendo que a análise é um processo a longo prazo, e, por essa razão, justifica sua preocupação em relação à redução de seu tempo. Cita a análise de um jovem russo1, na qual tentou acelerar o tratamento dando ao paciente um “prazo fixo”. Cito-o: “esclareci ao paciente que aquele ano seria o último do tratamento, independentemente dos progressos que ele viesse a registar no tempo ainda restante” (FREUD, 1937/2017, p. 317). A consequência foi o enfraquecimento da resistência, recordação das lembranças e encontro das relações para compreender e solucionar sua neurose. No entanto, anos mais tarde o paciente retornou a Viena em estado lastimável, obrigando o psicanalista a voltar a atendê-lo com o intuito de ajudá-lo a dominar uma parte da transferência não resolvida. Depois disso e durante uma década, o paciente voltou a ser acometido por episódios da doença, sendo tratado pela Dra. Brunswick.

Freud continuou tentando introduzir o método do “prazo fixo” com outros pacientes concluindo ser possível certa eficácia, mas não a garantia da consecução completa da tarefa. Uma parte do material se tornava acessível, e outra permanecia reclusa, perdendo o esforço terapêutico.

As considerações sobre a técnica da psicanálise e a possibilidade de acelerar o processo o levaram a refletir “se (haveria) um término natural de análise, ou se (seria) possível levar uma análise a até tal término” (FREUD, 1937/2017, p. 319). Essas considerações abriram o leque para uma discussão maior, como:

O que é o fim de análise? 1. É quando o paciente não sofre mais com seus sintomas? 2. Quando o analista julga que não há mais possibilidade de temer a repetição de processos patológicos? 3. Ou quando a influência sobre o paciente foi levada a tal ponto que uma continuidade de análise não promoveria nenhuma outra mudança?

As respostas para essas perguntas dependiam de comprovação clínica, e, ao se debruçar sobre a etiologia dos distúrbios, Freud afirmou que essa é mesclada: “trata-se ou de pulsões muito fortes, ou seja, que se rebelam contra a domação pelo Eu, ou do efeito de traumas precoces, isto é, que ocorreram antes do tempo, dos quais um Eu imaturo não conseguiu se apoderar” (FREUD, 1937/2017, p. 320). Constata-se, então, que a etiologia é efeito conjunto dos dois momentos: um constitucional e outro acidental. Quanto mais forte o primeiro, maior a possibilidade de um trauma levar à fixação, deixando um distúrbio evolutivo como resquício, e, quanto mais forte é o trauma, maior será a certeza de que ele expressará a sua lesão.

O psicanalista sublinha a importância da identificação dos obstáculos que impedem a cura analítica e ilustra esse ponto com os casos de dois pacientes. O primeiro é o de um analisante que, em dado momento da análise, apresenta uma transferência negativa em relação ao analista, e o segundo, o caso de uma jovem acometida por dores de natureza histérica. Esta última ficou livre de seus sintomas após 9 meses de tratamento, mas, 14 anos depois, ao ser operada do útero, desenvolveu um quadro confusional e, segundo Freud, tornou-se inacessível a uma nova tentativa analítica.

Os casos descritos acima foram escolhidos por ele para discutir o tema do fim de análise. Os céticos dirão que não é possível um fim de análise duradora e os otimistas dirão que sim, pois a técnica psicanalítica evoluiu desde a conclusão dos dois casos. As expectativas dos otimistas suscitam questões: 1. É possível eliminar um conflito pulsional definitivamente? 2. é possível “vacinar” uma pessoa contra todas as outras possibilidades de conflito?

 

Parte III

A partir deste momento, considero mais didático seguir a forma com a qual Freud dividiu seu texto. Escolhi começar aqui a dividi-lo a partir da parte III.

O ponto principal aqui é a discussão sobre o enigmático fator quantitativo e “ao que Freud chama de (sua) potência irresistível (…)” (MILLER, 2018, p. 43). Nas palavras de Miller:

“uma elucidação significante não é suficiente para operar; resta alguma resistência, não a do paciente, mas a da própria coisa, uma resistência do isso, da libido, de sua viscosidade, da fixação. O encantamento provocado pela leitura dos casos de Freud está ligado ao mito de uma libido fluida, que estaria inteiramente na decifração, como se pudéssemos escrever no quadro a operação e seu resultado, e em seguida mostrá-la ao paciente, que, nesse momento, se levantaria, como Lázaro, e iria embora, liberto do sintoma. Quando Freud diz: ‘Esqueci o fator econômico’, ele extrai essa conclusão de suas dificuldades com seus pacientes. Ele revela isso com base no modo pessimista de que ‘Análise finita e infinita’ é testemunha” (MILLER, 2018, p. 43).

Retornando ao texto de Freud, vemos que este apresenta três fatores determinantes para a oportunidade da terapia analítica: 1. influência de traumas; 2. força pulsional constitucional; 3. alteração do Eu. Dessas, a que mais interessa é a força pulsional (FREUD, 1937/2017, p. 325). Diante desse ponto, o psicanalista pergunta sobre os efeitos a longo prazo da análise, ou seja: é possível resolver de forma duradoura e definitiva um conflito entre a pulsão e o Eu? Ou a uma exigência pulsional patogênica em relação ao Eu? (FREUD, 1937/2017, p. 326).

Mas o que significa resolução duradoura? Freud propõe o termo “domação” da pulsão, que “quer dizer que a pulsão foi acolhida completamente na harmonia do Eu e é acessível através das outras aspirações no Eu, não trilhando mais os seus próprios caminhos em busca de satisfação” (FREUD, 1937/2017, p. 326). No entanto, pode-se constatar a volta dos sintomas em algumas situações em que o sujeito é acometido pela força de um novo trauma, causando o tombamento do Eu:

“No caso de uma força pulsional excessivamente grande, o Eu amadurecido e apoiado pela análise não consegue realizar a tarefa, de modo semelhante ao que acontecia anteriormente com o Eu desamparado; o domínio da pulsão melhora, mas permanece imperfeito, porque a transformação do mecanismo de defesa é apenas incompleta. Não há nisso nada de espantoso, pois a análise não trabalha com recursos de poder ilimitados, mas com recursos limitados, e o resultado final depende sempre das relações de forças relativas das instâncias em combate mútuo” (FREUD, 1937/2017, p. 332-333).

 

Parte IV

Vemos a seguir que Freud levanta duas questões importantes, uma concernente à proteção do sujeito contra futuros conflitos pulsionais, e, outra, à profilaxia. Cito-o: será que “durante o tratamento de um conflito pulsional podemos proteger o paciente contra futuros conflitos pulsionais e […] é exequível e adequado despertar um conflito pulsional não manifesto naquele momento com a finalidade de profilaxia [?]” (FREUD, 1937/2017, p. 333). No fundo, essas questões levantam a problemática sobre os limites da capacidade produtiva de uma terapia analítica. A resposta é que, quando um conflito pulsional não é atual, não há possibilidade de ele ser influenciado pela análise, ou seja, a psicanálise não é profilática.

 

Parte V

Nesse ponto, abre-se a discussão sobre a importância da alteração do Eu no processo de uma análise:

“Nesse intuito, reconhecemos como fundamentais para o sucesso de nosso esforço terapêutico as influências da etiologia traumática, a força relativa das pulsões a serem dominadas e algo que chamamos de alteração do Eu. Foi apenas no segundo desses fatores que permanecemos mais tempo e entramos em mais detalhes; nessa ocasião, tivemos motivos para reconhecer a importância suprema do fator quantitativo, assim como para enfatizar o direito da perspectiva metapsicológica em cada tentativa de explicação” (FREUD, 1937/2017, p. 338).

Portanto, é necessário levar em consideração, de forma mais cuidadosa, a influência da alteração do Eu.

Segundo Freud, não é possível estabelecer uma situação analítica com os psicóticos, pois, como se sabe, em uma análise, é necessário “nos associarmos ao Eu da pessoa-objeto para submetermos porções não dominadas de seu Isso, ou seja, incluí-las na síntese do Eu” (FREUD, 1937/2017, p. 338), e, para tal operação, é necessário um Eu normal. Mesmo que um Eu normal seja apenas ficcional, como toda normalidade.

Os diversos tipos e graus de alteração do Eu dependem de dois fatores: se são originários ou adquiridos. No caso dos adquiridos, a situação é mais fácil, pois isso aconteceu ao longo do desenvolvimento desde os primeiros anos de vida. Ou seja, o Eu faz sua tarefa de mediar o Isso e o mundo exterior a serviço do princípio do prazer, mas:

“Se ao longo desse esforço ele aprender a também adotar uma postura defensiva em relação ao próprio Isso e a tratar as reivindicações pulsionais desse Isso como perigos externos, isso pelo menos em parte se dá porque ele entende que a satisfação pulsional levaria a conflitos com o mundo exterior. Então, sob a influência da educação, o Eu se acostuma a transferir o campo da batalha de fora para dentro, a dominar o perigo interior, antes que ele se transforme em exterior; na maioria das vezes, provavelmente é a melhor coisa a ser feita. Durante essa batalha em duas frentes — mais tarde, virá ainda a terceira frente — o Eu se serve de diferentes procedimentos para fazer jus à sua tarefa, ou, dito de maneira geral, para evitar perigo, angústia e desprazer. Chamamos esses procedimentos de ‘mecanismos de defesa’” (FREUD, 1937/2017, p. 339).

Logo em seguida, no texto, Freud fala do recalque, mecanismo que foi o ponto de partida para o estudo dos processos neuróticos. Ele usa como ilustração o exemplo do livro que tem partes adulteradas, censuradas e substituídas. Essa comparação mostra como o Eu está submetido ao princípio do prazer, à compulsão do princípio do prazer, pois o aparelho psíquico não suporta o desprazer, precisa se proteger o tempo todo, e, se a percepção da realidade trouxer o desprazer, a verdade precisa ser sacrificada. Conclui que conseguimos nos proteger desse perigo temporariamente, já que não é possível fugir de nós mesmos e, contra o perigo interno, não há fuga possível.

Os mecanismos de defesa servem para afastar os perigos e muitas vezes conseguem seu intuito. Contudo, é questionável se o Eu, ao longo de seu desenvolvimento, consegue prescindir desses mecanismos ou se eles se tornam um perigo por terem se fixado ali, causando sobrecarga para a economia psíquica. É claro que uma pessoa não usa todos os mecanismos de defesa possíveis, mas alguns selecionados, que irão se fixar no Eu, transformando-se em formas de reação regulares do caráter e repetidas ao longo da vida. O Eu fortalecido do adulto continua a se defender dos perigos, que, na realidade, não existem mais.

O ponto importante aqui é a indagação de como a alteração do Eu (submetida ao efeito da defesa) influencia o nosso esforço psíquico. Vê-se que o analisando repete, no percurso da análise, os mesmos mecanismos de defesa aos quais está acostumado, mas isso não torna a sua análise impossível. A tarefa da análise funciona como um pêndulo entre um pedacinho da análise do Isso e outro do Eu, ou seja, tornar consciente um pedaço do Isso e corrigir algo do Eu. Cito Freud: “O fato decisivo é que os mecanismos de defesa contra perigos antigos reaparecem no tratamento como resistências contra a cura. Decorre daí que a cura é tratada como um novo perigo, até pelo Eu” (FREUD, 1937/2017, p. 343-344). Diante desse perigo, o Eu se retira do contrato anteriormente acordado do tratamento analítico e não concorda em revelar o Isso, não permitindo que mais nenhum derivado do recalque aflore. Essa é a hora em que a transferência negativa pode aflorar, suspendendo a situação analítica.

Chama-se o efeito das defesas do Eu de “alteração do Eu”. Cito Freud: “Creio que possamos chamar o efeito das defesas no Eu de ‘alteração do Eu’, se entendermos por esse termo a distância de um Eu-normal fictício, que garante ao trabalho analítico uma fidelidade pactual inabalável” (FREUD, 1937/2017, p. 345). Diante disso, podemos afirmar que a situação analítica depende de quão enraizadas estão essas resistências da alteração do Eu.

Será que toda alteração do Eu é adquirida durante as batalhas de defesa dos primeiros tempos? É importante ter em mente que, além de o fator da defesa ter seu lado inato, há a escolha do sujeito, entre possíveis mecanismos de defesa a serem usados.

 

Parte VI

Uma fonte importante de resistência ao trabalho analítico são as diversidades do Eu, “que num outro grupo de casos seriam apontadas como fontes de resistência contra o tratamento analítico e impedimentos do sucesso terapêutico” (FREUD, 1937/2017, p. 348).

Outra fonte de resistência poderosa ao trabalho analítico é o comportamento das duas pulsões primevas: Eros e pulsão de morte. A oposição entre as duas mostra que o aparelho psíquico não trabalha apenas na vertente do prazer; há uma força destrutiva vigorosa: “Esses fenômenos são sinais evidentes da presença de um poder na vida psíquica que chamamos de pulsão de agressão ou pulsão de destruição, dependendo de seus objetivos, e que deduzimos a partir da pulsão de morte original da matéria animada” (FREUD, 1937/2017, p. 349). Importante salientar que o que está em jogo é a junção de forças e o embate das duas pulsões, pois é isso que vai explicar o colorido das ocorrências da vida.

De forma surpreendente, ao estudarmos os fenômenos que comprovam a atividade da pulsão de destruição, não nos deparamos somente com a observação de material patológico: “Inúmeros fatos da vida psíquica normal clamam por uma tal explicação, e quanto mais o nosso olhar se aguça, mais intensamente eles chamarão a nossa atenção” (FREUD, 1937/2017, p. 350).

Curiosamente e apesar de o tema ser importante, Freud decide destacar apenas algumas amostras e começa falando dos bissexuais:

“No entanto, aprendemos que, nesse sentido, todas as pessoas são bissexuais, e que distribuem a sua libido ou de forma manifesta ou de forma latente entre objetos de ambos os gêneros. Mas há algo que chama a nossa atenção: enquanto no primeiro caso as duas direções se entenderam sem embates, no segundo e mais frequente elas se encontram no estado de um conflito irreconciliável. A heterossexualidade de um homem não tolera a homossexualidade, e vice-versa. Se a primeira for a mais forte, ela conseguirá manter a última latente e afastá-la da satisfação real; por outro lado, não há um perigo maior para a função heterossexual de um homem do que o distúrbio causado pela homossexualidade latente” (FREUD, 1937/2017, p. 350).

Para explicar essa questão, Freud aposta na teoria dualista que advoga uma pulsão de morte como parceira em nível de igualdade com o Eros manifesto da libido (FREUD, 1937/2017, p. 351) e, para explicá-la, lança mão da tese de Empédocles de Ácragas, grego pesquisador, médico, político, filantropo, mago, profeta.

 

Parte VII

Nessa parte, Freud faz menção a Ferenczi em seu artigo “O problema da finalização das análises”, no qual o último garantia que a análise não é um processo interminável, mas depende da técnica e da paciência do analista. Portanto, a meta não seria o encurtamento do processo, mas o seu aprofundamento. Um dos pontos fundamentais seria a peculiaridade do analista, suas resistências e a “normalidade”. Aqui Freud fala da formação de uma forma quase pedagógica ao afirmar que

“[…] há uma razão em se exigir do analista um grau mais elevado de normalidade psíquica e correção, como parte da comprovação de sua habilidade profissional; acrescente-se a isso que ele ainda necessita de uma certa superioridade para funcionar como modelo para o paciente em determinadas situações analíticas e em outras como professor” (FREUD, 1937/2017, p. 355)

e acrescenta a importância da crença do amor à verdade, no reconhecimento da realidade.

No entanto, depois de fazer essas afirmações, fala do caráter quase impossível da profissão do analista, pergunta-se como, ou onde, adquirir a habilitação necessária nessa profissão. A resposta: em sua própria análise. Mas e a resistência do analista em sua própria análise? Como lidar com essa situação?

“[…] espera-se que a partir das motivações recebidas na própria análise que elas não se esgotem com o seu término, mas que os processos de reformulação do Eu [Ichumarbeitung] continuem espontaneamente no analisando e que todas as demais experiências sejam utilizadas nesse novo sentido adquirido. Isso acontece de fato e, conforme vai acontecendo, habilita o analisando para se tornar analista” (FREUD, 1937/2017, p. 356).

Um segundo ponto interessante é quando Freud fala do caráter singular do analista e que alguns usam mecanismos de defesa que lhes permitem desviar da própria pessoa conclusões e exigências da análise. Essa crítica pode dar razão ao poeta quando diz que, ao dar poder a alguém, será difícil que não se faça mal uso desse poder.

“Não causaria espanto se através do trabalho com todo o recalcado, que luta por satisfação na alma humana, também despertássemos no analista aquelas demandas pulsionais que ele do contrário poderia manter reprimidas. Esses também são os ‘perigos da análise’, que não ameaçam o parceiro passivo, mas sim o ativo na situação analítica, e não deveríamos deixar de enfrentá-los” (FREUD, 1937/2017, p. 357).

A resposta, segundo ele, estaria na necessidade de o analista se analisar a cada cinco anos, tornando, assim, sua própria análise, infinita.

Apesar da citação acima, Freud diz que é necessário esclarecer um possível mal-entendido, pois não considera que a análise seja sem fim, mas alerta que, nos casos de análise de caráter, é necessário não esperar um término natural.

 

Parte VIII

Continuando a discussão, o psicanalista salienta que tanto nas análises terapêuticas como nas de caráter, percebemos dois temas que se destacam com frequência: “ambos os temas estão atrelados às diferenças de gênero; um deles é tão característico do homem quanto o outro o é da mulher” (FREUD, 1937/2017, p. 358). Acrescenta ainda: “os dois temas que se correspondem são, para a mulher, a inveja do pênis — a aspiração positiva por possuir um genital masculino — e, para o homem, a aversão contra a sua postura passiva ou feminina em relação a outro homem” (FREUD, 1937/2017, p. 358). Ou seja,

“No caso do homem, a aspiração de masculinidade desde o início é totalmente sintônica com o Eu [Ichgerecht]; a postura passiva é recalcada de forma enérgica, uma vez que pressupõe a aceitação da castração, e muitas vezes são apenas supercompensações excessivas que apontam para a sua presença. Também no caso da mulher, a aspiração de masculinidade durante determinado momento é sintônica com o Eu, mais especificamente na fase fálica, antes do desenvolvimento da feminilidade. Depois, no entanto, ela é submetida àquele significativo processo de recalque, de cujo resultado, como apresentado tantas vezes, dependem os destinos da feminilidade. Muito dependerá de sabermos se uma porção suficiente do complexo de masculinidade se esquivou do recalque, influenciando constantemente o caráter; grandes porções do complexo normalmente são transformadas, para contribuir na construção da feminilidade; a partir do desejo não saciado pelo pênis deverá se criar o desejo por uma criança e pelo homem que tem o pênis. No entanto, é estranho percebermos o quão frequentemente o desejo de masculinidade é preservado no inconsciente, lá desenvolvendo sua influência perturbadora a partir do recalque” (FREUD, 1937/2017, p. 359).

Ou seja, em ambos os casos, é a oposição ao outro sexo o que sucumbe ao recalque.

Freud conclui seu texto de forma insatisfatória para si próprio, diante da impossibilidade de ultrapassar o desejo do pênis e o protesto masculino ao considerar a força do biológico em seu papel de pano de fundo.

 

Freud, Lacan e Miller

Em “Aposta no passe” (MILLER, 1980/2018, p. 13), Miller, em uma conferência de 1980, em Caracas, resume alguns pontos essenciais sobre o fim de análise. Ele afirma: “Passe, o termo usado por Lacan, assume o sentido de impasse, que, segundo Freud, corresponde ao desfecho normal da experiência analítica para todo sujeito” (MILLER, 1980/2018, p. 14).

Segundo Miller, o tropeço evocado no toda análise não diz respeito à particularidade clínica do paciente ou à falta de habilidade do analista praticante, pois Freud é muito claro ao afirmar que há um impasse de estrutura, que vale para qualquer sujeito. Ou seja, quanto mais um sujeito avança em sua análise, mais o impasse deve se manifestar. É o complexo de castração, e, especificamente na mulher, a Penisneid, essa inveja cravada no corpo. A análise necessariamente deve chegar a esse rochedo que nos leva a um paradoxo, pois o fim de análise implica um fracasso.

A diferença das perspectivas freudiana e lacaniana quanto ao fim de análise é que Lacan fala de passe em vez de impasse, mas sem, com isso, deixar de concordar com o que Freud postula. Para os dois há fim de análise, mas Lacan aposta que em seu final haja a transformação de analisante para analista, a passagem de uma posição a outra (MILLER, 1980/2018, p. 15).

Freud esperava que o fim de análise seria possibilitar ao homem ser um homem para uma mulher e à mulher ser uma mulher para um homem. É aí que há o tropeço essencial, a falha e a conclusão final de que o complexo de castração é irredutível à experiência.

Por sua vez, Lacan “indica que a questão do fim de análise não se situa no âmbito da relação sexual, que não existe” (MILLER, 1980/2018, p. 16), e para que haja fim, deve-se abdicar dessa ideia e sustentar a não relação. Ao postular a inexistência da relação sexual, ele desafia a concepção de Freud e abre a possibilidade de um passe de ordem lógica.

 


Referências 
FREUD, S. (1937). “A análise finita e a infinita”. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
MILLER, J-A et al. “Sobre o desencadeamento da saída da análise (conjunturas freudianas)”. Aposta no passe. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018.
MILLER, J-A. “Preliminar”. Cómo terminan los análisis. Olivos: Grama Ediciones, 2022.
MILLER, J-. A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.



Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior

Cristiana Pittella
AP, membro da EBP/AMP

 

Resumo: A autora faz uma leitura do texto freudiano “Neurose e psicose” (1924), servindo-se da orientação lacaniana.

Palavras-chave: Neurose; psicose; sonho; delírio; simbólico; real.

A FISSURE IN THE SELF’S RELATIONSHIP WITH THE EXTERIOR WORLD

Abstract: The author reads the Freudian text “Neurosis and psychosis” (1924), using the Lacanian orientation

Keywords: Neurosis; psychosis; dream; delirium; symbolic; real

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

 

Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi
que era um homem. Agora não sei se sou um homem
que sonhou ser borboleta, ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem.

Chuang Tzu, mestre taoísta

A questão da realidade, do ser e da existência é fundamentalmente humana. Em “Clínica irônica”, Jacques-Alain Miller (1996a) afirma que, para Freud, nada deixa de ser sonho, e, para Lacan, a propósito de Freud, se tudo é sonho, então todo mundo é louco, isto é, delirante. Assim, “diante do louco, diante do delirante, não se esqueça que você é, ou foi, analisante, e que também fala ou falava, sobre o que não existe” (p. 199).

Nesta 58ª Lições Introdutórias à Psicanálise, “Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior”, vamos trabalhar o texto freudiano “Neurose e psicose”, de 1924. Nele Freud investiga a gênese das duas entidades clínicas, neurose e psicose, e é a primeira vez que ele utiliza o termo psicose. O contexto é o da segunda tópica, em que Freud, no texto “O eu e o isso” (1923), expande o inconsciente para além do recalque ao apresentar o aparelho psíquico pelas instâncias eu, isso e supereu.

O eu encontra-se submetido às exigências do isso e do supereu, “com o anseio em servir a todos os seus senhores a um só tempo” (FREUD, 1924/2016, p. 271). Freud vai delimitar a neurose e a psicose a partir da posição do eu. A neurose resultaria do conflito entre o eu e o isso, e, a psicose, do conflito entre o eu e o mundo exterior. Ele mesmo considerará isso uma solução simplista, pois a etiologia é comum para o início tanto da neurose quanto da psicose. Trata-se de um elemento incompatível que se impõe ao eu, e este decide rechaçá-lo: “trata-se de um impedimento (Versagung), uma não realização de algum daqueles eternamente indomáveis desejos de infância” (FREUD, 1924/2016, p. 274).

A ideia de conflito entre a defesa e as moções pulsionais, de forças antagônicas, perpassa a obra de Freud. Também em 1923, em seu texto “A perda da realidade na neurose e psicose”, Freud considera mais claramente que há na neurose uma perturbação da realidade, algo que não cessa de não se escrever, e ela própria é uma fuga da realidade. O real insiste, as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer. Neurose e psicose são modalidades de defesa. Para ambas, tratar-se-á de uma perda da realidade e da criação de uma nova realidade (FREUD, 1923/2016, p. 284).

Para explicitar a origem desses conflitos e as soluções encontradas, Freud, no texto que estamos lendo, destaca, a partir de sua experiência, dois campos: o das neuroses de transferência e o das neuroses narcísicas.

Nas neuroses de transferência, o eu, a serviço das exigências do supereu (ideal), se defende das moções pulsionais através do mecanismo de defesa, o recalcamento. Ele se separa de uma parte do isso. O recalcado, entretanto, retorna pela via do compromisso — o deslocamento do afeto de uma representação para outra —, encontrando por essa transferência uma satisfação substitutiva: o sintoma.

Freud delimita três neuroses de transferência: a histeria, a obsessão e a fobia. Na fobia de Hans, o desejo pelo pai se desloca para o medo do cavalo, que o impede de circular livremente. No homem dos ratos, o desejo de matar a mulher que se ama é deslocado para a aflição de que ela tropece numa pedra, ora colocando, ora retirando essa pedra. Na histeria, o afeto converge para o corpo: em Elisabeth von R., suas dores nas pernas e dificuldade de andar surgem do desejo sexual pelo marido de sua irmã.

Para especificar o conflito nas psicoses, Freud se valerá no texto do exemplo da amência de Meynert como um paradigma das neuroses narcísicas. Trata-se de uma aguda confusão alucinatória em que a ruptura com o mundo exterior — pelo grave e intolerável impedimento de desejo por parte da realidade (Wunschversagung) — leva a uma recusa das novas percepções (verweigert). Há uma retirada da libido do mundo exterior (das significações compartilhadas, do laço social), assim como do mundo interior (perda de si e da identidade). O eu cria para si um novo mundo, fechado em si mesmo, construído de acordo com as moções pulsionais.

Freud também se refere às esquizofrenias, em que há um embotamento afetivo e uma perda de toda participação no mundo, do laço com o Outro. Há, na esquizofrenia, um retorno do gozo sobre o corpo. O esquizofrênico não se defende do real com o simbólico porque, para ele, o simbólico é real (MILLER, 1996a). Sua ironia é uma defesa.

Se há um delírio que é do real, é o do esquizofrênico. Temos por orientação nunca nutrir o delírio (MILLER, 2015), pois ele pode levar ao pior. Em uma supervisão em serviço de saúde mental, o CAPS, Rômulo da Silva (1999) relata que um paciente, invadido por uma voz que o questionava se ele seria um anjo, acaba chegando à conclusão — a partir do que trabalhava nas atividades da instituição — de que era o anjo Gabriel. Não obstante, ele se desenlaça das atividades de sua vida. Para que ele participasse das atividades, um técnico vai lhe delegar a função de “anunciar” as atividades do serviço. O paciente ganha um mais de vida; passa a correr com os braços abertos e a anunciar o que lhe era solicitado. Entretanto, para esse sujeito, o simbólico, o significante, é real, não representa o sujeito para outro significante. Seu delírio não alcança um valor de metáfora delirante. Por consequência, ele passa ao ato: “bate as asas” pulando da janela de onde morava, vindo a falecer.

Desde sua leitura de Schreber (1911) e também em “Neurose e psicose”, Freud ressalta que as formações delirantes são um remendo onde originalmente surge uma fissura na relação do eu com o mundo exterior. Elas são tentativas de cura e reconstrução da realidade psíquica, pelo retorno do gozo no significante, fazendo o Outro existir. Freud dá uma dignidade ao delírio concebendo-o não como um distúrbio do juízo, mas como algo singular, do enlaçamento do eu à realidade, ao Outro.

Schreber, um doutor em direito na Alemanha, é chamado a ocupar o lugar de juiz. Trata-se de uma função simbólica que exige do sujeito um uso da significação fálica advinda da metáfora do Nome-do-Pai. Entretanto, Schreber é confrontado com a foraclusão do significante do Nome-do-Pai em sua estrutura, não encontrando um significante que possa representá-lo junto a outro significante, o que acarreta uma ruptura de sua realidade psíquica. Essa ruptura produz uma desestabilização, a saber, um desencadeamento do significante, um desastre crescente do imaginário, e deslocaliza o gozo que retorna no corpo e no Outro do significante.

Ele escreve com rigor, em suas memórias, as imposições e abusos que sofre; como seu corpo é invadido, comandado e modificado por raios divinos, desfazendo seu mundo em cascata. Pela sua escrita podemos ler como ele vai reconstruí-lo com o delírio e encontrar um lugar, uma nomeação, no ponto onde originalmente surgiu a fissura.

A ideia de ser transformado em Mulher é o germe de seu sistema delirante. Ela lhe ocorre a partir de um pensamento de que, afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula. Esse empuxo à mulher se impõe ao sujeito e, se num primeiro momento, o horroriza, em seguida, ele o aceita como um compromisso razoável, para tornar-se um compromisso irreversível (LACAN, 1955-1956).

Com seu delírio, designando-se “A mulher de Deus”, ele pôde, durante um período, viver a sua rotina e exigências do trabalho. Sua existência, seu mundo e lugar junto ao Outro são reconstruídos com esse remendo.

A clínica universal do delírio

Formular uma clínica universal do delírio implica situarmos as diferenças entre as modalidades de delírios dos neuróticos — articulados ao fantasma, aos ideais e às exigências superegoicas — e os delírios na psicose.

Se o neurótico e o paranoico distintamente fazem o Outro existir defendendo-se do real com o simbólico, o esquizofrênico nos ensina acerca da inexistência do Outro, de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem e um uso da ironia.

J.-A. Miller nos convida, em “Clínica irônica” (1996a), a apreendermos a posição do psicanalista como irônica. Mas como tocar o real com as palavras? Como tocá-lo de boa maneira? (MILLER, 2015). Como um psicanalista, na posição irônica, permite interrogar os modos de defesa de cada sujeito?

Advertido de que não há Outro do Outro, a ironia é um modo de fazer e questionar os significantes mestres, em que as palavras podem dizer outra coisa do que dizem e, assim, confrontar o sujeito com a sua própria dimensão delirante.

Exige uma investida, uma presença do analista, que ele aporte o tom, a voz, o acento, um gesto e o olhar, para que seu ato mobilize o corpo do falasser. Nas psicoses, pretendemos apagar ou acomodar o delírio (MILLER, 2015), assim, temos que considerar quando a ironia é uma defesa mínima do sujeito e quando ela pode servir para perturbá-la.

Uma análise pode reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido para fazer um uso do sinthoma. A clínica universal do delírio também aponta para isso que, como psicanalista, trata de escutar o que se enuncia da boca do paciente, o que se vocifera do lugar de mais-ninguém (MILLER, 2015), lugar do sujeito designado desde antes que o significante desenrole suas tessituras capciosas, que fazem esquecer que aí onde se sofre, se goza.

A leitura de “Neurose e psicose” por Lacan 

A definição de defesa no texto “Neurose e psicose” recebe nomes diversos, como recusa, recalcamento e rejeição, sem uma delimitação estrutural clara, e sim mais continuísta. Contudo, Freud termina o texto perguntando-se qual seria o mecanismo análogo ao recalcamento na neurose para a psicose, através do qual o eu se desliga do mundo exterior.

Será Lacan, em seu Seminário 3: as psicoses (1955-1956), ao se referir ao texto freudiano, quem vai delimitar estruturalmente a neurose e a psicose, distinguindo-as quanto às perturbações que elas produzem nas relações do sujeito com a realidade. Ele sublinha que Freud admite um fenômeno de exclusão para o qual o termo Verwerfung parece válido, e que esse modo de defesa se distingue da negação (Verneinung), que é reconhecida por Freud como a matriz simbólica do inconsciente.

Verneinung, negação, é um momento constitutivo que delimita o mundo da realidade psíquica, um momento que está na origem da simbolização. É importante ressaltar que essa origem não está em um ponto do desenvolvimento, mas que responde a uma exigência, a uma escolha forçada. É ela que permite a emergência do mundo simbólico enquanto um sistema de articulação, de oposição entre elementos diferentes: S1– S2 , presença e ausência, dentro-fora, bom-mal…

Neurose e psicose são modalidades de negação, de defesa face ao real. Elas são ordenadas em relação a uma afirmação primária do significante (S1), a Bejahung, e, ao mesmo tempo, em que há uma afirmação, há uma expulsão definitiva (Austossung).

Esse significante (S1) — lalíngua —, que não é feito para se comunicar, marca o corpo do que Lacan nomeou em seu último ensino, falasser. Esse choque de lalíngua no corpo, que chamamos de trauma, itera fora-de-sentido num enxame de significantes S1 (essaim) que não se articulam. A realidade psíquica do falasser se constitui ao redor desse furo traumático (troumatisme), desse choque que ressoa o gozo do Um, um excesso traumático (tropmatisme).

Na neurose, o modo de negação, de defesa em relação às pulsões ao que vem do Outro, é a Verdrangung, o recalque.  Nesse modo de defesa, o ser falante consente com a afirmação primordial de um significante (Bejahung) S1. Entretanto, nega-se a identidade do sujeito com o significante: S1 # $. O sujeito não é o significante, ele só vai figurar no discurso unicamente através de um representante. O significante irrealiza o mundo — a palavra mata a coisa —, a referência está vazia.

Um significante promove o sujeito no discurso, mas isso só se dará em relação a outro significante, o que equivale a dizer que o sujeito é barrado, cindido. O sujeito então se constitui nesse movimento de queda de um significante, que é recalcado, consentindo com a falta-a-ser. Falta a ser o falo. Tem-se a castração do sujeito e do Outro.

O significante recalcado (S1), como nos diz Freud, vai atrair para sua direção outros significantes, segundo as leis da metáfora e da metonímia (condensação e deslocamento), constituindo a cadeia significante, a realidade do sujeito.

Na neurose, o que se elide, nos diz Lacan (1955-1956), é uma parte de sua realidade psíquica (isso), parte esquecida que continua a se fazer ouvir. Como?, pergunta Lacan, e ele mesmo responde: de uma forma simbólica. A estrutura de linguagem do saber inconsciente se define então por essa conexão dos significantes, e o saber recalcado reaparece nas formações do inconsciente, como os sonhos, atos falhos, chistes e sintomas.

A dimensão da castração, a divisão do sujeito, o leva a uma busca recorrente de significação. O enigma do gozo se presentifica na indagação “o que isso quer dizer?”, provocando surpresa e propondo uma questão ao desejo: o que quer o Outro? O neurótico, ao tentar apreender o objeto no Outro, só encontra a vacuidade de um gozo.

A parada dessa busca infinita na cadeia se dá com a construção de sua posição de gozo enquanto objeto (a) para o Outro, $<>a, a construção da fantasia fundamental. Defesa que implica um ponto ininterpretável e que, uma vez atravessada em uma experiência analítica, o falasser possa vir a se virar com o gozo fora-de-sentido, o sinthoma.

Pode acontecer, todavia, de o sujeito recusar o acesso ao seu mundo simbólico, de alguma coisa que ele experimentou e que não é outra coisa senão ameaça à castração. Esse modo de negação, de defesa, cai sob o golpe da Verwerfung e tem uma sorte diferente.

Na foraclusão, o ser falante “escolhe” a psicose, insondável decisão do ser. A negação recai sobre o significante mesmo, que fica nulo quanto a sua função de representabilidade do sujeito. Nesse sentido, a Bejahung não se produz — trata-se da rejeição de um significante primordial. Não há o consentimento, um sim ao significante. Essa rejeição coloca em dúvida todo o conjunto significante  toda a cadeia significante , o Outro  fazendo com que alguma coisa não seja manifestada no registro simbólico retornando no real.

Há, portanto, uma anulação do significante: o significante não representa o sujeito para outro significante, o que faz com que Lacan, no Seminário 11 (1964), nomeie como holófrase S1 S2, ou seja, há uma falta de articulação. Não há espaço entre os significantes, e, mais tarde, em seu ensino, Lacan escreverá apenas como a iteração do S1…S1…S1, escrituras que demonstram a falta de dialetização, a certeza psicótica e a não extração do gozo (a). A função do S1 de representar o sujeito junto ao S2 parte à deriva …S1…S1…S1.

É isso o que caracteriza a foraclusão do Nome-do-Pai, da metáfora primordial da castração. O significante, por não representar o sujeito para outro significante, vai funcionar redobrando o real. O sujeito se depara com um vazio de significação, um buraco, que é a perplexidade, para, em seguida, retornar no real uma resposta, uma significação da significação, que traz uma marca única, que é a certeza (MILLER, 1996b). O Nome-do-Pai ordena o universo do sentido, estabelece vínculos entre significante e significado e une o desejo à lei ao interditar o gozo primordial.

A foraclusão na psicose incide, portanto, diretamente sobre esse significante do Nome-do-Pai, provocando “um furo correspondente no lugar da significação fálica” (LACAN, 1957-1958/ 1998, p. 564), impossibilitando a simbolização da castração. Por consequência, temos a foraclusão do falo. O gozo não é extraído do corpo _ o psicótico tem o objeto (a) no bolso _  provocando uma “desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958 p. 559).

Embora, no Seminário 3, as psicoses, Lacan afirme que “não fica louco quem quer” (1955-1956/ 1985 p. 177) ao considerarmos que a referência está sempre vazia, Miller, ao propor uma clínica universal do delírio, nos indica que todo discurso é uma defesa contra o real. As ficções edípicas, a fantasia — a crença louca no pai — são tão delirantes quanto um delírio na psicose. Ambas são produção de sentido ao gozo.

O delírio é universal, porque os homens falam e porque há linguagem para eles. A linguagem serve à tecitura das ficções com as quais ignoramos o que temos de mais real: a não relação sexual e a nossa própria mortalidade. Há nesse ponto uma interseção entre neurose e psicose no sentido que ambos se deparam com S(A/), ou seja, a forclusão generalizada.

O significante do Nome-do-Pai é, portanto, uma solução entre outras para tratar o gozo. Com o seu declínio, efeito da foraclusão generalizada e, também, mais além da foraclusão localizada na psicose (a Verwerfung), cada um tem que encontrar sua resposta sinthomática frente ao furo, ao real que lhe cabe.
A vida é sonho 

Freud, em “Neurose e psicose”aproxima o sonho da psicose. Essa aproximação se dá, pois há uma realização alucinatória do desejo no sonho, e a ideia de que se alucina quando se dorme atualiza a tendência do aparelho psíquico de se fechar. O sujeito acorda para continuar a dormir na rotina de sua fantasia e evitar o despertar para o real (MILLER, 2020).

Podemos também considerar a intrusão da vida no sonho; o sonho não só na via do inconsciente transferencial — das formações inconscientes —, mas na perspectiva do UM do inconsciente real: um despertar para o real de uma posição de gozo.

Alguns fragmentos do passe de Rômulo da Silva1, membro EBP/AMP, parece-nos contribuir para essa 58ª Lições Introdutórias à psicanálise. Sua análise lhe permitiu reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido e fazer um uso do sinthoma.

Ao redor dele, o prazer e a alegria estavam do lado das mulheres. Desde novo queria saber sobre o gozo do Outro, o que a mulher quer, para assim alcançar o objeto de sua satisfação, o que redundou para ele querer ser esse objeto. De família italiana, na tristeza e na alegria, ouvia “mangia che te fa bene!“. Fazer falar e fazer rir eram maneiras de fazer o outro gozar. Posição que satisfazia uma parte da fantasia.

Até os seis anos foi considerado anoréxico. Havia preocupação com sua magreza e falta de apetite. Sua voz era áfona. Passa a comer com vigor, como elas, e passa a falar como elas.

Quando lhe perguntavam o que queria comer, respondia sempre: tanto faz. Quando solicitado a falar, a voz não saía e experimentava uma retração do corpo. E, sob pressão, o que lhe acometia era um choro que não se externava; saía um gemido, uma expiração impedida, um grito contido.

Tomar a palavra, falar em nome próprio, é assumir uma separação simbólica. Deixar sair a voz é ceder o gozo, separar-se, cair um objeto ao qual se mantém apegado. A função evocante da voz fazia com que ele entrasse em mutismo.

A voz é um objeto intrusivo dado pelo Outro e não se pode recusar. Os autistas e alguns psicóticos nos ensinam o quanto esse objeto é intrusivo. O ouvido não é um órgão que se fecha, diferentemente do objeto oral, que pode ser retirado pelo Outro, deixado pelo sujeito e também recusado por ele na anorexia.

Para se constituir como sujeito, é necessário que o objeto seja extraído do corpo, que o sujeito consinta com o significante. Falar em outra língua foi importante na análise de Rômulo. O analista o acolhe, mas adverte: é preciso falar melhor o francês.

As interrupções das sessões tinham repercussões para além da fala. O silêncio do analista o fez percorrer todo o mito familiar, as situações traumáticas e as soluções para se defender do real.

Sua história, que tanto gostava de contar, foi se tornando vazia e ridícula. Convocado a falar o que não tinha ainda falado e possibilitado de tomar a palavra sem que ela fosse articulada ao sentido, o angustiava, presentificava o objeto.

Ele sonha. Está submerso num tanque cheio de água. Não tem como respirar. Há uma torneira em forma de santo. Se a abrisse, encheria mais ainda. Em seu desespero, abre-a e surpreende-se: o tanque se esvazia.

Não encontra palavras e repete “je me sens… je me sens… je me sens…” (“eu me sinto…”), o que faz assonância com gemeção, ao tentar expelir o ar, o choro da infância, a voz. O analista intervém: J’aime saint, fazendo reverberar o gozo pelo equívoco. Fim da sessão. Ser analisante é aceitar receber de um psicanalista o que perturba a sua defesa (MILLER, 2014).

Faria sentido: a torneira era um santo, o santo que o salvou, o santo que ele é… E Rômulo repete j’aime saint… mas, em francês, não se diz, como em português, “Amo santo”, e sim, j’aime le saint (amo o santo). Ao que ele escuta: J’aime sang… (eu amo sangue). Ou seja, não ama nem é santo… tanto que virou o santo de cabeça para baixo para se salvar.

Rômulo, como o mestre taoísta Chuang Tzu, que não evita o despertar quando seu discípulo lhe diz, “é apenas um sonho!”, desperta para o real de sua posição de gozo. De uma voz tímida e feminina, do compromisso identificado à mãe e às mulheres que seduzia sendo um homem adorável, sua voz tornou-se mais ativa, de acordo com suas cordas vocais, e falava menos na vida. A função evocante da voz estava vinculada ao se fazer ver que o objeto (a), o olhar, impunha.

Um outro sonho revela isso. Um neologismo em francês feito por letras de fumaça: goulant. O som parecia Gourmand, ele via as sílabas go, gol, goul, na, um, aun, ant se desfazendo e não podia formar uma palavra colocando em jogo o sem-de-sentido, um enxame de S1 (essaim). Foi nos últimos suspiros da análise que a queda do objeto olhar se apresentou e permitiu o fim.

Para além da travessia da fantasia, ele nos conta dois episódios.

No primeiro, sempre carregava uma mochila com seus apetrechos. Em uma sessão, o analista, aos berros, exige que ele a deixe fora da sala. Ele a joga num canto. Rômulo não fala desse episódio na sessão, mas havia uma reação violenta em seu corpo, pronta para explodir, e, ao mesmo tempo, tentava entender o desejo do analista. Sai da sessão se perguntando se o analista pensava que ele seria violento e se carregaria uma bomba. O recebimento dessa mensagem invertida revela a sua posição.

No segundo, na sala de espera do analista, fala e gesticula sem parar com alguém que também aguardava e acaba derrubando um vaso no chão. Sem graça, tenta limpar, não consegue. Sai para pedir ajuda e encontra a esposa do analista no hall. Ao não encontrar a palavra em francês, sai disfarçando.

Vai para a sessão, nada fala do ocorrido. A cena o visita em sua forma edípica: “fiz uma besteira, tentei explicar para ela, ela não entendeu. O senhor pode dar um jeito?”. O analista carinhosamente quis saber os detalhes. Rômulo se sente ridículo contando e o analista faz um gesto de “deixa para lá”. Em seguida, volta-se para ele: “mas você quebrou o vaso?”. Ele responde que não e que limpou o que pôde. Em outro gesto tranquilizador e furioso, agarra o braço dele e diz: “mas, se tivesse quebrado, você teria que pagar!”. Ele sai apavorado, pensando nos milhares de euros, como se fosse um vaso da dinastia Ming.

A acolhida e, em seguida, a não cumplicidade do analista confrontaram-no com a solidão de seu gozo. Enquanto falava desenfreadamente na sala de espera, não levava em conta os outros. Não era só narcisismo, mas um autoerotismo; sua satisfação não levava em conta o Outro, simplesmente gozava.

Ao perturbar a defesa, o analista, com sua investida e presença, coloca em jogo a pulsão escópica e a invocante. O efeito de seu ato é mobilizar o corpo do falasser, pois as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer.

Como em um paralelo com o fenômeno elementar e a função do delírio na psicose, trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, sobre os quais o sujeito, em sua neurose, delirou (MILLER, 1996c). O Um sobre o qual o neurótico construiu suas defesas, suas elucubrações ficcionais, histórias de família tecidas de identificações ideais e verdades mentirosas.

 


Referências
FREUD, S. (1923). “A perda da realidade na neurose e psicose”. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte. 2021.
FREUD, S. (1923). “O ego e o id”. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1969.
FREUD, S. (1924). “Neurose e Psicose”. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.
LACAN, J. (1955-1956). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.
LACAN, J. (1964). O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988.
MILLER, J.-A. “Clínica irônica”. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996a.
MILLER, J.-A. “Conciliábulo de Angers”. Conversação clínica realizada na França em 1996b.
MILLER, J.-A. “L’interpretation à l’envers”. La Cause freudienne, n. 32. Paris: Navarin Seuil, 1996c. pp. 9-13.
MILLER, J.-A. La experiência de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós. 2014.
MILLER, J.-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
MILLER, J.-A. “Despertar”. Scilicet: o sonho sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano, AMP, EBP, 2020. pp. 15-19.
SILVA, R. F. “O psicótico em relação à palavra e ao corpo”. Opção Lacaniana, n. 24. jun. 1999. pp. 36-37.

1. “O objeto voz na experiência de uma análise”, em Opção Lacaniana on-line, nº 11, e “Trauma e violência”, em Opção Lacaniana, nº 70.



O sintoma substituto

Mônica Campos Silva
Psicanalista, mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG, membro da EBP/AMP,

Resumo: o presente artigo visa a tratar o lugar do sintoma como defesa. A partir da diferenciação realizada por Freud entre inibição, sintoma e angústia, é possível observar o funcionamento psíquico em seu aspecto dinâmico, bem como a função do Eu diante das demandas de satisfação. Assim, o sintoma como substituto evidencia tanto sua vertente de verdade como de real, estabelecendo consequências para a clínica e seu manejo.

Palavras-chaves: sintoma; verdade; angústia; defesa.

THE SUBSTITUTE SYMPTOM
Abstract: this article aims to approach the idea of the symptom as a defense. From the differentiation made by Freud between inhibition, symptom and anguish, it is possible to observe the psychic functioning in its dynamic aspect, as well as the function of the Self facing the demands of satisfaction. Thus, the symptom as a substitute reveal both its truth and real aspects, establishing consequences for the clinic and its management.

Keywords: symptom; truth; anguish; defense.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre o sintoma 

Miller (2015) interroga: por que colocamos o sintoma entre as formações do inconsciente? É um fato que o sintoma, por sua permanência, se distingue de todas as outras formações do inconsciente. Para que haja sintoma, no sentido freudiano, é preciso que haja sentido em jogo e que esse possa ser interpretado. Para que haja sintoma, é necessário também que o fenômeno dure. Igualmente, diz Miller, o sintoma é o que a psicanálise nos dá de mais real; o sintoma como o que não cessa de não se escrever, enquanto sua permanência se impõe à experiência. É desse “a mais” que atravessa e marca o corpo que é preciso dar-se conta na formação dos sintomas. Por sua vez, em Freud (1925–1926/1996), o uso do sintoma é sempre o mesmo: pela satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida, a satisfação pulsional.

De tal modo, o sintoma revela duas vertentes: uma de verdade e uma de real. O que Freud descobriu é que um sintoma se interpreta como um sonho, quer dizer, se interpreta em função de um desejo, e que é um efeito de verdade. Mas há um segundo tempo desse descobrimento: a persistência, a permanência do sintoma depois da interpretação.

Freud (1925–1926/1996) aponta que o conceito de recalque não implica uma relação com a sexualidade, separando o recalque, que se refere a um mecanismo semântico — algo que não pode ser dito porque houve um recalcamento —, e o registro da sexualidade. Procura, então, atrelar as duas vertentes, isto é, a da descoberta do inconsciente, dos fenômenos interpretáveis, e a da descoberta da sexualidade infantil e do caráter perverso da sexualidade. Para Lacan, no entanto, o recalque tem a ver com a libido, ou seja, o que se opõe ao dizer tudo é o mesmo que se opõe à realização plena do sexual. Para Lacan, o que está recalcado é o significante, o que Freud nomeia de representante da pulsão (MILLER, 2015).

Freud, em Inibições, sintomas e angústia (1925–1926/1996), caracteriza o sintoma a partir da satisfação pulsional “como o signo e o substituto” de uma satisfação pulsional que não aconteceu, ou seja, a pulsão busca satisfação e, após o recalque incidir sobre ela, há a formação do sintoma como satisfação substitutiva. Mais adiante, o autor trata o trauma e o inconsciente tomando como princípio que, sob cada sintoma neurótico, há sempre um trauma. Toda neurose contém, diz ele, uma fixação dessa natureza. Acrescenta o princípio de que o sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente, afirmando ser “necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir” (FREUD, 1925–1926/1996, p. 287), ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. Freud completa: “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (p. 287). O sintoma como substituto vem no lugar do objeto que convêm à pulsão, mas nem por isso alcança a satisfação, tratando sempre de renovar sua busca.

É importante destacar que, em Freud, a definição de sintoma leva em conta seu caráter de formação de compromisso, de conexão entre gozo e defesa. A observação de Freud é que, no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela. Dessa conexão entre gozo e defesa, Lacan extrairá que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a se defender do gozo que busca, ou seja, o paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles (MILLER, 2020). Porém, é importante notar que o sintoma oferece à pulsão outra satisfação, mas como desprazer. A defesa do Eu contra a satisfação pulsional, através do recalque, produz a conversão da satisfação em desprazer. O desvio e a substituição são realizados pelo Eu, conduzido pelo princípio do prazer em oposição à exigência pulsional. Logo, o que aparece como desprazer no sintoma, como sofrimento, é uma satisfação.

Segundo Miller (2020), a pulsão não conhece o “semblante de gozar”; a satisfação pulsional é um real. Segundo ele, Lacan enfatiza o invólucro formal das formações do inconsciente, mas não lhe escapa que a chave da formação dos sintomas é pulsional, o que permanece. Aponta ainda que o sintoma pode aparecer como um enunciado repetitivo sobre o real. O sujeito não pode responder ao real a não ser sintomatizando.

Logo, há algo do sintoma que se localiza entre a angústia e a mentira, quer dizer, entre algo que mente e algo que não pode enganar. Algo circula entre o que engana sempre e o que não engana jamais. O sintoma mente, a angústia, não. A angústia sinaliza a ameaça, o sintoma defende (MILLER, 2015).

 

O texto de Freud

Ao entrarmos em Inibições, sintomas e angústia (1925-1926/1996), encontramos Freud debruçado sobre as manifestações que considera patológicas. Para ele, a inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente um sentido de verdade ou uma implicação patológica. Mas adverte que, quando a inibição é tomada a partir do sentido, ou seja, limitações e restrições da função do Eu, ela se torna um sintoma.

Freud localiza outro encontro entre os elementos em questão, a inibição e a angústia. Segundo ele, algumas inibições representam o abandono de uma função porque sua prática produziria angústia, ou seja, a inibição como defesa. Nesse ponto de elaboração, reforça que o sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado imóvel, sendo uma consequência do processo de recalque. O recalque, por sua vez, se processa a partir do Eu quando este se recusa a se associar a um investimento pulsional despertado no Isso. Assim, quando o Eu se opõe a um processo pulsional no Isso, ele tem de dar um “sinal de desprazer” com a ajuda do princípio do prazer, a fim de alcançar seu objetivo, o recalque, sendo ainda provável que as primeiras irrupções de angústia de natureza muito intensa ocorram antes de o supereu se tornar diferenciado, devendo o recalque ser descrito como tendo falhado, em maior ou menor grau.

O Eu é uma instância central no dinamismo psíquico. Suas características adaptáveis permitem se organizar e se diferenciar do Isso, realizar intercâmbios e influência, mantendo, nesse sentido, duas posições em relação ao sintoma: a que quer incorporar o sintoma e a que vai tentar manter o recalque.

Freud utiliza o caso do pequeno Hans — apresentado pela primeira vez em 1909 —, uma fobia infantil, para discutir o que está em jogo no sintoma, perguntando que sintoma substitutivo foi encontrado e onde está o motivo de recalque. Hans recusava-se a sair à rua porque tinha medo de cavalos — isso era a matéria prima do caso. O que constituía seu sintoma? O medo? A escolha de um objeto para seu temor? Ter abandonado sua liberdade de movimento? Por que e qual foi a satisfação a que ele renunciou? Hans não sofria de um medo vago de cavalos, mas de que um cavalo fosse mordê-lo. Para Freud, a fobia de Hans foi uma tentativa de solucionar o conflito devido à ambivalência: um amor e um ódio dirigidos para a mesma pessoa, seu pai. Porém, Freud adverte que o medo que faz parte dessa fobia não é um sintoma. Se Hans, apaixonado pela mãe, mostra medo do pai, isso não significa que ele tenha uma neurose ou fobia. Nesse caso, o que transformou a fobia em uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado sintoma. As ideias contidas na sua angústia era a substituição, por distorção, da ideia de ser castrado pelo pai. É sempre a atitude de angústia do Eu que é a coisa primária e que põe o recalque em movimento. A angústia jamais surge da libido recalcada, sendo o recalque apenas um dos mecanismos de que a defesa faz uso.

A angústia

Para Freud (1925-1926/1996), a angústia, em primeiro lugar, é algo que se sente, e, como um sentimento, tem um caráter muito acentuado de desprazer, sendo um sinal para a evitação de uma situação de perigo. A análise dos estados de angústia revela a existência de um caráter específico de desprazer, atos de descarga e percepções desses atos.

Por outro lado, Freud esclarece que a pulsão em si não é um perigo. O que então lhe dá essa qualidade? O alerta de desprazer que o Eu emite, frente à demanda de satisfação da pulsão, colocando em marcha o princípio do prazer para obter esse desvio, é o modo como Freud contextualizou a angústia — sinal que coloca o recalque em marcha. A pulsão, enquanto tal, constitui uma infração ao princípio do prazer, na medida em que sua exigência precisamente não é uma satisfação de prazer, e sim uma exigência de mais de gozar (MILLER, 2015).

Outra questão importante levantada por Freud em Inibições, sintomas e angústia é a relação entre a formação de sintomas e a geração de angústia. Haveria duas hipóteses: a angústia é um sintoma de neurose e os sintomas só se formam a fim de evitar a angústia. A angústia surgiria como reação original ao desamparo no trauma (real), sendo este o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose. Se um paciente agorafóbico que tenha sido acompanhado até a rua for ali deixado sozinho, ele produzirá um ataque de angústia; ou se um neurótico obsessivo for impedido de lavar as mãos após haver tocado algo, ele se tornará preso de uma angústia quase insuportável.

Avançamos, então, ao ponto de dizer que inibição e angústia podem, também, se apresentar como sintoma. No que se refere à inibição, fica claro seu caráter de sintoma quando vemos que a inibição é corporal — sexual, marcha, alimentação e da fala. Isso que toca o corpo — encontro do significante e o corpo.

Perturbar e Des-Montar a defesa

Como fazer com a condição defensiva no sintoma?

Freud nos indica que, quando o analista tenta ajudar o Eu em sua luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios entre o Eu e o sintoma atuam do lado das resistências, não sendo simples de afrouxar, muito menos de separar o Eu e o sintoma. Ele assinala que o Eu é fonte de três resistências: a resistência do recalque; a resistência da transferência, que reanima um recalque para além da lembrança; e a resistência em renunciar a qualquer satisfação ou alívio que tenha sido obtido com a doença. Menciona também a resistência que decorre do Isso, necessitando de ‘elaboração’, e a resistência proveniente do supereu, que se opõe à recuperação do próprio paciente pela análise (FREUD, 1925-1926/1996).

Nessa perspectiva, o sintoma, em análise, deve ser reduzido a seu núcleo. Miller  elucida que “reconduzimos os seres de linguagem a nada, os reduzimos a coisa nenhuma” (2015, p. 18). O paradoxo, segundo ele, é o do resto, havendo um x que resta mais além da interpretação freudiana. Assistimos, então, à confrontação do sujeito com o que Freud chama de restos sintomáticos. Para Freud, como ele partia do sentido, isso se apresentava como um resto, mas, de fato, esse resto é o que está nas origens do sujeito; é, de algum modo, o acontecimento originário e, ao mesmo tempo, permanente, que reitera sem cessar, o núcleo do sintoma. Em um tratamento, passamos, certamente, pelo momento de decifração da verdade do sintoma, mas chegamos aos restos sintomáticos, ao fora de sentido.

Poderíamos falar que perturbar a defesa, em Freud, seria

“quando, na análise, damos ao Eu assistência capaz de situá-lo em posição de levantar seus recalques, ele recupera seu poder sobre o Isso recalcado e pode permitir aos impulsos pulsionais que sigam seu curso como se as antigas situações de perigo não existissem mais” (FREUD, 1925-1926/1996, p. 97)

Entretanto, verificamos que, mesmo após o Eu haver resolvido abandonar suas resistências, ele ainda tem dificuldades em desfazer os recalques, sendo o fator dinâmico o que torna uma elaboração desse tipo necessária e abrangente. Se o perigo neurótico é um perigo pulsional, ao levar esse perigo que não é conhecido do Eu até a consciência, o analista faz com que a angústia neurótica não seja diferente da angústia realística, de modo que, com ela, se pode lidar da mesma maneira.

Para Miller (2015), ler um sintoma consiste em privar o sintoma de sentido. Por isso, diz ele, Lacan substitui o aparato de interpretar de Freud por um ternário que não produz sentido: o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Passa-se assim da escuta do sentido à leitura do fora de sentido. A leitura, o saber ler, consiste em manter a distância entre a palavra e o sentido que ela veicula, a partir da escritura como fora de sentido, como letra, a partir de sua materialidade.

Sabemos que, para perturbar e des-montar a defesa, é preciso um percurso de análise. Esta visa reduzir o sintoma a sua fórmula inicial, quer dizer, ao encontro material de um significante e do corpo, ao choque puro da linguagem sobre o corpo. Logo, para tratar o sintoma, é preciso passar pela lógica do desejo, mas também ir adiante da verdade que essa decifração produz e apontar mais além, a fixação do gozo, a opacidade do real.

Guéguen (2014) afirma que, para além de perturbar a defesa, é preciso ir além e desmontar a defesa, pois é importante supor que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado.

Miller (2020) lembra a pergunta de Lacan: como se vive a pulsão? O próprio Miller elucida que, no percurso de seu ensino, Lacan nos evidencia que não se trata, como em Freud, de resolver o conflito, mas de obter um novo arranjo, um funcionamento menos custoso para o sujeito. Não há pulsão sem sintoma. A fantasia é o curso normal da satisfação e equivale à inércia imaginária (posição do neurótico em relação ao desejo), impedindo de saber fazer com o sintoma. Contudo, sabemos ser possível, em uma análise, definir, localizar a fantasia. Porém, no registro do sintoma, como modo de gozo, o que se pode é saber fazer aí com o sintoma, com esse resto, ou seja, fazer-se amigo do sintoma, montar um novo modo de satisfação, uma nova maneira de satisfação pulsional, uma nova construção que Lacan denomina de sinthoma, pois o sintoma não é algo novo, mas um retorno. Há sempre algo de velho no sintoma, pois este é feito de repetição.

 


Referências:
FREUD, S. (1925-1926). Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
GUÉGUEN, P-G. “Defesa (desmontar a)”. Scilicet: Um real para o século XXI. Scriptum Editora. 2014
MILLER, J. -A. “Os caminhos na formação de sintomas”. Opção Lacaniana. nº 60. São Paulo: Eolia, set. 2011.
MILLER, J. -A. “Ler um sintoma”. Opção Lacaniana. nº 70. São Paulo: Eolia, jun. 2015.
MILLER, J. -A. “Síntoma y pulsíon”. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2020.