Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior

Cristiana Pittella
AP, membro da EBP/AMP

 

Resumo: A autora faz uma leitura do texto freudiano “Neurose e psicose” (1924), servindo-se da orientação lacaniana.

Palavras-chave: Neurose; psicose; sonho; delírio; simbólico; real.

A FISSURE IN THE SELF’S RELATIONSHIP WITH THE EXTERIOR WORLD

Abstract: The author reads the Freudian text “Neurosis and psychosis” (1924), using the Lacanian orientation

Keywords: Neurosis; psychosis; dream; delirium; symbolic; real

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

 

Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi
que era um homem. Agora não sei se sou um homem
que sonhou ser borboleta, ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem.

Chuang Tzu, mestre taoísta

A questão da realidade, do ser e da existência é fundamentalmente humana. Em “Clínica irônica”, Jacques-Alain Miller (1996a) afirma que, para Freud, nada deixa de ser sonho, e, para Lacan, a propósito de Freud, se tudo é sonho, então todo mundo é louco, isto é, delirante. Assim, “diante do louco, diante do delirante, não se esqueça que você é, ou foi, analisante, e que também fala ou falava, sobre o que não existe” (p. 199).

Nesta 58ª Lições Introdutórias à Psicanálise, “Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior”, vamos trabalhar o texto freudiano “Neurose e psicose”, de 1924. Nele Freud investiga a gênese das duas entidades clínicas, neurose e psicose, e é a primeira vez que ele utiliza o termo psicose. O contexto é o da segunda tópica, em que Freud, no texto “O eu e o isso” (1923), expande o inconsciente para além do recalque ao apresentar o aparelho psíquico pelas instâncias eu, isso e supereu.

O eu encontra-se submetido às exigências do isso e do supereu, “com o anseio em servir a todos os seus senhores a um só tempo” (FREUD, 1924/2016, p. 271). Freud vai delimitar a neurose e a psicose a partir da posição do eu. A neurose resultaria do conflito entre o eu e o isso, e, a psicose, do conflito entre o eu e o mundo exterior. Ele mesmo considerará isso uma solução simplista, pois a etiologia é comum para o início tanto da neurose quanto da psicose. Trata-se de um elemento incompatível que se impõe ao eu, e este decide rechaçá-lo: “trata-se de um impedimento (Versagung), uma não realização de algum daqueles eternamente indomáveis desejos de infância” (FREUD, 1924/2016, p. 274).

A ideia de conflito entre a defesa e as moções pulsionais, de forças antagônicas, perpassa a obra de Freud. Também em 1923, em seu texto “A perda da realidade na neurose e psicose”, Freud considera mais claramente que há na neurose uma perturbação da realidade, algo que não cessa de não se escrever, e ela própria é uma fuga da realidade. O real insiste, as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer. Neurose e psicose são modalidades de defesa. Para ambas, tratar-se-á de uma perda da realidade e da criação de uma nova realidade (FREUD, 1923/2016, p. 284).

Para explicitar a origem desses conflitos e as soluções encontradas, Freud, no texto que estamos lendo, destaca, a partir de sua experiência, dois campos: o das neuroses de transferência e o das neuroses narcísicas.

Nas neuroses de transferência, o eu, a serviço das exigências do supereu (ideal), se defende das moções pulsionais através do mecanismo de defesa, o recalcamento. Ele se separa de uma parte do isso. O recalcado, entretanto, retorna pela via do compromisso — o deslocamento do afeto de uma representação para outra —, encontrando por essa transferência uma satisfação substitutiva: o sintoma.

Freud delimita três neuroses de transferência: a histeria, a obsessão e a fobia. Na fobia de Hans, o desejo pelo pai se desloca para o medo do cavalo, que o impede de circular livremente. No homem dos ratos, o desejo de matar a mulher que se ama é deslocado para a aflição de que ela tropece numa pedra, ora colocando, ora retirando essa pedra. Na histeria, o afeto converge para o corpo: em Elisabeth von R., suas dores nas pernas e dificuldade de andar surgem do desejo sexual pelo marido de sua irmã.

Para especificar o conflito nas psicoses, Freud se valerá no texto do exemplo da amência de Meynert como um paradigma das neuroses narcísicas. Trata-se de uma aguda confusão alucinatória em que a ruptura com o mundo exterior — pelo grave e intolerável impedimento de desejo por parte da realidade (Wunschversagung) — leva a uma recusa das novas percepções (verweigert). Há uma retirada da libido do mundo exterior (das significações compartilhadas, do laço social), assim como do mundo interior (perda de si e da identidade). O eu cria para si um novo mundo, fechado em si mesmo, construído de acordo com as moções pulsionais.

Freud também se refere às esquizofrenias, em que há um embotamento afetivo e uma perda de toda participação no mundo, do laço com o Outro. Há, na esquizofrenia, um retorno do gozo sobre o corpo. O esquizofrênico não se defende do real com o simbólico porque, para ele, o simbólico é real (MILLER, 1996a). Sua ironia é uma defesa.

Se há um delírio que é do real, é o do esquizofrênico. Temos por orientação nunca nutrir o delírio (MILLER, 2015), pois ele pode levar ao pior. Em uma supervisão em serviço de saúde mental, o CAPS, Rômulo da Silva (1999) relata que um paciente, invadido por uma voz que o questionava se ele seria um anjo, acaba chegando à conclusão — a partir do que trabalhava nas atividades da instituição — de que era o anjo Gabriel. Não obstante, ele se desenlaça das atividades de sua vida. Para que ele participasse das atividades, um técnico vai lhe delegar a função de “anunciar” as atividades do serviço. O paciente ganha um mais de vida; passa a correr com os braços abertos e a anunciar o que lhe era solicitado. Entretanto, para esse sujeito, o simbólico, o significante, é real, não representa o sujeito para outro significante. Seu delírio não alcança um valor de metáfora delirante. Por consequência, ele passa ao ato: “bate as asas” pulando da janela de onde morava, vindo a falecer.

Desde sua leitura de Schreber (1911) e também em “Neurose e psicose”, Freud ressalta que as formações delirantes são um remendo onde originalmente surge uma fissura na relação do eu com o mundo exterior. Elas são tentativas de cura e reconstrução da realidade psíquica, pelo retorno do gozo no significante, fazendo o Outro existir. Freud dá uma dignidade ao delírio concebendo-o não como um distúrbio do juízo, mas como algo singular, do enlaçamento do eu à realidade, ao Outro.

Schreber, um doutor em direito na Alemanha, é chamado a ocupar o lugar de juiz. Trata-se de uma função simbólica que exige do sujeito um uso da significação fálica advinda da metáfora do Nome-do-Pai. Entretanto, Schreber é confrontado com a foraclusão do significante do Nome-do-Pai em sua estrutura, não encontrando um significante que possa representá-lo junto a outro significante, o que acarreta uma ruptura de sua realidade psíquica. Essa ruptura produz uma desestabilização, a saber, um desencadeamento do significante, um desastre crescente do imaginário, e deslocaliza o gozo que retorna no corpo e no Outro do significante.

Ele escreve com rigor, em suas memórias, as imposições e abusos que sofre; como seu corpo é invadido, comandado e modificado por raios divinos, desfazendo seu mundo em cascata. Pela sua escrita podemos ler como ele vai reconstruí-lo com o delírio e encontrar um lugar, uma nomeação, no ponto onde originalmente surgiu a fissura.

A ideia de ser transformado em Mulher é o germe de seu sistema delirante. Ela lhe ocorre a partir de um pensamento de que, afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula. Esse empuxo à mulher se impõe ao sujeito e, se num primeiro momento, o horroriza, em seguida, ele o aceita como um compromisso razoável, para tornar-se um compromisso irreversível (LACAN, 1955-1956).

Com seu delírio, designando-se “A mulher de Deus”, ele pôde, durante um período, viver a sua rotina e exigências do trabalho. Sua existência, seu mundo e lugar junto ao Outro são reconstruídos com esse remendo.

A clínica universal do delírio

Formular uma clínica universal do delírio implica situarmos as diferenças entre as modalidades de delírios dos neuróticos — articulados ao fantasma, aos ideais e às exigências superegoicas — e os delírios na psicose.

Se o neurótico e o paranoico distintamente fazem o Outro existir defendendo-se do real com o simbólico, o esquizofrênico nos ensina acerca da inexistência do Outro, de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem e um uso da ironia.

J.-A. Miller nos convida, em “Clínica irônica” (1996a), a apreendermos a posição do psicanalista como irônica. Mas como tocar o real com as palavras? Como tocá-lo de boa maneira? (MILLER, 2015). Como um psicanalista, na posição irônica, permite interrogar os modos de defesa de cada sujeito?

Advertido de que não há Outro do Outro, a ironia é um modo de fazer e questionar os significantes mestres, em que as palavras podem dizer outra coisa do que dizem e, assim, confrontar o sujeito com a sua própria dimensão delirante.

Exige uma investida, uma presença do analista, que ele aporte o tom, a voz, o acento, um gesto e o olhar, para que seu ato mobilize o corpo do falasser. Nas psicoses, pretendemos apagar ou acomodar o delírio (MILLER, 2015), assim, temos que considerar quando a ironia é uma defesa mínima do sujeito e quando ela pode servir para perturbá-la.

Uma análise pode reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido para fazer um uso do sinthoma. A clínica universal do delírio também aponta para isso que, como psicanalista, trata de escutar o que se enuncia da boca do paciente, o que se vocifera do lugar de mais-ninguém (MILLER, 2015), lugar do sujeito designado desde antes que o significante desenrole suas tessituras capciosas, que fazem esquecer que aí onde se sofre, se goza.

A leitura de “Neurose e psicose” por Lacan 

A definição de defesa no texto “Neurose e psicose” recebe nomes diversos, como recusa, recalcamento e rejeição, sem uma delimitação estrutural clara, e sim mais continuísta. Contudo, Freud termina o texto perguntando-se qual seria o mecanismo análogo ao recalcamento na neurose para a psicose, através do qual o eu se desliga do mundo exterior.

Será Lacan, em seu Seminário 3: as psicoses (1955-1956), ao se referir ao texto freudiano, quem vai delimitar estruturalmente a neurose e a psicose, distinguindo-as quanto às perturbações que elas produzem nas relações do sujeito com a realidade. Ele sublinha que Freud admite um fenômeno de exclusão para o qual o termo Verwerfung parece válido, e que esse modo de defesa se distingue da negação (Verneinung), que é reconhecida por Freud como a matriz simbólica do inconsciente.

Verneinung, negação, é um momento constitutivo que delimita o mundo da realidade psíquica, um momento que está na origem da simbolização. É importante ressaltar que essa origem não está em um ponto do desenvolvimento, mas que responde a uma exigência, a uma escolha forçada. É ela que permite a emergência do mundo simbólico enquanto um sistema de articulação, de oposição entre elementos diferentes: S1– S2 , presença e ausência, dentro-fora, bom-mal…

Neurose e psicose são modalidades de negação, de defesa face ao real. Elas são ordenadas em relação a uma afirmação primária do significante (S1), a Bejahung, e, ao mesmo tempo, em que há uma afirmação, há uma expulsão definitiva (Austossung).

Esse significante (S1) — lalíngua —, que não é feito para se comunicar, marca o corpo do que Lacan nomeou em seu último ensino, falasser. Esse choque de lalíngua no corpo, que chamamos de trauma, itera fora-de-sentido num enxame de significantes S1 (essaim) que não se articulam. A realidade psíquica do falasser se constitui ao redor desse furo traumático (troumatisme), desse choque que ressoa o gozo do Um, um excesso traumático (tropmatisme).

Na neurose, o modo de negação, de defesa em relação às pulsões ao que vem do Outro, é a Verdrangung, o recalque.  Nesse modo de defesa, o ser falante consente com a afirmação primordial de um significante (Bejahung) S1. Entretanto, nega-se a identidade do sujeito com o significante: S1 # $. O sujeito não é o significante, ele só vai figurar no discurso unicamente através de um representante. O significante irrealiza o mundo — a palavra mata a coisa —, a referência está vazia.

Um significante promove o sujeito no discurso, mas isso só se dará em relação a outro significante, o que equivale a dizer que o sujeito é barrado, cindido. O sujeito então se constitui nesse movimento de queda de um significante, que é recalcado, consentindo com a falta-a-ser. Falta a ser o falo. Tem-se a castração do sujeito e do Outro.

O significante recalcado (S1), como nos diz Freud, vai atrair para sua direção outros significantes, segundo as leis da metáfora e da metonímia (condensação e deslocamento), constituindo a cadeia significante, a realidade do sujeito.

Na neurose, o que se elide, nos diz Lacan (1955-1956), é uma parte de sua realidade psíquica (isso), parte esquecida que continua a se fazer ouvir. Como?, pergunta Lacan, e ele mesmo responde: de uma forma simbólica. A estrutura de linguagem do saber inconsciente se define então por essa conexão dos significantes, e o saber recalcado reaparece nas formações do inconsciente, como os sonhos, atos falhos, chistes e sintomas.

A dimensão da castração, a divisão do sujeito, o leva a uma busca recorrente de significação. O enigma do gozo se presentifica na indagação “o que isso quer dizer?”, provocando surpresa e propondo uma questão ao desejo: o que quer o Outro? O neurótico, ao tentar apreender o objeto no Outro, só encontra a vacuidade de um gozo.

A parada dessa busca infinita na cadeia se dá com a construção de sua posição de gozo enquanto objeto (a) para o Outro, $<>a, a construção da fantasia fundamental. Defesa que implica um ponto ininterpretável e que, uma vez atravessada em uma experiência analítica, o falasser possa vir a se virar com o gozo fora-de-sentido, o sinthoma.

Pode acontecer, todavia, de o sujeito recusar o acesso ao seu mundo simbólico, de alguma coisa que ele experimentou e que não é outra coisa senão ameaça à castração. Esse modo de negação, de defesa, cai sob o golpe da Verwerfung e tem uma sorte diferente.

Na foraclusão, o ser falante “escolhe” a psicose, insondável decisão do ser. A negação recai sobre o significante mesmo, que fica nulo quanto a sua função de representabilidade do sujeito. Nesse sentido, a Bejahung não se produz — trata-se da rejeição de um significante primordial. Não há o consentimento, um sim ao significante. Essa rejeição coloca em dúvida todo o conjunto significante  toda a cadeia significante , o Outro  fazendo com que alguma coisa não seja manifestada no registro simbólico retornando no real.

Há, portanto, uma anulação do significante: o significante não representa o sujeito para outro significante, o que faz com que Lacan, no Seminário 11 (1964), nomeie como holófrase S1 S2, ou seja, há uma falta de articulação. Não há espaço entre os significantes, e, mais tarde, em seu ensino, Lacan escreverá apenas como a iteração do S1…S1…S1, escrituras que demonstram a falta de dialetização, a certeza psicótica e a não extração do gozo (a). A função do S1 de representar o sujeito junto ao S2 parte à deriva …S1…S1…S1.

É isso o que caracteriza a foraclusão do Nome-do-Pai, da metáfora primordial da castração. O significante, por não representar o sujeito para outro significante, vai funcionar redobrando o real. O sujeito se depara com um vazio de significação, um buraco, que é a perplexidade, para, em seguida, retornar no real uma resposta, uma significação da significação, que traz uma marca única, que é a certeza (MILLER, 1996b). O Nome-do-Pai ordena o universo do sentido, estabelece vínculos entre significante e significado e une o desejo à lei ao interditar o gozo primordial.

A foraclusão na psicose incide, portanto, diretamente sobre esse significante do Nome-do-Pai, provocando “um furo correspondente no lugar da significação fálica” (LACAN, 1957-1958/ 1998, p. 564), impossibilitando a simbolização da castração. Por consequência, temos a foraclusão do falo. O gozo não é extraído do corpo _ o psicótico tem o objeto (a) no bolso _  provocando uma “desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958 p. 559).

Embora, no Seminário 3, as psicoses, Lacan afirme que “não fica louco quem quer” (1955-1956/ 1985 p. 177) ao considerarmos que a referência está sempre vazia, Miller, ao propor uma clínica universal do delírio, nos indica que todo discurso é uma defesa contra o real. As ficções edípicas, a fantasia — a crença louca no pai — são tão delirantes quanto um delírio na psicose. Ambas são produção de sentido ao gozo.

O delírio é universal, porque os homens falam e porque há linguagem para eles. A linguagem serve à tecitura das ficções com as quais ignoramos o que temos de mais real: a não relação sexual e a nossa própria mortalidade. Há nesse ponto uma interseção entre neurose e psicose no sentido que ambos se deparam com S(A/), ou seja, a forclusão generalizada.

O significante do Nome-do-Pai é, portanto, uma solução entre outras para tratar o gozo. Com o seu declínio, efeito da foraclusão generalizada e, também, mais além da foraclusão localizada na psicose (a Verwerfung), cada um tem que encontrar sua resposta sinthomática frente ao furo, ao real que lhe cabe.
A vida é sonho 

Freud, em “Neurose e psicose”aproxima o sonho da psicose. Essa aproximação se dá, pois há uma realização alucinatória do desejo no sonho, e a ideia de que se alucina quando se dorme atualiza a tendência do aparelho psíquico de se fechar. O sujeito acorda para continuar a dormir na rotina de sua fantasia e evitar o despertar para o real (MILLER, 2020).

Podemos também considerar a intrusão da vida no sonho; o sonho não só na via do inconsciente transferencial — das formações inconscientes —, mas na perspectiva do UM do inconsciente real: um despertar para o real de uma posição de gozo.

Alguns fragmentos do passe de Rômulo da Silva1, membro EBP/AMP, parece-nos contribuir para essa 58ª Lições Introdutórias à psicanálise. Sua análise lhe permitiu reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido e fazer um uso do sinthoma.

Ao redor dele, o prazer e a alegria estavam do lado das mulheres. Desde novo queria saber sobre o gozo do Outro, o que a mulher quer, para assim alcançar o objeto de sua satisfação, o que redundou para ele querer ser esse objeto. De família italiana, na tristeza e na alegria, ouvia “mangia che te fa bene!“. Fazer falar e fazer rir eram maneiras de fazer o outro gozar. Posição que satisfazia uma parte da fantasia.

Até os seis anos foi considerado anoréxico. Havia preocupação com sua magreza e falta de apetite. Sua voz era áfona. Passa a comer com vigor, como elas, e passa a falar como elas.

Quando lhe perguntavam o que queria comer, respondia sempre: tanto faz. Quando solicitado a falar, a voz não saía e experimentava uma retração do corpo. E, sob pressão, o que lhe acometia era um choro que não se externava; saía um gemido, uma expiração impedida, um grito contido.

Tomar a palavra, falar em nome próprio, é assumir uma separação simbólica. Deixar sair a voz é ceder o gozo, separar-se, cair um objeto ao qual se mantém apegado. A função evocante da voz fazia com que ele entrasse em mutismo.

A voz é um objeto intrusivo dado pelo Outro e não se pode recusar. Os autistas e alguns psicóticos nos ensinam o quanto esse objeto é intrusivo. O ouvido não é um órgão que se fecha, diferentemente do objeto oral, que pode ser retirado pelo Outro, deixado pelo sujeito e também recusado por ele na anorexia.

Para se constituir como sujeito, é necessário que o objeto seja extraído do corpo, que o sujeito consinta com o significante. Falar em outra língua foi importante na análise de Rômulo. O analista o acolhe, mas adverte: é preciso falar melhor o francês.

As interrupções das sessões tinham repercussões para além da fala. O silêncio do analista o fez percorrer todo o mito familiar, as situações traumáticas e as soluções para se defender do real.

Sua história, que tanto gostava de contar, foi se tornando vazia e ridícula. Convocado a falar o que não tinha ainda falado e possibilitado de tomar a palavra sem que ela fosse articulada ao sentido, o angustiava, presentificava o objeto.

Ele sonha. Está submerso num tanque cheio de água. Não tem como respirar. Há uma torneira em forma de santo. Se a abrisse, encheria mais ainda. Em seu desespero, abre-a e surpreende-se: o tanque se esvazia.

Não encontra palavras e repete “je me sens… je me sens… je me sens…” (“eu me sinto…”), o que faz assonância com gemeção, ao tentar expelir o ar, o choro da infância, a voz. O analista intervém: J’aime saint, fazendo reverberar o gozo pelo equívoco. Fim da sessão. Ser analisante é aceitar receber de um psicanalista o que perturba a sua defesa (MILLER, 2014).

Faria sentido: a torneira era um santo, o santo que o salvou, o santo que ele é… E Rômulo repete j’aime saint… mas, em francês, não se diz, como em português, “Amo santo”, e sim, j’aime le saint (amo o santo). Ao que ele escuta: J’aime sang… (eu amo sangue). Ou seja, não ama nem é santo… tanto que virou o santo de cabeça para baixo para se salvar.

Rômulo, como o mestre taoísta Chuang Tzu, que não evita o despertar quando seu discípulo lhe diz, “é apenas um sonho!”, desperta para o real de sua posição de gozo. De uma voz tímida e feminina, do compromisso identificado à mãe e às mulheres que seduzia sendo um homem adorável, sua voz tornou-se mais ativa, de acordo com suas cordas vocais, e falava menos na vida. A função evocante da voz estava vinculada ao se fazer ver que o objeto (a), o olhar, impunha.

Um outro sonho revela isso. Um neologismo em francês feito por letras de fumaça: goulant. O som parecia Gourmand, ele via as sílabas go, gol, goul, na, um, aun, ant se desfazendo e não podia formar uma palavra colocando em jogo o sem-de-sentido, um enxame de S1 (essaim). Foi nos últimos suspiros da análise que a queda do objeto olhar se apresentou e permitiu o fim.

Para além da travessia da fantasia, ele nos conta dois episódios.

No primeiro, sempre carregava uma mochila com seus apetrechos. Em uma sessão, o analista, aos berros, exige que ele a deixe fora da sala. Ele a joga num canto. Rômulo não fala desse episódio na sessão, mas havia uma reação violenta em seu corpo, pronta para explodir, e, ao mesmo tempo, tentava entender o desejo do analista. Sai da sessão se perguntando se o analista pensava que ele seria violento e se carregaria uma bomba. O recebimento dessa mensagem invertida revela a sua posição.

No segundo, na sala de espera do analista, fala e gesticula sem parar com alguém que também aguardava e acaba derrubando um vaso no chão. Sem graça, tenta limpar, não consegue. Sai para pedir ajuda e encontra a esposa do analista no hall. Ao não encontrar a palavra em francês, sai disfarçando.

Vai para a sessão, nada fala do ocorrido. A cena o visita em sua forma edípica: “fiz uma besteira, tentei explicar para ela, ela não entendeu. O senhor pode dar um jeito?”. O analista carinhosamente quis saber os detalhes. Rômulo se sente ridículo contando e o analista faz um gesto de “deixa para lá”. Em seguida, volta-se para ele: “mas você quebrou o vaso?”. Ele responde que não e que limpou o que pôde. Em outro gesto tranquilizador e furioso, agarra o braço dele e diz: “mas, se tivesse quebrado, você teria que pagar!”. Ele sai apavorado, pensando nos milhares de euros, como se fosse um vaso da dinastia Ming.

A acolhida e, em seguida, a não cumplicidade do analista confrontaram-no com a solidão de seu gozo. Enquanto falava desenfreadamente na sala de espera, não levava em conta os outros. Não era só narcisismo, mas um autoerotismo; sua satisfação não levava em conta o Outro, simplesmente gozava.

Ao perturbar a defesa, o analista, com sua investida e presença, coloca em jogo a pulsão escópica e a invocante. O efeito de seu ato é mobilizar o corpo do falasser, pois as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer.

Como em um paralelo com o fenômeno elementar e a função do delírio na psicose, trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, sobre os quais o sujeito, em sua neurose, delirou (MILLER, 1996c). O Um sobre o qual o neurótico construiu suas defesas, suas elucubrações ficcionais, histórias de família tecidas de identificações ideais e verdades mentirosas.

 


Referências
FREUD, S. (1923). “A perda da realidade na neurose e psicose”. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte. 2021.
FREUD, S. (1923). “O ego e o id”. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1969.
FREUD, S. (1924). “Neurose e Psicose”. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.
LACAN, J. (1955-1956). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.
LACAN, J. (1964). O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988.
MILLER, J.-A. “Clínica irônica”. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996a.
MILLER, J.-A. “Conciliábulo de Angers”. Conversação clínica realizada na França em 1996b.
MILLER, J.-A. “L’interpretation à l’envers”. La Cause freudienne, n. 32. Paris: Navarin Seuil, 1996c. pp. 9-13.
MILLER, J.-A. La experiência de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós. 2014.
MILLER, J.-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
MILLER, J.-A. “Despertar”. Scilicet: o sonho sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano, AMP, EBP, 2020. pp. 15-19.
SILVA, R. F. “O psicótico em relação à palavra e ao corpo”. Opção Lacaniana, n. 24. jun. 1999. pp. 36-37.

1. “O objeto voz na experiência de uma análise”, em Opção Lacaniana on-line, nº 11, e “Trauma e violência”, em Opção Lacaniana, nº 70.



O sintoma substituto

Mônica Campos Silva
Psicanalista, mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG, membro da EBP/AMP,

Resumo: o presente artigo visa a tratar o lugar do sintoma como defesa. A partir da diferenciação realizada por Freud entre inibição, sintoma e angústia, é possível observar o funcionamento psíquico em seu aspecto dinâmico, bem como a função do Eu diante das demandas de satisfação. Assim, o sintoma como substituto evidencia tanto sua vertente de verdade como de real, estabelecendo consequências para a clínica e seu manejo.

Palavras-chaves: sintoma; verdade; angústia; defesa.

THE SUBSTITUTE SYMPTOM
Abstract: this article aims to approach the idea of the symptom as a defense. From the differentiation made by Freud between inhibition, symptom and anguish, it is possible to observe the psychic functioning in its dynamic aspect, as well as the function of the Self facing the demands of satisfaction. Thus, the symptom as a substitute reveal both its truth and real aspects, establishing consequences for the clinic and its management.

Keywords: symptom; truth; anguish; defense.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre o sintoma 

Miller (2015) interroga: por que colocamos o sintoma entre as formações do inconsciente? É um fato que o sintoma, por sua permanência, se distingue de todas as outras formações do inconsciente. Para que haja sintoma, no sentido freudiano, é preciso que haja sentido em jogo e que esse possa ser interpretado. Para que haja sintoma, é necessário também que o fenômeno dure. Igualmente, diz Miller, o sintoma é o que a psicanálise nos dá de mais real; o sintoma como o que não cessa de não se escrever, enquanto sua permanência se impõe à experiência. É desse “a mais” que atravessa e marca o corpo que é preciso dar-se conta na formação dos sintomas. Por sua vez, em Freud (1925–1926/1996), o uso do sintoma é sempre o mesmo: pela satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida, a satisfação pulsional.

De tal modo, o sintoma revela duas vertentes: uma de verdade e uma de real. O que Freud descobriu é que um sintoma se interpreta como um sonho, quer dizer, se interpreta em função de um desejo, e que é um efeito de verdade. Mas há um segundo tempo desse descobrimento: a persistência, a permanência do sintoma depois da interpretação.

Freud (1925–1926/1996) aponta que o conceito de recalque não implica uma relação com a sexualidade, separando o recalque, que se refere a um mecanismo semântico — algo que não pode ser dito porque houve um recalcamento —, e o registro da sexualidade. Procura, então, atrelar as duas vertentes, isto é, a da descoberta do inconsciente, dos fenômenos interpretáveis, e a da descoberta da sexualidade infantil e do caráter perverso da sexualidade. Para Lacan, no entanto, o recalque tem a ver com a libido, ou seja, o que se opõe ao dizer tudo é o mesmo que se opõe à realização plena do sexual. Para Lacan, o que está recalcado é o significante, o que Freud nomeia de representante da pulsão (MILLER, 2015).

Freud, em Inibições, sintomas e angústia (1925–1926/1996), caracteriza o sintoma a partir da satisfação pulsional “como o signo e o substituto” de uma satisfação pulsional que não aconteceu, ou seja, a pulsão busca satisfação e, após o recalque incidir sobre ela, há a formação do sintoma como satisfação substitutiva. Mais adiante, o autor trata o trauma e o inconsciente tomando como princípio que, sob cada sintoma neurótico, há sempre um trauma. Toda neurose contém, diz ele, uma fixação dessa natureza. Acrescenta o princípio de que o sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente, afirmando ser “necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir” (FREUD, 1925–1926/1996, p. 287), ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. Freud completa: “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (p. 287). O sintoma como substituto vem no lugar do objeto que convêm à pulsão, mas nem por isso alcança a satisfação, tratando sempre de renovar sua busca.

É importante destacar que, em Freud, a definição de sintoma leva em conta seu caráter de formação de compromisso, de conexão entre gozo e defesa. A observação de Freud é que, no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela. Dessa conexão entre gozo e defesa, Lacan extrairá que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a se defender do gozo que busca, ou seja, o paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles (MILLER, 2020). Porém, é importante notar que o sintoma oferece à pulsão outra satisfação, mas como desprazer. A defesa do Eu contra a satisfação pulsional, através do recalque, produz a conversão da satisfação em desprazer. O desvio e a substituição são realizados pelo Eu, conduzido pelo princípio do prazer em oposição à exigência pulsional. Logo, o que aparece como desprazer no sintoma, como sofrimento, é uma satisfação.

Segundo Miller (2020), a pulsão não conhece o “semblante de gozar”; a satisfação pulsional é um real. Segundo ele, Lacan enfatiza o invólucro formal das formações do inconsciente, mas não lhe escapa que a chave da formação dos sintomas é pulsional, o que permanece. Aponta ainda que o sintoma pode aparecer como um enunciado repetitivo sobre o real. O sujeito não pode responder ao real a não ser sintomatizando.

Logo, há algo do sintoma que se localiza entre a angústia e a mentira, quer dizer, entre algo que mente e algo que não pode enganar. Algo circula entre o que engana sempre e o que não engana jamais. O sintoma mente, a angústia, não. A angústia sinaliza a ameaça, o sintoma defende (MILLER, 2015).

 

O texto de Freud

Ao entrarmos em Inibições, sintomas e angústia (1925-1926/1996), encontramos Freud debruçado sobre as manifestações que considera patológicas. Para ele, a inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente um sentido de verdade ou uma implicação patológica. Mas adverte que, quando a inibição é tomada a partir do sentido, ou seja, limitações e restrições da função do Eu, ela se torna um sintoma.

Freud localiza outro encontro entre os elementos em questão, a inibição e a angústia. Segundo ele, algumas inibições representam o abandono de uma função porque sua prática produziria angústia, ou seja, a inibição como defesa. Nesse ponto de elaboração, reforça que o sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado imóvel, sendo uma consequência do processo de recalque. O recalque, por sua vez, se processa a partir do Eu quando este se recusa a se associar a um investimento pulsional despertado no Isso. Assim, quando o Eu se opõe a um processo pulsional no Isso, ele tem de dar um “sinal de desprazer” com a ajuda do princípio do prazer, a fim de alcançar seu objetivo, o recalque, sendo ainda provável que as primeiras irrupções de angústia de natureza muito intensa ocorram antes de o supereu se tornar diferenciado, devendo o recalque ser descrito como tendo falhado, em maior ou menor grau.

O Eu é uma instância central no dinamismo psíquico. Suas características adaptáveis permitem se organizar e se diferenciar do Isso, realizar intercâmbios e influência, mantendo, nesse sentido, duas posições em relação ao sintoma: a que quer incorporar o sintoma e a que vai tentar manter o recalque.

Freud utiliza o caso do pequeno Hans — apresentado pela primeira vez em 1909 —, uma fobia infantil, para discutir o que está em jogo no sintoma, perguntando que sintoma substitutivo foi encontrado e onde está o motivo de recalque. Hans recusava-se a sair à rua porque tinha medo de cavalos — isso era a matéria prima do caso. O que constituía seu sintoma? O medo? A escolha de um objeto para seu temor? Ter abandonado sua liberdade de movimento? Por que e qual foi a satisfação a que ele renunciou? Hans não sofria de um medo vago de cavalos, mas de que um cavalo fosse mordê-lo. Para Freud, a fobia de Hans foi uma tentativa de solucionar o conflito devido à ambivalência: um amor e um ódio dirigidos para a mesma pessoa, seu pai. Porém, Freud adverte que o medo que faz parte dessa fobia não é um sintoma. Se Hans, apaixonado pela mãe, mostra medo do pai, isso não significa que ele tenha uma neurose ou fobia. Nesse caso, o que transformou a fobia em uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado sintoma. As ideias contidas na sua angústia era a substituição, por distorção, da ideia de ser castrado pelo pai. É sempre a atitude de angústia do Eu que é a coisa primária e que põe o recalque em movimento. A angústia jamais surge da libido recalcada, sendo o recalque apenas um dos mecanismos de que a defesa faz uso.

A angústia

Para Freud (1925-1926/1996), a angústia, em primeiro lugar, é algo que se sente, e, como um sentimento, tem um caráter muito acentuado de desprazer, sendo um sinal para a evitação de uma situação de perigo. A análise dos estados de angústia revela a existência de um caráter específico de desprazer, atos de descarga e percepções desses atos.

Por outro lado, Freud esclarece que a pulsão em si não é um perigo. O que então lhe dá essa qualidade? O alerta de desprazer que o Eu emite, frente à demanda de satisfação da pulsão, colocando em marcha o princípio do prazer para obter esse desvio, é o modo como Freud contextualizou a angústia — sinal que coloca o recalque em marcha. A pulsão, enquanto tal, constitui uma infração ao princípio do prazer, na medida em que sua exigência precisamente não é uma satisfação de prazer, e sim uma exigência de mais de gozar (MILLER, 2015).

Outra questão importante levantada por Freud em Inibições, sintomas e angústia é a relação entre a formação de sintomas e a geração de angústia. Haveria duas hipóteses: a angústia é um sintoma de neurose e os sintomas só se formam a fim de evitar a angústia. A angústia surgiria como reação original ao desamparo no trauma (real), sendo este o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose. Se um paciente agorafóbico que tenha sido acompanhado até a rua for ali deixado sozinho, ele produzirá um ataque de angústia; ou se um neurótico obsessivo for impedido de lavar as mãos após haver tocado algo, ele se tornará preso de uma angústia quase insuportável.

Avançamos, então, ao ponto de dizer que inibição e angústia podem, também, se apresentar como sintoma. No que se refere à inibição, fica claro seu caráter de sintoma quando vemos que a inibição é corporal — sexual, marcha, alimentação e da fala. Isso que toca o corpo — encontro do significante e o corpo.

Perturbar e Des-Montar a defesa

Como fazer com a condição defensiva no sintoma?

Freud nos indica que, quando o analista tenta ajudar o Eu em sua luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios entre o Eu e o sintoma atuam do lado das resistências, não sendo simples de afrouxar, muito menos de separar o Eu e o sintoma. Ele assinala que o Eu é fonte de três resistências: a resistência do recalque; a resistência da transferência, que reanima um recalque para além da lembrança; e a resistência em renunciar a qualquer satisfação ou alívio que tenha sido obtido com a doença. Menciona também a resistência que decorre do Isso, necessitando de ‘elaboração’, e a resistência proveniente do supereu, que se opõe à recuperação do próprio paciente pela análise (FREUD, 1925-1926/1996).

Nessa perspectiva, o sintoma, em análise, deve ser reduzido a seu núcleo. Miller  elucida que “reconduzimos os seres de linguagem a nada, os reduzimos a coisa nenhuma” (2015, p. 18). O paradoxo, segundo ele, é o do resto, havendo um x que resta mais além da interpretação freudiana. Assistimos, então, à confrontação do sujeito com o que Freud chama de restos sintomáticos. Para Freud, como ele partia do sentido, isso se apresentava como um resto, mas, de fato, esse resto é o que está nas origens do sujeito; é, de algum modo, o acontecimento originário e, ao mesmo tempo, permanente, que reitera sem cessar, o núcleo do sintoma. Em um tratamento, passamos, certamente, pelo momento de decifração da verdade do sintoma, mas chegamos aos restos sintomáticos, ao fora de sentido.

Poderíamos falar que perturbar a defesa, em Freud, seria

“quando, na análise, damos ao Eu assistência capaz de situá-lo em posição de levantar seus recalques, ele recupera seu poder sobre o Isso recalcado e pode permitir aos impulsos pulsionais que sigam seu curso como se as antigas situações de perigo não existissem mais” (FREUD, 1925-1926/1996, p. 97)

Entretanto, verificamos que, mesmo após o Eu haver resolvido abandonar suas resistências, ele ainda tem dificuldades em desfazer os recalques, sendo o fator dinâmico o que torna uma elaboração desse tipo necessária e abrangente. Se o perigo neurótico é um perigo pulsional, ao levar esse perigo que não é conhecido do Eu até a consciência, o analista faz com que a angústia neurótica não seja diferente da angústia realística, de modo que, com ela, se pode lidar da mesma maneira.

Para Miller (2015), ler um sintoma consiste em privar o sintoma de sentido. Por isso, diz ele, Lacan substitui o aparato de interpretar de Freud por um ternário que não produz sentido: o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Passa-se assim da escuta do sentido à leitura do fora de sentido. A leitura, o saber ler, consiste em manter a distância entre a palavra e o sentido que ela veicula, a partir da escritura como fora de sentido, como letra, a partir de sua materialidade.

Sabemos que, para perturbar e des-montar a defesa, é preciso um percurso de análise. Esta visa reduzir o sintoma a sua fórmula inicial, quer dizer, ao encontro material de um significante e do corpo, ao choque puro da linguagem sobre o corpo. Logo, para tratar o sintoma, é preciso passar pela lógica do desejo, mas também ir adiante da verdade que essa decifração produz e apontar mais além, a fixação do gozo, a opacidade do real.

Guéguen (2014) afirma que, para além de perturbar a defesa, é preciso ir além e desmontar a defesa, pois é importante supor que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado.

Miller (2020) lembra a pergunta de Lacan: como se vive a pulsão? O próprio Miller elucida que, no percurso de seu ensino, Lacan nos evidencia que não se trata, como em Freud, de resolver o conflito, mas de obter um novo arranjo, um funcionamento menos custoso para o sujeito. Não há pulsão sem sintoma. A fantasia é o curso normal da satisfação e equivale à inércia imaginária (posição do neurótico em relação ao desejo), impedindo de saber fazer com o sintoma. Contudo, sabemos ser possível, em uma análise, definir, localizar a fantasia. Porém, no registro do sintoma, como modo de gozo, o que se pode é saber fazer aí com o sintoma, com esse resto, ou seja, fazer-se amigo do sintoma, montar um novo modo de satisfação, uma nova maneira de satisfação pulsional, uma nova construção que Lacan denomina de sinthoma, pois o sintoma não é algo novo, mas um retorno. Há sempre algo de velho no sintoma, pois este é feito de repetição.

 


Referências:
FREUD, S. (1925-1926). Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
GUÉGUEN, P-G. “Defesa (desmontar a)”. Scilicet: Um real para o século XXI. Scriptum Editora. 2014
MILLER, J. -A. “Os caminhos na formação de sintomas”. Opção Lacaniana. nº 60. São Paulo: Eolia, set. 2011.
MILLER, J. -A. “Ler um sintoma”. Opção Lacaniana. nº 70. São Paulo: Eolia, jun. 2015.
MILLER, J. -A. “Síntoma y pulsíon”. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2020.



Uma defesa primária

Cristina Drummond
AME da EBP/AMP
paixao.bhe@terra.com.br

 

Resumo: O texto aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Freud situa a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses e delineia a própria concepção do funcionamento da vida psíquica, marcando sua oposição em relação aos seus contemporâneos. Desde o texto “Projeto para uma psicologia científica”, a defesa primária é percorrida tanto através da busca por sua origem quanto pela diferenciação entre defesa normal e patológica. Avançando pelo ensino de Lacan, argumenta-se que a defesa diz respeito à dor, ao corpo, e como cada um pode se virar com esse encontro. A partir dessa premissa, esse conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias, seja quando a desmontagem da defesa faz emergir a pulsão encoberta. A construção pela defesa primária permite buscar, por trás das manifestações sintomáticas, o sujeito do gozo.

Palavras-chave: defesa; direção do tratamento; formação de sintomas.

A PRIMARY DEFENSE

Abstract: The text addresses the importance of the concept of primary defense as the guide of the Freudian-Lacanian clinic. Freud puts the notion of defense at the foreground in psychoneuroses, and outlines the very conception of the functioning of psychic life, marking his opposition to his contemporaries. Since the text Project for a scientific psychology, the primary defense is covered both through the search for its origin and the differentiation between normal and pathological defense. Advancing through Lacan’s teaching, it is argued that defense concerns pain, the body, and how each one can deal with this encounter. From this premise, this concept is presented as a guide in the direction of treatment, whether it is in cases in which the formation of the symptom is structured by the repression and is subject to decryption, allowing the disassembly of meaning in body phenomena, such as drug addictions and anorexias, or when the disassembly of the defense brings out the covert drive. The construction by primary defense allows for finding the subject of jouissance behind the symptomatic manifestations.

Keywords: defense; direction of treatment; symptom formation.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Freud e a defesa primária

Ao colocar a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses, Freud delineou a própria concepção do funcionamento da vida psíquica em oposição aos pontos de vista de seus contemporâneos. Para investigar os primeiros usos do termo, vamos voltar à histeria e às hipóteses sobre a etiologia das psiconeuroses e ao “Projeto para uma psicologia científica”, escrito por Freud em 1895 em apenas três semanas. Ele faz parte dos rascunhos trocados em sua correspondência com Fliess, a qual durou de 1887 a 1902. O projeto ficou inacabado e foi engavetado por Freud, que só voltou a ter contato com o texto em 1937, por intermédio da princesa Maria Bonaparte, que o obteve com a compra das cartas Freud–Fliess. O texto só foi publicado em 1950, 11 anos após a morte de Freud, e ele tornou-se uma referência para o estudo da metapsicologia, pois contém a origem de muitos conceitos.

Apesar de ser um documento neurológico, o projeto mostra o esforço inicial de Freud para compreender a etiologia das neuroses, assim como traz o gérmen do que ele vai desenvolver mais tarde. No “Projeto”, Freud se propõe a formalizar uma doutrina que tem na mecânica newtoniana seus parâmetros científicos, buscando uma base orgânica para as descobertas clínicas oriundas dos atendimentos a pacientes com sintomas neuróticos graves.

Em seu “Projeto para uma psicologia científica”, Freud aborda o problema da defesa de duas maneiras. Em primeiro lugar, ele procura a origem daquilo que chamou de “defesa primária” numa vivência de dor. Em segundo lugar, ele procura diferenciar uma defesa normal de uma defesa patológica. A primeira opera no caso da revivescência de uma experiência penosa, e o ego já começa a diminuir a intensidade do desprazer quando a situação se repete.

Na carta do dia 20 de outubro de 1895, Freud, que ainda se encontrava esperançoso em relação ao “Projeto”, relata a Fliess de que modo sua psicologia tornara-se clara para ele:

[…] as barreiras ergueram-se subitamente, os véus caíram e tudo se tornou transparente — desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar-se, as engrenagens se entrosaram e tive a impressão de que a coisa passara realmente a ser uma máquina que logo funcionaria sozinha. Os três sistemas de neurônios; os estados livres e ligados de Qn; os processos primário e secundário; a tendência principal e a tendência de compromisso do sistema nervoso; as duas regras biológicas de atenção e da defesa; as características de qualidade, realidade e pensamento; o estado do grupo psicossexual; a determinação sexual do recalcamento; e, por fim, os fatores que determinam a consciência como função da percepção — tudo ficou e continua correto até hoje! Naturalmente, mal consigo conter minha alegria (FREUD, 1887–1904/1986, p. 147).

Nessa carta temos um resumo do projeto e ela mostra que Freud queria encaixar o organicismo à sua teoria do Inconsciente em formação. Na carta que inicia em 8 e continua em 10 de novembro daquele ano, ele diz de sua tristeza pela desistência do projeto: “A partir de agora minhas cartas perderão muito de seu conteúdo. Empacotei os manuscritos psicológicos e os atirei numa gaveta, onde dormirão até 1896. […] Desde que pus a ΦΨω de lado, sinto-me abatido e desencantado; creio não estar de modo algum à altura de suas congratulações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 151). E a sua própria avaliação não deixa dúvidas de que ele abre mão de uma relação de superposição entre a neurologia e o mecanismo de recalque:

“Não entendo mais o estado mental em que maquinei a psicologia; não consigo perceber como posso tê-lo infligido a você. Creio que você está sendo polido demais; para mim, parece ter sido uma espécie de loucura. A solução clínica das duas neuroses provavelmente se manterá, depois de algumas modificações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 153).

A primeira utilização do termo “defesa” ocorreu no texto “Neuropsicoses de defesa” (1894). Entretanto, antes disso, Freud já buscava compreender esse processo, mesmo que não o tivesse nomeado assim. O estudo das origens das concepções sobre defesa nos remete às suas investigações acerca do trauma. Freud afirma que as quantidades de energia com as quais um sujeito tem de lidar colocam o psiquismo em funcionamento, pois, das excitações que provêm de fora, o sujeito pode fugir, tal como no modelo do arco-reflexo; mas não pode fugir das excitações internas, o que acarreta a necessidade de estruturas capazes de dar conta da tramitação interna e da descarga adequada das quantidades de energia.

Para Freud (1893/1976, p. 42), a lembrança traumática possui ação contínua e intensa, que não se desgasta com o tempo, pois não houve perda do afeto que está investido nela. O momento que marca o surgimento da doença é aquele em que o indivíduo “se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo” (p. 55). É essa incompatibilidade entre o eu e uma representação que torna necessária a “divisão de consciência”, ou seja, a criação de um segundo grupo psíquico cujo núcleo é recalcado. Nesse momento inicial da concepção da defesa, esse processo é tratado como um ato voluntário de afastar algo tomado como desprazer do psiquismo, e ele não pode ser considerado patológico, já que esse ato de esquecimento intencional é bem sucedido para muitas pessoas. Por isso, Freud (1895/1977) inclui a defesa entre as tendências normais do indivíduo.

Para formular o modelo do funcionamento psíquico, Freud (1895/1977) propõe uma concepção quantitativa dos processos psíquicos com duas noções fundamentais: a de neurônio e a de quantidade (Q). A quantidade é a energia que circula pelos neurônios, podendo ser deslocada e descarregada. A energia transita através dos neurônios, que são capazes de armazená-la. Assim, um neurônio pode estar ocupado, com uma quantidade de excitação, ou desocupado. O sistema nervoso recebe estímulos do mundo externo. A tendência é descarregar-se das quantidades de energia que ingressam pela fuga, seguindo o modelo do arco-reflexo. Mas o sistema nervoso recebe também estímulos endógenos, que precisam ser descarregados, e dos quais o organismo não pode se esquivar. Esses estímulos criam as grandes necessidades, tais como a fome, a respiração, a sexualidade. Diante desses estímulos, o aparelho não pode descarregar toda a quantidade de excitação presente no neurônio, pois é necessário que este sustente um acúmulo de Q, em função das ações necessárias para pôr fim a eles. A partir disso, Freud (1895/1977) diz que a estrutura e o desenvolvimento, assim como as funções dos neurônios, devem ser compreendidos com base no princípio de inércia, que é a tendência a evacuar as quantidades de energia que recebem do mundo externo, com o objetivo de diminuir a excitação presente no neurônio. Com o fracasso dessa evacuação, a tendência do psiquismo passa a ser manter a energia no nível mais baixo possível, o que constitui o princípio de constância.

No início da vida, devido a seu estado de desamparo, o ser humano não consegue provocar uma ação capaz de diminuir a tensão vinda de excitações endógenas. O alívio da tensão só pode ser alcançado se for eliminado o estímulo na fonte endógena. Nesse momento, o sujeito precisa ser auxiliado por outro, que realize uma ação para acabar com o estado de tensão. Quando isso ocorre, essa ação diminui a tensão interna, produzido uma sensação de prazer na consciência. Essa ação é independente da Q endógena, e Freud a chama de ação específica, aquela que possibilitará o que Freud denomina vivência de satisfação. A vivência de satisfação deixa uma marca e fará com que o sujeito, diante de novo estado de tensão, queira que essa se repita. É pela vivência de satisfação que serão construídos os traços mnêmicos. Por meio da vivência de satisfação, devido a um movimento mecânico, a notícia da eliminação da tensão chegará a outros neurônios formando uma trilha preferencial entre neurônios que contêm a imagem mnêmica do objeto da satisfação. Quando outra situação de tensão ocorrer, a imagem do objeto é reinvestida e ocorre algo análogo à percepção, ou seja, uma alucinação. O psiquismo não contém mecanismos internos suficientes para discriminar entre a presença real do objeto da satisfação e a alucinação deste. Assim, torna-se necessário que se adquira um critério para verificar a presença real do objeto da satisfação, a fim de que seja efetuada uma descarga de Q na presença do objeto de desejo, o que efetivamente levaria à satisfação. Do contrário, diante da alucinação, a descarga de Q levaria ao desprazer.

Freud (1895/1977) afirma que as ações humanas se constituem em duas vivências fundamentais: buscar o prazer e evitar a dor. A busca do prazer é indicada como vivência de satisfação. Tanto na vivência de satisfação quanto na vivência de dor, há uma memória que, em determinadas circunstâncias, é acionada. Na busca do prazer, a imagem do objeto de satisfação é reinvestida. No entanto, para que haja de fato uma satisfação da tensão, o objeto tem de estar presente. No caso de um objeto causar dor ao psiquismo, há uma sensação de desprazer, e esse aumento quantitativo induz a eliminação da Q para consequente alívio da tensão. Ocorre ainda um trilhamento entre a tendência à descarga e uma imagem-lembrança do objeto que provoca a dor. Se a imagem do objeto hostil é reinvestida, surge um estado de desprazer com uma tendência à descarga. Esse estado não é propriamente a dor, mas algo que se assemelha a ela e que Freud chama de afeto. Na recordação da dor, há desprazer. O desprazer tem uma origem dupla: no ambiente externo, pelo objeto hostil; internamente, pela recordação. Portanto, evitar a dor terá relação com o não-investimento da imagem mnêmica do objeto hostil.

Isso é o que Freud caracteriza como defesa primária: a desocupação da imagem recordativa hostil. A defesa primária, que é acionada no caso da dor, cumpre a função de gerar uma aversão a manter investida a imagem mnêmica hostil. Portanto, a consequência da defesa primária é gerar prazer, evitando o desprazer. Freud afirma que, além da defesa primária, o psiquismo necessita de mecanismos internos para dar conta da insatisfação que seria gerada a partir da recordação da dor e da catexização da imagem mnêmica do objeto da satisfação sem sua presença real. Daí decorre a importância, para a estruturação psíquica, da vivência da dor e do estado de desejo. Se não existem estruturas internas capazes de inibir o processo alucinatório no caso da dor, há a geração de desprazer. Embora o objeto hostil não esteja presente, o desprazer sentido pela representação é como se fosse real e externo. Da mesma maneira, a catexização do objeto de desejo nos estados de desejo leva ao desprazer, pois há uma eliminação da tensão pelos caminhos facilitados, mas não ocorre a satisfação, pois o objeto de desejo não está lá para propiciá-la. Se a inibição, que é tarefa do ego, não se realiza, há naturalmente uma decepção. Dessa maneira, o ego é um conjunto de neurônios que tem por finalidade inibir a descarga da quantidade quando da ausência do objeto da satisfação. No caso da dor, precisa-se de um signo para a desocupação da imagem recordativa hostil. Essa tarefa do ego se dá pela inibição da descarga de quantidades, pelo processo que Freud denominou de ocupação das vias colaterais, que consiste em inibir a descarga da Q pelos caminhos facilitados, desviando-a para os neurônios colaterais. Se se conseguir realizar a inibição a tempo, não haverá liberação de desprazer. No caso contrário, haverá enorme desprazer e defesa primária excessiva. Esse é o papel do ego. A partir da postulação da inibição da descarga feita pelo ego, Freud distingue os processos psíquicos primários e os secundários. No processo primário, o estado de ligação do ego deixa de ser levado em conta e prevalecem as ligações associativas criadas pela vivência originária, havendo uma indiferenciação entre percepção e alucinação do objeto. Os processos psíquicos secundários se dão a partir da inibição produzida pelo ego. Nesse caso, verifica-se que a defesa primária é menos utilizada nos processos secundários devido à inibição.

A defesa primária é considerada, ao lado da atenção, regra biológica e definida como um repúdio a manter investida a imagem mnêmica hostil da dor, isto é, evitar o desprazer. Contudo, não se podem ignorar as reações de adoecimento encontradas em diversos pacientes, que se devem ao esquecimento ocasionado pela “divisão de consciência” (1894, p. 57). O que determina uma defesa como tendo um caráter patológico é o deslocamento. A ideia que causa desprazer é esquecida, mas outra representação irrompe repetidamente na consciência sem motivo evidente e desencadeia o afeto aflitivo (FREUD, 1895/1977, p. 405-406). Na tentativa de defender-se, o eu se obriga a fazer algo de que não é capaz: erradicar o traço mnêmico e o afeto ligado à representação, “mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto do qual está carregada” (FREUD, 1894/1976, p. 56). Para que a representação incompatível se torne verdadeiramente inócua, é preciso que a soma de excitação que dela foi desvinculada seja utilizada de alguma forma, seja pela conversão, seja pelas falsas ligações das ideias obsessivas, seja pela liberação de angústia.

Há ainda outro tipo de defesa, que, segundo Freud, é mais poderosa e mais bem sucedida do que naqueles casos em que a representação incompatível é separada de seu afeto. Nessa defesa, “o eu rejeita a representação incompatível juntamente com o seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido” (FREUD, 1894/1976, p. 64). Quando isso acontece, o sujeito fica em um estado de confusão alucinatória que pode ser classificado como psicose. Nesse processo de “fuga para a psicose”, o eu rompe com a representação incompatível, que está ligada a uma parte da realidade e, dessa forma, ele acaba por romper com a realidade.

Freud (1895/1977, p. 374) constatou que o recalcamento incide sobretudo sobre as ideias provenientes da vida sexual do sujeito e que despertam no eu um afeto de desprazer. Essas ideias não são realmente extintas. Torna-se necessário que a força recalcadora que atuou no passado continue sua ação através da resistência que é dirigida contra qualquer pensamento que tenha relação com o recalcado. Esse processo é regulado pelo eu. Dessa forma, a defesa passa a adquirir um caráter contínuo, que tem como efeito a resistência evidenciada na clínica. Ao retomar o tema da determinação do processo defensivo patológico, Freud (1896) abandona a questão da hereditariedade como causa mais importante das neuroses e defende o papel da sexualidade na causação tanto das neuroses atuais quanto das psiconeuroses de defesa, ressaltando que, nestas, o psiquismo assume papel essencial através da defesa contra as lembranças traumáticas de experiências sexuais reais ocorridas precocemente.

Tal como Virgínia Carvalho nos indicou na lição anterior, Freud separa e mistura os conceitos de defesa e recalque e, apenas no texto “Inibição, Sintoma e Angústia”, ele pode deixar claro que o recalque não é a mesma coisa que a defesa e toma o recalque como “um caso especial de defesa”, já que ele visa a proteção do eu contra as “exigências pulsionais” (1925–1926/1976, p. 159).

Carvalho retomou os efeitos do recalque separando afeto de representação e seus efeitos de conversão na histeria do seu processo em dois tempos, com deslocamento da representação na neurose obsessiva. O efeito do recalque é o sintoma, mas, nos processos de defesa primária, nem sempre a resposta é a constituição de um sintoma, já que o sintoma decifrável é um recurso do simbólico e ele depende do recalque de um significante.

Nesse sentido, o conceito de defesa não se restringiria ao simbólico, tampouco ao imaginário, já que podemos também tomar todo o recurso ao imaginário como uma defesa diante da precariedade e do desamparo do infans. Se a defesa é defesa ao real, ao encontro com o real, o imaginário e o simbólico se apresentam como maneiras distintas de recobri-lo.

Por isso o conceito de defesa primária, aquela que antecederia o recalque, nos é muito caro, pois ele nos indica que, quando o sujeito não conta com o recurso do sintoma, temos que nos dirigir ao que ele pode construir como defesa diante do primeiro encontro com o real da língua, a como a palavra tocou seu corpo. A defesa primária diz respeito à dor, ao corpo e a como cada um pode se virar com esse encontro.

Da importância de retomar o conceito de defesa

1) A defesa primária é a defesa do real da pulsão

Em primeiro lugar, perguntei-me a respeito da importância de tomarmos o conceito de defesa a partir de um texto que poderíamos dizer ser pré-psicanalítico, já que ele data de cinco anos antes de “A interpretação dos sonhos”. Nessas lições introdutórias, visamos tratar o conceito de defesa até chegar à proposta de Lacan de que a direção de um tratamento se orienta pela perturbação e desmontagem da defesa, o que demanda passar pelos diversos tempos da construção desse conceito. Como Virgínia Carvalho nos trouxe em sua aula anterior, desmontar a defesa é uma operação que incide sobre o gozo autístico, sobre o gozo do Um. É uma formulação de Lacan de 1976, que extrai do caminho de Freud uma indicação precisa sobre a direção do tratamento, e vamos ter que fazer um grande percurso teórico para dar a ela todo o seu valor de orientação.

Para vocês terem uma ideia do que vamos buscar construir nesse percurso, sugiro a escuta do vídeo de Esthela Solano no Boletim Punctum 31. Ali ela fala do que Lacan nos indicava como a direção de uma análise: recuperar um traço de gozo que ex-siste no nível do dizer. Ir além do simbólico e do imaginário para buscar o que uma análise deve visar e que ela chama de um acontecimento de sentido real, aquele que toca o corpo. Se a pulsão é definida como o eco no corpo do fato de que há um dizer, é esse nível real do pulsional que Lacan buscava tocar para além das palavras que o sujeito enuncia, e, para isso, é preciso perturbar a defesa. Perturbar a defesa implica em atrapalhar a homeostase do princípio do prazer ao fazer um sujeito falar sobre aquilo para o que ele se mostra menos disposto, isto é, de suas particularidades sintomáticas.

Acho que o exemplo relatado por Silvia Ons (2022), de um caso que ela acompanhou em supervisão, nos ajuda a entender melhor a maneira como tomamos a defesa na perspectiva de sua perturbação. Trata-se de uma mulher que, quando era criança, ganhou um frasco em forma de fada (hada) com granulados dentro. Ela o pede dizendo: “me dá o geladinha (heladita)?”. Nesse momento ela é corrigida. Dizem-lhe: “não é a heladita, é hada”. Ela leva a lembrança desse equívoco para sua análise perguntando-se sobre seu sentido. O analista lhe diz: “você já sabe o que tem que fazer com isso”, tomando esse equívoco como uma jaculatória sem sentido, puro gozo. Mas, numa segunda análise, ao puxar o fio simbólico, surge uma cena sexual infantil durante a qual ela fantasiava com uma geladeira e assim, geladinha, heladita, tem um caráter de defesa: esfriar o prazer desse encontro sexual mas, ao mesmo tempo, perpetuá-lo. Geladinha não é apenas uma representação, já que é também sintoma como acontecimento de corpo com suas duas caras: defesa diante do gozo e memória inapagável de seu encontro. Como castigo por seu erotismo infantil, ela imaginava que iriam trancá-la em uma geladeira, padecendo de uma rinite crônica e estando sempre resfriada. Seu ceticismo diante da existência, seu constante pessimismo, sua recusa em admitir que os acontecimentos pudessem ser distintos daquilo que ela imaginava, indicam como o heladita é também esse saber gélido que a acompanhava e mortificava. Isso indica que, para se perturbar a defesa, é preciso esgotar o sentido que ela encerra.

2) Quando o sujeito não conta com um sintoma

Em segundo lugar, tomar o conceito de defesa tem uma grande importância na orientação do tratamento psicanalítico nos casos em que as defesas não estão estruturadas a partir do recalque e dos sintomas passíveis de serem decifrados pelo simbólico. É um fato constatável que a psicanálise muda e que nos defrontamos em nossa atualidade com uma ordem simbólica e com um real distintos daqueles do final do século 19. Se a língua que habitamos muda, os sintomas e os fenômenos de gozo também mudam. Cabe ao analista lidar com a subjetividade de sua época, mas isso não nos leva a querer ser atuais e conformes a nossa época.

Ainda que a maneira de interpretar tenha mudado, buscamos fazer valer os princípios lógicos que orientam nossa prática da psicanálise, que é sensível ao mestre de nossa época, mas eles devem ser entendidos a partir da maneira pela qual Lacan nos ensinou a ler Freud. Tal como diz Max Jacob, o verdadeiro é sempre novo, e essa me parece ser a boa maneira de retornar a Freud naquilo que ele nos indica como insuperável. Lacan (1977) nos assinala o espírito com o qual devemos retornar a esses primeiros textos em sua “Abertura da sessão clínica”, em que ele nos diz que o analista tem que apresentar suas razões, até mesmo no mais ocasional de sua prática, e também tem que justificar a razão de Freud ter existido.

Freud não manteve as mesmas ideias em relação ao conceito de defesa e, durante sua obra, introduziu mudanças em sua teoria de acordo com as questões que foram suscitadas pela experiência do real de sua clínica. A teorização do conceito de defesa tem grande importância clínica, na medida em que foram as resistências, entendidas em um primeiro momento como reflexos clínicos da defesa, que mobilizaram as mudanças na técnica e as reformulações teóricas em torno da concepção do tratamento das neuroses. O conceito de defesa foi apropriado de forma equivocada por diversos psicanalistas, o que gerou um tipo de prática baseada na análise das resistências do eu, tendo como alvo o fortalecimento das defesas. É o viés da psicanálise tomada como a análise dos mecanismos de defesa que foi muito trabalhado por Anna Freud, segundo a qual tudo o que concorre para dificultar o processo analítico seria da ordem de uma resistência.

Essa ênfase dos pós-freudianos nos mecanismos de defesa e na análise das resistências é um ponto importante na distinção de nossa orientação lacaniana e da maneira pela qual tomamos os tratamentos. Isso torna o entendimento do conceito de defesa ainda mais essencial para fundamentarmos os princípios lógicos de nossa prática.

Retomar os caminhos desse conceito também nos leva a promover as maneiras iniciais de Freud e tomá-lo como uma defesa primária, que seria distinta do recalque. Esse retomar das primeiras observações clínicas de Freud se articula ao interesse pelas várias manifestações clínicas da contemporaneidade que se apresentam na clínica do narcisismo, assim como naquela da compulsividade desregulada e da descarga por meio das diversas atuações. Essas respostas não são construídas de modo sintomático, não são construídas a partir do recalque, e pensar sua organização a partir da defesa primária pode nos ajudar na abordagem desses fenômenos. Penso aqui na distinção entre fenômenos de corpo e acontecimento de corpo como respostas distintas que exigem modos distintos de tratamento e que talvez possamos articular com o conceito de defesa primária tal como Freud o pensou no início de seu percurso. Se as neuroses típicas se fundam pelo recalque, outros sintomas, tais como a anorexia, as toxicomanias, obesidades e outros fenômenos de corpo, podem ser iluminados em sua articulação com as defesas primárias.

3) Quando a defesa se desmonta e surge a pulsão que a encobria

Penso que também seria importante pensar no que nos ensinam alguns casos em que as defesas são desmontadas a partir de um encontro com o real. Elas nos elucidam a respeito da função da defesa e de como as pulsões se apresentam a partir da desmontagem desse recurso. Vou tomar um exemplo que se aproxima daqueles relatados por Lacan sob o título de perversão transitória, perversão reativa diante de um impasse no simbólico, no qual a desmontagem da fantasia faz aparecer uma resposta da pulsão separada da defesa.

Trata-se de um caso relatado pela analista italiana Laura Storti em uma conferência proferida na sessão clínica de NUCEP em janeiro de 2022, um caso de psicanálise aplicada atendido no laboratório de homens que cometeram violência contra mulheres e menores, em um serviço localizado em Roma. Storti se refere a um homem de 58 anos que foi atendido durante um ano no âmbito desse laboratório. O serviço social o encaminhou buscando um especialista em pedofilia e ninguém tinha se colocado à disposição para tal tratamento. Ele havia ficado um ano na prisão e, depois, alguns dias em prisão domiciliar enquanto esperava uma sentença definitiva. Foi condenado por tentativa de violência contra duas menores e por possuir material pornográfico infantil. No primeiro encontro, ele coloca sobre a mesa da analista os vários documentos judiciais e conta que o incidente ocorreu em um sótão de um edifício residencial onde ele fazia serviços de inspeção. Diz que não fez nenhum tipo de violência contra as meninas, que só se masturbou na frente delas. Dois policiais o prendem um mês depois e um deles lhe pergunta se ele tinha material de pornografia infantil. Ele diz que sim e entrega espontaneamente o material. Essa admissão foi a causa de sua prisão. Ele não entende como chegou a essa situação e diz que é um homem justo, um homem casado, pai de duas filhas e avô de duas netas e que às vezes duvidava se tinha sido ele mesmo que havia feito isso. Passa por uma situação de ameaça na prisão e diz que os tratavam assim. Ao ser perguntado a quem ele se referia, ele sussurra: pedófilos. Tem insônia, fica confuso e muito angustiado. Na prisão, o guarda com um olhar perturbador lhe disse que ele deveria morrer. A perda de trabalho como eletricista e vagabundeio na internet o fizeram colecionar as imagens. Primeiro buscou trabalho na internet e, depois, imagens de mulheres, e, à medida que seguia sua busca, o computador lhe perguntava se queria mulheres mais jovens. Começaram a chegar imagens de meninas. De início, se masturbava, mas depois, não mais. Ele não conseguia entender o que acontecera, pois sempre gostara de mulheres. Quando a analista lhe pergunta se não se interessava nem em sua fantasia, ele se mostra confuso. Ele catalogou as imagens. Fala que a mãe era muito religiosa e rígida. Ele era o mais novo dos filhos e a mãe separava os meninos das meninas. O pai sempre estava fora de casa, trabalhando. Traz uma lembrança infantil: aos seis anos está em uma festa na sua casa e beija uma menina. A mãe entra pela porta e diz à menina que não volte à sua casa e bate muito no filho. Ele se pergunta se essa lembrança teria algo a ver com o que aconteceu com ele, já que ela tinha a mesma idade das meninas diante das quais ele se masturbou. Ele diz que, ao ver as meninas no marco da porta, algo fez click nele. Ele se pergunta pelo prazer em olhar as mulheres e as meninas, mas também pelo prazer em ser visto pelas meninas. Disse que talvez tenha feito isso para poder parar. Havia ali o olhar da mãe e o do guarda da prisão. Foi uma apresentação da cena fantasmática que o levou à atuação.

Creio que o conceito de defesa primária é aquele que nos permite nos orientar na leitura desse tipo de manifestação, fazendo-nos buscar, por trás delas, o sujeito do gozo, aquele que a defesa encobriu.

 


Referências
FREUD, S (1895). Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. I, 1977.
FREUD, S (1887-1904). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
FREUD, S (1894). As neuropsicoses de defesa. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III, 1976.
FREUD, S (1893). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferência. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III, 1976.
FREUD, S (1925–1926). Inibição, Sintoma e ansiedade. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XX. 1976.
LACAN, J. Ouverture de la Section Clinique. Ornicar? n. 9, 1977, p. 7-14.
ONS, S. Sobre el sentido. El psicoanálisis líquido y sólido. Buenos Aires: Grama ed., 2022.

1. Disponível no YouTube: https://youtu.be/V7wMlwYXXg0 Acesso em 13 nov.2022 



Almanaque On-line – Agosto/2023 – Nº 31

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

Giselle Moreira

Apresentamos a 31ª edição da revista Almanaque On-line, que tem como eixo temático “A clínica universal do delírio”, em consonância com o argumento da próxima Jornada da EBP-MG – O que há de novo nas psicoses… ainda – e do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que acontecerá em fevereiro de 2024 sob o título Todo mundo é louco.

Os textos que compõem esta edição marcam um contraponto a uma perspectiva despatologizante que busca eliminar o real do sinthoma. A clínica universal do delírio configura, por sua vez, uma orientação política da psicanálise e parte da leitura lacaniana de que os discursos não são mais que defesas contra o real, o que permite deduzir, nesse caso, que ninguém é normal: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31).  (Leia mais)

TRILHAMENTOS

Schreber, ainda contemporâneo

Sérgio Laia

Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”. (Leia mais)


 

Todo mundo é louco

Frederico Zeymer Feu de Carvalho

Texto de explicitação do aforismo lacaniano “todo mundo é louco”, tema do congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2024, destacando seu contexto de enunciação, ligado ao impossível de se ensinar, e o último ensino de Lacan, do qual esse aforismo é uma bússola. (Leia mais)


 

O ordinário do gozo, fundamento da nova clínica do delírio

Dominique Laurent

A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária. (Leia mais)


 

“Folitiquement” incorreto

Pascale Fari

O significante “loucura” não é mais admissível em psiquiatria. O psiquismo tem sido apagado, o qualificativo “mental” se tornou uma relíquia incômoda e o que permanece é simplesmente “a doença”. Diante do sufixo-mestre atual, neuro, o essencial não é mais o que o paciente tem a dizer, mas sim que ele engula a coisa. O cérebro é o objeto primordial dessa doença, a máquina é seu modelo original. É a psicanálise que, por sustentar a dimensão da subjetividade, constitui o obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico. (Leia mais)


 

Clínica psicanalítica do delírio

Laurent Dupont

Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”. (Leia mais)

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista Sérgio de Campos

No final do volume 2 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses – volume este intitulado “As psicoses ordinárias” (CAMPOS, 2022a) – você cita Lacan quando ele afirma, a propósito da religião, que a psicanálise não triunfará: ela sobreviverá ou não. Podemos ampliar a questão da sobrevivência da psicanálise no que diz respeito ao que temos nos dedicado, atualmente, no Campo Freudiano, a saber, à problemática da despatologização… (Leia mais)

ENCONTROS

A despatologização lacaniana e a outra

Francesca Biagi-Chai

A autora examina a concepção de despatologização, apresentando os argumentos que justificam a oposição já apresentada no título do texto: a lacaniana e a outra. Se a autora afirma que a instituição lacaniana despatologiza, é porque está concebida segundo a topologia moebiana, regida pelo discurso e pela clínica. A despatologização “selvagem” permite equivaler “o sentimento de cada pessoa” à sua realidade e essa deve, portanto, ser reconhecida como tal. Evidencia-se, assim, a evacuação do inconsciente e, igualmente, do sintoma. (Leia mais) 


Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma

Philippe la Sagna

Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele. (Leia mais)

PRELÚDIOS

O método psicanalítico: de Freud a Lacan e retorno

Paula Pimenta

Este artigo se propõe a apresentar em detalhes o texto de Miller (1997), intitulado “O método psicanalítico”, e o texto quase homônimo de Freud (1904[1905]/2017), intitulado “O método psicanalítico freudiano”. O percurso a ser feito partirá do texto de Freud, passando pelo de Miller e retornando ao de Freud com a intenção de promover uma interlocução entre eles. (Leia mais)


Uma leitura do texto freudiano “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”

Cristiana Pittella

A partir de uma leitura de orientação lacaniana do texto em que Freud procura transmitir o método psicanalítico, depreende-se a importância da formação do psicanalista para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise. (Leia mais)


 

Inventar a própria maneira de ler

Márcia Mezêncio

Este artigo traz a leitura, a contextualização e o comentário acerca do artigo de Freud intitulado “Sobre o início do tratamento”, publicado em 1913 na série que ficou conhecida como Escritos técnicos, e desdobra algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise, remetidas ao momento atual. (Leia mais)


 

Uma introdução ao amor transferencial

Renata Mendonça

Este artigo apresenta uma releitura de “Observações sobre o amor transferencial” (1915[1914]) para abordar as indicações de Freud sobre o método psicanalítico, incluindo no debate também alguns autores de nossa época, como Lacan e Miller, mostrando o quanto o texto freudiano é contemporâneo e necessário à clínica psicanalítica. (Leia mais)


 

Lembrar, repetir, perlaborar

Lucia Maria de Lima Mello

A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa. (Leia mais) 


 

Do sentido à satisfação do sintoma

Kátia Mariás

O texto aborda as Conferências XVII e XXIII de Freud sobre o sentido dos sintomas e sobre os caminhos da formação dos sintomas. Nessas conferências, ao partir do sentido – Sinn – para a significação, a referência – a Bedeutung –, Freud vai do sentido ao gozo do sintoma. (Leia mais)


 

Construções e reminiscências

Luciana Silviano Brandão

A autora faz um percurso ao longo do texto “Construções em análise”, trabalha os conceitos de recordações ultranítidas, verdade histórica, rememoração e reminiscência. Sua hipótese é a de que a verdade histórica se equipara conceitualmente à reminiscência. (Leia mais)

PÓLIS

A escola, o instituto e a ética das consequências – Conferência proferida na atividade Para que serve o Instituto? – abril/2023

Jésus Santiago

No presente texto, o autor apresenta a forma de funcionamento da Escola e do Instituto a partir da ideia de que o princípio de orientação para a prática clínica é o mesmo que para a prática institucional dedicada à formação analítica. O modo como a psicanálise apreende as coisas do mundo diz mais de uma dimensão ética do que propriamente epistêmica – trata-se de uma dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do inconsciente. O autor, faz, então, uma leitura sobre os ambientes psicanalíticos contemporâneos e sobre a diferença entre a Escola e o Instituto. (Leia mais)

INCURSÕES

Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses  

Sérgio de Castro

O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino e determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade. (Leia mais)


 

O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares  

Alejandra Glaze

Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. (Leia mais)


 

Alocução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano

Tereza Facury

A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos. (Leia mais)


 

A criança, seus delírios e os delírios de seus pais

Suzana Faleiro Barroso

A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai. (Leia mais)


 

Supereu solúvel no álcool? 

Miguel Antunes 

A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo. (Leia mais)

DE UMA NOVA GERAÇÃO

A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo 

Paulo Henrique Assunção Rocha 

No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. (Leia mais)


 

Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea? (Leia mais)


 

Do dom de Mauss ao inominável da pulsão

Laydiane Pereira de Matos

Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. (Leia mais)




Do sentido à satisfação do sintoma[1]/ 

Kátia Mariás
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise /AMP
katiamariasp@gmail.com

Resumo: O texto aborda as Conferências XVII e XXIII de Freud sobre o sentido dos sintomas e sobre os caminhos da formação dos sintomas. Nessas conferências, ao partir do sentido – Sinn – para a significação, a referência – a Bedeutung –, Freud vai do sentido ao gozo do sintoma.

Palavras-chave: sintoma; gozo; pulsão; sentido; referência; satisfação. 

FROM MEANING TO SYMPTOM SATISFACTION 

Abstract: The text addresses Freud’s XVII and XXIII Conferences on the meaning of symptoms and on the paths of symptom formation. In these conferences, by starting from the meaning – Sinn – and moving to the signification, the reference – Bedeutung –, Freud goes from the meaning to the jouissance of the symptom.

Keywords: symptom; jouissance; drive; meaning; reference; satisfaction.

Imagem: Renata Laguardia

O texto que fui encarregada de trabalhar é o único que não está na série de textos sobre os fundamentos da clínica psicanalítica publicados nas Obras Incompletas (FREUD, 2017). Ele compõe a série de conferências proferidas por Freud a um público de não analistas entre os anos 1915 e 1917, chamadas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”. O que Freud desenvolve ali não deixa de estar referido aos fundamentos da clínica e, inclusive, conversa com eles. De qualquer forma, como sugere Miller, o “perder-se um pouco” tem todo seu valor. Para estar bem orientado em um tema analítico é preciso também desorientar-se, quer dizer, não pensar no tema de forma demasiadamente familiar (MILLER, 2011, p. 11). Selecionei algumas passagens da Conferência XVII, “O sentido dos sintomas” (Der Sinn der Symptom) (FREUD, 1916-17/1990a), para que possamos extrair o que há de essencial nesse texto e o que podemos aprender com ele.

Num primeiro ciclo de conferências, Freud se ocupou dos sonhos e dos atos falhos. A fonte desse primeiro ciclo eram as obras da descoberta: “A interpretação dos sonhos”, a “Psicopatologia da vida cotidiana” e até “O chiste e sua relação com o inconsciente”. O segundo ciclo de conferências, presentes na parte III, dentre as quais está “O sentido dos sintomas”, trata dos sintomas neuróticos, as neuroses de transferência, como ele então as chamava: histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva. A conferência XVII é, então, uma aplicação aos sintomas neuróticos do que havia sido dito sobre os sonhos e atos falhos. É possível constatar que os sintomas são como os sonhos e atos falhos, ou seja, têm um sentido e podem ser interpretados (MILLER, 2011).

Esse texto já anuncia o que Freud vai complementar na Conferência XXIII, intitulada “Os caminhos da formação dos sintomas” (Die Wege der Symptombildung) (FREUD, 1916-17/1990a)O que há entre as duas conferências? De que trata essas conferências que fazem ponte entre a XVII e a XXIII? Freud introduz aí o pulsional, a libido, o sexual e o perverso do sexual.

Vamos ao texto: “os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente” (FREUD, 1916-17/1990a, p.305).

Podemos observar que Freud aborda o sujeito em sua singularidade. O sintoma tem um sentido e se relaciona com a experiência do sujeito; não é possível tratar essa experiência como sendo da ordem do universal, do para-todos. O sentido deve ser interpretado no caso a caso, no um a um, no singular: “os sintomas neuróticos têm, portanto, um sentido, como as parapraxias e os sonhos e, como estes, têm uma conexão com a vida de quem os produz” (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Mais uma vez, Freud conecta os sintomas à vida de quem os produz e não os liga a uma teoria geral, não universaliza os sintomas. Ele situa o sintoma dentro das formações do inconsciente, a saber, o lapso, o chiste, o ato falho, o sonho e o sintoma.

Para Freud, nesse momento, o sonho tem um “querer dizer”, tem um sentido, mas o sonho é efêmero, ao ser interpretado ele se esvai. O sintoma também tem um “querer dizer”, mas ele não é efêmero, ele não se esvai, ao contrário, ele se repete. O caráter de repetição pode levá-lo ao infinito, daí o termo “os etcéteras do sintoma”, que foi, aliás, título de um seminário que ocorreu nas XIV Jornadas do Campo Freudiano em Madrid, em 1997 (MILLER, 1997).

Freud vai tentar tornar a sua descoberta mais compreensível escolhendo exemplos de casos não de histeria, mas “de uma outra neurose muito mais extraordinária”, a neurose obsessiva.

A neurose obsessiva manifesta-se no fato de o paciente se ocupar de pensamentos em que realmente não está interessado, de estar cônscio de impulsos dentro de si mesmo que lhe parecem muito estranhos, e de ser compelido a ações cuja realização não lhe dá satisfação alguma, mas lhe é totalmente impossível omitir. Os pensamentos (obsessões) podem ser, em si, carentes de significação, ou simplesmente assunto sem importância para o paciente. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Esses sintomas, geralmente, estão desprovidos de sentido, um sentido que não está dado de maneira imediata; ele tem que ser extraído. O sintoma aparece como um sentido recalcado, ele aparece como um enigma. O sintoma manifesta-se suportado por um significante cujo significado está recalcado, quer dizer, que não foi comunicado ao Outro ou por ele aceito.

Ao afirmar que a realização da ação obsessiva não lhe dá satisfação, é possível intuir algo que Freud só vai concluir na Conferência XXIII. Esse ciclo de conferências vai, portanto, do sentido ao gozo. Se o Sentido dos sintomas trata do sentido, O caminho da formação dos sintomas (FREUD, 1916-17/1990b, trata da libido, da satisfação, do gozo. Entre as conferências XVII e XXIII, trata-se exatamente do caminho que vai do sentido ao gozo do sintoma. É interessante destacar isso, porque vemos que já existia uma teoria da satisfação libidinal, do gozo, antes mesmo de “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1920/2020). 

Certamente, esta é uma doença louca. A imaginação psiquiátrica mais extravagante não teria conseguido construir nada semelhante […] O que é posto em ação, em uma neurose obsessiva, é sustentado por uma energia com a qual provavelmente não encontramos nada comparável na vida mental normal. […] A possibilidade de deslocar qualquer sintoma para algo muito distante de sua conformação original é uma das principais características desta doença. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 307)

Nada mais atual para nós do Campo Freudiano: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. O obsessivo não percebe o sofrimento de seu sintoma, ele o incorpora tão bem à sua personalidade que é motivo de prazer. Os sintomas obsessivos são prazerosos. O sujeito sofre como um condenado, mas não se queixa.

Toda a teoria freudiana dos sintomas, tal como está desenvolvida nas conferências, supõe que uma satisfação pode ser substituída por outra, supõe a possibilidade de substituição de satisfações. É o caráter metafórico do sintoma. Freud chama de Ersatz, uma satisfação nova, ou substitutiva, e isso faz pensar que o substituto não tem o mesmo valor que o original. Mas não é bem assim. A satisfação substitutiva é tão boa quanto a satisfação original. Não importa o objeto, a finalidade libidinal obtém-se custe o que custar e ela é sempre a mesma. A pulsão não conhece o semblante de gozar; a satisfação pulsional é um real.

O primeiro caso apresentado na Conferência XVII refere-se a uma mulher com uma ação compulsiva de proteger o marido impotente. O segundo consiste em um cerimonial de dormir que indica uma encenação da não-relação sexual, sustentada por um vínculo libidinal com o pai. A escolha desses casos talvez se deva ao fato de que Freud se dirigia a uma audiência de não praticantes e eram sintomas muito claros, que têm um sentido evidentemente sexual e se explicam por uma Bedeutung – termo difícil de traduzir por indicar, ao mesmo tempo, “significação” e “referência” –, pela referência a uma experiência anterior. A primeira mulher monta sua cena como repetição e correção de um evento anterior, traumático para ela. Através desses exemplos, Freud vincula o sentido e o libidinal. A Bedeutung é uma vivência anterior.

Retomemos o caso: uma mulher de 30 anos de idade, que sofria de graves sintomas obsessivos, realizava, várias vezes por dia, a seguinte ação obsessiva: corria do seu quarto até um outro cômodo, se colocava numa determinada posição ao lado de uma mesa no meio do aposento, soava a campainha chamando a empregada, lhe dava uma ordem qualquer ou a dispensava sem maiores explicações e, depois, corria de volta para seu quarto. Freud perguntava: “Por que faz isso? Qual o sentido disto?”. Ela respondia: “Não sei”. Certa vez, depois de Freud ter invalidado uma dúvida importante, fundamental, ela subitamente soube a resposta e lhe contou o que estava em conexão com o ato obsessivo. Freud realiza a seguinte leitura, a partir dos elementos fornecidos pela paciente: há 10 anos, na noite de núpcias, o marido, que era bem mais velho, se mostrou impotente e passou a noite correndo do seu quarto para o quarto da mulher, para renovar sua tentativa, mas sempre sem êxito. Na manhã seguinte, envergonhado perante a empregada que arrumaria seu quarto, pegou um frasco de tinta vermelha e derramou sobre o lençol, mas não no exato lugar em que uma mancha viria a calhar. A paciente leva Freud até uma mesa no segundo quarto e mostra-lhe uma grande mancha na toalha. Explicou-lhe que assumia sua posição em relação à mesa de maneira tal que a empregada, ao ser dispensada de sua presença, não podia deixar de ver a mancha.

A explicação de Freud estabelece uma íntima conexão entre a cena de sua noite de núpcias e o ato obsessivo atual. Em primeiro lugar, fica claro que a paciente se identificava com seu marido; ela estava executando o papel dele, imitando suas corridas de um quarto a outro. Além disso, cama e lençol foram substituídos pela mesa e pela toalha. Mesa e cama, juntas, representam o casamento e, assim, podem facilmente tomar o lugar da outra.

O ato obsessivo tinha um sentido: uma representação, uma repetição daquela cena importante. Repetindo a cena, corrigia a falha do homem. Servia ao propósito de fazer seu marido superar a desventura passada. Separada há anos, debatia-se com a ideia de divorciar-se legalmente. Contudo, não havia como livrar-se dele. Era forçada a permanecer fiel; retirou-se do mundo para não ser tentada. Em sua imaginação, desculpava-o e engrandecia suas qualidades. O segredo de sua doença consistia em que, através da doença, protegia seu marido de comentários maldosos. Através do sintoma, a mulher faz o homem e, deste lugar, o protege e o sustenta na plena possessão de seus atributos. A leitura freudiana dessa ação obsessiva se limita a negar ou desmentir a impotência do marido.

A mulher se encontra, desde então, submetida à obrigação de chamar a empregada para corrigir a cena, convocando o olhar dessa mulher a se colocar sobre uma mancha na toalha da mesa e, assim, mostrando que não haveria de ter vergonha. Toda a cena é montada para corrigir a penosa impotência do marido.

Aqui, a interpretação do sintoma foi descoberta pela própria paciente, sem qualquer influência ou interpretação do analista, e resultou de uma conexão com um acontecimento que não pertencia a um período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da paciente e permaneceu vivo em sua memória.

A pergunta que Freud faz ao seu público, nessa conferência é: foi por acaso e sem maior significação que chegamos justamente à intimidade da vida sexual?

O primeiro caso apresentado por Freud na Conferência XVII foi comentado por Esthela Solano (1993) e por Elisa Alvarenga (2019).

Cito Elisa Alvarenga (2019, p. 37), a propósito do comentário de Esthela Solano sobre essa cena que esconde algo, tanto quanto revela:

A mulher, colocando-se no lugar do marido, faz Um com ele, e a partir dessa solidariedade fálica, chama a empregada. A que lugar ela é convocada? Esta mulher obsessiva recorre a uma Outra mulher, não para interrogar nela o mistério da feminilidade, segundo a estratégia da histérica, mas para tomá-la como testemunha, como Outro diante do qual a mancha pode ser tomada como um semblante que faz valer seu poder de evocação do falo.

A mancha vela o recuo do marido diante do Outro sexo, tomando um valor de quase fetiche, que restitui ao marido seu ter para que ela possa assegurar, do seu lado o ser. Ela adivinha a posição do parceiro e a corrige através do seu sintoma.

Podemos concordar que esses dois casos de mulheres que Freud classifica como obsessão são, na verdade, fragmentos de casos de histeria e é o caráter de obrigação dos seus atos, Zwang, presentes nos dois casos descritos, o que o leva a caracterizar tais sintomas como obsessivos. O sentido do ato obsessivo escapa ao sujeito que se encontra, sempre, obrigado a executá-lo.

O sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente: “É necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir”. Ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. É a condição inconsciente do sintoma. “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (MILLER, 2011, p. 21).

Somente o sintoma nos introduz no mais íntimo da vida sexual. Os sintomas servem à mesma intenção: a satisfação de desejos sexuais. Para Freud, o uso do sintoma é sempre o mesmo – a satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida.

O caráter de formação de compromisso do sintoma revela a íntima conexão entre gozo e defesa. No sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dessa satisfação. Essa conexão leva Lacan a deduzir que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a defender-se do gozo que busca (MILLER, 2011).

O sintoma encontra sua significação (Sinn) e sua referência (Bedeutung) em seu a posteriori – Nachträglichkeit.

Um exemplo que nos ajuda a entender melhor essa temporalidade, considerando as duas indicações de Freud – o Sinn e a Bedeutung –, é o fragmento clínico que ele descreve como próton pseudos, a primeira mentira histérica (FREUD, 1895/1990c). O sintoma apresentado pela paciente Emma consistia na evitação de entrar sozinha nas lojas por temer os risos que sua roupa poderia suscitar. A agorafobia eclodiu a partir de uma primeira cena relatada pela jovem como motivo de seu adoecimento, na qual ela, então com doze anos, fugiu de uma loja ao perceber que dois vendedores riam de sua roupa. Um deles havia atraído Emma sexualmente. A análise com Freud promoveu o franqueamento das ideias recalcadas, possibilitando uma rearticulação dos enlaces associativos. A primeira cena evocou a lembrança de uma segunda cena, mais longínqua, datada de seus oito anos de idade, quando Emma havia sido molestada pelo dono de uma confeitaria. O riso dos vendedores atualizava o sorriso do proprietário da confeitaria que agarrou sua região genital através de seu vestido. Freud enfatiza a temporalidade Nachträglich estruturante das neuroses. Apenas mediante o estabelecimento de um elo entre a cena 1 e a cena 2, portanto só depois, o acontecimento primeiro adquire seu potencial traumático.

A angústia que leva Emma a erigir um sintoma fóbico não é experimentada na cena em que é assediada pelo dono da loja. A significação desse evento como traumático ocorre a posteriori. Apenas com a entrada na puberdade, no intervalo entre as duas cenas, a jovem se confronta com novas formas de satisfação a partir do despertar da sexualidade, se deparando com seu desejo, com o real da puberdade, o que acabou por ressignificar suas experiências anteriores.

Sem pretender fechar as inúmeras questões trazidas pela leitura das Conferências freudianas, podemos concluir que o estatuto do sintoma é problemático, ou melhor, há o que Lacan chamou de “o segredo do sintoma”, na medida em que se trata de um fenômeno articulado no significante e que tem um sentido. O valor metafórico de satisfação da pulsão encarna e eterniza sua exigência de satisfação (MILLER, 2008). É a vocação para mover-se, de ser errante, de mudar o objeto para permutá-lo por outro, para o deslocamento, para a substituição da libido que pode levá-la, inclusive, para a obra de arte. A libido pode, portanto, ser sublimada ou sintomatizada.

O trabalho de Elisa Alvarenga nos esclarece que, uma vez que a histérica não vai sem o Outro, na medida em que esse Outro muda no decorrer dos tempos, as manifestações da histeria também mudam. A neurose obsessiva feminina seria, portanto, uma resposta sintomática ou fantasmática, desencadeada por situações específicas relativas às experiências do sujeito, tal como Freud já havia postulado na Conferência XVII – resposta essa que encobre uma posição histérica.

Em 1978, Lacan manifestava sua incerteza quanto à existência da neurose histérica, mas afirmava a existência da neurose obsessiva, que teria sido descrita por Freud como um dialeto da histeria e seria, sim, a neurose contemporânea por excelência.

Diante do declínio da função paterna enquanto autoridade e de um Outro que se apresenta inconsistente, os sujeitos se identificam e se coletivizam sob certos S1 que nomeiam modos de gozo sob os quais sujeitos histéricos, divididos, se alojam, identificando-se a um traço que tampa sua divisão subjetiva e lhes impõe diversas formas de compulsão; amorosa, toxicômana, alimentar, para comprar, endividar-se, etc. O imperativo de gozo leva a novas formas sintomáticas que podem ser pensadas como novas roupagens para a neurose. (ALVARENGA, 2019, p. 26-27)

Enfim, são sujeitos que, devido à maior dificuldade de subjetivação da castração, apresentam, por sua vez, dificuldade também de dar sentido aos seus sintomas, o que nos leva a pensar a clínica a partir do uso que o sujeito faz dos sintomas, como cada sujeito amarra seu gozo ou, ainda, seria uma clínica dos modos de gozo.


 

Referências
ALVARENGA, E. A neurose obsessiva no feminino. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O sentido do sintoma). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990a, p. 305-322. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O caminho da formação dos sintomas). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990b, p. 419-439. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. A proton pseudos – a primeira mentira histérica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1990c, p. 474-478. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Fundamentos da clínica psicanalítica. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Trabalho original publicado em 1920).
MILLER, J.-A. Síntoma, saber, sentido y real. Los etcéteras del síntoma. Rev. Folhas, n. 5/6, set. 1997.
MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma. In: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
MILLER, J.-A. Seminário sobre os caminhos da formação dos sintomas. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 60, 2011.
SOLANO-SUAREZ, E. Névrose obsessionnelle et féminitéLa Cause freudienne, n.24, p. 16-19, 1993.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 13 de junho de 2023.



Lembrar, repetir, perlaborar[1]

Lucia Maria de Lima Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
delimaebp@gmail.com

Resumo: A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa. 

Palavras-chave: lembrar; repetir; pulsão; inconsciente; transferência.

REMEMBERING, REPEATING AND WORKING-THROUGH

Abstract: The author comments on Freud’s 1914 text, Remember, repeat, work through, in the light of the modifications presented by the dialogue with Lacan in 1964 as a support for a rereading based on the Seminar The four fundamental concepts of psychoanalysis. Some clinical fragments illustrate aspects of Lacan´s contribution to research.

Keywords: remembering; repeating; drive; unconscious; transfer.

Imagem: Renata Laguardia

Dentre os princípios gerais dos fundamentos da prática psicanalítica, o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” (FREUD, 1914/2022) inicia com uma lembrança, uma advertência, sobre as profundas transformações sofridas pela técnica psicanalítica desde seus primórdios, não apenas incidindo sobre os três verbos, mas no contexto mais amplo dos conceitos que constituem a experiência psicanalítica. As transformações alcançam os conceitos fundamentais em 1964, no Seminário 11 de Lacan, e prosseguem até seu último ensino. Elucidadas por Miller nos cursos psicanalíticos, dentre outros, encontra-se orientação precisa para diferenciar leitura em três consistências, Simbólico, Imaginário, Real, outra lógica antecipatória das surpreendentes mudanças operadas pelo mal-estar na civilização.

Contarei com algum desses textos, dentre outros, na expectativa de seguir uma vereda já traçada, mas indicativa da pesquisa contínua orientada por um método renovado através das mudanças clínicas, subjetivas, políticas, sociais, ao mesmo tempo em que extrai consequências da parceria com o estranho, sem sentido, do silêncio das pulsões.

O lembrar, desde o início da descoberta freudiana, incide nas repetições, o recalcado, os sintomas, as fantasias, sonhos, os atos falhos, vivências incompreensíveis. Incidência esta que implica tanto o inconsciente, como linguagem, quanto a dimensão silenciosa da pulsão, as chamadas moções pulsionais, os destinos da vida e morte traços nos corpos resultando atos estranhos em sua vasta extensão.

A ab-reação servira inicialmente para demonstrar a dissimetria entre o afeto e a representação. Freud encontra o desafio de traduzir e recompor um sofrimento histórico de fazer cessar a compulsão para repetir que, contrariamente ao sintoma que se deslocava rebelde sobre um corpo, mostrava sua consistência e coesão. Antes de 1914, anunciara um vasto conjunto de experiências clínicas, que alcançavam a sexualidade, a paranoia, a histeria, a fobia, a obsessão. O relativo fracasso da palavra para preencher as lacunas históricas ou traumáticas exigia “fazer as pazes com o recalcado que surge nos sintomas” (FREUD, 1914/2022, p.157)

Fazer as pazes com o recalcado implica o paciente em uma nova relação com a doença, outra posição subjetiva para além da queixa inicial, o que exige sua demanda e autorização. Por seu turno, a nova relação com a doença dependia do estabelecimento da neurose de transferência mais colaborativa, porque vem em substituição à neurose comum. As substituições conhecidas por Freud na esfera sintomática foram recurso tático no manejo da transferência, com a proposta da neurose de transferência substituindo a neurose comum, durante uma análise, além da expectativa de certa regulagem das “pulsões selvagens” pelo uso da transferência.

Quando lemos Miller (1997) no “Discurso do método psicanalítico”, de 1987, encontramos em outros termos a importância das entrevistas preliminares para a localização subjetiva e as coordenadas da verificação de mudança possível, posição suportada pelo ato ético do psicanalista.

Freud verificou que a simples nomeação das resistências por seu turno não alcançava superação imediaa, porque as moções pulsionais alimentavam as resistências.  O difícil trabalho conjunto de analista e do analisante, portanto, visaria localizar e superar a incidência da pulsão.

A clínica o ensinava e um dos grandes méritos freudianos foi não se deter diante dos obstáculos, prosseguir suas indagações e pesquisas através de vários enigmas e paradoxos. Descobre que o esquecimento podia ser o não reconhecimento de algo vivido, a denegação, marca neurótica em relação ao desejo, assinalando o mecanismo defensivo que indica e nega a responsabilidade do paciente. Que as lembranças encobridoras podem compensar a amnésia infantil, além de surgirem isoladas, sem qualquer conexão. Podem ocorrer conexões a posteriori de afetos precoces e sem sentido. O paciente se lembra de imagem nunca vista ou não se lembra do que ocorreu anteriormente. Os pensamentos podem não retornar como representações, mas como atuações, portanto, o paciente repete sem saber que repete e experimenta a lembrança como alheia ou permutada pelas defesas.

Um fragmento clínico ilustra bem um dos impasses apresentados pelo início do tratamento localizados por Freud nessa época e que se reencontra ainda segundo alguns depoimentos dos psicanalistas nas práticas clínicas atuais:

Uma senhora, de idade mais avançada, repetidas vezes abandonava a casa e o marido, em estados confusionais, fugindo para um lugar qualquer, sem ter consciência do motivo de tal “escapada”. Ela veio ao meu tratamento com uma transferência carinhosa bem formada, aumentando-a de forma espantosamente rápida nos primeiros dias, e, ao fim de uma semana, também “escapou” de mim antes que eu tivesse tempo de lhe dizer algo que pudesse impedi-la de incorrer nessa repetição. (FREUD, 1914/2022, p. 159)

É muito interessante nesse pequeno relato de 1914 Freud situar no significante que reitera, a “escapada” da paciente, considerando a possibilidade de contenção como manobra clínica. Faz lembrar a importante pergunta de Lacan, muitos anos depois: “Mas se o ato está na leitura do ato, isto quer dizer que esta leitura é simplesmente superposta, e que é do ato reduzido a posteriori que ela toma seu valor?” (LACAN, 1967-68, p. 26). O significado não pertence ao mesmo campo do significante. Essa importante questão surge tanto em Freud quanto em Lacan. O ato da leitura a posteriori marca a distância entre a compreensão e a significação vazia de sentido. É preciso considerar um gozo que se imiscui tanto na palavra falada quanto nas atuações e guarda sua deriva e o enigma para o Outro.

Os sintomas na forma de repetições apresentam-se muito variados como que por acaso, um tropeção, uma falha, mas que insistem, vão dos pequenos fisgamentos cotidianos até esquecimentos que levam à morte, como os que resultam em acidentes. O que está fora da palavra mostra sua insistência e requer um trabalho em outro circuito, labor que mereceu, da parte de Freud, o nome de perlaboração, indicando uma travessia, um percurso através de uma experiência, longamente investigada na “Psicopatologia da Vida cotidiana” (FREUD, 1901/1980), que se desdobra, no próprio Freud em 1937, nas construções em análise, que, por analogia à metáfora arqueológica, ressalta a importância do trabalho com os restos. O curioso é que essas repetições, embora reiteradas, não possuem registros, o inconsciente não toma nota, o sujeito traz a notícia de que ocorrem sempre mais uma vez, uma primeira vez.

Freud, a partir dos trabalhos com a pulsão, sobretudo com a libido, a satisfação, leva em conta dois tipos de repetição. Embora fora da linguagem, é possível traduzir num tempo posterior, ou seja, introduzir condições de legibilidade do ato falho que ele citou mais de uma vez, quando o presidente de uma sessão, ao abrir os trabalhos, levanta-se triunfante e diz: “a sessão está encerrada”. Mesmo aparentemente fora da linguagem, a frase está dentro do contexto significante, portanto pode ser traduzida, mas nem sempre compreendida.

A grande surpresa em 1964 foi a retomada por Lacan, no Seminário 11, do que formalizou nessa época como Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. O diálogo com Freud se apoiou inicialmente no texto “Lembrar, repetir, perlaborar” para extrair elementos essenciais visando fundamentar outra modalidade da repetição, pesquisa seguidamente renovada conduzida até seu último ensino.

A pergunta de Lacan (1964/1988) situa o inassimilável na forma do trauma que comparece desvelado fora do sonho, não como portador do desejo, mas o trauma mostrando na face despida de semblantes, o impacto do real. Para além do traumatismo das situações de violência, de guerra, que se repetem e buscam o tratamento pelo sentido, há o trauma do real, que acompanha o sujeito para sempre na esfera do fora do sentido.

A repetição não é o retorno dos signos nem a simples reprodução, não é apenas a rememoração agida, não é um comportamento. A descoberta freudiana do inconsciente encontra nos fundamentos da clínica a experiência de uma memória falha, sempre aberta, repleta de contradições.  A pesquisa lacaniana localiza algo mais que uma memória, como programas que se desenvolvem sem que o sujeito saiba, um saber paradoxal que não é um conhecimento, mas localizado inicialmente apenas pelos seus efeitos, acontecimentos imprevistos, que indicam a relação não evidente entre o pensamento e seu limite, fora do conhecimento do sujeito, ou seja, o real inferido através de seus efeitos que foi verificado inicialmente por Lacan, como o que retorna sempre ao mesmo lugar.

Na repetição, portanto, comparecem dois níveis: o primeiro na rede de significantes, atualizada, insistentemente, nas diversas formas de automatismo da repetição, no automaton, das biografias, nas histórias, narrativas; e, no segundo, temos a tiquê, o acontecimento imprevisto, o inassimilável, o trauma, acontecimento que ressoa diretamente sobre um corpo. Esses dois níveis foram revisitados sob nova leitura a partir da clínica freudiana, precisamente no caso do “Homem dos lobos”, numa cena infantil comparando duas realidades sucessivas e antagônicas ocorridas na infância do paciente no terreno da percepção. A realidade de uma cena que pode ser posta em palavras, e a perplexidade, demarcada pela surpresa, por um instante sem palavras, enigma, alheio ao sujeito do inconsciente como linguagem.  Nessa clínica, as particularidades do estatuto desse inconsciente respondem por realidades surgidas através de fenômenos situados em lugares diversos, como rememoração e reminiscência, o que franqueou a elaboração e construção de hipóteses diagnósticas diversas através da minuciosa leitura a posteriori do caso.

Quando Lacan indaga insistentemente, por vários anos, sobre o estatuto do inconsciente freudiano, formaliza progressivamente algo além da atualização por substituição dos sonhos, atos falhos, chiste, fantasia, sintoma. Algo que desloca para o primeiro plano a Outra realidade, a outra cena. Essa outra cena, entretanto, foge ao enquadre fornecido pela fantasia, não é uma lacuna a ser preenchida, que retorna a um momento prefixado. É um fenômeno inédito, fugidio, alheio a qualquer interpretação.

O relato seguido do comentário de uma experiência pessoal de Lacan sobre a Outra realidade, a outra cena, é colhida em recorte marcante trazido por ele no campo do sonho, quando foi despertado do curto sono através do qual procurava repouso. Despertado, ele diz, “por alguma coisa que batia à minha porta desde antes que eu não me despertasse” (LACAN, 1964/1988, p. 58), é a partir dessas batidas apressadas que ele iniciava a construção de um sonho, que manifestava conteúdo diverso das batidas, mas em torno delas, e que reconstitui todo um conjunto de representações:

sei que estou ali, a que horas dormi, e o que buscava com aquele sono. Quando o barulho da batida acontece, não ainda para minha percepção, mas para minha consciência, é que minha consciência se reconstitui em torno dessa representação – de que eu sei que estou sob a batida do despertar, que estou knocked, em choque. (LACAN, 1964/1988, p. 51)

Com esse fenômeno, Lacan destaca o barulhinho, o pequeno ruído, e, através do instante experimentado sobre o choque do despertar, aponta a hiância, o estranho, que evidencia a oposição entre realidades diferentes. Algo muito diverso do que pode ocorrer na esfera dos sintomas e das fantasias ainda no circuito das repetições que surpreendem o sujeito.

A amplitude dos fenômenos na repetição entre realidades disjuntas foi evocada em Freud, no jogo do carretel no qual, ao lado da brincadeira da criança, surge o salto sobre o fosso que separa a borda do berço, salto que inscreve a falta no seio da representação simbólica diferenciadora da ausência – presença do Outro e localiza a angústia em outra dimensão. A repetição na brincadeira infantil, como os casos clínicos o demonstram, pode indicar uma lacuna a ser preenchida por uma palavra, mas o acontecimento imprevisto, sem sentido, na cena do sonho evocada por Lacan, tem ação de corte, surpresa, perplexidade, porque sem nome, indicativa do choque com o real.

As mudanças para os fundamentos da clínica decorrentes do “simples” exame do estatuto do inconsciente, a partir da outra modalidade de repetição, repercutem até a atualidade e ampliam a chance de trabalho com os difíceis casos clínicos atuais.

A importância do Seminário 11 de Lacan no diálogo com o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” reside em reordenar os fundamentos da clínica psicanalítica a partir de nova perspectiva, considerando o real como experiência do inassimilável, tarefa que prosseguirá até seu último ensino.

Assim, demarca a diferença entre dois tipos de repetição propostas por Freud e Lacan: a que concerne à biografia, à história, ao que pode ser lembrado e associado aos modos diversos de satisfação, desconhecidos, mas passíveis de leitura a posteriori. Já o encontro com o acaso, o imprevisto, ou imprevisível, situará novamente a sessão analítica entre repetição e surpresa, em que o lapso convoca seu uso, e não sua interpretação; o acontecimento imprevisto repete como um raio que atinge um corpo, fora da apreensão pelas palavras. Esse outro tipo de repetição, também de dupla forma, separa o gozo incluído na cadeia de linguagem, como defesa, e o gozo fora da lei significante.

A sutileza de Lacan impressiona porque chama atenção para a radicalidade da repetição em situações cotidianas, aparentemente simples, que foram assinaladas anteriormente por Freud como a dimensão lúdica, ou seja, a repetição demanda o novo, mas a modulação é apenas deslizamento da alienação do seu sentido. O verdadeiro segredo do lúdico “é a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma” (LACAN, 1964/1988, p. 62).

Um comentário de Zenoni (2022) ilumina essa radicalidade, ao lembrar a frase “o sujeito é sempre feliz”: todo acidente, acaso, reencontro, tudo é bom para a satisfação da pulsão porque ela se repete. O bom para a pulsão se justifica porque o gozo não conhece seu contrário, tal como ocorre com o desejo. A renúncia ao gozo é também um gozo enquanto um desejo realizado, é o oposto de um desejo não realizado. A marca de gozo, sempre a mesma, restará como irredutível, ineliminável. O interessante é o convite ao trabalho que pode tocar um falasser, advindo dos paradoxos da repetição.

Esse convite ao trabalho tem no depoimento de Marcos André Vieira (2019) esclarecimento fundamental sobre os efeitos de uma análise. O psicanalista se expôs ao risco da violência em evento no qual compareceu, acompanhado de seus filhos, à favela da Maré, local onde desenvolveu longo trabalho clínico que resultou em várias publicações de pesquisa. Na entrada foi interrogado, em cena que se repetiu, por dois adolescentes fortemente armados. Da cena, resta a sensação de estranheza. Após intervenção de seu analista, encontra a evidência, na repetição, do desejo inconsciente, que expõe, por seu turno, um gozo ligado ao perigo que carregava, um real acompanhado do afeto: “Quando alguém se depara com a estranheza de sua repetição, o gozo que a alimenta pode se deslocar” (VIEIRA, 2019, p. 32). Trata-se, nesse caso, do inconsciente como efeito de leitura do que se fala.

O trabalho clínico a partir do remanejamento de conceitos fundamentais não corresponde a uma elucubração de saber, mas opera como instrumento para “renovar nossa prática no mundo” (MILLER, 2014, p. 21), considerando a possibilidade de lidar com as contingências que atingem incessantemente um falasser e a responsabilidade implicada na extimidade da prática psicanalítica.


 

Referências 
FREUD, S. Psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VI, 1980. (Trabalho original publicado em 1901).
FREUD, S. Lembrar, repetir, perlaborar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1914).
LACAN, J.  O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico. 1967-68. (Inédito).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964)
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
VIEIRA, M. A. Extimidades. Correio Express – Revista Eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 82, 2019. Disponível em: www.ebp.org.br/correio_express. Acesso em: 27 jun. 2023.
ZENONI, A. La répétition, de Freud a Lacan. Quarto, n. 131, jun. 2022.
[1] Trabalho apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 30 de maio de 2023.



Uma leitura do texto freudiano “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”[1] 

Cristiana Pittella
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
cristianapittella@yahoo.com.br

Resumo: A partir de uma leitura de orientação lacaniana do texto em que Freud procura transmitir o método psicanalítico, depreende-se a importância da formação do psicanalista para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise.

Palavras-chave: método psicanalítico; formação do psicanalista.

A READING OF FREUD’S TEXT “RECOMMENDATIONS TO THE PHYSICIAN FOR PSYCHOANALYTIC TREATMENT” 

Abstract: Based on a lacanian reading of the text in which Freud seeks to convey the psychoanalytic method, one can infer the importance of psychoanalyst training for those who want to embark on the practice of psychoanalysis. 

Keywords: psychoanalytic method; psychoanalyst training.

Imagem: Renata Laguardia

O poder da palavra

Lacan, em seu Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, ressalta que Freud dedicou-se de 1904 a 1919 a apresentar o seu método psicanalítico e que esses escritos têm um interesse particular para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise. Neles, podemos ler as noções freudianas fundamentais gradualmente e compreender o modo de ação da terapêutica analítica (LACAN, 1953-54/1986). Lacan afirma que Freud jamais cessou de falar da técnica analítica, como no tardio texto Análise terminável e Interminável de 1934, segundo ele, um dos artigos mais importantes quanto à técnica.

Os escritos de Freud reunidos pela Editora Autêntica no volume Fundamentos da Clínica Psicanalítica, que nos orienta nestas Lições Introdutórias, são de um frescor e vivacidade, de uma simplicidade e franqueza do tom que, por si só, são uma espécie de lição.

Lacan retoma esses escritos de Freud para reorientar a psicanálise e colocá-la no eixo. Ele propõe um retorno à Freud, ao campo freudiano, ao que há de subversivo e ético na psicanálise freudiana. A partir do inconsciente, o inconsciente estruturado como uma linguagem, ele procura responder à questão do que fazemos quando fazemos análise.

Assim, passo a passo, ele critica os rumos e desvios que a prática freudiana tomou com os pós-freudianos, como, por exemplo, a Psicologia do Eu e a análise das resistências. Ele vai minuciosamente demonstrar como foi em torno da concepção do ego que girou o desenvolvimento do que se dizia a técnica analítica, cuja análise e intervenções são concebidas a partir da importância da contratransferência. O analista, como se fosse uma placa sensível, intervém a partir dos sentimentos e reações produzidas nele. Nessa inter-reação imaginária entre o analisado e o analista, as interpretações de “ego para ego” (LACAN, 1953-54/1986, p. 44) visam uma ortopedia, um reforço do ego, e o final de análise é concebido pela identificação ao analista.

Lacan vai progressivamente avançando da tópica do imaginário à ordem simbólica para demonstrar que a experiência analítica não se baseia numa relação dual, intersubjetiva. Se a linguagem é tomada como ela deve ser, Lacan formula, a experiência analítica se passa então numa relação a três – a palavra faz mediação entre o sujeito e o eu.

Assim, o analista não fala do lugar de sujeito. Interpretar é técnica de enunciação, orienta J.-A. Miller (1997) no texto “O método psicanalítico”, referência para estas Lições Introdutórias.  As questões técnicas são éticas, pois o analista se dirige ao sujeito.

A interpretação é um significante enigmático que se oferece à interpretação do analisante e possibilita uma mudança na modalidade subjetiva. Ela abre à questão do desejo: o que isso quer dizer? O que ele quer?

Esse não saber, enunciado indizível (recalque), causa do sintoma, é assimilável a um enunciado escrito no sujeito e que não se poderia ler, ele se equivale, nos diz J.-A. Miller (1994/2023) em “Como começam as análises”, a um texto escrito indecifrável.

Numa experiência analítica tratar-se-ia menos de lembrar e reviver do que reescrever a história. O mais importante é a leitura e a escrita, como orienta Lacan (1953-54/1986) em sua leitura de Freud: o que conta é o que o sujeito reconstrói.

Passamos dos fatos aos ditos, ao uso da palavra. E, por mais estreita que seja a porta, ela pode fazer passar um elefante.

Palavras não-toda

O texto freudiano acerca dos fundamentos da clínica psicanalítica, cuja leitura fazemos aqui, é o “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”, que data de 1912. É um dos textos mais pragmáticos na obra de Freud.

Sua atualidade reside no chamado que ele faz tanto ao modos operandis da psicanálise, quanto à importância e responsabilidade de se cuidar da formação do psicanalista e de sua transmissão. Desse modo, evidencia-se a diferença da Psicanálise em relação à medicina e às ambições da educação e da psicoterapia.

Freud já havia nessa ocasião publicado Dora, O Homem dos Ratos e O pequeno Hans, casos clássicos de Histeria, Obsessão e Fobia. Embora não houvesse ainda uma sistematização das diretrizes da técnica analítica, é desses casos tomados em sua singularidade – entre outras experiências clínicas – que Freud retira o material para tentar sistematizar a sua experiência clínica nessas recomendações. Ele tenta responder à questão de como nos transformamos em analistas (FREUD, 1912/2017).

Ainda que Freud desejasse formalizar esse material nessas recomendações – nomear algo do real de sua clínica para a transmissão da psicanálise –, ele hesitou muito em publicá-las com receio de que elas pudessem ser tomadas como regras rígidas, como um saber dogmático, que mais faria consistir um ideal e instaurar uma relação que engessa o praticante.

Freud nos alerta sobre o quanto as regras standards, inflexíveis, servem muito mais para defender o praticante do real que a matéria da psicanálise coloca em jogo, a saber, a palavra (o significante) e as pulsões (o gozo), que Lacan nomeou em seu último ensino com o neologismo moterialité (palavra e matéria).

Em uma ocasião, comentamos no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, quando este acontecia no CERSAM Noroeste nos primeiros anos do Instituto, uma vinheta clínica apresentada por uma colega com experiência clínica na saúde mental e formação na psicanálise de orientação lacaniana. Uma paciente psicótica havia recebido alta do tratamento, já que ela fora acolhida na urgência quando em crise e agora encontrava-se estável. Esse sujeito não tinha construído outros laços nem lugar no Outro, apenas com essa técnica e com esse espaço. Não conseguindo separar-se, a paciente solicita continuar o tratamento ali, ao ponto de não sair da frente da instituição. Para além dos significantes mestres (S1) que orientam a instituição – urgência e crise –, a técnica, preocupada com a transferência maciça estabelecida pelo sujeito, e ancorada no saber clínico da importância de se manter um laço frouxo e uma pluralização da transferência numa clínica com vários, decide não acolher o sujeito. A jovem, para encontrar um lugar nesse Outro, faz um acting-out, ao escarificar no braço a palavra “crise”.

Na oportunidade, verificamos o quanto o saber, face ao real em jogo, estava servindo de resistência ao desejo do analista e às invenções que ele nos convoca na clínica, impedindo-a de acolher o sujeito. É nesse sentido que Lacan afirma que a resistência é do analista.

Por conseguinte, no texto que lemos, Freud pretende transmitir recomendações não-toda, lógica que dá lugar às invenções e à singularidade do modo de satisfação (gozo) daquele que nos procura em sofrimento, num encontro que acontece a cada vez, em cada sessão e sempre único.

Mesmo que o saber clínico nos oriente e nos permita fazer uma avaliação clínica, as mutações do Outro e as respostas do real nos colocam em conversação permanente. No Campo Freudiano temos a prática das Conversações Clínicas, nas quais as questões e impasses são colhidos, debatidos, e algo do real em jogo pode vir a ser nomeado. Essa série de invenções em torno dos casos clínicos apresentados e publicados orientam e auxiliam na avaliação clínica, na estratégia e na condução de uma análise nos tempos atuais – temos a noção de pluralização da transferência (o trabalho com vários), os novos sintomas, a psicose ordinária.

A quem se destina

A Psicanálise é oriunda do campo da medicina e em seus primórdios apenas os médicos a exerciam. Freud endereça suas recomendações ao médico, no singular. E, quinze anos após, mais precisamente em 1927, Freud escreve “A questão da análise leiga. Conversa com uma pessoa imparcial”.

Na ocasião, seu aluno não médico Dr. Theodor Reik era acusado de charlatanismo e, nesse texto, Freud transmite não só o método psicanalítico – o que a psicanálise faz, suas indicações e contraindicações, a importância do período de preparação para uma análise (as entrevistas preliminares), quando e como uma análise opera, como uma análise se difere da confissão na religião –, mas, sobretudo, ele a distingue da medicina, para afirmar que não há nenhuma razão para que o exercício da psicanálise fique restrito aos médicos. Para tanto, Freud vai diferenciar o organismo do aparelho psíquico, o cérebro, com seus estímulos sensoriais, do significado e interpretação dos sonhos para o sujeito, o tratamento do sintoma na medicina e o sentido do sintoma para a psicanálise – cuja causa é um enunciado que subsiste no sujeito sem que possa ser por ele formulado (MILLER, 1994/2023) –, para afirmar que “a análise não dispõe de nenhum outro material além dos processos anímicos” (FREUD, 1927/2017, p. 276).

Esses processos anímicos é o que Freud nomeará de inconsciente, texto indecifrável, escrito que marca e ressoa no corpo (o sintoma como acontecimento de corpo) e que o analisando aprende com o analista a ler. E essa leitura implica a decifração (Sujeito Suposto ao Saber), mas, também, nos dizeres de Miller (1994/2023), o analista, ao guiar o paciente, esse intérprete, não é indiferente ao sujeito, o analista é um objeto de uma vinculação especial para ele, que atrai libido, aquela em jogo para o sujeito e seu Outro primordial.

Freud ressalta, assim, em suas recomendações, que, para um praticante de psicanálise, o mais importante não é, portanto, a formação acadêmica, se ele é médico ou não, mas, sim, uma formação permanente em psicanálise, que implica fundamentalmente a própria análise do praticante.

É uma experiência analítica que permitirá ao analista praticante que a leitura do sintoma de um falasser não fique contaminada pelas lentes dos seus preconceitos e preceitos, nem pelo texto, nem pela letra de gozo de seu próprio inconsciente, ou seja, pelo modo como ele enquadra e enlaça a sua realidade.

Freud destaca também mais dois pilares na formação do analista: o estudo teórico e a supervisão dos casos clínicos. Ele criará a Associação Psicanalítica Internacional em 1910, pois já se preocupava à época com a sua existência sempre ameaçada e com a sua popularização. Ele alerta para a importância de uma transmissão da psicanálise que a distinga de outras práticas, como a psicoterapia e a sugestão.

E que o laço de trabalho numa instituição permita que o analista praticante esteja constantemente em conversação com os colegas nos dispositivos institucionais, nos espaços de supervisão e formalização de sua clínica para que, agora com Lacan (1953/1998), o analista esteja à altura das questões em sua prática e alcance em seu horizonte a subjetividade da época.  Para tanto, esses lugares zelam pela ética e pela formação do psicanalista.

O que é um psicanalista?

As recomendações freudianas nos transmitem que essa é a questão central para a psicanálise e para a formação de um psicanalista: o que é um psicanalista?

No título da tradução que lemos aqui das Obras Incompletas de Sigmund Freud, a singularidade referente ao praticante, ao médico (“Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”), encontra nela a sua razão (diferentemente da tradução da Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud: “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”).

Lacan (1956/1998) afirma que a psicanálise é o tratamento que que se espera de um psicanalista e define um psicanalista como o que resulta de uma análise. Cada um pode dar a sua resposta singular, se desejar, no dispositivo do passe inventado por Lacan, já que não há um universal: O Analista não existe.

Evoco um fragmento do passe de Sérgio de Mattos (membro Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise) que foi recentemente nomeado Analista da Escola (AE), tendo testemunhado como se tornou um psicanalista de sua própria experiência analítica.

Ao apresentar o tema para o próximo XI Enapol, Começar a se analisar, com o seu texto “A boa sorte de analisar-se”, e também em seu 1º testemunho intitulado “Nada melhor do que o vazio”, Sérgio de Mattos (2023) conta que, ao chegar em sua análise – já tendo tido outras experiências analíticas –, o analista pergunta-lhe o que ele pôde saber de seu inconsciente. Ele responde ao analista que havia conseguido saber qual era o desejo da mãe. O analista intervém dizendo-lhe, então, que a psicanálise não podia fazer nada por ele. Corta a sessão e marca outra para ele voltar. Esse ato do analista, ético, introduz o mal-entendido e faz uma cisão entre o dito e o dizer. O sujeito é levado a um questionamento de seu desejo e do que diz quando fala. Esse primeiro encontro com o analista “faz voar em pedaços”, segundo ele, o saber constituído, a resposta que ele havia elaborado ao que o Outro quer dele (MATTOS, 2023).

O analista, ao separar o enunciado e a enunciação, questiona a posição do sujeito, e essa localização subjetiva introduz o inconsciente (MILLER, 1997), um “não saber o que se diz”. Ele é levado a se questionar e a se situar concernente ao que ele fazia e desejava tão longe de sua casa (MATTOS, 2022).

O analista, ao colocar entre parênteses o que o sujeito diz, faz com que ele perceba que pode tomar diferentes posições modalizadas para com o seu dito (MILLER, 1997, p. 247). Localizar o sujeito, é demarcar onde se inscreve as variações da posição subjetiva.

Entreabre-se a porta e a pergunta sobre o desejo do Outro.

Sérgio sai da 1ª sessão e tem um sonho com a morte de sua mãe, que é velada na garagem da casa da família. Recorda-se de uma cena traumática vivida aos 5 anos. Após uma briga dos pais, a mãe se tranca no quarto dizendo que se mataria. Frente à porta trancada, o filho grita e bate desesperado. Nenhuma resposta. O pai, perturbado, tenta arrombá-la. A criança, de joelhos, suplica para que o pai faça alguma coisa. Em seguida, um buraco negro, desfalecimento. Vai recuperar o sentido e a memória quando o médico sai do quarto e diz que a mãe estava dormindo.

Nessa cena, ele pôde ler sua identificação com o objeto de gozo do Outro. Chave de sua neurose infantil, experimentada com angústias intensas, terrores noturnos, nervosismo, doenças e dificuldade de encontrar seu lugar. Repertório que se repetiu sintomaticamente na sua vida nas ocasiões de separação e conflitos, nomeado pelo analista de patologia do fort-da.

Ele nos ensina, como nos diz J.-A.-Miller (1994/2023), que o candidato à psicanálise deve ser capaz de fornecer o texto a ler, a interpretar, e, mesmo, de o ler de diversas maneiras. É o que Freud chama de regra fundamental, a associação livre, que são as cadeias de significantes que o sujeito não controla, significantes sem mestre. A associação livre vai levar o sujeito a se dissociar da causa inventada que justifica a sua existência e que lhe tampa o vazio em que consiste (MATTOS, 2022).

Abre-se ao trabalho, à transferência, tanto na vertente do saber (Sujeito-Suposto-Saber) e do gozo (libidinal).

Ao final de sua análise, ao escutar uma intervenção do analista – “me chama” –, se escreve para ele uma nova relação com o Outro, que implica em não ter que responder fantasmaticamente, salvar a mulher, colocando em jogo um programa de gozo, de destruição, de desaparecimento e dano ao outro.

Parece-nos que o “me chama”, vociferado pelo analista ao final de sua análise, se articula com a abertura do enigma do desejo materno colocado à entrada de sua análise. Onde havia uma porta que não se abria, a análise faz passar por ela, entreabre-se ao desejo do analista que o possibilita a engajar-se na via do desejo, quando o gozo transborda no cotidiano da vida.

Lugares e laços

É só a partir de uma experiência analítica, da análise de seus próprios sonhos, nos diz Freud, que o praticante alcança e se orienta por um saber não-saber (douta ignorância), função do desejo do analista. Assim a análise se molda, sublinha Freud (1927/2017), a partir de sua matéria, daquilo que o paciente traz.

Recentemente, num dos espaços do IPSM-MG, o Atelier de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, uma ótima conversa e discussão coloca em jogo esse tema. Um caso de uma criança, apresentado pela psicanalista Inês Seabra, membro da EBP/AMP – que também foi trabalhado anteriormente em outro espaço do IPSM-MG, o Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças –, nos presentifica com sua transmissão a função do desejo do analista, que acompanha as respostas do sujeito e a temporalidade do trabalho de elaboração analítico dessa criança.

O analista não se precipita nem insere significantes, que fazem parte do Outro simbólico ao qual a menina pertence – ser preta, menina, racismo, exclusão. O analista também não insere na análise da criança a interpretação materna de racismo, em relação a uma experiência que a menina viveu na escola.  O analista acolhe o tempo do sujeito e a questão que o analisando trazia – “de onde vêm os bebês?” –, colocada pelo real do nascimento de um irmão.

As recomendações de Freud acentuam a importância de que muitas coisas que ouvimos, sua importância só se revelará a posteriori (nachtraglich). Que os analistas sejam pacientes. E, se ele não recomenda fazermos anotações para suprir a falta de evidências e comprovações para fins científicos, é porque passamos dos fatos para o dizer, das evidências para a construção.

Fundamento da regra  

A técnica simples que Freud destaca para o psicanalista nessas recomendações é a que chamamos durante anos de “atenção flutuante” e, na tradução que lemos, optou-se pelo neologismo “atenção equiflutuante”, justificado pelo termo em alemão utilizado por Freud, que contém a atenção continuada, flutuante e equitativa.

Em uma nota, os editores das Obras Incompletas de Sigmund Freud referem-se à tradução proposta por Paul-Laurent Assoun (2009) – “equiflutuante” –, pois o seu sentido abarca um para além da mera flutuação e designa as pequenas batidas de asas suficientes para que um pássaro possa planar.

Esse batimento de asas evoca a linguagem com o seu batimento, aquele da articulação dos significantes, assim como as ressonâncias e ocorrências da língua que produzem algo novo, que tanto surpreende o analista e o analisando na leitura e na escrita do inconsciente.

Esse modo de atenção, a sua importância, enfatiza a não seleção prévia, que o psicanalista não se fie em seus valores ou teorias pré-concebidas. No dizer de Freud (1912/2017, p. 94): “se seguimos as nossas inclinações e expectativas, corremos o risco de nunca encontrarmos algo diferente do que sabemos”. O sujeito é suposto ao saber inconsciente que se desprende das cadeias, das associações do analisando, e é a partir do que lhe é dito que o analista interpreta.

A contrapartida para a “atenção equiflutuante” é exigirmos, nos dizeres de Freud, que o analisando conte tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou seleção. Trata-se da regra psicanalítica fundamental da psicanálise, que já comentamos aqui, a “associação livre”.

O lugar do analista

Para finalizarmos, voltamos ao início de nossa leitura.

Freud (1912/2017, p. 102) adverte para que o psicanalista não ambicione a cura e o bem para seu analisando, assim como não tenha compaixão e empatia: “o médico precisa ser opaco para o analisando”, ele recomenda.

É o lugar e a função do analista que ele procura nesse texto formalizar, retirando-o do eixo imaginário, especular, e do campo da sugestão. Assim, trata-se de desvalorizar a transferência sentimental e empalidecer a transferência imaginária, nos diz Miller (1994/2023), pois elas não favorecem o desenvolvimento da cadeia significante nem possibilitam ao sujeito responsabilizar-se pelo próprio gozo.

O valor disso que ele destaca é o que chamamos de segunda regra da análise, a regra da abstinência, que completaria a primeira regra, a da associação livre. O que está em jogo é não se satisfazer com uma satisfação de ordem sexual com o analista.

O lugar do analista no discurso do analista enquanto objeto a, invólucro do nada da significação inconsciente. Lacan (1973/2003, p. 518) situará o analista em “Televisão” pelo que antigamente se chamava “ser santo”. O santo não faz caridade; antes, presta-se a bancar o dejeto: ele faz descaridade, o que permite ao sujeito tomá-lo como objeto causa de seu desejo.


 

Referências
ASSOUN, P.-L. Dictionnaire des oeuvres psychanalytiques. Paris: PUF, 2009.
FREUD, S. Recomendações ao médico para o tratamento psicanalíticoIn: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 93-104. (Trabalho original publicado em 1912).
FREUD, S. A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcialIn: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 93-104. (Trabalho original publicado em 1927).
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. (Texto original proferido em 1953-54).
LACAN, J. Situação da psicanálise em 1956. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original proferido em 1956).
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. (1956). Situação da psicanálise em 1956. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, J. (1973). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 
MATTOS, S. de. Rien comme un vide. Revue La Cause du Désir, n. 111, jun, 2022.
MATTOS, S. de. A boa sorte de analisar-se. In: XI ENAPOL: Textos de Orientação. 2023. Disponível em: <http://enapol.com/xi/wp-content/uploads/2023/04/ENAPOL-Sergio-de-Mattos-PT-2.pdf>. Acesso em: 25 mai. 2023.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
MILLER, J.-A. Como começam as análises. In: XI ENAPOL: Textos de Orientação. 2023. Disponível em: http://enapol.com/xi/wp-content/uploads/ 2023/04/ENAPOL-Jacques-Alain-Miller-PT.pdf. Acesso em: 25 mai. 2023. Trabalho original publicado em 1994).

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[1] Texto apresentado nas 59ª. Lições introdutórias à Psicanálise em 28 de março de 2023.




O método psicanalítico: de Freud a Lacan e retorno[1]

Paula Pimenta
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
paularamos.pimenta@gmail.com

Resumo: Este artigo se propõe a apresentar em detalhes o texto de Miller (1997), intitulado “O método psicanalítico”, e o texto quase homônimo de Freud (1904[1905]/2017), intitulado “O método psicanalítico freudiano”. O percurso a ser feito partirá do texto de Freud, passando pelo de Miller e retornando ao de Freud com a intenção de promover uma interlocução entre eles.

Palavras-chave: método psicanalítico; Freud; Lacan; Miller.

THE PSYCHOANALYTIC METHOD: FROM FREUD TO LACAN AND BACK

Abstract: This article proposes to present in detail the text by Miller (1997), “The psychoanalytic method”, and the almost homonymous text by Freud (1904/2017), entitled “The freudian psychoanalytic method”. The route to be taken will start from Freud’s text, passing through Miller’s and returning to Freud’s with the intention of promoting an interlocution between them. 

Keywords: psychoanalytic method; Freud; Lacan; Miller.

Imagem: Renata Laguardia

“O método psicanalítico”, por S. Freud

“O método psicanalítico freudiano”, texto de Freud de 1904, foi escrito em terceira pessoa para ser publicado no livro Os fenômenos compulsivos psíquicos, do médico neurologista alemão Leopold Loewenfeld, que se interessou pelas doenças nervosas. Em nota de rodapé de seu texto sobre o Homem dos Ratos, Freud confessou tomar o livro de Loewenfeld como seu manual padrão para a abordagem da neurose obsessiva.

De acordo com as notas de apresentação do referido texto de Freud constantes na coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud, ele seria “a primeira exposição abrangente acerca da técnica psicanalítica” feita por Freud, aproveitando-se da ocasião para a formalização da psicanálise como técnica terapêutica, uma vez que já ocorria sua expansão internacional por meio dos trabalhos do psiquiatra Eugen Bleuler, na Suíça.

O editor ressalta a curiosa opção nominativa de Freud, que designa como “arte da interpretação” a principal ferramenta técnica de sua jovem ciência, em um momento em que se dedicava a fazê-la ser reconhecida por sua cientificidade no meio médico. Com efeito, vemos que Freud introduz como “arte da interpretação” o que mais tarde passará a chamar de “associação livre”. Ele assim a descreve por meio de uma analogia mineralógica: a “arte da interpretação tem o mérito de, a partir dos minérios das ocorrências involuntárias, representar o teor de metal dos pensamentos recalcados” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 55). Tal descrição, como o próprio Freud indica em um momento do texto, não deixa de nos remeter à técnica por ele exposta quatro anos antes em seu artigo sobre a “Interpretação dos Sonhos” e que ele retoma de maneira mais esquemática na última década de seu ensino, em 1932, na Conferência XXIX, “Revisão da teoria dos sonhos”.

Como “ocorrência” (Einfall) podemos entender uma ideia ou imagem que se impõe à pessoa – neste sentido, conferir a nota de rodapé n. 3 na página 60 da edição das Obras Incompletas de Sigmund Freud aqui utilizada. As “ocorrências involuntárias” seriam, portanto, toda e qualquer manifestação psíquica espontânea, em resposta à orientação inicial do psicanalista de que

[os pacientes] lhe contem tudo que lhes vem à cabeça, mesmo se acharem não ser importante, ou se acharem que aquilo não vem ao caso, ou que não faz sentido”, enfatizando que “não excluam nenhum pensamento ou nenhuma ocorrência da comunicação pelo fato de lhes parecer vergonhoso ou embaraçoso. (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 54)

Por sua experiência, Freud (1904[1905]/2017, p. 54) observa que as ocorrências involuntárias apontam para lacunas nas lembranças da narrativa do histórico da doença, o que o leva a afirmar que “sem amnésia de qualquer tipo não há histórico da doença neurótica”. E acrescenta que, se o psicanalista insiste para o paciente se esforçar em preencher essas lacunas da memória, o que ele recolhe é uma “resistência” em tentar reproduzir os eventos ou correlações esquecidas, denotada, sobretudo, por uma postura crítica do narrador.

Freud estabelece, assim, o momento da resistência na aplicação da “arte da interpretação” como um dos fundamentos de sua teoria da psicanálise, a serviço do recalque (Verdrängung), que busca evitar o surgimento de sensações de mal-estar naquele que narra. “Quanto maior a resistência, maior será a deformação [das formações psíquicas recalcadas (pensamentos ou moções)]” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 55).

Se Freud inicia seu artigo sobre o método psicanalítico trazendo seus antecedentes – ou seja, o “processo catártico”, proposto por Joseph Breuer, e a ampliação da consciência obtida através da hipnose, sem que haja uma postura de proibição sugestiva por parte do médico –, é para ressaltar a importância de sua própria invenção da “arte da interpretação”. Ele a apresenta como o único caminho – apesar de mais trabalhoso, em comparação com a hipnose – para alcançar o objetivo que o método psicanalítico pretende alcançar, o qual ele exprime por várias “fórmulas”, equivalentes em sua essência: suspensão das amnésias, reversão de todos os recalques ou “tornar o inconsciente acessível ao consciente, o que ocorre através da superação das resistências” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 56).

Porém, engana-se quem acha que Freud é tolo do Real (nos termos lacanianos) e se ilude com uma fantasia de completude. Logo após a enunciação das tais fórmulas, ele acrescenta: “Mas não podemos esquecer aqui que um estado ideal como esse também não existe em uma pessoa normal, e que só raras vezes conseguimos nos aproximar minimamente desse ponto no tratamento” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 56). Estamos em 1904. Freud não precisou esperar 33 anos para concluir, como faz explicitamente em seus dois textos de 1937 – “A análise finita e a infinita” e “Construções na análise” – sobre a existência de fenômenos residuais em uma análise; em outras palavras, sobre o ponto opaco

que insiste ao longo de toda uma análise e ganha, com a análise, algum contorno, alguma localização, mas insiste sem qualquer possibilidade de desligamento ou apagamento: analisa-se, portanto, para se haver com uma satisfação que se reitera sem se deixar negativizar, porque ela é também, mesmo perturbando-os, o que confere vida aos corpos e implica uma parceria da qual não há propriamente como se livrar ou afastar. (LAIA, 2017, p.400)

Como solução à aporia instituída, Freud enuncia o que se tornou uma célebre passagem de sua obra. Ele diz: “o objetivo do tratamento nunca será algo diferente do que a cura prática do doente, o estabelecimento de sua capacidade de realizar e de gozar” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57). Vale aqui, novamente, realçar a observação do revisor da edição das Obras Incompletas de Sigmund Freud aqui utilizada, que aponta o reducionismo da expressão mais comumente conhecida “trabalhar e amar”; a justa tradução dos termos usados por Freud (leisten e genieBen) revela os sentidos de realizar (coisas) e fruir ou gozar (a vida). E segue Freud (1904[1905]/2017, p. 57): “Em caso de tratamento incompleto ou de resultados imperfeitos desse tratamento, alcançamos principalmente uma melhora significativa do estado psíquico geral do doente, enquanto os sintomas podem continuar existindo, sem, porém, estigmatizá-lo como doente, mas tendo menor importância para ele”.

Os “resultados imperfeitos” do tratamento relacionam-se também, a meu ver, com um fator mencionado por Freud no início do texto. Ele justificava a pertinência da mudança do método catártico para a “arte da interpretação” pelo fato desta conseguir se aproximar mais da série de impressões que participavam do surgimento do sintoma, que se revelou plural e não apenas como impressão única (e traumática), tal como requeria o procedimento catártico para seu êxito. Sobre essa “série de impressões” que causavam o sintoma – o que nos remete à sua formulação posterior de que o sintoma é uma “solução de compromisso” entre as instâncias do Isso, do Supereu e do mundo externo, ao qual o Eu encontra-se submetido –, Freud (1904[1905]/2017, p. 52) dirá que elas (as impressões em série) são “difíceis de serem superadas”.

Em acréscimo aos aspectos técnicos que justificam a mudança de método, Freud menciona o uso do divã – que, no texto, ele descreve como “cama de descanso” (e não Diwan) – com o propósito de que o analisante poupe “todo e qualquer esforço muscular, assim como toda impressão dos sentidos que possa atrapalhar a concentração na sua própria atividade anímica” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 53), diferentemente, porém, do contexto da hipnose, sem que necessite fechar os olhos ou que haja qualquer contato com a pessoa do médico. A dificuldade de grande número de pessoas neuróticas em serem hipnotizadas é outro argumento, que se soma aos demais, em favor da instituição do novo método da “arte da interpretação”.

E a quem ela se destina? A “todos os quadros sintomáticos da histeria multiforme e também para todas as formações da neurose obsessiva” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57). Dentre estes, os mais favoráveis são

os casos crônicos de psiconeuroses com sintomas pouco intempestivos ou potencialmente pouco perigosos, ou seja, inicialmente todos os tipos de neurose obsessiva, de pensamento e atuação obsessiva, e casos de histeria em que fobias e abulias têm papel preponderante, mas também todas as manifestações somáticas da histeria, desde que a eliminação rápida dos sintomas, como no caso da anorexia, não se torne a tarefa principal do médico. (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57)

Freud estabelece condições para a pessoa que será submetida com sucesso à psicanálise: mostrar um estado psíquico normal, sem estados de confusão ou de depressão melancólica; ter determinado grau de inteligência natural e de desenvolvimento ético, pois as deformações marcantes de caráter mostram-se fontes de resistências insuperáveis; e faixa etária abaixo do quinto decênio pois, do contrário, o tempo necessário para o restabelecimento será demasiado longo, além de que, aos 50 anos, a capacidade de reverter processos psíquicos começa a fraquejar. Sobre este ponto, cabe lembrar que a expectativa e a qualidade de vida em 1904 encontravam-se bem aquém das atuais.

Por fim, o tempo de duração da análise é estimado de seis meses a três anos para os casos muito graves, adoecidos há muitos anos e com total incapacidade produtiva – público corrente dos psicanalistas, até então. Fora de sua experiência prática mais comum, Freud estima que o tratamento dos casos mais leves teria uma duração bem menor, chegando a “obter um ganho extraordinário em termos de prevenção para o futuro” (Freud, 1904/2017, p. 58).

“O método psicanalítico”, por J.-A. Miller

O texto de Miller intitulado “O método psicanalítico” compõe-se pelo estabelecimento de três conferências dadas pelo autor em Curitiba em julho de 1987. Ele participa do livro Lacan Elucidado: palestras no Brasil, publicado dez anos mais tarde, em 1997, como uma coletânea das palestras proferidas por Miller no Brasil entre os anos 1981 e 1995. 

“O método psicanalítico” é o título do terceiro capítulo do referido livro e engloba quatro seções: a primeira palestra, intitulada “Discurso do método psicanalítico”; a segunda, denominada “Diagnóstico e localização subjetiva”; a terceira, “Introdução ao inconsciente”; e uma quarta, designada como “Respostas e questões em aberto”.

De pronto, Miller introduz um esquema que encadeará o desenvolvimento das três conferências. Trata-se das finalidades das Entrevistas Preliminares, tempo inicial da prática analítica, que se subdividem em três níveis: 1. A avaliação clínica; 2. A localização subjetiva; e 3. A introdução ao inconsciente. Esses níveis das Entrevistas Preliminares se superpõem, sem que haja separação completa entre eles. Suas interseções configuram-se no estabelecimento de dois processos subsequentes, que Miller denomina de Subjetivação (entre os níveis 1 e 2) e de Retificação (entre os níveis 2 e 3).

Segue o esquema, segundo sua notação:

1. A avaliação clínica

[Subjetivação]

2. A localização subjetiva

[Retificação]

3. A introdução ao inconsciente

Antes de se dedicar à explanação de cada um, Miller circunscreve a prática das Entrevistas Preliminares como o que rege, eticamente, a responsabilidade do analista em responder à demanda de análise formulada pelo candidato a analisante. “Aceitá-lo ou recusá-lo já é um ato analítico” (MILLER, 1997, p. 224) e, para fundamentar tal ato, é preciso saber que, numa análise, nos dirigimos sempre ao sujeito, cuja categoria não é técnica, e, sim, ética.

Em sua proposta de fazer um “discurso do método” da psicanálise, deixando as questões em aberto (daí o título da quarta seção), Miller ressalta que a psicanálise de orientação lacaniana é sem padrões, mas não sem princípios – e se dispõe a formalizá-los.

Começa por esclarecer que quem procura um analista não é um sujeito, mas alguém que quer ser um paciente. O sujeito é um efeito do processo analítico e não está lá desde antes. Desse modo, Miller diferencia o paciente psiquiátrico, designado pelos outros (família, médico, sociedade, instâncias sociais), do paciente da psicanálise. Este último é ativo, é ele quem primeiro avalia seu sintoma e pede ao analista um aval para sua autoavaliação. “Em análise, não há paciente à revelia de si mesmo”, sinaliza Miller (1997, p. 223). A autorização do analista quanto à autoavaliação daquele que lhe chega como paciente configura um ato analítico.

Mas isso não implica em recebê-lo em análise. Aqui se institui o contexto das Entrevistas Preliminares que, dentre outras funções, levará o paciente-candidato a reformular sua demanda. Sua duração é variável, podendo perdurar por um mês, meses, um ano ou vários, sem, no entanto, se descuidar da especialidade desse tempo que precede “a análise em seu rigor” (MILLER, 1997, p. 224).

Desse modo, o primeiro nível das Entrevistas Preliminares, o da Avaliação clínica, terá como função o estabelecimento de um diagnóstico estrutural – neurose, psicose ou perversão. Diante de uma eventual dúvida diagnóstica – não tão eventual assim, por vez comum de acontecer –, Miller indica que o analista poderá recusar a demanda, prolongar o tempo das Entrevistas Preliminares ou assumir um risco mais ou menos calculado. Adverte quanto à importância vital da avaliação clínica nos casos de psicose, pois se ela não estiver desencadeada, a análise poderá vir a desencadeá-la.

“Há uma regra segundo a qual devemos recusar a demanda de análise do paciente pré-psicótico. Se isso não ocorrer, é necessário ter o máximo de cuidado para não desencadear a psicose, através de qualquer palavra” (MILLER, 1997, p. 226). Essa é uma das passagens do texto que o fazem poder ser considerado datado. A expressão “pré-psicose” denota a detecção de uma estrutura psicótica, porém não desencadeada. Foi somente 12 anos mais tarde, em 1999, em decorrência da série de conversações clínicas ocorridas na França – notadamente a Conversação de Antibes –, que Miller veio a cunhar o termo “psicose ordinária” para abarcar esses casos. A contraindicação da análise para os pacientes de estrutura psicótica também se mostra anacrônica e centrada no modelo do manejo com os pacientes neuróticos – para os quais se aplicam os demais níveis do esquema esboçado neste texto.

Miller aconselha a todo analista ter um saber profundo e extensivo sobre a estrutura psicótica e indica os parâmetros dos fenômenos elementares que devem guiar a avaliação clínica desse primeiro nível: os fenômenos de automatismo mental, de automatismo corporal e aqueles concernentes ao sentido e à verdade. Em seguida, realiza breves diagnósticos diferenciais entre psicose e histeria, psicose e neurose obsessiva e psicose e perversão. Termina então sua primeira conferência, “Discurso do método psicanalítico”, estabelecendo a categoria da enunciação como um operador prático para a clínica psicanalítica e promotora do segundo nível da Entrevistas Preliminares, a saber, o nível da localização subjetiva.

A segunda conferência, portanto, intitula-se “Diagnóstico e localização subjetiva”, e vai abordar o lugar do sujeito na análise. Para diferenciar a clínica psicanalítica, que visa a subjetividade, das demais, objetivas, Miller distingue a conduta do paciente da posição que ele assume diante de seus atos. “Como vemos, o nível descritivo não é de muita valia na experiência analítica. […] O essencial é o que o paciente diz” (MILLER, 1997, p. 235). Miller demarca a importância do analista se separar da dimensão do fato para entrar na dimensão do dito. A isso deve-se acrescentar um segundo passo: questionar a posição tomada por quem fala quanto aos próprios ditos. “Trata-se de distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p. 238). Temos, aqui, o princípio da localização subjetiva, na análise, pela via da distinção entre enunciado e enunciação, entre o dito e o dizer.

Os fenômenos que se passam entre o enunciado, o que se diz, e a enunciação, na qual se localiza o sujeito, são decisivos para a interpretação analítica. Desse modo, diante da modalização instituída pela negação – por exemplo, com o paciente de Freud que enuncia, após o relato do sonho, “não é minha mãe” – ou por outra posição do sujeito, a interpretação analítica mínima é: “Você o disse, eu não fiz você dizê-lo” (MILLER, 1997, p. 240), o que aponta para a etapa lógica seguinte, da retificação subjetiva.

A linguagem segue sempre em retroação; o significante toma seu sentido retroativamente, somente a partir de um segundo significante. Miller o exemplifica com as frases de seu paciente, que primeiro lhe diz: “Sou um joão-ninguém”; ao que acrescenta: “É o que meu pai sempre dizia”, o que modifica o sentido da primeira frase.

O sentido do significante é dado por retroação e o sujeito fala por um contínuo processo de citação.

Não há unidade da cadeia significante, do ponto de vista da enunciação. Uma palavra é a repetição do discurso do outro. É a voz do pai que fala quando o sujeito diz “eu não sou nada”. […] A cadeia significante é polifônica, falamos a várias vozes, modificando continuamente a posição do sujeito. (MILLER, 1997, p. 243)

Isto leva Miller a questionar até que ponto o sujeito fala em seu próprio nome. Como método analítico, ele, no entanto, institui a importância da pontuação do analista, que fixa a posição subjetiva em meio ao deslizamento significante.

Reproduzindo de outra maneira o que expôs Freud em seu texto, ao falar das resistências que vão contra a vontade de restabelecimento do paciente, Miller indica que a modalização do dito pode se dar de tal maneira que uma demanda explícita de mudança pode revelar-se a de não mudar. Com isso, estipula uma função essencial para o analista, nas Entrevistas Preliminares: a de mal-entendido, revelado na pergunta que ele dirige ao analisante – “O que você quer dizer com isso?”.

Assim, localizar o sujeito consiste em fazer aparecer a caixa vazia onde se inscrevem as variações da posição subjetiva. É como pôr entre parênteses o que o sujeito diz e fazer com que ele perceba que toma diferentes posições modalizadas para com seu dito. (MILLER, 1997, p. 247)

O sujeito é, portanto, essa caixa vazia que lhe revela “eu não sei o que digo”, fazendo da enunciação o próprio lugar do inconsciente.

A terceira conferência, denominada “Introdução ao inconsciente”, retoma a relação entre o dito e o dizer para indicar que a ética da psicanálise toca o bem-dizer.

O analista, separando enunciado e enunciação ao reformular a demanda e introduzir o mal-entendido, guia o sujeito para o encontro do inconsciente: leva-o ao questionamento de seu desejo e do que pretende dizer quando fala, fazendo-o assim perceber que há sempre uma boca mal-entendida. (MILLER, 1997, p. 250)

“As entrevistas preliminares não são apenas uma investigação para localizar o sujeito, mas também a mudança efetiva de sua posição […] alguém que se refere ao que disse guardando distância do dito” (MILLER, 1997, p. 250). Esse processo se constitui em uma retificação subjetiva. Ela é alcançada por meio da localização subjetiva, a partir da qual o sujeito passa a aceitar a associação livre (dizendo nos termos do Freud de 1904, a “arte da interpretação”), a falar sem censurar o que diz buscando o sentido, a abandonar a posição de mestre.

Miller (1997, p. 253) precisa que o essencial para abrir o que chamou de “espaço analítico” é o sujeito. E o define da seguinte maneira: “o sujeito é a própria perda, jamais contável em seu próprio lugar, ao nível físico, ao nível da objetividade. Neste nível ele não existe, e é responsabilidade do analista produzi-lo num outro, que lhe seja apropriado”.

E segue, mais à frente: “A introdução ao inconsciente é, na realidade, uma introdução à falta-a-ser. O sujeito é esta falta-a-ser, não tem substância, existe apenas como a torção dos três tempos” (MILLER, 1997, p. 254). E: “Lacan chamou retificação subjetiva à passagem do fato de queixar-se dos outros para queixar-se de si mesmo” (MILLER, 1997, p. 255).

Miller (1997) observa que, no período mais avançado de seu ensino, no entanto, Lacan não fala tanto de retificação subjetiva, mas da histerização do sujeito. O sujeito histérico é aquele que se vê dividido em relação ao significante-mestre (S1), tomando distância de todo dito, o que lhe propicia a perda de um ponto de referência.

Como conclusão, recapitula o percurso realizado com as três conferências, tendo introduzido o sujeito a partir do tema da enunciação, fazendo aparecer ele mesmo como vazio, configurando o drama da falta-a-ser, com o qual o sujeito neurótico tem que se haver.

E retorno…

Para um ensaio de interlocução entre os textos, dois temas podem ser ressaltados e serão expostos a seguir.

1. Tanto Freud quanto Miller se fazem a pergunta sobre quem poderia se beneficiar do processo analítico.

Freud, em sintonia com seu receio quanto a se tomar sujeitos psicóticos em análise, estabelece a estrutura neurótica, que engloba os tipos clínicos da histeria e da neurose obsessiva, como o público-alvo da análise. Não recuando, no entanto, diante dos casos graves, “adoecidos há muitos anos e com total incapacidade produtiva” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 58) como seu público majoritário.

O pensamento freudiano dos primórdios de sua elaboração teórica está às voltas com o mecanismo do recalque e as resistências do aparelho psíquico que venham a proteger o Eu do mal-estar promovido pelo ressurgimento das lembranças reprimidas. Ora, sabemos ser este um mecanismo de funcionamento neurótico, com o recalcamento sendo seu mecanismo de defesa primordial – e a negativa um modo de contorná-lo, assim como as demais manifestações do inconsciente (as modalidades de equívocos pelo falar, pelo agir ou pelo ler, os chistes e os sonhos).

Já Miller (1997, p. 226), ao dizer da “regra segundo a qual devemos recusar a demanda de análise do paciente pré-psicótico”, ou seja, de estrutura psicótica, mesmo em 1987 não parece estar menos advertido quanto aos benefícios que a psicanálise possibilita ao sujeito psicótico. Mas não nos termos da retificação subjetiva, que é seu propósito com as conferências realizadas sobre o método psicanalítico. Para haver a retificação é preciso o mecanismo do recalque; em outros termos, da clínica estrutural, é preciso estar diante de um sujeito neurótico.

2. Ao descrever as condições para o paciente ser submetido com sucesso à análise, Freud aponta que “as deformações marcantes de caráter se mostram fontes de resistências insuperáveis” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 58). Buscando elucidar a afirmativa de Freud com o texto de Miller, temos que este autor indica que o “verdadeiro perverso”, aquele que se enquadra na estrutura clínica da perversão, não procura nem entra em análise por não querer prestar conta a nenhum Outro (MILLER, 2017, p. 255). O perverso não se divide quanto ao gozo, “ele sabe tudo o que há para se saber sobre o gozo” (MILLER, 2017, p. 229), e acrescenta que “o verdadeiro perverso, muitas vezes, escapa à sua própria análise e se autoriza a analisar, por iniciativa própria, porquanto julga ter o mais importante saber, o do gozo” (MILLER, 2017, p. 229).

Se “as deformações marcantes de caráter” de que fala Freud são tomadas como indicativas de uma estrutura perversa, podemos entender, pela via da elaboração de Miller, porque haveria, em alguns sujeitos, “fontes de resistências insuperáveis” à análise.

Por estarem circunscritos a momentos diferentes da elaboração da teoria psicanalítica – 1904 e 1987 –, os textos de Freud e de Miller sobre o “método psicanalítico” apresentam pontos comuns e outros díspares, demarcados pela inserção temporal própria a cada um. Este último aspecto relança os dois textos, conjuntamente, ao descompasso com elaborações teóricas mais atuais, como o mencionado sintagma “psicose ordinária”, bem como a formalização da clínica iluminada pelos elementos epistêmicos apresentados pelo chamado “ultimíssimo Lacan”. Não obstante, os textos aqui apresentados conservam a bússola orientadora para a prática psicanalítica, evidenciando a posição do analista na transferência ao tomar sob sua condução um tratamento psicanalítico.


 

Referências
FREUD, S. O método psicanalítico freudiano. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 51-58. (Trabalho original publicado em 1904 [1905]).
LAIA, S. Posfácio. Orientação freudiana. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 383-401.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 14 de março de 2023.



Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma[1]

Philippe la Sagna
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne
plasagna@free.fr

Resumo: Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele.

Palavras-chave: doenças mentais; despatologização; desmedicalização; forclusão; sintoma.

DEPATHOLOGIZATION AND DEMEDICALIZATION: THE FORECLOSURE OF THE SYMPTOM

Abstract: According to the author, after the DSM5 crisis and the emergence of the Research Domain Criteria (RDoC) in the clinic, the pathology model for mental illness became a “disorder” and weakened. In this new situation, the referent becomes the neuronal circuits associated with behaviors that are isolated in areas. One of the main and logical effects of this is depathologization and demedicalization with the erasure of therapy. Today, we educate, rehabilitate and aim at the power to act, the empowerment, and thus carry out a foreclosure of the symptom so dear to psychoanalysis, that it does not aim at its erasure, but at what the subject knows how to do with it.

Keywords: mental illness; depathologization; demedicalization; foreclosure; symptom.

Imagem: Sofia Nabuco

A questão trans lança luz sobre uma forte tendência na psiquiatria e até da medicina: a despatologização generalizada da clínica e até mesmo sua desmedicalização. Nós queremos cuidados, mas não queremos mais “fazer dela uma doença”. Em seu artigo “La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique”,[2] Éric Laurent (2014) havia apontado o fracasso do DSM-V. Em outro artigo, publicado em L’évolution psychiatrique, ele mostrou a lógica do que chamou de “a grande translação clínica contemporânea” (LAURENT, 2019, p. 57).  A crise do DSM levou ao aparecimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC)[3] na clínica.

Nessa nova situação, toma-se como o referente não mais as doenças, patologias ou mesmo pacientes, mas circuitos neuronais correlacionados com dados comportamentais que podem ser isolados em áreas. Em 2015, Steeves Demazeux, de Bordeaux, e Vincent Pidoux, em um artigo sobre este projeto RDoC, mostraram que o desafio dos RDoCs era abandonar o diagnóstico. O conceito do RDoC é o de formalizar construtos teóricos que serão os blocos de construção da classificação. O projeto é apresentado como uma pesquisa, o que o protege de uma verificação clínica efetiva. Os “campos” de pesquisa nunca deixam de surpreender: medo, circuito de recompensa, aversão, adicção, cognição (atenção e percepção, memória), aos quais acrescentamos “os processos sociais, e os sistemas de ativação e de modulação cerebrais”. Em seu livro l’Éclipse du Symptom, S. Demazeux (2019) mostra que o que antecedeu ao DSM, desde o início do século XX nos Estados Unidos, foram estudos estatísticos sobre a saúde mental: esses projetos têm em comum o fato de que eles viram as costas para toda herança da psiquiatria. Eles vão ainda mais longe, já que parecem querer abandonar a própria noção de sintoma.

À frente desse projeto RDoC está um psicólogo: Bruce Cuthbert. Em um recente artigo, ele define “a estrutura de trabalho do RDoC” (CUTHBERT, 2021). O essencial é o desenvolvimento de uma tabela de entrada dupla. No eixo das ordenadas, estão as áreas já mencionadas aqui, e no das abscissas há amontoados de “circuitos cerebrais”, os genes, as células, e até mesmo as moléculas e os comportamentos.

O autor especifica que os “construtos” são “conceitos não calculáveis” propostos a partir de conjuntos convergentes de dados (CUTHBERT, 2021, p. 78). Para ele, o essencial é definir trajetórias de desenvolvimento: “A maior parte das doenças mentais são distúrbios do desenvolvimento neurológico, a maturação do sistema nervoso interagindo com uma grande variedade de fatores externos mesmo antes do nascimento” (CUTHBERT, 2021, p. 78). E ele se refere à extensão das desordens do neurodesenvolvimento (TND):

A este respeito, para tomar um exemplo, Craddock e Owen propuseram um gradiente para a patologia de neurodesenvolvimento que, de forma contínua, parte da deficiência intelectual e avança para o autismo, a esquizofrenia, o transtorno esquizoafetivo, o transtorno bipolar e a depressão unipolar. (CUTHBERT, 2021, p. 84)

Aqui, não há descontinuidade no real onde um sujeito do transtorno poderia entrar sorrateiramente. A abordagem supõe uma continuidade entre o normal e o anormal que se torna o substituto do patológico. A abordagem é dimensional.

Em nosso campo, fomos capazes de avançar uma hipótese continuísta de natureza diferente com o “todo mundo é louco”. A ideia era modular a oposição do tipo estrutural neurose/psicose e passar da falta própria do significante para um exame das conexões e a uma clínica nodal, borromeana, ou mesmo para uma lógica difusa. Mas não é nunca uma continuidade baseada na avaliação dimensional de um déficit em referência ao normal.

A frase de Lacan é um falso universal a ser lido à luz do não-todo da sexualidade feminina. Lacan, em Vincennes, em 1978, enfatizou que não havia nada de universal no discurso analítico. Ele acrescentou que, nesse aspecto, “não é uma questão de ensino”. A loucura é também: “ensinar, o que não pode ser ensinado” (LACAN, 1979, p. 278). Não se trata de dizer, para os RDoCs, que “todo mundo é louco”, mas, sim, que “todo mundo é normal”. Em um recente colóquio em Nantes, um dos participantes (Nicolas Georgieff) sublinhou: “Do lado das ‘doenças’, o modelo de patologia – que se tornou disorder – se enfraqueceu. Isso é particularmente verdadeiro para os distúrbios reunidos no novo compartimento do ‘neurodesenvolvimento’, supostos como sendo eminentemente médicos” (GEORGIEFF, 2021).

Para os TNDs, o genótipo substitui o sintoma e substitui a clínica. Um dos efeitos principais e lógicos dessa desmedicalização é o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos, visamos o reforço do poder de agir – empowerment – e elogiamos a resiliência. A doença mental escapa ao psiquiatra, mas também ao psicólogo, que é sempre um pouco psi demais tanto para os clientes que não são mais pacientes, como também para os seus cuidadoresInvestimos nos pares cuidadores. Realizamos assim uma foraclusão do real da doença. A doença, de fato, não é um ser; é o real da existência do vivente / sujeito. Como Lacan (1953/1998, p. 282) assinalou em 1953 citando a observação de Hegel: “a doença [é] a introdução do vivente na existência do sujeito”. A psicanálise não visa o apagamento do sintoma, mas sim aquilo com que o sujeito se vira, que ele saiba fazer com ele como faz com a sua imagem, que ele o manipule. Atualmente, embaralhamos tudo isso. Essa confusão contemporânea corre o risco de produzir o que Lacan evocava como os “hollow men” (MILLER, 2007), homens com a cabeça cheia da palha, com a palha dos circuitos neuronais e dos genes. O psicanalista é então um sintoma do qual queremos prescindir, como de resto. Lacan (1973/2003, p. 554) afirmava em 1973 “que os tipos clínicos decorrem da estrutura”. No entanto, tudo isso não permite que se constituam correlatos na neurose. “Os sujeitos de um tipo não têm, portanto, qualquer utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).  Lacan (1975-76, p. 55) argumentou que a função do sintoma é a de operar a nomeação do simbólico: “a nomeação é a única coisa no simbólico da qual temos certeza de que ela faz furo”. Essa nomeação não garante a consistência do sistema simbólico, mas, sim, seu furo. Isso se opõe à “futilidade” da ciência, “que é óbvio que ela apenas progride pela via – é seu método, é sua história, é sua estrutura – só progride pela via de preencher os furos” (LACAN, 1975).

Conversação 

Angèle Terrier: Obrigada Philippe La Sagna. Você nos apresenta pesquisas na vanguarda da tese “neuro”, na qual há muito claramente uma questão de se livrar de toda noção de patologia, de sintoma, de diagnóstico e até mesmo do paciente, a fim de estar interessado apenas em circuitos neurais correlacionados a dados comportamentais, estando a saúde mental reduzida, portanto, a um quadro de dupla entrada. É o que você nomeia como uma despatologização da clínica ou uma desmedicalização. E aqui, por falta de tempo, eu gostaria de ouvir você discutir isso com Hervé Castanet, que fala mais sobre a patologização da vida mental.

Philippe La Sagna: Sim, há alguma discussão; embora talvez seja um pouco a mesma coisa. Parece-me que a patologização da vida mental, sobre a qual evocava Hervé Castanet, diz respeito, acima de tudo, ao fato de que, a partir do momento em que as neurociências tomaram o poder – podemos ver isto de uma maneira diferente –, elas abordaram toda a vida mental como sendo suscetível a desordens e inventaram, portanto, as doenças. Foi isso que colocou o DSM no fosso. Depois de um tempo, eram quatrocentos e cinquenta tipos de doenças mentais, o que levou as pessoas a dizer: “Vamos parar”. Isso parou no dia em que nos perguntamos se o fato das mulheres estarem tristes durante seus períodos menstruais era uma doença mental ou não. As feministas responderam: “Não, não é uma doença mental”.

A pergunta que você me fez sobre os furos também é igualmente importante. O que acontece com os furos na ciência? Acredito que a ciência da qual falava Lacan e a ciência de hoje não têm muito a ver. É preciso entender que a ciência, no momento, funciona como uma startup, tanto no nível do financiamento, quanto das publicações. Os laboratórios também operam com esse modelo.

O caso Theranos[4] é um exemplo que está causando um escândalo no momento. Apesar de se afirmar como ciência, ela se verificou completamente manipulada. Estou recebendo em análise alguns cientistas que me dizem como é difícil fazer pesquisas sem adulterar os resultados para conseguir financiamento. Há uma retórica da promessa, como diz François Gonon; é preciso levar às pessoas a esperança dos amanhãs que cantam: transplantes de cérebro, por exemplo. Estamos quase lá! Parece-me que isto está de acordo com o que disse Hervé Castanet. Para obter amanhãs que cantem, você inventa coisas que não existem. Não é mais uma questão de tapar furos, mas de evitá-los. Esta ciência é muito mais louca do que a anterior. Antes, quando ela encontrava um furo, tentava respondê-lo, tampando-o. Agora, quando confrontados com um furo, passam para outra coisa.

A. Terrier: O que você está destacando é o delírio destas falsas ciências. A pergunta que eu estava me fazendo foi baseada nessa citação de Lacan que você retomou no final de sua palestra, na qual ele indica que a ciência só avança ao preencher furos. É realmente uma questão de foracluir o próprio furo do simbólico.

P. La Sagna: Talvez eu não concorde com você porque, se fosse uma questão de foraclusão, isso deixaria uma esperança. Tudo o que é foracluído no simbólico retorna no real, você sabe disso. A foraclusão do sujeito da ciência, é o cientista.

A. Terrier: Isso retorna, de fato.

P. La Sagna: Poderia dizer, por exemplo, que a ciência forclui o sujeito e, infelizmente, o cientista é um sujeito que retorna no real, que diz a si mesmo que não deveria ter feito a bomba atômica e que vai atirar uma bala na própria cabeça. Se os furos da ciência fossem foracluídos, eles retornariam no real. Mas, hoje, os cientistas os ignoram, ou seja, eles entram sorrateiramente por cima deles. Como demonstrava o meu amigo François Gonon, com quem trabalhei por muito tempo, apenas os resultados positivos são publicados. O que importa se, três meses depois, novos resultados são publicados demonstrando a falsidade dos resultados anteriores, se ninguém os lê. Eles aparecem em um pequeno parágrafo. É por isso que eu digo que eles evitam os furos. Isso não é mais a ciência de Lacan, na qual havia debates, colóquios. Hoje em dia, não é o mesmo real.

Hervé Castanet: Em sua palestra, você diz: “estas falsas ciências”. Podemos dizer isso em nosso campo, mas, assim que o deixamos, essa declaração não pode ser ouvida; essa é a prática que é valorizada em todos os dispositivos científicos atualmente, ou em quase todos. Portanto, a pergunta que fiz a mim mesmo é menos porque isso é assim, do que questionar como isso pôde ser possível. Como esse modo de proceder, do qual zombamos sempre, pode hoje prosperar? Aplicando uma epistemologia, por mais rudimentar e eficaz que seja, por exemplo a de Canguilhem, percebe-se que esses argumentos não se sustentam e, apesar de tudo, generalizaram-se a tal ponto que os laboratórios, não só na França, mas também no exterior, são mantidos por esse tipo de ciência. Daí minhas referências ao Collège de France e à Academia de Ciências.

Fiquei muito sensibilizado com a observação feita anteriormente por J.-A. Miller. Não ficamos obrigados, de uma certa forma, a estar nos porões, nas catacumbas, quando constatamos que todos os dispositivos são desse tipo? Os acadêmicos de psicologia não sonharam sempre com o jaleco branco? Zombamos tanto deles e de sua disciplina, ao nos referirmos ao famoso texto de Canguilhem. De maneira efetiva, suas esperanças de pertencer à ciência generalizaram esses procedimentos. Nossa crítica a essas “falsas ciências”, mesmo a nossa zombaria – porque é tão triste que temos que colocar um pouco de humor – não impede que elas tenham efeitos sobre a prática, mesmo em hospitais. Os textos aos quais me refiro não são marginais; há uma menção explícita de intervenção no cérebro.

Lembro-me de uma apresentação de pacientes para residentes no Hospital Universitário de Marselha (CHU). Após a apresentação, durante uma hora, nós tentamos determinar no departamento de geronto-psiquiatria se se tratava de uma demência frontal ou de esquizofrenia. Obviamente, ambas podem coexistir. Uma jovem residente me disse: “Mas você passou uma hora discutindo, enquanto uma varredura de scan, que não custa nada – era uma época em que havia um déficit de um bilhão no AP-HM – teria lhe esclarecido imediatamente”. Para ela, estávamos fazendo a história do pensamento.

A. Terrier: É de fato dessa história que esta ciência gostaria de prescindir.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Márcia Bandeira

Referências
CUTHBERT, B. N. Le cadre de travail des RDoC: faciliter la transition de la CIM et du DSM vers des approches dimensionnelles qui intègrent les neurosciences et la psychopathologie. Annales médico-psychologiques, v. 179, p. 75-85, 2021. Disponível em: https://www.em-consulte.com/article/ 1420731/le-cadre-de-travail-des-rdoc% C2%A0-faciliter-la-transit. Acesso em: 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/ revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023. .
DEMAZEUX, S. L’Éclipse du symptôme: L’observation clinique en psychiatrie (1800-1950). Paris: Ithaque, 2019.
LACAN, J. Intervention au Congrès de la Grande Motte de l’École freudienne de Paris. Lettres de l’École freudienne, n. 15, p. 69-80, 1975.
LACAN, J. Séminaire du 15 avril 1975. Ornicar?, n. 5, 1975-76.
LACAN, J. Lacan pour Vincennes!. Ornicar?, n. 17-18, 1979.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LAURENT, É. La grande translation clinique contemporaine. L’évolution psychiatrique. 2013. Disponível em: https://levolutionpsychiatrique.fr/activites-scientifiques/les-colloques-lanteri-laura/3e-colloque-lanteri-laura-histoire-epistemologie-et-psychopathologie-la-clinique-a-lepreuve-du-contemporain/eric-laurent-la-grande-translation-clinique-contemporaine/>. Acesso em : 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023.
GEORGIEFF, N. La psychiatrie: une médecine sans maladies? Disponível em: http://www.ch-le-vinatier.fr/actualites-23/la-psychiatrie-une-medecine-sans-maladies-951.html?cHash=4bba4d93f41da1a11697433871b582f1.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. Le tout dernier Lacan. Curso de 02 de maio de 2007. (Inédito). Disponível em: <https://jonathanleroy.be/wp-content/uploads/2016/02/2006-2007-Le-tout-dernier-Lacan-JA-Miller.pdf>. Acesso em : 01 jun. 2023.
[1] Texto originalmente publicado em: Revue Quarto, n. 131, jun. 2022
[2] N.T.: Em português, “A crise pós-DSM e a psicanálise na era digital”.
[3] O RdoC é um projeto de pesquisa do Instituto de Saúde Mental dos EUA iniciado em 2009 cujo objetivo é formalizar um novo sistema diagnóstico psiquiátrico que seja capaz de alinhar as classificações do DSM às descobertas em genômica e neurociência.
[4] N.T.: Theranos é uma empresa de tecnologia de testes de sangue que se destina a ser usada em pacientes reais para diagnosticar uma infinidade de doenças. A empresa controlada por uma empresa de biotecnologia, seguiu sem amplo estudo de avaliação. Confrontados por outra empresa seus dados se mostraram inconsistentes. (Cf.: https://setorsaude.com.br/o-escandalo-theranos-pode-ser-apenas-o-comeco/)



Schreber, ainda contemporâneo[1]

Sérgio Laia
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
laia.bhe@terra.com.br

Resumo: Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”.

Palavras-chave: psicose; emasculação; imaginário; real; ordem simbólica; Nome-do-Pai.

SCHREBER, STILL CONTEMPORARY 

Abstract: This text aims to demonstrate Schreber’s contemporaneity based on his Memory and the commentaries made by Freud and Lacan on this book. It highlights what Schreber experimented as a rupture of the Order of World, an emasculation and a resource invented and called by him as “drawing”.

Keywords: psychosis; emasculation; imaginary; real; symbolic order; Name-of-Father.

 

Imagem: Renata Laguardia

Ao propor, para Lilany Pacheco, Diretora do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), esta aula com este título, quis, de início, me servir daquele que pôde se tornar um “caso” decisivo para a clínica psicanalítica das psicoses (FREUD, 1912/2021; SCHREBER, 1903/1980) e articulá-lo à próxima Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) – Há algo de novo nas psicoses… ainda. Porém, em que uma psicose, marcada claramente pela anulação, no simbólico, desse significante ordenador fundamental que Lacan chamou de Nome-do-Pai, pode ser contemporânea deste nosso mundo perpassado muito mais por uma crítica (e mesmo uma derrocada) do patriarcado? O que o delírio schreberiano de procriação e de filiação, fortemente marcado por conotações religiosas e redentoras, pode ser contemporâneo aos nossos dias atravessados pela descrença no Pai, pelo desmantelamento dos ideais e por transformações que distanciam a família do que tradicionalmente se conceberia como sendo uma família? Por que, também, um caso assolado pela persistência de um delírio extraordinário, por alucinações auditivas e visuais, seria contemporâneo quando, em nossa clínica, as psicoses se apresentam de forma muito mais ordinária e sem essas características com que classicamente eram diagnosticadas?

Ora, a persistente contemporaneidade de Schreber já se destacaria pela permanente importância de seu texto para a clínica psicanalítica das psicoses. Assim, Schreber ainda seria contemporâneo porque se trata de um caso incontornável para cada um de nós que sustenta, com a psicanálise, tratamentos possíveis para as psicoses ou, valendo-me de um escrito de Lacan (1966/2001, p. 214), sua persistente contemporaneidade se alinha com aquela mesma de Freud pois “o texto de Schreber é um grande texto freudiano, no sentido de que, antes de ser Freud que o esclareça, é ele que ilumina a pertinência das categorias cunhadas por Freud, sem dúvida, para outros objetos”. O próprio Freud (1912/2021, p. 622) antecipa essa designação que lhe fará Lacan ao afirmar, no final de seu estudo sobre Schreber, que “na verdade, os ‘raios divinos’ de Schreber compostos por condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides são tão somente os investimentos libidinais materializados e projetados para fora, e emprestam ao seu delírio uma concordância flagrante com nossa teoria”. De fato, como um desses “outros objetos” aludido por Lacan (1966/2001, p. 214), o funcionamento do aparelho psíquico concebido por Freud não deixa de se fazer presente quando Schreber (1903/1980, p. 35) compara “a alma humana […] contida nos nervos do corpo” a “fios de linha mais finos” e, assim, por meio das impressões externas, “os nervos são levados a vibrações que, de um modo inexplicável, produzem o sentimento de prazer e desprazer; possuem a capacidade de reter recordações das impressões recebidas (a memória humana)”. A contemporaneidade de Schreber também pode ser relacionada ainda à própria contemporaneidade de Lacan (1966/2001, p. 215) pois este último ressalta que “o texto de Schreber se verifica como um texto a ser inscrito no discurso lacaniano” ao permitir-lhe “retomar o fio” que o leva à “aventura freudiana” a partir da “trincheira aberta” por sua tese de doutorado dedicada à psicose paranoica.

Publicado em 1903, sustento também que Memórias de um doente dos nervos pode ser lido como uma espécie de vanguarda para sua época e muito mais próximo de nossos dias. Afinal, entre tantas revelações realmente impressionantes, encontramos nele o relato de como um homem alemão e tradicional, Presidente da Corte de Apelação de Dresden, que se concebia como tendo “uma natureza tranquila, quase sóbria, sem paixão, com pensamento claro e cujo talento individual se orientava mais para a crítica intelectual fria do que para a atividade criadora de uma imaginação solta” (SCHREBER 1903/1980, p. 82), foi a princípio surpreendido pela ideia de como “deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito”  e, algum tempo depois, não sem resistir, a princípio, à exigência de ser transformado em mulher, acabou por consagrar seu corpo a essa emasculação para, numa copulação com Deus, poder gerar uma nova raça humana e encontrar alguma solução para os males terríveis que o atormentavam (SCHREBER, 1903/1980, p. 60, 72-78 e 175-177).

Schreber (1903/1980, p. 60) sustentava que sua aspiração inicial de ser uma mulher em uma relação sexual seria, em “plena consciência”, rejeitada com “indignação” por ele, mas acabou por considerar que ela lhe havia “sido inspirada por influências externas que estavam em jogo”. Ao abordar o quanto a emasculação de seu corpo o deixava entregue a violentos assédios sexuais promovidos por Flechsig, chega mesmo a destacar que esse seu primeiro e mais renomado psiquiatra não aparecia aí como um homem, mas em sua “qualidade de alma” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Ainda assim, não deixa de afirmar o seguinte: “pode-se imaginar o quanto toda a minha honra, o meu amor-próprio viril, bem como toda a minha personalidade moral se rebelava contra esse plano vergonhoso, quando tive certeza de ter tomado conhecimento dele” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Porém, também relata que, nessa mesma ocasião, foi “tomado por representações sagradas sobre Deus e a Ordem do Mundo, e excitado pelas primeiras revelações sobre as coisas divinas que tinha tido através da relação com outras almas” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Portanto, é a nessa excitação ou, para utilizar um termo lacaniano, é a nesse gozo que Schreber se apoia para ceder sua “honra”, seu “amor-próprio viril” e sua “personalidade moral”. E, assim, o modo como se consagra, mesmo que não sem resistência, a esse fora que lhe afeta o corpo, feminizando-o, me parece ser um marco importante de sua contemporaneidade, na medida em que vivemos hoje em um mundo onde as diferenças de gênero são em geral abordadas como meros efeitos de uma dominação histórico-social e os corpos são cada vez mais convocados a viver o que há de fluido e múltiplo em seus modos de satisfação.

Um último aspecto da contemporaneidade de Schreber, relacionado a um modo como opera com o imaginário, me surpreendeu, embora, conforme veremos, não deixe de estar associado às suas experiências com a emasculação. Assim, vou explicitar um pouco mais, primeiro, o que me permitiu, de início, declarar Schreber ainda como contemporâneo a nós e, em seguida, abordar sua experiência com o que Lacan (1958/1966, p. 571, schéma I) chamou de “gozo transexualista”. Por fim, procurarei mostrar como ele faz uso da imagem para operar com o real do gozo que lhe toma o corpo, evocando, a meu ver, o que Miller (2006-2007/2013) destacou como o imaginário no último ensino de Lacan.

Fratura, desordenamento e reconstrução

Ao concluir um Congresso da AMP intitulado A ordem simbólica no século XXI e anunciar o seguinte, Um real para o século XXI, Miller (2014, p. 22) afirma que vivemos um “desarranjo da ordem simbólica” e a “pedra angular” dessa ordem, ou seja, “o Nome-do-Pai, se trincou”, na medida em que o capitalismo e a ciência colocam radicalmente em questão as referências paternas até então vigentes. Também nos lembra que o próprio Lacan, ao longo de seu ensino, “depreciou essa função-chave” relacionada ao pai, passando a considerá-la “nada mais do que um sinthoma, isto é, a suplência de um furo” (MILLER, 2014, p. 22). Por sua vez, esse furo que o Nome-do-Pai não colmata, afeta toda espécie humana, “é a inexistência da relação sexual” porque, para os “seres vivos que falam”, há uma “carência de saber concernente à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22) e a qualquer proporcionalidade entre os corpos sexuados. A foraclusão, portanto, não é mais apenas um mecanismo específico das psicoses e que atinge, no simbólico, o Nome-do-Pai: quanto à inexistência de uma proporcionalidade entre os sexos, a essa carência de um saber capaz de regular a sexualidade humana como acontece com a dos outros seres vivos não falantes, a esse “rebaixamento do Nome-do-Pai”, a foraclusão se generaliza e experimentamos, por conseguinte, uma “extensão da categoria de loucura a todos os seres falantes” (MILLER, 2014, p. 22).

Esse abalo das referências paternas, bem como a exposição, também cada vez mais atual, desse furo relativo aos corpos humanos sexuados, fazem Miller (2014, p. 23) declarar que há “uma grande desordem no real”. Essa declaração me parece mostrar, no âmbito do que nos tem acontecido, esta “ideia-limite” (MILLER, 2014, p. 28) encontrada no último ensino de Lacan (1975-76/2007, p. 133): “o real é sem lei” . Esse desordenamento no real e esse destaque à trinca (ou à fratura) que atinge o Nome-do-Pai como significante fundamental são, como insistirei a seguir, indícios importantes do que apresento como a atualidade de Schreber.

Em seu livro, a Ordem do Mundo é definida como “uma ‘construção prodigiosa’, diante de cuja sublimidade recuam todas as representações construídas pelos homens e povos, no curso da história, sobre suas relações com Deus” (SCHREBER, 1903/1984, p. 47). Em outros termos, a sublimidade da Ordem do Mundo se eleva frente às representações divino-paternais formuladas historicamente. Mais adiante, a função da Ordem do Mundo é articulada à conservação do que é vivo, na medida em que Schreber (1903/1984, p. 81, nota 35) a concebe como a “relação legítima”, ou seja, fundada em uma lei, e “que subsiste entre Deus e a criação” convocada “à vida, dada como algo em si, através da essência e das qualidades de Deus”.

Mesmo com o que tem de sublime, vital e prodigioso, a Ordem do Mundo foi alvo de um ataque: “ocorreu […] uma fratura, estreitamente ligada” a seu “destino pessoal” (SCHREBER, 1903/1984, p. 48), e Lacan (1958/1966, p. 558) se vale dessa fratura para localizar “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. Logo, fraturada a Ordem do Mundo, nada mais fica como antes da vida do sujeito, tudo se desregula e ele sucumbe ao peso da mortificação real de seu corpo. Nesse contexto, é importante lembrar que Schreber (1903/1984, p. 49 e 227) atribuiu essa “fratura” a um “assassinato de alma” e – como “as almas eram feitas, segundo sua condição de existência, em conformidade com a Ordem do Mundo, apenas para gozar” enquanto “o homem ou outras criaturas da Terra” se dedicavam a “uma ação na vida prática” – tal assassinato faz como que uma desertificação do gozo atinja severamente todo o mundo. Evocando, então, Lacan (1960/1966, p. 819) e sua célebre citação de um poema de Valéry (1921/1984, p. 28-29), o mundo de Schreber se torna sem vida e vão, frente a essa falha que incide sobre o gozo e compromete gravemente também toda ação humana.

Especificamente para Schreber, tal comprometimento é o próprio adoecimento que, durante quase uma década, o afasta da regularidade de um convívio familiar e social, além de impedi-lo de gozar do posto vitalício, pautado em uma nomeação irreversível, definida por ordem do rei e que o consagrava como Juiz-Presidente da Corte de Apelação da cidade de Dresden. Mas essa fratura tem efeitos devastadores também sobre a própria Ordem do Mundo porque, como nos mostra a leitura que Freud (1912/2021, p. 558) faz do livro de Schreber, devido a tal lacuna, “a existência do próprio Deus parece ameaçada”, uma vez que os nervos dos seres humanos vivos […], no estado de uma excitação extrema” passam a exercer “uma atração tal sobre os nervos divinos que Deus não consegue mais se livrar deles”.

Minha questão, em termos lacanianos, é se não poderíamos ler essa fratura da Ordem do Mundo também como a própria constatação – tão contemporânea – de uma inexistência do Outro que, no entanto, não apaga a presença do Outro como corpo em nossas vidas. Nesse mesmo contexto, também indago se não haveria – nessa excitação extrema dos vivos demarcada por Schreber – uma antecipação do que hoje vivemos como uma imperiosa exigência de satisfação. Assim, a fratura da Ordem do Mundo experimentada por Schreber se realiza, em nossos dias, para todos, o que não deixa de ressoar a formulação lacaniana que Miller (2022) nos convidou a tomar como o título do próximo Congresso da AMP, em 2024: “todo mundo é louco”.

assassinato de alma – marca dessa fratura que incidiu sobre a Ordem do Mundo e desestabilizou Schreber, como ser humano, em sua ação na vida prática – envolvia “circunstâncias” que “não estão claras” para ele, relacionadas à sua vida privada e que precisaram ser excluídas do livro para garantir-lhe a publicação (FREUD, 1912/2021, p. 582). Logo, segundo Freud, esse “assassinato” poderia ter sido elucidado por fatos que estariam, por exemplo, no Capítulo III de Memórias de um doente dos nervos e que foi suprimido para que esse livro fosse publicado. Freud (1912/2021, p 583), seguindo as pistas literárias deixadas pelo próprio Schreber, particularmente aquelas do poema “Manfredo” de Byron, acaba encontrando a menção a um incesto, mas verifica que, nesse ponto, “se rompe […] o curto fio”. Logo após se deparar com tal ruptura e verificando o quanto uma suposta ligação com um incesto não se sustenta, passa a se referir à expressiva quantidade de poluções que Schreber tem no curto período quando as visitas diárias da esposa no hospital deixam de acontecer e, então, retoma a “suposição” de que “o adoecimento” teria a ver com “uma irrupção de uma moção homossexual” da qual o laço com a esposa e, também, a própria paranoia seriam uma espécie de defesa: o desejo homossexual perturbaria consideravelmente um homem como Schreber (sobretudo em sua época) e, então, a paranoia eclodiria como uma tentativa de afastá-lo dessa perturbação, embora também o abalou consideravelmente.

Freud (1912/2021, p. 584) não deixa de ressaltar que falta “um conhecimento mais preciso” da “história de vida” de Schreber para que se pudesse explicar as razões de a “irrupção da libido homossexual” ter se dado após sua nomeação como Presidente da Corte de Apelação. Ao não encontrar os dados que confeririam mais precisão ao que determinaria o “assassinato de alma” e sem conseguir qualquer acesso à presença de algum desejo homossexual recusado por Schreber antes do desencadeamento da psicose, Freud (1912/2021, p. 583) se vale do lugar que o psiquiatra Flechsig, ou seja, um homem, passou a ocupar no delírio de perseguição desse “doente dos nervos”, assim como da andropausa que, de algum modo, já poderia afetar-lhe o corpo e a disposição sexual, além dos fracassos vividos, juntamente com a esposa, com relação à geração de filhos. A figura de Flechsig, em que Freud (1912/2021, p. 589-590) chega também a localizar uma “transferência” do “anseio” vivido com relação ao pai e ao irmão com uma “intensificação erótica”, torna-se decisiva para a formulação da hipótese relativa à moção homossexual da qual a paranoia seria uma defesa:

o motivo do adoecimento foi o surgimento de uma fantasia feminina do desejo (homossexual passiva), que tomara por objeto a pessoa do médico. Contra essa mesma fantasia, ergueu-se parte da personalidade de Schreber, uma intensa resistência, e a luta defensiva, que talvez tivesse podido igualmente consumar-se em outras formas, escolheu, por motivos que desconhecemos, a forma do delírio de perseguição. Aquele por quem o doente antes ansiava agora se tornava o perseguidor, e o conteúdo da fantasia de desejo, o conteúdo da perseguição. (FREUD, 1912/2021, p. 586)

Por sua vez, Lacan (1958/1966, p. 558) também associa o assassinato de alma a “um dano” que Schreber consegue “desvelar apenas em parte”. Porém, o que foi retirado para viabilizar a publicação do Memórias de um doente dos nervos  (cujo Capítulo III serve como referência-vazia por se encontrar literalmente suprimido) passa a ser lido como a instalação, no livro mesmo, do que foi assassinado, ou seja, da anulação, em uma psicose, do que Lacan (1969/2001, p. 373, grifos nossos) chama de transmissão […] de uma constituição subjetiva, ou seja, a presença mesma da foraclusão se demarca no corpo textual de um livro e, por isso, Lacan (1958/1966, p. 559) se empenha para mostrar, “na forma mais desenvolvida do delírio com a qual o livro se confunde […] uma estrutura que se verificará similar ao processo mesmo da psicose”. Assim, no que Schreber escreveu como suas Memórias, encontramos o furo da foraclusão do Nome-do-Pai, a presença do que é imemorável e não dá lugar a qualquer história de uma transmissão na qual um sujeito é tramado.

Nesse contexto, vale ainda citar o valor que Lacan (1958/1966, p. 535) confere à “cadeia quebrada” como marca da “irrupção no real” do “símbolo”. Afinal, se tradicionalmente o símbolo é junção de duas partes separadas, essa separação, essa ruptura, também o constitui, embora seja mais dissimulada pelas estruturas clínicas diferentes das psicoses, ou seja, pelas neuroses e perversões. É essa presença ineludível da quebra de um encadeamento, de uma transmissão subjetiva, de uma história, é essa separação característica do símbolo que, no entanto, se tenta dissimular e que, ao contrário, nas alucinações auditivas testemunhadas por psicóticos, implica que, “no lugar onde o objeto indizível é rejeitado no real, uma palavra (mot) se faz escutar […] vindo no lugar do que não tem nome” (LACAN, 1958/1966, p. 535, grifos nossos). Portanto, esse livro de Memórias do imemorável, de registro do que ficou foracluído de toda inscrição, é essa palavra que, mesmo sem lugar até então em sua vida subjetiva, Schreber quis fazer ecoar. Não foi sem razão que, com a expectativa de a ciência futuramente se beneficiar de suas descobertas e como o projeto de retornar à sua “vida prática” de Presidente da Corte de Apelação, Schreber fez todos os esforços para publicar esse livro que, sobretudo em sua época, não deixava de soar insólito e desconcertante para tais objetivos. Por conseguinte, é interessante considerarmos que conseguiu fazê-lo ser aceito pela editora Oswald Mutze de Leipzig (SANTNER, 1997, p. 18) que, diferente dos objetivos científico-profissionais que o mobilizavam, mas não sem dar-lhe a possibilidade de registro da palavra que não encontrava lugar em sua vida, publicava apenas livros ocultistas e teosóficos.

Lacan (1958/1966, p. 564), a partir de sua leitura do livro de Schreber, ressalta que “é em torno desse furo onde o suporte da cadeia significante falta ao sujeito”, onde a cadeia se quebra ou, ainda, em termos schreberianos, onde a Ordem do Mundo foi fraturada, “que é travada toda a luta onde o sujeito se reconstrói”. Nesse contexto, diferente dos pós-freudianos que insistiram na hipótese freudiana de que, com a paranoia, Schreber se defendia contra a homossexualidade, Lacan (1958/1966, p. 567) prefere indicar que tal hipótese só foi sustentada por Freud porque este, ao redigir e publicar seu estudo sobre tal caso, respectivamente em 1911 e 1912, ainda não havia escrito “Introdução ao narcisismo” (1914). Cotejando, então, o estudo sobre Schreber e as descobertas de Freud a propósito do lugar do narcisismo na economia libidinal e no adoecimento subjetivo (inclusive por suas incidências mortíferas), Lacan (1958/1966, p. 567) considera que, se “a ideia da Entmannung”, ou seja, da emasculação, da feminização do próprio corpo, deixa de suscitar, com o tempo, a indignação de Schreber, é porque ele acaba por experimentá-la como uma inversão da experiência de que como “sujeito estava morto”.

Evocando, então, de início, a célebre e terrível concepção schreberiana de si como um “o primeiro cadáver leproso” conduzindo “um cadáver leproso” (SCHREBER, 1903/1984, p. 106), Lacan (1958/1966, p. 568) a toma como uma “regressão do sujeito”, “tópica”, “ao estádio do espelho, na medida em que a relação com o outro especular se reduz aí a seu gume mortal”. Mas Lacan (1958/1966, p. 568-569) também nos mostra que, a essa morte do sujeito, responde “uma prática transexualista”, na qual Schreber se feminiza e acaba se entregando à “copulação divina”, que lhe servirá de restauração da “estrutura imaginária” mais além daquela regressão tópica que lhe assolou mortiferamente o corpo. Logo, não sem sofrimentos consideráveis, a emasculação serve a Schreber para ir além da própria cadaverização, para tentar ter outro corpo e, desse modo, podemos dizer, como mulher, um Outro diferente daquele que o persegue, assim como outra relação com a vida. Nessa direção em que o corpo, uma vez emasculado, possa fazer-lhe as vezes de Outro, Schreber mostra-nos também o quanto é mesmo contemporâneo ao arco-íris formado pelas cores LGBTQI+.

Imaginário

Muito ainda poderia ser apresentado e esclarecido sobre como a emasculação perturba, toma o corpo de Schreber e ganha um lugar nesse “problema de solução elegante” (LACAN, 1958/1966, p. 572) no qual as psicoses encontram-se envolvidas. Certamente, em outra ocasião, poderei me dedicar a essa explicitação. Neste texto, interessa-me agora muito mais focalizar um modo específico de Schreber se posicionar e conceber sua emasculação. Nesse modo, considero que encontramos um uso do imaginário que não se restringe àquele de uma reconstrução do que lhe foi solapado por sua morte como sujeito. Trata-se de um uso que me parece já apontar para a nova concepção do imaginário no último ensino de Lacan, elucidada por Miller (2006-2007/2012, p. 147-276).

Ainda no período em que a emasculação era experimentada apenas como uma injúria ou, mais especificamente, quando os “raios divinos” a aludiam como “supostamente iminente”, eles “acreditavam poder zombar” de Schreber dizendo-lhe: “‘Miss Schreber’” e, nesse contexto, é importante considerar o esclarecimento de Marilene Carone, tradutora brasileira, situado em uma nota de pé-de-página, de que, na Alemanha, o termo inglês Miss tinha então um sentido pejorativo, indicando uma mulher solteira cuja reputação era duvidosa (SCHREBER, 1903/1984, p. 136). Nessa mesma ocasião, outras expressões, segundo Schreber (1903/1984, p. 136), lhe eram “frequentemente usadas e repetidas até a exaustão”, tais como: “‘Você deve ser representado como alguém entregue à devassidão voluptuosa’, etc., etc.”. A palavra representado é destacada pelo próprio Schreber (1903/1984, p. 136), que também lhe agrega, em uma nota de pé-de-página, um esclarecimento que julgo decisivo:

O conceito de “representar”, isto é, dar a uma coisa ou pessoa outra aparência, diferente da que ela tem por sua natureza real (expressando em termos humanos [ou seja, acrescento, fora da língua dos nervos e das almas]: “falsificar”) desempenhou e ainda hoje desempenha um papel muito importante no universo conceitual das almas […] Talvez tenha-se chegado à convicção de que, uma vez que se conseguisse criar de um homem uma impressão diferente da que corresponde às suas características reais, também poderia ser possível tratar o homem em questão de acordo com esta impressão. Tudo isso se reduz, pois, a um autoengano, completamente sem valor do ponto de vista prático, uma vez que o homem, naturalmente, no seu comportamento de fato, e particularmente na linguagem (humana), sempre dispõe de meios de fazer valer suas características reais contra a “representação” intencionada.

Verificamos que a emasculação imposta a seu corpo, mesmo implicando-lhe transformações e experiências de gozo reais, não deixa de lhe ser, também, o que a língua dos nervos concebe como “representação” e, os humanos, “falsificação”.  Ela se compõe, portanto, como um “autoengano” o faz colocar-se “contra a ‘representação’ intencionada”. Nessa via contrária, nessa leitura do que pode existir de falso no que experimenta realmente como imposto, considero que Schreber se confere algum uso do benefício da dúvida e, assim, utiliza um recurso decisivo, a meu ver, para o tratamento das psicoses.

Essa possibilidade de ir contra, não sucumbir e, sobretudo, encontrar outro destino para o que lhe imposto parece-me se consolidar ainda mais com o que, segundo a concepção das almas, é o “desenhar”: trata-se do “‘uso consciente da imaginação, com o objetivo de produzir imagens (predominantemente imagens mnemônicas) que depois são vistas pelos raios’” (SCHREBER, 1903/1984, p. 222). Assim, frente ao “martírio espiritual” que lhe “era proporcionado pelo falatório idiota das vozes”, ele se permite desenhar, tornar “visível” em sua “cabeça ou também fora dela”, de forma que essas vozes passam a ter “a impressão” de que os “objetos e fenômenos” assim desenhados “realmente existiram” e, como essa imposição vinda das vozes e os nervos são experimentados como milagres, ele chega a chamar o procedimento do desenho de “milagre às avessas” (SCHREBER, 1903/1984, p. 223). Importante esclarecer que não se trata do desenho como o que se registra ou se esboça, com finalidade artística ou não, mas de uma espécie de projeção ou duplicação, em imagens, do que se está fazendo ou se pode fazer. Nos termos mesmos de Schreber (1903/1984, p. 223):

Posso me “desenhar” em outro lugar, diferente daquele no qual eu de fato estou; por exemplo, enquanto me sento ao piano, estar ao mesmo tempo no quarto ao lado em frente ao espelho, com roupas femininas […], criar para mim mesmo e para os raios, quando estou deitado na cama à noite, a impressão de que meu corpo é dotado de seios e de órgãos sexuais femininos. Desenhar um traseiro no meu corpo […] tornou-se para mim um hábito de tal forma que eu o faço quase involuntariamente toda vez que me inclino.

Para uma elucidação de como esse uso do imaginário chega a permitir-lhe não sucumbir ao que lhe é imposto, vale citar o modo com que por vezes lidava com os “pássaros miraculados” cujas vozes, em outras circunstâncias, exigiam-lhe trabalhar até a exaustão para respondê-las e decifrá-las: “fazendo troça” com tais aves, ele fazia com que aparecessem em sua cabeça a “própria imagem” desses pássaros “sendo devorados por um gato” (SCHREBER, 1903/1984, p. 224). Com isso, parece-me que ele acede a outro gozo, bem diferente daquele que lhe era imposto e o devastava “a satisfação produzida por esta atividade é realmente grande”, sobretudo ao conseguir “obter do modo mais fácil possível as imagens desejadas”, de forma que a “visão de imagens atua […] de um modo purificador sobre os raios, e eles”, assim, o “penetram […] sem a violência destrutiva que lhes é peculiar” (SCHREBER, 1903/1984, p. 225).

Segundo Miller (2006-2007/2012, p. 258), no ultimíssimo ensino de Lacan, uma análise implica “ultrapassar a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse ultrapassamento, o corpo tem uma função decisiva: “no silêncio do real, e enquanto sempre se tem que desconfiar do simbólico que mente, só resta o recurso ao imaginário, isto é, ao corpo” (MILLER, 2006-2007/2012, p. 259). Vimos que a emasculação de Schreber toma seu corpo como uma saída frente ao furo da foraclusão do Nome-do-Pai no simbólico, mas, ainda assim, ele sucumbe a tal furo. Ela também lhe confere alguma voz para responder ao silêncio do real do gozo que lhe toma o corpo, esse silêncio que, no entanto, parece ser almejado na medida em que Schreber insiste na exaustação que lhe provoca o falatório das vozes e, nesse contexto, seu livro destemido e perturbador me parece ser um modo de ele se fazer escutar nessa que seria a sua voz. Logo, a emasculação, nesse caso, não deixa de ser, às avessas, uma consagração, mesmo que delirante, aos referenciais paternos. Não é sem razão que, evocando esse recurso paterno que é o falo, Lacan (1958/1966, p. 566) nos brindou com uma interpretação que se aplica à emasculação schreberiana: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens”. Ora, a invenção do desenhar nos aponta para outra via e, mesmo que não tenha sido tão trilhada quanto aquela da emasculação, implica o corpo e me parece oferecer a Schreber uma oportunidade muito mais satisfatória para “superar”, como formula Miller (2006-2007, p. 259) “a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse contexto, se a consagração delirante ao pai na emasculação ganha mais corpo que o desenhar, é porque, possivelmente, Schreber habitava um mundo ainda muito centrado nas insígnias paternas e, assim, o recurso ao desenho, no modo como ele o inventa e pratica, soa mais contemporâneo ao nosso mundo desabitado do que é paternalmente ordenado.


 

Referências
FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1912).
LACAN, L. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 531-583. (Trabalho original publicado em 1958).
LACAN, J. Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 793-827. (Trabalho original proferido em 1960).
LACAN, J. Présentation des “Mémoires d’un névropathe”. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 213-217. (Trabalho original publicado em 1966).
LACAN, J. Note sur l’enfant. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 373-374. (Trabalho original escrito em 1969).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. (Trabalho original proferido em 2006-2007).
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (org). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
MILLER, J.-A. Tout le monde est fou – AMP 2024. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 112, p. 48-57, nov. 2022.
SANTNER, E. L. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984. (Trabalho original publicado em 1903).
VALÉRY, P. Esboço de uma serpente. In: CAMPOS, A. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 26-57. (Poema original publicado em 1921).
[1] Aula inaugural do Curso de Psicanálise do IPSM-MG proferida em 6 de março de 2023.