BARTLEBY, O REAL[1]
GUSTAVO DESSAL
Psicanalista, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise. ELP/AMP
Resumo
O autor se apoia no conto “Bartleby, o escrivão”, de H. Melville, para desenvolver a noção de estranho a partir da singularidade do personagem principal e indica como a presença dessa opacidade real participa de toda a existência e da própria humanidade. Sua análise é dividida em três tempos e perspectivas — ironia, dimensão ética e tragédia — e destaca a posição subjetiva de Bartleby frente ao laço social. Bartleby representa esse real excluído da dimensão simbólica, que não cessa de se escrever, não sem consequências, e, ironicamente, expõe a inutilidade essencial da existência e sua condição de semelhança que afeta a todos.Palavras-chave: real, estranho, existência, laço social.
Bartleby, the real
Abstract: The author relies on the tale Bartleby, the scrivener of H. Melville, to develop the notion of stranger based on the singularity of the main character and indicates how the presence of this real opacity participates in all existence and in humanity itself. His analysis is divided into three times and perspectives — irony, ethical dimension and tragedy — highlighting Bartleby’s subjective position in relation to the social bond. Bartleby represents this real excluded from the symbolic dimension, which never ceases to be written, not without consequences, and ironically exposes the essential uselessness of existence and its condition of similarity that affects everyone
Keywords: real, strange, existence, social bond.
Ele preferiria não… e sua resposta enigmática e famosa às solicitações do advogado que o emprega estava sujeita a todo furor interpretativo. Mas quem é verdadeiramente Bartleby, o escrivão que assombra o novo epônimo de Melville? E ele simplesmente não seria nosso semelhante, nosso inquietante irmão de melancolia?
No estilo lacônico e límpido que lhe é próprio, Jorge Luís Borges finaliza o prefácio de sua tradução de “Bartleby, o escrivão” com uma frase que revela o segredo do texto: “’Bartleby’ é mais do que um artifício ou um ócio da imaginação onírica; é, fundamentalmente, um livro triste e verdadeiro que nos mostra essa inutilidade essencial, que é uma das ironias cotidianas do universo” (BORGES, 2009, s/p.).
Inutilidade: aqui está a palavra-chave, um dos nomes próprios da existência. Borges sublinha que ela é essencial para que não percamos de vista que a inutilidade não é contingente, senão necessária, no sentido aristotélico do termo: não pode não ser. Não se trata mais, para Borges, de fazer desse romance a ilustração da loucura ou do capricho de um indivíduo perturbado; ele se encarrega de apresentar a inutilidade como uma ironia cotidiana — bem longe de uma excentricidade estranha à nossa experiência cotidiana, ela é consubstancial à própria vida. Preferiríamos não ter de admitir, preferiríamos acreditar que Bartleby é um espécime particular, uma exceção às leis razoáveis do universo, mas Borges insiste: o universo não é razoável, mas irônico.
A magnitude dessa obra na literatura é inversamente proporcional ao seu tamanho. A natureza caleidoscópica da história suscitou milhares de comentários e de interpretações para cada uma de suas páginas. Qualquer conceito filosófico pode encontrar um lugar latente ou manifesto em um canto do texto. Como o próprio Melville o subentende na conclusão de seu livro, a própria humanidade é a protagonista dessa história. Ter conseguido lhe dar lugar em tão poucas páginas é, sem nenhuma dúvida, um feito literário insuperável.
Ironia
Desde as primeiras frases, a ironia está lá. “Sou um homem que desde a juventude sempre teve a mais firme convicção de que a forma de vida mais fácil é a melhor” (MELVILLE, 2007, p. 14). Sobre essa “firme convicção”, Melville — para sublinhar a estranha convivência que um sujeito pode manter com suas contradições mais absurdas — nota que ser um advogado de Wall Street não era a melhor maneira de alcançá-la.
A singularidade de Turkey e Nippers, apelidos dos dois outros empregados copistas do escritório, pode se misturar na ordem geral. Extravagantes, cada um à sua maneira, mutáveis e um pouco loucos, eles encarnam uma excentricidade admissível e permitida a todos. Não comprometendo o bom-senso, nem mesmo abandonando por um instante os limites do previsível, sua originalidade acaba por despertar a simpatia. Algumas qualidades de observação bastam ao narrador e, por consequência, ao leitor, para se familiarizar com esses personagens. “Em suma, a verdade é que Nippers não sabia o que queria” (MELVILLE, 2007, p.20-21), conclui seu chefe, em uma síntese fechada ao que é próprio do sujeito ordinário: não saber o que ele quer. Herdeiros do coro grego, representantes da doxa, da opinião fundada sobre o significante comum das coisas, Turkey e Nippers, bem como Ginger Nut, se encontram convocados duas vezes pelo narrador, que se refere a eles enquanto testemunhas e fiadores da opinião justa no momento em que ele teme que sua ação e sua consciência se enfrentem em um combate embaraçoso. Pois, o narrador quer compreender, pelo recurso à sensatez, a opacidade que surgiu no centro de sua realidade com Bartleby. Para ele, a compreensão não é um simples reflexo da razão, mas a extensão do bem e da consciência moral. Ele se questiona sobre o bem: até que ponto podemos exercê-lo sem pretender querer nada em troca? O altruísmo é um ingrediente da natureza do bem? E como podemos ter certeza que seu exercício é realizado em benefício de nosso próximo?
Num dia de inverno, presenteei Turkey com um antigo casaco muito respeitável de minha propriedade, cinza, forrado e quente, com botões do joelho ao pescoço[…]. Achei que Turkey gostaria desse presente […]. Mas não. Creio que o fato de abotoar aquele casaco quente e confortável de cima a baixo teve um efeito pernicioso sobre ele […]. Era um homem a quem a prosperidade fazia mal” (MELVILLE, 2007, p. 22).
Essa observação ressoa com a profunda objeção levantada por Freud, contra o mandamento de amar seu próximo como a si mesmo. Quem é nosso próximo, senão o núcleo de nós mesmos, de quem não ousamos nos aproximar? Como São Martinho, esse advogado que, querendo partilhar seu manto com seu próximo, verifica imediatamente os efeitos paradoxais de seu ato.
Dimensão ética
“Bartleby” é, sem dúvida alguma, uma reflexão sobre a dimensão ética da vida. Borges, como outros autores e críticos, viu na história de Melville uma prefiguração das intuições de Kafka, o grande profeta do absurdo, o radiologista do insensato primordial da existência. Melville antecipa Kafka com a apresentação devastadora da modernidade como cataclismo do ser.
Quem é Bartleby? O que é Bartleby? Para analisá-lo, convém introduzir o artifício de uma divisão entre o ponto de vista do narrador e a perspectiva da estranha criatura que, um belo dia, penetra no pequeno mundo do escritório de advocacia. Bartleby não tem origem nem destino, não possui história e não emite as mínimas afirmações. Ele não tem modelos, raízes nem lugar. Ele se situa na existência como um ser em si. Sua solidão nua, sua absoluta nudez subjetiva, porta o reflexo dessa incurável angústia que marca a condição humana. Sua tragédia, aquela que o gênio de Melville conduzirá até a metáfora do “Departamento de Cartas Devolvidas” (MELVILLE, 2017, p. 77)[2], é aquela de se saber condenado antecipadamente ao silêncio do Outro, à não resposta, à fatalidade do vazio no qual se precipita todo pedido de ajuda, à carta que nunca chega ao seu destino. E se a cadeia da demanda é, para esse homem, quebrada desde o princípio, como ele poderia consentir ao apelo do Outro? De onde a célebre fórmula incurável — “Eu preferiria não” —, figura de uma repetição que, longe de se erigir como uma vontade de rebelião, desnuda a confissão de uma derrota originária. Bartleby não desafia nada nem ninguém. Sua obstinação, seu negativismo, não são a afirmação de qualquer desafio; o uso da condicional é deliberadamente posto lá para enfatizar a fragilidade de sua enunciação. Não se trata de uma preferência, nem de uma escolha, nem de uma forma de oposição. Sua fórmula é aquela de alguém que, desconectado de todo laço humano, resiste, ainda, à queda final, agarrando-se à vida como um inseto em um galho. É escrevendo que ele resiste. Uma escrita, incessante e mecânica, que copia sem reclamação. Dedica-se a essa escrita de maneira absoluta, recusando a parte coletiva de sua tarefa, recusando-se a ingressar na comunidade dos homens, pois isso implicaria uma dialética, uma negociação para a qual ele não foi feito. Bartleby só pode se sustentar com essa escrita mecânica de escrivão, paradigma de uma solidão morta, como aquelas cartas rejeitadas que ninguém receberá jamais. Ele não é escritor, mas copista. Não há pensamento, fantasia ou ação criadora nele. Interrompê-lo na inércia mecânica de sua tarefa é empurrá-lo em direção ao precipício, ao nada abissal. Por consequência, sua única possibilidade é resistir:
Ora, num domingo de manhã, fui à igreja de Trinity, para escutar um pregador famoso, e, encontrando-me na rua um pouco antes da hora, pensei em ir até meu escritório. Por sorte, tinha minha chave comigo; mas, ao colocá-la na fechadura, encontrei resistência do outro lado” (MELVILLE, 2007, p. 39-40).
A fechadura, o real que resiste, é, obviamente, a metonímia do impenetrável Bartleby.
Tragédia
É precisamente nesse ponto crucial que a narrativa opera uma reviravolta da perplexidade inicial para a tragédia do desfecho. Podemos, então, nos colocar no lugar do narrador, que, de prontidão, experimenta o surgimento dessa presença vinda para perturbar sua aspiração ao princípio do prazer, sua inclinação para seguir o que lhe serve de máxima — “a melhor maneira de viver é a de preocupar-se tão pouco quanto possível” (MELVILLE, 2007, p. 14). O estilo de Melville não é a forma fantástica de Maupassant, que, com seu Horla, testemunha o surgimento no mundo familiar de algo que se apresenta como uma estranheza radical. Em Bartleby, nada de mágico. A presença de outra coisa veio virar do avesso a realidade, mas é uma presença permanente, que não se move, não se ausenta, nunca abandona seu lugar. Bartleby, o real, se encontra eternamente em si, como o exprime o narrador em seu monólogo interior: “ele estava sempre ali” (MELVILLE, 2007, p. 38).
“Para um ser sensível, a piedade é quase sempre uma dor. Quando afinal percebe que tal piedade não significa um socorro eficaz, o bom senso compele a alma a desvencilhar-se dela” (MELVILLE, 2007, p. 45). O que é surpreendente não é apenas a fórmula de Bartleby, mas o fato de que sua presença irrevogável produz uma espécie de campo magnético, um espaço intransitável, um limite sagrado que o advogado não ousa ultrapassar. Ao narrador não falta lógica nem a piedosa compaixão da qual certas almas são capazes diante da miséria humana. No entanto, não são seus argumentos, nem sua sede de compreensão, nem seu senso de misericórdia que o detêm e o incapacitam de cruzar o limite que cerca essa outra coisa. “Mas havia algo em Bartleby que não apenas me desarmava, como também me comoveu e desconcertou, de maneira assombrosa” (MELVILLE, 2007, p. 30). Como Hamlet, o advogado adia seu ato. Ele adia o problema para outro dia, é novamente a urgência do cotidiano que se impõe e atrasa a decisão de dar o passo. Não obstante, quer ele saiba disso, quer não, sua vida já é governada pela distância dessa coisa que ele deve regular. Às vezes lhe acontece de esquecer sua firme intenção de não a incomodar, de não perturbá-la, de não assediá-la, para lhe permitir existir fora do sentido. Na experiência de subjetivação do mundo, e daqueles que estão à nossa volta, ocorre irremediavelmente uma divisão: uma parte se torna acessível à luz da representação e do pensamento enquanto outra permanece subtraída do nosso reconhecimento, constituindo-se a partir daí em alteridade absoluta, fora da dimensão simbólica, relutante às exigências do princípio do prazer. No cerne do que pensamos entender, permanece um núcleo irredutível à fala, à razão, ao significado, à consciência, ao bem e a tudo o que usamos para expressar a ilusão de que a realidade é transparente a si mesma.
Não obstante, esse corpúsculo íntimo e enigmático também nos pertence, mas não é fácil abordá-lo: “Apesar de ofendido pelo seu comportamento e resolvido a demiti-lo quando chegasse ao meu escritório, sentia uma espécie de agouro invadindo o meu coração, que me impedia de cumprir o meu propósito” (MELVILLE, 2007, p. 47).
Por que o narrador protege Bartleby? Por que ele o defende, mesmo contra o ataque de seus outros funcionários, que não hesitariam em lhe dar um tapa e expulsá-lo a pontapés? O advogado não é simplesmente um homem que preferiria evitar as complicações práticas e morais de uma demissão. Sua prudência incompreensível obedeceu ao fato de que ele sentia que a existência de Bartleby não lhe era completamente estranha. Faltou a ele apenas descobrir que essa criatura vivia dentro do seu escritório. É a partir desse momento que a história assume uma potência inesperada. Até então, estávamos quase à beira da comédia. Melville precisaria de alguns toques de estilo para converter essa primeira parte em uma peça burlesca. Mas isso tomará outro rumo, pois a descoberta da manhã de domingo é o que nunca deveria ter acontecido para que tudo pudesse continuar no mesmo tom de ligeira excentricidade. Essa distância, essa manutenção de uma barreira proibida que garantiu a estabilidade do casal formado pelo narrador e Bartleby, irá se decompor. O advogado então obedecerá ao primeiro e único pedido que Bartleby lhe dirige, o de fazer alguns passeios pelo bairro e voltar mais tarde.
Ora, a presença absolutamente inesperada de Bartleby, num domingo de manhã, no meu escritório, com sua cadavérica e elegante nonchalance, mas ao mesmo tempo firme e segura, teve um efeito tão estranho sobre mim que de pronto me retirei da minha própria porta, fazendo o que ele queria” (MELVILLE, 2007, p. 40).
A partir desse momento, muita luminosidade foi introduzida na sagrada intimidade de Bartleby. É tarde demais para evitar o desencadeamento de uma extraordinária inversão especular. Não apenas o narrador não será capaz de expulsar Bartleby de seu domínio, mas é ele próprio quem se tornará o expulso — “foi aqui que Bartleby se estabeleceu” (MELVILLE, 2007, p. 42), descobre surpreso nosso narrador. Então,
[…] pela primeira vez na minha vida fui invadido por um sentimento opressivo e angustiante de melancolia. Antes havia apenas tristeza, mas nada tão desagradável. Uma obrigação moral levava-me à depressão. Uma melancolia fraternal! (MELVILLE, 2007, p. 42).
O estranho, o estrangeiro, essa outra coisa insondável e incrível, revelou ser uma parte do meu próprio ser ignorado. É por essa razão que o narrador — o único cujo nome não sabemos —, apesar de sua fuga, nunca se afastará de Bartleby.
O que se segue, a morte de Bartleby, nada mais é do que a consequência lógica do que acontece quando a fatalidade ou o excesso de compreensão profanam os limites do sagrado. Essa é a razão pela qual algo do enigma de Bartleby não cessa de nos acompanhar: porque convém nunca resolver completamente seu mistério e nos contentarmos em aceitar essa ironia do universo.