Apresentação De Pacientes: Dispositivo E Discursos

CRISTIANA MIRANDA RAMOS FERREIRA

 

Na tese Apresentação de pacientes: dispositivo e discursos, investiga-se a prática de eminentes mestres da apresentação: Charcot, Clérambault e Lacan. A partir da análise das diferenças e particularidades de cada perspectiva, a autora encontra elementos para responder à questão que se lhe apresentava como um paradoxo: “Como um dispositivo que é considerado pela psicanálise um importante instrumento de intervenção clínica, capaz de produzir importantes efeitos terapêuticos em um sujeito psicótico, pode ser, ao mesmo tempo, concebido como um instrumento de poder, no qual o paciente é publicamente exposto, sem dele retirar qualquer benefício?”

Sob a influência das concepções teóricas de Foucault, localiza-se a origem de uma posição fortemente contrária à prática da apresentação, considerada por ele como instrumento máximo de abuso do poder médico. Para sustentar esse ponto de vista, Foucault edificou um mito: elegeu Charcot, um neurologista, como a figura mais emblemática da prática psiquiátrica.

Por meio da análise das apresentações de Charcot, pode-se destacar a diferença entre a apresentação de pacientes realizada sob a perspectiva da tradição médica, centrada no corpo, e a desenvolvida conforme a tradição psiquiátrica, com foco na fala do paciente. Essa diferenciação permitiu destacar dois aspectos fundamentais para se construir uma posição crítica sobre o tema: 1. entender as consequências que essa distorção no status quo de Charcot acarretou sobre o imaginário negativo construído em torno da apresentação; 2. discernir que o termo “apresentação de pacientes” designa, de forma genérica, uma multiplicidade de práticas que se distinguem tanto em seu objeto quanto em seu objetivo, o que faz variarem tanto suas estratégias de intervenção, como os seus efeitos e resultados.

Considerar a diversidade de práticas conduziu a uma disjunção entre o que seria o “dispositivo” da apresentação e o “discurso” que o anima. Tomar os quatro discursos como instrumento para essa análise permitiu definir como dispositivo o seu aspecto estruturante, estático, que congrega três elementos distintos: paciente, público e entrevistador; e o discurso, seu aspecto dinâmico, que orienta a articulação entre os três elementos. Investigar a apresentação de pacientes, sob essa perspectiva, permitiu diferenciar o que é efeito do dispositivo propriamente dito, ponto comum em todas as apresentações, e o que é próprio a cada discurso, cujo efeito irá variar em função daquilo que, em cada um deles, opera como verdade.

Dessa forma, a pesquisa sobre a prática da apresentação de pacientes na psiquiatria, desde seu surgimento até a atualidade, possibilitou perceber como esse dispositivo foi sendo animado pelos diferentes discursos ao longo da história, tendo como pano de fundo a variação na articulação entre suas dimensões clínica e de ensino, assim como sua apropriação e uso pela psicanálise. Para proceder a essa análise, a prática da apresentação foi agrupada sob três dimensões diferentes, estabelecidas em função da importância dada à fala do paciente: 1) psiquiatria clássica, cujo caráter investigativo encontrava na fala do paciente o seu principal meio de investigação diagnóstica, assim como de constituição do saber psiquiátrico; 2) psiquiatria que se convencionou chamar de “biologicista”, caracterizada pelo abandono do método clínico de observação, em favor do pragmatismo terapêutico, cujo interesse, focalizado nos efeitos das intervenções no corpo, levou a um crescente desinteresse pela fala do paciente e pela precisão diagnóstica; 3) psicanálise, mais precisamente a abordagem lacaniana, caracterizada pela aposta radical na palavra como via para aceder ao sujeito do inconsciente.

Cada uma dessas perspectivas seria orientada prioritariamente por um dos discursos, o que, consequentemente, incide sobre sua prática de apresentação. Embora, em uma apresentação, o apresentador possa recorrer a mais de um dos discursos, toma-se como prevalente aquele sob a luz do qual os impasses se decidem.

Assim, na psiquiatria clássica, orientada pelo Discurso do Mestre, a apresentação de pacientes alcançou lugar de destaque enquanto dispositivo clínico, considerando tanto seus efeitos terapêuticos, quanto de esclarecimento diagnóstico, assim como uma função de ensino e pesquisa da psiquiatria. Já a psiquiatria biologicista, sustentada no Discurso Universitário, opera a partir de um saber prévio, o qual se aplica ao paciente. Nessa perspectiva, há um empobrecimento da clínica, que vai resultar em um empobrecimento da prática de apresentação, pois o desinteresse pela investigação e pela particularidade do caso implica fazer calar o paciente, uma vez que tudo que é subjetivo é visto como perturbador ao modelo da universalização. Essa é a forma de apresentação que faz jus às críticas de Foucault, na medida em que ela perde seu caráter clínico investigativo, para reduzir-se a um aparelho de exibição de fenômenos e sintomas. Quanto à psicanálise, orientada pelo Discurso do Analista, ao tomar o sujeito no lugar do Outro, possibilita-lhe bordejar, circunscrever o que lhe sucede, de forma a afastar o impossível de suportar a partir de um tratamento pela palavra (LEGUIL, 2004). Consideraram-se, ainda, os movimentos da reforma psiquiátrica, que, orientados pelo Discurso Histérico, condenaram a apresentação de pacientes, classificando-a como um desrespeito aos direitos do cidadão/paciente.

Analisar a apresentação de pacientes sob esse ponto de vista levou a um redimensionamento da questão em torno dessa prática. Afinal, não se trata de discutir se este é um dispositivo clínico ou didático, pois essas duas dimensões podem-se conjugar de diferentes maneiras. O que essa pesquisa permitiu ressaltar é que se trata essencialmente de um dispositivo de transmissão, na medida em que, para além de qualquer intenção, seja ela clínica, seja de ensino, o que o público pode testemunhar é uma operação discursiva que implica um certo fazer do entrevistador com o real colocado em cena pelo psicótico. E, ainda mais, como o dispositivo da apresentação favorece a presentificação do real de gozo, gozo que receberá de cada discurso um tratamento diferente, visto que cada discurso implica precisamente uma forma própria de operar com o real, a apresentação de pacientes, em última instância, revela os recursos e limites de cada discurso para lidar com o real em jogo na loucura.

 


 

Referências
LEGUIL, F. “La experiencia enigmática de la psicosis en las presentaciones clínicas”, L-ment@l – Principios para una formación posible en la presentación de enfermos, Bogotá: Edición, 2004, p. 44-47.

Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Psicanalista, doutora em Estudos Psicanalíticos (UFMG), correspondente da EBP – Seção Minas, professora na Faculdade de Psicologia – FEAD. E-mail: cris.ramos.bhz@gmail.com



A Exceção Que Depõe A Regra

BERNARDO MICHERIF CARNEIRO

 

Atualmente, nas instituições públicas, os analistas têm assumido não só funções clínicas ou técnicas, mas, em escala ascendente, a formulação e implantação de políticas. Se a psicanálise estabelece sua prática pelo modo como aborda o caso excepcional, esse movimento, contudo, leva a um questionamento inevitável: como pensar a exceção na abordagem da lógica de funcionamento de uma instituição? Isso exige não só um empenho na formação clínica, mas uma dedicação aos assuntos institucionais. É a isso que este texto se propõe.

Para investigar esse assunto, Giorgio Agamben é aqui eleito como um autor que reflete sobre as questões políticas da época atual, lançando luz sobre o pensamento de outros autores como Carl Schmitt e Michel Foucault.

Carl Schmitt introduz o que ele entende ser o cerne da ordem política: “A exceção é mais interessante do que o caso normal. O que é normal nada prova, a exceção comprova tudo… quando se quer estudar corretamente o caso geral, somente se precisa observar uma real exceção” (SCHMITT, 1922/2006, p. 15). Agamben faz dessa concepção de Schmitt um princípio que norteia seu pensamento.

Para justificar sua investigação, Agamben parte de uma constatação de Schmitt sobre a ausência de uma teoria do estado de exceção no direito público. Mais do que uma ausência, Agamben aponta para uma recusa do direito em reconhecer uma esfera da ação humana em si extrajurídica, o que confirma a premissa de que, se a lei tem lacunas, o direito não as admite.

Mas, se, por um lado, o vazio jurídico do estado de exceção se mostra impensável pelo direito, por outro lado, esclarecer a relação do direito com o estado de exceção se reveste de uma relevância estratégica decisiva.

Visando a ultrapassar essa barreira, Agamben eleva uma frase de Schmitt à dignidade de matema: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Matema que articula três elementos indissociáveis: soberania, decisão e estado de exceção.

Agamben formula o paradoxo da soberania na mesma linha em que Lacan formaliza o pai primevo de “Totem e tabu”, em sua lógica da sexuação, ou seja: “Eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2002, p. 23).

O soberano é aquele que fixa os limites de uma ordem jurídica e territorial desde que não se inclua nela. Essa topologia introduz, na interseção entre política e direito, no nexo entre localização e ordenamento, uma zona ilocalizável de exceção. O ordenamento do espaço não se dá pela fixação de seus limites e a expulsão da exceção, mas pela captura do fora, da exceção, incluída no ordenamento sem pertencer a ele.

Agamben enfatiza o fato de que o estado de exceção atual não é um legado da tradição absolutista ou dos regimes ditatoriais, mas uma consequência da democracia-revolucionária.

A Revolução Francesa conduziu a um modelo de Estado que vê sua soberania reduzida ao poder do carimbo. O Estado de Direito, anônimo e impessoal, declara-se o guardião da Constituição. O sonho de uma burocracia previsível e formada juridicamente realiza-se: um estado que administra, mas não governa. Miller ratifica: “Na maior parte do tempo, o que se decide num governo? O preço do bilhete do metrô. Administra-se. Não é preciso política para isso” (MILLER, 1997/2005, p. 213).

Tudo que não é legalmente reconhecido é suprimido, como um elemento impuro. Com a eliminação do problema da exceção, a unidade do Estado democrático se sustenta sob o desconhecimento do que o funda como potência política. Diante de uma real exceção, ergue-se o lema: “Aqui termina o Estado de Direito”.

Contudo, Miller extrai desse modelo político sua lição: “Estabeleçam um regime administrativo puro e vocês verão o retorno do Mestre, de um verdadeiro Mestre. É de fato perigoso procurar apagar a soberania pela administração” (MILLER, 1997/2005, p. 211). Quanto mais a ordem jurídica pretende homogeneizar-se, forcluindo a exceção, mais ela propicia que a decisão soberana ressurja de fora, como um elemento autônomo e sem legitimidade.

A partir do momento em que a regra se pretende sem exceção, o tempo não tarda em fazer surgir justamente a exceção, esmagando a ordem vigente entre os dedos. A decisão ressurge sem nenhuma roupagem jurídica, e o soberano se eleva como uma lei viva. Baseado nesse cenário, Agamben confere valor axiomático à frase de Walter Benjamin: “O estado de exceção tornou-se a regra”.

Todavia, tornar o estado de exceção um paradigma de governo marca uma ruptura entre política e direito. O soberano confirma que, por estrutura lógica, não precisa do direito para fundar o direito. Por isso, Agamben se esforça em estabelecer uma nova topologia da exceção no universo jurídico. Em uma época em que o estado de exceção se configura como técnica de governo, trata-se de constatar a inevitabilidade estrutural da exceção.

O estado de exceção, na medida em que suspende a ordem vigente, ergue-se como a figura que preserva o poder do Estado em detrimento do direito, fazendo subsistir uma ordem pública sem validade jurídica. Na atualidade, a ação de Estado é trazida para fora do direito, e os conceitos jurídicos se indeterminam, sendo substituídos por termos como “bom costume”, “iniciativa imperiosa”, “motivo importante”, “segurança e ordem pública”, “estado de perigo”, “caso de necessidade”, os quais não se referem a uma lei, mas a um acontecimento. Na contemporaneidade, a segurança predomina como técnica de governo. Toda medida de Estado se justifica em nome de uma situação de perigo à ordem pública.

É impossível definir, com certeza, quando se está diante de um verdadeiro estado de emergência, mas é justamente essa incerteza que se torna o fundamento para o exercício da soberania estatal. O Estado subtrai um caso particular da aplicação da lei e decide sobre algo que se apresenta como indecidível de fato e de direito.

O Poder Executivo se incumbe de remediar uma lacuna do direito com uma ação da qual não há garantia de que promova a salvaguarda da Constituição. O estado de exceção se desenha como a tentativa de suturar a fratura existente entre o estabelecimento da lei e a possibilidade de sua aplicação prática. Ele é o instituto que distingue lei e decisão, no qual “o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e vice-versa” (AGAMBEN, 2004, p. 58).

Diante da indecidibilidade dos problemas jurídicos, a decisão soberana se revela a matriz anômica sobre a qual a ordem jurídica repousa. Para Agamben, o estado de exceção se expõe como o fundamento secreto de toda lei.

Para esclarecer esse fato, o autor retorna à noção de Estado moderno. Agamben formaliza a estrutura do Estado a partir da articulação entre três elementos: uma localização delimitada, em que funciona um ordenamento estabelecido, a partir do qual se define o modo de inscrição da vida no território. Ou seja, o nascimento de uma pessoa em uma determinada nação o constitui como cidadão perante a Constituição nacional.

Contudo, a dinâmica do poder, atualmente, implica um pressuposto: o corpo biológico e a saúde da nação se revelam o fator politicamente decisivo. O Estado territorial é transposto para um Estado população, no qual a vida humana se tornou a aposta em jogo nas estratégias políticas do exercício do poder.

Miller confirma: “O gozo se tornou um fator da política” (MILLER, 2004, p. 19). Vive-se uma época de nacionalização dos corpos, em que organismos são propriedade estatal. O Estado não mais se ancora no laço social, na exterioridade das representações coletivas em relação aos indivíduos, mas na rotina produzida pela organização dos corpos.

Assim, como o poder público assume para si os cuidados com o corpo biológico dos cidadãos, a política se torna, então, biopolítica. Mas o que determina a biopolítica contemporânea não é o fato de a vida ter-se tornado objeto dos cálculos do poder do Estado, algo que já prevalecia, mas a constatação de que o corpo biológico, até então um elemento exterior ao ordenamento estatal, torna-se o espaço político por excelência.

Nesse sentido, a ruptura com o Estado territorial não se efetivou na interseção entre política e direito, mas no modo de inscrição da vida na ordem estatal. O nexo entre nascimento e nação, com que se pretendia definir a noção de cidadania no modelo tradicional de Estado, perde seu automatismo. A cidadania converte-se em algo do qual era preciso provar-se digno, produzindo como resto uma vida humana que cessa de ter valor jurídico. A essa manifestação da vida, que não se inscreve no direito dos homens, Agamben denomina “vida nua”, uma espécie de dejeto social.

Desnuda-se uma vida humana que se tornou politizada por meio de seu abandono a um poder incondicionado. Por isso, ele aponta a implicação da vida nua na cena política como o núcleo originário do poder soberano. A contribuição da decisão soberana à cena política é a produção do corpo biopolítico como a figura humana a ser capturada fora de qualquer jurisdição.

Seguindo essa trilha, Agamben traz à luz um modo de captura coletiva do poder soberano, ao qual denomina “bando”. Para ele, o que está em bando é abandonado ao poder de quem o baniu. Essa junção entre a insígnia da soberania e o banimento da comunidade é o suporte da configuração do espaço público em que hoje se vive.

Nesse sentido, Agamben evidencia o campo de concentração como a matriz oculta da inscrição da vida no espaço público, o paradigma biopolítico do exercício de um poder indeterminado e, portanto, fora dos limites da lei. O campo de concentração surge como o protótipo da estratégia estatal para traçar um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico. Com isso, Agamben reatualiza o matema da soberania, de Schmitt, propondo: “Na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2002, p. 149)

O Estado instaura uma espécie de epidemiologia social, na qual autoriza a eliminação da vida indigna de ser vivida, o que corresponde ao aniquilamento de categorias de indivíduos julgados como não integráveis ao corpo da nação. A tarefa política de nosso tempo consiste em suturar a fratura biopolítica fundamental que divide o povo. De um lado, o corpo político integral, uma inclusão que se espera sem restos. Do outro, um amontoado de corpos carentes, uma exclusão que se pretende sem retorno.

A esperança que anima o sentimento nacional é que a separação da vida nua possa garantir a unidade do povo. Mas a sobrevivência dos excluídos constitui um elemento embaraçoso para a comunidade. A sociedade reclama ao Estado por controle, para que este elimine os indivíduos que ameaçam a integridade da nação. Por isso, o paradigma da política estatal se restringe à polícia, que se torna o mecanismo efetivo de tutela da vida dos cidadãos e luta contra os inimigos da nação.

Apesar do tom apocalíptico, Agamben mantém sua expectativa por “uma renovação categorial atualmente inaudível, em vista de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal” (AGAMBEN, 2004, p. 141).

Agamben adverte que ainda há um lugar viável para o direito após a deposição de sua articulação com a soberania. Segundo ele, a política viveu um longo período de atrofia na sua relação com o direito, restringindo-se ao seu papel de validação formal da previsão legal. Porém, ele conclui que a ação verdadeiramente política é aquela que corta o laço que une o direito à soberania.

Não se trata da anulação do direito, mas da desativação do dispositivo jurídico, que, por meio do estado de exceção, não cessa de tentar capturar a vida humana em seus confins. Milner enfatiza: “O silêncio da lei é o que a faz funcionar” (MILLER; MILNER, 2006, p. 7). Trata-se de expor o direito em separação absoluta da vida, como mera vigência formal, e a vida em sua condição originária de abandono fora dos limites da lei. Abrir esse espaço entre o direito e a vida é o que torna possível o surgimento de uma ação política.

Por isso, Agamben se remete à figura de um direito não praticado, apenas estudado. Trata-se não de negá-lo, mas de introduzi-lo em uma existência indeterminada. O direito reduzido à sua dimensão de semblante e que, somente a partir da ação política, poderia encontrar um valor de uso que não o precede, mas, ao contrário, surge a posteriori, como modo de afirmação de sua existência. Um direito que assume a vida como um elemento impossível de ser inscrito na ordem jurídica.

 

 


Referências
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
MILLER, J.-A. “Lacan e a política”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.40, ago. 2004, p. 7-20.
MILLER, J.-A. (1997) “O ditador dos cegos”, In: ______. O sobrinho de Lacan: sátira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 207-217.
MILLER, J.-A. (1991). “Sobre Carl Schmitt”, In: ______. O sobrinho de Lacan: sátira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 235-241.
MILLER, J.-A; MILNER, J.-C. Você quer mesmo ser avaliado?: entrevistas sobre uma máquina de impostura. Barueri, SP: Manole, 2006.
SCHMITT, C. (1922). “Teologia política I: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania”, In: ______. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 1-60.
(1) Texto apresentado no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 17 de abril de 2013.

Bernardo Micherif Carneiro
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: bernardomcarneiro@yahoo.com.br.



O Corpo Da Criança E Os Discursos

ANDREA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA, MARGARET PIRES DO COUTO E TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY

 

1 Introdução

Na contemporaneidade, a criança e seu corpo tornaram-se objetos privilegiados nos mais diversos saberes. Vários são os discursos que buscam regular, orientar e disciplinar o corpo da criança, esquecendo-se, frequentemente, de que ela é um sujeito capaz de interpretar e expressar seu próprio saber.

Hiperativos, deprimidos, fóbicos, autistas, agressivos, etc., são alguns dos nomes distribuídos a partir das avaliações escolares e científicas, configurando o momento atual em que grande parte das crianças encontra-se categorizada, apagando o traço da singularidade que concerne a cada sujeito.

Ao abordar esse tema, pretendemos investigar como, na atualidade, os discursos — enquanto modos de aparelhar e/ou produzir o gozo — buscam regular as relações dos sujeitos crianças e seus corpos. Para isso, trabalharemos com a hipótese, formulada pelo ensino de Lacan, de que o discurso da ciência, e não a ciência, pode funcionar segundo a lógica do discurso universitário e do discurso do capitalista. A obra científica genuína não exclui a causa, e, por isso, afirma Lacan (1973/1993, p. 40), “o discurso científico e o discurso histérico têm quase a mesma estrutura”. Assim, nessa estrutura discursiva, a verdade, como encontro com o real, não é eliminada, mas confrontada.

Por outro lado, a psicanálise, destinada sempre a ser uma ciência do particular, permite demonstrar que o discurso analítico, ao acolher a criança e seu saber, produz efeitos de histericização sobre seu corpo, demonstrando que esse corpo pode recusar a ditadura dos significantes-mestres produzidos pelo discurso da ciência.

2 O Corpo Da Criança No Discurso Científico

Em “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan (1967/2003) afirma que o corpo é mantido na ignorância pelo sujeito da ciência e indaga se chegaríamos a ter direito de desmembrá-lo em nome dessa ignorância. Qual é a verdade sobre o corpo que a ciência tende a ignorar?

Submetida ao imperativo da harmonia, a ciência desconhece aquilo que Lacan demonstrou ser a diferença entre ter um corpo e ser um corpo. “É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza” (Lacan, 1954-1955/1985, p. 97). De acordo com Miller (2004), por mais corporal que seja, o ser falante, ao ser feito pelo significante, divide seu ser e seu corpo, produzindo uma falha de identificação. É por isso que, nesse corpo, se passam coisas imprevistas, coisas que escapam, acontecimentos que deixam traços desnaturais e disfuncionais.

Ao longo da história, o corpo se constituiu, gradativamente, como objeto da ciência, sendo concebido ora como natureza, ora como máquina, até tornar-se objeto de intervenções que vão além da finalidade terapêutica. Na tentativa de aprisioná-lo no discurso da ciência, o corpo padece, atualmente, cada vez mais, de transtornos inespecíficos, que fazem proliferar os diagnósticos médicos. Ele faz sintoma, é assolado pela angústia, escapando à estratégia de domá-lo. O grande número de sintomas no corpo que chega às nossas clínicas constitui-se em evidências daquilo que fora excluído, ignorado pelo discurso da ciência, e que retorna na cena do mundo.

No campo da história, Foucault já demonstrou que, desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de poder, de manipulação e treinamento, na tentativa de torná-lo obediente e dócil. Para o autor, o século XVII inaugurou novos métodos de controle minuciosos do corpo, que ele nomeou como “métodos disciplinares”. Esses métodos foram-se tornando fórmulas de dominação cada vez mais aprimoradas. Em Vigiar e punir, publicado originalmente em 1975, Foucault define a disciplina como o “poder da norma” (Foucault, 1975/1993, p. 164), que, ao conduzir à homogeneidade, permite medir os desvios, tendo como função maior o adestramento. Demonstrou a difusão da sociedade disciplinar e de seus mecanismos por meio da vigilância permanente, exaustiva e onipresente. Para ele, o sucesso do poder disciplinar se deve ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação em um procedimento que lhe é específico, o exame.

De acordo com Foucault (1975/1993), a técnica do exame permite que cada indivíduo seja descrito, mensurado, medido e comparado a outros. Essa técnica faz com que a individualidade de cada corpo entre para uma documentação administrativa em que tudo é anotado, as atitudes e comportamentos são registrados em detalhes. Os corpos tornam-se legíveis, dóceis e objetivados. Não seria esse esquadrinhamento do corpo o que encontramos nas técnicas de avaliação e de seus protocolos, que visam a descrever e mensurar o comportamento dos sujeitos?

Isso se esclarece, por exemplo, quando observamos a criação do protocolo de “Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil” (IRDI), utilizado tanto em creches como nos consultórios pediátricos, que tem o objetivo de diagnosticar e tratar o autismo.i Fundamentado em pressupostos teóricos psicanalíticos sobre a constituição psíquica de crianças de 0 a 36 meses, ele foi elaborado e validado com 31 indicadores clínicos de risco para a detecção precoce de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança. O IRDI aparece como um instrumento de promoção de saúde mental nos primeiros estágios do desenvolvimento da criança, pois se entende que os cuidados psíquicos na infância reduzem a incidência de distúrbios mentais tanto nessa fase quanto na vida adulta (BERNARDINO; MARIOTTO, 2009).

Será possível observar e registrar o inconsciente? Não será essa proposta mais uma a alimentar a série: avaliação, classificação e medicalização?

Quanto ao fenômeno contemporâneo da medicalização das crianças, pensamos que essa seria uma nova técnica disciplinar com o objetivo de controle dos corpos. Porém, como operaria essa nova forma de “disciplinarização”?

A teoria dos discursos, desenvolvida por Lacan (1969-1970/1992), em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, pode ajudar a responder a essa questão. Lacan apresenta os discursos como laço social, uma estrutura que ultrapassa a palavra, antecede a fala dos sujeitos, organiza-as, permitindo dar um tratamento ao que escapa à articulação significante, quer dizer, um tratamento ao gozo que se encontra presente em todo laço social.

Os quatro discursos que Lacan matemiza — o discurso do mestre, o discurso histérico, o discurso universitário e o discurso analítico — correspondem a quatro tramas discursivas, quatro lugares de enunciação e quatro configurações significantes diferentes. Eles se diferenciam pela sua posição espacial e pela rotação que os quatro significantes (sujeito, significante-mestre, saber e o objeto a) fazem nos quatro lugares do discurso que, por sua vez, são fixos.

Os quatro lugares, lugar do agente, lugar do outro, lugar da verdade e lugar da produção, estão assim dispostos:

 

Nossa hipótese, como dito anteriormente, é que a ciência possa desenvolver-se a partir da lógica do discurso universitário e também do capitalista, como veremos adiante. A estrutura do discurso universitário ajuda a pensar como o saber científico, sustentado na lógica do poder disciplinar descrita por Foucault, ocupa-se dos corpos das crianças:

Trata-se, então, da lógica do discurso universitário, matemizado por Lacan da seguinte forma:

 

Nesse mesmo seminário, Lacan analisa as consequências ou os efeitos produzidos quando o saber (S2) está no lugar de agente ou na posição dominante do discurso. Para Lacan, no discurso universitário, o S2, o saber, ocupa o lugar da ordem, do mandamento, de forma anônima, pois se encontra separado de seu autor. No lugar da verdade (S1), está o significante-mestre operando para portar a ordem do mestre. O mestre não está mais aí na posição de domínio, o que permanece é seu mandamento, seu imperativo categórico, por meio do saber científico universal e generalizante. O efeito dessa configuração é o desconhecimento da verdade inconsciente e a tirania do saber que se apresenta como “verdade científica”. A verdade do sujeito, verdade, essa, sempre particularizada, é rejeitada em prol de uma verdade universal, aquela produzida pela ciência.

Assim, quando o agente do discurso é o saber, ele sempre se dirige ao Outro como objeto, “objetalizando-o”. É o mestre que ocupa o lugar da verdade, e o que se produz, nesse discurso, e, ao mesmo tempo, se perde, se exclui, é o próprio sujeito do inconsciente, com sua divisão.

Na contemporaneidade, verificamos uma perigosa aliança entre o saber científico e o capital, potencializando aquilo que Foucault descreveu como objetivação dos corpos e que, com o ensino de Lacan, extraímos como “objetalização” do sujeito.

Lacan matemizou um quinto discurso, o do capitalista, como uma nova modalidade do discurso do mestre, definindo-o como o laço social dominante em nossa sociedade:

Diferentemente da lógica dos outros discursos, o discurso do capitalista tenta eliminar a dimensão do impossível ao prometer o acesso direto do sujeito aos objetos e do mestre ao saber. Efetivamente, ele não promove o laço entre os sujeitos, mas a relação do sujeito com o objeto, supostamente capaz de recuperar o gozo perdido, que a entrada do ser falante na linguagem instaura.

Nesse sentido, o saber científico tem como objetivo produzir os objetos de consumo e colocá-los à disposição do sujeito. A divisão é transformada em déficit, fazendo com que o sujeito transforme seu mal-estar estrutural, a falta da estrutura, em um menos, na ilusão de que poderá ser preenchido com um objeto produzido e elevado pelo mercado à categoria do objeto a. Esse circuito faz funcionar a máquina da produção incessante de novos objetos a serem consumidos, transformando o próprio sujeito em um desses objetos. O efeito de toda essa maquinaria é o rechaço da divisão e sua consequente anulação do desejo, ao fazer crer que seria possível, e não mais impossível, o encontro com o objeto de satisfação. Os medicamentos entrariam na série desses produtos a serem produzidos, ofertados e consumidos. Então, como pensar a relação entre o corpo da criança e o saber científico, partindo da lógica do discurso capitalista?

Temos, no lugar da verdade, o significante-mestre representado pelos interesses do capital e a lógica do mercado. Esse significante-mestre comanda o saber científico e impõe a produção cada vez maior de novos objetos a serem consumidos: por exemplo, o medicamento. No lugar do agente, temos o sujeito criança com seu corpo não mais tomado como um corpo marcado pela falta, pela dimensão traumática que todo corpo apresenta para o ser falante. Ao contrário, temos um corpo marcado pelo signo do déficit, mesmo que pela vertente do excesso, ao escapar ao padrão considerado normal. Por isso mesmo, é um corpo a ser docilizado, domado, domesticado, silenciado, ao se endereçar, sem intermediários, ao saber científico e ao seu produto: o medicamento. Eliminada a dimensão do impossível (sem barras), nesse discurso demonstrado pelas setas que indicam a conexão direta, o corpo da criança se torna o objeto da ação do saber científico, sem as mediações necessárias que poderiam manter a disjunção entre a verdade e a produção presente nos outros discursos.

3 O Corpo Da Criança No Discurso Analítico

Qual o lugar que o corpo da criança assume no discurso analítico?

Para Cristina Drummond (2012), o conceito de objeto a construído por Lacan fornece importantes elementos para tratar a relação da criança com o corpo.

No texto “Nota sobre a criança”, de Lacan (1969/2003), podemos isolar as duas posições da criança na estrutura familiar: como sintoma do par parental e como objeto do fantasma da mãe. Nessa segunda vertente, o autor afirma que a criança se torna o objeto da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto (Lacan, 1969/2003, p. 369). Trata-se, afirma Lacadée (1996), de uma situação em que a criança é tomada no fantasma da mãe de tal maneira que vem realizar a presença desse objeto a em seu fantasma. A criança satura esse modo de falta, dando-lhe corpo ou oferecendo seu corpo como objeto condensador de gozo da mãe. Ela vem saturar a falta da mãe, condensando sobre seu ser a verdade desse objeto.

Ao comentar o texto “Alocução sobre as psicoses da criança”, de Lacan (1967/2003), Drummond (2012) isola duas consequências dessa teorização da criança como objeto a para sua mãe. A primeira delas diz respeito ao questionamento do mito de completude presente na teorização dos pós-freudianos sobre a relação da criança com a mãe. Extrai, daí, uma orientação ética ao tratamento analítico de crianças: “opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a” (Lacan, 1967/2003, p. 366). Trata-se, portanto, de impedir que a criança seja fixada na fantasia materna. A segunda consequência situa o achado clínico de Winnicott, afirmando que o ponto central dessa formulação “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para sua mãe” (Lacan, 1967/2003, p. 366).

Ainda de acordo com Drummond (2012), há, em muitos dos sintomas das crianças, na atualidade, a impossibilidade de fazer a operação de separação desse lugar de objeto que ela é para o outro, e essa impossibilidade retorna sobre o corpo da criança. Há, nelas, uma enorme dificuldade de interrogar sobre o desejo materno e fazer dessa interrogação um enigma. Além disso, encontramos nesses sintomas a dificuldade da criança para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou de um gozo que a produziu.

A problemática que se coloca quando o sintoma se aloja no corpo é se o analista poderá constituir-se como um destinatário da fala do sujeito, dividindo-o, fazendo surgir sua demanda de saber, enfim, pondo em funcionamento o discurso do inconsciente.

Nesse sentido, a estrutura do discurso analítico ajuda a pensar a operação possível e esperada pelo analista:

Trata-se do lugar do analista que, ao se fazer de objeto, endereça-se à criança como um sujeito dividido e, ao manter seu saber abaixo da barra, permite a ela produzir seu próprio saber e se separar dos significantes-mestres que a capturavam. Nesse sentido, o efeito dessa operação seria a histericização do sujeito — demonstrada por Lacan por meio da lógica do discurso histérico — que pode encontrar nesse dispositivo um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Ao poder endereçar-se ao campo do Outro, a partir de sua divisão, o sujeito pode supor o inconsciente e produzir um saber sobre esse real que toma seu corpo.

Em outro texto, “A criança objetalizada” (2007), Cristina Drummond ressalta que o discurso científico fez do corpo da criança uma mercadoria que pode ser usada e descartada pela ciência. Desalojá-la desse lugar e se opor que a ciência faça do corpo da criança um objeto comercializado, disciplinarizado e medicalizado é, portanto, uma orientação ética da psicanálise.

 


 

Referências
BERNARDINO, L. M. F.; MARIOTTO, R. M. M. “Detecção de riscos psíquicos em bebês de berçários de Centros Municipais de Educação Infantil de Curitiba”, In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 9. E ENCONTRO SUL BRASILEIRO DE PSICOPEDAGOGIA, 3., Curitiba, PUCPR, 26 a 29 de outubro de 2009.
DRUMMOND, C. “A criança objetalizada”, Almanaque on-line, Revista Eletrônica do IPSM-MG, n. 1, jul./dez., 2007.
DRUMMOND, C. Como se opor a que se seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a. Belo Horizonte: Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças, Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas de Gerais, 2012.
FOUCAULT, M. (1975). Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1993.
LACADÉE, P. “Duas referências essenciais de J. Lacan sobre o sintoma da criança”, Opção Lacaniana, São Paulo, n. 17, p. 74-82, nov. 1996.
LACAN, J. (1954-1955). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1967). “Alocução sobre as psicoses da criança”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.359-368.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LACAN, J. (1973). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”, Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 41, p.7-67, dez. 2004.
1 O protocolo IRDI foi desenvolvido pelo Grupo Nacional de Pesquisa sob a Chancela do Ministério da Saúde e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no período entre 2001 e 2008.

Andrea Eulálio De Paula Ferreira, Margaret Pires Do Couto E Tereza Cristina Côrtes Facury
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com. Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br. Tereza Cristina Côrtes Facury – Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. E-mail: terezafacury@gmail.com



Almanaque On-Line Entrevista

 SÉRGIO LAIA – DIRETOR EXECUTIVO DO VI ENAPOL PELA EBP

 

1) O Corpo Está Em Discussão. O IPSM-MG Tem-Se Ocupado Da Exploração Do Tema Do VI ENAPOL E Propõe, Para Esta Entrevista, A Articulação “O Corpo Sob Transferência”, O Corpo Tomado Pela Incidência Do Discurso Analítico No Século XXI. O Título Do VI ENAPOL, Falar Com O Corpo, E Seu Subtítulo, “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real”, Apresentam, Segundo Seu Texto Publicado No Site Do Encontro (LAIA, 2013), Um Programa Da Psicanálise De Orientação Lacaniana, Frente Ao Desencanto Contemporâneo Com Os “Poderes Da Palavra”, Em Sua Decisão De “Falar Com O Corpo” E Persistir Na “Trama Corpo-Linguagem” Para Ler Os Sintomas E Abordar A Generalização Das Normas Como Uma Crise Das Normas, Uma Resposta Ao Seu Fracasso Através De Um Recrudescimento.

Que Tratamento A Psicanálise Pode Oferecer Ao Corpo, Considerando Os Novos Usos Que Se Apresentam Na Clínica De Hoje?
Mesmo com todas as críticas e até perseguições que a psicanálise vem sofrendo nestes tempos, estimo que estamos em um momento oportuno, ainda que isso não implique qualquer conforto. Primeiro, porque essas críticas e essas perseguições podem e devem ser enfrentadas por nós, analistas (e aqui já introduzo o tema que vocês elegeram para esta entrevista), como uma transferência apresentada na faceta que Freud já chamava de “transferência negativa”. Além disso, vivemos em um mundo onde é intenso o apelo que se faz ao corpo:

No que concerne mais especificamente às terapêuticas, uma boa parte das propostas atuais reduz os sintomas a “transtornos” que, embora qualificados de “mentais”, encontram nos corpos um lugar em que eles ganham consistência e no qual devem ser feitas as intervenções terapêuticas. Afinal, “localizações cerebrais” e “marcadores biológicos” são buscados como formas de se conferir maior objetividade ao diagnóstico e ao tratamento, que, muitas vezes, é necessariamente associado ou mesmo restrito a medicamentos.

Quanto ao que caracteriza, de modo geral, nossa civilização, senão tudo, certamente, uma grande parte do que se propõe e se experimenta, hoje, como “modos” ou “estilos” de vida implica o corpo em sua exigência de satisfação constante.

Ora, a psicanálise é uma experiência que se faz com o corpo e no corpo. Portanto, ela tem toda condição para responder às incitações que nossa civilização faz aos corpos como campo privilegiado de satisfação, bem como às reduções pelas quais muitas terapêuticas atuais tomam os sintomas, identificando-os apenas como o que é somático. Nossa diferença (e também nosso desafio em termos de implantação e reiteração neste mundo) é que, para nós, os corpos são o que eu chamaria de caixas de ressonância e também de dissonância, ressaltando que esses “sons” corporais não são captáveis nem pelos tradicionais e também cada vez mais sofisticados aparelhos de “ultrassonografia”, nem pela tecnologia de ponta instrumentalizada como “ressonância magnética”. Afinal, esses sons manifestam-se, segundo nos ensina Lacan, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18), ou seja, eles são pulsionais. Embora sejam às pulsões que a civilização procura responder (silenciando-as, nos tempos mais repressivos, ou, como acontece mais em nossa atualidade, mais permissiva, incitando-as), embora seja também algo das pulsões que muitas terapêuticas contemporâneas — mesmo sem usarem tal nome — propõem controlar (como no caso dos “hiperativos”), ou incitar (como no caso dos “deprimidos”), é a psicanálise que consolidou modos efetivos para que possamos abordá-las e vivê-las. É na experiência analítica que se pode constatar o quanto as palavras afetam os corpos e o quanto ansiamos para falar com os corpos e também para fazê-los falar. Por conseguinte, embora se tente muito isso hoje em dia, não há como livrar os corpos vivos desse tipo de afecção. Por isso, conforme eu lhes dizia inicialmente, temos de nos haver hoje com uma enorme transferência negativa quanto à psicanálise e nos encontramos, concomitantemente, em um momento oportuno.

2) Segundo Éric Laurent (2013), “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real” Remetem-Nos A Uma Dupla Série Causal: De Um Lado, “Os Corpos São Muito Mais Deixados Por Sua Própria Conta, Marcando-Se Febrilmente Com Signos Que Não Chegam A Lhes Dar Consistência E, Por Outro Lado, A Agitação Do Real Pode Ser Lida Como Uma Das Consequências Da ‘Ascensão Ao Zênite Do Objeto A’.”
Quais As Consequências Dessa Constatação Na Direção De Um Tratamento Em Nossos Dias, Que Pretende Fundamentar-Se Na Teoria E Ética Lacanianas?

Parece-me que minha resposta à questão anterior já antecipa elementos que respondem a esta segunda. Quais são os “signos” (para tomar aqui a passagem de Éric Laurent citada por vocês) que não chegam a “dar consistência” aos corpos, mas que os marcam “febrilmente”? Há uma multiplicidade deles: “tatuagens”, “drogas”, “baladas”, “silicones”, “energéticos”, “celulares”, “roupas”, “TPM”, “ponto G”, “Viagra”, “sexo”… etc…. Essa variedade, que cada vez se multiplica mais, mostra, concomitantemente, como o “objeto a”, por ser efetivamente um “condensador” de gozo, ou seja, de satisfação, encontra-se em ascensão no mundo contemporâneo, mas ela também evidencia, especialmente para quem é sensível à escuta analítica, o fracasso desses signos em dar aos corpos alguma consistência. Em outros termos, há uma produção de múltiplos objetos e uma busca incessante por eles porque não há efetivamente objeto capaz de suturar o vazio que faz os dizeres ecoarem nos corpos. Por sua vez, a experiência analítica tem como cingir e responder a tal vazio sem ser pela proliferação dos objetos. Nossos consultórios de psicanálise, bem como os atendimentos e intervenções que muitos de nós fazem nas instituições de saúde, de defesa social e de ensino comportam muitos exemplos de como os corpos são objetos de intensos investimentos, de incisivas intervenções, mas sem que isso resulte em alguma consistência para aqueles que se apresentam com eles, visando a um tratamento, um acolhimento, uma resposta. Entre esses exemplos, eu citaria: a busca incessante pelo “over” nas toxicomanias, que ganha, com o crack, um viés ainda mais tenebroso, o “menor abandonado”, cuja trajetória de infrações o faz sempre ser abandonado, o entediado, que vaga pelas noites ou pelos shoppings, sem encontrar o que ele não sabe que está procurando, a anoréxica, que recusa o alimento para, insistentemente, comer nada, aquele que não encontra mais lugar no corpo para mais uma tatuagem…

Sobre como a psicanálise pode tratar essas inconsistências, essas experiências de esvaimento dos corpos manifestada na própria apresentação dos corpos como objetos, eu já destaquei, na primeira resposta, e também no meu texto (LAIA, 2013), que se encontra no site do VI ENAPOL (evocado também, a princípio, por vocês): nossas intervenções se valem da “trama corpo-linguagem”, da escuta do que ecoa, inclusive nessas inconsistências corporais, como dizer. A transferência, nesse contexto, é decisiva, pois os corpos inconsistentes de hoje não param de buscar os corpos, e, nessa trajetória, o corpo do analista pode fazer diferença entre os múltiplos corpos que servem como anteparo, âncora, bússola, mas também como diluição, errância, perdição aos corpos agitados de hoje. Por fim, se a ética da psicanálise se vale da orientação de não ceder quanto ao desejo, de agir em conformidade com o desejo (segundo os termos de Lacan, no Seminário 7, 1959-1960/1988, p. 373-390), encontro, em uma passagem do primeiro testemunho de Marcus André Vieira como A.E. (Analista da Escola), uma indicação preciosa para articularmos tal orientação com a definição lacaniana da pulsão, no Seminário 23, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18). Tematizando exatamente como a transferência permitiu-lhe abrir “um espaço corporal sem lugar e forma claros” e também marcado por “nada do Outro”, ou seja, alheio a qualquer referência, no qual “ecoavam as intervenções sonoras do analista e que sentia sua presença, reagindo à sua voz de outra forma”, Marcus André Vieira nos mostra como a experiência analítica deu-lhe alguma consistência para o “tanto de gozo fora do corpo, de vida que não cabe na vida e se manifestava como vontade” de ele, Marcus, se “lançar para dentro e não para fora, para o encontro com um desejo a descobrir e não a antecipar” (VIEIRA, 2013, p. 31, grifos do entrevistado). Considero preciosa tal passagem, no que concerne à ética da psicanálise e à experiência analítica hoje, porque, em nosso mundo, tomado pelo imperativo da satisfação, os corpos estão sempre às voltas com o desejo a antecipar, e à experiência analítica cabe suscitar o que poderá apresentar-se como um desejo a descobrir. É desse desejo a descobrir que não se deve ceder, e é esse desafio que sustentamos na experiência analítica, particularmente hoje em dia, quando o mundo é assolado pela urgência de se antecipar o desejo para que se possa garantir a onipresença da satisfação.

3) Ainda Hoje, Poderíamos Constatar, Como Freud, Que “Sempre Resta O Sintoma, Na Medida Em Que Ele Interroga Cada Um Sobre O Que Vem Incomodar-Lhe O Corpo”. Entretanto, Éric Laurent (2013) Nos Alerta De Que “Precisamos Conceber O Sintoma Não Com Base Na Crença No Nome-Do-Pai, Mas Baseados Na Efetividade Da Prática Psicanalítica”.
O Que Significa, Para A Apresentação E O Manejo Da Transferência, Ir Para “Além Do Sintoma Histérico, Que Supõe, No Horizonte, O Amor Ao Pai”?

O amor ao analista, isto é, o investimento que liga o analisando ao analista, pode ter o amor ao pai como uma das formas pelas quais a transferência se processa. Freud mesmo fala do analista como um “substituto” dos primeiros objetos de investimento libidinal, e o pai se encontra entre esses objetos. Mas a transferência e seu manejo não se reduzem a isso. Mesmo quando tomamos a transferência, tal qual Freud, como uma forma de “neurose” forjada na própria experiência analítica, ela não é mera repetição do que se passou e não foi elaborado. A parte em que o sintoma se trama com o amor ao pai é, a meu ver, mesmo sob a forma de “neurose de transferência”, aquela que é decifrável, inclusive porque o Nome-do-Pai tem, segundo podemos ler na “metáfora paterna”, a função de traduzir, decifrar o enigma do “Desejo da Mãe” (LACAN, 1957-1958/1998, p. 563). Entretanto, como nos vai ensinar um Lacan mais tardio em relação àquele dessa operação de metaforização, “uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma” (LACAN, 1973/2003, p. 550). Assim, quanto ao sintoma, ele comporta, como tem insistido Jacques-Alain Miller, uma opacidade ao sentido e à decifração, e, nesse viés, o analista como parceiro-sintoma, na transferência, não é pura e simplesmente um substituto do pai.

4) Em TEXTOaCORPO #18, Lemos: “O Novo Status Do Sintoma Significa Muito Mais Que Constatar Que Não Há Sintoma Sem Corpo. Ao Ser Acontecimento De Corpo, O Sintoma É Um Real Contingente E Singular, Pois Nenhum Acontecimento É Necessário E Universal. O Corpo, Como Sede Deste Acontecimento, Ademais De Ser Gozável, Deve Poder Receber, Como Letra, A Marca Escrita Pelo Sintoma, E Por Isso É Literável” (ARENAS, 2013). Miller (2012) Refere-Se Ao Ultimíssimo Lacan Apontando Que: “No Lugar De Função Da Fala, Campo Da Linguagem E Instância Da Letra, Temos Lalíngua, Apalavra E Lituraterra, Que Esboçam Certamente Um Outro Lacan”.

Já Que O Sintoma Se Inscreve No Corpo, Como Escutá-Lo E Interpretá-Lo, Se Há, Nos Tempos De Hoje, Uma Dificuldade No Relato Pelo Falasser? Como Articular Escuta E Leitura (Do Sintoma Que Se Escreve), Uma Vez Que O Corpo É Tomado Como Aquilo Do Qual Goza O Sujeito? Como Fica A Transferência?
O que vocês estão chamando de “dificuldade no relato” se manifesta, muitas vezes, como uma dificuldade de dizer, de contar o que se passou, de falar do que está acontecendo, de decifrar o sintoma, ou, pelo menos, de ser sensível à sua decifração. Entretanto, se a psicanálise faz diferença, em um mundo onde, o tempo inteiro, se insiste que “falar faz bem”, é porque, para nós, a dificuldade para relatar não é menos um dizer. Por isso, a experiência analítica não se reduz a uma trama biográfica: os analisantes se surpreendem com o que escapa à suas biografias e que, ainda assim, os determinam, mobilizam seus sintomas, constituem seus desejos. Nesse viés, quando pretendemos discutir, no VI ENAPOL, as diferentes nuances de “Falar com o corpo”, essa fala se processa mesmo quando não há muita disposição do falante ao relato, porque o corpo é uma espécie de “estranho” com o qual, contrariando o que dizem, primordialmente, nossos pais, insistimos em falar, porque ele, com sua presença inusitada, enigmática, nos faz falar. A transferência é decisiva nesse contexto porque, como constatamos na orientação lacaniana, um analista é talhado, por sua análise pessoal e pelas supervisões, a tomar a forma desse “estranho” que é o corpo com que falamos, muitas vezes, sem escutar qualquer palavra, e, como esse “corpo estranho”, na transferência, um analista poderá fazer ecoar (ou mesmo amplificar) o inaudível não para que este seja propriamente escutado ou relatado, mas para que possamos cingir e nos virar com tal opacidade.

5) Acompanhamos, No Momento Atual, A Agitação Dos Corpos Dos Jovens, Em Uma Série De Manifestações, Nas Quais Os Analistas Políticos Identificam Uma “Crise Da Representação”.
Que Articulação Se Pode Fazer Entre O Lugar Ocupado Pelo Corpo Na Atualidade E As Novas Formas De Identidade?

As manifestações recentes parecem evidenciar que a crise das normas atinge inclusive o campo mesmo dos protestos. Afinal, no início, o que surpreendeu a todos foi o fato de não se saber de onde surgiu tanta gente que, até então, supunha-se que estava mais conectada à internet do que à suposta “realidade do país”. Uma faixa dos manifestantes proclamava: “Somos a rede social”, e encontro nela um excelente exemplo do que Lacan chamava de interpretação pelo equívoco. Afinal, nesses tempos de Facebook, Instagram, WhatsApp e Twitter, o sintagma “rede social” refere-se a corpos imersos no chamado “mundo virtual”, mas, nas manifestações, eis que esses corpos, que ninguém sabia muito bem onde estavam, aparecem nas ruas sob a forma das “manifestações”. Em outros termos, os corpos dos manifestantes “pularam” do “mundo virtual” para as “manifestações” em várias cidades brasileiras, da mesma forma como a anamorfose pintada por Holbein, no quadro Os embaixadores (comentado por Lacan, no Seminário 11), “pula”, enigmática, do que esse quadro representava em termos dos objetos da ciência, das artes e dos representantes da diplomacia, ou seja, da “realidade” do então século XVI (LACAN, 1964/1988, p. 84-115).

À medida que os protestos foram-se multiplicando, tudo parecia ter-se tornado motivo de protesto, e, nesse sentido, a própria concepção do que seria “protestar” se mostrou, senão diluída, certamente ainda mais opaca. Dessa surpresa frente a essa diluição e à opacidade, algo me pareceu manter-se e que tem a ver com o que, na pergunta, vocês chamaram de “agitação dos corpos”. Fazendo aproximação entre o subtítulo do VI ENAPOL e essas manifestações recentes no Brasil, parece possível sustentar que a “agitação do real” é uma “agitação dos corpos”, e que, quando há “crise das normas”, os corpos se agitam. Pergunto-me, nesse aspecto, se o sintoma “social” corporificado por essas manifestações não pode ser lido na vertente do que, graças a Jacques-Alain Miller, temos podido encontrar em Lacan como “acontecimento de corpo”. Assim, se uma das faixas ostentadas nessas ocasiões dizia: “Não são só 20 centavos”, eu não a leio apenas como ressaltando que há mais motivo para protestos do que o aumento das passagens de ônibus ou o direito à gratuidade do transporte público para estudantes. Prefiro lê-la assim: os “20 centavos” de aumento nas tarifas de ônibus não foram apenas o “significante” que causou a agitação dos corpos sob a forma de protestos, eles são o significante que acionou o gosto, ou, se quisermos usar um termo mais lacaniano, o gozo dos corpos de se manifestarem, especialmente porque as manifestações se tornaram mais frequentes depois que alguns corpos que se batiam por transporte público mais barato ou gratuito foram alvos de inusitada violência policial na cidade de São Paulo. Com base no que alguns analisantes me contaram sobre suas participações nas manifestações e acompanhando-as direta ou indiretamente, eu diria que não eram apenas os “20 centavos”, porque o que se descobria ali, a cada manifestação, era a satisfação dos corpos que, como também se pôde logo notar, não era apenas a dos corpos se encontrarem, mas também de se deixarem tomar por colisões e ímpetos mortíferos. Assim, retomando minha referência ao quadro de Holbein, é importante lembrar que a anamorfose que “pula” da representação é um crânio de caveira, e, se ela me permitiu fazer essa relação com os corpos cuja agitação surpreendeu a todos nessas recentes manifestações, parece-me igualmente importante que, como analistas, nós certamente não temos que desprezá-las (afinal, o que agita os corpos nos concerne desde os sintomas histéricos os mais clássicos), tampouco temos que tomá-las como uma crise da representação manifestando, como pretenderia um Badiou, o irrepresentável na política como uma solução inequívoca.

Duas frases de Lacan, que faz do equívoco um bem-dizer, surgem-me, aqui, como uma posição interessante frente às manifestações: “Eu aguardo, mas não espero nada” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 133). Essa passagem é instigante porque, comportando um enigma ao lidar com os verbos “aguardar” e “esperar”, atribui-lhes uma diferença que não é tão clara ao senso comum, nem para os dicionários, mas que é real para a psicanálise de orientação lacaniana. Afinal, “esperar” ressoa em “esperança” e, portanto, em uma expectativa de que há um sentido, um ideal, mesmo que (mortiferamente ou não) inalcançáveis e que comportem uma convocação do Outro, de um lugar ao qual se pode chegar, aspirar, fazer consistir. Bem diferente, “aguardar” implica a presença viva de um corpo, sem lugar para uma expectativa ou uma convocação quanto ao sentido, ao ideal ou ao Outro. Assim, um analista é aquele que, frente à agitação dos corpos, aguarda sem esperar, transmitindo-lhes, assim, inclusive, alguma serenidade. Novamente, posso verificar aqui com vocês o quanto vivemos um momento oportuno para a psicanálise de orientação lacaniana, mesmo que essa oportunidade não nos reserve qualquer conforto.

 


 

Referências
ARENAS, G. O corpo, gozável e literável. TEXTOaCORPO #18. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/Boletines/018.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 537-590.
LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1973). “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 550-556.
LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LAIA, S. Falar com o corpo, um solilóquio e a experiência analítica. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Textos/Hablar-con-el-cuerpo-un-soliloquio-y-la-experiencia-analitica_Sergio-Laia.html. Acesso em: 21/07/2013.
LAURENT, É. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento.html. Acesso em: 21/07/2013.
MILLER, J.-A. “O escrito na fala”. Opção Lacaniana online, nova série, ano 3, n. 8, jul. 2012. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_escrito_na_fala.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
VIEIRA, M. A. “Mordidavida”, Opção Lacaniana, n. 65, abr. 2013, p. 31.



A Educação E Os Corpos De Hoje

HEBE TIZIO

 

O presente trabalho toma como ponto de partida a desregulação dos corpos na escola e em outros espaços educativos como decorrência da mudança das coordenadas que organizavam esse espaço e a consequente perda da função educativa. Nesse sentido, tomam-se esses problemas como sintomas sociais na medida em que assinalam uma disfunção no mencionado aparato educativo.

Isso não implica esquecer a determinação individual que se encarna em cada sujeito, e, nesse sentido, deve-se estabelecer uma diferença entre sintoma social e sintoma subjetivo. O sintoma social dá a aparência de homogeneidade e é aí nesse ponto que devemos isolar o singular de cada caso para desagregá-lo do conjunto.

Para desenvolver o tema proposto, buscou-se lançar sobre o assunto um olhar retrospectivo, a fim de verificar o que se conhecia sobre ele no passado e constatar o que se concebe a seu respeito no presente, com vistas a apresentar algumas propostas para sua abordagem.

Retrospectiva

Tradicionalmente, a escola necessitou de corpos regulados para poder levar adiante seus objetivos curriculares. Porém não só se tratava de que a criança tivesse alguns hábitos adquiridos que lhe permitissem ficar tranquilamente sentada em sua carteira. A escola sabia que, para manter essa regulação, era preciso desenvolver um trabalho permanente, e isso se atingia, por um lado, por meio das mesmas aprendizagens e, por outro, por intermédio do controle disciplinar.

Tome-se como exemplo a leitura. Nela, a pontuação determina que, se há uma vírgula, deve-se fazer uma pausa, ou, se se depara com um ponto e parágrafo, isso implica que se deve dar uma parada mais demorada e lançar um olhar para o mundo. Com base nessas determinações se observa que a respiração, a voz e o olhar são afetados pela leitura em um esforço civilizatório sobre o pulsional. A partir dessa perspectiva, pode-se entender a leitura como uma regulação desses objetos pulsionais, a fim de poder entender o texto. Se isso não se realiza, não se entende o que se lê, e muito menos os ouvintes compreendem o que se deseja comunicar.

Na escola do passado, a disciplina se encarregava de reduzir o que resistia e se sustentava em uma autoridade reconhecida como tal porque se assentava no valor do saber que prometia um futuro. A regulação se dava, então, pelas vias do interesse e do castigo.

Progressivamente, esse exercício foi abandonado em função das mudanças sociais que se produziram. A regulação do corpo pelos métodos tradicionais passou a não mais funcionar. A disciplina, no sentido kantiano, como regulação do capricho, não se exerce em um mundo que promove o consumo e, portanto, o apetite desmesurado. E também porque a oferta educativa não se utiliza mais para esse fim, e o ideal do esforço foi substituído pela busca da felicidade.

Insistindo nessa perspectiva clássica, cabe lembrar, ainda, a função do exercício físico como forma de cansar o corpo a fim de deixá-lo dócil para a aprendizagem. Sabia-se que as crianças deviam cansar-se para depois poderem aprender e então descansar, dormindo as horas necessárias. A escola era considerada o lugar de trabalho da criança, e o jogo, um dos entretenimentos no tempo livre. Sobre esse ponto, Hannah Arendt escrevia, referindo-se à crise da educação nos Estados Unidos, que a distinção entre jogo e trabalho foi apagada a favor do primeiro como uma forma insidiosa de promover a infantilização, já que isso não prepararia para o mundo adulto.

É verdade que um mundo que não pode oferecer muitas oportunidades laborais se volta cada vez mais para o entretenimento como forma de controle social. O notável, nesse ponto, é que se conta com o consentimento dos controlados, pois o entretenimento engata bem com o ideal de felicidade. Observa-se, assim, uma promoção do apetite em oposição ao trabalho, e a pergunta é como se produz a abertura ao desejo, pois, na perspectiva freudiana, a proibição era estruturante, nesse ponto.

Se aqui se faz referência a essa escola é porque, hoje, as formas de regulação que a sustentavam e as que lhe davam autoridade se modificaram. Não se remete, com isso, à escola da brutalidade, do castigo, mas à dos últimos 30 anos, que quis retomar suas raízes de renovação pedagógica e introduziu o consenso como forma de trabalhar a disciplina. Não se trata de nostalgia, mas de verificar como uma instituição criada sob determinadas coordenadas de funcionamento, hoje, tem dificuldades de cumprir seu encargo frente às mudanças operadas. Essa escola renovada necessitava de um corpo que respondesse ao que se entendia por solidariedade, um corpo que se tentava regular com os “bons modos” e a palavra, a realização de atividades conjuntas e o interesse.

Aquilo que a escola não pôde regular foi expulso para as redes de exclusão social, e foi aí que a educação social encontrou seu campo e onde se colocam interessantes questões para a psicanálise aplicada.

Miscelâneas

a) Hoje, aparecem, na escola, os corpos chamados hiperativos, o corpo ameaçado ou maltratado no que se conhece como bullying, os corpos anoréxicos, as bulimias, os sobrepesos, as drogas… Sintomas que produzem sujeitos pouco dispostos à aprendizagem porque a dificultam. Além disso, o encargo social que se atribui à escola aumenta dia a dia, e, agora, ela deve-se haver também com outras tarefas, como educar para a saúde, a sexualidade, as drogas… Em outras palavras, ela deve regular os corpos — porém, como, se não há, hoje, espaços para o saber que é sua única possibilidade de operar? A escola vai-se inclinando perigosamente para o controle social direto dos corpos e para um futuro de administradora de fármacos, como já acontece nos Estados Unidos.

Se se passeia pelas cantinas escolares, pode-se verificar as dificuldades existentes em relação à alimentação. O que as crianças de hoje querem comer? Batatas, pizzas, macarrão… e a famosa dieta mediterrânea se transforma em medicação… Fala-se muito sobre educação para a saúde, mas, em geral, nas cantinas, vigora a economia, que se esconde, às vezes, por trás do capricho da criança, pautando-se por ele as propostas de cardápios.

A alimentação carrega as marcas da época, mais precisamente, as formas de comer. A geração dos pais dessas crianças da atualidade devia comer de tudo que se punha no prato, porque nada se podia descartar, sobretudo se se pensasse nos que não tinham nada para comer, as crianças famintas do mundo, as crianças das guerras. E se forçava a comer, não importava o tempo que demorasse a criança em amassar o bolo que fazia com a comida em sua boca, acabaria engolindo. Hoje, basta observar os pratos para perceber que a desconstrução da comida é uma nova vertente que se apresenta, e, à diferença dos cozinheiros famosos, os sujeitos de hoje produzem restos. A decomposição da comida nos elementos que a compõem deixa uma coroa de restos, ao redor do prato, e um vazio central.

Não se trata de apressar-se em tapar esse vazio com o significante anorexia, mas de interrogar-se sobre sua função. Por que não pensar em formas de recusa difusas frente a um “demasiado cheio de porcaria”, como dizia uma menina. Pois isso é, muitas vezes, a comida das cantinas escolares.

Poder-se-ia fazer um novo estudo sobre as particularidades do gosto em um momento em que tudo “sabe” igual, e isso as crianças o sabem, pois saber e sabor se homogeneízam cada vez mais e por isso se recusam. A atrofia do paladar gera recusas ou ingestão indiscriminadas porque se perdeu a bússola do prazer que leva ao objeto oral. É curioso que hoje seja o mercado o que trata de “educar” o gosto, ou deveria dizer: colonizá-lo para o consumo? Observa-se que, cada vez mais, são abertos cursos de “degustadores” de vinho, azeite, chocolate, águas!

Na prática, o não comer se modaliza de diferentes formas. Pode-se tratar de um “comer nada” que funciona em relação ao Outro. Esse objeto “nada” é produzido como anulação simbólica do objeto real. Nada como resposta ao excesso. E esse nada é muito ativo, hiperativo, às vezes, e tem, especialmente quando se trata de comportamentos transitórios, a função de uma recusa facilmente situável.

Pode-se ler também como uma luta para não desaparecer como desejante. O esmagamento na satisfação mata o desejo, e, por isso, há discordâncias. Os imperativos sociais atuais têm a força de uma demanda insaciável: consuma! E o excesso de objetos extermina o desejo, produzindo um tipo de “anorexia generalizada”. Não é casual que a metade do mundo morra de fome e a outra metade de excesso, e que isso se sintomatize nos transtornos da moda. Sem dúvida, existem diferentes formas de relacionar-se com a comida, porém todas encarnam modos de tratamento do objeto e do vazio.

b) A escola se apoiava na família, que lhe dava crianças disciplinadas, com hábitos adquiridos e necessidades atendidas, e, além disso, dava suporte nas tarefas para casa, sustentando e fixando as aprendizagens… Hoje, essa relação se inverteu, e à escola se solicita, em muitos casos, que seja o suporte da família. A família mudou, e isso repercute na forma de alimentar-se, nos hábitos e costumes, nas horas de sono, produzindo efeitos sobre os corpos.
Isso mostra que, na realidade, muitos desses sintomas em adolescentes — que costumam aparecer de maneira muito espetacular — constituem apelos à regulação, no momento em que se dá o encontro com o gozo sexual.

Os “meninos do garrafão”ii ocupam a rua para mostrar a conformação de um particular objeto oral que coloniza um espaço que não é seu e no qual deixam, por essa via, suas marcas. Não se trata de judicializá-los nem de dar tanto espaço a tertulianos que pregam o pior sobre eles. Deve-se oferecer a eles lugares habitáveis que sejam capazes de regular ao seu modo. Os jovens de hoje se queixam de que não podem aceder a certos lugares por falta de recursos. Por acaso, o incipiente movimento pela moradia não diz algo sobre isso? Esses jovens sabem que correm o risco de transformar-se em resto social e contra isso lutam, ainda que, às vezes, de maneiras confusas. Não querem ser o resto no prato dos políticos neoliberais.

c) Hoje, pode-se ver que, por detrás da promoção da imagem do corpo, há uma profunda recusa do mesmo. O individualismo crescente e a solidão que dele deriva não expõem as palavras que são o caminho necessário para o encontro com o outro. O celular, que é o parceiro da moda, cada vez menos é usado para falar. Mais além da economia nas contas telefônicas, “fazer uma perdida” é quase um modelo de comunicação: a comunicação com chamadas perdidas. Deve-se assinalar que o amor se nutre de palavras e que sempre operou como véu sobre o gozo para assegurar o encontro com o parceiro. A dimensão do amor aparece, hoje, modificada, o que torna, às vezes, mais difícil o contato corpo a corpo.

Miller retoma o termo de Lacan “rechaço do corpo”, porém o modaliza em diferentes aspectos. O rechaço do corpo do outro como parceiro sexual e o rechaço do próprio corpo com todos os matizes que isso apresenta, inclusive, o filho… Creio que se pode falar também sobre o rechaço pelas crianças e adolescentes e por tudo o que encarna modalidades de gozo que questionam a ordem estabelecida.

A educação fazia, pela via da cultura, esse caminho de palavras que não só agita os corpos no abraço, mas também os pacifica. Hoje, fala-se, até a saciedade, sobre a violência na escola, sem se perceber que esse problema é efeito do desanodamento da educação e da subjetividade. Quando se perde o efeito regulador da educação sobre o corpo — não pela via disciplinar, mas pelo interesse, pela curiosidade, que promove o patrimônio cultural — só resta acionar o mero controle social. A disciplina sobre o corpo não golpeia mais com palmatória. Por trás da máscara do body building e da realidade dos corpos empilhados e desnutridos nos campos de refugiados e nos cayucosiii, atinge com as distintas estratégias da biopolítica, com as quais a educação frequentemente colabora sem sabê-lo. O cool é, hoje, farmacopeia, a Supernanny propõe castigos públicos, e, há pouco, foi denunciada uma residência para menores em Girona subvencionada pelo governo suíço. Os rebeldes, encerrados em jaulas como castigo, eram tratados fora das próprias fronteiras. O modelo guantânamo se estende e pede “time out”.

Propostas

É verdade que parece haver certa tendência catastrofista quando se reflete sobre as mudanças. Tudo o que não se entende seria um anúncio potencial de “fim do mundo” e, na realidade, o é… Trata-se de um “mundo” que acaba para dar passagem a um novo, que, embora não seja conhecido, se anuncia de muitas maneiras.

A autoridade modificou-se, já se disse, porém isso não pode ser visto como uma catástrofe; trata-se, apenas, de se verificar que modelo de autoridade convém para esse novo tempo. Sabe-se que vários modelos já caducaram, mas não há dúvidas de que limites são sempre necessários. A ideia de limite tem a ver com a possibilidade de se dizer não a isto, mas sim à outra coisa. Deve-se saber que tanto o autoritarismo, como o “deixar fazer sem limite” são as duas faces do pior, ou seja, de um funcionamento superegoico. Trata-se de conceber, então, a autoridade como um instrumento que só poderá ser reconhecido se ajuda o sujeito a construir algo a que possa agarrar-se e que lhe permita, dessa maneira, encontrar o caminho do desejo.

É verdade que o saber foi depreciado, entretanto, é bastante compreensível que isso tenha acontecido porque os atuais suportes de armazenamento o mantêm a nosso alcance, sem necessidade de fixá-lo. É o que faz uma adolescente que começa a escrever em seu celular durante uma das primeiras entrevistas. Quando lhe pergunto o que ela está fazendo, diz-me que guarda algumas das coisas que foram ditas durante a sessão em um arquivo, assim, poderá consultá-lo quando quiser, sem necessidade de usar a sua própria memória. Diante disso, que tipo de saber deve-se pôr em jogo? Pode-se pensar em um saber minimalista que permita construir redes, não somente conectar-se, mas ler de link em link, gerar produtos e saber alocá-los.

Fala-se muito sobre a função do educador que “causa” o interesse do sujeito para provocar seu consentimento à oferta educativa. Hoje, isso se obtém quando se consegue descompletar, quer dizer, produzir um vazio no campo do saber, nunca se colocando em situação de demanda, perguntando à criança o que ela quer. A anorexia de saber produzida pelo excesso só pode ser tratada com um “menu degustação”, pequenos pratos variados que o sujeito pode reconstruir com seus tempos tão diferentes da pressa do sistema. É interessante apreciar a resistência pela via do ritmo lento que muitos adolescentes e crianças apresentam, não querendo ser forçados pela voracidade do tempo que a eles se impõe.

Para a construção da subjetividade, é preciso haver um desejo que não seja anônimo, e se pode dizer que essa é uma questão crucial também para a educação. Isso tem como resultado a necessidade de contar com educadores que vivifiquem a transmissão e com sujeitos que possam saborear os saberes. Assim, abre-se para cada um a particularidade de seu regime de satisfações, e isso é o que se aproxima da felicidade. Afinal, como não perceber que a tão atual busca pela felicidade aponta para o fato de que, hoje, se vive com um menos de satisfação? Os corpos sofrem, assim, pela emergência de um gozo não regulado. Por isso, as políticas repressivas são caracterizadas pelo ódio ao gozo, e a psicanálise sabe que, se o gozo é atacado diretamente, produz-se a transferência negativa, em termos atuais, instaura-se a violência. O gozo deve envolver-se com palavras, interpelar-se com semblantes, distender-se com jogos e esportes, ressoar na música, e, ali, o sujeito elegerá, a partir da temática fantasmática, a que porto se atar, com que meios, sintomaticamente, se sustentar.

 


 

Referências
ARENDT, H. “A crise na educação”, In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 221-147.
FREUD, S. (1930). “O mal-estar na civilização”, In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1990, vol. XXI, p.81-171.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Paidós: Buenos Aires, 2005.
NÚÑEZ, V. “Hacia una reelaboración del sentido de la educación. Una perspectiva desde la Pedagogía Social”, In: Educación no formal. Fundamentos para una praxis. Ministerio de Educación y Cultura de Uruguay, 2006.
Tradução: Kátia Mariás Pinto
Revisão da tradução: Márcia Mezêncio
1 “La educación y los cuerpos de hoy”. Conferência realizada na Universidade de Deusto em 7 de abril de 2006. Publicada originalmente em Freudiana, Revista de psicoanálisis de la ELP – Catalunya, n. 47, Barcelona, 2006. p.31-37.
2 N.T.: “Chicos del botellón”. Refere-se ao costume, principalmente entre os jovens, de consumir grandes quantidades de bebidas alcoólicas em vias públicas, comum na Espanha desde finais do século XX.
3 N.T.: Embarcação indiana muito pequena, menor que a canoa, na qual não cabe mais do que uma pessoa.

Hebe Tizio
Hebe Tizio – Psicanalista em Barcelona, Membro da AMP. E-mail: hebe@tizio.e.telefonica.net



Que Lugar Para O Analista Na Experiência Com A Psicose?

FERNANDO FERREIRA LINHARES

 

Na contemporaneidade, assiste-se à infinita pluralidade de apresentações da psicose, e a psicanálise é convocada para essa experiência nos consultórios, nas instituições ou nas discussões interdisciplinares. Então, qual é o lugar do analista na experiência com a psicose?

Em Freud, a aplicação da teoria da libido ao Caso Schreber origina a categoria “neuroses narcísicas”, que corresponde ao diagnóstico estrutural de psicose. Freud explica que o psicótico “retira das pessoas e coisas do mundo externo a sua libido, sem substituí-las por outras na fantasia”, e “a libido retirada do mundo externo é (foi) dirigida ao Eu” (FREUD, 1914/2010, p. 15-16), sendo incapaz de se ligar ao “médico”, impossibilitando a transferência. Freud comenta que, na “técnica analítica”, “a transferência é uma necessidade inevitável” (FREUD, 1905/1980, p. 113), logo:

[…] aqueles que sofrem de neuroses narcísicas não têm capacidade para a transferência […] sua libido objetal deve ter-se transformado em libido do ego […] por essa razão, são inacessíveis aos nossos esforços e não podem ser curados por nós (FREUD, 1917/1980, p. 520).

Já Lacan afirma: “[…] se a questão do louco pode se esclarecer pela psicanálise, bem, isso seria, obviamente, a partir de outro centramento […]” (LACAN, 1967/2012, p. 6), e “a psicose é isto diante do que um analista não deve recuar em nenhum caso” (LACAN, 1977/2012, p. 19, tradução do autor), abrindo a possibilidade de um estatuto de transferência diferente da neurótica e desviando a questão da aplicabilidade da psicanálise para sua utilidade na “experiência” com a psicose.

Em 1936, O estádio do espelho como formador da função do eu, releitura do narcisismo de Freud, reconhece “nas formas mentais que constituem as psicoses, a reconstrução de estádios anteriores do eu” e localiza a paranoia no “estádio do objeto que lhe é correlativo” (LACAN, 1938/2008, p. 66). Sob influência hegeliana, o conceito do estádio do espelho é desdobrado para aquele em que o desejo surge a partir do desejo do outro. A experiência analítica é considerada então um processo dialético, e o psicótico, um sujeito que renunciou à dialética da palavra, o que impede seu tratamento analítico:

Na loucura […] convém reconhecermos […] a liberdade negativa de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer, ou seja, aquilo que chamamos obstáculo à transferência, e […] a formação singular de um delírio que […] objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética (LACAN, 1953/1998, p. 281).
A linguística estrutural de Saussure e Jakobson é utilizada por Lacan no Seminário III para fazer sua leitura do Caso Schreber, estabelecendo o conceito de Nome-do-Pai (NP). Nesse seminário, a foraclusão é descrita como um rechaço fora do simbólico que implica o surgimento de algo no real, e a foraclusão do NP, como determinante da psicose. O fora do Édipo freudiano se torna a foraclusão do NP, responsável pela não constituição da significação fálica. Aqui a psicose é estrutural, não implica um desencadeamento. A estabilidade, então, é possível, determinada, segundo Lacan, por mecanismos imaginários; e também é possível a reestabilização em que a metáfora delirante supre a metáfora paterna ausente.

O desencadeamento psicótico é explicado pela exposição do sujeito a um acontecimento que requeira uma resposta dependente da significação fálica; o encontro com “Um-pai” não simbolizável, quando “o NP é (ser) chamado pelo sujeito no único lugar onde poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve” (LACAN, 1955-1956/1988, p. 584) Esse “Um-pai” deve-se situar “na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a‘” (LACAN, 1955-1956/1988, p. 584), abalando o mecanismo imaginário que estabilizava a estrutura por fornecer ao sujeito uma identificação.

Nesse seminário, Lacan subverte o termo “secretário do alienado” para descrever a posição do analista que dirige o tratamento sem ocupar lugar de mestria, acolhendo os significantes que o sujeito traz sem remetê-lo, pela interpretação, a uma nova significação. O analista busca identificar os mecanismos capazes de sustentar a identificação imaginária estabilizadora da estrutura. Na psicose desencadeada, essa posição não se invalida, pois pode trazer à tona significantes pertinentes para a reestabilização, capazes de dar contorno ao que não foi simbolizado, e retorna no real. Com produção delirante em curso, o analista objetiva a ressignificação da experiência delirante na transferência. Não se preconiza a remoção do delírio, modo singular de o sujeito lidar com o real não simbolizado.

Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan localiza o objeto a: “o campo da realidade, (e) este só se sustenta pela extração do objeto a” (LACAN, 1955-1956/1998, p. 559-560). Os Seminários X e XI elucidam que, na constituição do sujeito, há a alienação no universo significante seguida da separação do objeto a, ordenada pelo NP. “O psicótico leva o objeto a no bolso” traduz a não extração do objeto a quando o NP está foracluído. Se essa extração sustenta o campo da realidade, apresentam-se, na psicose, perturbações na constituição da realidade.

O conceito de gozo é originário do “para-além do princípio do prazer”, a pulsão de morte. O campo do gozo é aparelhado pela linguagem: os discursos “tratam” o gozo e engendram o laço social. Esse aparelhamento é condicionado à extração do objeto a, que representa, em um retorno ao Mal-estar na civilização, os objetos das pulsões aos quais a civilização exige que o homem renuncie para integrá-la. Se a extração do objeto a trata o gozo, o não aparelhamento do campo do gozo leva à descrição da vivência psicótica como uma invasão do gozo (não tratado).

Em Apresentação da tradução francesa das Memórias do Presidente Schreber, Lacan cita “[…] (n)a polaridade mais recente a ser promovida aqui, do sujeito do gozo ao sujeito que representa o significante para um significante sempre outro […]” (LACAN, 1966/2012, p. 2, tradução do autor). Esse trecho diferencia sujeito do significante, representado por um significante a outro significante, em que o significante opera como barreira ao gozo; e sujeito do gozo, um significante apenas, S1, subjugado pelo gozo, na posição de objeto do Outro.

Aqui, o tratamento pretende obter um influxo do simbólico sobre o real, a construção de uma barreira ao gozo e sua reintrodução no discurso. Para tal, o analista abstém-se de ocupar o lugar de Outro do gozo, que tem todas as respostas, e é, empresta ou localiza significantes capazes de funcionar como elemento simbólico na construção daquela barreira, possibilitando a passagem de sujeito do gozo a um sujeito limitado pelo significante. O laço analítico é estabilizador se o analista não colocar o sujeito na posição de objeto a ser cuidado e apontar que o próprio sujeito deve tomar para si a regulação do gozo.

O Seminário XX traz a evolução dos conceitos de real, simbólico e imaginário como registros, na escrita do nó borromeu. A escritura borromeana decorre do acento dado ao real no final da obra de Lacan, pois suporta um real de estrutura. No Seminário XXII, Lacan apresenta o nó borromeu de quatro elementos, acrescentando o quarto elo indispensável para sua estabilização:

Se vocês se lembram do modo sob o qual eu introduzi este quarto elemento em vista dos três elementos que são supostos, cada um, constituir qualquer coisa de pessoal, o quarto será isto que eu anuncio este ano como o sinthoma (LACAN, 1975-1976/2005, p. 51-52, tradução do autor).
O “nó de quatro parte de uma disjunção concebida como originária do simbólico, do imaginário e do real” (LACAN, 1974-1975/2012, p. 30, tradução do autor); assume a foraclusão como estrutural e a estabilidade do nó borromeu a três como uma impossibilidade, explicitada, na neurose, com as formações sintomáticas, e, na psicose, com sua irrupção. Inicialmente, “[…] o quarto (elo) é o que […] suporta o simbólico daquilo por que ele é efetivamente feito, a saber, o NP” (LACAN, 1974-1975/2012, p. 68-69, tradução do autor); é o que atravessa o sujeito com a marca da castração. Depois, o NP se pluraliza, pois, se a foraclusão é estrutural, o elemento que estabiliza o nó varia conforme a estrutura clínica. Essa tentativa de manter unidos os registros R, S e I é definida como “suplência”.

Na teoria dos nós, a psicose é explicada por formas de enodamento não borromeanas e por falhas no enodamento borromeano, com maneiras diversas de suplência, como a metáfora delirante, a formulação paranoica e o sinthoma. O Seminário XXIII apresenta James Joyce e seu uso da linguagem como paradigma da psicose, um exemplo de falha de enodamento borromeano em que o elo I fica solto. Esse evento topológico é traduzido pelo episódio autobiográfico de Retrato do artista quando jovem, em que Stephen Dedalus, alterego de Joyce, após levar uma surra, pergunta-se por que o evento não lhe causava mais raiva: “[…] tinha sentido que certa força o houvera despojado dessa súbita onda de raiva tão facilmente como um fruto é despojado de sua mole casca madura” (JOYCE, 1998, p. 87-88)

O estádio do espelho descreve a passagem do corpo fragmentado para a imagem do corpo unificado, com aquisição de consistência imaginária. O episódio descrito evoca uma dissolução imaginária, o deslizar do elo I solto do nó, deslizamento para fora da cena quando o sujeito é convocado a responder com o corpo em sua consistência imaginária. No Seminário XXIII:

Mas a forma, em Joyce, de ‘deixar cair’ a relação com o corpo próprio é completamente suspeita para um analista, porque a ideia de si como corpo tem um peso. Isso é o que precisamente se chama ego. Se o ego é dito narcisista, é bem porque, em certo nível, há algo que suporta o corpo como imagem. No caso de Joyce, o fato de que esta imagem não interessa na ocasião, não assinala que o ego em Joyce tem uma função toda particular? (LACAN, 1975-1976/2005, p. 150, tradução do autor).
Se Joyce apresenta uma falha no enodamento borromeano, por que não houve o desencadeamento de sua psicose? Lacan propõe que em Joyce há uma suplência: sua escrita, sua condição de artista, lhe restitui uma dimensão corporal, demonstrada na descrição da relação do artista com sua imagem, em Ulisses: “Assim como nós, ou mãe Dana, tecemos e destecemos nossos corpos — disse Stephen — dia após dia, suas moléculas se movendo de um lado para o outro, assim também o artista tece e destece sua imagem” (JOYCE, 2010, p. 434).

Em Joyce, a construção da imagem corporal não remete à do estádio do espelho, mas a uma tessitura: Joyce tece a obra literária que impede a dissolução imaginária do corpo. E se o ego é a ideia que se tem de si como um corpo, a escrita funciona como um ego, é seu sinthoma.

Na etimologia da palavra “symptôme” (sintoma), “ptôme” significa queda. Para Lacan, sintoma é aquilo que se espera que caia durante a análise, já “sinthome” (sinthoma) é o que não cai, está fixo em torno da falta primeira. Ambos são suplências, porém estabilizam o nó borromeu de formas distintas. O sintoma é uma metáfora, produz sentido, é uma resposta particular à “não relação sexual”. O sinthoma é suplência da falta estrutural da relação sexual, tem função de gozo, define-se “através de uma relação não mais aos efeitos de significação, […] mas no registro de uma escritura, que é o modo pelo qual cada um goza do inconsciente à medida que o inconsciente o determina” (LAURENT, 1992, p. 49). O sinthoma funciona como S1, exerce função de nomeação do sujeito, que, como Joyce, não é sujeito do significante, mas sujeito do gozo. Nessa acepção, em Joyce, a linguagem serve a algo mais que à produção de sentido, há gozo no significante.

O sinthoma de Joyce mantém o nó estável. Aqui, a direção do trabalho analítico seria favorecer a estabilização da estrutura pelo enlaçamento fixo dos registros a partir do quarto elemento; favorecer a identificação ao sinthoma, que permite ao sujeito a criação de um laço social inédito. O analista deve evitar produzir S1s, que engendrariam o discurso do mestre. O S1 deve surgir do sujeito, pois apenas esse S1 articulado ao gozo possibilita a emergência do sinthoma.

O psicótico pode ocupar duas posições: na posição de objeto de gozo do Outro, pode tomar o analista como Outro gozador, lugar que o analista deve-se recusar a ocupar; na posição de saber delirante, tende a essa produção, o deslizar do elo I, e o analista deve intervir apelando ao mecanismo imaginário que impede esse deslizamento. Esse “secretariado sinthomático” (BENETI, 1995) permite o deslocamento do psicótico dessas posições, para que o saber psicótico seja colocado a trabalho a fim de produzir seu sinthoma e possibilitar a extração do gozo.

A grande amplitude dessa teoria não pode alcançar toda a diversidade da experiência com a psicose, pois esta comporta o sujeito. O estudo dessa teoria permite ao clínico servir-se de cada etapa da evolução desses conceitos, consciente de que a experiência com a psicose exige não apenas conhecimento teórico, mas faz um chamado à invenção.

 

1 Sob a orientação de Graciela Bessa.

 


 

Referências
BENETI, A. “Do discurso do analista ao nó borromeano: contra a metáfora delirante”. Opção lacaniana online, n. 3, 2005. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n3/textod.asp. Acesso em: 26/07/2012.
FREUD, S. (1905 [1904]). “Sobre a psicoterapia”, In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980, vol. VII, p. 263-278.
FREUD, S. (1914). “Introdução ao narcisismo”, In: ______. Sigmund Freud Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, vol. 12, p. 13-50.
FREUD, S. (1917 [1916-1917]). “Conferência XXVII – Transferência”, In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980, vol. XVI, p. 503-521.
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. São Paulo: Publifolha, 1998.
JOYCE, J. Ulisses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
LACAN, J. (1938). Complexos familiares. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 238-324.
LACAN, J. (1955-1956). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 537-590.
LACAN, J. (1966). “Présentation de la traduction de Paul Duquenne des Mémoires d’un névropathe de D. P. Schreber”. Cahiers pour l’analyse, n. 5, p. 69-72. Disponível em: http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan60.php. Acesso em: 12/07/2012.
LACAN, J. (1967). Petit discours aux psychiatres. Conferência inédita de 10/11/1967. Disponível em: http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan60.php. Acesso em: 16/06/2012.
LACAN, J. (1974-1975). El Seminário, livro XXII: RSI. Inédito. Disponível em: http://lacan.orgfree.com/lacan/livros.htm. Acesso em: 10/07/2012.
LACAN, J. (1975-1976). Le Séminaire, livre XXIII: le sinthome. Paris: Éditions du Seuil, 2005.
LACAN, J. (1977). Ouverture de la section clinique. Disponível em: http://www.ecole-lacanienne.net/documents/1977-01-05.doc. Acesso em: 16/06/2012.
LAURENT, É. Lacan y los discursos. Buenos Aires: Manantial, 1992.

 


Fernando Ferreira Linhares
Psiquiatra, aluno do curso de psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, psiquiatra do CAPS-ad de Nova Lima, do CAPS III de Santa Luzia e do serviço de saúde mental de Carmópolis de Minas. E-mail: fernando-linhares@ig.com.br.



Elaborações Psicanalíticas Sobre A Melancolia E A Mania

ADAUTO CLEMENTE

 

Em seus primeiros trabalhos, Freud (1895/1975) comparou a melancolia a uma “anestesia psíquica”, decorrente de diminuição da produção ou de evasão da energia somática sexual, como uma “hemorragia interna”, diminuindo a reserva disponível de libido. Ou seja, a melancolia estaria ligada à perda de libido.

O avanço posterior da teoria freudiana passou a ter como foco as “psiconeuroses”, e o estudo do afeto depressivo só foi retomado por Freud em “Luto e melancolia” (1917/1975), com uma elaboração tópica sobre tais estados. Ambos constituiriam respostas à perda do objeto, mas, na melancolia, observava-se uma perturbação da estima de si, habitualmente ausente no luto. A perda desencadeante parecia ter valor apenas ocasional e poderia ter natureza diversa: um objeto amado, perdas de natureza mais ideal e, por fim, situações em que não se consegue distinguir claramente o que foi perdido, o que estaria na base do mecanismo da melancolia. Encontram-se, nesse texto, três aspectos que Freud considerou essenciais na melancolia: a perda do objeto, o retorno da libido ao eu e a ambivalência.

O trabalho do luto supõe o desligamento gradual da libido investida no objeto perdido, permitindo que ela seja deslocada para outros objetos. Na melancolia, tal ação psíquica não se efetiva. A libido não é transferida a outros objetos, mas se volta para o eu, identificado com o objeto perdido. A perda do objeto se converte em perda do eu e a hostilidade contra o objeto perdido passa a ser dirigida contra o próprio eu, sob a forma de recriminações e autoagressividade. O suicídio do melancólico seria uma tentativa de atingir nele mesmo esse objeto perdido com o qual estava narcisicamente identificado.

Freud atribuiu a origem da tendência melancólica a perturbações na relação com os objetos que remontam primórdios do processo de constituição do eu, daí sua localização como uma “neurose narcísica”. O momento constitutivo da configuração do objeto ocorre conjunta e concomitantemente à constituição do eu. Esse é o momento crucial que também é destacado na posição depressiva concebida por Melanie Klein e no estádio do espelho explorado por Lacan.

A posição depressiva representa o momento em que o bebê deixa de se relacionar somente com o seio, as mãos, a face, os olhos da mãe, como objetos separados (parciais), e reconhece a mãe como um objeto total, com seus aspectos bons e maus. Concomitantemente à introjeção de objetos cada vez mais totais, o ego também se torna mais integrado, menos dividido nos seus componentes bons e maus, e o bebê se defronta com a própria ambivalência. A experiência da depressão se manifesta no temor de que os próprios impulsos tenham destruído o objeto amado, mobilizando, no bebê, a vivência da culpa, ou seja, a necessidade de reparar o objeto de suas pulsões e fantasias destruidoras (SEGAL, 1975).

Em circunstâncias favoráveis, as repetidas experiências de luto e reparação, de perda e recuperação, gradualmente, modificam a crença do bebê na onipotência de seus impulsos destrutivos. Nisso consistiria a elaboração da posição depressiva. Vivências posteriores de perda podem reativar essa experiência depressiva infantil. Se a posição depressiva foi alcançada, ou ao menos parcialmente elaborada, as dificuldades encontradas no desenvolvimento posterior do indivíduo não serão de natureza psicótica, mas neuróticas. Portanto, para Melanie Klein, o desenvolvimento do sentido de realidade psíquica é inseparável do sentido de realidade externa. Concepção semelhante pode ser encontrada na formulação de Lacan sobre o estádio do espelho.

Segundo Lacan (1949/1998a), a criança organiza e unifica as sensações do corpo fragmentado em uma totalidade por meio de uma imagem especular, em um processo de ancoragem que torna possível a constituição do “sentimento de si”. A criança busca sinais de confirmação de sua imagem unificada que lhe chegam pelo olhar, pela voz e pelos gestos maternos. Ao integrar-se nessa imagem unificada, porém, a criança também sofre uma alienação, pois essa imagem especular que a constitui lhe é exterior. Nesse processo, permanece um “resto”, que resiste a essa especularidade, uma falta que clama pelo preenchimento e que sustenta a condição de desejante do ser humano. O sujeito deseja o que lhe falta; não havendo falta, não há desejo (PERES, 2006).

A resposta a essa falta será distinta em função da presença ou não do significante fálico. Se ele é operante, frente ao vazio da falta, é feito um apelo à ordem significante. Assim, no luto neurótico, o trabalho significante repara a perda, e o objeto será inscrito na fantasia. Na melancolia, entretanto, devido ao elemento forclusivo, a resposta não se faz por um trabalho significante, e ocorre identificação com o objeto perdido. Freud considerava que a libido circula do eu aos objetos, podendo ser investida ou retirada dos mesmos. No entanto, existe uma resistência natural da libido em desligar-se, e algo da libido sempre resta no eu, sem representação (MATTOS, 2009). Assim é que Lacan descreve o “objeto a” como “a reserva derradeira e irredutível da libido” (LACAN, 2005, p. 121), ou como aquilo “que resta de irredutível na operação do advento do sujeito” (LACAN, 2005, p. 179). A identificação do melancólico a esse objeto “resto” da operação de constituição do sujeito aponta sua posição de objeto a, na sua vertente de resto inútil do simbólico (QUINET, 1999). Assim, Lacan deslocou as teorias sobre a relação de objeto para uma teoria sobre a falta de objeto.

A ambivalência foi outro aspecto da melancolia destacado por Freud, como resultado da emergência dos conflitos inconscientes de amor e ódio ao objeto. Para Abraham (1911/1970), a ambivalência do melancólico é determinada pelo desapontamento sofrido junto ao objeto na fase oral, que expõe o sujeito a efeitos destrutivos nas fases subsequentes: severidade, culpa e incansável necessidade — e seu irreparável fracasso — em reintegrar o objeto. Isso o levaria a um sadismo exacerbado e afastado da consciência, que retornaria nos sonhos, em atos sintomáticos, nas ideias de culpa ou em tendências masoquistas, o que explicaria a atitude passiva e o prazer que os melancólicos parecem obter no próprio sofrimento.

Em “O Eu e o Isso” (FREUD, 1923/1975), Freud apresenta novas concepções sobre a melancolia, à luz da teoria estrutural do funcionamento psíquico: ela estaria relacionada às exigências de um supereu extremamente enérgico, que ataca implacavelmente o eu. O supereu se converte, então, em ponto de confluência das tendências mortíferas, daí a máxima que “o supereu do melancólico é pura cultura de pulsão de morte”. O componente de culpabilidade decorreria das relações do eu com o ideal do eu: o eu assume culpas e aceita submeter-se a castigos, por ter introjetado e por estar identificado com o objeto sobre o qual recai a ira do supereu. O sentimento de culpabilidade não alcança tamanha dimensão nos neuróticos, porque eles apelariam a outros mecanismos para defender-se do sadismo do supereu, por exemplo, recorrendo ao Outro para regular o gozo ou à absorção do gozo pelo simbólico (PERES, 2003).

Em “Kant com Sade” (LACAN, 1962/1998b), Lacan descreve a “dor de existir em estado puro” do melancólico. A dor de existir é aquilo que retira do sujeito toda a ilusão, todo o sentido e todo o apego ao objeto. Contra seus golpes, a função do desejo se exerce e confere substância à existência. A dor de existir é uma realidade em todas as estruturas clínicas, mas se revela com tal extensão e intensidade no melancólico que a própria “realização da vida pode confundir-se com o anseio de pôr fim a ela”. Privado da função protetora do desejo, o sujeito melancólico é confrontado com a dor de existir em estado puro e pode escolher a morte como solução (SANTIAGO, 2009).

Em “Televisão”, Lacan (1974/2003) alinha a tristeza em uma perspectiva ética, definindo-a como uma covardia moral. Ao contrário do que faz supor o termo médico depressão, tal estado não pode ser reduzido à sua base no corpo e nem uniformizado quanto à simples gradação da causa e de seus efeitos. O termo depressão tem caráter pouco discriminativo em termos de diagnóstico. Diante de um estado depressivo, seria preciso delimitar uma covardia repressora, na qual o “não quero saber nada sobre isso” não seria incompatível com a admissão do inconsciente; de outra, a covardia forclusiva própria das psicoses.

Várias manifestações melancólicas tornam-se inteligíveis quando entendidas sob a perspectiva dos efeitos da foraclusão. Colette Soler (2010) propõe sua ordenação em dois grupos: os fenômenos de mortificação e o delírio de indignidade.

A entrada da linguagem implica uma subtração de vida, revelada na neurose pela castração, mutilação parcial do gozo que será compensada com o apelo aos objetos. Em outras palavras, o menos-de-gozo da castração condiciona a busca neurótica por objetos mais-de-gozo. Nas psicoses, a instância da perda se absolutiza, e a subjetivação posterior dessa perda primária define a diferença entre elas. Na melancolia, essa falta constitutiva é subjetivada como dor moral e adquire o sentido de culpa, assumida pelo sujeito como uma certeza não dialetizável, daí o delírio de indignidade. O melancólico crê não possuir nada daquilo que poderia dar valor à vida (amor, fortuna, força, coragem, etc.). Ao contrário do paranoico, que é fundamentalmente inocente e identifica o gozo no lugar do Outro ao qual dirige suas recriminações, o melancólico dirige acusações a si mesmo. A autodifamação seria uma versão própria do empuxo-à-mulher nos melancólicos, versão assoladora porque desvela um gozo masoquista que não encontra Outro com quem fazer um par. De modo que, quando o sujeito ainda espera um castigo externo, isso não é de todo desfavorável, pois essa expectativa ainda o enlaça a um Outro que seja capaz de expiar sua culpa (SOLER, 2010).

Lacan caracterizou a alucinação como fenômeno paradigmático de retorno do significante no real, típico das psicoses. Outros fenômenos podem ser entendidos pelo mesmo mecanismo, ou seja, o retorno no real também pode apresentar-se como perplexidade, anarquia da intencionalidade, desregulação dos ritmos vitais, alterações na vivência do tempo, fenômenos que são observados em todas as psicoses. Diferentemente de outras psicoses, tipicamente desencadeadas pelo encontro com Um-Pai (LACAN, 1958/1998, p. 584), a melancolia é frequentemente desencadeada por uma perda, que suscita tais experiências de mortificação, como a inibição psicomotora, a insônia e a anorexia. No melancólico, tais manifestações são diferentes de seus homólogos neuróticos, pois desvelam a perturbação vital produzida pela modificação libidinal, com retorno do vetor do desejo sobre o próprio sujeito (SOLER, 2010).

Freud reconheceu a tendência da melancolia em transformar-se em seu estado sintomático oposto, a mania. Os textos psicanalíticos não apresentam, sobre a mania, teorias tão elaboradas como para a melancolia. Comumente, as explicações analíticas da melancolia foram estendidas à mania, como uma antítese. A mania representaria um triunfo do eu sobre a perda do objeto, deixando libido livre para investir vorazmente em novos objetos.

Do ponto de vista estrutural, a alternância entre melancolia e mania foi entendida como uma liberação do eu subsequente à cruel supressão do eu pelo supereu (FREUD, 1927/1975). A elação maníaca será comparada à festa, à alegria da transgressão, à liberdade libidinal; resultado da interrupção momentânea da ação censora do ideal do eu. Ela corresponderia ao triunfo da coincidência temporária do eu com o ideal do eu, interrompendo a repressão e o gasto psíquico que ela exigia, com liberação de energia, convertida em afetos (FREUD, 1921/1975).

Para Abraham, o maníaco estaria arrebatado por suas pulsões orais, entregue a uma embriaguez de liberdade e grandeza, decorrentes do enfraquecimento da repressão. Melanie Klein trouxe a noção de “defesa maníaca” como uma negação da realidade psíquica, sem distinguir a negação repressiva e a negação forclusiva (SOLER, 2010).

Lacan (1974/2003) definiu a excitação maníaca como “o retorno no real daquilo que foi rechaçado de linguagem”. Portanto, o mesmo triunfo da instância negativa da linguagem pode tomar a forma do abatimento mortífero da melancolia ou da excitação maníaca. Porém, o próprio Lacan propôs uma distinção entre ambas no que se refere à função do objeto a (LACAN, 2005, p.364-365). Na mania, o que está em causa é a não-função do objeto a, ou seja, o sujeito não se apoia nesse objeto, ficando entregue à metonímia lúdica e sem limites da cadeia significante, bem exemplificada pelos fenômenos de fuga de ideias (FERRARI, 2006).

 


 

Referências
ABRAHAM, K. (1911). “Notas sobre as investigações e o tratamento psicoanalítico da psicose maníaco-depressiva e estados afins”, In: ______. Teoria psicanalítica da libido: sobre o caráter e o desenvolvimento da libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p.32-50.
FERRARI, I. F. “Melancolia: de Freud a Lacan, a dor de existir”, Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, vol.1, n.6, 2006, p. 105-115.
FREUD, S. (1895). “Los orígenes del psicoanalisis. Manuscrito G: Melancolia”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo IX, p. 3.503-3.508.
FREUD, S. (1917). “Duelo y melancolia”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VI, p. 2.090-2.100.
FREUD, S. (1921). “Psicologia de las masas y analisis del yo”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VII, p. 2.563-2.610.
FREUD, S. (1923). “El yo y el ello”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VII, p. 2.701-2.728.
FREUD, S. (1927). El Humor, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VIII, p. 2.997-3.000.
LACAN, J. (1949). “O estádio do espelho como formador da função do eu”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a, p. 96-103.
LACAN, J. (1962). “Kant com Sade”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998b, p.776-803.
LACAN, J. Seminário, livro X: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, J. (1974). “Televisão”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 508-543.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 537-590.
MATTOS, C. P. “Um tempo para a perda: articulação da função do objeto a”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.29, 2009, p. 59-62.
PERES, U. T. “Depressão e melancolia”, In: Psicanálise passo a passo 22. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
QUINET, A. “Fenômenos elementares e delírio na melancolia para Jules Séglas”, In: ______. Extravios do desejo: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Marca D’Água, 1999, p.15-84.
SANTIAGO, J. “A dor de existir melancólica”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.29, 2009, p.45-52.
SEGAL, H. “A posição depressiva”, In: ______. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.80-94.
SOLER, C. Estudios sobre las psicosis. Buenos Aires: Manantial, 2010.
1 Sob orientação de Francisco Paes Barreto.

 


 

Adauto Clemente
Médico graduado pela UFJF, com residência em Psiquiatria pela UFMG e em Psiquiatria da Infância e Adolescência pelo CPP (atual CEPAI) – Fhemig. Doutorando em Saúde Coletiva pelo Centro de Pesquisas René Rachou da Fiocruz (bolsista da CAPES). E-mail: adautoclemente@yahoo.com.br



O Objeto Autístico E Sua Função No Tratamento Psicanalítico Do Autismo

PAULA RAMOS PIMENTA

 

 

Qual o lugar dos objetos para o autista? Por que uma aparentemente banal manipulação de objetos pode trazer um efeito apaziguador para a crise autística?

Tais questões, essenciais por surgirem da experiência, guiam minha busca de formalização nesta tese. O estudo sobre as diferentes concepções do autismo e suas decorrentes propostas de tratamento, que empreendi no mestrado, promoveu a fagulha inicial deste trabalho ao chegar à solução encontrada por Temple Grandin por meio de um objeto por ela construído. Grandin, mundialmente conhecida por ser, concomitantemente, autista e Ph. D. em psicologia animal, defende publicamente a importância que tem sua “máquina de apertar”[2] para ajudá-la a manter-se mais sociável e afastada de intensas crises.

Da manipulação de objetos à construção de um especial, como recurso protetor contra uma angústia aniquiladora, vê-se que os objetos são alçados a um lugar insigne pelo autista. O estudo de seus atributos, bem como de suas funções, implica em reconhecê-los como essenciais para a orientação de tratamento dos autistas. A tese aqui defendida segue nesse caminho, acrescendo-o pela concepção de objeto proposta pela psicanálise lacaniana. O objeto passa a ter um lugar basilar para a construção do corpo, ou para supri-la quando ela não ocorreu, como sucede nos casos de autismo.

Este trabalho conduz-se por um percurso teórico que parte da noção de objeto como promotor do alheamento autista do mundo e encontra a aparente formulação paradoxal sobre a função essencial desses objetos como apoio para a interação social do autista.

A metodologia utilizada é o Estudo de Caso, sendo o campo da pesquisa composto pela clínica da autora, que atende crianças e adolescentes autistas desde 1996, e por casos da literatura psicanalítica e outras. Uma especificidade que traz riqueza à investigação psicanalítica no âmbito da universidade foi aqui posta em prática: os casos são convocados para problematizar uma questão, a ser respondida teoricamente. Em poucas passagens da tese eles se prestam a ilustrar uma elaboração teórica anteriormente proposta.

Uma observação suplementar refere-se ao termo “criança”, preferido como opção de referência ao autista. Sabe-se que há autistas adolescentes e adultos, no entanto o termo criança, generalizável no texto para todos eles, não se mostra inadequado, por se supor que o tratamento é iniciado na infância, uma vez que as manifestações sintomáticas do autismo surgem até os três anos de idade.

O tema do autismo tem estado atualmente em pauta, no Brasil e no mundo. Associações de pais de autistas procuram obter das autoridades envolvidas um retorno científico e político sobre as dificuldades de seus filhos. Coagem os cientistas a se definirem por tratamentos mais efetivos para o autismo, apoiando-os, por meio de fundações de pesquisas, a investigarem sobre suas causas. Às políticas públicas educativas e de saúde, requisitam maiores recursos para a escolarização e o tratamento dos autistas.

Uma das discussões mais áridas promovidas por essa mobilização recaiu sobre o tratamento. A intervenção comportamental, por meio dos programas ABA (Applied Behavior Analysis) e TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children), tomou a cena ao promover a aprendizagem de habilidades sociais e funcionais pelo autista, bem como orientar os pais quanto a suas atitudes frente aos filhos. A despeito da postura mecânica adquirida pelas crianças, que aprendem mas verdadeiramente não assimilam o fundamento do que lhes foi ensinado, os psiquiatras, no Brasil, são quase unânimes em indicar o tratamento comportamental para os autistas.

Na França, chegou-se à proposição legal de se interditar os psicanalistas de tratarem autistas, sob a alegação de se reconhecerem como eficazes apenas as intervenções educativas. Enquanto no Brasil apenas alguns médicos repudiam a proposta de trabalho psicanalítico com os autistas, na França esse desprezo não se mostra suficiente, uma vez que os psicanalistas têm forte presença nos aparatos públicos de tratamento. A responsabilidade social do governo sustenta tais instituições, encaminhando-lhes as crianças, restando aos pais que optarem pelas intervenções educativas seu custeio com recursos próprios. Subentende-se daí o radicalismo da requisição francesa.

Em reação, os psicanalistas de orientação lacaniana, que trazem vasta bagagem de experiência no trabalho com crianças autistas e psicóticas nessas e outras instituições confederadas com a Associação Mundial de Psicanálise[3], abriram-se à sociedade para mostrar-lhe como a psicanálise trata os autistas. Um site foi lançado[4], em fevereiro de 2012, e os psicanalistas foram para a mídia defender sua prática, salientando sua disponibilidade ao diálogo, sobretudo com os pais de autistas.

Como contraponto ao tratamento comportamental, cuja metodologia estabelece programas de ensino com base no reforçamento das respostas corretas e na extinção das incorretas, surgiram o método Floortime e o programa Son-Rise. Ambos trazem a proposta, compartilhada pela psicanálise, de aceitar o modo particular do autista se apresentar. Respeitam o tempo da criança ao definirem que deve partir dela a disposição ao contato. Ao terapeuta cabe promover um ambiente que lhe seja facilitador e aproveitar as dicas dadas pela criança ­— como um olhar, por exemplo — para seguir com a interação mínima estabelecida.

O tratamento psicanalítico apresenta, em termos gerais, conjunção com essa proposta, ao mesmo tempo que dela se diferencia. Sua leitura original do autismo, com base nos conceitos de Outro, corpo e gozo, encaminham o tratamento por meandros díspares.

Esta tese surge nesse contexto, posicionando-se contrária ao puro adestramento do autista, que desconsidera seu lugar de sujeito, e se propondo a aclarar a orientação psicanalítica de tratamento, o que a faz diferenciar-se, contudo, de suas congêneres psicodinâmicas.

A composição do trabalho edificou-se sobre três eixos de leitura, expostos nos três capítulos iniciais. A organização lógica dos eixos tomou como estrutura o processo da construção lacaniana do Estádio do Espelho. Os mesmos pontos dessa progressão teórica são reproduzidos na problemática autista.

Sendo assim, o tema do objeto introduz diretamente a questão da tese e a interpela. Em sua elaboração imaginária, Lacan afirma que, no mesmo golpe especular em que o Eu é constituído, compõem-se também os objetos-entidades do mundo externo. Ainda em outros termos, inicialmente, persegue a localização do que veio posteriormente a chamar de objeto a, não “especularizável”, que bordeja e recobre o corpo. Este passa a ser, portanto, o tema do capítulo seguinte. A constituição do corpo decorre da borda instituída pelo objeto a. No autismo, por não ter havido o arremate definidor do corpo, promovido pela extração do objeto, a constituição corporal evidencia-se problemática.

Mais à frente em sua teorização, Lacan faz compor com o imaginário o simbólico. A dimensão da linguagem surge posteriormente em sua elaboração, mas com uma função original de revestir simbolicamente o corpo, por meio dos significantes-mestres do Outro, fundamentando uma alienação simbólica que norteia a imaginária. O capítulo dedicado à linguagem vem demonstrar o embaraço radical do autista com a posição de enunciação, que exige a alienação do sujeito a esses significantes-mestres.

Por fim, fecha-se o ciclo com o quarto capítulo, que estabelece os rumos para o tratamento do autista, remontando novamente aos objetos como seu eixo condutor. Objetos promotores de uma borda postiça que delimita precariamente um corpo para o autista.

Desse modo, o capítulo 1 se conduz pelas características dos objetos autísticos. Define, inicialmente, a categoria nosológica do autismo, identificando a dificuldade de interação social como um de seus pilares diagnósticos. Em oposição às pessoas, demarca a relação com os objetos como sendo de especial importância para essas crianças. A última seção do capítulo parte da nociva função de alheamento dos objetos autísticos e chega à proposta de uma teoria da gradação, que implica a concepção de uma dinâmica pulsional propiciada por esses objetos.

O capítulo 2 visa ao uso dos objetos autísticos para simular a operação lacaniana de extração do objeto pulsional, da qual decorre uma localização do gozo. Para que se estabeleça um corpo, é preciso que as zonas erógenas sejam delimitadas. No autismo, as manifestações desregradas da pulsão pressupõem uma ausência da consistência corporal. Para examinar tal aspecto, percorre-se o processo da constituição do corpo, em Freud e em Lacan. Em seguida, erigem-se os índices dessa ausência no autismo. A desregulação pulsional do autista é demonstrada fenomenologicamente e embasada pela ausência de extração do objeto.

O capítulo 3 empenha-se no tratamento da linguagem no autismo. Traça, preliminarmente, as indicações de Lacan, as quais acentuam essa relação. A maneira como os autistas usam a linguagem se subdivide, essencialmente, em duas: aquela do privilégio dado ao som, à materialidade do significante, e uma outra que contempla o sentido, mas de um modo funcional, sem a prosódia típica da fala. Um terceiro tipo assumido pela linguagem do autista foge a seus costumes: em situações críticas, adota uma posição de enunciação, com o uso correto do pronome “eu”, pronunciando frases de caráter imperativo. Essa fala tem o mérito de pôr à prova a tese comportamentalista do deficit cognitivo, ao demonstrar a capacidade do autista de elaborar corretamente sua verbalização.

Para instituir a possibilidade de comunicação funcional que encerra um sentido, vê-se a conveniência do dispositivo linguístico do signo. A seção consagrada à singularidade da linguagem do autista contempla esse propósito, bem como esclarece a sua dificuldade em assumir uma posição de enunciação. Um cotejamento entre autismo e esquizofrenia arremata esse capítulo, em razão de suas semelhanças conjugadas com suas particularidades.

O quarto e último capítulo retoma a pergunta da tese sobre o lugar dos objetos na clínica do autismo, formalizando algumas orientações. Com base na identificação anterior de um movimento espontâneo do autista que procura instaurar imaginariamente a perda que não ocorreu no nível simbólico, ele contempla esse arremedo de extração do objeto acentuando as indicações apoiadas no âmbito da instância da letra. Outrossim, a evidenciação da função vital fundamentada pelos objetos autísticos complexos salienta o lugar do duplo, ocupado por esses objetos e eventualmente pelo analista. Finalmente, oficializa-se o caráter fundamental de borda do corpo que localiza o gozo, resguardado pelos objetos, circunscrevendo sua essencialidade para a clínica do autismo.

A conclusão retoma o percurso teórico da tese e relança perguntas que tocam de perto a prática clínica. A indicação, para essas crianças, de um trabalho institucional, fica premente.

Cabe justificar, desde já, o uso do termo “sujeito” para essas crianças. Por ser falada pelo Outro, mesmo que não lhe responda à altura, o termo já se mostra apropriado. Trata-se do sujeito como efeito de remissão de um significante a um outro. O fato de o autista aceder aos significantes do Outro, em momentos pontuais, indica que há um sujeito que pode ser, inclusive, tomado numa enunciação. Ademais, a presença momentânea de um olhar, habitualmente ausente, leva a se considerar sobre a existência de um efeito-sujeito, sobre o qual recai a aposta do analista.

 

(1) Tese apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, em 28 de novembro de 2012. A banca foi formada pelos psicanalistas e profs. Drs. Jésus Santiago (orientador), Ana Lydia Santiago (coorientadora), Ana Beatriz Freire (UFRJ), Angélica Bastos (UFRJ), Ram Mandil (UFMG) e Ângela Vorcaro (UFMG).
(2) Squeeze machine, no original.
(3) O RI3, Réseau International d’Institutions Infantiles.
(4) O site www.autismos.es traz seu conteúdo completo em quatro línguas — espanhol, francês, inglês e italiano —, apresentando-se com uma linguagem clara e desprovida de termos técnicos, com o intuito de se fazer entender pelos leitores não iniciados na psicanálise, sobretudo os pais de autistas.