Editorial Almanaque nº14

MÁRCIA MEZÊNCIO

Apresento-lhes a edição n.14 de Almanaque on-line. Nessa edição, buscamos, mais uma vez, apresentar aos nossos leitores o trabalho que se desenvolve no IPSM-MG, em seus espaços de ensino e investigação. Nossos temas, alinhados ao da comunidade de trabalho da Orientação Lacaniana, acentuam a sintonia com o momento civilizatório em que vivemos e praticamos.

Começamos esta edição traçando as referências teóricas para a localização do psicanalista na clínica atual e em sua presença na cidade. Assim, em Trilhamento, acompanharemos, passo a passo, em um percurso nos textos de Freud e Lacan, o caminho que vai da agressividade à pulsão de morte, através da leitura que Éric Guillot nos apresenta dos fundamentos e mecanismos da agressividade e da pulsão de morte, conceitos que, segundo o autor, estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas e que podem nos ajudar a esclarecer o fenômeno da violência contemporânea.

O tema da passagem ao ato também é discutido por Frederico Feu, em Incursões, a partir da leitura do Seminário, livro 10, de J. Lacan. Tomando o eixo desse seminário que é a elaboração do conceito de objeto a, ele busca retrabalhar a diferença estrutural entre neurose e psicose e abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses.

O real que se apresenta na prática dos psicanalistas foi o tema trabalhado pela Seção Clínica durante o primeiro semestre de 2014. Da investigação dos núcleos, publicamos o comentário de Márcia Mezêncio, no Núcleo de Psicanálise e Direito, em torno da formulação de Lacan sobre o utilitarismo da pena e suas consequências sobre a função da punição, e ainda duas produções do Núcleo de Psicanálise com Crianças. Cristiana Pittela de Mattos traz-nos a proposta de investigação sobre o real que se apresenta na clínica com crianças, na tentativa de definir “como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna” — que poderemos acompanhar no trabalho de Andrea Eulálio, Margaret Couto, Maria das Graças Sena; “como a angústia é um sinal do real do trauma; também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.”

O autismo é outro tema da atualidade que está presente nesta edição com um artigo de nossa colega argentina Silvia Tendlarz, em que discute o momento atual dos diagnósticos. Destacamos sua afirmação de que há transferência na direção da cura da criança autista e de que se devem determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura. A invenção, sustenta, é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Encontramos, aí, a orientação da pesquisa neste semestre, que nos inspirou a Entrevista com os membros da Comissão Científica do XX EBCF: pedimos a eles para localizar, em sua prática, o surgimento desse real e indicar-nos as possibilidades e invenções que este convoca.

Em Encontros, Guilherme Cunha Ribeiro propõe uma parceria entre Medicina e Psicanálise, como forma de encontrar opções epistêmicas para sustentar o trabalho do médico, alternativas à clínica da avaliação e do protocolo, prevalente na prática da medicina contemporânea. Registro de atividade conjunta dos núcleos Psicanálise e Medicina e Psicanálise e Toxicomania.

Finalmente, em De uma nova geração, encontramos o vigor e o rigor do trabalho de transmissão sustentado pela Seção de Ensino. O trabalho de Thiago Borges propõe um retorno a um texto fundamental de Jacques-Alain Miller e a um tema também fundamental na clínica contemporânea: a psicose não desencadeada, chamada, entre nós, de psicose ordinária.

Não deixem de ler!




Reflexões Sobre A Psicose Ordinária

THIAGO FERREIRA DE BORGES

O texto de Jacques-Alain Miller, “Efeito de retorno à psicose ordinária”, fruto de um seminário de língua inglesa em Paris, é extremamente importante para a clínica contemporânea, quando pensamos que a noção de psicose ordinária não só tem sido bastante discutida, como também utilizada (ao que parece, cada vez mais) no cotidiano de trabalho dos psicanalistas.

A importância que aqui é destacada reside na sua proposta principal, que é a de apresentar uma síntese dos indícios que ajudariam os psicanalistas a diagnosticar um quadro de psicose ordinária. Antes, porém, após um breve comentário sobre o “espírito estadunidense”, Miller fala sobre a origem da expressão e o seu caráter mais livre, aberto, então: “a psicose ordinária não tem uma definição rígida. Todo mundo é bem-vindo para dar sua opinião e sua definição da psicose ordinária” (MILLER, 2010, p.3).

Evidentemente, uma das funções dos seminários e discussões é justamente pôr à prova o valor das posições frente à expressão, com o intuito de auxiliar na lida com os fenômenos da clínica. Ele diz que não é um conceito, mas se sabe que, em parte, funciona como tal. Não no sentido tradicional da palavra conceito — aquele que visa a capturar o objeto ou fenômeno em sua totalidade — mas no sentido que limita o gozo (prevenindo contra o risco de que qualquer coisa caberia dentro da definição). A começar pelo fato mesmo de que é, antes de tudo, uma psicose. A novidade está na palavra “ordinária”. O adjetivo significa que, antes, toda e qualquer psicose era extraordinária, e isso era claramente uma referência ao que era ordinário desde a época de Freud, a saber, as neuroses. Era uma referência para a psicose a partir daquilo que a psicose não era, ou não é. Em Freud, foi assim, e, em Lacan, também, não como uma imitação, mas como um saber compartilhado. Isso é efetivamente dialético e prevalece também para as psicoses ordinárias, visto que são, em primeira e última instância, psicoses. Graciela Brodsky (2011) ao questionar a terminologia “pré-psicose”, em seu livro, Loucuras discretas: um seminário sobre as chamadas psicoses ordinárias, acentua, já no início, que, também para a psicose ordinária, ainda se faz referência ao fundamento de uma estrutura clássica,

[…] mas não chamamos de psicose unicamente os fenômenos que se produzem na psicose, mas uma estrutura que está desde o início […]. Ao passo que nosso ponto de vista é que a psicose, com ou sem desencadeamento, está lá desde sempre (BRODSKY, 2011, p.33). (Grifo nosso).

O termo “ordinário” sugere, ainda, jogando com o título do livro de Graciela, que, se, no passado, uma loucura não podia ser discreta, ou se era preciso um franco desencadeamento para haver o diagnóstico de psicose, hoje, entretanto, somos obrigados a lembrar que sempre se tratou de uma estrutura. Talvez os psicanalistas, apesar do conhecimento teórico da estrutura, não tivessem como diagnosticá-la, se não a partir de fenômenos claros e precisos. Isso, ao que parece, também é uma herança da clínica das neuroses. A questão é que, de maneira geral, o diagnóstico a posteriori, a partir dos fenômenos nas neuroses, causa muito menos incômodo e preocupação aos analistas do que no caso das psicoses. Talvez esse fato tenha ressonância na discussão atual sobre a crítica à ideia de déficit das psicoses em relação às neuroses a partir da clínica lacaniana dos nós. Voltar-se-á a esse ponto no final deste texto. Por ora, trilham-se os caminhos do texto de Miller.

Uma Orientação Para Um Diagnóstico

A ideia de Miller do “Tertiun non datur” (terceiro excluído), para as psicoses ordinárias, está presente na relação clássica binária Neurose/Psicose, não como um Borderline, mas como algo que se inscreve na estrutura da psicose.

Reforçando aquilo que se entende como dialético, Miller passa a discorrer sobre os indícios de uma psicose ordinária a partir não das suas próprias marcas, mas, precisamente, a partir daquilo que a psicose não é, ou seja, a partir da neurose. Acredita-se que os pontos que Miller sintetiza, para o reconhecimento de uma psicose, são provenientes da ausência de traços fundamentais da neurose. Nesse sentido, as psicoses (aqui, as ordinárias) se fazem presentes, a partir de uma negatividade no registro das neuroses. Antes de Miller detalhar os elementos de uma “loucura ordinária”, ele faz referência às psicoses, como Lacan formulara nos Escritos e no Seminário 3: a ausência da “chancela” neurótica chamada Nome-do-Pai (NP). Além disso, uma referência à ideia de desordem, como em Lacan, o que Miller rememora como presente no início da vida. Há certo parentesco entre o inicio da vida tomado pelo imaginário e que é posteriormente reorganizado pela ordem simbólica e aquilo que ocorre nas loucuras. Mas isso é o que diz o “Lacan clássico”, como lembra Miller, pois, em seguida, ele afirma, sobre o último Lacan, aquele em que o NP passa de próprio para predicado, o que quer dizer que pode ser qualquer coisa que sirva para orientar o sujeito no mundo. Essa “qualquer coisa” atinge o limite onde o sujeito não mais se sustenta. Nessa gradação que não admite números, a psicose ordinária se situa no terreno em que se opera como uma precariedade do NP, ou como algo que funciona, como se fosse… “mas, talvez, o que chamamos de psicose ordinária seja uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento“ (MILLER, 2010, p.12).

Como ressalta Graciela, talvez nunca se desencadeie, o que sugere uma amarração que, mesmo precária (sob certos aspectos neuróticos, é claro!), de alguma maneira, funciona. O NP deixa de ser a chancela das neuroses, sua exclusividade.

Assim, antes de Miller apresentar, de forma tripartite, aquilo que ele recupera dos Escritos como sendo “uma desordem provocada na junção mais intima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN apud MILLER, 2010, p.13), coloca quase como um princípio uma “dica de sabedoria”, ou seja, que, sem um saber sólido sobre a neurose, não se faz um diagnóstico de psicose.

Quando é neurose vocês devem saber! […] A neurose é uma estrutura muito precisa. Se vocês não reconhecem a estrutura muito precisa da neurose no paciente, podem apostar ou devem tentar apostar que se trata de uma psicose dissimulada, de uma psicose velada (MILLER, 2010, p.6).

Mais adiante ele reitera:

Uma neurose é algo estável, uma formação estável. Quando vocês não constatam — esta também é uma questão percebida pelo clínico — que há elementos bem definidos, bem recortados da neurose, a repetição constante e regular do mesmo, e quando não há nítidos fenômenos de psicose extraordinária, tentam dizer então que é uma psicose, embora ela não seja manifesta, mas ao contrário dissimulada (MILLER, 2010, p.13-14).

Parece clara, então, a importância da neurose enquanto estrutura para o diagnóstico das psicoses. Algo que certamente se relaciona, ao menos em parte, com o lugar social que as neuroses ocuparam até hoje na história da psicanálise. De uma forma ou de outra, elas ainda representam o “lugar comum”, ou a “normalidade”.

Isso ajuda a entender as três externalidades escolhidas por Miller como indícios da psicose ordinária. A clínica é delicada e sutil porque se devem procurar os pequenos sinais, como assinala Miller. A externalidade deve ser tripla — social, corporal e subjetiva — pois se corre o risco, se não o for, de se confundir com uma neurose grave. A assinatura da neurose, como disse Miller, não existe quando da identificação das três dimensões de externalidade. “Os indícios devem ser situados nos três registros” (MILLER, 2010, p.14).

Algumas Observações Sobre A Descrição Das Três Externalidades

Social

Muito claros e práticos, não convém reproduzir aqui os pontos apresentados por Miller, porém é interessante observar uma questão. O autor também destaca, para além da clara “relação negativa” com o social, os casos de relações “positivas”, demasiadamente rígidas. Em outras palavras, ele adverte para as identificações hipostasiadas, para os investimentos profissionais desenfreados e desmedidos.

Vocês podem ver então — e isso ocorre constantemente — psicóticos ordinários cuja perda do trabalho desencadeia sua psicose, porque, muito frequentemente, seu trabalho significava bem mais do que um trabalho ou uma maneira de viver. Ter esse trabalho era seu Nome-do-Pai (MILLER, 2010, p.16).

Tem-se, efetivamente, hoje, uma indicação explícita ao sujeito, para que este se agarre fortemente a uma identidade profissional, que ele faça disso seu ser, algo que não parece ser sem consequências para a questão do diagnóstico bem como do desencadeamento nas psicoses. Dito de outro modo, existem pequenos traços de loucura em quase toda a propaganda de escolha de profissão e carreira. Aqueles indivíduos que se encontram fortemente presos a uma profissão, centralizando suas vidas numa dada carreira, podem, em alguns casos, ter, nessa relação com a profissão, uma amarração que estabiliza a função paterna fragilizada nos quadros de psicose ordinária.

Corporal

A externalidade corporal como índice possível para a psicose reside, segundo Miller, na dificuldade comprometedora do sujeito de lidar com seu corpo. De acordo com o que foi apresentado pelo autor, pode-se falar em três características na relação como o corpo: (i) do excesso; (ii) da repetição ou atualização; (iii) da identificação petrificada.

Os três aspectos dizem respeito aos modos como o sujeito se vê levado a amarrar seu corpo — os grampos contemporâneos, segundo Miller, as tatuagens, os piercings, etc. Assim, um excesso pode significar um volume gigantesco de perfurações e desenhos pelo corpo; uma repetição ou atualização se deduziriam do fato de que sempre se está inclinado a repetir o procedimento, a trocar as joias, redesenhar ou fazer uma nova tatuagem; a identificação petrificada coloca tais ações no nível da necessidade, como um acting out de apaziguamento.

Interessante, porém, é que isso leva a refletir, com mais vagar, sobre uma externalidade corporal, quando se considera a ideia de que ter um corpo é algo relativamente normal para a psicanálise. É que, se o sentimento de externalidade é um índice possível para a psicose, por outro lado, a ideia de uma “normalidade” do “ter um corpo” pressupõe, de alguma maneira, alguma externalidade do sujeito em relação ao seu corpo, ou, ainda, é preciso algum distanciamento para que se possa dizer que se possui ou não alguma coisa.

Imediatamente se recorda que, então, se deve associar a externalidade mais com um “não ter” ou “perder”, do que, essencialmente, com algo que o sujeito não é, e, portanto, só pode possuir. Por isso a importância da compreensão da noção de amarração, de se “fazer um corpo”. Faz-se algo que não existe ou que deixou de existir, ou, ainda, que possua uma existência tão instável que necessita, a todo o momento, de novos cuidados e atualizações. É possível, então, que, nas psicoses, a prevalência da dimensão do ser um corpo, em detrimento do ter, provoque situações muito mais instáveis em termos subjetivos no que se refere às experiências corporais, se se fizer uma comparação com as neuroses.

Do ponto de vista de uma história dos conceitos que, de alguma forma, incide objetivamente também sobre a clínica da psicanálise, atenta-se sempre para o movimento de ser e ter um corpo.[2] Na poesia de Homero, antes da grande Filosofia, antes de Platão mais especificamente, não se encontrava uma palavra que definisse, para o indivíduo vivo, sua unidade corpórea, ou seja, os heróis homéricos referiam-se ao seu corpo de forma fragmentada. A palavra soma só era usada para a unidade corporal quando o indivíduo morria e sua psyche (alma) se esvaía do soma (cadáver), como um fantasma errante e irracional. É mesmo só a partir de Platão que a alma ganha efetivamente um estatuto racional (ou ao menos parte dela), ao mesmo tempo em que a palavra soma passa a ser usada também para o indivíduo em vida, representado, agora sim, seu corpo enquanto unidade.[3]

Dessa maneira, pode-se suspeitar de que, em algum momento da proto-história da cultura ocidental, o homem experimentou “coletivamente” sua existência como sendo um corpo, mas sem a unidade conceitual bem definida para tal. Atualmente, a ideia ou sentimento de que se é um corpo marca, incessantemente, cada momento de nossa existência, ao mesmo tempo em que não se pode abrir mão da ideia de que se possui um corpo. De fato, a cisão do indivíduo em corpo e alma exige pronomes possessivos. Se um indivíduo fosse plenamente identificado ontologicamente com o corpo, dispensaria, no plano da fala, o significante corpo, pois, toda vez que tentasse utilizá-lo, seria levado, cedo ou tarde, ao emprego de pronomes possessivos. Por outro lado, uma abstração radical, um congelamento do “ter” implicaria a impossibilidade do indivíduo de dialetizar sua relação com seu corpo e o dos outros, o que, no limite, pode contribuir negativamente para a avaliação das consequências sociais objetivas das ações sobre as pessoas. Eis o paradoxo a respeito do ser e do ter.

Subjetiva

Resume-se, como se sabe, na ideia de vazio. É, talvez, o índice mais difícil de perceber e diferenciar em relação às neuroses. O próprio Miller adverte sobre a sua ocorrência nas neuroses e tenta deixar claro aquilo de que se trata com exemplos de fragmentos de casos. A orientação parece se sustentar em dois pontos. Segundo Miller, “busca-se um índice do vazio e do vago de natureza não dialética” (MILLER, 2010, p.18). (Grifo nosso). Nesse caso, há uma fixidez especial desse índice. Além disso, mas com o apoio ainda na noção de fixidez, “[…] devem também procurar a fixidez da identificação com o objeto a como dejeto. A identificação não é simbólica, mas real, porque ultrapassa a metáfora” (MILLER, 2010, p.18).

O que significa, então, “natureza não dialética”? Nesse caso, parece ser algo já conhecido dos psicanalistas a respeito dos diagnósticos de psicose, e que também se encontra nos índices anteriores — social e corporal: trata-se do enrijecimento de uma certeza; certeza essa que não vacila para o sujeito. O real se apresenta como uma realidade que, para o sujeito psicótico, não possui, no seu cerne, uma contradição que possa fazer afrouxar a identidade. O vazio seria uma experiência que não pode ser relativizada, colocar sua verdade em questão é algo quase impossível para o psicótico. Se isso ainda acompanha a localização como dejeto, tem-se a incidência no corpo da questão subjetiva, pois “o sujeito vai na direção de realizar o dejeto sobre sua pessoa” (MILLER, 2010, p.18).

Uma Questão: Da Falta A Ser

A noção da pluralização do NP parece revigorar a defesa da singularidade do sujeito que a orientação lacaniana preserva como pressuposto de sua clínica, ou, ainda, de uma clínica possível. Isso se refere à dimensão ética e política da psicanálise enquanto prática social, que se apresenta, portanto, diferente e potencialmente crítica das tendências científicas de desaparecimento da clínica, representadas especialmente pelo DSM e suas atualizações.[4]

Sobre a clínica “em si”, a pluralização é, como se sabe, resultado do último ensino de Lacan e seus nós borromeanos. Ele questiona a noção de falta, ou seja, de déficit para as psicoses em comparação com a estrutura neurótica.

Se, no entanto, para a clínica, parece fazer sentido relativizar a noção de falta, apostando-se na diversidade de amarrações possíveis que cada sujeito pode inventar, não é possível esquecer que, a todo tempo, depara-se com a tarefa de avaliar as condições que cada analisando possui efetivamente para viver seu cotidiano social. Não se pode negar que, na clínica, seja ela das psicoses ou das neuroses, não se pode, de forma alguma, escapar ao horizonte do psicanalista, a preocupação com a “preservação social” do analisante. Isso se mostra, mais precisamente, no trabalho em direção à construção de um “saber fazer” que seja melhor ou menos deletério ao sujeito, o que, obviamente, é sempre considerado na relação do sujeito com a sociedade em que vive. Nenhum psicanalista é indiferente às consequências de uma toxicomania que consome todas as reservas de uma família ou que retira qualquer possibilidade do sujeito de reinserir-se socialmente. Preocupação com um saber fazer com o gozo que invade, com o desejo, não é, por parte de um bom analista, sem uma mirada para o social.v Isso implica que se sabe reconhecer, a partir da clínica, que existem diferenças, de maneira geral, e ainda substanciais, entre as possibilidades de realizações objetivas, no caso dos neuróticos, comparando-se com os psicóticos. Mesmo que haja psicóticos desempenhando atividades socialmente complexas, como um alto cargo executivo ou coisa parecida, isso não parece comprometer a percepção de que, em linhas gerais, os psicóticos tendem a ter mais dificuldades para ocupar posições e desempenhar determinadas tarefas.

A singularidade da resposta que cada um pode construir no encontro com um Pai, que está no nível da apropriação teórica no contexto do cotidiano da clínica, deve conviver com a teoria das estruturas, bem como com a própria ideia de relativização dos NP, como uma resposta teórica proveniente da particularidade de cada caso, ao se manifestar como indicativo (teórico), alcança, então, o nível do universal (mesmo nível das estruturas). Essa relação entre os escritos da primeira clínica e os últimos escritos de Lacan, com a realidade de cada caso, pode-se chamar, numa linguagem filosófica, de dialética entre o universal e o particular.

A abertura maior, no campo das psicoses, com o significante “psicose ordinária”, exigiu e exige, basicamente, duas indicações para se compreender a clínica hoje. Primeiro, que a neurose, como aquilo que não é a psicose, persiste enquanto estrutura bem definida, agora ainda mais, pelo alargamento do campo das psicoses. Não há dúvidas quanto a isso no texto de Miller. Mas, nas psicoses, a definição inicial lacaniana, tendo a ausência do NP, ou seja, as psicoses definidas principalmente pela ausência de algo da estrutura das neuroses, foi revista. Essa revisão é a pluralização do NP, ou ainda sua inexistência, sua adjetivação como semblante.

Essa generalização da psicose significa que não existe, na verdade, o Nome-do-Pai. Ele não existe. O Nome-do-Pai é um predicado, sempre é um predicado. Sempre é um elemento específico entre outros que, para um determinado sujeito, funciona como Nome-do-Pai (MILLER, 2010, p.20).

Miller insiste na diferenciação justamente porque ela, hoje, é mais difícil, sutil. A democratização do NP não implicou uma relativização das estruturas, elas não estão no mesmo nível. A questão é a seguinte: na neurose, o NP, isso que, na verdade, não existe, tem “cadeira cativa”, enquanto que, nas psicoses, nem sempre é assim, ele pode ter um funcionamento precário também, muito embora, em alguns casos de paranoia, “o make believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido” (MILLER, 2010, p.23)

Tudo isso para concluir dizendo que a questão da falta e/ou do furo talvez seja mais complexa do que se possa imaginar, ou fazer, no sentido de substituir um significante por outro. Apesar da pluralização do NP e da noção de “furo”, acredita-se que a noção de falta ainda está, de alguma forma, presente, e talvez seja mesmo importante para a orientação lacaniana, partindo do pressuposto de que ela não incide eticamente da mesma forma que em outros campos de saber. “O Nome-do-Pai está ali (na coluna da esquerda) enquanto aqui (na coluna do meio), ele não está. Na psicose ordinária, não há o Nome-do-Pai, mas há alguma coisa, um aparelho suplementar” (MILLER, 2010, p.22). (Grifo nosso). Se há furo no real, ele não exclui a noção de falta, mais do que obriga a reordená-la, na medida em que, diante desse real, uns se viram “melhor” que os outros, não somente no nível da preservação de uma vida possível, mas certamente em níveis em que a sociedade demanda respostas mais complexas de cada sujeito; respostas fundamentais para a continuidade da vida humana, a começar por aquele nível mesmo, de qualquer vida possível.

Permanecem, então, perguntas como: é possível abandonar a noção teórica de falta, considerando apenas a posição de que o sujeito psicótico, salvo no caso de uma catatonia completa, “se vira no mundo”, ao seu modo, mas se vira; sendo que os próprios indícios sugeridos por Miller para o diagnóstico de psicose e, também, os relatos, em vários casos clínicos, mostram uma dificuldade especial, singular, do sujeito psicótico em levar sua vida social adiante, se comparado com boa parte dos neuróticos? Pode-se, nessa comparação, abrir mesmo mão da ideia de falta? Uma crítica pré-dialética da noção de falta no interior da psicanálise poderia levá-la a um “autismo prejudicial” aos potenciais de diálogo entre a psicanálise e a sociedade, justamente pelo fato de que, dessa maneira, a clínica acabaria por corroborar um discurso hegemônico sobre o social, refratário às contradições, à alteridade, à singularidade, etc.? Em que medida, por fim, o questionamento da ideia de falta conserva algum tipo de receio com relação a uma avaliação social que indique um possível conservadorismo na psicanálise, quando se poderia supor justamente o contrário, ou seja, que considerar a falta de algo como um problema a priori, isso sim representaria algo da ordem do conservadorismo intelectual e ético? Ainda, será que existe, nessas questões, uma confusão anterior sobre o que deve ser debatido no nível teórico das estruturas e o que deve ser debatido no nível da prática clínica?

 

(1) Este texto, com algumas modificações, foi escrito originalmente como trabalho final para o curso de Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG.
(2) Sobre esse assunto, pode-se ouvir Sérgio de Campos em entrevista ao boletim Sinapsy, n.4, da XVIII Jornada da EBP-MG.
(3) Sobre essa questão, consultar minha dissertação de mestrado. BORGES, T. F. de. Interesse pelo corpo na Dialética do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. 2010. 198f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
(4) Recomenda-se o artigo de Sérgio Laia na coletânea De que real se trata na clínica psicanalítica?. (LAIA, S. A. C. de. “Coisas mensuráveis e ‘coisas de fineza’: a classificação dos transtornos mentais pelo DSM-V e a orientação lacaniana”. In: SANTOS, T. C dos; SANTIAGO, J.; MARTELLO, A. (Orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica?: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012. p.295-318).
(5) O que não quer dizer uma adaptação ao Outro social.

 


Referências
ADORNO, T. W. Dialética negativa. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BORGES, T. F. de. Interesse pelo corpo na Dialética do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. 2010. 198f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
BRODSKY, G. Loucuras discretas: um seminário sobre as chamadas psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Scriptum, 2011.
GAULT, J. L. et al. “O homem dos cem mil cabelos”. In: MILLER, Jacques, Alain. A psicose ordinária. Sérgio Laia (Org.) Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2012. p.129-133.
LACAN, J. (1955-1956) O Seminário, livro3: as psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20: o sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LAIA, S. A. C. de. “Coisas mensuráveis e ‘coisas de fineza’: a classificação dos transtornos mentais pelo DSM-V e a orientação lacaniana”. In: SANTOS, T. C. dos; SANTIAGO, J.; MARTELLO A. (Orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica?: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012. p.295-318.
MILLER, J.-A. “Efeito de retorno à psicose ordinária”, Opção Lacaniana on-line, Nova Série, ano 1, n.3, nov. 2010.
MILLER, J.-A. “A psicanálise, seu lugar entre as ciências”. In: SANTOS, T. C. dos; SANTIAGO, J.; MARTELLO A. (Orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica?: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012. p.13-34.

Thiago Ferreira De Borges
Doutorando em Filosofia pela UFMG, professor do Centro Universitário de Sete Lagoas – Unifemm. Email: tfborges@hotmail.com



Medicina E Psicanálise: Uma Parceria

GUILHERME RIBEIRO

A medicina contemporânea se sustenta em novas proposições epistêmicas. O surgimento das técnicas de avaliação e o uso dos protocolos de diagnóstico e tratamento trouxeram modificações significativas para a prática médica. Essas mudanças se sustentam no modo contemporâneo de produção de conhecimento médico, que é verificado em práticas que se tornaram mundialmente disseminadas, como a “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) e a psiquiatria orientada pelo “Manual de Diagnóstico e Tratamento” (DSM). A primeira se propõe a ser um guia para orientar as melhores práticas na medicina clínica, com ênfase nos sintomas, e a segunda orienta uma proposta para diagnóstico em psiquiatria, em que também são privilegiados os sintomas, sem levar em conta as causas psicodinâmicas.

A introdução da MBE e do DSM pode ser vista como uma substituição da avaliação clínica tradicional, que privilegia o caso a caso e a experiência clínica, pela lógica da avaliação e do protocolo. No protocolo o diagnóstico e terapêutica são sustentados em trabalhos científicos onde os resultados são medidos pela estatística e podem ser reproduzidos em outros experimentos semelhantes. As estatísticas estão no campo da matemática, da mensuração e do cálculo. A validade dessa substituição ocorre, pois existe uma equivalência (MILLER; MILNER, 2006, p. 4) entre os dois processos, entre a clínica do caso a caso e a mensuração/cálculo. A equivalência se dá por ambas produzirem um conhecimento sobre a condição apresentada pelo paciente, estão ambas na esfera do saber. No entanto, mesmo que exista a equivalência entre a prática do caso a caso e aquilo que é medido ou calculável, é um equívoco considerar que elas pertençam ao mesmo campo.

A prática da avaliação, que é realizada a partir de protocolos, vem do campo da administração, que não é o mesmo campo da clínica. A “clínica do DSM”, que propõe uma psiquiatria que se sustenta na quantificação e qualificação dos sintomas, que passam a definir os diagnósticos e tratamentos, sem levar em consideração os aspectos subjetivos daquele que sofre e que demanda alívio de sua condição, está ainda mais radicalmente inserida no campo da avaliação e dos protocolos. O DSM desconhece a causalidade psíquica além do que ela estabelece como uma origem cerebral para as doenças psiquiátricas. A MBE (GUYATT et al., 1992 p. 2421) ainda propõe que se considere a fisiopatologia no desenvolvimento das doenças, embora acentue que ela não deve mais sustentar os diagnósticos e terapêuticas médicas.

Para os médicos, as novas formas de produção de conhecimento na medicina se constituem em um grande desafio, pois são novos discursos que diferem da prática médica precedente. Se, na clínica tradicional, encontramos a valorização do raciocínio clínico e da experiência de cada médico que se responsabiliza pelo atendimento ao paciente, a MBE propõe que o mestre, tomado no lugar de autoridade clínica, como aquele que detém um conhecimento sustentado em sua experiência, seja deixado de lado. Para a MBE (GUYATT et al., 1992, p.2421), ao contrário da clínica tradicional, “o novo paradigma coloca bem menos valor na autoridade”. Os sintomas são avaliados a partir das evidências recolhidas no atendimento, e as respostas devem ser buscadas nos trabalhos científicos. Os trabalhos científicos que sustentam seus resultados no campo da avaliação estatística dos resultados. Essa mensuração da eficácia dos procedimentos, seja de forma qualitativa ou quantitativa, não leva em conta a experiência dos clínicos.

A introdução da lógica da MBE do DSM ocorreu em paralelo ao declínio da prática da clínica do caso a caso e associada ao avanço das tecnologias diagnósticas e terapêuticas sustentadas na ciência. Para Leguil (2011, p. 40), o declínio da clínica não decorre do fato de que os terapeutas, médicos, psicólogos não tocam mais o corpo do paciente. Esse declínio, verificado nas múltiplas tecnologias que substituem o raciocínio clínico, é decorrente do fato de que o corpo que desapareceu da clínica é o corpo do clínico.

A consequência se faz sentir na transferência nos novos tratamentos. O mestre em questão não é mais sustentado pela experiência dos clínicos, o mestre contemporâneo que é dotado da suposição de saber passa a ser o protocolo de avaliação, que pode ser encontrado rapidamente nos mecanismos de busca da internet. A ausência do corpo do médico modifica a transferência nos tratamentos que se efetivam.

Leguil (2011, p.40) constata que foi alcançado o ideal do DSM foi alcançado ao conseguir substituir a experiência acumulada dos clínicos e psiquiatras pelos protocolos de avaliação clínica. A sagacidade e a intuição dos clínicos não são mais levadas em conta na prática orientada pelos protocolos. É o sonho de fazer uma clínica sem transferência, em que também não há responsabilização do médico, tudo é confiado às mãos do Outro. Esse Outro é o Outro da avaliação, que pretende ocupar o lugar do saber universitário todo, pretensão que frequentemente utiliza a estratégia da intimidação (MILLER; MILNER, 2006, p. 17). Se, de um lado, os protocolos de tratamento colocam o médico ausente da relação terapêutica com o paciente, a posição que o médico passa a ocupar diante desse Outro todo é a de um “empregado da empresa universal da produtividade” (LACAN, 2001, p.14)

Ainda se pode apontar outras consequências para a clínica, à medida que a MBE (LAURENT, 2010) e a clínica do DSM passaram a orientar os tratamentos médicos. A escolha pela verificação científica das evidências resulta na redução da influência da intuição e da sagacidade do clínico na condução dos tratamentos. Outra consequência é a preferência por abordagens e tratamentos mais simples, em detrimento dos tratamentos mais complexos e que podem abranger muitos outros aspectos, como os elementos sociais, psíquicos e subjetivos, que não podem ser mensurados. Verifica-se, ainda, que a adesão aos protocolos limita as escolhas e as adaptações que podem ser feitas pelo clínico. Essas escolhas e adaptações são feitas mesmo que sua eficácia não possa ser sustentada pelas melhores evidências científicas e se sustentam na experiência. Finalmente, é importante ressaltar que os protocolos de avaliação levam também à produção de uma burocracia que é dedicada a sua manutenção e difusão.

Tendo circunscrito os elementos que marcam o trabalho do clínico na medicina contemporânea, passo a considerar qual poderia ser a contribuição possível da psicanálise nesse debate.

Incialmente é necessário distinguir o que é próprio da posição do médico e do analista. Podemos diferenciar o sintoma para o médico e para o psicanalista. Seja na estruturação de um sintoma endereçado à análise, na construção de uma fantasia, ou ao permitir que o paciente se movimente de acordo com as vicissitudes próprias do inconsciente, o analista coloca o sujeito em primeiro plano. Já a medicina é a prática que busca o alívio ou a desaparição dos sintomas e, para isso, lança mão dos recursos disponíveis pela ciência, em especial, da medicação, o que é a principal arma terapêutica do médico e do psiquiatra.

Um exemplo a considerar é a angústia. Laurent (2005, p. 29) aponta que, se a medicina se caracteriza pela eliminação dos sintomas, a questão de desangustiar ou não é própria da psicanálise. A psicanálise não defende a desculpabilização do sujeito por causas humanitárias, como é próprio da medicina. Laurent (2005, p.30) ainda exemplifica algumas possibilidades no tratamento analítico da angústia, seja com o sujeito angustiado com a presença do sintoma, ou com a angústia fixada pela fantasia, ou, ainda, com a angústia que não pode ser circunscrita nem pelo sintoma nem na construção da fantasia. Ao comentar o tratamento analítico de um sujeito psicótico, Laurent (2005, p.39) afirma que o analista pode ocupar um lugar que favorecerá a estabilização do sujeito psicótico, na medida em que o analista “se encontra no lugar de um parceiro-sintoma”. Esse lugar a ser ocupado é orientado a partir da transferência dirigida ao analista no tratamento.

Ao considerar o trabalho realizado pela medicina com o olhar da psicanálise, Lacan (1966/2001, p.10) faz uma advertência aos médicos, em relação à demanda de cura. Quando um paciente procura o médico, ele “não espera pura e simplesmente a cura”, na verdade, “ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente”, o que pode implicar que o paciente está “preso à ideia de conservar sua condição de doente” (LACAN, 1966/2001, p.10).

Em relação ao corpo, as tecnologias científicas de diagnóstico e tratamento se esforçam para apagar o que Lacan chamou de falha epistemo-somática, em que o saber sobre o corpo encontra limites que o próprio corpo lhe impõe. A parafernália tecnológica fotografa, mede, cifra o corpo de cada doente, o que, no entanto, não permite escutar os murmúrios do sujeito no atendimento. Ainda em relação ao corpo, sede da queixa do sujeito, o que existe, de verdade, sobre o gozo pode ser apresentado àquele que escuta: “o corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo” (LACAN, 1966/2001, p.11).

São essas as duas balizas que o médico dispõe para sustentar sua posição, em primeiro lugar, a demanda do doente, em segundo lugar, o gozo do corpo.

Para Lacan, a posição possível para o médico consiste em encontrar uma resposta a esse desafio do paciente na demanda. Em uma intervenção em um congresso de psiquiatria, Lacan (1972) aponta que, se o médico se dispõe a escutar o paciente, ele pode “realmente ter tudo que quer, os atos falhos, os balbucios, as fraquezas incríveis, as confissões que são raramente recolhidas”. Esse trabalho de escuta se sustenta no “interior dessa relação firme” entre o médico e a demanda do doente (LACAN, 1966/2001, p.14). Essa trilha permite ao médico conduzir o paciente a voltar-se para o lado oposto das ideias que emite ao fazer a demanda. Nesse novo caminho o sujeito produz na fala os significantes que revelam o que se esconde por trás da demanda. Nesse campo, trata-se da relação do sujeito com o gozo do corpo. Está aí a possibilidade de produzir aquilo que, para Lacan, é a forma do médico manter a originalidade de sua prática.

Seria possível dizer que uma clínica que se orienta pela subjetividade, que pode se ater ao modo de resposta à demanda e ao gozo do corpo, pode encontrar saídas opostas aquelas propostas pela MBE e pelo DSM. Para Laurent (2010, p. 263) essas saídas incluem a possibilidade de considerar a subjetividade, ao aceitar que os casos podem necessitar de intervenções mais complexas que a medicação, ao integrar a sagacidade e a intuição clínica, ao rejeitar os protocolos e os tratamentos que não admitem as adaptações individuais, ao valorizar os ditos e valores dos doentes, ao fazer disso material de seu trabalho e ao recusar a uniformização proposta pela burocracia institucional.

 


 

Referências
GUYATT, G. et al. “Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine”, JAMA, Chicago, n.268, 1992, p.2.420-2.425, 1992.
LACAN, J. (1972). “Intervenção sobre a exposição de P. Lemoine: sobre o desejo do médico”, Congresso da Escola Freudiana de Paris, Lettres de l’École freudienne de Paris, Paris, n° 9, p. 68-78, 1972.
LACAN, J. (1966). “O lugar da psicanálise na medicina”, Opção Lacaniana, São Paulo, Eólia, n.32, 2001, p. 8-14, 2001.
LAURENT, É. “Desangustiar?”, Curinga, Belo Horizonte, n.21, 2005, p.29-39, 2005.
LAURENT, É. “Los efectos perversos del EBM y los remédios que le aporta el psicoanálisis”. In: El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches, 2010, p. 262-264.
LEGUIL, F. “As demandas contemporâneas feitas à psicanálise II”, Curinga, Belo Horizonte, n.33, 2011, p.35-48, 2011.
MILLER, J-A.; MILNER, J-C. Você quer mesmo ser avaliado? São Paulo: Manole, 2006.

Guilherme Ribeiro
Médico e analista praticante, membro correspondente da EBP-MG. E-mail: guilhermecribeiro@gmail.com



Passagem Ao Ato Como Resposta Do Real

FREDERICO FEU

Podemos abordar o tema da passagem ao ato como uma modalidade de resposta do real nas psicoses. Na mesma proporção em que, na neurose, podemos contar com os fenômenos de retorno decorrentes do recalque, a psicose nos confronta com o ato como efeito da foraclusão. Seja nas suas origens, por ocasião do desencadeamento, ou como um ato conclusivo de um argumento delirante, seja como uma maneira de operar a castração no real, ou como uma tentativa de extração de um mal-estar corporal, no “impulso a golpear”, a psicose sempre parece tender, de alguma forma, ao ato.

De um modo geral, a passagem ao ato desvela a estrutura fundamental do ato, em seu sentido mais amplo (MILLER, 2014). O pensamento, na medida em que está dominado pelo recalque, está essencialmente sob impasse. Em sentido amplo, o ato é uma tentativa de sair desse impasse, caracterizando-se por uma ruptura entre ação e pensamento, ao contrário do que a tradição racionalista preconiza, ou seja, que um ato deveria ser a consequência lógica de uma cadeia racional de pensamentos. Nesse sentido, todo ato equivale a uma espécie de suicídio do sujeito, a um rompimento com o Outro, a um divisor de águas, visando a uma mutação subjetiva. Trata-se, como diz Lacan, de extrair da angústia a sua certeza, por oposição à dúvida suscitada pelo pensamento. O mesmo princípio poderia ser estendido à criação artística, à invenção de novos paradigmas no campo da ciência ou mesmo ao atravessamento produzido no campo do pensamento cultural e político por um acontecimento.

Proponho, nos limites deste texto, tratar a noção clínica de passagem ao ato a partir de algumas referências desenvolvidas por Lacan no Seminário, livro 10, “A angústia”, de 1962-1963, especialmente em torno do comentário do quadro que reproduzimos abaixo, em que a passagem ao ato é posta em relação com outros termos e conceitos. Isso nos coloca diante do problema de transpor uma noção clínica cujo movimento de elaboração se dá no enquadre estrutural das neuroses para o campo das psicoses. Além disso, há dificuldades de interpretação desse quadro, na medida em que ele não foi retomado por Lacan, dificuldades que nos parecem tanto maiores quanto mais exigirmos uma correlação formal de todos os seus termos. Devemos tomá-lo, então, de uma forma fragmentária, para um determinado uso, relacionando seus elementos sem fazer um todo e buscando estabelecer alguns parâmetros que nos levem da clínica das neuroses à clínica das psicoses, na qual o tema da passagem ao ato adquire todo seu peso.

Enquadre E Movimento Geral Do Seminário 10

A chave do Seminário 10 é a elaboração do conceito de objeto a, do qual a angústia vem a ser uma espécie de moldura para o neurótico e com o qual o sujeito se articula na cena fantasmática ($ <> a). O objeto a demonstra o efeito regulador da entrada na ordem simbólica: para dar conta do gozo, o sujeito (S) se dirige ao campo do Outro (A); se ele encontra, nesse campo, o significante do nome-do-pai, o efeito é sua divisão ($) entre o significante — que representa o sujeito para outro significante — e o objeto a .

Se definirmos essa operação, a que chamamos castração, como uma negativização do gozo pelo simbólico ou como equivalente a uma extração de gozo do corpo, o objeto a é o que compensa, com o mais de gozar, o menos da castração. Esse objeto, justamente por ser perdido, estabelece para o sujeito o regime de contingência de encontros e desencontros no real, mediando a sua relação com o Outro, na medida em que, para o neurótico, gozo e Outro se separam. Do lado do sujeito, o Outro aparece recoberto por uma barra (Ⱥ) — “o que me constitui como inconsciente, ou seja, o Outro enquanto aquilo que não atinjo” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36). Assim, estabelece-se a equivalência entre demanda e circuito pulsional na neurose. Partindo de uma zona erógena, representada pela elipse, a pulsão contorna um objeto — “essa prova e garantia única, afinal, da alteridade do Outro” (LACAN, 1962-1963/2005, p.36) — retornando sobre esse mesmo ponto de partida, obtendo-se, dessa forma, a satisfação.

Esse objeto, que a pulsão irá contornar, é aquilo que há de mais variável na pulsão, embora cada sujeito, tomado em sua particularidade, desenvolva um padrão de repetição, um “modo de gozo” que caracteriza o sujeito e que encontra sua consistência no fantasma. Podemos, então, definir a passagem ao ato na neurose como uma precipitação do sujeito, a partir de um encontro desestabilizador, para fora da cena fantasmática, em que ele ocupa uma posição de resposta ao desejo do Outro, identificando-se ao objeto desse desejo.

Quanto ao sujeito psicótico, ele está mais confrontado ao real e com mais dificuldades em relação à mediação simbólica. Daí sua tendência a operar diretamente sobre o real nos fenômenos de passagem ao ato, em suas tentativas de barrar o Outro (em sua dimensão invasiva e excessiva), na medida em que, nessa estrutura, gozo e Outro não se separam. Assim, podemos falar do gozo não negativizado na psicose, especialmente na esquizofrenia, e da não extração do objeto a. Em lugar de um circuito pulsional que estabelece a possibilidade de encontros e desencontros com o objeto da demanda dirigida ao Outro, temos, na psicose, um curto-circuito da pulsão sobre o próprio corpo:

Construção Do Quadro Da Angústia

Podemos agora voltar ao quadro construído por Lacan no Seminário, livro 10, na tentativa de esclarecer suas inter-relações e localizar, aí, o momento da passagem ao ato. Buscaremos construí-lo passo a passo, supondo uma ordenação lógica.

1 – Observamos, inicialmente, que o quadro se escreve a partir de duas coordenadas, o eixo do movimento e o eixo da dificuldade.

A referência ao movimento está nas origens da elaboração freudiana do aparelho psíquico. Tanto no “Projeto” de 1895, quanto na “Carta 52”, redigida em dezembro de 1896, o aparelho psíquico é concebido levando-se em conta as relações de continuidade e descontinuidade entre pensamento e ação.

Se tomarmos o caminho “progressivo” da excitação no aparelho, a ação é o que decorre de um processo de inibição que caracteriza o trabalho de inscrição, retranscrição e tradução da excitação no aparelho psíquico, como um ponto de conclusão de uma cadeia de representações que dominou a excitação e chegou à consciência ao ligar-se a uma representação verbal. Teríamos, no entanto, que conjugar o eixo do movimento ao caminho “regressivo” que conduz o pensamento de volta à excitação no aparelho psíquico, desfazendo as suas conexões, na medida em que a passagem ao ato está em descontinuidade com a cadeia de pensamentos. A esse respeito, lembramos que o termo “Agieren”, utilizado por Freud (por exemplo, no artigo “A dinâmica da transferência”, de 1912), equivale a uma repetição em ato no limite do trabalho de rememoração, a uma mostração, na medida em que esse caminho regressivo, no curso de uma análise, atualiza a realidade psíquica da fantasia na transferência.

Seguindo o eixo da dificuldade, encontramos, por sua vez, a função da barra, que concerne ao sujeito em sua relação com o gozo. De fato, o sujeito barrado pode ser pensado como um efeito do movimento da excitação, na medida em que o sujeito, em seu desamparo, se dirige ao campo do Outro.

A montagem do quadro da angústia compreende, assim, uma tensão crescente que vai de um mínimo de movimento a um máximo de movimento, passando pelo termo intermediário da emoção, e de uma menor a uma maior dificuldade, de forma que podemos definir a angústia como a resultante de um máximo de movimento com um máximo de dificuldade.

2 – Definidas as coordenadas da angústia, podemos escrever a série colocada por Lacan em diagonal, em ligação com a série freudiana inibição-sintoma-angústia.

Inibição, sintoma e angústia são termos heterogêneos, dirá Lacan, estruturas diferentes. Não há, portanto, passagem ou gradação entre eles. De fato, embora possamos pensar no aparecimento da angústia como um efeito de falência da função estabilizadora do sintoma, estabelecendo assim uma sequência entre eles, podemos encontrar igualmente superposição entre a inibição de uma função e um sintoma, como na impotência masculina ou na anorexia.

Mas, de modo geral, a inibição está associada à detenção de um movimento e, nesse sentido, se opõe à angústia, sendo o sintoma um termo intermediário que faz a mediação entre movimento e dificuldade ou, conforme definição de Freud, uma formação de compromisso entre movimento pulsional e defesa.

3 – Se a inibição é detenção do movimento no nível de uma função, estar impedido é um sintoma. “Estar impedido é um sintoma. Ser inibido é um sintoma posto no museu” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). “Impedicare”, etimologicamente, quer dizer “ser tomado na trama”, o que nos leva da função ao sujeito à medida que caminhamos no eixo da dificuldade.

A trama de que se trata é a captura narcísica, isto é, “o limite do que se pode investir no objeto”, como dirá Lacan.

O impedimento ocorrido está ligado e este círculo que faz com que, no mesmo movimento com que o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que lhe está mais distante, ele depare com essa fratura íntima, muito próxima, por ter-se deixado apanhar, no caminho, em sua própria imagem, a imagem especular. É essa a armadilha (LACAN, 1962-1963/2005, p.19).

O sujeito que se encontra, no plano sintomático, impedido, se deteve diante da castração, rendendo-se à captura narcísica. Um passo a mais no eixo da dificuldade, e ele se encontrará embaraçado, termo que é correlativo à angústia no eixo vertical. O embaraço é definido como “forma leve da angústia” na dimensão da dificuldade. Etimologicamente, o termo francês “embarras” aponta para o sujeito revestido pela barra, “quando vocês já não sabem o que fazer de si mesmos” (LACAN, 1962-1963/2005, p.19). Em espanhol, estar “embaraçada” quer dizer estar grávida, em gestação, à espera. Embora daí se depreenda um movimento futuro ou algum tipo de desfecho, falta ainda à dimensão do embaraço a precipitação ao ato que encontramos à medida que caminhamos no eixo do movimento.

4 – Prosseguindo em direção ao sintoma, seguindo o eixo do movimento, encontramos a emoção (émotion). A emoção salienta algo de inquietante em comparação com a inibição, evocando, ao mesmo tempo, a ideia de uma exteriorização, no sentido de alguma coisa que se descarrega, que é colocada para fora, muitas vezes, conservando o sentido de reação catastrófica. Trata-se de um termo utilizado por Freud justamente para designar o movimento da catarse, uma vez que teria sido a ausência de reação adequada ao trauma o que estaria na origem do sintoma histérico. A catarse se realiza levando-se em conta essa tríplice condição: a rememoração, a exteriorização da emoção e sua tradução em palavras. Trata-se, portanto, de uma exteriorização simbólica, na medida em que o sujeito, sob transferência, for capaz de se desembaraçar de seu sintoma por meio da palavra.

Finalmente, ainda na linha do movimento, encontramos a efusão (émoi). O termo esmayer deriva do latim popular, exmagare, esmagado, em português, com o sentido de queda, perda de potência. Relaciona-se a um excesso de movimento que parece colocar o sujeito fora de si, na medida em que ele se encontra embaraçado pelo desenvolvimento da angústia. O émoi é “o perturbar-se mais profundo na dimensão do movimento. O embaraço, o máximo de dificuldade atingida” (LACAN, 1962-1963/2005, p.22), preenchendo assim as duas coordenadas da angústia.

5 – É possível agora completar o quadro com as referências ao acting-out e à passagem ao ato. Podemos desde logo observar que, em relação ao eixo da dificuldade, encontramos uma maior proximidade entre sintoma e acting-out, por um lado, e passagem ao ato e angústia, por outro.

De fato, o acting-out se produz a partir de um franqueamento do sintoma, estando logicamente determinado no curso de uma análise no limite do trabalho de interpretação, ali onde se desvela a estrutura da fantasia, destacando-se como fundamental o fato de que o acting-out está direcionado ao Outro. Quanto à passagem ao ato, ela parece se antecipar ao pleno desenvolvimento da angústia, sendo tomada por Lacan como uma precipitação que lança o sujeito em um movimento de queda para fora da cena fantasmática.

É o que se revela na análise feita por Lacan do caso da “Jovem Homossexual” (FREUD, 1920/1976). A passagem ao ato tem relação com o “deixar cair” (Niederkommen). Diante do olhar do pai com quem ela cruza na rua quando caminhava ao lado da dama — a quem a jovem se dedica, a contragosto do pai — se produz o extremo embaraço; e se lhe acrescentamos a emoção como desordem do movimento, o que chega nesse momento preciso ao sujeito é sua “identificação absoluta com esse pequeno a ao que ela se reduz” (LACAN, 1962-1963/2005, p.124), ao mesmo tempo em que ela se sente rechaçada, lançada fora da cena. É o suficiente para que ela se precipite, jogando-se de uma pequena ponte sobre a linha do trem, desde o lugar da cena onde atuava no sentido do acting-out. Ou seja: se a tentativa de suicídio é uma passagem ao ato, toda a aventura com a dama — que é elevada, como no amor cortês, a essa posição de objeto supremo — é um acting-out.

Psicose E Passagem Ao Ato

A questão que toca o analista, a cada análise, é justamente saber o quanto de angústia o sujeito pode suportar. Na clínica da neurose, a angústia é um guia, funcionando como sinal, o sinal de angústia. Podemos dizer que o sinal de angústia abre a possibilidade de um manejo, orientando a clínica da neurose em direção ao real, ao impossível de suportar, a partir do suporte da mediação simbólica. Se o ato analítico, esse ponto de viragem de uma análise, visa a extrair da angústia a sua certeza — já que, ao contrário do pensamento, a angústia é o que não engana — a questão é como chegar até aí bordejando, por assim dizer, os campos da passagem ao ato e do acting-out com os quais a angústia faz fronteira, como vemos no quadro.

Ora, o ato analítico é uma aposta que toma seu fundamento, na clínica da neurose, do fato de que o fantasma está emoldurado, enquadrado pelo sinal de angústia. Há um marco referencial em que essa aposta é possível: seu ponto preciso é a questão “que queres?”, que interroga o desejo do Outro. A relação com o objeto a é um modo de responder a essa pergunta, na medida em que o objeto a está, por assim dizer, a meio caminho entre sujeito e Outro, na medida em que o neurótico tende a se dedicar ao preenchimento da falta no Outro. O ato analítico visa a separar o sujeito do objeto ao qual ele identifica a sua demanda.

Na psicose, por sua vez, a angústia está a céu aberto; ela não funciona para o psicótico como um sinal ou um anteparo que se anteciparia ao seu pleno desenvolvimento. Para o psicótico, há impossibilidade formal de responder ao desejo do Outro pela via fantasmática. De fato, se, na neurose, o objeto a, na medida em que é extraído pela castração, vem a ser uma resposta possível a essa questão, na psicose, o sujeito encarna o objeto e, nesse sentido, encarna ele mesmo a resposta. Por conseguinte, falta a moldura que daria à angústia a sua contenção; falta a falta, como dirá Lacan, o contorno significante do objeto. Por isso, o sujeito seria lançado mais facilmente ao ato enquanto a angústia tenderia a aparecer mais do lado do Outro, como testemunhamos a cada vez que nos propomos a tratar um psicótico.

O campo da passagem ao ato apresenta-se, portanto, mais disperso nas psicoses justamente por faltar o traçado do contorno do objeto que a fantasia possibilita para o neurótico. Devido à sua dimensão invasiva, não limitada pela fantasia, o gozo, na psicose, predispõe o sujeito ao ato. Entretanto, talvez seja possível estabelecer algumas distinções que possam nos orientar minimamente na clínica da passagem ao ato. Assim, limitando-nos à fenomenologia dos atos hetero e autoagressivos, podemos distinguir:

a – Os atos impulsivos, aparentemente imotivados e muitas vezes repentinos, para os quais parece faltar a mediação simbólica e por meio dos quais a pulsão se faz ato. Podemos relacioná-los ao impulso a golpear que caracteriza a análise feita por Lacan do Kakon, esse objeto definido como a presença mesma do “mal” que o sujeito visa a atingir, seja extimamente ou no próprio corpo, em suas tentativas de barrar ou extrair o gozo, operando diretamente no real. Aquilo a que se visa é o mal-estar em sua urgência mesma, sendo a passagem ao ato uma tentativa de tratar o real pelo real. Assim, uma paciente é levada a atingir outro usuário de um serviço de saúde mental — que, nessas circunstâncias, poderia ser qualquer um — e, em seguida, tenta se lançar de uma janela sem que pudesse dar razões para isso, a não ser o impulso que acompanha o seu mal-estar e que a coloca, por um instante, fora de si. O que fazer diante de tais ocorrências, a não ser nos antecipando a esse mal-estar na medida do possível, oferecendo as contenções disponíveis na ocasião até que se restabeleçam as condições de mediação simbólica?

b – Os atos derradeiros, conclusivos, que pressupõe uma cadeia de pensamentos. Algumas vezes associamos a esses atos seu aspecto resolutivo e estabilizador para o psicótico, como acentuado por Lacan em sua tese de 1936. Um exemplo são os crimes hipermotivados na paranoia. A passagem ao ato pressupõe, às vezes, um longo período de preparação, embora nem sempre isso se faça anunciar. O importante a salientar é o aspecto lógico-dedutivo, nem sempre detectável, que acompanha tais atos, mesmo na esquizofrenia. Cita-se como exemplo uma paciente que veio a cometer uma tentativa de suicídio alguns dias após escutar de sua mãe uma frase que contestava sua interpretação delirante. A paciente vinha argumentando, em resposta ao seu mal-estar, que não tinha estômago, o que a deixava com uma sensação de vazio interior. A mãe acrescenta a essa formulação uma premissa universal: “todo ser vivo tem estômago”. É o suficiente para precipitar a conclusão: “logo, estou morta”. Podemos escrever logicamente essa dedução: (~q) (p  q) : (~q  ~p). Ou seja: “se eu não tenho estômago” (~q) e “se todo ser vivo tem estômago” (p q), conclui-se que, “se eu não tenho estômago” (~q), “eu não posso estar viva” (~p). Observamos que a certeza delirante, que incide sobre o particular, não é negada pela premissa universal. No entanto, em função da temporalidade própria às cadeias de pensamentos, resta-nos a chance de abrir a possibilidade de uma realização assintótica dessas deduções, bloqueando em alguns pontos o desenvolvimento da certeza delirante mediante a introdução daquilo que Lacan chamou de “o benefício da dúvida”.

c – Os atos de mutilação em série que incidem sobre o próprio corpo. À diferença do impulso a golpear que caracteriza o Kakon, essas mutilações e agressões ao corpo se distinguem por seu aspecto repetitivo e mesmo monótono e por seus efeitos de apaziguamento e esvaziamento. Muitas vezes, são atos silenciosos e solitários; outras vezes, inseridos em uma espécie de identificação grupal, como se observa em sites. Mas podem, igualmente, adquirir um valor de mostração e transferência de angústia. Cita-se como exemplo um sujeito que, repetidas vezes, insere objetos em seu corpo, condenando-se, assim, a uma série de intervenções cirúrgicas, e que fala disso sem mostrar sofrimento. Tais sujeitos dão, às vezes, a impressão de operar uma transferência do mal-estar para o Outro e de produzir neste um sentimento de impotência em lugar do impossível a suportar que concerne à relação de todo sujeito com o real.

d – Distinguimos os atos mostrativos, mais próximos do acting-out, das passagens ao ato, em função de parecerem mais destinados a provocar um efeito sobre o Outro, analista ou instituição, seja nas neuroses ou nas psicoses, e que revelam algum aspecto que não encontrou recursos simbólicos de expressão. Tais atos supõem, dessa forma, a existência de um cenário como campo de atuação e podem ser tomados, muitas vezes, na perspectiva do “tratamento do Outro”, exigindo uma interpretação e reorientando a posição do analista ou da instituição em relação ao paciente. Nisso também o acting-out se diferencia das passagens ao ato, em que o Outro é visado em sua dimensão intrusiva e excessiva para o sujeito, como Outro gozador, de quem o sujeito busca desvencilhar-se. Reconhecemos, assim, nos fenômenos de acting-out, a dimensão da transferência e um laço social mínimo. Um exemplo de acting-out pode ser recolhido no relato do “Caso Daví” (CARVALHO, 2000). Enquanto quebra os vidros do carro da gerente do serviço com uma pedra, o paciente se certifica de que o olham da janela. Esse e outros episódios podem ser referidos à frase “quero mostrar a eles que tenho valor”, que define a demanda de reconhecimento do sujeito frente ao Outro.

e – Por fim, teríamos os atos agressivos, que pressupõem o outro como semelhante, e a hipertrofia do imaginário. Aparecem, muitas vezes, justificados pela “raiva” ou pelo “ódio”, ou seja: a passagem ao ato é, nesses casos, dominada por um sentimento intenso e incontrolável que coloca o sujeito em posição de rivalidade em relação ao semelhante. Operam em uma vertente mais voltada à descarga da pulsão imaginariamente endereçada ao outro, em contraste com a tentativa de extração do mal-estar relacionado à presença do objeto Kakon. O outro é visado enquanto supostamente goza de algo que falta ao sujeito. Na medida em que o sujeito aparece aqui mais confrontado à castração, esses atos agressivos tendem a estar mais referidos à estrutura neurótica e à irrupção da violência, que decorre dos embaraços narcísicos do sujeito e de sua vontade de gozo.

 


Referências
MILLER, J.-A. “Jacques Lacan: observações sobre o seu conceito de passagem ao ato”, Opção Lacaniana on-line, ano 5, n.13, mar. 2014. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero13/index.html. Acesso em: abril/2014.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
FREUD, S. (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.18, p. 185-212)
CARVALHO, F. F. “O caso Daví”, Curinga, Belo Horizonte, n.14, p.116-123, abr. 2000.
i Este texto corresponde, essencialmente, à intervenção no Núcleo de Psicose do IPSM-MG, em abril de 2014. Em grande parte, retoma as elaborações publicadas com o título de “Psicose e passagem ao ato” na Revista Abrecampos, n.2, publicação do Instituto Raul Soares, 2000, do qual é uma versão modificada.

Frederico Feu
Frederico Zeymer Feu de Carvalho – Psicanalista, membro EBP/AMP. E-mail: fredericofeu@uol.com.br



O Utilitarismo Da Pena E O Real Da Pulsão

MÁRCIA MEZÊNCIO

Concluímos hoje nosso percurso pelo texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, orientado pela questão de investigação proposta pela Seção Clínica: o que de real encontramos em nossa prática na interface da Psicanálise com o Direito? Esse real encontrou, ao longo do semestre, algumas nomeações — crime, violência, guerra — manifestações que respondem, por outro lado, ao irredutível da pulsão que seria, finalmente, o real em jogo. O Direito, um produto da cultura, seria ele também uma resposta ao que não tem governo, nem nunca terá… Antecipando uma questão que trabalharemos no próximo semestre, como o Direito pode servir à invenção do sujeito para tratar seu embaraço com o real?

Iniciaremos, talvez, o percurso anunciado para o futuro, levantando algumas questões sobre o utilitarismo da pena. Cabe-me apresentar um comentário sobre a crítica de Lacan ao utilitarismo articulada às questões da função da punição e sua relação ao real da pulsão.

Um trecho que abre a seção IV desse texto de Lacan condensa o argumento que ele desenvolve ao longo do artigo. Eis o trecho:

Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E além do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação científica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penalogia (LACAN, 1950/1998, p.139).

Articulando essas considerações à minha prática no Liberdade Assistida, tomarei, mais uma vez, a afirmação que pode ser lida reiteradas vezes nos Termos de Audiência encaminhados pelo Juízo aos programas de execução de medidas, e que ressoa, a meu ver, com essa advertência de Lacan relativa ao utilitarismo e também à má consciência social: “a medida socioeducativa tem o caráter de pena, mas não a finalidade de retribuição, seu objetivo é de ressocialização”. Essa medida que é, pois, uma sanção e só se aplica em resposta ao ato delituoso cometido pelo adolescente considera a “condição peculiar de desenvolvimento” do adolescente e trata a ruptura do laço social ocasionada pelo ato infracional através da “socioeducação” e da “inclusão social” e não da retribuição.

Parece-me, então, que a afirmação acima resume uma série de ordenamentos, normativas e seus fundamentos políticos e filosóficos, senão ideológicos, e aqui poderá ser um ponto de partida para uma leitura exploratória de alguns artigos sobre a evolução do Direito Penal e sobre o utilitarismo da pena a que Lacan se refere no trecho acima. Fica a advertência de que não farei uma discussão sistemática sobre o tema, mas o destaque de alguns pontos que podem ser relevantes para nossa discussão.

Podemos tomar igualmente o diploma legal que normatiza a execução das medidas, conhecido como Lei do SINASE. Em seu artigo primeiro, a definição dos objetivos da medida socioeducativa identifica o cumprimento da medida à promoção social, vinculando-o à execução do Plano Individual de Atendimento, acentuando o seu caráter assistencial. Apesar de apontar também como objetivo a desaprovação da conduta, esta parece ocupar um lugar acessório para alguns operadores.

Inicialmente, gostaria de destacar do texto de Lacan a crítica ao humanismo e ao humanitarismo, como essa solução utilitária. Ao afirmar que a função expiatória do castigo é reduzida a seu fim correcional, que pode variar, abre para nós a questão sobre a finalidade da pena e para a disjunção entre a função do castigo para a Psicanálise e para o Direito. Por fim, aponta a concepção sanitária da penalogia, o recurso ao saber científico da psiquiatria, servindo igualmente a esse fim utilitário da prevenção.

E o que é o utilitarismo? O utilitarismo é uma teoria ética, que se baseia no princípio da utilidade. A definição clássica desse princípio é: o prazer e a ausência da dor são, de fato, desejados por todos os seres humanos, e cada pessoa busca seu próprio prazer (A semelhança desse princípio com o princípio de prazer freudiano é notável, tendo sido assinalada por alguns autores), Jeremy Bentham, James Mill e John Stuart Mill (de quem Freud fez algumas traduções) sendo os principais autores dessa versão clássica, filosófica, do utilitarismo. Para uma visão utilitarista do Direito Penal, um comportamento deve ser proibido se for indesejado pela sociedade, sendo sua lesividade um elemento do cálculo, mas não o mais relevante. A avaliação do resultado produzido pelo comportamento se dá por sua utilidade (MARTINELLI, 2014).

Em relação ao humanismo, apontado por Lacan, o próprio Código Penal clássico surge de uma visão humanista, tributária do iluminismo. Também a questão da utilidade já está presente em Cesare Beccaria, autor de referência para a localização do surgimento dessa versão chamada clássica do Direito Penal. Segundo os editores no Brasil de sua obra Dos delitos e das penas, Beccaria “condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social, declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos”, bem como o caráter retributivo e preventivo da pena.

Em relação à proporcionalidade das penas, um detalhe que me pareceu curioso é que não se trata apenas de avaliar a gravidade ou lesividade do ato, mas igualmente sua frequência, isto é, se um comportamento não é comum, ele não precisa ser inibido tanto quanto aquele que, menos grave, perturba a organização social por ser habitual. Esse o caráter preventivo, exemplar da pena. A utilidade da pena também, nesse sentido, depende da certeza da punição. Segundo esse ponto de vista, não é o tamanho da pena, mas a certeza de não impunidade que seria um fator mais poderoso de inibição do crime.

Destaco de um artigo de Savino Filho (2014), “Evolução do Direito Penal – Comentários”, a afirmação de que as primeiras manifestações do Direito se iniciaram com os primeiros agrupamentos humanos, em que a necessidade da ideia de punição nasceu do próprio convívio comunitário, em defesa do sentimento natural e sobrevivência contra atos injustos. Formulação que corrobora o argumento de Lacan no texto da criminologia, ao dizer que não existe sociedade em que não se estabeleça a relação crime-castigo através de uma lei positiva.

O autor afirma ainda que a formação do Direito Penal se deu em ciclos em que os castigos evoluíram. Ele lista: perda da paz, vingança privada, composição pecuniária, castigo corporal e pena pública, que eram regulados e desenvolvidos através de leis de usos e costumes, das legislações do Oriente, da Grécia, do Direito Romano, do Germânico, do Canônico, do Penal comum.

Seu artigo descreve as Escolas Clássica (Beccaria), Positiva (Lombroso), Eclética e destaca a Escola Nova de Defesa Social, que surge no pós-guerra. Essa nova Defesa Social reconhecia a luta contra a criminalidade como sendo uma das mais importantes tarefas da humanidade, tarefa que exigiria os meios adequados para esse combate. Esses meios adequados, que foram propostos como um programa mínimo que excluísse a ideia de pena ou retribuição, deveriam buscar a desjuridização e ter um caráter não repressivo.

O autor ainda assinala uma aproximação do Direito Penal com o Direito do Menor, a partir dessa escola nova de Defesa Social, com ênfase nas medidas de tratamento com vistas à reeducação e à reinserção social.

Ele destaca as teorias finalistas: o fim do Direito Penal é a proteção social e o controle. Cita Luigi Ferrajoli e articula garantismo penal com intervenção mínima. Esse ponto articula direito do cidadão e limite da intervenção do estado. Ressoa ao que Lacan aponta sobre a crise de legitimidade do exercício da punição pelas classes dominantes. Localiza-se aí uma crise do Direito Penal.

Ao percorrer rapidamente essa história do Direito Penal, podemos afirmar que se trata de mais uma crise, ou propor que a condição do Direito Penal seria de crise permanente?

Na atualidade, testemunhamos a existência de uma tendência internacional de humanização das penas, pelo menos em tese, atendendo às regras mínimas da ONU para as prisões, que datam de 1955, também no contexto do pós-guerra e da declaração dos direitos humanos, já apontados aqui como o pano de fundo da comunicação de Lacan sobre criminologia.

No Brasil de hoje, por um lado, Maierovitch (2014) afirma que a pena tem a finalidade ética de emenda, ressocialização e reinserção social, além de sua natureza retributiva e aflitiva. Por outro, Juarez Tavares (2014), entre tantos outros, critica o projeto de mudança do Código Penal em discussão no Congresso Nacional, por considerá-lo de caráter retórico e usar de apelo emotivo para justificar o endurecimento das penas. Afirma que o projeto está focado na punição, na criminalização dos movimentos sociais e que desconhece a falha do Estado em não promover a ressocialização do preso.

Enquanto isso, nos complexos penitenciários, funciona uma ordem feroz, um rigor nos castigos determinados pelos próprios presos, torturas, um real que nos espanta e revolta. Que coloca em questão não somente a dita falência do sistema, mas que nos permite relançar a pergunta sobre a função expiatória do castigo, para o sujeito e para o tecido social. Também, paradoxalmente, assistimos à chamada “judicialização” de todos os tipos de laços sociais e de todos os campos da existência. Exemplos não nos faltariam, seja de nossa prática profissional, seja de nosso cotidiano.

Perguntamo-nos sobre a incidência dessa pena privada da função de castigo, dessa demissão da autoridade de sua função de julgar e castigar, dessa alegada “desjuridização”, sobre o real da pulsão que se presentifica no crime ou no ato infracional.

Pode-se dizer que, para a discussão sobre nossa prática, em particular no sistema socioeducativo, devemos nos perguntar que contribuição a psicanálise lacaniana pode oferecer para possibilitar ao sujeito os instrumentos para saber fazer com o real em relação ao qual ele se encontra desarmado.

Dos trabalhos apresentados em nossos encontros do semestre, recolhemos alguns pontos de referência para abordar isso que escapa à regulação, mas que pode recorrer a um discurso como o do Direito.

Hélio Miranda pergunta: como produzir uma outra dimensão da verdade frente à demanda do judiciário de constatar a verdade dos fatos? E apontou a possibilidade de introduzir uma experiência da verdade que considere o sujeito e que, pela abertura da enunciação e manejo da transferência, faça vacilar o imaginário (abuso da criança pelo pai) e possa tocar a experiência do real (o real traumático da própria experiência infantil da mãe) e relançar o campo do desejo.

Fernando Casula apresentou-nos os paradoxos da inimputabilidade e suas consequências para o sujeito “fora da lei” que é o psicótico. Fora da lei também é o real da pulsão, sobre a qual o sujeito é, no entanto, responsável. As questões que Fernando nos apresenta concernem à função da ficção jurídica como um tratamento para esse real, tratamento a ser produzido via consentimento à punição. Nessa direção, opõe o utilitarismo da pena à responsabilização. A proposta de uma pena sob medida, podemos chamá-la de “utilitarista”, ao modo da psicanálise? Como um uso da ficção jurídica para inscrever o sujeito?

Kátia Mariás, ao tratar do crime e da violência, convidou-nos, com Freud e Lacan comentados por Maria José, a pensar a violência na perspectiva do excesso pulsional. Aquilo que em Freud é nomeado como pulsão de morte, mais além do princípio do prazer, e em Lacan, como o real do gozo. Excedente pulsional não regulado que, quando atuado, é a violência. Então, o ato tem uma causa: a presença do real do gozo. Lembrou-nos, ainda, que, para Freud, o crime edipiano era a forma privilegiada de dar tratamento à violência pulsional. O ato criminoso se constitui uma defesa contra a angústia que sinaliza a presença do objeto. O ato é uma espécie de resposta, de tratamento pela desaparição do sujeito no ato. Culpar-se por um crime, seja ele cometido ou desejado, para Freud, seria uma maneira de se estabelecer dentro da lei do pai. Na concepção lacaniana, o assentimento ao castigo é o que garantiria a possibilidade de responsabilização. Nesse sentido, a lei e a pena poderiam ser “úteis” ao sujeito.

Ludmilla Féres Faria, ao apresentar-nos o supereu, demonstra o avesso do princípio utilitarista. Aponta que o real da pulsão que escapa a qualquer artifício pode ser entrevisto na referência ao supereu, entendido como a instância que impede o equilíbrio ao encontrar no sofrimento a própria satisfação. Nesse sentido o supereu pode ser traduzido como a divisão do sujeito, dado que mostra que o sujeito não quer seu próprio bem, que ele trabalha contra si próprio.

Graciela Bessa segue essa trilha, lembrando-nos de que a hipótese do supereu sustenta que o que impede que a agressividade se dirija aos outros é a própria pulsão de morte, que, através do supereu, exerce sua ferocidade contra o sujeito. Uma vez que essa pulsão de destruição, ou de morte, é estrutural e que, enquanto pulsão, engendra uma busca de satisfação que não cessa, como tratá-la, temperá-la, nos termos que Graciela nos apresenta? Em seu texto, ela tece considerações sobre o mal-estar na cultura, apontando que, para Freud, é o mal-estar do sujeito, que ela nomeia mal-estar na identificação, que é o fundamento do mal-estar na cultura.

Em nosso último encontro, Maria José e Marina Otoni nos apresentaram alguns dos pós-freudianos que exploraram, de alguma forma, o campo da criminologia, relacionando suas descobertas e proposições à concepção freudiana, enunciada em 1906, em “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”. A questão pulsional é considerada por esses autores, segundo uma concepção desenvolvimentista da libido, o delinquente ou o criminoso sofreriam de uma fixação libidinal e permaneceriam em uma posição infantil. Para alguns desses autores, a questão do tratamento do criminoso envolve a educação ou uma reeducação (Seria possível pensar em uma “educação” das pulsões, sendo essa a contribuição da psicanálise à justiça, para esses autores?). Sobre a punição, esta não se coloca como uma condição para a responsabilidade, pois têm maior peso as ideias de prevenção e de cura.

Uma palavra sobre o real da pulsão. O que resiste ao simbólico é a pulsão de morte. Não se desenvolverá aqui esse tema, que já foi tratado nas intervenções ao longo do semestre, retomadas acima. Encontramo-nos em um momento da história humana, que pode ser escrito através do matema a>I, em que o programa civilizatório não privilegia a interdição ao gozo. Pelo contrário, o que se coloca é um imperativo de gozar e uma oferta insidiosa de objetos, um excesso sem regras. A esse propósito, cito o verbete “Excesso” do volume Scilicet “Um real para o século XXI”.

A crise atual da civilização não é, no entanto, um processo casual, mas, antes, um programa relacionado com a produção de um novo procedimento normativo posto na base de uma nova (in)civilização. […].

Esta é, portanto, nossa tese, a civilização do excesso (de gozo) é um discurso, um novo saber/poder que se exercita sobre as vidas através da injunção de gozo. […] É um poder que se exerce sem metáfora, sem insígnias, sem retórica e, em alguns aspectos, sem sentido (RAMAIOLI, 2014, p.139-140).

Miller (2009) chega a apontar que, se existe culpa na contemporaneidade, seria uma culpa de não gozar. Se a pulsão não pode ser educada, ela pode ser tratada pelos ordenamentos sociais e jurídicos. É também disso que Lacan trata nesse artigo. É, então, nesse sentido, que, no que se refere à psicanálise de orientação lacaniana, discutimos as novas ficções jurídicas que poderiam ser criadas para dar contorno, fazer borda a esse real.

Gostaria de esclarecer que tomei alguma liberdade para abordar a questão da utilidade ao não me deter em uma exploração circunscrita à referência ao utilitarismo, seja na Filosofia ou no Direito, mas tenha me permitido inverter a questão da utilidade, referindo-a ao pragmatismo proposto por Miller (2008) e que justificaria a ação lacaniana na cidade e nas instituições. Assim, também Miller aponta em que a Psicanálise poderia ser útil ao Direito, e, entre outras considerações, afirma que a Psicanálise permite ao Direito nuançar a crença na verdade, ao considerar a distinção entre o verdadeiro e o real. Como, para abordarmos o real, precisamos recorrer aos semblantes, inventar, o Direito, ao reconhecer-se como ficção, também poderia prestar-se, ser útil, ao tratamento desse real.

(1) Texto proposto para discussão no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 04/06/2014, no encerramento das atividades do semestre.

 


 

Referências
FOUCAULT, M. “Conferência IV”. In: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999. p.79-102.
LACAN, J. (1950). “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.127-151.
MAIEROVITCH (CARTA CAPITAL, 12/02/2014). “As prisões e os microtraficantes”. p.39.
MARTINELLI, J. P. O. “Uma leitura utilitarista do Direito Penal Mínimo”. Disponível em: www.academia.edu/5799781/uma_leitura_utilitarista_do_direito_penal_minimo. Acesso em: maio 2014.
MILLER, J.-A. “Rumo ao PIPOL 4”, Correio, São Paulo, n.60, p.7-14, 2008.
MILLER, J.-A. “Nada é mais humano que o crime”. In: Almanaque on-line n.4, jan-jun/2009. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque4.htm. Acesso em: maio 2014.
RAMAIOLI, I. “Excesso”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. (Orgs.). Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p.139-141.
RASSI, P. V. de G. S. Direito Penal Mínimo, Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano XI, n.50, fev 2008. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4498. Acesso em: maio 2014.
SAVINO FILHO, C. A. “Evolução do Direito Penal – Comentários”, Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: www.smithedantas.com.br/texto/ev_dir_penal.pdf. Acesso em: maio 2014.
TAVARES, J. (CARTA CAPITAL, 02/04/2014). “Retrocesso, não”. p.58.

Márcia Mezêncio
Mestre em Psicologia (Estudos Psicanalíticos), Psicanalista, Membro da EBP/AMP. E-mail: marcia.mezencio@terra.com.br.



Trauma E Devastação: A Relação Mãe-Filha

ANDREA, MARGARET, MARIA DAS GRAÇAS SENA

 

Partimos da pergunta se a devastação poderia ser considerada traumática e, por meio, tanto da investigação clínica, como dos textos de Freud e Lacan, formulamos uma hipótese de trabalho para ser aqui discutida em nosso Núcleo de Pesquisa, qual seja: é o encontro com a falta de significante que definiria A Mulher ou, em outros termos, a descoberta de que A Mulher não existe, cujo matema é também o S(A/), que seria traumático para todo sujeito, especialmente para o sujeito feminino? A devastação decorre da inexistência desse significante d’A mulher e pode tomar a forma de um gozo sem limites.

O termo devastação, em francês, ravage, conserva duas direções de sentido. Ou está associado à ideia de ruína, destruição, ou a de um corpo arrebatado na vertente de um êxtase, de uma felicidade suprema, que é lançado fora do tempo e do espaço. No dicionário, seu sentido remete a uma destruição sem limites, a algo avassalador. Devastar é arruinar, tornar deserto; mas também pode indicar arrebatamento, deslumbramento, encantamento, para os quais o termo francês mais usado é ravissement.

O Que É Devastação No Sentido Da Psicanálise?

Graciela Bessa, em seu livro Feminino: um conjunto aberto ao infinito (2012), afirma que encontramos, na teoria lacaniana, três momentos em que a devastação aparece ligada à sexualidade feminina. Em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992) ela surge ligada ao desejo da mãe e, independentemente de ser menino ou menina, o desejo da mãe sempre causa estragos (podendo a criança estar submetida ao pior desse desejo). Em “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retorna ao tema da devastação, como veremos a seguir, e em O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007), ao fazer referência à devastação, no campo amoroso, Lacan afirma que um homem pode ser pior que uma aflição, pode ser uma devastação para uma mulher.i

Num sentido análogo à devastação mãe-filha, Freud (1931-1933/1976) já havia identificado essa mesma questão, mais no final de sua obra, nomeando-a sob outros termos: catástrofe, estrago.

Vejamos como essa teorização sobre a devastação elucida o tema do trauma.

A citação extraída do Seminário 17 é a que, inicialmente, nos colocou a trabalho:

O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a bocarra. O desejo da mãe é isso (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

E Lacan prossegue afirmando que, no entanto, há algo de tranquilizador nessa história. “Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha” (LACAN, 1969-1970/1992, p.118).

Esta citação torna-se mais clara se recorrermos a Lacan quando ele aborda o complexo de Édipo, a partir da fórmula da metáfora paterna, em que fica evidente a presença da mãe na questão da feminilidade da mulher.

A partir da combinatória presença/ausência da mãe é que se instala um x no campo da criança, independentemente de ser menino ou menina, surgindo uma pergunta sobre o que satisfaz essa mãe para além dela. Lacan afirma sobre o que mais importa aos destinos da criança, que “não é um mais ou um menos de real que tenha ou não tenha sido dado ao sujeito, mas é aquilo pelo qual o sujeito almejou e identificou o desejo do Outro que é o desejo da mãe” (LACAN, 1958/1998, p.283).

Se pensarmos que essa fórmula refere-se à constituição de um sujeito como desejante, algo deve suceder para que esse desejo, obsceno e voraz, impossível de se suportar como tal, se articule ao significante. Essa operação só é possível se operar aí o significante do Nome-do-Pai.

Assim, teremos duas vertentes do desejo da mãe: aquele que é articulado à castração materna e que gera angústia (che vuoi?) e aquele que, graças à metáfora, substitui esse enigma opaco pelo Nome-do-Pai, gerando um efeito de significação.

É assim, então, que podemos falar do falo como significante do gozo (fálico), já que ambos (falo e gozo) se encontram coordenados pelo Nome-do-Pai. Miller (1994), em “Clinica del superyo”, localiza o Nome-do-Pai com uma função coordenada ao desejo, e ao supereu como função coordenada ao gozo. Não se trata aqui do supereu freudiano, herdeiro do complexo de Édipo, mas do supereu lacaniano, aquele que ordena gozar. Supereu materno, cuja lei insensata está muito mais ligada ao desejo da mãe que ao pai, ou seja, “antes que o desejo seja metaforizado e apreendido pelo Nome-do-Pai”.

Acreditamos que é aqui, precisamente, o ponto em que podemos localizar a devastação: não como um conceito, e sim como efeito da incidência traumatizante desse gozo puro, sem medida, não limitado pelo falo. Gozo que está sempre presente e que o sintoma não consegue metaforizar.

A Devastação Na Menina

No texto “O aturdito” (1972/2003), publicado em Outros escritos (2003), Lacan retoma o termo devastação para afirmar que a menina parece esperar algo da mãe que não se situa inteiramente sob o signo da castração, ou seja, que não se situa sob o significante do falo. Segundo Lacan:

Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai — o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (LACAN, 1972/2003, p.465).

O texto “O aturdito” (1972/2003) é contemporâneo às elaborações de Lacan sobre as fórmulas da sexuação e sobre o gozo feminino. Ali, onde se poderia encontrar a referência de um homem devastador para uma mulher, o que se descobre é a referência ao Édipo freudiano. Ao mesmo tempo em que Freud considera que “a mulher, no Édipo, se move como peixe n’água”, isto é, em seu ambiente natural, Lacan afirma que isso “contrasta dolorosamente” com a referência de que, para “a maioria das mulheres, a relação com a mãe é devastadora”. É da relação com a mãe como mulher que a filha espera encontrar algo com mais “substância”, que vai para além do falo, ou seja, a sexualidade feminina implica necessariamente diferenciar uma mãe da mulher.

Vimos, anteriormente, que ter de enfrentar o enigma do desejo e o mistério do gozo da mãe gera muita angústia na criança, sobretudo ao se confrontar com a especificidade da anatomia feminina. Embora não haja propriamente falta no corpo da mulher, a particularidade de sua anatomia faz com que, no inconsciente da menina e do menino, a anatomia feminina inscreva-se no registro de uma falta. Não é tanto a questão anatômica, mas como ela está subjetivada como falta da mãe, no tocante ao desejo e ao gozo.

Aprendemos com a psicanálise que, quando falamos menino-menina, não queremos dizer, necessariamente, que estamos nos referindo às posições masculina e feminina, pois, na realidade, essas posições estão ligadas ao significante, não tendo nada a ver com a identidade sexual anatômica.

Se, para Freud, a anatomia é o destino, para Lacan a anatomia é um efeito do discurso. Mesmo tendo claro que a anatomia não é o destino, isso não deixa de ter consequências sobre o sujeito. Vejamos como um e outro responderam a essas questões.

Freud considerou que, nos meninos, embora o pênis seja apenas um suporte imaginário para o falo, ele é bastante consistente para o homem ter esse representante de seu sexo no inconsciente, e, desse modo, poder subjetivar seu sexo com “eu tenho”. Isso é o que possibilita ao menino desligar-se, mesmo que não completamente, desse gozo materno.

E como pensar então na modalidade dessa relação ao desejo da mãe quando o sujeito em questão é uma menina?

Pelas mesmas razões anatômicas, porém, inversamente, isto é, de “não ter” o pênis, possibilitando que a saída histérica seja a mais frequente na mulher. “Ter ou não ter” foi o modo como Freud tentou responder ao enigma da sexualidade feminina. Porém, Lacan, ao inventar as fórmulas da sexuação, avança sobre o ponto deixado em aberto por Freud, esclarecendo sobre as raízes lógicas do desmedido que uma mulher espera da sua mãe.

Em seu O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973/1985), Lacan apresenta suas fórmulas da sexuação e explicita a diferença sexual a partir da lógica, fazendo do falo uma função e mostrando como homens e mulheres cumprem ou não a função fálica. “Quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro” (LACAN, 1972-1973/1985, p.85). Os sujeitos que se posicionam do lado dos homens estão confrontados com uma exceção, que, por sua vez, possibilita um conjunto fechado. Isso quer dizer que todos aqueles que ali se encontram estão inscritos na lógica fálica.

Do lado das mulheres, isso não é possível. Elas não estão confrontadas a uma exceção e sim a uma inexistência, e, consequentemente, do lado feminino, não se pode construir o conjunto de todas as mulheres. A ausência de exceção constitui a mulher fora do universal, em que cada uma é uma. Portanto, o feminino é elucidado pelo viés de um gozo que tem relação com o ilimitado, isto é, o gozo do corpo não se encontra limitado pelo falo. A devastação pode, a partir dessa leitura de Lacan com respeito ao gozo feminino, ser lida como uma dificuldade estrutural própria à inexistência do todo-feminino, ligado ao S(A/).

Segundo Recalde (2012), partimos da histeria para entendermos o caminho que a menina percorre ao “tornar-se mulher”. Segundo a autora, a histérica conta com dois caminhos: ou bem aparece como a que “tem”, ou bem ostenta o que lhe falta e, por isso, “é”. Já a pergunta sobre a feminilidade encontra, com Lacan, uma saída pela via significante que lhe permite abordar o não-todo.

Quando se tem a referência ao falo, podemos localizar aí a saída histérica que, como qualquer homem, está submetida sob a égide do falo (lado esquerdo das fórmulas da sexuação). Mas também poderá se desdobrar, já que tem por um lado relação com o falo, mas por outro lado, está ligada a esse gozo que escapa ao Nome-do-Pai.

Desdobramento que lhe permite, assim: articular-se, por um lado, ao falo, mas também se conectar a essa dimensão mais além do falo, onde poderíamos localizar o lado feminino.

Na clínica, deparamo-nos com os diferentes modos de o sujeito feminino se posicionar em relação à falta: algumas se sacrificam ostentado a falta, outras se localizam como excepcionais, outras se comportam como se tivessem o falo, enfim, diferentes modalidades de situar-se frente a esse gozo mais além do falo, cujo efeito pode ser devastador

Portanto, o termo devastação, empregado por Lacan para designar a relação entre mãe e filha, refere-se também ao que está para além da reivindicação fálica dirigida à mãe, ou seja, ao encontro da menina com o Outro materno, enquanto Outro do gozo. A impossibilidade de dar um contorno ao excesso é a devastação.

Devastação, Trauma E Lalíngua

Marie-Hélène Brousse (2004) afirma que, nos casos clínicos de devastação que lhe servem como referência, a função paterna demonstra não operar nenhum apaziguamento, portanto, o pai se manifesta a serviço do capricho materno e não como agente de sua privação. O traço que caracteriza o pai é sempre a impotência.

A hipótese de Marie-Hélène Brousse (2004) é a de especificar o tipo de emergência singular da linguagem no sujeito, ou seja, o modo como a mãe inscreveu a criança num universo simbólico e discursivo, em que cada história de vida é um desdobramento. Para Brousse, a devastação se situa no campo da relação entre o sujeito e a mãe, o Outro da linguagem e a relação com a fala.

Uma das marcas dessa “aventura primordial do que se passou em torno do desejo infantil” é a marca deixada pelo fato de a mãe ser a detentora dos poderes da palavra. O primeiro dito da vida da criança é o da mãe, e não o da criança.

A mãe que decreta, legifera e sentencia sobre tudo o que tem a ver com a existência da criança e é assim que as palavras da mãe adquirem um sentido de profundas consequências para o seu destino, […]. Na memória reencontramos a voz, às vezes devastadora e persecutória das palavras, dos imperativos e dos comentários inesquecíveis desse Outro materno primordial que se apresentara investido de uma obscura autoridade (ZALCBERG, 2007, p.33).

Essa emergência da linguagem pode se dar, segundo Marie-Hélène Brousse, sob a forma do insulto, sob a forma de recusa e, ainda, sob a forma do imperativo do silêncio. O ponto comum dessas emergências é a conexão dessas experiências de fala com o sexual como traumático, isto é, a experiência pulsional do sujeito, ainda que tenham destinos estruturais diferentes e constituírem sintomas bem distintos.

Segundo Brousse:

Em todas essas ocorrências, a fala do Outro materno está associada à descoberta de uma experiência de gozo. Mas — segunda característica — essa emergência que tem como pano de fundo um gozo sexual traumático, ou seja, de inscrição do corpo por um significante se realiza no momento em que surge a diferença dos sexos, no seio da função fálica, sob a forma de um enigma. Enfim, essa emergência consagra a crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe escapando à falta da castração e que apresenta ao sujeito uma alternativa mortal: ou o dejeto ou a reintegração pela genitora do seu produto (BROUSSE, 2004, p.211).

Foi dito anteriormente que o desejo da mãe não é totalmente recoberto pela significação fálica, através do Nome-do-Pai. Existe sempre um resto que escapa ao falo. A devastação pode então aparecer no ponto do gozo enigmático percebido na mãe pela menina, gozo esse desconhecido, feminino e não limitado pelo falo.

Desde Freud, é possível situar a mulher segundo duas vertentes: a primeira, que aponta a mulher como um ser portador da falta fálica, de um menos de gozar, derivado do complexo de castração, e a segunda vertente, que aponta para um excesso traduzido pelo desejo insaciável da mulher de possuir um pênis. Lacan, ao dizer que a mediação fálica não drena todo gozo de uma mulher, coloca-o na via do suplemento, do não-todo subordinado à logica do todo, do completo. O suplemento aponta para “um a mais”, sem que o todo esteja aí implicado.

Desse modo, a teoria sobre a devastação e a sexualidade feminina da qual ela decorre nos ensina que a sexualidade é traumática porque o discurso sempre falta para falar sobre o gozo. É a entrada na linguagem que é traumática porque o sujeito se depara com a falta de significante no Outro para dizer seu ser de gozo. O S(A/) é o próprio matema do trauma.

De acordo com Lacadée (2010), Lacan criou o neologismo “troumatisme” que serve para designar o verdadeiro valor do trauma psíquico, seja o encontro de um buraco na linguagem, de uma falta de saber no Outro sobre o gozo sexual do sujeito. O “troumatisme” é um outro nome do axioma lacaniano: “não há relação sexual”. O real faz uma ruptura no tecido simbólico da significação e uma ruptura imaginária, um lugar vazio de sentido. O traumatismo produz a desarticulação da cadeia significante, dos significantes S1 e S2.

A partir daí se podem conceber a força e a imensidão do que uma mulher espera da sua mãe. Trata-se de algo que a mãe não lhe pode dar, nem a existência enquanto mulher, nem o ser de mulher, tampouco a “substância feminina”. A mãe não lhe pode dar não porque ela não queira, mas porque se trata de algo da ordem do impossível, no sentido daquilo que não cessa de não se inscrever para a mulher. Considerando-se que a relação de devastação é uma suplência à relação sexual que não existe, sendo, assim, o sujeito é desapossado do seu lugar,

[…] esse lugar que não existe mas pode ser declinado como fala, e o sujeito é então reduzido ao “silêncio”; com corpo, e o sujeito não passa de um “corpo em excesso”, ou de uma carne desfalicizada que é um “buraco negro”; como errância, fenômeno de despersonalização, de autodesaparição (BROUSSE, 2004, p.215).

A devastação se faz presente em sua articulação com o desejo da mãe enquanto mulher e ao modo como o sujeito criança pode encarnar o objeto do gozo materno.

(1) Essa vertente da devastação não será explorada neste trabalho.

 


Referências
BESSA, G. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
BROUSSE, M.-H. “Uma dificuldade da análise das mulheres: a devastação com a mãe”, Latusa, Rio de Janeiro, n.9, p. 203-218, 2004.
FREUD, S. (1931). “Sexualidade feminina”. In: O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.257-279. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIX).
FREUD, S. (1933). “Feminilidade”. In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.139-165. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XXII).
LACADÉE, P. “L’enfant est le père de l’homme ou Le malentendu du traumatisme”. In: Le malentendu de l’enfant. Paris: Ed. Michèle, 2010. p.63-77.
LACAN, J. (1972). “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.448-497.
LACAN, J. (1957-1958). O Seminário 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Miller, J-A. “Clinica del superyo”. In: Reocorrido de Lacan. Buenos Aires: Manantial, 1994. p.143.
NAJLES, A. R. “Voz: com que objeto se fala?” In: Scilicet. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008. p.349-351.
RECALDE, M. “Madre, niña, estrago, uma salida possible”. In: GLAZE, A.; ACEVEDO, L. (Orgs.). No locas del-todo. Buenos Aires: Grama, 2012. p.83-89.
ZALCBERG, M. Amor paixão feminina. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

Andrea, Margaret, Maria Das Graças Sena
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br Maria das Graças Sena – Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise. e-mail: dadesena@yahoo.com



Incidências Do Trauma: O Que De Real Encontramos Em Nossa Clínica Com Crianças?

CRISTIANA PITTELA DE MATOS

Introdução: Um Real

Nosso século XXI, marcado pela dissolução dos semblantes, consequência do binarismo ciência-capitalismo, levou Jacques Alain-Miller, em Un réel pour le XXIe siècle, a afirmar o quanto o real insiste em se manifestar de um modo caótico e aleatório, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia. Em seu curso O ultimíssimo Lacan, Miller definirá o real enfaticamente como “um novo tremor!” (MILLER, 2013 p.208).

Somos surpreendidos e vivemos, uns mais, outros menos, inquietos e sobressaltados: a dimensão de contingência e a desordem do real prevalecem.

“O verdadeiro real”, nos disse Lacan, “implica uma ausência de lei. O real não tem ordem: … é desprovido de sentido” (LACAN, 1975. p.131, 133).

Vários são os discursos que tentam apagar, domesticar, calcular, controlar, educar e até mesmo prevenir o real, com protocolos, medidas de vigilância e segurança; mas o real insiste, retorna, escapa às tentativas de enquadramento. A psicanálise, por sua vez, possibilita um outro modo de apreensão do real e a chance de operarmos com ele.

Miller convida-nos, enquanto psicanalistas, a investigarmos, no sujeito do século XXI, “a dimensão da defesa contra o real sem lei e o fora do sentido” concernindo um real tal como o inconsciente de cada um permite apreender. Propõe-nos, assim, que a defesa possa ser perturbada (MILLER, 1998), e mesmo desmontada (MILLER, 2013), para que se atinja a singularidade e a diferença de cada sujeito — pedaço de real que não muda, incurável — e que um novo enlaçamento a partir desse ponto possa se produzir.

Podemos nos perguntar: como perturbar (deranger) a defesa?, questão que Miller (2013) também nos apresenta, no “Prefácio” do livro de Hélène Bonaud: L’inconscient de l’enfant. Verificamos, em muitos casos, em nossa clínica com crianças, que intervimos antes mesmo que a defesa tenha se cristalizado; assim, o encontro com um analista possibilita ao sujeito a construção de um sintoma como resposta ao trauma, à perturbação do real.

Nossa pesquisa, neste ano de 2014, se inicia a partir do trauma, conceito proposto tanto pela Seção Clínica do IPSM-MG — Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? — quanto pela Nova Rede CEREDA — O traumatismo e o Real na Clínica: o que as crianças inventam?.

Podemos, então, nos perguntar: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? Como o real se apresenta para cada criança?; ou, ainda, como cada criança — cada sujeito — concerne um real? É afetado por um real? Responde a um real?

Nossa investigação e work in progress contam com o argumento às 43a Jornadas da École de La Cause Freudienne — Les traumatismes dans la cure analytique: bonnes et mauvaises rencontres avec le réel — em que Christiane Alberti e Marie Helene Brousse relembram o conhecido exemplo da Interpretação dos sonhos:

Um pai perdera um filho. Perda cruel, traumatismo no sentido corrente. Cansado, ele confiou a um senhor a tarefa de velar o corpo do filho amado e foi dormir em um quarto contíguo, deixando a porta entreaberta. Um barulho o desperta: o fogo começa a queimar o corpo amado. É a realidade. Como responde o inconsciente? – elas perguntam. Com um pesadelo, o filho aproxima-se e murmura: “Pai, não vês que estou queimando?”.

Onde está o trauma? – elas respondem: a impossível voz do morto; aí está o que verdadeiramente acorda o pai […]. Feridas que não se apagam de “perdas imajadas no ponto o mais cruel do objeto” […] o laço do trauma aos objetos deixa o sujeito sem bússola, em um mundo que perdeu o sentido. (ALBERTI; BROUSSE, 2013)

Nossa clínica toma, portanto, sua orientação desse real como impossível, ponto que faz traumatismo; vamos trabalhá-lo, neste primeiro semestre, tentando definir como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna; como a angústia é um sinal do real do trauma; investigaremos também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.

Nossa pesquisa visa também ao tratamento, às saídas e às invenções de cada criança frente a esse ponto opaco, e como o analista pode, com suas intervenções, tocá-lo para que propicie um novo arranjo, novas respostas e invenções.

Em suma, vamos tentar apreender o que de real encontramos em nossa clínica com crianças, a partir do inconsciente, passando pela barreira do recalque e da defesa que cada um constrói contra a ferida que o real constituiu quando se chega ao mundo, ou quando se está diante de acontecimentos traumáticos (GUÉGUEN, 2014).

O Trauma E O Troumatismo

O trauma é, desde sua origem grega — trôma — a experiência de uma ferida (LAURENT, 2013) que causa efração. Um choque súbito e violento que não permite a antecipação e produz um dano: a irrupção de um horror, o excesso de sensação e emoção, o silêncio de uma palavra jamais articulável. Algo impossível e insuportável acontece e desarranja o bom funcionamento do mundo, acarretando uma paralisação.

O trauma é assim um modelo paradigmático de um encontro que excede as palavras, as possibilidades discursivas, desvelando um real perturbador. Por mais que se fale dele, algo resta, uma marca indelével, sobre a qual se retorna colocando em jogo um impossível de simbolização.

Essa intensidade e a paradoxal exterioridade do trauma foram abordadas por Freud, segundo Laurent em “O trauma ao avesso” (2002), desde o “Projeto”, por suas metáforas energéticas, como o afluxo de excitação externa e, sobretudo, as excitações de origem interna, pulsional. Freud, em um primeiro momento, o concebe a partir de um acontecimento factual — uma sedução sexual — mas, em seguida, instaura a noção de fantasia inconsciente e realidade psíquica, pois ele encontra, no cerne de sua clínica, o trauma como um fato estrutural. Jacques-Alain Miller (2011) também aborda essa intensidade em seu curso “O Ser e o Um”, como a energeia, um buraco que bordeia a iteração do Um, tendo o efeito estranho de atração, de fascinação deletéria: um buraco negro.

Diante da generalização do termo trauma no campo da infância — agressão, estupro, sedução, violência, atos perversos, separação, morte, doença, acidentes, abuso, maus-tratos, exploração, crueldade, negligência, abandono, insulto, pesadelos — faz-se necessário situarmos esse conceito em nosso campo, pois, onde acreditamos ver o traumatismo — nos acontecimentos — ele sempre esconde um traumatismo real, aquele que é singular ao sujeito.

Frente a essa experiência que excede e esmaga o sujeito, como se perguntar sobre isso que o ultrapassa, sobre o que não chega a se representar? Sobretudo, ensina-nos Lacan, é nessa topologia que se encontra o sujeito: “o sujeito está aí, no lugar desta coisa obscura que chamamos como trauma, como prazer esquisito” (LACAN, 1966, p.4).

Esse é o ponto que nos interessa enquanto psicanalistas.

Um acontecimento só tem valor traumático para o sujeito por ser para ele um encontro contingente, singular. Ao possibilitarmos a implicação do sujeito em seu sofrimento, isso lhe restitui sua parte de responsabilidade, podendo abrir-lhe a via do desejo e a possibilidade de ele se reconciliar com seu gozo mais íntimo, alojando o trauma em um bom lugar. Nesse sentido, ali onde o sujeito foi solapado, ele pode advir e fazer algo com isso, à vitimização damos lugar ao sujeito e a um modo de satisfação. Como nos diz Sonia Chiriaco (2012), em Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse, a psicanálise se distingue imediatamente da vitimiologia, que faz do acontecimento o principal, e o sujeito, secundário, ou até mesmo ausente.

Lacan (1975) nomeou esse encontro como troumatisme, que implica a irrupção de um trop — um excesso, um gozo — e um furo, o fora do sentido. O que é traumático é esse choque material do significante com o corpo, que instaura, no parlêtre, a marca de um gozo inassimilável e uma perda irremediável.

Se o Outro da linguagem preexiste ao nascimento do sujeito, a criança nasce no mar da linguagem, ela, no entanto, é, primeiramente, objeto — causa de desejo ou dejeto do gozo dos pais — não tendo ao seu alcance o instrumento significante: a linguagem é, para ela, real, um real sem lei. Para essa incidência contingente do real da língua, de sua matéria sonora (moterialisme), Lacan inventará a expressão: lalíngua (LACAN, 1975, p.10). É com esse real de lalíngua que a criança se depara, encontro com o impossível, e que Lacan nomeou de inexistência da relação sexual. Um real, impossível de suportar, está, portanto, na raiz do trauma e concerne à singularidade de cada um: “…le Kern do ser, é este instante, é o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p.76).

Esse acontecimento fixa o gozo do Um e funda uma existência, anterior à sua entrada na linguagem — Outro — e em suas leis que dão ao sujeito condições para interpretar algo desse gozo. O inconsciente se estrutura para cifrar esse gozo insensato que escapa à significantização, experimentado nessa satisfação.

Esse real inassimilável, fora do sentido, é o gozo do corpo que se relaciona com o autoerotismo fundamental e tem relação com o ponto de inserção do significante no corpo, do significante trabalhando para a satisfação: “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, nos diz Lacan (1975/76, p.18). Nesse sentido, o traumatismo, para a psicanálise, tal como Lacan leu em Freud e nos ensina a tratá-lo, é uma marca irreparável no humano que escapa a toda programação e prevenção, revelando uma fixação pulsional. O encontro da língua com o corpo, nos dirá Miller, “mantém um desequilíbrio permanente, mantém no corpo e na psique um excesso de excitação que não se deixa reabsorver” (MILLER, 2003, p.378), retornando, re-iterando, nos sintomas, nos atos, na inibição, na angústia, nas ideias obsessivas, nos pesadelos.

E o que é complicado é que o real do encontro do significante no corpo torna o sujeito cúmplice da pulsão, é aí onde se situa nossa responsabilidade quanto ao gozo (ROCH, 2013).

O troumatismo inaugura o campo da fantasia que serve de tela ao real do trauma — uma defesa contra o real — e também do sinthoma como uma resposta ao trauma, enlaçando o não há da relação sexual — o real do furo no saber — com o há, isso que vai se repetir ao longo de nossa vida, a marca de um gozo, uma satisfação não toda e impossível de negativizar. Ou seja, a partir da contingência e do fora de sentido, há, no sinthoma, a tessitura de um nó singular do gozo do corpo com o significante determinando nossa vida, um savoir y faire com o real sem lei. A psicanálise, nos diz Miller (2014), existe para tentar que um trumain (l’être humain e trou) possa saber como comportar-se com o sinthome.

Em O avesso do trauma, Laurent (2002) propõe que abordemos o trauma em dois sentidos:

1º – Em um primeiro sentido, o traumatismo é um buraco real no interior do simbólico, ou seja, a partir do sistema simbólico, o sujeito encontra a presença de um real. A língua mortifica o gozo, mas há um resto impossível de ser simbolizado. É um ponto de real exterior no interior do simbólico.

2º – O segundo sentido que Laurent enfatiza do traumatismo é o simbólico no real, ou seja, um buraco do simbólico no real; trata-se, como vimos, da língua como real, o mal-entendido fundamental, o fora do sentido do vivente: lalíngua. Nesse sentido, a língua é causa. Segundo Laurent, depois de um trauma, é preciso causar um sujeito para que ele re-invente um Outro, em face da experiência no traumatismo da inexistência do Outro. Uma invenção causada pelo traumatismo.

Essas duas orientações são importantes em uma análise, pois uma análise se desenrola através do sentido que permite a subjetivação do trauma e consequente responsabilização do próprio sofrimento, assim como também toca o fora do sentido do gozo mais singular e opaco, levando Laurent a situar o trauma como um processo.

Vamos investigar esses dois sentidos, pois eles implicam lugares diferentes do analista, assim como sua escuta:

– No primeiro sentido, o analista, com sua escuta e interpretação, possibilita a restauração da trama de sentido, fazendo passar o real do gozo ao significante, uma escuta tomada na “ontologia do discurso do paciente” (MILLER, 2011), ou seja, refere-se à falta-a-ser e ao desejo.

Laurent (2002) ressalta ser uma vertente curativa, pois inscreve o trauma na particularidade inconsciente de um sujeito.

– No segundo sentido do trauma, o analista ocupa o lugar insensato — do objeto — e é traumático como a linguagem. A escuta visa à iteração, aos traços que marcam um modo de gozo e orienta em direção à existência, ao buraco, ao fora do sentido (BRIOLE, 2014). O analista, pelo equívoco e pelo corte, combate não só a demanda de sentido, mas pode tocar esse ponto real de causa e, assim, ajudar um sujeito a reencontrar a palavra, pois, diante da inexistência do Outro, é preciso inventar um modo de se arranjar com o próprio gozo.

Essas duas vertentes, podemos dizer, não são cronológicas, mas lógicas, e, em momentos específicos, podem estar presentes em uma análise: será preciso, então, que o analista meça, para cada sujeito, até onde ele pode apresentar os dois polos de sua ação (LAURENT, 2002).

Daí a importância — para a ação de um analista — de sua formação: do que ele faz com seu troumatismo.

 


Referências
ALBERTI, C.; BROUSSE, M.-H. “Argumento”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
BRIOLE, G. “Amarrações”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
CHIRIACO, Sonia. Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse. Paris: Navarin/Le Champ Freudien, 2012.
GUÉGUEN, G. “5 minutes à la radio”. Disponível em: www.congresamp2014.com. Consultado em: março/2014.
LACAN, J. (1975/1976) O seminário, livro 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1975) Conferência em Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (23), 1998. São Paulo: Edições Eolia.
LACAN, J. (1966) “Communication et discussions au symposium international du Johns Hopkings Center a Baltimore”. Disponível em: www.psicanaliseefilosofia.com.br. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “Trauma Blitz, Moment de concluire”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “O avesso do trauma”. In: Papéis de Psicanálise n .1, Belo Horizonte: IPSM-MG, abril/2004. p.21-28.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. O ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalitica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. O Ser e o Um. Seminário de orientação lacaniana, inédito.
MILLER, J.-A. “L’inconscient et le sinthome”. In: La Cause Freudienne n. 71, 2009.
ROCH, M.-H. “La Psychanalyse est traumatique”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.

 


Cristiana Pittela De Matos
Cristiana Pittella de Mattos, psicanalista, membro da EBP/AMP. E-mail: cristianapittella@yahoo.com.br



Almanaque On-Line Entrevista

COMISSÃO CIENTÍFICA DO XX EBCF

Esta edição n.14 do Almanaque on-line aborda o tema do XX EBCF, “Trauma nos corpos, violência nas cidades”, pelo viés da proposta de trabalho da Seção Clínica do Instituto para o ano de 2014, formulada como questão: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? Segundo Simone Souto, em argumento divulgado na Agenda EBP-MG e IPSM-MG do segundo semestre de 2014,

[…] em um primeiro momento, nossa investigação se dedicou a encontrar os meios através dos quais, em nossa prática, um real pode ser localizado. A partir daí, nos deparamos com uma nova questão: que respostas dar a um real que não se deixa tratar pelo sentido? Essa pergunta nos leva, agora, a abordar a invenção, ou seja, o que cada um inventa como resposta a partir do real. A invenção diz respeito, certamente, ao sujeito e ao que lhe é único, mas, também, não deixa de concernir o praticante e mesmo as instituições: o que temos feito para dar lugar às invenções do sujeito frente ao real? O que podemos recolher, da nossa experiência clínica e institucional, como um “saber fazer com o real”?

A partir desse argumento, solicitamos aos membros da Comissão Científica do XX EBCF que nos enviassem uma colaboração, um flash, um breve depoimento sobre o real que encontram em sua prática clínica, pesquisa teórica ou uma indicação de como esse real pode ser abordado – uma obra literária, um filme ou obra de arte – bem como sobre as invenções possíveis diante desse real.

Recebemos os depoimentos abaixo, pelos quais muito agradecemos aos seus autores.

CARLOS AUGUSTO NICÉAS: “Eu sou um deprimido”. Assim João se nomeou quando chegou dizendo-se um fracassado em tentar fugir da “desgraça” que aconteceu em sua vida amorosa. E trouxe a marca do seu traumatismo nas pontuações e nas palavras escolhidas para falar do seu sofrimento. Ele já atravessara quase um ano sob efeitos de antidepressivos receitados por um colega seu, melhor amigo desde a faculdade, e logo me confessou: “Eu me entupi de remédio, eu só queria evitar o pior”. João é ortopedista e, com termos próprios de seu saber particular, me diz por que decidiu vir falar a um analista: “Eu cansei meu amigo repetindo o que me aconteceu, foi bom contar com seu ombro para não morrer, mas não fez ‘calo’, a fratura continua exposta”. E prossegue: “Toda minha vida eu cuidei de traumatizados, agora eu preciso cuidar do que se quebrou dentro de mim”. Um abandono, o da mulher, ele o põe no lugar de causa do seu “traumatismo”, acontecimento que, em sua contingência, o encontrou “totalmente despreparado”. Na mesma entrevista, refere-se ao efeito do acontecimento assim:

Ela me pegou de surpresa, comunicou brutalmente que estava apaixonada por um colega de escritório, arquiteto como ela, com quem estava me traindo há um ano e com quem iria morar a partir daquela semana. Tudo isso numa enxurrada só, o casamento acabou assim, ela saiu assim da minha vida, e eu fiquei vários dias sem entender o que se passou, andando pela cidade como um “zumbi”, completamente siderado. Depois começaram os sintomas: depressão, insônia, dores no corpo todo. O que me mantém de pé é o antidepressivo, que eu já estou reduzindo desde que decidi vir me tratar aqui.

Assim, João, ortopedista de “acidentados do trabalho”, em um hospital público, decidiu “ver o que está quebrado e que ainda dói dentro de mim”, porque precisa estar “curado, para o caso de a vida me dar outras rasteiras”. A psicanálise não lhe é uma “matéria” muito conhecida, diz ele, mas do nome de Freud ele diz se lembrar:

Como eu sou um médico que se interessou por osso, essas coisas da alma fogem da minha cultura, mas minha primeira namorada era psicóloga, e, um dia, ela leu para mim um texto de Freud em que o psicanalista era comparado a um cirurgião da alma. Foi dela que me lembrei quando o amigo psiquiatra que me receitou o antidepressivo me sugeriu vir falar com um analista, procurar você, porque ele não estava vendo muita mudança em mim.

Nesse momento em que vir falar a um analista parecia já abrir um lugar diferente para João, um lugar não somente para “desabafar” com um amigo ou se “entupir” com medicamentos, acreditando assim e até agora lutar contra o real antes que ele se presentificasse, eu suspendi essa primeira entrevista e, antes de oferecer-lhe uma segunda, mantive aberta a porta da psicanálise, sublinhando simplesmente da escuta das palavras de sua lembrança: “Dela, mas também de Freud…”

Vir falar a um analista pode trazer já embutida, na demanda de psicoterapia, um esboço de mudança subjetiva. João, em uma de suas sessões preliminares imediatas à primeira, me diz: “No começo, eu me perguntava por que a vida me fez isso, mas, agora, eu desconfio de que não era também para ficar assim, tanto tempo vagando como um zumbi”. É, João me pareceu ter chegado começando a desfazer uma identificação ao significante “vítima”, ao qual ele se colou para se proteger do efeito traumático do abandono que sofreu do Outro. Não querendo somente responsabilizar o Outro para justificar seu sofrimento, eu já o escutava nesses primeiros tempos da transferência esboçando uma implicação de sujeito, mesmo que isso lhe fosse ainda opaco e enigmático.

MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM: Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática?: questão que orienta o trabalho da Sessão Clínica do IPSM-MG, rumo ao XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. As discussões no Núcleo de Psicanálise e Direito têm nos aproximado do eixo temático “Psicologia das massas, análise do eu… e a deriva das pulsões”.

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud afirma que a identificação é a forma mais antiga de laço libidinal. A identificação com o ideal permite a coesão da massa, ainda que ela, em momentos específicos, possa irromper em explosões de violência.

Na prática com os adolescentes e jovens, nas instituições educativas e socioeducativas, vemos como eles, mesmo que circulando lado a lado no mesmo espaço, não se agrupam, segundo a lógica freudiana da referência ao ideal do eu. Ao contrário, muitas vezes, permanecem na satisfação com os objetos, e são frequentes as manifestações de violência e agressividade entre eles e contra os responsáveis pelo trabalho nas instituições, impossibilitando ou dificultando o laço com o Outro proposto.

É possível considerar que a mudança no programa de satisfação de nossa civilização — da renúncia em prol de um ideal, para o imperativo de satisfação — teve como consequência um “mal-estar nas identificações” ou mesmo uma “patologia nas identificações”, que chega até nós por meio das irrupções de transgressão e violência. As contribuições da psicanálise de orientação lacaniana sobre as nomeações têm nos permitido aproximar e intervir em algumas dessas manifestações.

Nos casos que nos chegam, é comum a presença de designações ou apelidos relacionados à violência e transgressão. São modos de nomear distintos da operação do Nome-do-Pai, cujo poder metafórico pode substituir a satisfação direta, promovendo o laço com o Outro. Em nossa época, essa nomeação se encontra em declínio. Assim, encontramos, cada vez mais, designações em conexão direta com o gozo, que acabam por promovê-lo e incitá-lo, em uma manifestação da vertente superegoica do imperativo de gozo.

“Esse é B.O.”, “Ele é Jack”, “Sou 4:20”[1] são exemplos de designações que formam um curto-circuito, no qual os adolescentes são vistos e se mostram identificados ao resto da sociedade, sem possibilidade de vacilação, como em uma ordem de ferro. Nas instituições, a cada manifestação de hostilidade da parte dos adolescentes, nova tentativa de coerção e interdição, produzindo mais agressividade e violência.

A presença da psicanálise e sua oferta da palavra têm permitido uma vacilação nas designações que segregam e promovem o gozo, abrindo um espaço para acolher outras possibilidades de surgimento do sujeito. Dessa forma, é possível demonstrar como a psicanálise pode funcionar como uma ajuda contra as passagens ao ato e atuações, como nos indicou Lacan.

MARCELA ANTELO: Detalhar o real

Sacrilégio do “Noli tangere”, o close up é magnífica prova da penetração da civilização “na fábrica do real”. A literatura nos entregou os divinos detalhes, ensinou Miller lendo Nabokov. O artificio começou com a configuração exata do coque de Madame Bovary. “Detalhar quer dizer fracionar em pedaços” [2]. Para o cineasta Jean Epstein assim como para Miller é assunto de ética.

Um destino possível do detalhe é sua divinização, devemos livrar-nos dela, disse Jacques-Alain Miller em 1989, fazê-lo poderia constituir a dignidade da psicanálise.

O divino nos oferece o quê? Será que ter uma parte ao alcance nos faz supor um todo onde não existe? A ascensão do objeto ao zênite implica sua divinização. Qualquer objeto que se situe na vertical do observador será divinizado. Perturbar a divinização dos pedaços.

O zênite possui seu oposto, Nadir, que goza de muito menos imprensa. Pedaços no oposto do zênite. Perturbar a divinização pode servir-se da leitura do detalhe, já não da sua observação.

Epstein, no seu artigo “Magnificação”[3] afirma que um close-up extraído da cadeia, fora do contexto, é monstruoso e constitui a alma do cinema. Diviniza um sorriso, abrindo na tela como uma fruta madura ou indica o abismo da boca vazia de Old Boy. Inquietantemente estranho o close dá a ver o que vida diurna e suas grandes magnitudes dissimula. Estaria ele animado pelo desejo feminino de tocar o corpo sagrado que lembrava Ram Mandil nos Papers 1? Arrancar um pedaço do divino e fazê-lo cair.

Saber que o mais inquietante e perturbador reside no mais próximo e familiar é justamente uma das sabedorias que adquiriu cidadania no amanhecer do século. O fragmento, a parte, o minúsculo, a peça avulsa, pode constituir-se como um princípio epistêmico de aproximação ao homem contemporâneo se a orientação vai do Zenith ao Nadir.

A experiência princeps do close-up chama-se fotogenia, algo inarticulável, no limite do simbólico, um plus acrescentado ao objeto pelo ato cinematográfico, pela sua ação específica. Identificado por muitos como a alma do cinema, o close up não é dócil ao conceito nem deixa datar sua cronologia. O close up visa a um mais além de realidade, dar um zoom que ultrapasse o estreito representacional. Eisenstein, compatriota de Holbein, propunha em 1926 um cinema soco que cortasse até a caveira.

Paradoxalmente, em russo e em francês a palavra usada para close-up denota grande escala (gros plan); enquanto que em inglês, espanhol e português é a proximidade que está em jogo. Mary Ann Doane[4] sabe extrair todas as consequências desse paradoxo.

Fernand Léger, pintor fascinado pelo cinema ensina a objetividade que resulta do corte, o fim do todo, na cacofonia do seu Ballet mécanique, justaposição de pedaços. Léger disse:

Eu próprio usei o close-up, que é a única e real invenção do cinema. O fragmento do objeto também foi útil para mim; isolando-o o personalizamos. Todo este trabalho me conduziu a olhar o fenômeno da objetividade como novo e altamente contemporâneo em si próprio[5].

O cinema concorre com este aspecto da vida. A mão é um objeto múltiplo e transformável. Antes de vê-lo no filme não sabia o que era uma mão! O próprio objeto é capaz de devir um absoluto, uma coisa trágica e em movimento[6].

Uma série de fotografias[7] atrozes, de detalhes que não conduzem ao todo, de pedaços arrancados do corpo humanamente estendido, pode aproximar demasiadamente, close too close, do real dos campos de concentração colocando em cena o gozo de um Outro abismal. Freud falou da lente de aumento da análise e dos infusórios microscópicos da ciência.

 

(1) B.O: abreviação de Boletim de Ocorrência, notificação policial de uma contravenção ou crime. Jack: referência ao que praticou estupro; retirado da história de Jack, o estripador. 4:20: referência ao uso de drogas por meio da grafia americana para o dia 20 de abril, considerado o dia internacional da maconha.
(2) Miller, Jacques-Alain. Los divinos detalles. Ensino proferido no quadro do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, lição de 1/3/89.
(3) Epstein, Jean “Magnification and Other Writings.” Trans. Stuart Liebman. October 3 (1977): 9–25.
(4) Doane, Mary Ann. “The Close-Up: Scale and Detail in the Cinema” em D i f f e r e n c e s : A Journal of Feminist Cultural Studies, Brown University, 2003.
(5) Léger, Fernand [1927] citado em Fernand Léger – The Later Years –, catalogue edited by Nicolas Serota, published by the Trustees of the Whitechapel Art gallery, London, Prestel Verlag, 1988, pp. 21-22.
(6) Léger, Fernand L’ésthetique de la Machine – l’Ordre Géometrique et le Vrai -, Propos d’Artistes, 1925.
(7) “Atrocities,” May 7, 1945, LIFE. Fotógrafo: George Rodger; Quinze anos depois se publicam as fotografias de Margaret Bourke-White, December 26, 1960, special double-issue, “25 Years of LIFE.”



Crianças Autistas

SILVIA TENDLARZ

 

 

O século XXI é testemunha de um aumento crescente do diagnóstico de autismo na infância. Chegou-se a falar de uma verdadeira epidemia. Esse diagnóstico em expansão corresponde sempre às pessoas envolvidas nele? Uma pergunta torna-se urgente: não se trata só de diagnósticos, mas qual é a proposta de tratamento viável para crianças autistas.

O autismo tem a particularidade de surgir em crianças pequenas. Também existem adolescentes e adultos autistas que — embora, na maior parte das vezes, varie a forma de apresentação que tinham na infância, sobretudo pela ampliação do uso da linguagem — mantêm certas características que não se modificam, sem pressagiar com isso um destino trágico, que devemos aceitar com resignação.

Antes de tudo, é necessário distinguir o autismo do conceito de “gozo autista”. O autismo não é uma enfermidade da ruptura do laço como expressão de nosso mundo moderno, ainda que prevaleça o “todos autistas” em nossa linguagem corrente. O gozo é sempre autoerótico, autista, nesse sentido, mais além do tipo de laço que prevalece em nossa contemporaneidade. A expressão “autismo generalizado” nomeia o gozo, supõe o laço com o outro, mas sem que essa generalização implique um diagnóstico. Jacques-Alain Miller indica que o autismo, no sentido amplo, é uma categoria transclínica: é o estado nativo do sujeito a quem se acrescenta o laço social.

A partir de um breve percurso sobre a história desse quadro, poderemos examinar a abordagem psicanalítica tanto conceitual como clínica.

Diagnósticos

O autismo infantil tem sua história. Leo Kanner introduziu, em 1943, o conceito de “autismo infantil precoce”. Poucos meses depois, em 1944, e em outro contexto, Hans Asperger introduziu as premissas do que será chamado “síndrome de Asperger”. O primeiro ficará como uma interface entre a psiquiatria e a psicanálise. O segundo segue um caminho educativo, já que Asperger propõe desde o início uma “pedagogia curativa”.

O conceito mesmo de autismo é particular. Ele é o grande sobrevivente do colapso diagnóstico que propõe o DSM-IV. Tanto o “Autismo infantil precoce” de Kanner como a “Síndrome de Asperger” fazem parte dos “transtornos generalizados do desenvolvimento” (TGD), que acentuam a perturbação evolutiva.

Segundo a descrição de Kanner, as crianças autistas apresentam transtornos em sua relação com o outro (rechaço do olhar, ausência de condutas espontâneas como apontar objetos de interesse, falta de reciprocidade social ou emocional), na comunicação (atraso ou ausência na linguagem oral, uso estereotipado ou incapacidade de estabelecer conversações) e no comportamento (falta de flexibilidade, rituais, ausência do jogo simbólico). Aloneness e sameness, solidão e fixidez, são características essenciais do quadro clínico. O adjetivo “precoce” indica que pode se manifestar desde o nascimento, nos primeiros meses ou antes dos três anos. Esse início precoce determina sua modalidade de apresentação.

O que distingue o autismo infantil de Kanner da síndrome de Asperger é o fato de que falta a esse último o atraso da linguagem, e, ainda, de que seja diagnosticado ou se inicie após os três anos. Asperger situa entre os elementos de seu diagnóstico traços que perduram durante toda a vida, sem evolução notável.

Nos Manuais Diagnósticos, os dois quadros são diferenciados da esquizofrenia infantil pela ausência de alucinações, ainda que, na realidade, como assinala Lacan, as crianças autistas também tenham alucinações, que devem ser examinadas em suas particularidades.

O DSM V elimina essa distinção e introduz uma nova categoria clínica com a qual será examinada toda a infância: “transtornos do espectro autista” (TEA), com sua graduação: leve, moderado e severo (LAURENT, 2011). Os critérios utilizados para esse diagnóstico são: déficits sociais e de comunicação, assim como interesses fixos e comportamentos repetitivos. Dessa maneira, o autismo torna-se, hoje, um diagnóstico ampliado, que inclui uma tipologia variada.

Nesse contexto, a pergunta sobre se as crianças com diagnósticos de autismo infantil precoce podem evoluir para a síndrome de Asperger, na idade adulta, eventualmente, desaparecerá nesse contexto, já que ambos formam parte do TEA. Não obstante, a sutileza clínica dessa questão permanece, na medida em que se pode observar uma mudança da infância para a idade adulta, que demonstra que nem todas as crianças autistas permanecem necessariamente toda sua vida com sua apresentação inicial, nem persistem os chamados “transtornos cognitivos” com os quais foram avaliados na infância. Como disse Ian Hacking (2001), se os nomes das classes interagem com as pessoas que eles afetam, entretanto, tornam-se insuficientes para alojar os sujeitos com suas diferenças. Assim, para além do destino dos diagnósticos, permanece aquilo que torna a cada um único e refratário a diluir-se na “norma”.

As teorias cognitivas introduziram a noção de “espectro autista” que engloba tanto a criança como os adultos; um estudo de Lorna Wing e Judy Gould, do ano de 1979, está na base desse conceito. Esse estudo postula que toda criança que apresenta uma deficiência social severa também tem os sintomas principais do autismo. Ou seja, as crianças que estão afetadas por dificuldades na reciprocidade social, na comunicação e apresentam restrições em suas condutas necessitam dos mesmos tratamentos cognitivos que os autistas. Dessa forma, todas elas ficam incluídas no espectro autista, aumentando, assim, enormemente, a incidência do autismo (LAURENT, 2011).

Esse aumento está vinculado ao diagnóstico de “Transtorno generalizado do desenvolvimento inespecífico” – TGD, que, ao carecer de critérios definidos, incluía mais casos de espectro autista que de autismo propriamente dito. Esse é um dos pontos de discussão dentro do projeto do DSM V. Por outro lado, na medida em que não existe uma medicação específica para o autismo, prescrevem-se, para as crianças ditas autistas, medicamentos para ansiedade, depressão ou hiperatividade. O postulado de organicidade e a perturbação da função executiva da teoria cognitivista, na qual se baseiam o TDAH e o TGD, junto ao critério puramente descritivo, fazem com que se confundam ambos os quadros.

Dessa forma, não nos parece ilegítimo perguntar sobre o aumento da incidência do autismo na infância. É necessário, para fazê-lo, construir uma outra perspectiva. Na realidade, o déficit nunca foi um bom critério diagnóstico, já que ele conduz quase inevitavelmente à prescrição medicamentosa e às terapias comportamentais. De forma que as crianças tornam-se “todas educáveis e medicáveis” em nome da cura do sintoma, sem levar em conta a causa e o tratamento singular que ele convoca. Em nome de uma suposta “normalidade”, busca-se incluir as crianças em programas que as tornem iguais às outras. Desconhece-se, assim, que não há uma norma que valha para todos por igual, já que não existe um critério de saúde universal. Todos diferentes, todos “normalmente” fora da norma no ponto em que se encontra a singularidade. Cada criança autista tem seu modo próprio de “funcionar” dentro de sua estrutura. Numa perspectiva exterior à psicanálise, o neurologista Oliver Sacks, em seu texto Um antropólogo em Marte, afirma que não há dois indivíduos autistas iguais: “seu estilo individual ou expressão são diferentes em cada caso” (SACKS, 2003). O que nos leva a reafirmar que não há dois sujeitos iguais, autistas ou não.

Epidemia De Autismo

O diagnóstico de autismo na infância multiplicou-se nos últimos tempos. Esse incremento tem repercussões tanto nos tratamentos como nas políticas de saúde pública. Mas, realmente, há um aumento de crianças autistas, ou esse fenômeno é induzido pelas leituras classificatórias em uso no nosso mundo atual?

Ante a emergência do aumento de crianças autistas, um rumor inquietou a opinião pública. Em 1998, The Lancet publicou um estudo do Dr. Wakefield do Royal Free Hospital, do norte de Londres, no qual colocava a hipótese da relação entre a vacina contra rubéola e o autismo. Os meios de comunicação contribuíram para retransmitir a notícia e, assim, criar um grande escândalo, e o rumor expandiu-se pela internet.

Como resposta a esse rumor, François Ansermet (2008) expressou, também por internet, que uma investigação, realizada em 2004, revela que uma equipe de advogados pagou ao Dr. Wakefield para publicar essa nota, e, imediatamente depois, surgiram processos contra os produtores da vacina. The Lancet publicou, em março de 2004, uma pequena nota editorial em que se retratava, mas o rumor continuou circulando.[2] O que esse rumor demonstra é que pensar o autismo como um déficit ligado à carga genética, que é constitucional, ou, inclusive, como efeito secundário de uma vacina, geralmente, alivia os pais, já que lhes retira dos penosos sentimentos que experimentam.

A busca de uma genética defeituosa chegou a tal ponto, que, ante a dificuldade de encontrar um “gene autista”, os cientistas começaram a falar de “mutações genéticas espontâneas” ligadas ao meio ambiente. A decodificação do genoma humano introduziu a crença de que, finalmente, será possível estabelecer uma sequência genética que permita isolar o autismo. Em junho de 2010, o Consórcio do Projeto Genoma publicou um artigo na revista Nature sobre a descoberta de repetições e perdas de fragmentos de DNA em 20% dos casos de autismo examinados. Trata-se de “variantes raras”, mutações únicas, com um gene diferente em cada criança. O que se destaca é que se trata de mutações congênitas, que nada têm a ver com a herança e que são todas diferentes. Não sendo possível estabelecer a causa dessas mudanças genéticas, o “meio ambiente” permanece como uma hipótese. A abordagem genética, assim colocada, aponta a reeducação como única solução viável. Ainda veremos se esse “meio ambiente” incluirá ou não a relação do sujeito com o significante.

O descrédito quanto à psicanálise é correlativo ao recurso crescente a tratamentos cognitivo-comportamentais para a abordagem de crianças autistas, que tendem a difundir a crença de que os psicanalistas culpabilizam os pais pela enfermidade de seus filhos. O próprio Ian Hacking, em A construção social de quê?, retoma essa perspectiva e considera que, na verdade, a ciência cognitiva é a única que, na atualidade, pode explicar o autismo através da “teoria da mente”, dados os déficits linguísticos e outros. Mas o que é uma “teoria” — baseada na suposta capacidade de atribuir estados mentais a si mesmo e ao outro — senão uma versão imaginária do Outro?

Portanto, o autismo não é uma fatalidade, diz Jaqueline Berger, jornalista, autora do livro Sortir de l’autisme, e mãe de crianças autistas. A má reputação da psicanálise corresponde ao fato de que os resultados obtidos não são avaliáveis de acordo com os critérios quantitativos e estatísticos cognitivo-comportamentalistas utilizados nas publicações científicas.

Do Lado Da Psicanálise
Jean-Claude Maleval (2011) destaca a diversidade de casos envolvidos no diagnóstico de autismo, que vão desde os casos que necessitam de uma atenção institucional por toda vida aos de autistas de alto nível. Algumas crianças apresentam “ilhas de competência” que, às vezes, as tornam eruditas em domínios muito especializados, inclusive com habilidades excepcionais. O. Sacks (2003) examina as características que as tornam “prodígios”, também chamados “autistas sábios”, cujas proezas técnicas, diz Laurent (2011), têm deslocado o interesse que antes recaía sobre o delírio.

No entanto, não se pode apreender o autismo pela soma dos sintomas, já que não se trata de uma enfermidade, mas de um “funcionamento subjetivo singular”. Enquanto um tipo clínico particular, por detrás de sua “carapaça”, não se esconde nenhuma criança “normal”. A concepção deficitária do autismo inclui essas crianças inevitavelmente em tratamentos exclusivamente educativos e ignora a possibilidade de participação do sujeito num funcionamento que não fixa um destino.

Maleval (2011) concebe o autismo como uma estrutura que se caracteriza por um rechaço da alienação significante e de um retorno do gozo sobre uma borda. Essa expressão, tomada de Éric Laurent, dá conta de como o objeto se encontra pregado ao corpo, de tal modo que constrói uma “carapaça autista” em sua particular dinâmica libidinal. O transtorno simbólico gera uma enunciação morta, defasada, apagada ou técnica. Não se trata de um déficit cognitivo, mas de uma relação particular com o significante. Esse rechaço impede que o gozo se conecte com a palavra, e, em vez disso, ele retorna sobre uma borda, com um objeto ao qual o autista encontra-se ligado: constrói-se, assim, uma carapaça, dentro da dinâmica libidinal. A borda autista é uma formação protetora frente a um Outro ameaçador e dispõe de três componentes essenciais: a imagem do duplo, as ilhotas de competência e o objeto autista.

A hipótese central de Maleval é a do rechaço do autista ao gozo associado ao objeto voz, que determina as perturbações da linguagem: não se trata aqui tanto da sonoridade, mas da enunciação de seu dizer. “Nada angustia mais ao autista”, diz Maleval (2011) “que ceder seu gozo vocal alienando-se ao significante”. Protege-se, então, da presença angustiante da voz através da falação ou do mutismo, evitando a interlocução com o Outro. E, mesmo quando falam com fluidez, como no caso dos autistas de alto nível, protegem-se do gozo vocal através da falta de enunciação. Daí deriva a solidão do autista em relação a tomar uma posição de enunciação; assim como também sua fixidez no esforço de manter uma ordem estática frente ao seu mundo caótico.

Maleval (2011) destaca dois tipos de saída possíveis, que vão da criação de um duplo na infância, à de um Outro de síntese na idade adulta, através da memorização de signos e, finalmente, do uso de objetos autistas muito complexos. Assim, da solidão e do mutismo do autismo precoce, em um segundo tempo, é possível encontrar o trabalho sobre o retorno do gozo sobre a borda na síndrome de Asperger da idade adulta.

Esses desenvolvimentos são linhas de investigação para refletir sobre seu funcionamento dentro do dispositivo analítico.

Éric Laurent (2011) indica que a inclusão do sujeito no autismo implica o funcionamento de um significante sozinho no real, sem deslocamento, “peça solta”, que busca encontrar uma ordem fixa e realizar um simbólico sem equívocos possíveis, verdadeira “cifra do autismo”. O não sentir empatia, na realidade, não é necessariamente um déficit, mas o que os leva a funcionar sem os obstáculos imaginários próprios da vida cotidiana. Por outro lado, acrescenta que “há que se renunciar a pensar a criança-máquina” — alusão ao caso Joey de Bettelheim — e falar da “criança-órgão”, pois se trata de uma montagem do corpo com um objeto de fora do corpo que inclui, às vezes, um “objeto autista” colado a seu corpo.

Quanto às particularidades do tratamento, Éric Laurent (2011) assinala que o encapsulamento autista é uma bolha de proteção fechada de um sujeito sem corpo. O problema que se coloca, então, não é tanto como se constitui uma borda, como na esquizofrenia, mas como se desloca essa neoborda, que, em si mesma, está muito bem constituída.

Ao chegar à consulta, a criança autista tende a rejeitar todo contato com o outro, na medida em que este é experimentado como intrusivo frente a essa borda encapsulada, quase colada na superfície de seu corpo. O deslocamento dessa carapaça se produz através de intercâmbios articulados com um outro percebido como menos ameaçador. Busca-se construir um espaço que não seja nem do sujeito nem do outro, um espaço que permita uma aproximação, que remova a criança de sua indiferença e da repetição exata de sua relação com o outro, articulando, assim, um “espaço de jogo” — ainda que reste precisar qual é o estatuto desse jogo. Essas trocas no real, não puramente imaginárias, nas quais intervém a metonímia de objetos, permitem a construção de um espaço de deslocamento da borda e a emergência de significantes que passam a tomar parte de sua língua privada.

Em algumas ocasiões, inclui-se o “objeto autista”, com o qual a criança se desloca e entra também no circuito dos objetos. Esse objeto é parte da invenção pessoal, por isso a orientação psicanalítica que aponta para a operação de “separação”, sem inscrevê-la, não indicando, de modo algum, que se retire esse objeto da criança.

Na medida em que os tratamentos apontam para as singularidades, é possível prestar atenção às manifestações do significante sozinho no real, escutar o sujeito sem objetivá-lo e aprender sua língua, de acordo com a expressão de Jean Rabanel (2011). O fora do laço do autista, seu rechaço ao outro, que é percebido como intrusivo, torna ainda mais importante possibilitar as invenções através das quais o analista se torna o partenaire da criança autista, de modo tal que sua palavra possa ser escutada.

Éric Laurent (2011) indica que, para aplicar a psicanálise ao autismo, é necessário permitir ao sujeito separar-se de seu estado de refúgio homeostático no corpo encapsulado e passar a um modo de subjetividade da ordem de um “autismo a dois”. Há que se tornar o novo partenaire do sujeito, fora de toda reciprocidade imaginária e sem a função de interlocução simbólica.

A invenção é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Dessa forma, pode-se afirmar que há transferência na direção da cura da criança autista, todavia, devem-se determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura.

Quanto às entrevistas com os pais, não se trata de desampará-los, culpabilizando-os, mas de contribuir para encaminhá-los a tratamentos possíveis. A simples entrevista, ao lado das questões ali colocadas, pode produzir um sentimento de estar em falta, mesmo sem uma teoria que aponte os pais como causa do autismo. Esse é um elemento essencial para levar em conta na consulta da criança, de tal modo a não deixar os pais sem recursos, o que pode levá-los a uma suposta solução rápida via reeducação.

Para Concluir
A psicanálise é uma alternativa legítima de tratamento para o autista, tanto no seu trabalho individual junto a um dispositivo de trabalho criado em seu entorno, como na prática institucional “entre muitos”. E seus tratamentos nos deixam como ensinamento que o sujeito nunca pode reduzir-se a ser um objeto de diagnóstico e que, ao nos aproximarmos da criança, como um analista pode fazer, as portas abrem-se para um universo singular que nenhum manual diagnóstico poderia antecipar.

Para uma criança autista, como para qualquer outra criança com um diagnóstico diferente, não há outra “normalidade” que o modo de funcionamento que lhe seja próprio.

Dirigir-se à criança autista como sujeito, não como objeto educável, introduz possibilidades de encontros inesperados, com soluções que lhe permite reinserir-se no Outro de um modo original, sem ser encerrada na incapacidade ou em protocolos preestabelecidos. É um tratamento de um a um, mas com outros.

Tradução: Ludmilla Féres Faria
(1) Uma versão reduzida deste trabalho foi publicada em La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.103-108, 2011.
(2) The Lancet, London, v.363, n.9411, p.823-824, mars 2004.

 


Referências
ANSERMET, F.; SIEGRIST, C.-A. “Vaccin rougeole et autisme, aucune evidence scientifique”, Tribune de Genève, Genève, n.6, p.33, mai 2008.
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV.
BERGER, J. Sortir de l’autisme. Paris: Éditions Buchet/Chastel, 2007. (Coll. Essais et documents).
HACKING, I. Entre science et realité: la construction sociale de quoi? Paris: La Decouverte, 2001.
LAURENT, É. “Spectres de l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.53-63, 2011.
MALEVAL, J.-C. “Langue verbeuse, langue factuelle et phrases spontanées chez l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.77-92, 2011.
RABANEL, J.-R. “Une Clinique de l’objet a em institution”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.64-76, 2011.
SACKS, O. Un anthropologue sur mars. Paris: Seuil, 2003.

Silvia Tendlarz
Psicanalista, membro da EOL – Escuela de la Orientación Lacaniana e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. E-mail: stendlarz@fibertel.com.ar



Da Agressividade À Pulsão De Morte

ÉRIC GUILLOT

Agressividade e pulsão de morte estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas ou assassinas que são frequentes em nossa atualidade. Violência verbal, intimidação, extorsão, violação, exploração sexual, assassinatos, atentados suicidas, as manifestações agressivas não têm todas a mesma significação. Umas se abrem no registro da “intenção agressiva”[2] e ficam presas na comunicação. Outras testemunham uma “tendência agressiva” mais fundamental que se desdobra em outro registro totalmente diferente, aquele da passagem ao ato, eventualmente destruidor e assassino, colocando em jogo o que Freud designou com o termo pulsão de morte.

Como nos orientar nessa clínica da agressividade e da pulsão de morte? Para dar conta dela, nós teremos de evocar a dimensão sociológica e política desses fenômenos. Existe sempre, com efeito, uma dimensão de contingência na agressividade. Lacan o indica desde 1948, sublinhando que nosso mundo contemporâneo, marcado pela globalização, contribui para seu desencadeamento (LACAN, 1950/1998).

Quais são os fundamentos e os mecanismos da agressividade e da pulsão de morte? Sobre esse ponto, as opiniões de Freud e Lacan divergem. Freud considera que a agressividade é uma “disposição instintiva primitiva”. Ele faz dela um fenômeno vital devido à biologia, tal como a pulsão de morte, que ele liga à agressividade. À diferença de Freud, Lacan considera que a agressividade e a pulsão de morte não se devem ao instinto como animal. Para ele, agressividade e pulsão de morte devem ser pensadas em sua articulação à linguagem. É a linguagem que faz do homem um animal desnaturado capaz de crueldade.

A extração da agressividade e da pulsão de morte do campo da biologia e sua inscrição no campo da linguagem permitirão a Lacan dissociar progressivamente a agressividade da pulsão de morte.

Quanto à agressividade, Lacan mostra, de início, que se trata de um fenômeno que se desenvolve estritamente no registro imaginário. A agressividade é correlativa de um modo de identificação próprio à estrutura do humano. Trata-se de um fenômeno decorrente da teoria do narcisismo. Quanto à pulsão de morte, que Lacan tinha ligado à agressividade, nos primeiros momentos de seu ensino, ele sublinha, em seguida, a articulação estrita com o simbólico; depois, a partir dos anos 60, ele mostra que ela deve ser pensada em seu laço com o gozo, quer dizer, em sua relação com o real. O termo gozo torna-se, então, o nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.

I – Freud, Da Agressividade À Pulsão De Morte

Uma Tendência À Agressão

Lacan considera que Freud fica parcialmente prisioneiro da ideologia darwiniana que dominava sua época.[3] Nessa ideologia — mas não é ainda a nossa? — existe uma preeminência acordada à agressividade que se refere ao fato de que seja concebida como um princípio de conservação da espécie[4] (LACAN, 1948/1998). A abordagem freudiana da agressividade, em termos de instinto e de função vital, testemunha a influência de uma tal ideologia. A primeira teoria freudiana das pulsões[5] (opondo pulsões sexuais e pulsões de autoconservação) também carrega essa marca (FREUD, 1915a/1974).

Depois de 1920, com a descoberta do mais além do princípio de prazer e os remanejamentos de sua teoria pulsional (em oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte), Freud introduz uma nova perspectiva concernente à agressividade. Certamente, Freud vê sempre naquela “uma disposição instintiva original e autossubsistente”, e ele é sempre tentado a situar aí os fundamentos de uma referência à biologia, mas, nesse momento, a agressividade lhe aparece, sobretudo, em sua dimensão deletéria, e ele a relaciona à pulsão de morte (FREUD, 1930/1974). É em “O mal-estar na civilização” que ele o testemunha mais claramente. Tomando o que chama de “tendência à agressão”, ele nos dá uma definição e uma descrição do homem que integra a pulsão de morte. Poderia ser Sade, assinala Lacan (1959-1960/1991). Todo o pessimismo de Freud eclode nesse texto:

[…] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo (FREUD, 1930/1974, p.133).

Homo homini lupus, ele acrescenta, para concluir: o homem é um lobo para o homem.

A forma desse adágio que Freud toma emprestado de Plauto[6] é, para Lacan (1950/1998), enganadora sobre seu sentido.[7] Ele, com efeito, considera que a agressividade não corresponde a um instinto, que não é uma função vital, como no animal. Em 1929, não se trata mais, para Freud, de situar a agressividade em sua articulação às pulsões de conservação do eu, mas antes de mostrar que existe uma “inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destruição, e também para a crueldade” (FREUD, 1930/1974, p.142). Essa tendência à agressão na qual ele reconhece a marca da pulsão de morte constitui, a seus olhos, uma ameaça para a sociedade civilizada (FREUD, 1930/1974). Desse julgamento muito pessimista de Freud nós podemos extrair todo o peso do desastre que foi a primeira guerra mundial e as premissas daquela que se anunciava.

Da Pulsão De Morte À “Pulsão Do Supereu”

A prova dessa influência obscura da pulsão de morte, Freud a refere igualmente a certas manifestações clínicas nas quais o sujeito se emprega a repetir situações que são para ele um desprazer e que vão contra o seu bem e mesmo contra os interesses do vivo. Trata-se, por exemplo, da repetição dos sonhos traumáticos ou ainda das neuroses de destino, das reações terapêuticas negativas, mas também dos sintomas ou da clínica do masoquismo. A repetição dessas manifestações clínicas que se apresentam como uma forma de autoagressão, das quais, no entanto, o sujeito parece tirar uma satisfação paradoxal, testemunha, para ele, a operação de um movimento que se dirige à morte e que afetaria o vivo como tal. Ele vê nessa repetição a expressão de um fenômeno vital enraizado na biologia,[8] caracterizado pela tendência a restabelecer um estado anterior, como um retorno do animado ao inanimado (FREUD, 1930/1974, p.141).

Assinalemos que, se Lacan admite também o fato da repetição como sendo o princípio da pulsão de morte, ele não faz dela um fenômeno vital enraizado na biologia. Ele situa, ao contrário, a repetição em relação à linguagem e ao inconsciente. Está aí um ponto importante que J.-A. Miller (2004) sublinha em seu curso Biologia lacaniana.

Mas vejamos o que leva o sujeito a repetir a situação que vai contra o seu bem. Certamente, Freud considera que essa tendência mórbida se enraíza em um movimento vital, mas que não é suficiente dizê-lo assim. É preciso poder explicar por que todo o mundo não tem a mesma relação com a pulsão de morte. O que leva certos sujeitos a se oporem à sua cura e mesmo a se autodestruírem, a se autoagredirem?

A primeira ideia de Freud tinha sido interpretar como uma forma de autopunição ligada a uma culpabilidade edipiana. Mas, a partir de 1923, em “O Eu e o Isso”, ele começa a duvidar da eficácia dessa interpretação. O que o levou a levantar outra hipótese: aquela do supereu. Essa instância, no interior do sujeito, que o leva a se autodestruir é o supereu. Não o supereu “herdeiro do complexo de Édipo”, resultado da interiorização dos interditos parentais e ligado à figura pacificadora do pai do Édipo; mas um supereu muito mais feroz, de uma severidade extrema, que manifestará contra o Eu “a mesma agressividade rude” que o Eu “teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos” (FREUD, 1930/1974, p.146). Freud o formula em 1929, em “O mal-estar na civilização”.

Para explicar as manifestações de autoagressão, Freud faz valer um retorno da agressividade sobre a própria pessoa por um supereu sádico, que maltrata, atormenta e angustia o eu. O supereu que tiraniza o sujeito, por suas exigências desmesuradas, aparece, assim, como um dos nomes dessa pulsão de morte, cuja hipótese se impôs então a Freud a partir dos anos 20. Freud constata, além disso, que nada apazigua o supereu. Longe de ser acalmado, como se poderia imaginar, pela renúncia pulsional, ele se encontra tanto mais excitado, crescendo sempre mais sua superioridade. Freud (1930/1974, p.149) sublinha que “quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento”.

Por quê? Freud explica assim:

Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não basta, pois o desejo [quer dizer, a “tendência à agressão”] persiste e não pode ser escondido do superego [supereu]. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. […] Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor (FREUD,1930/1974, p.151).

A culpabilidade que resulta da tensão entre o eu e o supereu é às vezes tal, assinala Freud, que acontece de alguns sujeitos cometerem crimes com o único objetivo de serem punidos, fazendo, assim, aliviar sua culpabilidade inconsciente. É um paradoxo que Freud (1915c/1974) sublinha em um artigo intitulado “Criminosos pelo sentimento de culpa”, que Lacan retomará, por sua vez, em 1950, em Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. Ele destaca uma categoria de crimes nos quais, paradoxalmente, é o sentimento de culpabilidade que preexiste à falta. Nessa clínica do supereu destacada por Freud, é a instância do supereu que leva ao crime e à transgressão para satisfazer o que aparece finalmente como uma forma de gozo do supereu (COTTET, 2009).

Com efeito, o que aparece nesse texto de Freud — e que Lacan destacará — é a dimensão pulsional do supereu.[9] Ele tem uma avidez que nada satisfaz. Mais se lhe dá, mais ele reclama. Mais o supereu se impõe, exige, interdita, e mais ele se mostra ávido de renúncia, como se ele se nutrisse dessa renúncia mesma (FREUD, [1929]1930/1974). Ele empurra ao sacrifício e se nutre desse gozo obscuro, masoquista, que o sujeito pode experimentar no sacrifício. Assim, assistimos a uma forma de sexualização do imperativo moral que o supereu promove. E, sem dúvida, é nessa dimensão pulsional do supereu que nós encontramos, como sublinha J.-A. Miller, a “definição mais brilhante” da pulsão de morte (MILLER, 2004, p.22)

II – Lacan: Da Agressividade Ao Gozo

“A Aporia Freudiana”

Lacan considera que Freud ficou prisioneiro da ideologia de seu tempo, quando se esforçou em definir a experiência do homem no registro da biologia (MILLER, 1991). No entanto, sublinha Lacan, toda sua obra demonstra que não se pode dar uma fórmula biológica para isso. É uma contradição em sua obra, é uma “aporia” (LACAN, 1948/1998, p.104). A maneira que Freud teve de teorizar a pulsão de morte, a partir do postulado de uma “agressividade constitucional do ser humano contra outrem”, testemunha essa dificuldade, e Lacan considera que isso deixou a porta aberta a numerosas confusões.

Agressividade E Pulsão De Morte: A Teoria Do Narcisismo

a) Um modo de identificação próprio da estrutura do humano

Rompendo com essa perspectiva biologizante, Lacan vai se esforçar para repensar a questão dos fundamentos da agressividade a partir da teoria da identificação. Ele desenvolve essa questão em 1948, no artigo “A agressividade em psicanálise”.

Sua tese é a seguinte: “a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico” (LACAN, 1948/1998, p.112). Ele acrescenta: o modo de identificação narcísica “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo”.

Para Lacan, agressividade e identificação narcísica são intimamente ligadas. Não se pode dar conta da agressividade sem uma teoria da identificação em psicanálise. Tal é o seu ponto de partida. Nós estamos então longe da ideia de uma agressividade instintual. Ele situa, ao contrário, a origem da agressividade na gênese do eu. A agressividade está intrinsecamente ligada à estrutura narcísica do eu (LACAN, 1948/1998). Ela é sua “tendência correlativa”. Certas manifestações patológicas, como aquelas que encontramos nas psicoses paranoicas, em que dominam as reações agressivas ou as imputações de nocividade feitas ao outro (LACAN, 1948/1998), somente se tornam lesivas se as relacionarmos à “organização original das formas do eu e do objeto” (LACAN, 1948/1998, p.113).

b) A estrutura paranoica do eu

Qual é a origem do eu? Lembremos brevemente que o eu resulta de um processo de identificação imaginária. Lacan elabora essa teoria no artigo sobre o estádio do espelho (LACAN, 1949/1998). A criança acede a uma representação unitária de si mesma ao se identificar, seja à sua imagem no espelho que ela assume como sendo a sua, seja à de uma outra criança, com a condição de que a diferença de idade não exceda dois meses e meio (LACAN, 1948/1998). O que chamamos de eu não é nada mais que o resultado desse processo de identificação imaginária a um outro. Assim, em seu fundamento, o eu é um outro.

Que o sujeito deva passar pelo outro para ter acesso a uma imagem de si mesmo não é sem consequências. Vai resultar disso, sublinha Lacan, uma “ambivalência estrutural”, “uma tensão conflitiva interna ao sujeito” (LACAN, 1948/1998, p.116), e, desde então, a relação do sujeito a seu semelhante vai se desdobrar em um duplo registro, aquele do erotismo e aquele da agressividade. Existe um componente erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica, de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe um componente agressivo porque, se “eu é o outro”, então esse outro pode tomar meu lugar. E é em termos de “você ou eu” que se desdobra então a relação. A única saída vem a ser a destruição do outro. Lacan o formula assim:

Há nisso uma espécie de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso pensamento, para compreender a natureza da agressividade no homem e sua relação com o formalismo de seu eu e de seus objetos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu (LACAN, 1948/1998, p.116).

Os fenômenos de transitivismo observáveis nas crianças pequenas, mas a respeito dos quais Lacan diz que não se eliminam jamais do mundo do homem (LACAN, 1946/1998), testemunham esses fenômenos de captação pela imago da forma humana.

Lacan se refere aqui às observações de Charlotte Bühler.

É nessa captação pela imago da forma humana, […] que domina, entre os seis meses e os dois anos e meio, toda a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante. Durante todo esse período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora (LACAN, 1948/1998, p.116).

E precisa em “Formulações sobre a causalidade psíquica”: “Assim, a criança pode participar, num transe completo, do tombo do seu colega, ou igualmente lhe imputar, sem que se trate de uma mentira, ter recebido dele o golpe que lhe aplicou” (LACAN, 1946/1998, p.182). Assim, o que destacam extraordinariamente os fenômenos de transitivismo é a função de desconhecimento do eu. Lacan tirará as consequências disso, tanto para a concepção que faz da direção do tratamento, como para o que nos ensinam sobre a clínica da paranoia. Com efeito, como ele sublinha, a criança que imputa a seu colega receber o golpe que ele recebe não mente. No momento de captação em que se identifica ao outro, ela desconhece o que vem dela e o que vem do outro. Ela desconhece radicalmente a sua participação naquilo de que se queixa. É o que leva Lacan a introduzir o termo “conhecimento paranoico” (LACAN, 1946/1998, p.181; 1948/1998, p.114; 1949/1998, p.99), para designar essa forma de desconhecimento que está no fundamento da estrutura do eu.

Para Lacan, o eu tem uma estrutura paranoica. O estádio do espelho de Lacan é a “paranoia original do homem”, assinala J.-A.Miller (1991, p.13). É para ilustrar essa “paranoia original” ligada à constituição mesma do eu que, nesse mesmo texto, Lacan (1946/1998) vai buscar, em seguida, um exemplo, o de Alceste, no Misantropo, de Molière. É impressionante ver a esse respeito como Lacan coloca em série as reações transitivistas da criança pequena com Alceste, que ilustra, para ele, a figura do paranoico. Diz Lacan: “Alceste é louco […] justamente pelo fato de que, em sua bela alma, ele não reconhece que ele mesmo concorre para a desordem contra a qual se insurge” (LACAN, 1946/1998, p.174). Ele “não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de seu ser atual” (LACAN, 1946/1998, p.172). Em outros termos, ele atribui ao outro uma desordem interior que é a sua, diz Lacan, e a única maneira para sair disso será desferir seu golpe contra o que lhe aparece como a desordem. Mas, ao fazê-lo, é a si mesmo que ele atinge. Lacan o formula:

Assim, seu ser está encerrado num círculo, a menos que ele o rompa por alguma violência, na qual, desferindo seu golpe contra o que lhe parece ser a desordem, atinge a si mesmo através do contragolpe social.Tal é a forma geral da loucura… (LACAN, 1946/1998, p.173).

Alceste somente encontra, com efeito, sua saída em um verdadeiro suicídio social: verdadeira “agressão suicida do narcisismo”, diz Lacan (1946/1998, p.176), para sublinhar isto: que, ao tentar atingir o outro, é finalmente a si mesmo que ele atinge/bate.

Quanto a esta fórmula: ao atingir o outro, “é a ti mesmo que atinges” (LACAN, 1950/1998, p.149), que resume o conceito de “agressão suicida do narcisismo”,[10] que Lacan introduz a propósito do Misantropo, se pode dizer — como sublinha S. Cottet (2009, p.9) — que domina todos os primeiros escritos de Lacan sobre o imaginário e a criminalidade.

Vamos encontrá-la novamente na observação clínica que ele dá em seguida. Trata-se de um estudo publicado por Guiraud (1928), em um volume intitulado Os assassinatos imotivados. Guiraud descreve as etapas que precederam a sobrevinda da passagem ao ato homicida de um paciente. Depois de todo um período caracterizado por um “sentimento penoso de estranheza interior”, nota Guiraud, o paciente, desgostoso da vida e dos homens, se volta para Deus, depois para o comunismo, projetando sobre a sociedade seu pessimismo interior, até que, em uma passagem ao ato violenta, ele tenta, matando o tirano, matar a doença que o invadia.[11] Assim, sublinha Lacan, seguindo Guiraud, “não é outra coisa senão o kakon [o mal] de seu próprio ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (LACAN, 1946/1998, p.176).

c) A “libido negativa” e a pulsão de morte

O que demonstra o conceito de agressão suicida do narcisismo, através dos exemplos que Lacan dá, é o laço estreito que ele estabelece entre a agressividade e a pulsão de morte. Pode-se mesmo dizer que, nessa época de seu ensino, a pulsão de morte se encontra reduzida à agressividade. E se Lacan pode reduzir uma à outra é porque ele considera, sublinha J.-A. Miller (2004), que elas provêm de uma mesma libido narcísica que inclui, ao mesmo tempo, os valores de vida e de morte. Por que atribuir à libido narcísica esse duplo valor de vida e morte? Isso se deve à origem mesma dessa libido. Para Lacan, o que está na origem é o fato de que o pequeno homem, no seu nascimento, em razão de sua prematuridade, está confrontado a uma insuficiência vital. Essa insuficiência nativa constitui o motor da libido narcísica (LACAN, 1948/1998). Ela é a fonte de energia do eu.

É então porque existe esse dilaceramento original, essa “deiscência vital”, que a criança é levada a se identificar à imagem no espelho, para tentar mascarar, recobrir, essa hiância original. Essa hiância é então o que a conduz a buscar em torno de si, de início, uma imagem, em um parceiro que vai completá-la. Nisso, essa deiscência vital é “constitutiva do homem” (LACAN, 1948/1998, p.118). A libido narcísica, que tem sua fonte numa falta, traz em si sua marca, ela é positiva, uma vez que ela lança o desenvolvimento para frente. Lacan vê nela uma libido situada do lado da vida, uma libido vital. Mas, ao mesmo tempo, ela é negativa, porque a agressividade que a acompanha encontra sua fonte na “aflição orgânica original” da qual ela provém. Lacan introduz essa curiosa expressão “libido negativa”, para designar essa outra face da libido (LACAN, 1948/1998, p.118). Aí, é uma libido que está do lado da morte. Ela opera na agressão suicida do narcisismo. Ela é a expressão do que ele chamará mais tarde de a “lâmina mortal” do narcisismo (LACAN, 1958/1998, p.577).

Assinalemos aqui, como sublinha J.-A. Miller (2004), que essa teorização de Lacan torna finalmente caduca a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Assiste-se à sua reunificação a partir do narcisismo, ao qual ele atribui agora os valores de vida e de morte.

O Significante E A Morte

Em 1953, em seu “Discurso de Roma”, “Função e campo da palavra e da linguagem”, Lacan opera um profundo remanejamento de sua concepção. Apoiando-se sobre o estruturalismo, que deve a Lévi-Strauss, ele é levado a fazer do significante e da categoria do simbólico a nova polaridade de seu ensino. Uma das primeiras incidências dessa contribuição vai consistir em desfazer a junção que ele havia feito antes entre agressividade e pulsão de morte, para ligar a pulsão de morte ao simbólico (MILLER, 2004) — a agressividade ficando intimamente ligada ao registro imaginário da relação narcísica.

Por que reatar desde então a dimensão da morte ao simbólico? É que Lacan tomou a medida de que a tendência à morte não está ligada somente a uma falha vital, ela está também ligada à lógica do significante. É porque existe a linguagem que, diferentemente do animal, a dimensão da morte está presente em nossa vida. É pela operação do significante que a morte entra na vida.[12] Certamente, a morte não é representável, mas como sublinha Freud (1915b/1974, p.332), nós podemos antecipá-la. E é mesmo essa possibilidade que nós temos de antecipá-la, que levou à concepção da divisão do corpo e da alma (MILLER, 2004).

Qual é então a natureza do laço que existe entre a morte e o significante? Lacan expõe suas razões em 1953, em seu “Discurso de Roma”. A primeira consiste em dizer que o que caracteriza “o símbolo [é que ele] se manifesta inicialmente como assassinato da coisa” (LACAN, 1953/1998, p.320). O significante, o símbolo, anula a coisa. Ele está no lugar da coisa. No memento mesmo em que a designa, ele a apaga naquilo que faria sua autenticidade. A segunda razão, invocada por Lacan para dar conta do laço com a morte, consiste em dizer que o significante nos localiza além da morte. O significante assegura uma sobrevida além da vida biológica. Se o homem aspira a se destruir, é porque, na morte, ele consegue se eternizar (LACAN, 1953/1998). É a partir do momento em que o sujeito está morto, que ele se torna um signo eterno para os outros (LACAN, 1957-1958/1999). A esse respeito, o que caracteriza o humano é o direito à sepultura. É a possibilidade de persistir como significante além da morte biológica.

Enfim, a terceira razão é que a morte está no fundamento da constituição da subjetividade. “A intermediação da morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história” (LACAN, 1953/1998, p.320). É porque se sabe destinado à morte, que o sujeito humano se distingue do animal e que sua existência pode tomar sentido (FREUD, 1915b/1974, p.339). Isso é testemunhado pelo horror no qual se pode mergulhar o sujeito quando preso à certeza delirante de que é imortal.

Essa nova perspectiva desenvolvida por Lacan, salientando a dimensão significante da morte e fazendo dela uma característica do simbólico, apresenta, no entanto, uma contrapartida. Ele não leva em conta a dimensão de “satisfação paradoxal”, além do princípio de prazer, que está no coração da pulsão de morte freudiana. O que está excluído nessa concepção da pulsão de morte pelo simbólico é o gozo, sublinha J.-A. Miller (2004). Desde então, onde Lacan irá situar essa satisfação paradoxal?

O Gozo: Um Dos Nomes Da Pulsão De Morte Freudiana

a) “A pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte”

É em 1964, no Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” e no escrito “Posição do inconsciente”, que Lacan dará uma resposta a essa questão. Nos dois textos, ele introduz uma tese que, transformando radicalmente a teoria freudiana das pulsões, vai permitir-lhe levar em conta a dimensão real da pulsão de morte freudiana.

Até então, sublinha J.-A. Miller (2005), Lacan tinha tentado pensar a questão da libido freudiana a partir do imaginário, mas era ao preço de fazer da pulsão de morte um fenômeno imaginário assim como a agressividade. Em seguida, quando tinha recorrido ao registro do simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que tinha sido realçada. Agora, como o Seminário 11, ele opera um novo giro. Recorrendo ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é a dimensão de gozo que comporta a pulsão de morte freudiana — a que Freud se refere como uma “satisfação paradoxal” — que vai ser enfatizada.

Em que essa nova perspectiva transforma radicalmente a teoria freudiana das pulsões? É que ela torna caduca (mais uma vez[13]) a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Desde então, como sublinha J.-A. Miller (2004), as pulsões de vida e as pulsões de morte aparecem como dois aspectos de uma só e mesma pulsão.

Lacan o formula explicitamente: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte” (LACAN, 1946/1998, p.188). E acrescenta: “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (LACAN, 1946/1998, p.195).[14] A pulsão sexual que era situada, até então, do lado da vida, inclui também a dimensão da morte.

Como dar conta do fato de que a morte está também presente nas pulsões sexuais? Lacan faz valer o conceito de repetição e o de pulsão tal como os reformula no Seminário 11. A repetição não está somente no coração da pulsão de morte, ela está também no coração de todo funcionamento pulsional. No princípio da pulsão, existe, com efeito, uma tentativa repetida para reencontrar o objeto que deu satisfação uma primeira vez. Mas esse objeto, que Lacan chama de objeto a, permanece inatingível (LACAN, 1946/1998, p.169). A pulsão o contorna sem jamais atingi-lo, daí a repetição.

Tomemos o exemplo[15] da pulsão oral. Aqui, o objeto a na pulsão oral é o que resta da demanda uma vez que se demandou tudo. Existem os alimentos que se podem obter e, uma vez que tenham sido experimentados, fica um resto que não se satisfaz jamais. Daí o fato de que isso não se aquiete nunca, isso impulsiona, insiste, se repete. O mesmo acontece com a analidade, dá-se de início tudo o que se tem e depois se continua, e resta sempre uma presença dessa exigência de dar, mesmo quando não se tem mais nada para dar. O resto é o objeto a.

E, no fundo, essa exigência repetitiva de satisfação que está no coração do funcionamento pulsional testemunha, segundo Freud e Lacan, uma ultrapassagem do princípio de prazer. Essa repetição — da qual vemos que não é um fenômeno vital articulado ao biológico, mas antes um fenômeno linguageiro articulado ao inconsciente — longe de visar à satisfação de uma necessidade como outras, “aparece ao contrário como uma exigência desarmônica” (MILLER, 2004, p.21),[16] inadaptada em relação às exigências da vida, em relação ao bem-estar do corpo. Ela é “um fator de desadaptação”; ela é contrária à vida. E é então nesse sentido que Lacan pode dizer que “a pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte.”

É o que Freud demonstra, assinala J.-A. Miller (2004), quando sublinha como um órgão pode deixar de obedecer ao saber do corpo. Por exemplo? “O olho pode e deveria servir ao corpo para se orientar no mundo, para ver”, mas eis que ele se coloca “a servir ao que Freud chama a Schaulust, o prazer de ver”. Vê-se como se introduz aqui “um prazer que ultrapassa a finalidade vital e mesmo que conduz a anulá-la”. O olho que deveria estar a serviço da vida individual, torna-se o suporte de um “gozar”, que pode se impor como uma exigência repetitiva, inadaptada às necessidades da vida (MILLER, 2004, p.46). Em suma, essa repetição a que Freud se referiu como sendo a marca da pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões. Ela não é o apanágio de uma pulsão específica que seria a pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões parciais. Toda pulsão é uma ultrapassagem repetitiva do princípio do prazer para tentar atingir — em vão — um gozo perdido para sempre, ao preço, por vezes, de deixar sua vida, como se manifesta, por exemplo, na toxicomania.

Desse ponto de vista, pode-se dizer que o abandono, por Lacan, da dicotomia freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte em proveito do conceito de “gozo”, nome lacaniano da pulsão de morte freudiana, é o que lhe permitiu conceber a parte mórbida de toda pulsão.

Vê-se, por aí, igualmente, que Lacan não abandonou nunca a pulsão de morte freudiana. Ao contrário, fez dela a pedra de sustentação do circuito pulsional. E quando fez do gozo o problema maior com o qual cada um, seja neurótico ou psicótico, tem que se confrontar, pode-se dizer que inscreve a questão da pulsão de morte no coração mesmo de sua teoria e de sua concepção do tratamento. Porque, a partir de então, a pulsão de morte deverá ser tomada na relação particular, sempre singular, que o sujeito mantém com o gozo, com o objeto a que causa seu desejo.

b) Da imagem i(a) ao objeto a: os crimes de gozo

Dizer que toda “pulsão parcial é por natureza pulsão de morte” não quer dizer, certamente, que toda pulsão vai até a morte. Lacan o precisa bem em “Posição do inconsciente”. “Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte” (LACAN, 1964/1998, p.863), dito de outro modo, em toda pulsão existe essa possibilidade de uma transformação do prazer em gozo, a partir do que Lacan chama uma ultrapassagem do princípio do prazer.

Prazer ———-> Gozo/Objeto a

O que caracteriza o prazer é seu caráter razoável, apaziguador, sem tensão. O que faz com que ele possa encontrar seus próprios limites e parar diante da barreira do mal, da dor, do feio. O princípio do prazer é “um princípio de sobrevivência”, assinala J.-A. Miller (2005).

O gozo, ao contrário, se opõe ao princípio do prazer. Ele detém uma potência em si que atravessa essa barreira, ele se apresenta como “uma exigência absoluta” que a torna irresistível. Ele vai no sentido da morte, da destruição. Ele implica em si mesmo “a aceitação da morte”, diz Lacan (1959-1960/1991, p.231).

Habitualmente, o sujeito para antes que a pulsão chegue até a morte. Ele recua, horrorizado, quando o objeto real da pulsão — objeto de gozo, começa a aparecer-lhe em sua crueza. Habitualmente, nós não temos nunca, com efeito, acesso ao objeto real da pulsão. Esse objeto — o objeto a — é inatingível. A pulsão o contorna sem atingi-lo jamais. Esse objeto permanece mascarado, recoberto pelo brilho fálico que lhe dão a fantasia e o desejo.xvii

Um poema de Baudelaire, que J.-C. Maleval (2008, p.150) cita, nos permite apreender o que pode ser esse objeto real da pulsão, quando não é mais recoberto pela imagem aureolada por seu brilho fálico, por i(a).

Quando ela me sorveu dos ossos a medula,E tão languidamente a buscou minha gula,Viu o beijo de amor que nela final pus,Flanco viscoso de odre a transbordar de pus!(BAUDELAIRE, 2001, p.138).[18]

Aqui, o objeto real da pulsão se desvela como uma coisa imunda. Bruscamente, a fantasia, que aureolava o objeto amado, falta. Em um outro poema de Flores do mal, intitulado “Uma carniça”, Baudelaire (2001, p.41) nos dá uma descrição comparável desse momento de báscula.

Barreira, Interdito, Castração

“Não-relação sexual”

Prazer ———> / / —–> Gozo

Sujeito dividido —–> / / —–> Objeto a (objeto real da pulsão)

Inacessível

Imagem falicizada i(a)

Fantasia – Desejo

Na neurose, normalmente, a barreira da fantasia e do desejo funciona para manter o sujeito à distância do objeto real da pulsão. E quando acontece a falha da fantasia — quando uma “desfalicização” do objeto se produz — o sujeito se desvia do objeto. O nojo se instala. Mesmo na perversão, a barreira da fantasia, em sua articulação com a castração, funciona.

A relação ao objeto real da pulsão — a relação ao gozo — não inclui a dimensão da castração. Não está coordenado ao falo articulado ao vazio central da castração, de modo que nenhuma impotência[19] coordena o sujeito ao objeto do qual goza.

Desde então, na relação do sujeito ao objeto, a dimensão do gozo pode se apresentar de maneira a mais crua, em um “sem limite”. Pode então acontecer, como sublinha J.-C. Maleval (2008), que se assista a uma apreensão direta do objeto pulsional. O sujeito busca, então, tirar diretamente os objetos parciais do corpo do parceiro (MALEVAL, 2008).[20] Categoria de crimes que podemos qualificar de “crimes de gozo” ou de “crimes puramente pulsionais”, como o formula Lacan (1932/1987 p.306), nos quais a pulsão de morte se abre/desdobra em todo seu horror.

Em suma, ao fim desse percurso, a pulsão de morte freudiana aparece cindida em duas, entre significante e gozo. Quando Lacan recorre ao simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte.

Ao contrário, a agressividade não aparece mais como um conceito central para dar conta da pulsão de morte; ela aparece como uma consequência lógica da gênese do eu.

Enfim, a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte tende a desaparecer em proveito de uma concepção monista da pulsão que permita a Lacan sair das dificuldades ligadas ao dualismo freudiano.

III – Do Mal-Estar Na Civilização Ao Tratamento Do Gozo

Para concluir, evocaremos brevemente a questão do tratamento da agressividade e da pulsão de morte. É um problema que atravessa todo o ensino de Freud e Lacan.

Desde 1950, Lacan tinha sublinhado como a promoção do eu e o retorno sobre o narcisismo, que se observam no nosso mundo moderno, levavam à violência (LACAN, 1950/1998).[21] É, com efeito, que o prestígio dado ao narcisismo, colocando os seres em um isolamento de alma, fecha os sujeitos sempre mais em um modo de ligação social que passa pela identificação imaginária ao semelhante. A consequência desse modo de identificação alienante é a agressividade.

Observemos que, em 1929, em “Mal-estar na civilização”, Freud já assinalava o perigo que representava o modo de “laço social [quando] é criado principalmente pela identificação de membros de uma sociedade uns aos outros”. Ele via nos Estados Unidos o modelo desse tipo de laço social do qual o efeito só poderia ser “a pobreza psicológica dos grupos” (FREUD, [1929]1930/1974, p.138).

Existe então uma face contingente na agressividade. A sua expressão irá variar segundo a maneira pela qual as estruturas simbólicas do grupo serão capazes de pacificá-la, integrá-la, mascará-la, recobri-la. Daí as variações que se observam segundo as épocas e as culturas.[22]

A Função Pacificadora Do Ideal Do Eu

Para Freud, a função da civilização é, com efeito, permitir que a dimensão do amor domine a do ódio. Freud desenvolve esse ponto de vista em “Mal-estar na civilização”. Ele se interessa pelas barreiras, pelas interdições que a sociedade ergue para lutar contra essa “inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros” (FREUD, [1929]1930/1974, p.134).

Lacan retoma, por sua vez, essa mesma questão. A tese que ele desenvolve em seu artigo de 1948 consiste em dizer que o que permite ao sujeito transcender “a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva” é a identificação edipiana (LACAN, 1948/1998, p.117). Ele considera que no Édipo se realiza uma identificação que não é mais a identificação ao semelhante com sua consequência agressiva, mas uma identificação ao grande Outro em posição de ideal do eu para o sujeito. Lacan reconhece nessa identificação dita “simbólica” uma função pacificadora e normatizante[23] à qual atribui eficácia ao pai, cuja função é unir o desejo à lei. Essa identificação simbólica ao Outro em posição de ideal do eu é o que permite estruturar o imaginário.

A Face Mortífera Da Cultura

A função do ideal do eu tem, no entanto, seus limites para tratar o problema da agressividade e da pulsão de morte. Não somente porque existe em nosso mundo contemporâneo um declínio dos ideais e uma fragilização das referências simbólicas, mas também porque a função do ideal tem uma parte ligada com o gozo do supereu.

Existem, com efeito, duas faces na cultura. Uma que tem uma função pacificadora — aquela que Freud acentuou com o pai do Édipo que une o desejo à lei. Aí, é a função pacificadora do ideal do eu. E outra que é aquela da pulsão de morte, que Freud descobre com o supereu. Um supereu que certamente toma a seu cargo os interditos enunciados pela cultura, mas que, mais secretamente, impulsiona a gozar. O interdito ele mesmo alimenta o gozo. De sorte que o que se chama de cultura pode também ter uma face deletéria. A cultura da avaliação é um exemplo disso.

Bem-Dizer Nossa Relação Ao Gozo
Desde então, como tratar o gozo? O que é que pode vir a limitar o gozo, se parece, com efeito, que existe uma queda dos ideais e que o ideal, a moral retomada a seu cargo pelo supereu, corre o risco, sempre, de se degradar em gozo.

A resposta de Lacan a uma questão atravessa todo o seu ensino.[24] Isolarei, no entanto, um ponto que me parece crucial, aquele que consiste em dizer que o tratamento da pulsão de morte, o tratamento do gozo, passa pela ética. A ética da psicanálise para Lacan é “uma ética do bem-dizer”. Ele a formula assim em 1974: “isto é, do dever de bem-dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura” (LACAN, 1974/2001, p.524).

“Bem-dizer ou se referenciar ao inconsciente” quer dizer “aprender a ler nosso inconsciente”, quer dizer aprender a “bem-dizer nossa relação ao gozo inconsciente” ou à pulsão de morte. Como? Tentando chegar o mais próximo de nossa relação ao objeto, esse objeto a causa do desejo e que reencontramos no coração da fantasia.

Não é então um “tratamento de massa” da pulsão de morte o que a psicanálise propõe, como aquele que prescreve a religião sob a forma do preceito: “amarás ao próximo como a ti mesmo” e que Freud ([1929]1930/1974, p.168) e também Lacan (1959-1960/1991) julgam inoperante e “chocante”.[25] Não, o que a psicanálise propõe é um tratamento “um-a-um”.

Consiste em levar em conta o fato de que esse gozo mau está em cada um, “ele faz parte de seu próprio ser”, diz Freud (1925/1976, p.165),[26] ou como formula Lacan (1946/1998, p.195), que “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”.

“Nosso ser inclui […] a parte de que somos orgulhosos, […] que constitui a honra da humanidade”, assinala J.-A. Miller, “mas também a parte horrível” (MILLER, 2009, p.2-3). Essa parte horrível não é somente aquela que Freud descreveu quando nos diz que “o homem é um lobo para o homem”, é também aquela que se abre no gozo obscuro do sacrifício.[27] Importa aproximar-se disso em um tratamento para tentar saber alguma coisa sobre isso.

 

(1) “De l’agressivité à la pulsion de mort”, publicado em Mental, Paris, n.24, p.143-163, abr. 2010.
(2) Lacan (1948/1998, p.106,112) introduziu no texto “A agressividade em psicanálise” essa distinção entre “intenção agressiva” e “tendência agressiva”.
(3) A obra de Darwin, A origem das espécies, data de 1859, e A filiação do homem, de 1871.
(4) O prestígio da ideia da luta pela vida é atestado pelo sucesso da teoria darwiniana ou, pelo menos, pelo sucesso das derivações que essa teoria conheceu, desde o fim do século XIX, com o que chamamos o “darwinismo social” — termo inventado, em 1880, para designar a doutrina sociológica de Herbert Spencer, segundo a qual a eliminação dos menos aptos é a consequência necessária, nas comunidades humanas, da grande lei da seleção natural. Sabe-se que Darwin se opôs a essas concepções. Ver sobre esse ponto: TORT, P. “Le darwinisme, entre innovation et dérives”, Dossier pour la Science, n.63, p.21, avr./juin 2009.
(5) Freud considera que os “verdadeiros protótipos da relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta do eu para sua conservação e sua afirmação” (FREUD, 1915a/1974).
(6) Plaute, Asinaria (La comédie des ânes), II, 4, 88.
(7) “A ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais”, sublinha Lacan. “Mas essa própria crueldade implica a humanidade.” Ela é específica do homem. É porque, mais que nos referir a esse adágio de Plauto, Lacan nos convida a ler a fábula forjada por Balthazar Gracian, em seu Criticon. Este último sublinha a que ponto, “ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira [a ferocidade do homem], os próprios carniceiros recuam horrorizados” (“Le précipice de la vie”, Le Criticon, Tomo 1, Éditions Allia).
(8) “Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto de preservar a substância viva […]” (FREUD, 1930/1974, p.141).
(9) É o que traz Miller em Biologia lacaniana, ao falar de “pulsão do supereu”. “Mesmo se a fórmula não aparece assim em Freud, a pulsão de morte, tal qual emerge de seu texto, é a pulsão do supereu” (MILLER, 2004).
(10) O conceito de “agressão suicida do narcisismo” vem substituir a ideia de uma causalidade do crime em termos de autopunição que Lacan tenha desenvolvido alguns anos antes no caso Aimée. Lacan sublinha, na p.176: “Quanto à mola do desfecho, ele é dado pelo mecanismo que, bem mais do que à autopunição, eu referiria à agressão suicida do narcisismo” (LACAN, 1950/1998, p.176).
(11) Ver p.88: “Condensou a noção de sua doença com a do mal social, ou melhor, simbolizou a primeira pela segunda. […] Por um ato de violência, Paul tentou suprimir o kakon para usar a expressão de V. Monakow e de Morgue. Matar o tirano consistia para ele em matar a doença” (GUIRAUD, 1928/1994, p.88).
(12) “Isso porque o significante como tal, barrando por intenção primeira o sujeito, nele faz penetrar o sentido da morte. (A letra mata, mas só ficamos sabendo disso pela própria letra)” (LACAN, 1964/1998, p.862-863).
(13) Porque é já o que Lacan tinha tentado fazer com a libido narcísica, à qual ele atribuía um duplo valor de vida e morte.
(14) Lacan se refere aqui à relação essencial que une o sexo à morte. Somente essa questão essencial mereceria todo um desenvolvimento. Notemos unicamente que, desde que Lacan acentua a relação que une esses dois termos, no Seminário 11 (p.188, 194, 195) e em “Posição do inconsciente” (p.861-863), é em referência à biologia que ele se situa. Para os biologistas, a relação entre o sexo e a morte se explica pelo fato de que é a partir da reprodução sexuada que a morte aparece. Freud (1920/1976, p.65) retoma por sua conta essa teoria de Weismann em Além do princípio de prazer. Lacan também se refere a isso e, na sequência do Seminário 11, mostra como essa articulação do sexo e da morte está no coração das operações de alienação e separação que presidem o advento do sujeito.
(15) A formulação seguinte é de Éric Laurent em seu curso intitulado “A transferência”, Universidade Paris VIII, Departamento de Psicanálise, Seção clínica, 22/04/1992, inédito.
(16) Lacan (1969-1970/1992, p.43) o formula explicitamente. A repetição “é propriamente aquilo que se dirige contra a vida”. J.-A. Miller (2005, p.172) desenvolve igualmente essa questão: “Assim, a repetição, não é somente falhar o real, como Lacan articulou no Seminário 11, mas também ‘busca de gozo’. A repetição não é a expressão do princípio do prazer, mas, por si mesma, ‘vai contra a vida’. Esse é o deslocamento que, da repetição como expressão do princípio do prazer, faz da repetição a própria articulação da pulsão de morte.”
(17) Lacan (1972-1973/1985) sublinha que, na relação sexual, nós não temos jamais um acesso direto ao corpo do outro. O sujeito neurótico ou perverso somente copula com o falo que lhe barra o gozo do corpo do Outro. Não existe relação sexual, somente o amor permite nutrir a esperança de reencontrar o Outro.
(18) Esse poema, “As metamorfoses do vampiro”, faz parte dos Épaves, peças condenadas que foram censuradas durante o processo de As flores do mal, em 1857.
(19) A impotência, como sintoma neurótico, testemunha, com efeito, a implicação do complexo de castração.
(20) Maleval dá o exemplo de um paciente necrófilo que tinha suscitado numerosos estudos psiquiátricos no século XIX. O sujeito tinha desenterrado os cadáveres nos cemitérios e, presa de uma fúria destrutiva incontrolável, ocupava-se de picá-los, cortá-los em pedaços. “Seu extremo gozo era obtido, não pelo coito com o cadáver, mas pela sua partição…”, em uma tentativa para atingir, mais além da imagem corporal, nas vísceras da vítima, o objeto de gozo suposto encontrar-se ali (MALEVAL, 2008, p.159).
(21) “[…] numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” (LACAN, 1950/1998, p.146).
(22) Essa dimensão contingente da agressividade já havia sido sublinhada por Lacan, desde 1948, em um texto que levava ainda uma forte marca sociológica. Lacan (1948/1998, p.122-123) sublinhava a “preeminência da agressividade em nossa civilização”, em que é considerada como “de um uso social indispensável”, como um ingrediente necessário a todo espírito empreendedor.
(23) “Mas o que nos interessa aqui é a função, que chamaremos apaziguadora, do ideal do eu, a conexão de sua normatividade libidinal com uma normatividade cultural, ligada desde o alvorecer da história à imago do pai” (LACAN, 1948/1998, p.119).
(24) Lacan o aborda notadamente em 1960, em “Subversão do sujeito e dialética do inconsciente” (1960/1998, p.836).
(25) Ver também o comentário de Miller, “L’apologue de Saint Martin et de son manteau’”, Mental, Paris, n.7, p.7.
(26) “[…] a maioria dos sonhos — sonhos inocentes, sonhos sem afeto e sonhos de ansiedade — são revelados, quando as deformações da censura foram desfeitas como a satisfação de impulsos imorais — egoístas, sádicos, pervertidos ou perversos” (p.164).
(27) Do qual o ponto extremo nos é dado pelos atentados suicidas. Lacan (1959-1960/1991, p.324) o sublinha: “Só os mártires são sem piedade e sem temor. Creiam-me, no dia do triunfo dos mártires, haverá o incêndio universal.”

 


Tradução: Márcia Mezêncio
Referências
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Éric Guillot
Éric Guillot – Psicanalista em Rouen, França. E-mail: erguillot@numericable.fr