ÉRIC GUILLOT
Agressividade e pulsão de morte estão no coração da clínica das passagens ao ato violentas ou assassinas que são frequentes em nossa atualidade. Violência verbal, intimidação, extorsão, violação, exploração sexual, assassinatos, atentados suicidas, as manifestações agressivas não têm todas a mesma significação. Umas se abrem no registro da “intenção agressiva”[2] e ficam presas na comunicação. Outras testemunham uma “tendência agressiva” mais fundamental que se desdobra em outro registro totalmente diferente, aquele da passagem ao ato, eventualmente destruidor e assassino, colocando em jogo o que Freud designou com o termo pulsão de morte.
Como nos orientar nessa clínica da agressividade e da pulsão de morte? Para dar conta dela, nós teremos de evocar a dimensão sociológica e política desses fenômenos. Existe sempre, com efeito, uma dimensão de contingência na agressividade. Lacan o indica desde 1948, sublinhando que nosso mundo contemporâneo, marcado pela globalização, contribui para seu desencadeamento (LACAN, 1950/1998).
Quais são os fundamentos e os mecanismos da agressividade e da pulsão de morte? Sobre esse ponto, as opiniões de Freud e Lacan divergem. Freud considera que a agressividade é uma “disposição instintiva primitiva”. Ele faz dela um fenômeno vital devido à biologia, tal como a pulsão de morte, que ele liga à agressividade. À diferença de Freud, Lacan considera que a agressividade e a pulsão de morte não se devem ao instinto como animal. Para ele, agressividade e pulsão de morte devem ser pensadas em sua articulação à linguagem. É a linguagem que faz do homem um animal desnaturado capaz de crueldade.
A extração da agressividade e da pulsão de morte do campo da biologia e sua inscrição no campo da linguagem permitirão a Lacan dissociar progressivamente a agressividade da pulsão de morte.
Quanto à agressividade, Lacan mostra, de início, que se trata de um fenômeno que se desenvolve estritamente no registro imaginário. A agressividade é correlativa de um modo de identificação próprio à estrutura do humano. Trata-se de um fenômeno decorrente da teoria do narcisismo. Quanto à pulsão de morte, que Lacan tinha ligado à agressividade, nos primeiros momentos de seu ensino, ele sublinha, em seguida, a articulação estrita com o simbólico; depois, a partir dos anos 60, ele mostra que ela deve ser pensada em seu laço com o gozo, quer dizer, em sua relação com o real. O termo gozo torna-se, então, o nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.
I – Freud, Da Agressividade À Pulsão De Morte
Uma Tendência À Agressão
Lacan considera que Freud fica parcialmente prisioneiro da ideologia darwiniana que dominava sua época.[3] Nessa ideologia — mas não é ainda a nossa? — existe uma preeminência acordada à agressividade que se refere ao fato de que seja concebida como um princípio de conservação da espécie[4] (LACAN, 1948/1998). A abordagem freudiana da agressividade, em termos de instinto e de função vital, testemunha a influência de uma tal ideologia. A primeira teoria freudiana das pulsões[5] (opondo pulsões sexuais e pulsões de autoconservação) também carrega essa marca (FREUD, 1915a/1974).
Depois de 1920, com a descoberta do mais além do princípio de prazer e os remanejamentos de sua teoria pulsional (em oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte), Freud introduz uma nova perspectiva concernente à agressividade. Certamente, Freud vê sempre naquela “uma disposição instintiva original e autossubsistente”, e ele é sempre tentado a situar aí os fundamentos de uma referência à biologia, mas, nesse momento, a agressividade lhe aparece, sobretudo, em sua dimensão deletéria, e ele a relaciona à pulsão de morte (FREUD, 1930/1974). É em “O mal-estar na civilização” que ele o testemunha mais claramente. Tomando o que chama de “tendência à agressão”, ele nos dá uma definição e uma descrição do homem que integra a pulsão de morte. Poderia ser Sade, assinala Lacan (1959-1960/1991). Todo o pessimismo de Freud eclode nesse texto:
[…] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo (FREUD, 1930/1974, p.133).
Homo homini lupus, ele acrescenta, para concluir: o homem é um lobo para o homem.
A forma desse adágio que Freud toma emprestado de Plauto[6] é, para Lacan (1950/1998), enganadora sobre seu sentido.[7] Ele, com efeito, considera que a agressividade não corresponde a um instinto, que não é uma função vital, como no animal. Em 1929, não se trata mais, para Freud, de situar a agressividade em sua articulação às pulsões de conservação do eu, mas antes de mostrar que existe uma “inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destruição, e também para a crueldade” (FREUD, 1930/1974, p.142). Essa tendência à agressão na qual ele reconhece a marca da pulsão de morte constitui, a seus olhos, uma ameaça para a sociedade civilizada (FREUD, 1930/1974). Desse julgamento muito pessimista de Freud nós podemos extrair todo o peso do desastre que foi a primeira guerra mundial e as premissas daquela que se anunciava.
Da Pulsão De Morte À “Pulsão Do Supereu”
A prova dessa influência obscura da pulsão de morte, Freud a refere igualmente a certas manifestações clínicas nas quais o sujeito se emprega a repetir situações que são para ele um desprazer e que vão contra o seu bem e mesmo contra os interesses do vivo. Trata-se, por exemplo, da repetição dos sonhos traumáticos ou ainda das neuroses de destino, das reações terapêuticas negativas, mas também dos sintomas ou da clínica do masoquismo. A repetição dessas manifestações clínicas que se apresentam como uma forma de autoagressão, das quais, no entanto, o sujeito parece tirar uma satisfação paradoxal, testemunha, para ele, a operação de um movimento que se dirige à morte e que afetaria o vivo como tal. Ele vê nessa repetição a expressão de um fenômeno vital enraizado na biologia,[8] caracterizado pela tendência a restabelecer um estado anterior, como um retorno do animado ao inanimado (FREUD, 1930/1974, p.141).
Assinalemos que, se Lacan admite também o fato da repetição como sendo o princípio da pulsão de morte, ele não faz dela um fenômeno vital enraizado na biologia. Ele situa, ao contrário, a repetição em relação à linguagem e ao inconsciente. Está aí um ponto importante que J.-A. Miller (2004) sublinha em seu curso Biologia lacaniana.
Mas vejamos o que leva o sujeito a repetir a situação que vai contra o seu bem. Certamente, Freud considera que essa tendência mórbida se enraíza em um movimento vital, mas que não é suficiente dizê-lo assim. É preciso poder explicar por que todo o mundo não tem a mesma relação com a pulsão de morte. O que leva certos sujeitos a se oporem à sua cura e mesmo a se autodestruírem, a se autoagredirem?
A primeira ideia de Freud tinha sido interpretar como uma forma de autopunição ligada a uma culpabilidade edipiana. Mas, a partir de 1923, em “O Eu e o Isso”, ele começa a duvidar da eficácia dessa interpretação. O que o levou a levantar outra hipótese: aquela do supereu. Essa instância, no interior do sujeito, que o leva a se autodestruir é o supereu. Não o supereu “herdeiro do complexo de Édipo”, resultado da interiorização dos interditos parentais e ligado à figura pacificadora do pai do Édipo; mas um supereu muito mais feroz, de uma severidade extrema, que manifestará contra o Eu “a mesma agressividade rude” que o Eu “teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos” (FREUD, 1930/1974, p.146). Freud o formula em 1929, em “O mal-estar na civilização”.
Para explicar as manifestações de autoagressão, Freud faz valer um retorno da agressividade sobre a própria pessoa por um supereu sádico, que maltrata, atormenta e angustia o eu. O supereu que tiraniza o sujeito, por suas exigências desmesuradas, aparece, assim, como um dos nomes dessa pulsão de morte, cuja hipótese se impôs então a Freud a partir dos anos 20. Freud constata, além disso, que nada apazigua o supereu. Longe de ser acalmado, como se poderia imaginar, pela renúncia pulsional, ele se encontra tanto mais excitado, crescendo sempre mais sua superioridade. Freud (1930/1974, p.149) sublinha que “quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento”.
Por quê? Freud explica assim:
Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não basta, pois o desejo [quer dizer, a “tendência à agressão”] persiste e não pode ser escondido do superego [supereu]. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. […] Aqui, a renúncia instintiva [pulsional] não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor (FREUD,1930/1974, p.151).
A culpabilidade que resulta da tensão entre o eu e o supereu é às vezes tal, assinala Freud, que acontece de alguns sujeitos cometerem crimes com o único objetivo de serem punidos, fazendo, assim, aliviar sua culpabilidade inconsciente. É um paradoxo que Freud (1915c/1974) sublinha em um artigo intitulado “Criminosos pelo sentimento de culpa”, que Lacan retomará, por sua vez, em 1950, em Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. Ele destaca uma categoria de crimes nos quais, paradoxalmente, é o sentimento de culpabilidade que preexiste à falta. Nessa clínica do supereu destacada por Freud, é a instância do supereu que leva ao crime e à transgressão para satisfazer o que aparece finalmente como uma forma de gozo do supereu (COTTET, 2009).
Com efeito, o que aparece nesse texto de Freud — e que Lacan destacará — é a dimensão pulsional do supereu.[9] Ele tem uma avidez que nada satisfaz. Mais se lhe dá, mais ele reclama. Mais o supereu se impõe, exige, interdita, e mais ele se mostra ávido de renúncia, como se ele se nutrisse dessa renúncia mesma (FREUD, [1929]1930/1974). Ele empurra ao sacrifício e se nutre desse gozo obscuro, masoquista, que o sujeito pode experimentar no sacrifício. Assim, assistimos a uma forma de sexualização do imperativo moral que o supereu promove. E, sem dúvida, é nessa dimensão pulsional do supereu que nós encontramos, como sublinha J.-A. Miller, a “definição mais brilhante” da pulsão de morte (MILLER, 2004, p.22)
II – Lacan: Da Agressividade Ao Gozo
“A Aporia Freudiana”
Lacan considera que Freud ficou prisioneiro da ideologia de seu tempo, quando se esforçou em definir a experiência do homem no registro da biologia (MILLER, 1991). No entanto, sublinha Lacan, toda sua obra demonstra que não se pode dar uma fórmula biológica para isso. É uma contradição em sua obra, é uma “aporia” (LACAN, 1948/1998, p.104). A maneira que Freud teve de teorizar a pulsão de morte, a partir do postulado de uma “agressividade constitucional do ser humano contra outrem”, testemunha essa dificuldade, e Lacan considera que isso deixou a porta aberta a numerosas confusões.
Agressividade E Pulsão De Morte: A Teoria Do Narcisismo
a) Um modo de identificação próprio da estrutura do humano
Rompendo com essa perspectiva biologizante, Lacan vai se esforçar para repensar a questão dos fundamentos da agressividade a partir da teoria da identificação. Ele desenvolve essa questão em 1948, no artigo “A agressividade em psicanálise”.
Sua tese é a seguinte: “a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico” (LACAN, 1948/1998, p.112). Ele acrescenta: o modo de identificação narcísica “determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo”.
Para Lacan, agressividade e identificação narcísica são intimamente ligadas. Não se pode dar conta da agressividade sem uma teoria da identificação em psicanálise. Tal é o seu ponto de partida. Nós estamos então longe da ideia de uma agressividade instintual. Ele situa, ao contrário, a origem da agressividade na gênese do eu. A agressividade está intrinsecamente ligada à estrutura narcísica do eu (LACAN, 1948/1998). Ela é sua “tendência correlativa”. Certas manifestações patológicas, como aquelas que encontramos nas psicoses paranoicas, em que dominam as reações agressivas ou as imputações de nocividade feitas ao outro (LACAN, 1948/1998), somente se tornam lesivas se as relacionarmos à “organização original das formas do eu e do objeto” (LACAN, 1948/1998, p.113).
b) A estrutura paranoica do eu
Qual é a origem do eu? Lembremos brevemente que o eu resulta de um processo de identificação imaginária. Lacan elabora essa teoria no artigo sobre o estádio do espelho (LACAN, 1949/1998). A criança acede a uma representação unitária de si mesma ao se identificar, seja à sua imagem no espelho que ela assume como sendo a sua, seja à de uma outra criança, com a condição de que a diferença de idade não exceda dois meses e meio (LACAN, 1948/1998). O que chamamos de eu não é nada mais que o resultado desse processo de identificação imaginária a um outro. Assim, em seu fundamento, o eu é um outro.
Que o sujeito deva passar pelo outro para ter acesso a uma imagem de si mesmo não é sem consequências. Vai resultar disso, sublinha Lacan, uma “ambivalência estrutural”, “uma tensão conflitiva interna ao sujeito” (LACAN, 1948/1998, p.116), e, desde então, a relação do sujeito a seu semelhante vai se desdobrar em um duplo registro, aquele do erotismo e aquele da agressividade. Existe um componente erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica, de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe um componente agressivo porque, se “eu é o outro”, então esse outro pode tomar meu lugar. E é em termos de “você ou eu” que se desdobra então a relação. A única saída vem a ser a destruição do outro. Lacan o formula assim:
Há nisso uma espécie de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso pensamento, para compreender a natureza da agressividade no homem e sua relação com o formalismo de seu eu e de seus objetos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu (LACAN, 1948/1998, p.116).
Os fenômenos de transitivismo observáveis nas crianças pequenas, mas a respeito dos quais Lacan diz que não se eliminam jamais do mundo do homem (LACAN, 1946/1998), testemunham esses fenômenos de captação pela imago da forma humana.
Lacan se refere aqui às observações de Charlotte Bühler.
É nessa captação pela imago da forma humana, […] que domina, entre os seis meses e os dois anos e meio, toda a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante. Durante todo esse período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora (LACAN, 1948/1998, p.116).
E precisa em “Formulações sobre a causalidade psíquica”: “Assim, a criança pode participar, num transe completo, do tombo do seu colega, ou igualmente lhe imputar, sem que se trate de uma mentira, ter recebido dele o golpe que lhe aplicou” (LACAN, 1946/1998, p.182). Assim, o que destacam extraordinariamente os fenômenos de transitivismo é a função de desconhecimento do eu. Lacan tirará as consequências disso, tanto para a concepção que faz da direção do tratamento, como para o que nos ensinam sobre a clínica da paranoia. Com efeito, como ele sublinha, a criança que imputa a seu colega receber o golpe que ele recebe não mente. No momento de captação em que se identifica ao outro, ela desconhece o que vem dela e o que vem do outro. Ela desconhece radicalmente a sua participação naquilo de que se queixa. É o que leva Lacan a introduzir o termo “conhecimento paranoico” (LACAN, 1946/1998, p.181; 1948/1998, p.114; 1949/1998, p.99), para designar essa forma de desconhecimento que está no fundamento da estrutura do eu.
Para Lacan, o eu tem uma estrutura paranoica. O estádio do espelho de Lacan é a “paranoia original do homem”, assinala J.-A.Miller (1991, p.13). É para ilustrar essa “paranoia original” ligada à constituição mesma do eu que, nesse mesmo texto, Lacan (1946/1998) vai buscar, em seguida, um exemplo, o de Alceste, no Misantropo, de Molière. É impressionante ver a esse respeito como Lacan coloca em série as reações transitivistas da criança pequena com Alceste, que ilustra, para ele, a figura do paranoico. Diz Lacan: “Alceste é louco […] justamente pelo fato de que, em sua bela alma, ele não reconhece que ele mesmo concorre para a desordem contra a qual se insurge” (LACAN, 1946/1998, p.174). Ele “não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de seu ser atual” (LACAN, 1946/1998, p.172). Em outros termos, ele atribui ao outro uma desordem interior que é a sua, diz Lacan, e a única maneira para sair disso será desferir seu golpe contra o que lhe aparece como a desordem. Mas, ao fazê-lo, é a si mesmo que ele atinge. Lacan o formula:
Assim, seu ser está encerrado num círculo, a menos que ele o rompa por alguma violência, na qual, desferindo seu golpe contra o que lhe parece ser a desordem, atinge a si mesmo através do contragolpe social.Tal é a forma geral da loucura… (LACAN, 1946/1998, p.173).
Alceste somente encontra, com efeito, sua saída em um verdadeiro suicídio social: verdadeira “agressão suicida do narcisismo”, diz Lacan (1946/1998, p.176), para sublinhar isto: que, ao tentar atingir o outro, é finalmente a si mesmo que ele atinge/bate.
Quanto a esta fórmula: ao atingir o outro, “é a ti mesmo que atinges” (LACAN, 1950/1998, p.149), que resume o conceito de “agressão suicida do narcisismo”,[10] que Lacan introduz a propósito do Misantropo, se pode dizer — como sublinha S. Cottet (2009, p.9) — que domina todos os primeiros escritos de Lacan sobre o imaginário e a criminalidade.
Vamos encontrá-la novamente na observação clínica que ele dá em seguida. Trata-se de um estudo publicado por Guiraud (1928), em um volume intitulado Os assassinatos imotivados. Guiraud descreve as etapas que precederam a sobrevinda da passagem ao ato homicida de um paciente. Depois de todo um período caracterizado por um “sentimento penoso de estranheza interior”, nota Guiraud, o paciente, desgostoso da vida e dos homens, se volta para Deus, depois para o comunismo, projetando sobre a sociedade seu pessimismo interior, até que, em uma passagem ao ato violenta, ele tenta, matando o tirano, matar a doença que o invadia.[11] Assim, sublinha Lacan, seguindo Guiraud, “não é outra coisa senão o kakon [o mal] de seu próprio ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (LACAN, 1946/1998, p.176).
c) A “libido negativa” e a pulsão de morte
O que demonstra o conceito de agressão suicida do narcisismo, através dos exemplos que Lacan dá, é o laço estreito que ele estabelece entre a agressividade e a pulsão de morte. Pode-se mesmo dizer que, nessa época de seu ensino, a pulsão de morte se encontra reduzida à agressividade. E se Lacan pode reduzir uma à outra é porque ele considera, sublinha J.-A. Miller (2004), que elas provêm de uma mesma libido narcísica que inclui, ao mesmo tempo, os valores de vida e de morte. Por que atribuir à libido narcísica esse duplo valor de vida e morte? Isso se deve à origem mesma dessa libido. Para Lacan, o que está na origem é o fato de que o pequeno homem, no seu nascimento, em razão de sua prematuridade, está confrontado a uma insuficiência vital. Essa insuficiência nativa constitui o motor da libido narcísica (LACAN, 1948/1998). Ela é a fonte de energia do eu.
É então porque existe esse dilaceramento original, essa “deiscência vital”, que a criança é levada a se identificar à imagem no espelho, para tentar mascarar, recobrir, essa hiância original. Essa hiância é então o que a conduz a buscar em torno de si, de início, uma imagem, em um parceiro que vai completá-la. Nisso, essa deiscência vital é “constitutiva do homem” (LACAN, 1948/1998, p.118). A libido narcísica, que tem sua fonte numa falta, traz em si sua marca, ela é positiva, uma vez que ela lança o desenvolvimento para frente. Lacan vê nela uma libido situada do lado da vida, uma libido vital. Mas, ao mesmo tempo, ela é negativa, porque a agressividade que a acompanha encontra sua fonte na “aflição orgânica original” da qual ela provém. Lacan introduz essa curiosa expressão “libido negativa”, para designar essa outra face da libido (LACAN, 1948/1998, p.118). Aí, é uma libido que está do lado da morte. Ela opera na agressão suicida do narcisismo. Ela é a expressão do que ele chamará mais tarde de a “lâmina mortal” do narcisismo (LACAN, 1958/1998, p.577).
Assinalemos aqui, como sublinha J.-A. Miller (2004), que essa teorização de Lacan torna finalmente caduca a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Assiste-se à sua reunificação a partir do narcisismo, ao qual ele atribui agora os valores de vida e de morte.
O Significante E A Morte
Em 1953, em seu “Discurso de Roma”, “Função e campo da palavra e da linguagem”, Lacan opera um profundo remanejamento de sua concepção. Apoiando-se sobre o estruturalismo, que deve a Lévi-Strauss, ele é levado a fazer do significante e da categoria do simbólico a nova polaridade de seu ensino. Uma das primeiras incidências dessa contribuição vai consistir em desfazer a junção que ele havia feito antes entre agressividade e pulsão de morte, para ligar a pulsão de morte ao simbólico (MILLER, 2004) — a agressividade ficando intimamente ligada ao registro imaginário da relação narcísica.
Por que reatar desde então a dimensão da morte ao simbólico? É que Lacan tomou a medida de que a tendência à morte não está ligada somente a uma falha vital, ela está também ligada à lógica do significante. É porque existe a linguagem que, diferentemente do animal, a dimensão da morte está presente em nossa vida. É pela operação do significante que a morte entra na vida.[12] Certamente, a morte não é representável, mas como sublinha Freud (1915b/1974, p.332), nós podemos antecipá-la. E é mesmo essa possibilidade que nós temos de antecipá-la, que levou à concepção da divisão do corpo e da alma (MILLER, 2004).
Qual é então a natureza do laço que existe entre a morte e o significante? Lacan expõe suas razões em 1953, em seu “Discurso de Roma”. A primeira consiste em dizer que o que caracteriza “o símbolo [é que ele] se manifesta inicialmente como assassinato da coisa” (LACAN, 1953/1998, p.320). O significante, o símbolo, anula a coisa. Ele está no lugar da coisa. No memento mesmo em que a designa, ele a apaga naquilo que faria sua autenticidade. A segunda razão, invocada por Lacan para dar conta do laço com a morte, consiste em dizer que o significante nos localiza além da morte. O significante assegura uma sobrevida além da vida biológica. Se o homem aspira a se destruir, é porque, na morte, ele consegue se eternizar (LACAN, 1953/1998). É a partir do momento em que o sujeito está morto, que ele se torna um signo eterno para os outros (LACAN, 1957-1958/1999). A esse respeito, o que caracteriza o humano é o direito à sepultura. É a possibilidade de persistir como significante além da morte biológica.
Enfim, a terceira razão é que a morte está no fundamento da constituição da subjetividade. “A intermediação da morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história” (LACAN, 1953/1998, p.320). É porque se sabe destinado à morte, que o sujeito humano se distingue do animal e que sua existência pode tomar sentido (FREUD, 1915b/1974, p.339). Isso é testemunhado pelo horror no qual se pode mergulhar o sujeito quando preso à certeza delirante de que é imortal.
Essa nova perspectiva desenvolvida por Lacan, salientando a dimensão significante da morte e fazendo dela uma característica do simbólico, apresenta, no entanto, uma contrapartida. Ele não leva em conta a dimensão de “satisfação paradoxal”, além do princípio de prazer, que está no coração da pulsão de morte freudiana. O que está excluído nessa concepção da pulsão de morte pelo simbólico é o gozo, sublinha J.-A. Miller (2004). Desde então, onde Lacan irá situar essa satisfação paradoxal?
O Gozo: Um Dos Nomes Da Pulsão De Morte Freudiana
a) “A pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte”
É em 1964, no Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” e no escrito “Posição do inconsciente”, que Lacan dará uma resposta a essa questão. Nos dois textos, ele introduz uma tese que, transformando radicalmente a teoria freudiana das pulsões, vai permitir-lhe levar em conta a dimensão real da pulsão de morte freudiana.
Até então, sublinha J.-A. Miller (2005), Lacan tinha tentado pensar a questão da libido freudiana a partir do imaginário, mas era ao preço de fazer da pulsão de morte um fenômeno imaginário assim como a agressividade. Em seguida, quando tinha recorrido ao registro do simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que tinha sido realçada. Agora, como o Seminário 11, ele opera um novo giro. Recorrendo ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é a dimensão de gozo que comporta a pulsão de morte freudiana — a que Freud se refere como uma “satisfação paradoxal” — que vai ser enfatizada.
Em que essa nova perspectiva transforma radicalmente a teoria freudiana das pulsões? É que ela torna caduca (mais uma vez[13]) a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte. Desde então, como sublinha J.-A. Miller (2004), as pulsões de vida e as pulsões de morte aparecem como dois aspectos de uma só e mesma pulsão.
Lacan o formula explicitamente: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte” (LACAN, 1946/1998, p.188). E acrescenta: “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (LACAN, 1946/1998, p.195).[14] A pulsão sexual que era situada, até então, do lado da vida, inclui também a dimensão da morte.
Como dar conta do fato de que a morte está também presente nas pulsões sexuais? Lacan faz valer o conceito de repetição e o de pulsão tal como os reformula no Seminário 11. A repetição não está somente no coração da pulsão de morte, ela está também no coração de todo funcionamento pulsional. No princípio da pulsão, existe, com efeito, uma tentativa repetida para reencontrar o objeto que deu satisfação uma primeira vez. Mas esse objeto, que Lacan chama de objeto a, permanece inatingível (LACAN, 1946/1998, p.169). A pulsão o contorna sem jamais atingi-lo, daí a repetição.
Tomemos o exemplo[15] da pulsão oral. Aqui, o objeto a na pulsão oral é o que resta da demanda uma vez que se demandou tudo. Existem os alimentos que se podem obter e, uma vez que tenham sido experimentados, fica um resto que não se satisfaz jamais. Daí o fato de que isso não se aquiete nunca, isso impulsiona, insiste, se repete. O mesmo acontece com a analidade, dá-se de início tudo o que se tem e depois se continua, e resta sempre uma presença dessa exigência de dar, mesmo quando não se tem mais nada para dar. O resto é o objeto a.
E, no fundo, essa exigência repetitiva de satisfação que está no coração do funcionamento pulsional testemunha, segundo Freud e Lacan, uma ultrapassagem do princípio de prazer. Essa repetição — da qual vemos que não é um fenômeno vital articulado ao biológico, mas antes um fenômeno linguageiro articulado ao inconsciente — longe de visar à satisfação de uma necessidade como outras, “aparece ao contrário como uma exigência desarmônica” (MILLER, 2004, p.21),[16] inadaptada em relação às exigências da vida, em relação ao bem-estar do corpo. Ela é “um fator de desadaptação”; ela é contrária à vida. E é então nesse sentido que Lacan pode dizer que “a pulsão, a pulsão parcial, é, por natureza, pulsão de morte.”
É o que Freud demonstra, assinala J.-A. Miller (2004), quando sublinha como um órgão pode deixar de obedecer ao saber do corpo. Por exemplo? “O olho pode e deveria servir ao corpo para se orientar no mundo, para ver”, mas eis que ele se coloca “a servir ao que Freud chama a Schaulust, o prazer de ver”. Vê-se como se introduz aqui “um prazer que ultrapassa a finalidade vital e mesmo que conduz a anulá-la”. O olho que deveria estar a serviço da vida individual, torna-se o suporte de um “gozar”, que pode se impor como uma exigência repetitiva, inadaptada às necessidades da vida (MILLER, 2004, p.46). Em suma, essa repetição a que Freud se referiu como sendo a marca da pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões. Ela não é o apanágio de uma pulsão específica que seria a pulsão de morte. Ela concerne a todas as pulsões parciais. Toda pulsão é uma ultrapassagem repetitiva do princípio do prazer para tentar atingir — em vão — um gozo perdido para sempre, ao preço, por vezes, de deixar sua vida, como se manifesta, por exemplo, na toxicomania.
Desse ponto de vista, pode-se dizer que o abandono, por Lacan, da dicotomia freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte em proveito do conceito de “gozo”, nome lacaniano da pulsão de morte freudiana, é o que lhe permitiu conceber a parte mórbida de toda pulsão.
Vê-se, por aí, igualmente, que Lacan não abandonou nunca a pulsão de morte freudiana. Ao contrário, fez dela a pedra de sustentação do circuito pulsional. E quando fez do gozo o problema maior com o qual cada um, seja neurótico ou psicótico, tem que se confrontar, pode-se dizer que inscreve a questão da pulsão de morte no coração mesmo de sua teoria e de sua concepção do tratamento. Porque, a partir de então, a pulsão de morte deverá ser tomada na relação particular, sempre singular, que o sujeito mantém com o gozo, com o objeto a que causa seu desejo.
b) Da imagem i(a) ao objeto a: os crimes de gozo
Dizer que toda “pulsão parcial é por natureza pulsão de morte” não quer dizer, certamente, que toda pulsão vai até a morte. Lacan o precisa bem em “Posição do inconsciente”. “Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte” (LACAN, 1964/1998, p.863), dito de outro modo, em toda pulsão existe essa possibilidade de uma transformação do prazer em gozo, a partir do que Lacan chama uma ultrapassagem do princípio do prazer.
Prazer ———-> Gozo/Objeto a
O que caracteriza o prazer é seu caráter razoável, apaziguador, sem tensão. O que faz com que ele possa encontrar seus próprios limites e parar diante da barreira do mal, da dor, do feio. O princípio do prazer é “um princípio de sobrevivência”, assinala J.-A. Miller (2005).
O gozo, ao contrário, se opõe ao princípio do prazer. Ele detém uma potência em si que atravessa essa barreira, ele se apresenta como “uma exigência absoluta” que a torna irresistível. Ele vai no sentido da morte, da destruição. Ele implica em si mesmo “a aceitação da morte”, diz Lacan (1959-1960/1991, p.231).
Habitualmente, o sujeito para antes que a pulsão chegue até a morte. Ele recua, horrorizado, quando o objeto real da pulsão — objeto de gozo, começa a aparecer-lhe em sua crueza. Habitualmente, nós não temos nunca, com efeito, acesso ao objeto real da pulsão. Esse objeto — o objeto a — é inatingível. A pulsão o contorna sem atingi-lo jamais. Esse objeto permanece mascarado, recoberto pelo brilho fálico que lhe dão a fantasia e o desejo.xvii
Um poema de Baudelaire, que J.-C. Maleval (2008, p.150) cita, nos permite apreender o que pode ser esse objeto real da pulsão, quando não é mais recoberto pela imagem aureolada por seu brilho fálico, por i(a).
Quando ela me sorveu dos ossos a medula,E tão languidamente a buscou minha gula,Viu o beijo de amor que nela final pus,Flanco viscoso de odre a transbordar de pus!(BAUDELAIRE, 2001, p.138).[18]
Aqui, o objeto real da pulsão se desvela como uma coisa imunda. Bruscamente, a fantasia, que aureolava o objeto amado, falta. Em um outro poema de Flores do mal, intitulado “Uma carniça”, Baudelaire (2001, p.41) nos dá uma descrição comparável desse momento de báscula.
Barreira, Interdito, Castração
“Não-relação sexual”
Prazer ———> / / —–> Gozo
Sujeito dividido —–> / / —–> Objeto a (objeto real da pulsão)
Inacessível
Imagem falicizada i(a)
Fantasia – Desejo
Na neurose, normalmente, a barreira da fantasia e do desejo funciona para manter o sujeito à distância do objeto real da pulsão. E quando acontece a falha da fantasia — quando uma “desfalicização” do objeto se produz — o sujeito se desvia do objeto. O nojo se instala. Mesmo na perversão, a barreira da fantasia, em sua articulação com a castração, funciona.
A relação ao objeto real da pulsão — a relação ao gozo — não inclui a dimensão da castração. Não está coordenado ao falo articulado ao vazio central da castração, de modo que nenhuma impotência[19] coordena o sujeito ao objeto do qual goza.
Desde então, na relação do sujeito ao objeto, a dimensão do gozo pode se apresentar de maneira a mais crua, em um “sem limite”. Pode então acontecer, como sublinha J.-C. Maleval (2008), que se assista a uma apreensão direta do objeto pulsional. O sujeito busca, então, tirar diretamente os objetos parciais do corpo do parceiro (MALEVAL, 2008).[20] Categoria de crimes que podemos qualificar de “crimes de gozo” ou de “crimes puramente pulsionais”, como o formula Lacan (1932/1987 p.306), nos quais a pulsão de morte se abre/desdobra em todo seu horror.
Em suma, ao fim desse percurso, a pulsão de morte freudiana aparece cindida em duas, entre significante e gozo. Quando Lacan recorre ao simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte.
Ao contrário, a agressividade não aparece mais como um conceito central para dar conta da pulsão de morte; ela aparece como uma consequência lógica da gênese do eu.
Enfim, a oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte tende a desaparecer em proveito de uma concepção monista da pulsão que permita a Lacan sair das dificuldades ligadas ao dualismo freudiano.
III – Do Mal-Estar Na Civilização Ao Tratamento Do Gozo
Para concluir, evocaremos brevemente a questão do tratamento da agressividade e da pulsão de morte. É um problema que atravessa todo o ensino de Freud e Lacan.
Desde 1950, Lacan tinha sublinhado como a promoção do eu e o retorno sobre o narcisismo, que se observam no nosso mundo moderno, levavam à violência (LACAN, 1950/1998).[21] É, com efeito, que o prestígio dado ao narcisismo, colocando os seres em um isolamento de alma, fecha os sujeitos sempre mais em um modo de ligação social que passa pela identificação imaginária ao semelhante. A consequência desse modo de identificação alienante é a agressividade.
Observemos que, em 1929, em “Mal-estar na civilização”, Freud já assinalava o perigo que representava o modo de “laço social [quando] é criado principalmente pela identificação de membros de uma sociedade uns aos outros”. Ele via nos Estados Unidos o modelo desse tipo de laço social do qual o efeito só poderia ser “a pobreza psicológica dos grupos” (FREUD, [1929]1930/1974, p.138).
Existe então uma face contingente na agressividade. A sua expressão irá variar segundo a maneira pela qual as estruturas simbólicas do grupo serão capazes de pacificá-la, integrá-la, mascará-la, recobri-la. Daí as variações que se observam segundo as épocas e as culturas.[22]
A Função Pacificadora Do Ideal Do Eu
Para Freud, a função da civilização é, com efeito, permitir que a dimensão do amor domine a do ódio. Freud desenvolve esse ponto de vista em “Mal-estar na civilização”. Ele se interessa pelas barreiras, pelas interdições que a sociedade ergue para lutar contra essa “inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros” (FREUD, [1929]1930/1974, p.134).
Lacan retoma, por sua vez, essa mesma questão. A tese que ele desenvolve em seu artigo de 1948 consiste em dizer que o que permite ao sujeito transcender “a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva” é a identificação edipiana (LACAN, 1948/1998, p.117). Ele considera que no Édipo se realiza uma identificação que não é mais a identificação ao semelhante com sua consequência agressiva, mas uma identificação ao grande Outro em posição de ideal do eu para o sujeito. Lacan reconhece nessa identificação dita “simbólica” uma função pacificadora e normatizante[23] à qual atribui eficácia ao pai, cuja função é unir o desejo à lei. Essa identificação simbólica ao Outro em posição de ideal do eu é o que permite estruturar o imaginário.
A Face Mortífera Da Cultura
A função do ideal do eu tem, no entanto, seus limites para tratar o problema da agressividade e da pulsão de morte. Não somente porque existe em nosso mundo contemporâneo um declínio dos ideais e uma fragilização das referências simbólicas, mas também porque a função do ideal tem uma parte ligada com o gozo do supereu.
Existem, com efeito, duas faces na cultura. Uma que tem uma função pacificadora — aquela que Freud acentuou com o pai do Édipo que une o desejo à lei. Aí, é a função pacificadora do ideal do eu. E outra que é aquela da pulsão de morte, que Freud descobre com o supereu. Um supereu que certamente toma a seu cargo os interditos enunciados pela cultura, mas que, mais secretamente, impulsiona a gozar. O interdito ele mesmo alimenta o gozo. De sorte que o que se chama de cultura pode também ter uma face deletéria. A cultura da avaliação é um exemplo disso.
Bem-Dizer Nossa Relação Ao Gozo
Desde então, como tratar o gozo? O que é que pode vir a limitar o gozo, se parece, com efeito, que existe uma queda dos ideais e que o ideal, a moral retomada a seu cargo pelo supereu, corre o risco, sempre, de se degradar em gozo.
A resposta de Lacan a uma questão atravessa todo o seu ensino.[24] Isolarei, no entanto, um ponto que me parece crucial, aquele que consiste em dizer que o tratamento da pulsão de morte, o tratamento do gozo, passa pela ética. A ética da psicanálise para Lacan é “uma ética do bem-dizer”. Ele a formula assim em 1974: “isto é, do dever de bem-dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura” (LACAN, 1974/2001, p.524).
“Bem-dizer ou se referenciar ao inconsciente” quer dizer “aprender a ler nosso inconsciente”, quer dizer aprender a “bem-dizer nossa relação ao gozo inconsciente” ou à pulsão de morte. Como? Tentando chegar o mais próximo de nossa relação ao objeto, esse objeto a causa do desejo e que reencontramos no coração da fantasia.
Não é então um “tratamento de massa” da pulsão de morte o que a psicanálise propõe, como aquele que prescreve a religião sob a forma do preceito: “amarás ao próximo como a ti mesmo” e que Freud ([1929]1930/1974, p.168) e também Lacan (1959-1960/1991) julgam inoperante e “chocante”.[25] Não, o que a psicanálise propõe é um tratamento “um-a-um”.
Consiste em levar em conta o fato de que esse gozo mau está em cada um, “ele faz parte de seu próprio ser”, diz Freud (1925/1976, p.165),[26] ou como formula Lacan (1946/1998, p.195), que “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”.
“Nosso ser inclui […] a parte de que somos orgulhosos, […] que constitui a honra da humanidade”, assinala J.-A. Miller, “mas também a parte horrível” (MILLER, 2009, p.2-3). Essa parte horrível não é somente aquela que Freud descreveu quando nos diz que “o homem é um lobo para o homem”, é também aquela que se abre no gozo obscuro do sacrifício.[27] Importa aproximar-se disso em um tratamento para tentar saber alguma coisa sobre isso.
(1) “De l’agressivité à la pulsion de mort”, publicado em Mental, Paris, n.24, p.143-163, abr. 2010.
(2) Lacan (1948/1998, p.106,112) introduziu no texto “A agressividade em psicanálise” essa distinção entre “intenção agressiva” e “tendência agressiva”.
(3) A obra de Darwin, A origem das espécies, data de 1859, e A filiação do homem, de 1871.
(4) O prestígio da ideia da luta pela vida é atestado pelo sucesso da teoria darwiniana ou, pelo menos, pelo sucesso das derivações que essa teoria conheceu, desde o fim do século XIX, com o que chamamos o “darwinismo social” — termo inventado, em 1880, para designar a doutrina sociológica de Herbert Spencer, segundo a qual a eliminação dos menos aptos é a consequência necessária, nas comunidades humanas, da grande lei da seleção natural. Sabe-se que Darwin se opôs a essas concepções. Ver sobre esse ponto: TORT, P. “Le darwinisme, entre innovation et dérives”, Dossier pour la Science, n.63, p.21, avr./juin 2009.
(5) Freud considera que os “verdadeiros protótipos da relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta do eu para sua conservação e sua afirmação” (FREUD, 1915a/1974).
(6) Plaute, Asinaria (La comédie des ânes), II, 4, 88.
(7) “A ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais”, sublinha Lacan. “Mas essa própria crueldade implica a humanidade.” Ela é específica do homem. É porque, mais que nos referir a esse adágio de Plauto, Lacan nos convida a ler a fábula forjada por Balthazar Gracian, em seu Criticon. Este último sublinha a que ponto, “ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira [a ferocidade do homem], os próprios carniceiros recuam horrorizados” (“Le précipice de la vie”, Le Criticon, Tomo 1, Éditions Allia).
(8) “Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto de preservar a substância viva […]” (FREUD, 1930/1974, p.141).
(9) É o que traz Miller em Biologia lacaniana, ao falar de “pulsão do supereu”. “Mesmo se a fórmula não aparece assim em Freud, a pulsão de morte, tal qual emerge de seu texto, é a pulsão do supereu” (MILLER, 2004).
(10) O conceito de “agressão suicida do narcisismo” vem substituir a ideia de uma causalidade do crime em termos de autopunição que Lacan tenha desenvolvido alguns anos antes no caso Aimée. Lacan sublinha, na p.176: “Quanto à mola do desfecho, ele é dado pelo mecanismo que, bem mais do que à autopunição, eu referiria à agressão suicida do narcisismo” (LACAN, 1950/1998, p.176).
(11) Ver p.88: “Condensou a noção de sua doença com a do mal social, ou melhor, simbolizou a primeira pela segunda. […] Por um ato de violência, Paul tentou suprimir o kakon para usar a expressão de V. Monakow e de Morgue. Matar o tirano consistia para ele em matar a doença” (GUIRAUD, 1928/1994, p.88).
(12) “Isso porque o significante como tal, barrando por intenção primeira o sujeito, nele faz penetrar o sentido da morte. (A letra mata, mas só ficamos sabendo disso pela própria letra)” (LACAN, 1964/1998, p.862-863).
(13) Porque é já o que Lacan tinha tentado fazer com a libido narcísica, à qual ele atribuía um duplo valor de vida e morte.
(14) Lacan se refere aqui à relação essencial que une o sexo à morte. Somente essa questão essencial mereceria todo um desenvolvimento. Notemos unicamente que, desde que Lacan acentua a relação que une esses dois termos, no Seminário 11 (p.188, 194, 195) e em “Posição do inconsciente” (p.861-863), é em referência à biologia que ele se situa. Para os biologistas, a relação entre o sexo e a morte se explica pelo fato de que é a partir da reprodução sexuada que a morte aparece. Freud (1920/1976, p.65) retoma por sua conta essa teoria de Weismann em Além do princípio de prazer. Lacan também se refere a isso e, na sequência do Seminário 11, mostra como essa articulação do sexo e da morte está no coração das operações de alienação e separação que presidem o advento do sujeito.
(15) A formulação seguinte é de Éric Laurent em seu curso intitulado “A transferência”, Universidade Paris VIII, Departamento de Psicanálise, Seção clínica, 22/04/1992, inédito.
(16) Lacan (1969-1970/1992, p.43) o formula explicitamente. A repetição “é propriamente aquilo que se dirige contra a vida”. J.-A. Miller (2005, p.172) desenvolve igualmente essa questão: “Assim, a repetição, não é somente falhar o real, como Lacan articulou no Seminário 11, mas também ‘busca de gozo’. A repetição não é a expressão do princípio do prazer, mas, por si mesma, ‘vai contra a vida’. Esse é o deslocamento que, da repetição como expressão do princípio do prazer, faz da repetição a própria articulação da pulsão de morte.”
(17) Lacan (1972-1973/1985) sublinha que, na relação sexual, nós não temos jamais um acesso direto ao corpo do outro. O sujeito neurótico ou perverso somente copula com o falo que lhe barra o gozo do corpo do Outro. Não existe relação sexual, somente o amor permite nutrir a esperança de reencontrar o Outro.
(18) Esse poema, “As metamorfoses do vampiro”, faz parte dos Épaves, peças condenadas que foram censuradas durante o processo de As flores do mal, em 1857.
(19) A impotência, como sintoma neurótico, testemunha, com efeito, a implicação do complexo de castração.
(20) Maleval dá o exemplo de um paciente necrófilo que tinha suscitado numerosos estudos psiquiátricos no século XIX. O sujeito tinha desenterrado os cadáveres nos cemitérios e, presa de uma fúria destrutiva incontrolável, ocupava-se de picá-los, cortá-los em pedaços. “Seu extremo gozo era obtido, não pelo coito com o cadáver, mas pela sua partição…”, em uma tentativa para atingir, mais além da imagem corporal, nas vísceras da vítima, o objeto de gozo suposto encontrar-se ali (MALEVAL, 2008, p.159).
(21) “[…] numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” (LACAN, 1950/1998, p.146).
(22) Essa dimensão contingente da agressividade já havia sido sublinhada por Lacan, desde 1948, em um texto que levava ainda uma forte marca sociológica. Lacan (1948/1998, p.122-123) sublinhava a “preeminência da agressividade em nossa civilização”, em que é considerada como “de um uso social indispensável”, como um ingrediente necessário a todo espírito empreendedor.
(23) “Mas o que nos interessa aqui é a função, que chamaremos apaziguadora, do ideal do eu, a conexão de sua normatividade libidinal com uma normatividade cultural, ligada desde o alvorecer da história à imago do pai” (LACAN, 1948/1998, p.119).
(24) Lacan o aborda notadamente em 1960, em “Subversão do sujeito e dialética do inconsciente” (1960/1998, p.836).
(25) Ver também o comentário de Miller, “L’apologue de Saint Martin et de son manteau’”, Mental, Paris, n.7, p.7.
(26) “[…] a maioria dos sonhos — sonhos inocentes, sonhos sem afeto e sonhos de ansiedade — são revelados, quando as deformações da censura foram desfeitas como a satisfação de impulsos imorais — egoístas, sádicos, pervertidos ou perversos” (p.164).
(27) Do qual o ponto extremo nos é dado pelos atentados suicidas. Lacan (1959-1960/1991, p.324) o sublinha: “Só os mártires são sem piedade e sem temor. Creiam-me, no dia do triunfo dos mártires, haverá o incêndio universal.”
Tradução: Márcia Mezêncio
Referências
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Éric Guillot
Éric Guillot – Psicanalista em Rouen, França. E-mail: erguillot@numericable.fr