A Homossexualidade Feminina No Plural

M.-H. BROUSSE

 

A homossexualidade feminina é uma solução para a dificuldade sexual dos seres de linguagem – que são os seres humanos – tão antiga quanto a homossexualidade masculina, mais discreta talvez, menos exposta ao público, mas também constante através das épocas históricas e das diferentes culturas. Talvez ela não ameace do mesmo modo as exigências da família e da ordem patriarcal. Além disso, como mostraram alguns estudos da história das mentalidades, as mulheres, em sua maioria, não foram, no curso dos séculos passados, interlocutoras tão ouvidas quanto os homens, tanto no que se refere a suas opiniões políticas quanto no que diz respeito a suas posições sobre o íntimo. Enfim, a homossexualidade feminina era também o objeto de uma fantasia masculina e, por isso, podia reforçar o desejo masculino: sonho de corpos femininos enlaçados que não demandariam nada aos homens, e por essa razão, os liberaria de um dever que viria pesar sobre o desejo.

A época atual, sem ter se livrado da pregnância de tudo isso, é outra. A psicanálise foi partícipe dessa mudança de várias maneiras. Em primeiro lugar, colocando seriamente em questão uma suposta naturalidade biológica da sexualidade nos seres humanos machos ou fêmeas. Foi preciso se render à evidência do que diziam os sujeitos nesse dispositivo singular que é o dispositivo analítico. E desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud estabelece que a criança é um perverso polimorfo, o que modifica radicalmente para sempre a definição da perversão, operada a partir de critérios tanto sociais quanto biológicos. Por outro lado, a constatação de que as relações homens/mulheres são feitas de rejeições recíprocas leva Freud a considerar que é muito mais fácil dar conta da homossexualidade do que da heterossexualidade. Enfim, a psicanálise constituiu em discurso os dados que, antes, permaneciam restritos à esfera do não-dito ou dos segredos íntimos.

Partiremos de um debate clínico importante na progressão do saber analítico, debate que repousa sobre a comparação entre dois casos freudianos, cada um formalizado em um paradigma segundo o método de pesquisa analítica.

Trata-se, por um lado, do caso Dora, paradigma freudiano e pós-freudiano da estrutura neurótica histérica e, de outro, do caso conhecido como o da jovem homossexual. De fato, trata-se de duas jovens mulheres mergulhadas no mesmo discurso social, no mesmo período histórico. Uma, Dora, ao longo de sua análise com Freud, desvela seu amor e sua fascinação por uma mulher mais velha, amiga da família e amante de seu pai. A outra, que não entra na lógica de um tratamento analítico e teve simplesmente algumas entrevistas com Freud, desorganizou, em nome de um amor por uma mulher mais velha e “mulher da vida”, as conveniências do seu meio e efetuou o que chamaríamos, hoje, de uma passagem ao ato suicida. A questão do suicídio, mesmo não havendo tentativa de suicídio no caso de Dora, está posta, no entanto, já que, em uma nota, Freud evoca a título de comentário a história inventada de um suicídio do pai: “Este é o ponto de ligação com a simulação de suicídio da própria Dora, que assim talvez expresse o anseio por um amor similar” (FREUD, 1905/1989, p. 38).

O caso de Dora, publicado primeiramente em 1905, comporta uma nota de Freud acrescentada em 1923. Nessa nota, ele completa seu texto de 1905, cujas numerosas passagens mencionavam que ele havia reconhecido, desde então, o forte laço amoroso de Dora pela Senhora Ki, através de uma correção radical:

“Quanto mais me vou afastando no tempo do término dessa análise, mais provável me parece que meu erro técnico tenha consistido na seguinte omissão: deixei de descobrir a tempo e de comunicar à doente que a moção amorosa homossexual (ginecofílica) pela Sra K. era a mais forte das correntes inconscientes de sua vida anímica. […] Antes de reconhecer a importância da corrente homossexual nos psiconeuróticos, fiquei muitas vezes atrapalhado ou completamente desnorteado no tratamento de certos casos.” (FREUD, 1905/1989, p. 113-114)

Logo, a homossexualidade sob a forma de “tendência” é claramente indicada por Freud como um elemento-chave do caso e da histeria em geral. A tendência inconsciente, à revelia do sujeito e não culminando num ato sexual, que caracteriza Dora, aparece em oposição à afirmação decidida, consciente e atuada que caracteriza a posição do sujeito que é “a jovem homossexual”. É sobre essa diferença e não sobre a presença ou a ausência da orientação homossexual que Freud coloca, em um dos casos, um diagnóstico de neurose e, no outro, um diagnóstico de perversão. A consequência disso é que ele decide não engajar a jovem homossexual na via de um trabalho analítico, quando, ao contrário, dispensado por Dora da maneira mais brutal, ele se encontra “completamente desnorteado” em pleno tratamento.

Ora, qual é a modelização efetuada da posição de Dora, que, mesmo dando lugar, como já vimos, à sua homossexualidade, não faz disso, no entanto, um elemento-chave da tática freudiana da transferência? O interesse homossexual de Dora pela Senhora K. decorre de sua própria questão sobre o que é a mulher, saber sobre o feminino que ela considera não ter e que ela atribui a essa Outra mulher, por ser ela o objeto do desejo tanto do Senhor K. quanto do seu próprio pai. Freud interpreta assim a cena em que, cortejada pelo Senhor K. – numa ótica de troca, que ela entende perfeitamente e que aliás Freud valida confirmando que concorda com ela –, ele lhe anuncia que “sua esposa não é nada para ele”, ela lhe dá uma bofetada estridente e acaba aí a sua complacência por ele. “Se você não a deseja, você não me interessa mais” (FREUD, 1905/1989, p.103). A ligação com os homens, com o Senhor K. ou com seu pai resulta, portanto, de uma identificação ao amor e ao desejo deles por uma mulher, que permite concluir que esta, contrariamente a ela mesma, é uma verdadeira mulher e detém a chave de um saber que ela não tem. Lacan qualifica essa posição dos homens na estrutura histérica: são os “testas de ferro” do sujeito histérico, testas de ferro de seu desejo pelo feminino. Ela deve passar por eles, pelo amor e pelo desejo deles por outra para ter acesso a uma feminilidade idealizada. O benefício é duplo: evitar ser ela mesma submetida às regras que organizam a posição feminina no discurso do Mestre e elevar o feminino à dignidade de um ideal possível de ser universalizado. Em suma, evitar ser, por ela mesma e para ela mesma, “a mulher de sua vida” e, portanto, inventar uma solução feminina que não valeria senão para ela mesma.

A jovem homossexual não está de forma alguma nessa posição. Diante de seu pai, ela pretende, antes de tudo, afirmar o que são verdadeiramente um amor e um desejo por uma mulher. Ela está, portanto, em posição de challenger, de desafio: somente uma mulher pode amar e desejar outra mulher como convém. Sua identificação não é com o masculino. Certamente, a Dama é escolhida não somente pelo seu saber sexual, mas igualmente por sua rejeição às convenções dominantes, por sua ousadia frente ao poder masculino e patriarcal. É sua posição de rejeição e desafio ao Pai que a caracteriza. Sua cruzada é A mulher que seu amor vem completar.

As pesquisas e as publicações recentes sobre a lógica da vida e as escolhas posteriores da jovem homossexual não validam necessariamente o diagnóstico de perversão colocado por Freud e nos convidam, de preferência, à prudência. Mas a neurose, com a divisão subjetiva que a caracteriza, permanece claramente, contudo, a ser descartada, como ele o fez.

Lacan retomou várias vezes o caso Dora. Ele o formalizou. Sobre a questão da homossexualidade feminina, ele mostra claramente como o preconceito freudiano interrompeu a dinâmica da análise (LACAN, 1951/1998). Na sequência do seu ensino, ele esclarece esse preconceito como um ponto limite do próprio Freud sobre o pai, que ele qualifica no Seminário, livro XVII de “sonho de Freud”. Estamos, então, em 1969-1970, e o desvanecimento do esplendor e do poder da função paterna, que organizou durante muito tempo todos os níveis dos laços sociais, concluiu-se. Mesmo o prestígio do Nome, da nominação, se fragmentou em múltiplos nomes. Uma mutação profunda operada pela Ciência e seus saberes sobre a tradição que organizava até então o discurso do Mestre, aconteceu. Ela substituiu o nome pelo número, o governo pela gestão e pela administração. A psicanálise constatou os efeitos dessa mutação nos modos de satisfação e, correlativamente, nos sintomas dos sujeitos. O ensino de Lacan leva, portanto, a partir dos anos 1960-1970, a clínica e a teoria da psicanálise na direção de um para-além do Pai.

Jacques-Alain Miller mostra os novos fundamentos dessa orientação lacaniana. Por um lado, o Um não é mais aquele da exceção paterna a partir da qual se podia deduzir um universal que definia a posição de todos. Os uns são cada um e cada uma, sozinhos. O sistema simbólico tem que se submeter a isso, e o estilo de vida de cada um é, para cada um, sua própria norma. O universal reconhecido é atribuído ao único saber científico que se erige em norma no discurso do Mestre, em normas estatísticas, e não mais norma resultando da exceção. Por outro lado, o modo de gozo encontra seu fundamento não mais no laço pai-mãe, mas na descoberta de que não existe relação sexual que possa se escrever entre seres que não têm senão a linguagem e a palavra para se ligar, ao contrário da relação que a ciência escreve entre as células. Resulta disso que feminino e masculino não esgotam em nada as posições de desejo. Freud já havia esbarrado nas definições tentadas a partir do passivo e do ativo, inoperantes na vida sexual e amorosa.

Nessas novas coordenadas, o que acontece hoje com a homossexualidade feminina? Nossa hipótese é a seguinte: a posição histérica não requer mais passar pelo pai e pelos homens para ter acesso ao feminino. Não há mais necessidade do “testa de ferro”. Nada mais falta às mulheres, diz Lacan no Seminário, livro V. Ele vai mais longe ainda no Seminário, livro XX, mostrando a dissimetria entre o masculino e o feminino, em que o sistema paterno-centrado só podia conceber como complementares e/ou rivais. As mulheres não são um conjunto complementar dos homens, regido por uma mesma lógica conjuntista. Lacan considera, portanto, o feminino como suplementarii. Todos homens, macho e fêmea, pai e mãe, irmão e irmã, amante homem e amante mulher, no sentido de todos os seres humanos submetidos à universalização, isto é, seres que habitam a linguagem, mas não todos do lado feminino. Um exemplo surpreendente desse feminino não simétrico tomado por Lacan (1972-1973/1985) é São João da Cruz, cujo sexo não é colocado em dúvida, já que a Igreja Católica se assegura sempre disso antes da ordenação. Finalmente, a identificação masculina é requerida para ser uma mulher, o que não quer dizer que ela baste para fazer uma quanto ao gozo. A posição histérica estava, portanto, bem adiantada.

Nessas condições, seria lógico ver as Doras de hoje passarem de uma posição homossexual inconsciente, portanto recalcada, e de uma ausência de atuação desse amor homossexual constatado por Freud, a uma posição consciente e a um acting out da atração pelo feminino na outra mulher. Um acting out, o que isso quer dizer? Uma formação do inconsciente, sob o modelo do sonho, do chiste, ou como Lacan propõe, no Seminário, livro X: A angústia, uma encenação da questão do sujeito, ao mesmo tempo que sua interpretação. Em suma, uma interpretação da posição do sujeito através de sua questão sobre a escolha de seu modo de satisfação, nesse caso: o que é A mulher? Enigma que polariza a relação da histérica com o inconsciente.

A clínica vem confirmar ou invalidar essa hipótese? Numerosas análises de sujeitos femininos numa posição histérica vêm confirmá-la.

Tomarei quatro casos de sujeitos histéricos, dentre muitos outros. Esses sujeitos são da mesma geração, entre vinte e cinco e trinta e cinco anos. As quatro trabalham em profissões nas quais, de maneira diversa, seu desejo está engajado. Elas são autônomas financeiramente, fato tão importante quanto evidente para elas. As quatro começaram sua vida sexual com homens, tanto em suas primeiras emoções sensuais na infância quanto em suas primeiras experiências sexuais, mesmo tendo laços de amizade extremamente fortes com amigas. Mesmo que uma delas não tenha nunca vivido com o seu parceiro, as outras três levaram um vida de casal com seu companheiro, vida de casal assumida diante das respectivas famílias e reconhecida por elas. Uma delas teve um filho com o seu parceiro. Nenhuma delas se casou, no entanto, durante essa união, num acordo com o parceiro, seja por ideais “compartilhados”, seja adiando o casamento. A um dado momento, sem que seja possível extrair daí algum elemento comum aos quatro casos, ou seja, em circunstâncias e por razões muito diferentes, elas romperam esse laço. A posterior escolha delas foi por uma mulher, e essa escolha ou foi definitiva ou foi reiterada várias vezes. Elas viveram, portanto, desde então, com uma mulher sem fazer da homossexualidade uma identificação. Não somente elas “se apaixonaram”, mas também a relação física não constituiu um problema. Todas assumiram, com maior ou menor dificuldade, essa escolha junto a suas famílias e, mais além, em relação ao seu meio social. Duas das quatro têm um desejo de filho que elas não concebem fora do laço com sua companheira e que colocam em questão suas respectivas posições no casal formado: o retorno da rivalidade assim que se introduz o objeto, nesse caso, o filho. As dificuldades encontradas não as trouxeram de volta para os parceiros homens, mesmo que algumas continuassem a ter relações de sedução ou mesmo relações sexuais passageiras com homens. Suas escolhas amorosas remetem cada uma a traços que pertencem a uma Feminilidade idealizada: uma feminilidade que elas não têm, segundo afirmam, e que as fascina, como se fosse um enigma, uma feminilidade na qual não se reconhecem e não desejam para si mesmas. Pode-se recorrer à afirmação de Lacan no Seminário, livro XX, segundo a qual as mulheres homossexuais gostam do Outro sexo para perseguir um gozo outro, distinto do gozo de um objeto que faz falhar a relação desejada com esse outro, tornando-as, portanto, “hétero” orientadas. Sem passar mais pelo amor e pelo desejo de um homem, elas foram diretamente na direção desse Outro sexo que as fascina, que elas amam. O laço com essa mulher suposta outra que não elas mesmas, suposta outra a lhes revelar sua própria feminilidade, conduz o encantamento amoroso a um limite. Pode ser o retorno do mesmo (LACAN, 1972-1973/1985) quando o surgimento do objeto reacende a rivalidade. Pode ser a estranheza daquilo que elas consideram como a loucura do fora de limite de sua parceira. Pode ser o retorno à mãe que mergulha novamente o sujeito numa posição de criança, equilibrada por uma posição donjuanesca em relação a outras mulheres a conquistar. Pode ser a descoberta do impasse da posição masculina, no estilo arroseur arroséiii. Mas, em razão do amor pelo pai, não há nunca o acesso ao não-todo fálico. Simplesmente mulheres que se autorizam a ser homens como os outros, à procura de um gozo delas, inacessível. Nessas condições, o desenvolvimento contemporâneo da homossexualidade feminina é uma simplificação que decorre do fato de que, sexualmente, hoje o sujeito se autoriza somente por si mesmo, como já dizia Lacan em seu Seminário, livro XXI.

E a Jovem Homossexual, o que aconteceu com o seu paradigma? A hipótese é mais difícil de ser colocada. Que ela não provoca mais escândalo, não há nenhuma dúvida. Mas essa não era a sua única visada. As mulheres orientadas desde a infância, de modo assertivo, para a homossexualidade, para as quais a relação sexual com os homens é sem atrativo ou mesmo impossível, são, no que diz respeito à minha experiência de analista, menos numerosas, pelo menos a procurar por uma análise. É importante notar que o diagnóstico de perversão, tal como ele é concebido por Freud, não é garantido.

A partir da clínica, um ponto nos parece importante. A questão do sujeito definindo-se como “homossexual” não incide sobre o “enigma da sua feminilidade corporal”. Esses sujeitos se definem como mulheres, sem se questionar e sem reivindicação em relação aos homens em geral ou, em particular, a respeito daqueles que poderiam participar de sua vida amorosa. Elas não olham para os homens e os homens não lhes interessam. O desejo está ausente, o amor, nem sempre. Isso quer dizer que não há divisão subjetiva sob diferentes modalidades? Não, mas essa divisão não diz respeito à sexualidade feminina. Uma clínica está para ser construída, estendendo-se sem dúvida da neurose à psicose, clínica que Lacan evocava a respeito do misticismo a ser diferenciado em suas formas neurótica, psicótica ou perversa. A hipótese que vamos propor, bem modesta, é que esse tipo de escolha homossexual, em alguns sujeitos, está ordenada pela separação do objeto de qualquer valor de troca fálica e, portanto, trata-se de sair da cena dos discursos. Ideal de fusão ou de desaparecimento. No primeiro plano, não vêm os significantes, a linguagem, mas eventualmente a letra, fora do discurso, não fora da escrita, o que vai de encontro à observação pela qual nós começamos e segundo a qual a homossexualidade feminina foi coberta pelo silêncio durante muito tempo.

Parece, portanto, necessário diferenciar, numa clínica psicanalítica, as funções clínicas diferentes da homossexualidade, pois está claro que ela não corresponde a uma estrutura única.

De um lado, uma homossexualidade, que é um novo sintoma histérico, fundamentada numa idealização de A mulher como Outro, para ela mesma e em geral. Essa solução diz respeito ao objeto colocado no feminino, não o sujeito, que permanece preso numa posição masculina, deixando a parte mais importante para a fantasia. Essa homossexualidade, universalizando o feminino como figura do Outro, responde ao princípio do todo em uma época em que a exceção paterna está falhando. Ela coloca no lugar deixado vazio pelo Pai e seus avatares, A/Mulher como o escreve Lacan no Seminário, livro XX: Mais, ainda (colocando uma barra sobre o A), diretamente e sem mais máscara ou chicane. O homem tornou-se um desvio inútil. Nessa perspectiva, a homossexualidade responde como sintoma à questão da falta no Outro.

Por outro lado, uma homossexualidade feminina, é a escolha de gozo decidida, que permite ao sujeito se apreender ele mesmo como mulher. Essa solução não depende tanto da escolha do objeto quanto da identificação de si próprio como verdadeira mulher e implica em continuidade numa identificação com a parceira escolhida como objeto semelhante. A idealização pode acontecer, mas não é necessária. Essa homossexualidade não repousa sobre um eixo de identificação vertical, mas horizontal e metonímico: a mesma, se amar podendo se escrever, se “mêmer”iv numa pessoa semelhante. Dependendo da dimensão dessa identificação, imaginária ou simbólica, a estrutura psíquica do sujeito é diferente. Psicose, quando esse mesmo é imaginário e constitui então um verdadeiro duplo do sujeito que lhe dá a solidez que falta quando não está presente a identificação simbólica ou real. Neurose, quando essa identificação imaginária recobre uma identificação simbólica recalcada. Perversão fetichista, quando ela se opera a partir da fixação de um traço. Em todos os casos, a homossexualidade é uma resposta pelo modo de gozo à falta a ser do sujeito.

Resta uma terceira via de investigação, ainda pouco aprofundada clinicamente. Qual seria a homossexualidade feminina que se situaria na esteira operada pela definição do feminino que encontramos no Seminário Mais, ainda, de Lacan? Existe uma possibilidade de considerar uma homossexualidade que se situaria do lado do que Lacan chama – apoiando-se sobre uma formalização lógica – de “não-todo”, em oposição ao “para-todo”, esse princípio de funcionamento do universal que é uma ficção, que depende da estrutura da linguagem e do discurso que permite, no caso, o funcionamento político.

De qual “não-todo” a homossexualidade feminina seria, por sua vez, o revelador? Nós propomos: “não todo sexo”. Seria uma solução que limitaria o sentido sexual não da forma como o faz a psicanálise a partir do “não existe relação sexual”, mas levantando a bandeira do amor: uma espécie de sublimação pela alma. No deserto da ausência de relação sexual que não vem mais velar o pai e as exigências da ordem familiar, essa solução seria uma tentativa de fazer existir, pela escrita no corpo, o acontecimento de um gozo localizado fora dos órgãos sexuais. Esses, de fato, estão sempre submetidos, no campo do real, à reprodução, que não exige que os seres falantes se encontrem na linguagem, no campo do simbólico, à fantasia e à pulsão, portanto, ao autoerotismo. A menos que se tome como A Mulher e que se faça retorno ao “para-todo” na impossível posição da exceção, essa solução pelo retorno a um corpo não regido pelas exigências do sexo, que se decline como sentido ou de uma maneira biológica, tem uma característica: ela não pode pretender ao universal. E, consequentemente, parece pouco compatível com uma escolha exclusiva e definitiva: uma homossexualidade “não-toda”, não no sentido de incompleta, mas de não totalitária, que não pode ser, portanto, um fator de identificação nem um modo de vida.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão da tradução: Ana Lydia Santiago

 

(1) “Por trás da sequência hipervalente de pensamentos que se ocupavam com as relações entre o pai de Dora e a Sra. K. ocultava-se, de fato, um impulso de ciúme cujo objeto era essa mulher – ou seja, um impulso que só se poderia fundamentar numa inclinação para o mesmo sexo. Há muito se sabe e já se tem assinalado que, na puberdade, com frequência, tanto os meninos quanto as meninas, mesmo nos casos normais, mostram claros indícios da existência de uma inclinação para pessoas do mesmo sexo.” (FREUD, 1905/1989, p. 62)
(2) “Vocês notarão que eu disse suplementar. Se estivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo.” (Lacan, 1972-1973/1985, p.99)
(3) NT. Arroseur Arrosé é o título de um filme dos irmãos Lumière (1895), que se popularizou como uma expressão que significa “ter seus atos que retornam contra si mesmo” e que equivaleria à expressão em português “o feitiço se volta contra o feiticeiro” ou mesmo estilo “bumerangue”. No filme, um jardineiro rega seu jardim. Um garoto coloca o pé sobre a mangueira. O homem olha o bico para ver se está entupido. O espertinho retira o pé e o jardineiro recebe o jato na cara. Ele corre atrás dele, lhe dá uma palmada e o molha também.
(4) NT. Aqui a autora joga com a homofonia das palavras “s’aimer (se amar) et “même” (mesmo), criando um neologismo, o verbo “se mêmer”, ou seja “amar o mesmo”.

 


Referências Bibliográficas
FREUD, S. (1905) Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de janeiro: Imago, 1980. (Edição standard das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 7)
LACAN. J. (1951) “Intervenção sobre a transferência”. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 214-225.
______. (1957-1958/1999) O Seminário. Livro V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
______. O Seminário. Livro X: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
______. (1969-1970/1992) O Seminário. Livro XVII:o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
______. (1972-1973/1985) O Seminário. Livro XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
______. (1973-1974) O Seminário. Livro XXI: les non-dupes errent. Inédito

 


M.-H. Brousse
Psicanalista, AME da ECF, EOL, NLS e AMP. E-mail: brousserichard@wanadoo.fr



Do Antissemitismo Hoje

AGNÈS AFLALO
O Antissemitismo Com A Shoah

À tradição francesa do intelectual engajado, em geral, e daquele que se posicionou contra o antissemitismo, em particular, não faltam nomes de prestígio como os de Victor Hugoi e Zolaii, para citar somente os primeiros. Mas isso fora antes da Shoah. Não faltaram intelectuais sérios que tentassem pensar a Shoah. Entretanto, ela permanece ainda impensável. Aspectos da Shoah não se deixam capturar por nenhuma escrita e não cessam, dessa maneira, de secretar seu próprio desconhecimento, seu próprio recalque.

Negacionismo e revisionismo não são resultados de uma minoria isolável, irresponsável e limitada no tempo. O triplo atentado contra os jornalistas do Charlie, os clientes do Hyper Casher e os policiais de Paris e de Montrouge, que precedeu em poucos dias a data de aniversário da descoberta do campo de Auschwitz, indica outra perspectiva: a rejeição inconsciente da Shoah mostra-se constante desde o seu primeiro dia até o momento atual. Tal rejeição apenas assumiu diferentes formas desde a descoberta oficial do genocídio em 1945 até a forma mais comum do antissemitismo que conhecemos hoje na França, na Europa, e alhures.

Sabemos que os países em guerra, ainda que informados acerca da existência dos campos durante a Segunda Guerra, não eram capazes de acreditar naquela realidade. Outro detalhe dá uma ideia da rejeição imediata da qual a Shoah foi alvo: durante a abertura do campo de Auschwitz, no momento de nomear aqueles que haviam sido deportados para aí serem exterminados, o nome dado às vítimas do suplício fora aquele referente à sua nacionalidade e não o nome que indicava seu pertencimento à religião judaica, nome esse que os levara à condenação à morte. Como reconhecer a singularidade da Solução final se ela é mal nomeada?

O nome comum não é suficiente para designar o acontecimento. Somente o nome próprio ocupa um lugar no real inominável. Churchill, que foi uma exceção no que diz respeito às intenções de Hitler, antecipara precocemente um crime sem nomeiii. O nome próprio Shoah não designa somente um crime de massa ou um genocídio. Designa uma criação inédita na história da humanidade: a produção industrial da morte perpetrada pelos homens. Essa aliança entre a técnica e a economia é impensável se não levarmos em conta as raízes inconscientes da pulsão de morte que habita cada ser falante, tomado no discurso dominante. Ora, esse discurso dominante, que é o discurso capitalista, é também o discurso do inconsciente.

Isso significa dizer que o Iluminismo é indissociável dessa tendência à crueldade mais ou menos recalcada ou sublimada. Desde Lacan lê-se Kant com Sade. O detalhe pode parecer insignificante, no entanto possui consequências importantes, como a concentração de milhões de pessoas reduzidas ao estado de mercadorias para que se pudesse delas extrair uma mais-valia exorbitante a fim de colmatar a ruptura que habita cada um. Ora, se a mais-valia se desloca de uma mercadoria a outra, é também inseparável do corpo mercantilizado. Dois conceitos permitem apreender essa lógica: o conceito da mais-valia de Marx e aquele de extimidade formulado por Lacaniv. Além disso, no discurso dominante, a mais-valia é padronizada enquanto que, no inconsciente, cada um sofre, à revelia de sua vontade, de um gozo singular, conhecido também como “mais-de-gozar”. Nessas condições, torna-se impossível reconciliar a oferta do mercado e a demanda inconsciente do sujeito. Qualquer colocação fora do jogo do desejo acentuará, sobretudo, o sentimento de fissura, causador de angústia e de ódio, que pode se deslocar até a cisão e desnudar o vazio no coração do ser com seu cortejo de desesperança e revolta.

O antissemitismo existente nos dias atuais não está apenas fundamentado na única ignorância que a escola da República poderia reparar. Está também fundamentado na recusa de se crer na Shoah. Há pouco, um jovem aluno advindo de bairros considerados “vulneráveis” respondia a seu professor de história que lhe ensinava sobre a Segunda Guerra Mundial: “chega de falarmos de judeus, não foram somente eles os mortos durante a guerra!”. Mais uma vez – e esse exemplo é apenas mais um entre muitos outros da mesma natureza – o nome das nacionalidades dos mortos da Segunda Guerra tende a recalcar o nome da Shoah e, assim, a aprofundar a vala comum do antissemitismo ordinário.

Setenta anos depois, restam poucos sobreviventes e testemunhas do Holocausto. É por isso, sem dúvida, que o antissemitismo ordinário ganhou terreno. Em janeiro de 2014, uma manifestação ocupava as ruas de Paris aos gritos de “fora judeus, morte aos judeus!”. Não escapava, então, a Robert Badinter, que se tratava de uma première desde a Ocupação. Quanto mais a série de assassinatos de judeus se multiplica e se banaliza na França, na Europa e no mundo, mais a concentração do ódio antissemita tende a fazer endossar aos judeus o traje do bode expiatório. Ora, no discurso do inconsciente, não há bode expiatório sem homem providencial.

O Homem Providencial E O Bode Expiatório

O princípio do homem providencial e do bode expiatório, bastante conhecido dos monoteísmos, pode ser reduzido à estrutura lógica do Universal e do particular, formalizada por Aristóteles, e a partir da qual Lacan expôs as bases inconscientes. Essa lógica demonstra que a exceção confirma a regra.

Os três monoteísmos – judeu, católico e muçulmano – possuem aspectos em comum e também diferenças. Detenhamo-nos aqui sobre dois pontos concernentes às suas diferenças: o clero e o proselitismo. A religião judaica não concede espaço a nenhum dos dois. Converter-se ao judaísmo é um percurso do combatente. Dentre os três monoteísmos, o judaísmo é o único que não tem a pretensão universal. Em compensação, os proselitismos cristão e muçulmano são bem conhecidos. A história das guerras religiosas de uma parte do nosso mundo é testemunha disso. E sabe-se que, na França, a estratégia da espada e do aspersóriov conheceu uma contenção importante no momento da Revolução, quando o rei perdeu a cabeça e, ao mesmo tempo, seu direito divino.

A organização dos doutores da Igreja constituindo o clero é, sem dúvida, o segredo da estabilidade do catolicismo há mais de 2.000 anos. Por isso, pode-se argumentar que o islã é mais aberto à instabilidade experimentada pelas diferentes correntes que se afrontam, pela falta de um clero que estabilizaria a ortodoxia dominante. Essa instabilidade se propaga simultaneamente à sua pretensão universal. Algumas correntes religiosas são ainda mais nefastas e decidem priorizar as injunções, ou seja, uma aplicação do Corão ao pé da letra e sem as interpretações dos doutores do clero que as humanizariam. Ou, ao contrário, privilegiam as interpretações do Corão elaboradas há muitas centenas de anos (Hadith) sem interrogá-las nem colocá-las em discussãovi. E essa é a razão pela qual a criação de um islã na França, se fosse criado, poderia aí remediar.

O judaísmo, por sua vez, por não possuir a qualidade do proselitismo, não se inscreve na mesma lógica do universal e do particular. O povo do Antigo Testamento pretende de fato ocupar o lugar do elemento particular, isto é, da exceção que confirma a regra, do universal. Desse ponto de vista, o povo eleito é indissociável de seu outro lado – povo pária e martirizado ao longo dos séculos.

A psicanálise ensina que o apelo ao pai conduz sempre ao pior. A história do século XX o demonstra de maneira suficiente. O ódio é um afeto ordinário e comum, mas divinizar o mal é uma tendência tão velha quanto a humanidade e tanto mais intensa quanto os ideais de democracia são impotentes para tratar o mal-estar econômico e social. A vida em sociedade permite sublimar e assegura assim a estabilidade do laço social. No entanto, durante uma situação excepcional de crise econômica de grande amplitude, o laço social tende a se desfazer, a sublimação enfraquece e a satisfação inebriante do ódio retoma o que expusemos acima.

No último século, a crise econômica que se abateu sobre a Europa e o novo mundo favoreceu a expansão do nazismo e do antissemitismo. A expansão econômica após a Segunda Guerra – conhecida como Les Trente Glorieuses, ou, em tradução literal, “Os trinta gloriosos”, fazendo menção aos trinta anos de desenvolvimento, de 1945 a 1975 – favoreceu a integração de imigrantes, de maneira geral, e de judeus, em particular. Entretanto, a crise econômica que se alastrou na Europa e alhures desde o primeiro choque do petróleo retardou a integração de emigrações tardias. Hoje os grupos criminosos do Estado Islâmico fazem ressoar um ódio levado tão mais adiante que ressuscita o homem providencial sob a categoria do Califa. Sua propaganda faz crer numa justiça divina distributiva e sua política do terror dá corpo ao bode expiatório que a ela não se submete. Os últimos atentados que acabam de ocorrer em Copenhague, na Dinamarca, dão uma ideia da determinação dessa ideologia totalitária propagada via internet por uma gangue de criminosos.

O laço que cada um estabelece com sua parte sombria e colérica faz sintoma. Isso quer dizer que não é possível se libertar sem decifrar o inconsciente do qual se é sujeito. Com efeito, a crença no homem providencial força a uma escolha imposta entre o ódio de si e aquele dirigido ao outro que faz o leito do comunitarismo, sempre religioso. A submissão devastadora por meio da qual alguém se deixa tratar como um objeto de ódio e a revolta contra essa depreciação para quem prefere o ódio do outro são dois impasses.

O ódio não é a única resposta possível. Há a resposta própria à ética de cada um. Há também aquela da psicanálise de orientação lacaniana. Ela pode abrir outra via para quem decide contornar um gozo sem nome. É também possível renunciar às sirenes do homem providencial e a seu corolário de bode expiatório para fazer parte de uma fraternidade de discurso. A intranquilidade é assegurada, mas não sem a alegria de viver.

(1) O assassinato de Alexandre II em 1881 desencadeia violentos massacres de judeus. Pouco depois, em 1882, Victor Hugo publica um manifesto em favor dos judeus perseguidos da Rússia nos jornais parisienses L’Évenement, Le Temps et Le Rappel.
(2) A carta aberta “J’accuse…!” de Zola, escrita durante o Caso Dreyfus, é publicada no jornal L’Aurore em janeiro de 1898.
(3) Em seu discurso à Nação, no dia 24 de agosto de 1941, Winston Churchill lança uma advertência aos nazistas: “Desde as invasões mongóis do século XII, jamais assistimos na Europa a práticas de assassinato metódico e sem piedade em escala semelhante. Estamos na presença de um crime sem nome”.
(4) Devemos a J.-A. Miller o fato da elevação do termo extimidade à categoria de conceito durante seu Curso de Orientação Lacaniana “Extimité”, 1985-86, inédito em francês.
(5) NT. Existe uma expressão em francês (expression familier) que diz « le sabre et le goupillon » e quer dizer justamente « l’armée et l’Église », ou seja, o exército e a Igreja. Aqui Aflalo parece referir-se a essa expressão.
(6) “Eu percebo que o discurso religioso, em todo mundo islâmico, fez com que o Islã perdesse sua humanidade”. Entrevista concedida por Abd el Fath el Sissi, então candidato à presidência do Egito, realizada em 6 de maio de 2014 pela CBC e ON TV, duas redes egípcias de televisão.

 


Tradução: Maria das Graças Sena
Revisão da tradução: Clarissa Vieira – TEXTECER

 


Agnès Aflalo
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne e da AMP. E-mail: agnes.aflalo@wanadoo.fr



Império Das Imagens: Um Ponto De Vista

SÉRGIO CAMPOS

 

O mundo das imagens, grosso modo, se divide em dois domínios. O primeiro domínio é o da esfera do aparelho psíquico do parlêtre, das imagens produzidas pelo nosso inconsciente como as representações mentais: sonhos, devaneios e fantasias. O segundo domínio pode ser descrito como sendo o das representações visuais, os objetos materiais e os signos que representam o Outro, ou seja, o mundo exterior. É digno de nota que as imagens do Outro influenciam as imagens do parlêtre, e as imagens deste recriam as imagens do Outro, de sorte que um domínio incide e se infiltra sobre o outro, produzindo todo um intercâmbio e uma superposição de imagens que produzem efeitos subjetivos de todas as ordens.

Ao analisarmos a existência das imagens do Outro, podemos concluir que existem, de uma forma geral, três modelos de imagem e, por consequência, três maneiras de ver o Outro. O primeiro modelo, considerado artesanal, nomeia todas as imagem feitas à mão, dependendo, portanto, de um savoir-faire – da habilidade e do talento – de cada um, plasmar o visível, a imaginação visual e até mesmo o invisível. Nesse conjunto distinguimos dois tipos de imagem, segundo Freud: aquelas cujas técnicas artísticas agregam – per via di porre –, como os desenhos e as pinturas, e aquelas cujas técnicas retiram – per via di levare –, como esculturas em mármore e madeira. Freud sinalizou o funcionamento de uma análise per via di levare (FREUD, 1904/1990).

O segundo modelo se refere às imagens que dependem da luz – elemento físico de visibilidade – e de uma máquina de registro, implicando a presença de objetos no campo da realidade. Esse modelo pode ser denominado luminoso, visto que, para que ele ocorra, deve haver luminosidade. O modelo luminoso permite que as imagens óticas se projetem através de um raio de luz a partir de um objeto natural captado na realidade, de tal sorte que esse objeto é fixado por um elemento fotossensível químico, como nos casos da fotografia e do cinema. O modelo luminoso foi paradigma no século XX nas grandes descobertas e nas formidáveis invenções da ciência como meios de investigação do mundo natural, como o microscópio e o telescópio. Freud analisou que, a cada invenção, o homem recria seus próprios órgãos, ampliando os limites de seu funcionamento. No que concerne à pulsão escópica e às imagens do Outro, a câmara fotográfica retém as impressões visuais fugidias; por meio de óculos, corrige os defeitos das lentes dos próprios olhos; através do telescópio, vê à longa distância; e, por meio do microscópio, supera os limites de visibilidade da própria retina (FREUD, 1929/1990).

Por último, o terceiro modelo das imagens do Outro, que denominamos digital, apanágio do século XXI, se relaciona com as imagens sintéticas, infográficas, virtuais, inteiramente calculadas pela computação. O terceiro modelo da imagem do Outro se constitui a partir da transformação de uma matriz de números inteiramente calculada em pontos digitais elementares – pixel – que visualizamos em um écran que nos olha (SANTAELLA, 2001). Aliás, é no terceiro modelo que se configura o império das imagens como unidade política de domínio soberano e de autoridade do Outro, forma de governo com influência dominadora no mercado sob o ponto de vista econômico em um vasto território e uma ordem de ferro com poder irrestrito de informação com fins ao controle.

Miller, inspirado em Antonio Negri, sociólogo italiano, assinala que vivemos na era do “Outro que não existe”, em um regime que não age mais pela censura, tornando improvável a ideia de transgressão e de revolução. Deslocamos da sociedade disciplinar, que supõe uma clara distinção entre o in e o out, para a sociedade de controle, interiorizada, flexível, em rede, flutuante e êxtima. O imperialismo, hoje, não é mais de ninguém, está em todas as partes e em nenhuma, pois não há mais fronteiras entre o in e o out (MILLER, 2011). O império das imagens do Outro se propaga e se difunde em volume e profusão, corrompe nosso modo de vida e nosso aparato psíquico, se infiltra em nossos lares sem pedir permissão, nos induz ao consumo de objetos supérfluos, nos torna reféns e se alastra mediante as novas tecnologias, contaminando todos os gadgets, constituindo, assim, o que Lacan nomeou de alethosphera.

Se levarmos em consideração o tempo em articulação com as imagens do Outro, pode-se deduzir que o modelo artesanal tem, por natureza, o perene; o segundo, o luminoso, circunscreve o mundo do instantâneo, do lapso e da interrupção do fluxo do tempo e, por último, o modelo digital se configura como o universo do evanescente, do devir, do tempo puro, manipulável, reversível e reiniciável em qualquer momento (SANTAELLA, 2001).

Do ponto de vista do parlêtre, a imagem artesanal é feita para a contemplação do Outro, a imagem luminosa se presta à observação do Outro e, a digital, à interação com o Outro. Na imagem artesanal, havendo nela algo de sagrado, evoca uma nostalgia do divino. Portanto, a imagem artesanal convoca o parlêtre a um impossível contato imediato, sem mediações com o transcendente, ao mesmo tempo em que produz um afastamento que é próprio dos objetos únicos, envolvidos num círculo mágico da aura de autenticidade, como foi teorizado por Walter Benjamin. Já a imagem luminosa é profana, pois surge como um fragmento arrancado do corpo do Outro, oferecendo-se ao parlêtre como objeto de observação, um recorte do Outro em sua realidade e em sua natureza. Nesse segundo modelo, o objeto extraído do campo do Outro solicita ao parlêtre aquiescência e reconhecimento do Outro, produzindo memória e identificação. Por último, as imagens digitais do terceiro modelo produz a interatividade entre o Outro e o parlêtre, suprimindo as distâncias, engendrando uma imersão e uma navegação nas circunvoluções no interior da imagem (SANTAELLA, 2001,).

O terceiro modelo se propaga de maneira inquietante pelas novas paisagens da internet e se expressa de maneira imperativa como apanágio do progresso, no qual a informação é signo de poder. Se, por um lado, o primeiro modelo está situado na condição de “ver e não ser visto”, como no panóptico de Jeremy Benthan, no terceiro modelo o axioma do panóptico se desloca para o imperativo “ver, tudo ver, ver tudo de tudo”, que se expressa como uma vontade de gozo que se impõe como uma lei (FOUCAULT, 2007). Já nos anos 30, Walter Benjamin assinalava que “outrora, com Homero, a humanidade tinha sido objeto de contemplação dos deuses do Olympo, agora se ela torna objeto de contemplação de si mesma” (BENJAMIN, 1996, p. 33). O terceiro modelo, apanágio do império das imagens, criou o Outro evanescente, mas também onividente, fruto da bricolagem da ciência e da tecnologia, cujo olhar não mais transcende, tampouco contempla o mundo; contudo, supervisiona, controla, se infiltra e se imiscui na sociedade e em todos os domínios da vida. Entretanto, não mais vigia de fora, como o panóptico de Benthan, mas controla de dentro, abolindo a fronteira entre o in e o out.

Se no primeiro e no segundo modelo, por detrás da imagem, há uma sombra, a Coisa a ser representada que guarda distância com a própria imagem, visto que a imagem, como um véu, vela o real do gozo, pode-se dizer que, no terceiro modelo, a imagem digital está chapada sobre a Coisa (WAJCMAN, 2010). A tela plana do computador não nos deixa mais imaginar o que se encontra por detrás da imagem, de modo que não mais existe uma distância entre a imagem e a Coisa. Portanto, a imagem do Outro e a Coisa se superpõem, se tornam íntimas e se confundem, de tal sorte que a imagem fabrica uma ilusão do real. Nos tempos de hoje, as imagens são fábricas do real (WACJMAN, 2010). Portanto, no contemporâneo, segue-se a orientação de que não se deve mascarar o mundo, mas mostrá-lo como ele é de fato. Outrora, sob o domínio do modelo luminoso, o neorrealismo italiano, o fotojornalismo e os fotógrafos de guerra tentaram captar o real em suas lentes e mostrar o mundo como ele é.

No mundo de hoje, temos o homem-imagem, impregnado pelas imagens do Outro, agora não mais especular como o fotojornalismo, tampouco intersubjetivo, fruto de uma “imagem-rainha” espessa, que encobria a sombra do objeto, como cogitou Lacan no estágio do espelho. Entretanto, temos a imagem do homem construído pela tecnologia que tenta traduzir o próprio real, como as imagens médicas das ressonâncias magnéticas. Com efeito, a alta modernidade também é idólatra, particularmente, das imagens científicas e das imagens tecnológicas.

O terceiro modelo, no qual a imagem fabrica uma ilusão do real, se infiltrou não apenas na ciência, mas em diversos terrenos da cultura e da arte. Em 1977, o alemão Gunther von Hagens, conhecido como plastificador de corpos, criou uma técnica inovadora de preservação de cadáveres e a elevou ao estatuto de arte. Sua técnica mescla congelamento, acetona e polímeros. O resultado é uma verdadeira aula de anatomia que faz parte da exposição “Body Worlds” (mundo de corpos), que fica na Atlantis Gallery, em Londres. Ao expor cerca de 200 cadáveres sem pele, como o de uma mulher grávida dissecada com o feto exposto, Hagens despertou reações mistas de repulsa, indignação, surpresa e fascinação. A exposição esteve no Brasil com o nome “Ciclo da vida”, inclusive em Belo Horizonte, em 2009. O que se observa nas imagens digitais, em que a imagem e o real estão em continuidade, é o desaparecimento dos semblantes. Essas imagens mostram apenas o que o objeto é, elas não aludem, tampouco querem dizer algo. Portanto, existe mais semblante numa medalhinha da Virgem Maria do que nos corpos de Gunther von Hagens.

Com efeito, um modelo nunca se desloca em direção ao outro de maneira abrupta, mas vão se mesclando, se justapondo, se infiltrando, se transformando gradativamente um no outro, de sorte que, hoje, a imagem do Outro nunca se encontra com exclusividade dentro de um único modelo. Com efeito, mesmo que tenha um viés, ela se apresenta amarrada como num nó RSI. Assim, grosso modo, o modelo artesanal pode ser considerado como apanágio do imaginário, na medida em que ele reproduz o corpo próprio, o corpo do Outro e o falo; o modelo luminoso, em razão da extração instantânea do objeto, em virtude do recorte da realidade, pode ser aludido ao objeto a e ao registro do simbólico; já na esfera do real, poderíamos supor o modelo digital como uma espécie de fábrica do real.

Em novembro último, visitei uma bela exposição em Paris, de nome “Icônes du Petit Palais”, sobre a arte cristã bizantina. Não resta dúvida de que a exposição de ícones sagrados, através de pinturas e esculturas, estava alojada no RSI, porém com prevalência no modelo artesanal, já que sua função era, a partir dos semblantes, despertar a contemplação e a reflexão no parlêtre.

A exposição suscitava uma meditação sobre as religiões que eram a favor ou contra as imagens religiosas. É conhecido o interdito bíblico à teologia dos ícones, de tal sorte que a figuração e o sagrado não são noções sempre compatíveis. Se, por um lado, existem religiões que possuem uma afinidade com as imagens, como o cristianismo e o hinduísmo, por outro, as religiões islâmicas e judaicas proíbem qualquer tipo de imagem de Deus. É digno de nota o fato de encontrarmos duas posições antagônicas no seio das três religiões fundadas a partir do legado de Abraham.

O judaísmo interdita toda sorte de representação de Yahvé, como exprime um dos mandamentos no Torá: “Não farás para ti imagem de ídolos, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, tampouco nas águas debaixo da terra” (Exodus: 20, 4-5). O monoteísmo e a interdição das imagens funda uma teologia em que a crença deve acontecer sem a presença das imagens. O Deus de Israel é audível e não visível, na medida em que é na lei e na palavra que ele se inscreve para o seu povo. Em contrapartida, o islã proíbe, igualmente, todos os tipos de imagem de Deus. O Corão declara: “Alá! O impenetrável! Alá não se cria, nada se parece com ele”. Ademais, “Deus, o impensável, nada pode nem de longe refleti–lo” (Corão: 122). O profeta Maomé, venerado pelos mulçumanos, raramente aparece na arte islâmica. Grafias sobre o profeta Maomé figuram raramente, apenas nos manuscritos religiosos iranianos e otomanos, e ainda que surja sua imagem, ela nunca está à mostra, é frequentemente velada. O islamismo evita qualquer tipo de imagem de Deus ou de Maomé para que a caligrafia se torne a única encarnação da palavra divina. Portanto, a letra está para o islã assim como a voz está para a religião judaica.

Diferente do judaísmo e do islamismo, o cristianismo desenvolve progressivamente uma tradição na qual Deus é esboçado em imagens e surge, frequentemente, ilustrado no mundo das artes. Ademais, na religião cristã, todo ícone reenvia a um protótipo divino, não somente autêntico, mas revelado, no qual a imagem é a cópia fiel em semelhança com Deus e com as demais divindades. Possivelmente, as reticências das duas religiões em usar as imagens provavelmente advêm do paganismo, que utilizava imagens de totens para adoração. No século VI e VII os imperadores romanos passaram a representar Cristo, santos e eles próprios em imagens, quer sejam esculturas, quer sejam cunhadas em moedas.

No século VIII houve a crise iconoclasta, fruto de uma reviravolta política dos imperadores do império bizantino e durou cerca de um século, vitimando milhares de idólatras. Depois da crise iconoclasta, as imagens como representações do sagrado e do divino ressurgiram nos textos canônicos e se tornaram ícones de culto, de veneração e de respeito. Portanto, no cristianismo, com as exceções dos cismas de Lutero e de Calvino e nas religiões que foram marcadas pelas suas influências, a imagem tida como representação autêntica, legítima e revelada como ícone, seguiu forte no catolicismo. Com efeito, na religião católica, a imagem se apresenta como ferramenta essencial e indispensável ao culto, à adoração e à mediação com o transcendente.

O modelo artesanal, não obstante ter sido o primeiro que derivou em mais dois modelos, ainda continua a propagar efeitos subjetivos, dada a sua profundidade e a sua complexidade. Assim, é curioso ressaltar que o culto ao sagrado e ao divino é expresso apenas mediante o primeiro modelo, que é o paradigma artesanal. Aliás, não nos consta que o sagrado seja cultuado pela fotografia e pela internet. Portanto, pode-se concluir que, por detrás do modelo artesanal das imagens, existe um gozo. Assim, se a imagem sacra é atacada, surge o gozo da profanação e do sacrilégio e, em contrapartida, como reação, surge o gozo da revolta e do ódio, a exemplo de um ataque televisionado à imagem de Nossa Senhora Aparecida perpetrada por um pastor evangélico, ocorrido há alguns anos.

Miller assinala que, no final do século XX, considerávamos que os conceitos tais como blasfêmia, sacrilégio e profanação não eram mais que vestígios de um tempo passado. Ele constata que a era da ciência não fez desvanecer o sagrado, e mais, que o sagrado não é arcaico, mas contemporâneo. O sagrado não é o real, mas um efeito de discurso, uma ficção que mantém uma comunidade unida. Aliás, o sagrado é a pedra angular de sua ordem simbólica, ressalta Miller. O sagrado exige reverência e respeito, e a falta deles acarreta o caos e o gozo da profanação e do sacrilégio e, em contrapartida, desperta o gozo da ira e do ódio.

Então, no episódio do atentado à sede do periódico Charlie Hebdo, na cidade de Paris, em janeiro último, constatamos que estamos diante de um choque de ideologias no qual estão em jogo dois modelos da imagem. Se por um lado há uma cultura situada no terceiro modelo, que defende um modo de gozo no qual é proibido proibir e que é permitido tudo dizer, em nome de uma liberdade de expressão, de outro temos uma cultura que se situa no primeiro modelo, na qual dentro de seu núcleo religioso existe o interdito da representação de imagens tanto de Alá quanto do profeta Maomé.

Portanto, são dois tipos de gozo em oposição: o primeiro, resultado de um tudo dizer, tudo expressar em nome da liberdade, e um segundo, o gozo da cólera revelado em virtude da blasfêmia, da profanação e do sacrilégio em consequência do uso abusivo de um ícone que deveria permanecer velado por respeito. Em síntese, no contemporâneo encontramos dois modos de gozo justapostos, porém em oposição, como descreveu Jésus Santiago (2014) de maneira bastante esclarecedora em seu artigo: um modo de gozo feminino, não-todo, situado a partir da pluralização do nomes do pai, e outro universal, masculino, assentado sobre as insígnias do nome do pai.

O olhar no terceiro modelo da imagem, no império das imagens, se constitui como alvo da pulsão, que se expressa pela pulsão escópica, condicionando o gozo mediante a posição de “ver, tudo ver, ver tudo de tudo e ser visto por todos”, o que não implica qualquer tipo de resto. É, portanto, relevante afirmar que apenas na medida em que a pulsão escópica seja modulada, que ela seja parcial, que deixe sombras, restos, dobras, buracos, enigmas e espaços vazios, é que o olhar, como pulsão, pode despertar e instigar um desejo de saber. Assim, nos resta interrogar como a psicanálise poderá operar sobre o parlêtre no contemporâneo, como ela poderá sobreviver no futuro, em que a dimensão do Outro como imperativo do “fazer-se ver”, sem resto, é a condição prevalente de possibilidade para o terceiro modelo.

À guisa de conclusão, se o primeiro modelo de imagens se presta à contemplação, o segundo proporciona a extração da realidade do objeto olhar, no qual a fotografia é o melhor molde; por último, o terceiro padrão, o qual denominamos digital, acrisolai um novo paradigma, no qual não há prerrogativas de um registro sobre o outro, de tal sorte que o real, o simbólico e o imaginário estão dispostos em equivalência. Agora, o imaginário é pleno de direito, como os demais. Portanto, esse novo paradigma das imagens, apanágio da clínica contemporânea, ocasionou um novo imaginário e novas maneiras de amarrar o RSI. Eis o nosso desafio!

 

(1) O verbo acrisolar diz respeito ao uso do crisol, o cadinho evocado por Miquel Bassols em sua conferência de posse da presidência da AMP, objeto de macerar elementos cuja finalidade é a de criar um novo composto.

 


Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1996, p. 33.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, São Paulo: Graal, 2007.
Freud, S. (1989). Sobre psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 239-251). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1904).
______. (1929) O mal-estar na civilização. In: STRACHEY, J. (ed.).Tradução de Vera Ribeiro. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v.21, p.81-178 (Versão brasileira de 1980).
MILLER, J. A. Intuições milanesas, Opção lacaniana online, n. 5, ano II, Julho de 2011.http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf. Acesso em 5 de dezembro de 2014.
_______. Primeiro dos comentários sobre o atentado ao jornal Charlie Hebdo, publicado no site Opção lacaniana Online. ISSN 2177-2673 Março de 2015, ano VI. Acesso em 30 de março de 2015.
SANTAELLA, L. Imagem: cognição, semiótica e mídia, Sao Paulo: Iluminuras, 2001.
SANTIAGO, J. Revista eletrônica Sephora, Gangues: os efeitos do abalo do Nome-do-Pai no contexto da violência juvenil, n. 16, vol. VIII, maio-out de 2013. Acesso em 1º de dezembro de 2014.
WAJCMAN, G. L’œil absolu, Paris: éditions Denoel, 2010.
ZIADÉ, R. Icônes du Petit Palais, Les Collections de la ville de Paris, 2014.

 

Sérgio Campos

Membro da EBP/AMP. Doutor pela FM-UFMG. Preceptor da Residência de Psiquiatria do IRS/FHEMIG E-mail: sergiodecampos@uol.com.br.