FOTO: Jesse Barbosa , Sr. Ka.FOTO: JESSE BARBOSA , SR. KA.
A adolescência não é um conceito clássico da psicanálise, mas uma referência de Freud (1976a) pode, no entanto, ajudar-nos a nos orientar nessa questão. Trata-se de seu artigo de 1889 sobre as lembranças encobridoras. Freud esclarece seu caráter híbrido, dizendo que elas utilizam ao mesmo tempo um material infantil e reformulações sucessivas a fim de responder a questões que são colocadas numa idade mais tardia.
Tal como sabemos, as lembranças encobridoras não refletem, ou refletem apenas em parte, episódios pertencentes à infância; elas são mais do que tudo (não são mais que) montagens tardias realizadas com um efeito (de) a posteriori. A idade na qual a maioria dessas lembranças se forma se deduz facilmente das necessidades às quais elas vêm responder. São aquelas, shilerianas (FREUD, 1976b) a partir das quais Freud forjou o primeiro modelo da noção de pulsão: fome e amor (1976a).
A partir do momento em que o sujeito sai do enquadre simbólico da família para se abrir para o espaço do mundo, se impõem a ele as primeiras escolhas concernentes à direção a dar à sua existência, seu lugar na sociedade e na orientação de seus sentimentos para novos objetos de amor. Para enfrentar o inédito e o desconhecido, o sujeito se serve do que tem à sua disposição. Os traços e as experiências infantis são então retomados nesse contexto modificado; misturados com temas atuais, eles traçam as pistas ao longo das quais buscar uma satisfação adequada a essas novas exigências.
As lembranças encobridoras, com sua natureza composta, constituem assim um limiar, uma fronteira temporal entre a infância e o horizonte transformado da vida. As questões fundamentais às quais elas devem responder são aquelas do sentido da vida e da morte, que se colocam na adolescência num plano diferente daquele da infância. Devemos acrescentar a isso aquelas do amor a partir do momento em que o sujeito abandona seus antigos objetos para se abrir a novas possibilidades.
Maturação E Adaptação?
A concepção da adolescência definida por nós a partir do limiar que são as lembranças encobridoras difere daquela de Erik Erikson (1976), que a apresenta como uma fase do desenvolvimento na qual a identidade se constrói numa perspectiva de adaptação, ou ainda daquela de Peter Blos (1967), que interpreta a adolescência subdividindo-a em diferentes fases: uma primeira fase de pré-adolescência, caracterizada pelo crescimento da pressão pulsional, uma segunda fase comportando um processo de separação dos pais e a construção dos ideais, uma terceira na qual o sujeito é pressionado pela busca de um objeto de amor, e enfim uma fase tardia em que o sujeito atinge uma posição sexual e genital definitiva.
Depois do estudo clássico de Stanley Hall, a adolescência, que se tornou um capítulo da psicologia evolutiva, é considerada como uma condição particular da passagem entre a idade infantil e a idade adulta, isto é, a maturidade realizada. Mas, precisamente, essa definição formulada como um simples truísmo nos parece problemática. Tomar a adolescência como uma fase de transição de um estado para outro significa que se considera como adquirida a definição de um início e de um fim, de um ponto de partida e de um objetivo a se atingir. A ideia de uma consecução que definiria a idade adulta não se sustenta a não ser se se raciocina em termos de normalidade, isto é, de adaptação, e não é por acaso que são os autores da ego psychology os que mais se consagraram a esse tipo de estudo.
Os autores kleinianos adotaram uma perspectiva diferente. Donald Meltzer (1991) centra o problema, sobretudo, sobre o saber. A queda do ideal que toca as figuras parentais concerne principalmente à pretensa onisciência deles, e, no desencantamento que se segue, o espirito se põe à busca da verdade como o corpo busca o alimento, encontrando diversas vias possíveis. Uma primeira via consiste na eventual regressão à posição infantil, o retorno à família, a recusa de andar para frente ou se afastar do ninho completamente. A segunda compete a se juntar ao grupo de pares, mas pode derivar em direção ao bando ou à horda. A terceira é aquela do isolamento. Resta, enfim, aquela da abertura ao mundo social, a mais próxima da normalidade, que permite a maturação e o acesso ao mundo adulto. Aí também, apesar de tudo, a argumentação é desenvolvida em termos de normalidade e de maturação, o que parece um escudo difícil de evitar quando se fala de adolescência.
Doldrums[1]
A leitura de Winnicott (1969) é mais pessoal apesar de ele não abandonar os temas clássicos sobre a adolescência: a desconfiança diante do quadro familiar, a necessidade de provocar, a busca da verdade e o evitar das falsas soluções. Mas ele nota também que o adolescente, no fundo, não quer ser compreendido, ele vê, por assim dizer, uma antítese entre a adolescência e a busca de compreensão. Na adolescência trata-se, sobretudo, de um tempo no qual o sujeito deve se compreender a si mesmo mais do que ser compreendido, e para isso ele deve se subtrair à compreensão prévia do Outro. Esse tempo é aquele dos doldrums, melancolias, depressões ou tristezas que dominam os humores nascentes, ou ainda um sentimento de mar cinzento ou ainda a alternância da calma plena e de tempestades súbitas como aquelas que se encontram sob alguns céus oceânicos.
Os doldrums do adolescente winnicottiano parecem refletir os versos de A música[2], da coletânea de As flores do mal. Depois de ter descrito a música tomando como um mar o poeta que, com o peito saliente, luta contra as torrentes na convulsão da tempestade das paixões, o poema se conclui com um contraste brutal: “— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrível me exaspera!”.
São esses versos que Joseph Conrad coloca exergo em A linha de sombra: uma confissão, um dos mais belos romances sobre a iniciação na vida. Eles reenviam à parte central do romance, a esmagadora calma planície no seio da qual o jovem oficial, em seu primeiro comando, vê colocada à prova sua tenacidade e sua coragem. Sobre a linha de sombra, sobre o limiar que se trata de atravessar, há, entretanto, dois obstáculos a ultrapassar. Um é os doldrums: enquanto o segundo oficial é tomado pelo delírio e a tripulação colocada fora de ação pela febre tropical, o jovem capitão deverá sair da imobilidade da calma planície por meio de suas próprias forças.
Mas antes ainda, para chegar ao navio, ele não deve deixar escapar a oportunidade de assumir o comando, ele deve tê-la e perceber que o pobre e miserável capitão Hamilton busca surrupiá-la dele. É então que o capitão Giles, velho lobo do mar com expertise no comando dos navios, mas também na arte de navegar na vida, vem ajudá-lo. O protagonista não percebe imediatamente a sabedoria do discurso de Giles, tomando-o por um simples idiota. O diálogo entre o protagonista e o capitão Giles é formidavelmente construído, as palavras deste último parecem nunca chegar ao ponto central, pois ele sabe muito bem que o que é crucial não pode ser dito diretamente; ele sabe que a oportunidade não pode ser explicada, mas apenas indicada, tal como uma interpretação analítica. O capitão Giles é o modelo por excelência daquele que sabe falar a quem ainda não conhece o que está em questão. Ele não acredita que suas palavras possam ser escutadas pelo neófito da mesma maneira que pelo homem de experiência. É o estatuto do saber que está em jogo em A linha de sombra, é a demonstração de sua essencial intransmissibilidade: o que Giles compreendeu não pode ser comunicado ao jovem, que simplesmente o refutaria, mas Giles, com o que sabe, pode levar o jovem a se aperceber e, assim, a poder captar o que se passa diante dele sem que ele veja.
Um Mundo Atrás Do Mundo?
O clássico romance de formação, em suas diversas expressões, tem também como fio condutor o tema do reconhecimento: o protagonista deve aprender a ver o que tem diante dos olhos, mas que inicialmente não se desvela de forma alguma a ele. David Copperfield (DICKENS, 2014) luta para fazer um caminho na vida e se casa com Dora, filha de Mr. Spanlow, o titular do curso de advogado em que fez seu aprendizado. Quando Dora morre, Agnes, a filha do advogado Wickfield, com o qual David tinha morado durante seus estudos universitários, está ao seu lado. David vai levar um tempo para perceber aquilo que Dora, morrendo, tinha percebido imediatamente com clareza: o fato de que Agnes estava apaixonada por ele, que secretamente ela sempre o havia sido, e que é junto dela que se realizaria seu destino sentimental.
O quadro da iniciação feminina é bem diferente. Não é de seu próprio amor que Jane Eyre (BRONTË, 2011) deve se aperceber – as mulheres nesse ponto têm uma certeza incomparavelmente superior à dos homens –, mas ela deve descobrir o mistério de um homem. Mr. Rochester, se dando conta de que sua paixão secreta por Jane é compartilhada, a pede em casamento, mas a faustuosa residência de Thornfield Hall guarda um terrível segredo que Jane deverá dolorosamente descobrir no momento mesmo em que se casa: Mr. Rochester já é o marido de uma mulher louca, isolada numa torre, escondida do olhar de todos. O incêndio da propriedade contribuirá para retirar o obstáculo e para oferecer a Jane um Mr. Rochester viúvo, mas a partir de então cego e desprovido do fausto que a havia deslumbrado. O que Jane deve reconhecer, acolher e fazer seu, é o cofre de chumbo de um homem privado da suntuosidade dos semblantes fálicos.
O amor não é o único tema da descoberta adolescente. O jovem Törless (MUSIL, 1996) é aluno do colégio militar muitíssimo exclusivo ao qual o destinou a fortuna de uma família burguesa próspera. Bozena, a prostituta, o faz descobrir a sexualidade sob um aspecto degradado, lhe revelando o que há de obscuro, de confuso, de dissoluto, de destrutivo atrás do mundo diurno, racional e burguês. O que Törless deve descobrir, com dor e sentimento de abandono, é a ausência de qualidade do mundo no qual ele vive. Isso se tornará para Ulrich, o protagonista de O homem sem qualidades (MUSIL, 2015), recusa radical de valores esvaziados de sentido. Depois de ter participado com dois colegas, Reiting e Beineberg, dos serviços infligidos ao fraco Basini, Törless conhece com ele uma experiência erótica. O que ele deve deixar é o mundo burguês ao qual pertence sem perceber sua vacuidade.
Num clima inteiramente diferente, Os indiferentes (MORAVIA, 1988) conta a revelação de um mundo atrás do mundo. Um jovem e sua irmã, Michele e Carla Ardengo são passivos diante da vida, incapazes de experimentar outros sentimentos além do tédio. Eles fingem não ver a ligação que Leo Merumeci tem com a mãe deles, Mariagrazia. Leo, cansado da mãe, busca seduzir a filha, enquanto Michele sofre passivamente os avanços de Lisa, uma amiga de sua mãe. Leo tenta embebedar Carla no dia de seu aniversário de vinte e quatro anos com o objetivo de se aproveitar dela, mas esse propósito fracassa porque a jovem, que não é habituada ao álcool, se sente mal e vomita. Tudo isso se passa num clima de torpor moral no qual Lisa se encarrega de acordar Michele lhe mostrando a relação entre Leo e sua irmã. Michele tenta vingar a honra da família: ele atira em Leo com uma arma que se esqueceu de carregar, se condenando a um destino de perdedor. Trata-se aqui, também, de ver a duplicidade e a hipocrisia do mundo convencional no qual os jovens estão aprisionados. Entretanto, nesse caso, os protagonistas não conseguem ultrapassar a prova e atravessar o limiar: a pistola do irmão emperra e sua irmã aceita se casar com Leo, um casamento sem amor que lhe assegurará a continuidade e o bem estar de sua vida burguesa.
Os Ritos De Iniciação Tribal
A descoberta de um mundo atrás do mundo – além da descoberta da sexualidade e seu lugar na sociedade – constitui também a substância dos ritos de iniciação que assinam a saída da infância nas sociedades primitivas, com a diferença que implica a dimensão do sagrado. Os ritos de iniciação tribal introduzem de maneira estritamente codificada o jovem na experiência, o que o romance de formação deixa para contingências mais diversas.
Com uma diferença importante nas formas, vemos que a problemática é análoga: é necessário atravessar o limiar das aparências para ir em direção a uma verdade que não se mostra imediatamente. Nos ritos de iniciação tribal, trata-se de aceder ao conhecimento das relações místicas entre a tribo e os seres sobrenaturais que estão na origem da criação (ELIADE, 1976). Isso passa pela aprendizagem de comportamentos, de técnicas e de instituições que pertencem ao mundo adulto, ao mesmo tempo em que o acesso ao conhecimento dos mitos, das tradições sagradas da tribo, dos nomes dos deuses, da história e das façanhas deles. Sair da infância significa aprender como as coisas vieram ao ser, e ao mesmo tempo o que funda os comportamentos humanos, as instituições sociais e culturais. Aceder ao fundamento significa remontar às origens onde tudo começou, num tempo mítico.
A presença do ritual nas sociedades tribais e sua ausência em nosso mundo tem uma significação precisa. No mundo moderno, não haveria lugar para um ritual porque a descoberta do mundo atrás do mundo se faz de maneira progressiva, numa época em que o homem se considera autorizado a continuar e aperfeiçoar indefinidamente o dado inicial, em busca do novo. Nas sociedades arcaicas prevalece muito mais o contrário: projetar o novo num tempo primordial fazia retorno ao horizonte atemporal das origens.
No romance de J. Conrad, o contraste entre o antigo e o novo é particularmente evidente. Aí a iniciação concerne à tomada de responsabilidades que implica o comando e o comando deve ser disputado com o velho capitão Hamilton. O jovem se opõe ao antigo, o antigo é apresentado como sem recursos – ele nunca consegue pagar seu aluguel – e reivindica os aspectos sobre os quais o autor faz incidir um sopro de ironia, nos sugerindo que suas pretensões são, se não abusivas, pelo menos fora de propósito. O início do diálogo com o capitão Giles parece creditar a suspeita do jovem de que aquele que nós consideraremos, na sequência, como um velho sábio, poderia bem ser, ao contrário, um velho parvo.
No mundo dessacralizado, o que é velho ou mesmo antigo não prevalece de forma alguma sobre o que é atual; ele está, pelo contrário, submetido a um imperativo de renovação. Nas sociedades arcaicas, o acesso à responsabilidade e o fim da ignorância supõem, ao contrário, a morte iniciática da criança para que um homem novo seja forjado no molde do tempo original, um homem que terá tomado sobre si o peso da tradição. O velho mundo é aniquilado por um retorno simbólico ao caos primordial, não para avançar em direção a um mundo novo, mas para restabelecer o mundo ao seu começo, ali onde as coisas chegaram pela primeira vez. Os gestos e as operações que se desenrolam no curso da iniciação são de fato a repetição de modelos exemplares, são os mesmos gestos e as mesmas operações que aquelas realizadas pelos pais fundadores.
Num outro plano, a sexualidade que para Törless se revela na decadência e se apresenta como uma força empurrando-o para recusar o mundo no qual nasceu, participa, ao contrário, nas sociedades arcaicas, da espera do sagrado. Mircea Eliade destaca a aparente contradição presente nas culturas nas quais a virgindade é particularmente valorizada ao mesmo tempo que os pais da jovem não apenas toleram, mas encorajam os encontros com os rapazes. Não se trata, no entanto, simplesmente de liberdade pré-matrimonial ou de costumes dissolutos, mas da revelação de uma sacralidade da mulher que toca às fontes da vida e da fecundidade. Os encontros pré-conjugais das jovens não têm em si um caráter errático, mas acima de tudo ritual: elas participam mais de um mistério sagrado do que são fonte de prazeres terrestres.
Desencantamento
Em sua intervenção no congresso de Nápoles em junho de 2009 sobre o tema Variações sexuais e realidade do inconsciente, Domenico Cosenza (2009) se pergunta muito justamente como, na época contemporânea, se realiza o encontro com esse mundo atrás do mundo quando faltam os ideais reguladores fortes, permitindo estruturar o momento de atravessamento do limiar da adolescência à luz da verdade desalojada de seu lugar central.
Nos romances dos séculos XIX e XX, a descoberta da verdade é acompanhada de efeitos de desidealização, de queda das aparências, atrás das quais se revela uma realidade degradada, ou imoral, ou uma melancolia devoradora, como em A ilha de Arturo (MORANTE, 2003), uma das obras primas insuperáveis do gênero.
Wilhelm – o pai de Arturo, um mito para seu filho, que sempre imaginou suas ausências como maravilhosas viagens pelo mundo, lhe dando aos olhos do filho a dimensão de um herói sem igual – se revela no final do romance não ser nada além de um pobre homem, bode expiatório de todos, e cujas grandes viagens nunca foram mais longe do que os arredores de Nápoles. Arturo embarca então e se afasta de Procida sem nunca se virar para trás: enquanto a ilha se torna cada vez menor na medida em que o navio se afasta, ele deixa sua infância para trás com decepção e uma nostalgia infinita.
A separação adolescente coincide, nesse caso, com o desvelamento, com uma verdade dolorosa ou despojada, com um desencantamento que é o contrário da descoberta do sagrado e da dimensão espiritual da vida que acontece nas sociedades arcaicas. Devemos então nos resignar a esse empobrecimento dos sonhos, a essa degradação dos ideais, a essa perda de imaginação como preço a ser pago e porta de entrada na idade adulta, um empobrecimento nostálgico que deixa como única alternativa um conformismo assentado nos imperativos pragmáticos da riqueza material?
A Queda Dos Semblantes
A literatura moderna propõe outra abordagem do atravessamento do limiar conduzindo da leveza aturdida da infância à responsabilidade adulta: é a imagem da inversão que se encontra na conclusão de um dos textos mais ricos e densos da literatura do século XIX, um livro que certamente não falta na biblioteca de nenhuma criança e que vale a pena ser percorrido, mesmo na idade adulta: As aventuras de Pinóquio (COLLODI, 2002). Saído do País dos Brinquedos, Pinóquio é devorado pelo Tubarão (na versão de Walt Disney é uma baleia particularmente agressiva, talvez uma evocação da potência sugestiva que Moby Dick, encarnação da essência do mal, exerce sobre o imaginário americano). Na barriga do Tubarão, Pinóquio encontra Gepeto, aliás muito frágil para conduzir seus projetos de fuga. Pinóquio sobrevive levando Gepeto em seus ombros e, com a ajuda de um atum, nada até a margem. Essa inversão de posição, na qual o filho carrega o pai – tendo como pano de fundo Eneias carregando Anquises – equivale a salvar o pai. A criança que foi sustentada por seu pai, agora o ajuda. É apenas depois dessa inversão entre o acima e o abaixo, entre o salvador e o salvo, que o boneco se transforma em criatura de carne e osso. Aí nada de desilusão nem de nostalgia, mas muito mais uma reconciliação. Não é a revelação da verdade de um mundo atrás do mundo, mas um encontro com o real, com o risco de ser engolido – o tubarão é uma representação genial disso – e com a necessidade de encontrar uma solução.
Pinóquio, como exemplo de passagem do limiar da adolescência, segue sem dúvida uma via mais próxima daquela que Lacan sugere em seu comentário de O despertar da primavera (WEDEKIND, 2008), texto banhado numa sexualidade mais crua, e que nos dá elementos para captar as coisas nessa perspectiva. Lacan (2003) indica que o que se trata de desvelar não é um mundo atrás do mundo, mas o real da ausência de relação sexual. O que se revela com a queda dos semblantes é que não há relação sexual, e com o real não se trata de buscar uma via de adaptação. Não nos adaptamos ao real, diz Lacan (2005), no máximo nos habituamos com ele. Os adolescentes representados por Wedekind em O despertar da primavera, Wendla, Moritz, Melchior, descobrem a brutalidade do sexo, a hipocrisia burguesa dos adultos, o fracasso, a vergonha. Nisso eles são como os adolescentes do romance de formação e devem rasgar o véu de uma responsabilidade fictícia e intolerante. Os dois primeiros sucumbem. Wendla morre logo depois de um aborto mal praticado. Moritz se suicida para não revelar a seus pais seu fracasso escolar. Melchior é salvo, ele que, tendo encontrado seu amigo suicidado no cemitério e depois que buscou levá-lo consigo para a tumba, escolhe seguir uma enigmática figura de Homem Mascarado, no qual Lacan reconhece a expressão do semblante por excelência.
Melchior: Qui êtes-vous? Qui êtes-vous? Je ne peux me confier à un homme que je ne connais pas.
L’homme masqué: Tu n’apprendras pas à me connaître à moins de te confier à moi.
Melchior: Croyez-vous?
L’homme masqué: C’est ainsi! D’ailleurs tu n’as plus de choix.
Melchior: Je peux encore à tout moment tendre la main à mon ami.
L’homme masqué: Ton ami est um charlatan. Nul ne sourit qui n’a plus qu’un sou vaillant em poche. L’humoriste sublime est de toute la création la créature la plus pitoyable, la plus déplorable[3].
As aparências burguesas caíram, sua duplicidade, sua afetação, suas imposturas são desmascaradas e, até aí, o percurso é o mesmo que em Törless ou em Os indiferentes. Mas não há o gesto de recusa virando as costas à dissimulação, como em Törless, ou o compromisso conformista, como em Os indiferentes. É a escolha de seguir apesar de tudo o semblante, que aqui o Homem Mascarado encarna. Em outros termos: não há necessidade de acreditar no semblante para segui-lo. O que Carlo Collodi representa com sua fábula burlesca, Wedekind mostra de maneira dramática, mas, em um caso como no outro, trata-se de dizer sim ao pai, de salvá-lo da queda à qual ele seria condenado se ele retirasse sua máscara, refutando toda fé nos semblantes.
Reunamos Para Concluir Os Pontos Que Examinamos:
1 – A adolescência, que na tradição psicanalítica pós-freudiana foi considerada uma fase, um tempo de maturação visando à adaptação, pode ser considerada mais como um momento de escansão quando se apoia no texto freudiano: ela é o limiar entre uma situação estática e a abertura do possível. Isso faz da adolescência o caso particular de uma eventualidade mais geral. Ficar apaixonado, por exemplo, em qualquer idade que seja, sempre tem no fundo um caráter adolescente, a partir do momento em que esse novo amor reabre um campo de possibilidades que a rotina da vida se encarrega em geral de fechar.
2 – Essa passagem do estático ao possível é codificada de maneira ritual nas sociedades arcaicas como movimento, conduzindo de uma vida por natureza irresponsável – assim é considerada a infância – a uma vida que assume a cultura da tribo e, portanto, a uma vida que tem um sentido. O acesso ao sentido vem da participação no tempo dos começos, a revelação do original sagrado, a iniciação em um mundo mítico escondido atrás do mundo de todos os dias. O mundo tem sentido porque há um mundo invisível atrás do visível, que constitui seu fundamento e seu princípio. O limiar da adolescência desemboca, portanto, na obtenção de uma vida espiritual como suplemento da vida natural que permite a integração responsável do indivíduo na comunidade da qual, a partir de então, ele conhece e compartilha os valores.
3 – Num mundo dessacralizado, a revelação iniciática abre, ao contrário, para o vazio, a pobreza, a degradação, a enganação que se mantém atrás da aparência do mundo visível. Quando o sagrado não tem mais função de organizar a vida da comunidade, fazer cair o véu das aparências leva a desmascarar a mentira, a desmistificar. O romance de formação apresenta assim a experiência da adolescência como desencantamento, isto é, como o contrário do que ela é nas sociedades arcaicas. Abrir os olhos pode também querer dizer descobrir o amor, como para David Copperfield, mas isso ocorre depois de uma travessia que despoja a infância de todo encanto, fazendo-a passar pelo embrutecimento de um trabalho que é pura exploração e por inumeráveis intimidações que mostram a realidade de um mundo atrás do mundo que é sua pura negação. David deve, além disso, desmascarar a hipocrisia repugnante de Uriah Heep, sua falsa humildade, sua obsequiosidade traiçoeira, seus desejos ignóbeis que são o equivalente da perversidade mórbida presente em Törless. Atravessar o limiar da adolescência num mundo dessacralizado significa despojar a infância de sua magia e de sua inocência e vê-la desaparecer com nostalgia como Procida em A ilha de Arturo.
4 – Na perspectiva que podemos destacar a partir de Lacan, a queda dos semblantes não corresponde à revelação de um mundo atrás do mundo, ao florescer de uma verdade escondida que faz decair o que é manifesto. O véu cai deixando captar o real, que não é um mundo porque ele não é todo. Não se entra assim numa lógica que opõe o verdadeiro e o falso, porque o semblante não é reduzido ao reino da mentira e pode guardar uma função. A queda do semblante, da qual advém o encontro com o real, é, sobretudo, o tempo em que pode se verificar uma inversão do que não cessa de não se escrever ao que cessa de não se escrever – se pensamos nisso, é a mesma inversão que se realiza para Pinóquio quando a fuga impossível se torna possível – e é a abertura sobre o possível que advém com a adolescência.
É interessante observar também que frequentemente, na clínica, quando se procura encontrar o momento constitutivo dos sintomas ou do mal-estar do qual o paciente se queixa, se não fatores traumáticos ou solução de continuidade em sua vida, remonta-se sempre ao tempo da adolescência. O momento constitutivo do sintoma é a adolescência porque é um tempo no qual o encontro com o real como abertura do possível deixa um traço. É à luz disso que devemos considerar o fato de que as lembranças encobridoras são o equivalente freudiano do sintoma, o traço do atravessamento do limiar, com o qual o sujeito poderá ou não se identificar. Em outros termos: ele poderá gozar ou sofrer dele.