Editorial Almanaque nº17

LUDMILLA FERES FARIA

Com vocês, o Almanaque 18, cujo tema “As novas configurações familiares”, com certeza, será de muito valor para nossos trabalhos rumo ao ENAPOL VIII – “Assuntos de família: seus enredos na prática”.

Em Trilhamentos contamos com a amável contribuição de Rose-Paule Vinciguerra, com o texto “A psicanálise em relação às famílias”, no qual a autora parte dos novos modelos de família, chamadas hipermodernas, para questionar se os efeitos da igualdade tendem a produzir uma indiferenciação sexual. Essa questão vai de encontro ao debate iniciado em nossa comunidade analítica rumo à XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – MG: “Inconsciente e diferença sexual, o que há de novo?”

Ainda em Trilhamentos, temos os textos de François Ansermet, “Avesso da Procriação”, e de Fabian Fajnwaks, “A família entre a ciência e a lei”. Os dois autores, cada um a seu modo, debatem os impasses subjetivos advindos do progresso da ciência e do discurso jurídico. Os casos clínicos apresentados demonstram a forma como a psicanálise pode contribuir para que os sujeitos inventem soluções para responder ao enigma de sua vinda ao mundo.

A rubrica Entrevista está imperdível! Não deixem de ler o que Marcia Tiburi, autora do livro “Uma fuga perfeita é sempre sem volta”, vai nos contar, de forma inédita, sobre o que constitui uma família. Sua afirmativa de que “é o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” é um fio condutor para o desdobramento de uma conversa que os instigará do início ao fim.

Na entrevista com Sérgio Laia, “O inconsciente e a família”, vocês verão a forma contundente com que o autor responde sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Recorrendo, em especial, ao texto de Lacan “Nota sobre a criança”, ele dará destaque “à função da psicanálise de amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias”. Agradecemos a Marcia Tiburi e a Sérgio Laia pela inestimável contribuição.

Em Incursões temos textos das colegas de Minas Gerais trabalhados nos espaços de investigação do IPSM-MG e da EBP-MG. Mônica Campos e Maria José Gontijo Salum abordam, através de estudos de casos e do filme “De cabeça erguida”, respectivamente, as possíveis conexões entre a psicanálise e o Direito e as saídas daí advindas. Já Márcia Rosa e Laura Félix Reis Maciel partem do postulado de Jacques-Alain Miller, segundo o qual a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais para questionar as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. O texto de Márcia e Laura nos serve, também, como uma guia de leitura da entrevista de Marcia Tiburi. Afinal, o que organiza uma família?

Em Encontros agrupamos as questões sobre a família em torno do vivo da clínica. Os autores Patrick Monribot, com “Esse X”, e Yves Depelsenaire, com “Grandeza e miséria de um nome”, apresentam a forma como o tratamento analítico possibilitou outros arranjos para os sujeitos lidarem com a herança familiar. Jean-Daniel Matet, em “Avatares e atualidade do complexo de castração”, faz uma releitura do conceito lacaniano “complexo de intrusão”. Vale a pena conferir!

Finalizamos este número em De uma nova geração, com duas ótimas contribuições das alunas do IPSM-MG: Ana Helena Souza, com o texto “Mentira e Ficção: o Discurso da Histérica, a Cura pela Fala e o Indizível do Sinthoma”, no qual recorre a uma obra de Samuel Beckett para investigar a relação do discurso da histérica com a mentira e a ficção, e o texto de Raquel Martins de Assis, que em “O amor pelo pai na histeria” retoma o paradigmático caso Dora de Freud e, a partir da leitura de Lacan, demonstra como o tema da armadura do amor ao pai se apresenta como uma importante faceta da histeria.

Agradecemos aos colegas que encaminharam seus textos, aos tradutores e aos revisores, sem os quais nosso trabalho seria impossível, assim como à equipe do Almanaque que, de maneira decidida, contribuiu para que este número fosse ao ar de tal forma, que pôde ser mais leve.

Desejamos que os leitores encontrem, neste número, pontos de pesquisa e de interesse que deságuem num debate profícuo dentro do nosso campo de trabalho.

Deixo com vocês o Almanaque 18. Bom trabalho!

Ludmilla Feres Faria
Diretora de Publicação



Almanaque On-Line Entrevista – MARIA ISABEL M. DE ALMEIDA

MARIA ISABEL M. DE ALMEIDA
GIULIA PUNTEL

Habitar o trajeto: o paradoxo do nomadismo

 

Almanaque: Poderia nos falar um pouco sobre os seus últimos trabalhos? 

 

 

Maria Isabel: Concluímos uma pesquisa com jovens que se chama “Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas: uma reflexão comparativa do recurso às drogas no contexto da contracultura e nas cenas eletrônicas contemporâneas”, que foi uma pesquisa que nós fizemos aqui no nosso centro de pesquisas (Cesap) na Universidade Candido Mendes, durante quatro anos, trabalhando essa articulação entre cenas eletrônicas e substâncias sintéticas. E, para isso, frequentamos as raves. Em especial, pesquisamos a relação entre a música eletrônica e o uso do ecstasy. Também fizemos, no âmbito dessa mesma pesquisa, Fernanda Eugênio[i] e eu, outro trabalho sobre essa questão das drogas. Ou seja, nós revisitamos um grupo especifico, que nos anos 70 foi entrevistado por Gilberto Velho e deu origem a seu livro Nobres & Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia[ii]. Essas pessoas tinham, na época, uns trinta anos, e nós voltamos a entrevistá-las, agora em 2000, quando elas têm por volta de sessenta, sessenta e poucos anos. Queríamos saber a relação delas, no passado, com as drogas, para compararmos com a juventude de hoje.

 

Almanaque: Na época consumia-se o que?

Maria Isabel: Na época eles consumiam, sobretudo, cocaína e maconha e realizavam as viagens lisérgicas, faziam uso de ácido. Em seguida, fizemos a pesquisa que deu origem ao livro Noites Nômades[iii]. Estávamos perseguindo essa ideia da relação entre subjetividade e espaço, o subtítulo é justamente “espaços e subjetividades nas culturas jovens contemporâneas”. Todas as nossas pesquisas são atravessadas por essa ideia da etnografia, quer dizer, de estar lá, de acompanhar, de não se restringir a entrevistas, mas viver com eles aquela situação. Na época das drogas foi uma loucura, porque eu trocava a noite pelo dia, eu chegava nas festas por volta de meia-noite mais ou menos e saía no dia seguinte por volta das 11 da manhã, ficando acordada o tempo todo. No caso do Noites Nômades, tinha que acompanhar os circuitos pela night. A pesquisa começava na loja de conveniência e depois se dirigia para os espaços de lazer, para as boates. Aquele era um momento em que a tecnologia estava começando com muita força, então havia toda uma capacidade deles usarem, lançarem mão da tecnologia para mudarem de espaço o tempo todo. Com o celular como fonte básica dessa tecnologia, eles ligavam para as galeras de outros bairros perguntando se as coisas lá estavam “bombando”. Tinham essa capacidade de esvaziar os espaços em segundos e também de ressemantizar o sentido dos espaços. Por exemplo, a porta, além de ser um lugar que une o dentro ao fora, também se torna um “point” onde eles ficavam e ali estabeleciam toda uma rede de sociabilidade.

 

Almanaque: Um ponto de passagem?

Maria Isabel: Além da passagem, um lugar onde eles se fincavam, onde eles se estabeleciam, não entravam, nem saíam, e ali virava um “point” de sociabilidade. As portas como espaços muito mais de fixação, quer dizer, toda uma capacidade de deslocamento e um tempo de transformar o deslocamento numa espécie de residência, isto é, eles habitam o trajeto. Esse habitar o trajeto também se reflete nas práticas afetivas, no “ficar”, por exemplo.

 

Almanaque: Em seu livro Noites Nômades, você apresenta esse paradoxo a partir de uma frase que nos interessou muito: “o nomadismo não se contrapõe à territorialidade”.

Maria Isabel: É uma ideia de Deleuze, para quem o nômade é aquele que não se desloca, ao contrário, está sempre habitando o trajeto, se reterritorializando na desterritorialização, quer dizer, ele se reterritorializa na desterritorialização. Então, no fundo, o nômade, paradoxalmente, é aquele que não se mexe.

 

Almanaque: Você pensa que podemos dizer que existe essa mesma espécie de nomadismo na escolha sexual? Temos visto muitos jovens que afirmam que gostam de ficar tanto com meninos quanto com meninas.

Maria Isabel: Temos sim relações mais lábeis e mais plásticas, mais no campo das meninas do que dos meninos. No campo das meninas, onde havia um lacre muito menor em relação ao “sou gay” e muito maior em “estou gay”, o “estou” está no lugar do “sou”. No caso dos meninos, talvez até por conta da sociedade brasileira, havia uma ideia de uma cristalização maior. Pela questão do machismo, para o menino que é gay voltar à condição de hetero é sempre uma coisa mais difícil, no sentido de como ele é pensado e agido no seu grupo. Com as meninas percebo uma capacidade, uma suavidade, maior nesse traslado, nessa mudança. No caso deles, percebemos menos. No sentido da subjetividade, acho que tudo converge para uma diminuição da dimensão entitária do ser, do ente. Temos uma significativa rarefação da ideia de unidade, da identidade una, indivisível, substancial, encapsulada, mas, ao contrário, temos uma porosidade muito maior. Não temos mais como carimbar a identidade “eu dançarina de tango”, “eu professora de matemática”, ou “eu gay”. Gay é uma das facetas que constituem o que eu sou.

 

Almanaque: A partir dessa labilidade nas relações e nos espaços que você destaca, como podemos pensar a relação entre dependência e autonomia que também encontramos nos jovens de hoje?

Maria Isabel: Os jovens são muito autônomos e não independentes, ou seja, isso caracteriza uma fronteira, um divisor de águas muito grande em relação à geração jovem contracultural, ou à geração que foi jovem nos anos 70, para a qual essa ideia de autonomia só era possível – até por uma questão de ênfase muito maior na ideologia, na visão de mundo que informava aqueles valores –, só se daria inevitavelmente, com a conquista da independência. Hoje você vê jovens absolutamente autônomos, donos das suas vidas, conhecendo tudo, dominando a tecnologia, até ensinando aos pais sobre esse mundo da tecnologia e, ao mesmo tempo, absolutamente retidos, sedentarizados, presos à questão financeira, numa total dependência. Então, hoje, esses dois aspectos podem ser combinados. Se você pensar em cinquenta anos atrás, não seria possível de se combinar, porque você só teria o estatuto de autonomia se fosse independente, se saísse de casa.

 

Uso das drogas: ruptura ou empresários de si mesmo?

 

Almanaque: A relação dos jovens com as drogas também mudou, desde os anos 70?

Maria Isabel: Essa diferença entre as gerações aparece muito clara no uso das drogas. É uma porta de entrada para entender a subjetividade, o contraste entre a geração que consumiu drogas nos anos 70, uma geração para quem a droga gerava um emburacamento definitivo. As pessoas muitas vezes tinham que parar de trabalhar, não conseguiam mais estudar – era um pouco aquela ideia da viagem sem volta, o tipo de visão escapista do mundo. Na pesquisa em que fizemos, vários entrevistados diziam ouvir o choro do filho e que era desesperador, porque eles não podiam fazer nada. Isso revela um nítido contraste com a geração dos anos 2000 que consumiu drogas, mas numa perspectiva de continuidade da vida e não de ruptura, do não emburacamento.

 

Almanaque: Por quê?

Maria Isabel: Porque eles, como disse um informante, de quem até hoje me lembro, numa rave, lá em Pedra de Guaratiba: “Ah! Olha, isso aqui que vocês estão vendo, essa rave, a diferença disso aqui para Woodstock é que na segunda-feira eu tenho que estar lá engomadinho no trabalho”. Ou seja, ele tem que manter as duas frentes. Então eles têm uma expertise imensa de como tomar a droga, como contracenar e dosar com a quantidade de água, como fazer a relação entre a cápsula do ecstasy e seu peso. Eles são pequenos empresários de si, possuem uma facilidade de administrar a conduta. É claro que muitas vezes acontece de baixar no hospital, mas possuem um padrão mais regular de conduta, que é contrário ao da geração dos anos 70, cujo consumo de drogas tinha um prazo de validade. Essa geração atual, na manhã de segunda-feira deve estar na faculdade, por isso não vai tomar a dose maior do ecstasy no domingo, vai tomar no sábado. Domingo eles vão precisar dormir bastante e não vão deixar de se hidratar. É muito diferente. É o grande divisor de águas entre o escape, o evadir-se, o sair daquela realidade. E hoje, a droga da presença, da “você está ali como jamais esteve”, como nos disse um desses jovens, é a droga que presentifica inteiramente a realidade do sujeito. Nessa hora eles não estão se evadindo de nada, nem embarcando em uma viagem sem volta, nem se opondo à realidade. Inclusive, essa dimensão de oposição, de antagonismo, é muito mais branda do que a ideia genuína da oposição que caracteriza o sentido de resistência predominante nos anos 70.

 

Almanaque: Pode-se perceber tal mudança também no que diz respeito ao envolvimento político dos jovens hoje? É menos revolucionário? Mais adaptado?

Maria Isabel: Ah, sim, com certeza. A categoria do desafio, da resistência, da oposição, se abrandou muito, porque a ideia de negociação e de composição com determinadas realidades é muito mais norteadora da subjetividade desses jovens. Por exemplo, nas realidades ligadas hoje à sustentabilidade, à ecologia, eles não pensam em parar de consumir, mas vão consumir menos, com mais noção, com mais regramento, sabendo o que vão consumir. É uma ideia muito próxima à ideia de resiliência, e não da resistência. Tudo é muito mais composto, adaptado, negociado. Não é mais a ideia de se tomar um caminho ou outro, são caminhos mais associados, adicionados, do que essa perspectiva matricial da contracultura, que é: ou você realmente é parceiro da luta armada ou você é um mauricinho preocupado em ganhar dinheiro, jogar na bolsa e, no final do mês, só pensar em mercado de capitais. Acho que isso aí realmente alterou muito as mentalidades. Um caminho como esse, como a luta armada, implicava a absoluta exclusão de todos os outros, e acho que hoje esse jovem já tem toda uma capacidade de compor várias trajetórias, sem que elas impliquem em contradição.

 

“Ver a escolha com olhos menos cativos”

 

Almanaque: Então, como enxergar a realidade dos jovens hoje com novas lentes em relação e essa dimensão da escolha?

Maria Isabel: É preciso não ver a escolha desse imaginário dos anos 60 com olhos ainda muito cativos, ou seja, enxergar a realidade sem essa contaminação. Para enxergar a realidade atual desses jovens, precisamos nos desfazer desses mapas que orientaram a nossa geração, senão a gente realmente não vê. Tem muitos autores que encaram o contemporâneo muito pelas lentes de uma espécie de nostalgia do que foi o ideal, os anos 60. A própria ideia do indivíduo em si, como ente, é uma coisa que hoje se desfaz. A gente vê inclusive essa ideia do “estou” versus o “ser”, do “estar” versus o “ser”, que imprime uma marca muito maior na arquitetura subjetiva hoje. Acho que é uma problematização mais rarefeita, mais simplificada. Não há um excesso de problematização e reflexividade sobre si, sobre os destinos. No lugar de uma carga narrativa, descritiva, temos uma espécie de comunicação fática, apenas algo que nos une ali naquele momento, que nos sutura. Uma interjeição ou outra, mas que não é realmente aquilo que a gente entenderia como a formação mesmo de uma comunicação baseada na ideia de uma categoria discursiva, tal qual era recorrente décadas atrás.

 

Almanaque: Hoje, no congresso da AMP, Viveiros de Castro nos contou que, se desejarmos nos aproximar de uma tribo indígena para aprendermos sua língua, após um período inicial, os índios vão recomendar que comamos a comida deles. Mais três meses, e eles dirão: “comam nossas mulheres”. Ainda assim, três meses depois, recomendarão o uso de suas drogas. É como se eles dissessem que não se pode aprender a língua sem colocar o corpo em cena. Para aprender a língua, a observação é insuficiente, é preciso ser “um dos nossos”, entrar com o corpo.

Maria Isabel: É! E por isso um pouco essa ideia de um trabalho de pesquisa em antropologia, muito menos cativo do que essa ideia de você ir lá e entrevistar, pra depois dizer para o jovem quem ele é. Quem é você pra dizer a ele quem ele é ou explicar o que ele faz?! A gente tenta uma imersão muito maior na dimensão relacional daquele contato, realmente.

 

Almanaque: Como foi realizada a pesquisa em festas raves? O que estava em jogo?

Maria Isabel: Era uma pesquisa de campo, uma etnografia. Eu não ia entrevistar esses jovens nas suas casas, queria entrevistá-los em ato. Queria vê-los consumindo drogas, vê-los em estado ou não de mobilização pelas drogas, vê-los dançando com a música. Nesse sentido pude ver, por exemplo, muitos que prescindiam da droga para dançar ou até para entrar em suposto êxtase, como eles diziam. A música em si já atuava nesse sentido. Outros tomavam a droga mas faziam vários desenhos performáticos com o corpo. Um grupo fazia uma dança que era chamada “almôndegas”, um tipo de exercício em que todos ficavam em círculo, de braços dados, e faziam movimentos quase que de sístoles e diástoles; se recolhiam todos e, depois, se abriam, como se fosse uma flor que fechava e abria. Depois eles dormiam muito. Tinha o momento que eles chamavam de “chill out”[iv], para descansar até a hora de ver um DJ específico que eles queriam.

 

Um novo ritmo: ovos com bacon

 

Almanaque: Atualmente qual pesquisa você está fazendo?

Maria Isabel: A última foi sobre a questão da criatividade, da primeira experiência profissional. Trabalhei com dois grandes grupos de jovens, jovens ligados a grupos basicamente de profissões mais executivas e empresariais, e jovens mais ligados ao lado lúdico, artístico: jovens que trabalhavam com arte, com cinema, com literatura. Percebe-se uma nova maneira de trabalhar desses jovens. Não existem mais fronteiras muito nítidas entre dia de semana e fim de semana, entre dia e noite, entre casa e trabalho. Percebe-se um movimento de contaminação recíproca muito grande, um profundo entrecruzamento de criatividade e profissionalização, ou seja, a ideia de profissionalização da criatividade e criativização da profissão. Ou seja, os jovens cuja opção profissional se alocava nos universos mais hard, mais duros, ligados ao mercado, aos bancos, às profissões executivas, tinham que, efetivamente, ser criativos para funcionarem bem, e os outros, os artistas, tinham que se profissionalizar. Uma irrigação mútua dos dois territórios. Interessante que vimos que a colaboração e o compartilhamento são circunstâncias muito mais fortes entre os jovens ligados a profissões executivas do que entre os artistas que ficam muito mais subservientes ao núcleo do autor, a quem é o autor. Por exemplo, os jovens que trabalham nas incubadoras científicas, as incubadoras de projetos, são muito mais capazes de descentralizar a autoria. Nos jovens do mundo artístico, a gente percebeu muito mais um atrelamento à coisa de “quem deu a ideia”, “quem é o autor”, “é minha e ninguém tasca”, ao eu, “fui eu que bolei isso”, “eu que inventei”. Sendo que a própria invenção hoje é uma coisa cada vez mais remota, porque tudo na sociedade contribui para algo ser criado. Não existe mais essa capacidade asséptica de dizer “aquilo foi exclusivamente feito ou pensado por mim”, o tempo todo a tecnologia te atravessa. Essa pesquisa está no livro que coordenei junto com um grande especialista da juventude em Portugal, José Machado Pais[v]. Fernanda Eugênio e eu escrevemos o artigo “Criatividade situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas práticas profissionais contemporâneas”[vi], no qual apresentamos uma discussão sobre tempo e espaço, essa coisa do estresse atual dos jovens, isso de eles procurarem uma equação ideal entre o lúdico e o trabalho. Uma jovem fala que ela está fazendo um doutorado em relações internacionais, mas que era também DJ e poeta. Toda essa coisa também da multiplicidade, da geração slash (“barra”): Poeta/videomaker/bailarina/pintora. Ela diz que em algumas circunstâncias da vida, trabalhar é como fazer ovos com bacon, porque tem vezes em que basta ser galinha, ou seja, a galinha põe o ovo e pronto. Isso equivale a um tipo de trabalho mais suave, no qual você tem o controle do seu processo e do seu ritmo, mas tem outras horas em que você é porco, tem que dar tudo de si, tem que entrar com tudo, como o porco, que entra com sua vida. Para fazer o bacon, ele tem que morrer. Isso demonstra como é que eles orquestram e graduam suas vidas em termos do esforço que aplicam no trabalho. Tudo isso é pensado, medido, muito diferente da ideia de “vai com tudo”, típica da contracultura.

 

Almanaque: Mas não tem, por outro lado, um mandato superegoico sobre esses jovens, de que eles têm que ter sucesso, têm que dar certo, têm que ganhar dinheiro?

Maria Isabel: Esse binarismo implacável entre o “winner” e o “looser” tem sido muito repensado. Peter Sloterdijk, autor da sociologia, da filosofia, define a modernidade como um processo de mobilização infinita, quer dizer, do progresso, da produção. Esse processo está ligado a uma relação ininterrupta com o tempo, à impossibilidade da “paragem”, um aceleracionismo permanente. Na linha contrária a essa da mobilização, temos o desmobilizar, ou seja, gerar intervalos, parar, tomar distância. Nós pesquisamos muito esses retiros de silêncio, que estão agora no auge. Jovens que estão optando por retiros de silêncio em áreas absolutamente reservadas ficam 10 dias inteiros em silêncio, fazem meditação e uma revisão de tudo ligado ao consumo, ao excesso.

 

Almanaque: Qual a justificativa para esses retiros? O que os jovens procuram?

Maria Isabel: Muitos vão pra organizar a vida, outros vão pra dar uma parada, um outro diz que foi porque terminou com a namorada, ou porque foi a um carnaval muito intenso e pirou, precisava descansar. São muitas demandas, muito adaptadas aos cotidianos de cada um. O que se destaca é essa ideia de baixar, de gerar um intervalo, de menorizar, de diminuir. A ideia de ganhar distância em relação à realidade. Estou preparando um livro sobre essa pesquisa das desmobilizações – que não é a ausência de mobilização, mas é essa ideia de contraponto a uma mobilização infinita. Eu trabalhei muito com retiros, foi uma pesquisa muito ligada à internet, sobre inúmero sites que eu coletei de jovens que estão tentando produzir alguma coisa que seja uma contrapartida a essa ideia da aceleração, em todos os níveis. Tem milhões de coisas. Tem o processo do homeschooling – essa ideia de você passar a ensinar ao seu filho em casa –, o questionamento da ideia do ritmo tradicional do ensino, de certa maneira pouco humanizado e muito competitivo; tem a ideia das feiras, nas quais você basicamente troca coisas ou pode pegar coisas sem que haja veiculação pecuniária – mas isso não elimina por completo a ideia da troca; há também as pessoas que hoje conseguem trabalhar viajando e ter um prazer muito maior, porque trocam muitas vezes um local que seria um pago, como um hotel, pela capacidade de cuidar da casa de alguém que viaja. Todas essas permutas, essas trocas. A comida, por exemplo, tem muitas experiências… Em Portugal, uma dessas experiências chama-se “fruta feia”. Frente à desesperança de muita gente com a crise, em relação à sociedade, neste momento, eles têm milhões de iniciativas, em geral de jovens. Essas frutas feias são aquelas que os estabelecimentos não querem, porque são imperfeitas, e então são vendidas pela quinta parte do preço. Essas frutas são tão boas quanto, só que têm defeitos. Vendem então nas praças, e tem um sistema de cooperativa enorme sobre isso. Há ainda a questão das compostagens, que são adubos feitos em casa. Há também as buscas deliberadas de solidão. Não a solidão como uma condição que caiu sobre o indivíduo sem ele querer e ele está totalmente isolado, solitário, mas as solidões deliberadas, não só do retiro de silêncio, mas as mudanças para o campo.

 

Almanaque: De fato há uma diferença entre solidão e isolamento, não é a mesma coisa.

Maria Isabel: Exato, ou a solidão acontecida versus a solidão deliberada.

 

Efeitos políticos dos corpos trepidantes: trabalhar com o que se tem

 

Almanaque: Qual o efeito político dessas práticas?

aria Isabel: Eu acho que é muito político. Hoje, por exemplo, em relação à cartilha e à ideia do queer – acho que passa por aí realmente, até no sentido de que, não sei se chega a ser um rótulo, mas é um rótulo do não rótulo –, nesse movimento você não consegue pegar e dizer: é isso, é trans, é homo, é gay, é não sei o quê. A coisa da Judith Butler e da Beatriz Preciado, as duas autoras que mais trabalham nessa linha. Então eu acho que isso diminui a segregação entre os jovens, sim.

 

Almanaque: Interessante que, diferente de outros autores, você não faz uma leitura pessimista desse momento dos jovens, ao contrário.

Maria Isabel: Ah, sim, completamente diferente de autores como Bauman, por exemplo, que realmente vê que tudo está líquido, nada fica em pé. Realmente, eu acho que são autores que estão presos a certas circunstâncias ideais que eles viveram e em relação a qual tudo hoje parece fenecer ou está ruim, estragou. Uma coisa do pânico moral, um Baudrillard, por exemplo.

 

Almanaque: Você acha que tem uma potência nesse novo? Tem uma invenção em cena?

Maria Isabel: Eu acho, com certeza. Isso é outra coisa. Trabalhar com o que tem, como o “se virar”, não tem mais aquela coisa da carreira, “um dia eu vou conseguir fazer alguma coisa”, etc. Essa noção de escada, de degrau a degrau, até você chegar. Hoje essas coisas não podem, não estão mais funcionando assim, são poucas as carreiras, a ideia de carreira. Eu fui num congresso, há pouco tempo, em Portugal, que era sobre essa questão do crepúsculo, dessa ideia do especialista, daquele que vai de degrau a degrau numa escalada. Hoje você sente que a horizontalização e a capacidade de se virar e de trabalhar com o que está diante de si é muito mais imperiosa do que essa ideia de esperar ou de galgar longas etapas.

 

Almanaque: E quando você fala jovens, qual faixa etária considera?

Maria Isabel: De 20 aos 40. Você não tem mais como se basear no IBGE, de 18 a 24 ou 25, porque realmente implodiu essa questão. Até porque a juventude perde a sua ancoragem cronológica e vira um estado de espírito. Todos querem ser jovens.

 

Almanaque: Podemos dizer que o nomadismo acaba sendo uma ferramenta que pode ser utilizada para ler todas essas práticas dos jovens?

Maria Isabel: Acho que é uma categoria que ajuda, sim. Ajuda na medida em que ela se contrapõe realmente até a visão literal do sedentário, do fixado, do territorializado, e também da hierarquia, mas não é um deslocamento do tipo dos não-lugares, do Marc Augé. Eu acho que há uma ressemantização dos lugares, por exemplo, os “points”. Eles recriam e reconfiguram, na cidade, espaços que, em geral, poderiam ser decodificados de uma forma fixa e tradicional, e que eles atribuem toda uma significação desvinculada às sociabilidades e aos tipos de agregação do momento.

 

Almanaque: Ou seja, esses locais são locais libidinizados, com uma carga de afeto, como você sugeriu, enquanto Marc Augé trabalha espaços sem identidade, como os aeroportos.

Maria Isabel: É, por exemplo, os postos de gasolina, que Augé também cita, é o início do circuito da night jovem, lugar da primeira calibragem, inclusive alcoólica. Era ali que realmente começava o chamado comboio e implicava sempre em atribuir sentido, graça, humor ou diversão a alguma coisa inerte, à qual não havia sido atribuído nenhum sentido, nenhuma significação, e que dependia realmente da interação entre eles. Por exemplo, transformar, de repente, o estacionamento de um hortifrúti em um campo de futebol, à meia-noite, ou ficar na escada de um prédio esperando outros amigos. Isso era o “zoar”, que tem uma dimensão de gratuidade, de transformação e de ocasionalismo muito grande.

 

Almanaque: E como você acha que a linguagem acompanha esse novo modo de se relacionar com o espaço?

Maria Isabel: A linguagem é muito mais rarefeita do que a forma de comunicação tradicional. Hoje ela é muito mais empírica, sensória, performática. Basta ver, por exemplo, a questão do corpo do jovem. Hoje o corpo é muito mais trepidante, ou seja, agitado por todos esses apelos e ao mesmo tempo pela simultaneidade dos estímulos de telefone, de som, de barulho de celular, barulho de televisão, computador. Há uma atenção profundamente descentralizada e que não prejudica a atenção. Uma socióloga argentina, Beatriz Sarlo[vii], diz que “só a curta duração retém a atenção”. Um jovem hoje, com essa trepidação do corpo, é muito difícil de ser visto numa cadeira, mesmo que seja confortável, ou numa poltrona, por duas, três horas, lendo um livro só. É impossível, a motórica corporal dele não permite; é uma agitação, é uma dispersão, é um outro corpo, realmente muito mais voltado para o oposto da metáfora da ampulheta, que vai de cima para baixo, acompanhando um movimento de verticalização da atenção. O que hoje se observa com mais frequência é uma descentralização e um espraiamento muito maior da atenção.

 

Almanaque: Interessante! Perguntamos sobre a linguagem, e você responde com o corpo. Nosso congresso é sobre isso mesmo!

Entrevista realizada em abril 2016, por Bruna Albuquerque e Ludmilla Féres Faria
Transcrição e edição: Bruna Albuquerque, Lisley Braun Toniolo
[i] Fernanda Eugênio – Pós doutora em antropologia e Pesquisadora Associada do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP-UCAM-IUPERJ, Rio de Janeiro). Fernanda Eugênio e Maria Isabel M. de Almeida. Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas : uma relfexão comparativa do recusro às ‘drogas’ no contexto da contracultura e nas cenas eletronicas contemporâneas. In: Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura (Org. Maria Isabel M. Almeida e Santuza Cambraia Naves) . Rio de Janeiro: Editora 7 Letras.
[ii] VELHO, G. Nobres & Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia? Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998.
[iii] ALMEIDA, M. I. M.; TRACY, K. A. Noites Nômades. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003.
[iv] Chill out: termo da língua inglesa que significa “relaxar totalmente”, “esfriar”. Usado pelos jovens para um momento de descanso, esfriar o corpo, relaxar.
[v] José Machado Pais, cientista social e professor universitário português. É licenciado em Economia e doutorado em Sociologia, é Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Professor Catedrático Convidado do ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa. Subdiretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do Senado da Universidade de Lisboa.
[vi] EUGENIO, F. Criatividade Situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas praticas profissionais contemporâneas. In: Criatividade Juventude e novos horizonte profissionais (org. Maria Isabel M. de Almeida e José Machado Pais). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-277, 2012.
[vii] Beatriz Sarlo lecionou literatura argentina na Universidade de Buenos Aires (UBA). Autora de Cenas da vida pós-moderna, intelectuais, arte e viodeocultura na Argentina. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. 2000

Maria Isabel M. De Almeida
Socióloga. Pós-doutora em Sociologia pela Universidade Paris V – René Descartes Professora do departamento de Ciências Sociais da PUC-RJ Coordenadora e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Ucam. Autora, entre outros livros de Noites Nômades( Rocco) e Culturas Jovens -Novos mapas do afeto. ( Jorge Zahar) E-mail: isabelmendes2008@gmail.com



O Manejo Da Transferência Diante Da Demanda Dos Pais

MARINA S. SIMÕES

FOTO: FREDERICO BANDEIRA

 

Analisar uma criança requer ir além de acolher e escutar o sujeito. O trabalho não depende apenas do desejo desse sujeito em trabalhar e do desejo do analista, mas requer a presença dos pais. São eles que procuram o analista, demandando a análise para a criança.

Sabemos que, para que uma análise seja possível, é imprescindível que ocorra transferência. A análise de uma criança requer, também, a transferência com os pais. Nós, enquanto analistas, temos o desafio de criar um laço transferencial com os pais, senão a criança, com o seu sintoma, não chega ao tratamento.

Geralmente são os pais que procuram o analista, demandando a análise da criança por diversos motivos que causam mal-estar: algo da criança que os incomoda, demanda da escola ou, ainda, por indicação de algum médico, parente ou amigo. A primeira demanda é dos pais. Acolhemos essa demanda tomando o cuidado de escutar a singularidade que uma criança desperta no adulto que nos procura.

Cabe ao analista investigar o que levou os pais a procurá-lo e qual é a posição deles diante do sintoma da criança. O analista dá lugar ao saber dos pais, acolhendo o que eles falam, atento à diferenciação entre o sintoma do par parental, o sintoma da mãe, do pai e da criança. Abrem-se aí questões fundamentais: qual é o lugar que a criança ocupa na família, assim como qual é o sintoma que ela ocupa para esse Outro?

Podemos obter algumas dessas respostas por meio das entrevistas com os pais, identificando onde se situa seu sintoma em relação à criança. A presença do desejo dos pais molda o sujeito, e a sua ausência deixa uma marca, que reaparecerá nas formações do inconsciente, incluindo o seu sintoma, que responde a uma falha na estrutura familiar.

A impossibilidade de estabelecer laços transferenciais ocorre quando os pais “não quererem saber” sobre o sintoma do filho. Nesses casos, não há possibilidade de transferência entre pais e analista. Esses pais não questionam, mas demandam respostas, querem que o analista “cure” o seu filho, fazendo com que o sintoma que incomoda desapareça.

Nos casos em que a criança é encaminhada por um terceiro, que pode ser a escola, um médico, um amigo, os pais não questionam, não demandam e, algumas vezes, não estão incomodados com o “problema” que o filho apresenta. Apenas cumprem o papel que lhes foi solicitado. Apostamos, então, na transferência com a criança, para que o tratamento seja possível.

Já nos casos em que os pais querem saber, a transferência não é apenas possível, mas necessária para o trabalho com a criança. Nesses casos, apostamos no inconsciente do pai e/ou da mãe para fazer o laço transferencial. Escutamos cada um do par parental, com o seu sintoma e o seu desejo. Aqui, cabe interpretar, diferente do primeiro caso, em que a transferência não é possível. De acordo com Freud, podemos interpretar apenas quando a transferência já está estabelecida, pois a emergência da transferência significa que há processo inconsciente.

Na relação paciente-analista, o paciente realiza o trabalho. É ele quem produz, entregando o material ao analista, a este cabendo recebê-lo, escutá-lo e, quando possível, interpretá-lo, intervindo enquanto Outro.

De acordo com Lacan (1964), a interpretação não está aberta a todo e qualquer sentido e tampouco toda interpretação é possível. Ela funciona quando toca o inconsciente, o que é complexo e exige cautela do analista. A interpretação não visa tanto ao sentido; visa mais a reduzir os significantes ao “não-senso”.

Os pais chegam ao psicanalista supondo que este saiba algo do sintoma do seu filho e pedem uma resposta. O analista ocupa o lugar de sujeito suposto saber, que é um mecanismo da transferência fundamental para a análise. O sujeito precisa se sentir amado e supor saber ao analista no primeiro momento da transferência. Lacan acreditava que o sujeito suposto saber é o pivô da transferência, pois a análise se estabelece com essa suposição de que o Outro, analista, sabe – posição esta que o paciente consente, mas com a qual o analista não se identifica. Lacan (1964) pontua que

 

Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber (…) há transferência. (…) Ora, é bem certo, do conhecimento de todos, que nenhum psicanalista pode pretender representar, ainda que da maneira mais reduzida, um saber absoluto (LACAN, 1964, p. 226).

 

Para Lacan (1938), o sintoma da criança está relacionado com a família, com esse Outro primordial, pois responde ao sintoma da estrutura familiar, representando a verdade do par parental. O sintoma da criança pode representar o que há de sintomático na mãe, no pai ou no casal. Lacan pontua que o destino psicológico da criança depende, primeiro, da relação que as imagens parentais têm entre si. Segundo Lacan, a criança é o sintoma do par parental. E é por esse viés que apostamos na possibilidade da análise com a criança.

 

(…) o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. O sintoma – esse é o dado fundamental da experiência analítica – se define, nesse contexto, como representante da verdade do casal familiar. Esse é o caso mais complexo, mas também o mais acessível a nossas intervenções (LACAN, 1938, p. 369).

 

Os pais com que trabalhamos são os pais reais, que queixam e demandam, e não os pais da fantasia da criança, como trabalhado por Freud em Romances familiares, aqueles que constituem uma autoridade única para a criança, que carrega o conhecimento sobre tudo. Mais tarde, a criança vai compará-los a outros pais e depois rivalizar com eles. Esses, nós tratamos na análise com a criança. Já os pais com que estamos trabalhando aqui ocupam uma função muito importante no tratamento das crianças, e nós contamos com eles para o trabalho ocorrer. Porém, ressaltamos o lugar da criança enquanto analisante, afinal, a análise é o espaço para a criança, enquanto sujeito, trabalhar as suas questões, e não o lugar de análise dos pais.

Algumas vezes os pais precisam do seu espaço para falar e colocar suas questões. Esse espaço, no entanto, deve ser encontrado fora da análise do filho. Perguntamos quando e como encaminhar um pai e/ou uma mãe a um analista, para que tenham um lugar onde eles possam tratar do seu sintoma.

O analista, quando faz uma intervenção com os pais, busca orientar o nó do amor, do desejo e do gozo de ambos. Sabemos a importância de ouvir cada um dos pais para o tratamento da criança, mas questionamos quando devemos chamá-los para conversar.

Convocamos os pais para conversar quando eles nos solicitam, quando acreditamos ser necessário investigar mais sobre a criança, quando percebemos algo errado com a criança que ela não dá conta de falar, quando sentimos a necessidade de dar um retorno e quando precisamos chamar o pai para a sua função, entre outras inúmeras situações. Eles são fonte de saber sobre a criança, mas não sabem de tudo. Buscamos construir, junto à criança e aos pais, algum saber. O trabalho com os pais é um trabalho conjunto, visando ao tratamento da criança.

Alguns pais pedem que o analista os ensine como lidar com o filho, questionando se agem certo ou errado com a criança. Ao analista cabe o cuidado no manejo da transferência com os pais, sendo possível orientá-los, para o trabalho caminhar. Orientar é diferente de dar respostas e ensinar. Orientar é construir soluções possíveis, pontuando o que for importante para a continuidade do trabalho.

Os pais são a primeira fonte de saber da criança, eles são a lei e o amor. Questionamos se o pai e a mãe ocuparam as suas funções para essa criança na construção do Édipo. A estrutura do sujeito depende do Outro e dele mesmo, de como a falta se instaura. O sujeito escolhe, via desejo, qual posição vai tomar, escolhe se alienar ou não, mas para conseguir chegar ao alcance da escolha, é necessário algo antes, e é aí que os pais entram.

Primeiro, o sujeito criança se aliena, dizendo “sim” ao Outro. De acordo com Lacan, esse é o primeiro passo da operação em que se funda o sujeito, sendo essencial a criança passar por ele para chegar ao segundo momento, no qual ele se separa, respondendo “não” ao Outro, dando uma resposta enquanto sujeito desejante. Isso é possível quando o seu lugar no desejo do Outro se torna enigmático para a criança, quando ela sai do lugar de assujeitamento ao gozo do Outro para assujeitar-se a uma lei – a lei do desejo, encarnada pela função do pai. É nesse segundo momento que o campo da transferência começa a ter lugar. O trabalho da análise consiste em ajudar a criança a fazer essa separação, intervindo no lugar em que nos é dado pela transferência.

Nesse momento de impasse, pode acontecer de alguns pais suspenderem o tratamento da criança, porque dizem que ela já está bem, quando o sintoma que os incomodava apazigua, ou quando acreditam que a criança “piorou”, está “rebelde”, “agressiva”, pois está se separando, se posicionando enquanto sujeito. Acontece que, quando a análise abre a possibilidade do sujeito criança aparecer, criando certa independência em relação aos pais, estes a interrompem, com ou sem transferência com o analista. São eles que decidem o momento de interromper, e não o analista junto ao analisante.

Na experiência com a clínica, assistimos a tratamentos de crianças sendo interrompidos por várias razões: além dos citados acima, porque os pais acreditam em outra(s) forma(s) de tratamento e creem que terão mais êxito, porque estão com baixas condições financeiras, porque acreditam que a criança já está há muito tempo em tratamento e não obtiveram os resultados esperados, também por questões de mudança de horário ou inviabilidade de levar a criança ao atendimento, entre outras. Nesse momento, nós, enquanto analistas, se possível, chamamos esses pais para mais uma conversa, além de outras ocorridas durante o tratamento da criança. Ressaltamos a importância do tratamento pontuando que ele ainda não chegou ao fim, e que, portanto, não concordamos com sua interrupção. Cabe ao analista amparar também os pais nessa separação.

Uma das causas da interrupção do tratamento da criança é a resistência, que pode ser do lado da criança ou do lado de um dos pais. Há casos em que o pai ou a mãe diz que a criança não quer mais ir às consultas. Investigamos de qual lado está a resistência, para trabalharmos com ela, afinal, a resistência é uma forma de transferência. Ela aparece como um obstáculo para a cura, mas com o manejo da transferência é possível vencê-la. De acordo com Freud (1912),

 

(…) a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise – e a análise como tal – muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influencia analítica junto aos pais (FREUD, 1912, p. 146).

 

Ainda segundo Freud (1912), os fenômenos da transferência – resistência, repetição e sugestão – representam grande dificuldade para o psicanalista, mas são necessários para tornar manifesto os impulsos eróticos ocultos do paciente, ou seja, para chegarmos ao inconsciente do sujeito.

Em 1912, Freud afirma que a resistência deve ser contornada através da interpretação, que é colocada como uma arte, principalmente no que diz da identificação das resistências. Trata-se do manejo da transferência dando o devido tempo para o paciente elaborá-la, superar a resistência e abrir a possibilidade, assim, de recordar e prosseguir com o tratamento.

 

Depois que ela for vencida, a suspensão das outras partes do complexo quase não apresenta novas dificuldades. (…) assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo da transferência (…) mas o papel que a transferência desempenha no tratamento só pode ser explicado se entrarmos na consideração de suas relações com as resistências (FREUD, 1912, p. 115-116).

 

De acordo com Freud (1912), citado por Miller (1988, p. 104), a transferência se produz quando o desejo do sujeito encontra um elemento particular na pessoa do analista, ou seja, quando algo do inconsciente se liga a algum significante que remete ao analista. Ainda segundo Freud (1912), a transferência se dá devido à imago paterna, semelhante à imago materna ou à imago fraterna, sendo a transferência a própria relação da cura, o tempo da experiência e da elaboração, na medida em que tem o Outro como figura central.

A transferência, com a possibilidade de interpretação, favorece o tratamento da criança abrindo espaço para ela construir o seu próprio sintoma, separado do sintoma do pai, da mãe ou do par parental.

Ainda de acordo com Freud (1912), os sintomas podem adquirir uma nova significação a partir da análise, pois o sintoma é um elemento com uma significação que se dirige ao Outro. Sendo assim, o sintoma pode se direcionar ao lugar ocupado pelo analista na cura, lugar este de receptor do sintoma onde, devido à transferência, ele pode operar sobre aquele.

Há, então, no tratamento com crianças, a possibilidade do advir de um sujeito, o que permite a interpretação do analista. Portanto, a análise da criança é, sim, possível, com o manejo da transferência do lado do pai, da mãe e do filho. Apostamos na possibilidade de a criança construir o seu sintoma e saber sobre ele num processo transferencial junto ao analista.

 


 

Bibliografia:
FREUD, S. (1909/2006) “Romances familiares”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908) Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol.IX, p. 219-222.
FREUD, S. (1912) “Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I)”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913), Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol XII, p. 137 – 158.
LACAN, J. (2964) “Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem”, In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 224 – 236.
LACAN, J. (1938) “Nota sobre a criança”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 369-370.
LACAN, J. (1938) “Os complexos familiares”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 29-90.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (I): A alienação” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 199-210.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (II): A afânise” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 211-223.

Marina S. Simões
Psicanalista. Graduado em Psicologia pela PUC MINAS. Graduated in Psychology from PUC MINAS. E-mail :marina.s.simoes@hotmail.com https://www.instagram.com/p/aEZJKAjG8o/?taken-by=fredbandeira



Puberdade, Adolescência E Estrutura

DAMASIA AMADEO DE FREDA

 

ÉDER OLIVEIRA: SÉRIE SEM TÍTULO 2005

 

A puberdade é um momento de grandes transformações, tanto físicas como psicológicas. Conhecemos as consequências psíquicas que essas transformações acarretam, a tal ponto que Freud não duvida em considerar esse momento uma verdadeira “metamorfose” da subjetividade.

A respeito das transformações físicas, Freud enfatiza o que acontece exclusivamente no que diz respeito aos órgãos sexuais, tanto internos como externos.

Vale destacar que tais transformações abrem possibilidades concretas que antes não existiam – a reprodução, por exemplo – e modificam a imagem de si de uma forma inédita até o momento. A isso se soma o fato de que a força pulsional, sublimada durante o período de latência, volta a catexizar as zonas erógenas sexualizadas desde a primeira infância e se concentra, sobretudo, nos órgãos sexuais que foram afetados pela completa transformação.

Freud disse muitas coisas importantes sobre esse período. Por exemplo, põe o acento no vai e vem da libido, do eu ao objeto e vice-versa, e adverte sobre os transtornos que poderiam suceder ao indivíduo se a libido se conformasse em ter o eu como único objeto. Um transtorno semelhante suporia a fixação libidinal em uma zona erógena em detrimento do órgão fálico.

Freud destaca que, nesse período, há um despertar das fantasias infantis, que haviam tido como finalidade dar uma resposta às interrogações típicas da infância – castração, sedução, cena primária. A tais fantasias acrescenta, agora, uma nova – mito do nascimento do herói –, que facilita o desprendimento da autoridade, processo fundamental para a passagem à idade adulta. Indica que tais fantasias são objeto da libido até que esta encontre e aceite um objeto novo fora do Outro parental. Adverte também sobre o fato de que as fantasias são precursoras do sintoma.

Indubitavelmente, esses indicadores freudianos são muito orientadores na clínica com púberes e adolescentes. Ainda que também saibamos que, na atualidade, tal clínica muitas vezes desconcerta o psicanalista.

O psicanalista se encontra regularmente com manifestações novas, as quais às vezes o desorientam. Por exemplo, a respeito da questão diagnóstica. Muitas vezes é pelo mesmo desconcerto que essa clínica lhe proporciona, que se precipita em querer elucidá-la por meio do diagnóstico.

Por exemplo, não faz muito tempo, quando uma paciente se apresentava ao analista com a prática da “automutilação”, em geral não se duvidava em diagnosticar uma psicose; logo, quando os sintomas próprios de tal estrutura não acompanhavam o quadro, se saia do atoleiro com o diagnóstico de psicose ordinária, sempre pronto para todo uso.

Hoje já não podemos continuar considerando a prática da automutilação um índice de psicose. O corte forma parte de uma prática amplamente estendida no campo da puberdade e da adolescência feminina, e, se os quadros são muito variados, as causas alegadas por aqueles que a praticam não deixam de ser obscuras.

O analista não desconhece que há aí um problema de quantidade, porque são as mesmas pacientes que o indicam. Elas falam de uma angústia, às vezes de uma tensão ou de uma energia que não podem dominar, e o corte vem funcionar como sangria, porque o sangue e a dor, produto da ferida, dão um destino ao excesso e um sentido ao que, na grande maioria dos casos, é um ponto de falta de significação. Que a falta de significação seja o correlato da falta de um significante, é indubitável. Que a falta de um significante concirna ao significante do Nome do Pai, isso não podemos assegurar e menos ainda generalizar. Agora, talvez essa prática generalizada nos indique que o significante do Nome do Pai, como articulador central da estrutura, começa a perder seus privilégios. Não seria desatinado pensar que essa prática é um indicador do declínio do Nome do Pai, ainda que não tanto na estrutura, mas na civilização, o qual repercute na noção de estrutura, relativizando-a.

Outra manifestação da atualidade é a passagem da heterossexualidade à homossexualidade e vice-versa, em púberes e adolescentes do gênero feminino, como meio de obtenção do gozo sexual. Sem dúvida, esse tipo de passagem mostra que o falo não é o órgão diretriz para a obtenção do gozo sexual. É possível que daí se deduza que o significante é fálico, e, portanto, a significação fálica esteja, no mínimo, modificada. Porém, que tudo isso desemboque em um diagnóstico de psicose, tal como se poderia depreender da leitura estruturalista de Lacan sobre as consequências na significação fálica no que diz respeito à presença ou ausência do Nome do Pai na estrutura, já não é tão certo. Quer dizer, hoje em dia não podemos deduzir de maneira unilateral de tais manifestações na sexualidade, própria dos púberes e dos adolescentes da época, um diagnóstico de psicose.

Outro exemplo, em vias de extinção, são as tribos urbanas, em que o que caracteriza o grupo são os traços semelhantes de seus integrantes. A diferença do que ocorre nos grupos sustentados graças a uma exceção, cujo protótipo é a figura do líder que viria representar e ser o porta-voz de uma ideia ou de uma ideologia, nas tribos urbanas não é a identificação ao traço do Outro o que possibilita a identificação entre os membros. Nesses bandos, a imagem de si e do outro se confundem até desintegrar-se em uma massa com um nome que os agrupa (emos, floggers). Observa-se claramente, nesse tipo de manifestação, como a ordem simbólica é substituída por uma ordem imaginária. Porque em tais agrupamentos não são os ideais nem as ideias que os comandam, portanto se compreende a inexistência daquele que cumpriria a exceção de transmiti-los. É simplesmente a vestimenta, os piercings, as tatuagens, o corte de cabelo, o penteado ou a maquiagem que permite identificar o grupo, e também são esses traços o que o mantém unido. Embora seja típico da puberdade e da adolescência o agrupar-se, e que em tal agrupamento esteja a tendência a igualar-se, existir um predomínio pronunciado do imaginário sobre o simbólico é o que o torna novidade. Que esse exemplo é um índice da modificação da ordem simbólica própria da nossa época, é evidente; que é índice do declínio do Nome do Pai, também. Porém, que daí se possa concluir que os púberes e adolescentes que integram ou integravam as tribos urbanas são psicóticos é um exagero, sem dúvida.

Por último, o fenômeno cada vez mais corrente do alistamento de púberes e adolescentes dispostos a matar e a se destruir em um único ato suicida-criminoso, em nome de um Um totalizador. O que podemos dizer desses casos que se estendem pelo mundo de um modo temível e sinistro? Que oferecer-se em sacrifício a um Outro incorpóreo é um delírio, não há nenhuma dúvida; que a pulsão assume, nesses casos, uma forma mortífera que não se vincula em nada com qualquer forma de sexualidade, quer dizer, que não há espaço para que se estabeleça um vínculo libidinal de objeto, parece evidente. Que a concentração da libido no eu seja a outra face da imolação ante um Deus obscuro, é muito possível. Porém, que esses jovens sejam psicóticos, no sentido lato do termo, é algo que não podemos assegurar, porque são muito raros, para não dizer inexistentes, os exemplos nos quais uma divisão subjetiva de qualquer índole pudesse vir a se colocar em questão ante tão radical eleição, para então conduzi-los a um psicanalista.

Esse último é um bom exemplo para o psicanalista atual; é um bom exemplo para lembrar-lhe que sua ação deve formar parte de uma política na qual um de seus fins seja interpretar o melhor possível a subjetividade da época, para poder incidir nela. Desse modo, o psicanalista poderá estar protegido de não errar além da conta em seu ato e, assim, poder integrar sua ação em uma causa que, embora se dirima no caso a caso, também pode apontar mais além do singular. Porque uma interpretação que abarque o conjunto permite elucidar a prática individual do mesmo modo que a prática individual contribui para esclarecer o conjunto. E é necessário, mais do que nunca, para o psicanalista, estar à altura da subjetividade desta época, difícil de interpretar.

Para finalizar, entendemos que a ideia freudiana da puberdade e da adolescência não dá elementos suficientes para se orientar na clínica atual. Ao contrário, consideramos que o último ensino de Lacan pôde contribuir para uma melhor leitura da subjetividade atual e que os púberes e os adolescentes são também a subjetividade da época. Sobretudo, vemos que se trata de uma subjetividade que já não parece responder aos parâmetros estruturalistas e deterministas com os quais nos regíamos, e, nesse sentido, vemos borrar-se as estruturas clínicas. Ao contrário, a noção de estrutura borromeana, cujos registros RSI se regem pela orientação e pela ordem, como único índice do predomínio de um sobre o outro como forma de fazer frente a um real, nos parece ser mais afim à clínica atual com púberes e adolescentes.

 

 

TRADUÇÃO: Kátia Márias
REVISÃO: Ernesto Anzalone

 


Damasia Amadeo De Freda
Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: damasiamadeo@fibertel.com.ar



Histeria: Do Matema Da Fantasia Ao Discurso

GERMANA PIMENTA BONFIOLI

 

As estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão – são decorrentes de três modos distintos de defesa contra a castração. Na neurose, o modo em questão é o recalque. Forma de negação da castração no Outro, que supõe o atravessamento do Édipo e a consequente inscrição do Nome do Pai. Como efeito, os sujeitos neuróticos, de posse da significação fálica, podem se inscrever de um dos lados na partilha do sexo. Dois tipos clínicos são característicos dessa estrutura: histeria e neurose obsessiva. A histeria tomada como a neurose de base e a neurose obsessiva como seu dialeto.

A histeria é, portanto, um modo particular do sujeito subjetivar a falta imposta pela castração, que poderá se manifestar nas maneiras sintomáticas variadas, mas preservando uma maneira típica de lidar com o desejo, estabelecer identificações e se relacionar com o Outro. Um modo do sujeito se defender dessa falta que coloca em marcha algumas estratégias fundamentais.

Destacaremos aqui dois momentos distintos ao longo da obra de Lacan em que ele irá trabalhar a histeria: nos anos 50, quando o matema da fantasia histérica aparece pela única vez, e em 1969/1970, no Seminário 17, em que a histeria é tomada como discurso.

No Seminário 8, ao se deter sobre os “efeitos sintomáticos do complexo de castração” (LACAN, 1960/1961, p. 242), analisando o caso Dora, Lacan enuncia, através do matema da fantasia histérica, uma estratégia fundamental de defesa histérica.

Objeto (a), sobre a sua castração imaginária, em sua relação com o Outro. Oferece, desse modo, sua própria castração ao Outro, como forma de garantir sua existência.

O sujeito histérico, mais que qualquer um, orienta-se pelo desejo do Outro. Interroga-se a todo tempo pelo desejo do Outro para a partir daí se colocar, como objeto, nesse lugar. De olho no que falta ao Outro, está sempre pronto a se posicionar, de modos diversos, como quem irá preencher essa falta. Essa versatilidade histérica pode ser facilmente observada na clínica, por exemplo, através dos variados estilos que uma histérica pode assumir diante de diferentes parcerias, fazendo-se a mulher sob medida para cada homem. Ao mesmo tempo, para manter esse outro desejante, é condição também se subtrair como objeto, não satisfazê-lo inteiramente, esquivando-se em tornar-se objeto de gozo. E aqui outro modo típico de funcionamento da mulher histérica aparece: ela segue em direção ao desejo do Outro, provoca-o e, na sequência, se esquiva dele como meio de resistir a ser tomada como objeto de gozo.

No matema da fantasia histérica, é como objeto a que a histérica se identifica, mas o que está por baixo da barra, aquilo que ela se esforça em ocultar, através dessa estratégia de oferecer-se como objeto de desejo do Outro, é sua própria castração. Do lado direito do matema, o que aparece como resultado dessa oferta é um Outro sem barra, o Outro não castrado. Ao apostar que pode completar o outro, fazendo-o passar de um Outro barrado para um Outro sem barra, o que está em jogo é a sua relação com a falta. A aposta é, em última instância, na sua própria existência, como toda. Se a barra não incide sobre o outro, não incide também sobre si mesma.

É a propósito de Dora, célebre caso de Freud (FREUD, 1905, p. 12-115), que Lacan irá nos esclarecer a respeito das regras desse jogo complicado. O pai de Dora, sabidamente impotente, é incapaz de copular com sua amante, a Sra. K. Mas isso não importa se é ela, seguindo o molde da fantasia histérica, quem irá sustentar a relação dos dois, fornecendo ao pai o signo fálico que lhe falta.

Pois tudo o que está em questão para Dora, como para toda histérica, é se fornecedora desse signo sob a forma imaginária. O devotamento da histérica, sua paixão por se identificar com todos os dramas sentimentais, de estar ali, de sustentar nos bastidores tudo que possa acontecer de apaixonante e que, no entanto, não é da sua conta, é aí que está a mola, o recurso do que vegeta e prolifera todo o seu comportamento (LACAN, 1960/1961, p. 243).

Tudo vai bem até o ponto em que estão todos insatisfeitos em seus desejos. Pois faz parte dos artifícios desse jogo que, para seguir desejando, o Outro seja mantido insatisfeito. Mesmo ao preço da insatisfação do seu próprio desejo, o que vai se tornar a marca registrada de uma histeria. Mais importante do que a satisfação do seu desejo é que o Outro mantenha o enigma como garantia da sua existência.

É ao seu pai que Dora demanda amor. Ao pai do terceiro tempo do Édipo, descrito por Lacan (LACAN, 1957/1958, p. 200), como aquele que estaria em condição de fornecer-lhe simbolicamente o que lhe falta. Nos dois tempos antecedentes, o sujeito, primeiramente, se identifica imaginariamente ao objeto de desejo da mãe. A seguir, a mãe de Dora, que mal aparece na história, é privada de seu falo imaginário e permanecerá aí ausente da situação. A lei paterna incide, a interdição é consumada, e assim estamos diante de um sujeito neurótico. Os dois primeiros tempos lógicos são atravessados e chega-se então à terceira etapa do Édipo, que guarda uma grande importância, pois “é dela que depende a saída do Complexo de Édipo” (LACAN, 1957/1958, p. 200).

O terceiro tempo do Édipo, destacado por Lacan, é aquele em que o pai tem que dar provas de possuir o objeto fálico, podendo dá-lo ou recusá-lo. No caso de Dora ele não o dá, porque não o tem, isso a mantém presa no complexo de Édipo, incapaz de atravessá-lo. Seu pai fracassa em fornecer-lhe o dom viril. Como boa histérica, Dora sofre de amor ao pai e segue ligada a ele. O tributo de amor ao pai, facilmente identificável em Dora, impede a histérica de atravessar o Édipo, deduzindo que o pai pode lhe dar o que lhe falta mantendo o seu ponto de castração intacto.

A Sra. K é, na medida em que é o desejo do pai, o objeto de desejo de Dora. Mas seu pai é impotente, e ”seu desejo pela Sra. K é um desejo barrado” (LACAN, 1957/1958, P380). Assim tem-se um desejo que não se satisfaz nem para Dora nem para seu pai. E isso é o que mantém as coisas equilibradas. Mas, para a manutenção desse equilíbrio, é necessário que Dora encontre um ponto de identificação que lhe permita sustentar seu pai em um lugar potente. Nesse caso, o Sr. K é que funciona como o outro imaginário portador das insígnias fálicas necessárias à identificação de Dora. É por intermédio dele, “é na medida que ela é o Sr. K, é no ponto imaginário constituído pela personalidade do Sr. K que Dora está ligada ao personagem da Sra. K” (LACAN, 1956-1957, p. 141).

Pelo seu apego homossexual à Sra. K, Dora irá se esforçar em dar suporte à sua relação com seu pai, deixando-se tomar como cúmplice. Nota-se a presença das indicações de Lacan (LACAN, 1956-1957) a respeito da histeria: a histérica ama por procuração, seu objeto é homossexual e ela o aborda por identificação a alguém do outro sexo.

Em Intervenção sobre a transferência (LACAN, 1951, p. 214-225), Lacan esconde do caso Dora três desenvolvimentos da verdade mediados por três inversões dialéticas. No primeiro desenvolvimento trazido por Dora a Freud, seu pai e a Sra. K são amantes há anos, e ela é oferecida como moeda de troca ao Sr. K. Numa primeira inversão dialética, Freud questiona: ”Qual é a sua própria parte na desordem de que você se queixa?”. Surge um novo desenvolvimento da verdade: a relação dos amantes perdura graças à sua cumplicidade. Na segunda inversão dialética, Freud observa que o ciúme de Dora pelo pai mascara seu interesse pela Sra. K. No terceiro desenvolvimento tem-se, assim, o fascínio de Dora pela Sra. K, que culminaria na última inversão dialética, em que a Sra. K é aquela quem guardaria a chave do mistério sobre a feminilidade. É ela quem pode responder à Dora a questão fundamental de toda histérica: o que é ser uma mulher?

Retomando o matema da fantasia na histeria, temos aqui um outro modo de lê-lo: do lado esquerdo, teríamos a identificação viril de Dora ao Sr. K, que recobre sua castração para, através dessa posição, poder fazer a pergunta à Sra. K, que encarna o outro sem barra e poderia, desse modo, responder a pergunta sobre A mulher.

Essa interrogação primordial, ”O que é ser uma mulher?”, pode ser tomada como algo que define a histeria. É isso que interessa saber à histérica. A despeito de toda a querelância em que um sujeito histérico pode incidir, de toda a sorte de queixumes típicos da insatisfação histérica que, para preservar seu desejo, mantém a falta recusando-se à satisfação, a queixa fundamental na histeria refere-se à falta de identidade, falta de um significante que possa definir o seu ser. Essa é, então, a questão crucial endereçada ao Outro, no caso de Dora, representado pela Sra. K. Esse endereçamento ao Outro de uma questão sobre o feminino é descrito também através do discurso histérico.

No seminário 17, Lacan nos oferece uma nova leitura da histeria, calcada na lógica discursiva. Institui o discurso histérico como um dos quatro modos de se estabelecer laço social, arranjando os elementos significantes, o sujeito e o gozo da seguinte forma:

 

 

Na parte superior do discurso da histeria, tem-se $® S1. A posição dominante desse discurso é ocupada pelo sujeito barrado, muito bem representado na histeria, sujeito dividido por excelência, que evidencia sua divisão através de seus enigmas. Quem ocupa o lugar do outro é um S1, somente a um mestre sua pergunta poderia ser confiada. Na parte inferior do matema, sob o sujeito barrado, o que aparece em posição de verdade é o objeto a, causa de desejo, como aquilo que o sujeito desconhece ao se endereçar ao mestre interrogando-o em busca de um S2. O saber instalado no lugar da produção deve responder a questão sobre o que é uma mulher para, de posse dele, poder sustentar a relação sexual. Em última instância, esse é o saber que a histérica espera ver produzido, e, para Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 98), é aí que reside o mérito desse discurso, por manter de pé em sua estrutura a pergunta sobre a relação sexual. Porém, o S2 que o mestre produz é, por estrutura, insuficiente para lhe dizer sobre o seu gozo de mulher, pois não há o significante que possa definir o que é uma mulher.

Ao eleger alguém para ocupar esse lugar S1 e endereçar-lhe sua questão, pressupondo que este pode produzir um saber a seu respeito, ela se aliena ao mestre deixando-se definir pelos sentidos vindos dele. A histérica interessa-se tanto por um mestre, esforça-se tanto por sustentá-lo que, como nos diz Lacan, é preciso indagar se não foi ela quem o inventou. Porém, é preciso que esse mestre tenha seus limites. É o que se vê na ambiguidade histérica, que está sempre colocando o senhor em cheque e destituindo-o.

Ela quer um mestre. Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa (LACAN, 1969-1970, pg. 136).

Se por um lado o sujeito histérico se endereça a um mestre, supondo-lhe uma potência em relação ao saber, por outro ele aliena-se do mestre, resistindo a ser dividido pelo S1, ao recusar que seu corpo obedeça a ele. É pela via do corpo que escapa a alienação ao mestre: isso que Freud chamava de complacência somática, Lacan nomeou por recusa do corpo na histeria.

No caso Dora, a impotência de seu pai perpassa toda a trama e ainda assim é no lugar do senhor que ele vai estar para ela, levando Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 100) a reafirmar a constituição do pai por avaliação simbólica. Por mais moribundo que possa estar, há uma ”potência de criação” implicada na palavra pai que faz com que ele desempenhe ”esse papel-mestre no discurso da histérica”. O pai colocado no lugar de S1, puro significante, é dotado de uma potência criadora sobre o real do seu gozo, sob a forma de um saber. Assim, na fantasia de que o pai é potente para fornecer-lhe o significante da relação sexual, ela o salva. Salvar o pai comporta, conforme Alvarenga (ALVARENGA, p. 19), o paradoxo de conferir a ele uma potência para, a seguir, jogá-lo na impotência, pois o saber que produz será sempre insuficiente para responder-lhe sobre o papel da mulher na relação sexual, deixando o próprio sujeito histérico na impotência. Mas isso não faz com que Dora desista de se dirigir ao mestre, pelo contrário: condena-a a insistir na questão. Fato que se observa muitas vezes na clínica sob a forma de uma demanda infinita ao pai ou a qualquer outro que venha a ocupar esse lugar de S1.

Uma saída seria através do que Lacan chamou, ainda no Seminário XVII, de ”terceiro homem”. Que a histérica possa se endereçar a um terceiro homem, que assim é chamado por ter o órgão, e que possa permitir dividir-se por ele, deixando-se tomar por objeto de seu gozo. É aquele que conjuga o ideal do pai universal abstrato com o desejo particular de um homem concreto (ALVARENGA, p. 20). O Sr. K convém a Dora como terceiro homem, por estar claro desde muito cedo, quando ele lhe assedia, ser possuidor do órgão. Mas Dora não se interessa por fazer do seu atributo fálico meio de gozo, por ”fazer dele sua felicidade” (LACAN, 1969-1970, p. 100). Quando o Sr. K diz à Dora: ”Minha mulher não é nada pra mim. (…) nesse momento o gozo do Outro se oferece ela, e ela não o quer, porque o que quer é o saber como meio de gozo…” (LACAN, 1969-1970, pg. 101). Assim, pode-se dizer que o Sr. K não cumpre sua função de terceiro homem para Dora, uma vez que ela não se deixa interpelar por ele, não consente como desejo dele.

Seguindo o caso Dora, através do matema da fantasia e do discurso histérico, em busca das estratégias de defesa na histeria, vê-se que sua pergunta fundamental, ”O que é uma mulher?”, é sua paradoxal defesa. Insistir na questão, apostando que outro tem a reposta, é seguir acreditando que A mulher existe. Ao escamotear à castração, através do seu enigma, ela não bascula para a posição feminina, que supõe que o sujeito possa se orientar pela lógica do não-todo, consentindo com algo da castração.

 

 


 

Bilbliografia
ALVARENGA, E. “Variedades do sintoma, unicidade do tipo clínico”, Correio. EBP, n. 58, p. 13-22.
FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. VII, p. 12-115.
LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1951. pp. 214-225.
LACAN, J. (1956-57). O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

Germana Pimenta Bonfioli.
Analista praticante. Psicóloga da rede de saúde mental de Mariana/MG. Email : germanabonfioli@hotmail.com



Amores Líquidos, Amores Nômades: Sobre As Formais Atuais Da Depreciação Da Vida Amorosa

ANA LYDIA SANTIAGO E JÉSUS SANTIAGO

 

FOTO : GIULIA PUNTELFOTO : GIULIA PUNTEL

O interesse dessa investigação clínica é buscar tratar a especificidade das formas atuais da depreciação da vida amorosa nas sociedades em que prevalece o fenômeno das vias democráticas do individualismo de massa[1]. É essencial mostrar que tais formas de depreciação não se esclarecem sem o devido tratamento do chamado individualismo de massa que, a nosso ver, é parte inerente dos diversos estilos de vida amorosa dos jovens, estilos marcados pela fluidez, inconstância e errância. Para captar o que vai de um lugar para outro e que se movimenta à vontade entre os jovens, utiliza-se, com frequência, a propriedade da fluidez pertencente aos estados da matéria líquida e gasosa. Tornou-se, assim, usual empregar a “leveza” ou a “ausência de peso” como atributo para fornecer os contornos do caráter lábil, frágil e inconstante dos atuais trajetos e rotas que definem a vida amorosa entre os jovens[2].

 

Amores líquidos

 

No entanto, não nos parece suficiente dizer – como quer a sociologia contemporânea – que o poder de derretimento da modernidade com relação aos valores e referências identificatórias que regiam as gramáticas afetivas tradicionais, seja fruto de uma mera quebra na verticalidade das relações sociais. Ao contrário de tais formulações, importa ressaltar em quê esses novos estilos encarnam uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera dos diversos modos de gozo. Se o que era a tradição e o padrão dos modelos do relacionamento amoroso se desfaz, irrompe, ao mesmo tempo, um variado leque de soluções que se traduzem pela interferência do individualismo de massa sobre o discurso e as práticas afetivas e sexuais dos homens. O psicanalista deve estar atento ao caráter inovador desta multiplicidade de soluções, que se expressa pelo imperativo de que cada sujeito deve identificar-se com sua própria diferença. Em outras palavras, o sujeito se vê obrigado, nos dias de hoje, a sobrepor-se a inexistência do Outro, com o recurso de algum significante-mestre (S1) que se apresenta como individualizado e pulverizado.

 

INDIVIDUALISMO DE MASSA –––––> S1s individualizados e pulverizados

 

Ao propor que a crise atual de nossa civilização se traduz pela inexistência do Outro, não se quer dizer que se trata apenas de uma crise que atinge o domínio do saber. Na época das mutações provocadas pelo discurso da ciência, a transformação do Outro, de seus ideais e do Nome-do-Pai em ficção, se estendem para o âmbito de uma crise que extrapola a ordem dos sentidos e dos valores de uma dada civilização. Ao contrário disto, ambiciona-se com a tese da inexistência do Outro, evidenciar que tal crise concerne o real inerente aos modos de gozo do sujeito, imerso no mundo em que o Nome-do-Pai e seus ideais se transmutam em semblantes. É por isso que, sob o fundo de uma angústia, o sujeito moderno introduz um questionamento que se repercute nas mais diversas esferas da vida, sob a forma do que é o real. É nesse sentido que não se deve privilegiar apenas a face negativa dos efeitos da inexistência do Outro. A conexão desses dois termos conflitantes e contraditórios, entre si – o individualismo e a massa –, constitui uma maneira de interpretar a face positiva, ou seja, as vias de respostas possíveis ao real do gozo, por meio de uma identificação com algum significante solto e isolado. É visível que o emprego desse sintagma paradoxal surge para aprofundar, ainda mais, o diagnóstico que compreende o mal-viver atual entre os sexos como uma resultante da inexistência do Outro[3].

A homossexualidade é exemplar do que vem a ser essa injunção do enxame de significantes-mestre individualizados, sobre as relações amorosas e sexuais em geral. Não é sem razão o fato de que a investigação sociológica universitária sobre os gêneros se mostre dominada, em escala mundial, pelos chamados “gay and lesbian studie” ou o “queer studies”[4]. O modo como a homossexualidade se configura, nos anos sessenta, por meio do movimento gay é uma prova de que a oferta de um significante-novo, capaz de captar o que transita no mercado do gozo, é suficiente para efetuar-se uma identificação que se designa como comunitária[5].

Com a emergência da nova norma homossexual gay, com o que se designa por essa identificação comunitária, fica para trás uma visão homossexualidade fortemente impregnada pela noção de inversão, cuja prática se exerce, de forma clandestina e, com o uso de uma fantasia particular[6]. A montagem discursiva que se instaura com a adoção do significante gay assume consequências para as práticas sexuais em geral, inclusive para os jovens, pois, o amor homossexual afirma-se como o ícone de um estilo de vida hedonista moderno, orientado pelo binômio prazer e liberdade. O sintoma social da homossexualidade gay torna-se, assim, modelo da representação máxima do casal igualitário em que não se exige a regra da coabitação, e não apenas, por não estar condicionada pela exigência da procriação, mas, também por estar desembaraçada das contaminações sentimentais das acepções românticas do amor. Em suma, fica-se com a impressão que se do lado da rotina dos héteros, tem-se o tédio, a tristeza; do lado do gay, a festa, o carnaval e as coisas divertidas.

Não há dúvidas de que a propagação desta nova norma homossexual, na vida social, contribuiu para tornar pouco credível a inclusão da sexualidade em uma ordem natural fixa e pré-estabelecida. É cada vez mais fora de moda, não admitir a homossexualidade como um estilo de vida similar a outros, como uma escolha de objeto que, apesar de ser minoritária, é tão defensável quanto outras. Como se pode constatar, não é à-toa, o fato de que o movimento dos homossexuais que, realizou e adotou a construção do gay, pôde desalojar do saber psiquiátrico, qualquer alusão diagnóstica normativa baseada na categoria de perversão. E o psicanalista, que posição ele adota com relação a essa repercussão subversiva, até então inédita, das práticas homossexuais com relação às normas que fixam e regulam os laços afetivos já existentes.

 

Amores nômades

 

É possível ainda, na abordagem das configurações atuais da depreciação da vida amorosa, tomar um outra direção, para apreender o que vem a ser uma tal inovação nos estilos de vida e nos modos de relação afetiva das novas gerações. Trata-se do que Gilles Deleuze e Félix Guattari designam com a marca contemporânea do discurso capitalista, a saber, o nomadismo, que como se sabe é concebido como uma máquina de guerra[7]. Refere-se ao caráter não-sedentário das relações amorosas como uma máquina de guerra porque estas agenciam do exterior e independente do moralismo centralista e falocêntrico do Estado, outras intensidades, fluxos territórios e enunciações.

Sob esse ponto de vista, o nomadismo, segundo Deleuze,

“(…) é uma forma de estar no mundo que subverte as expectativas sociais e as estruturas hegemônicas identificadas com o Estado. Esta “máquina de guerra” nômade apresenta três aspectos: um aspecto espacial-geográfico, um aspecto organizacional e um aspecto afetivo. A caracterização do nomadismo como um modo de ser específico está ligada à territorialidade, ou seja, à espacialização da experiência (social e subjetiva) em termos de deslocamento e não de fixação, como é o caso das existências sedentárias.” [8]

Em vez de fixar-se em um ponto do espaço, transformar-se em um lugar, como faz o sedentário –, o nômade não tem um território fixo e delimitado, pois, segue trajetos contingentes e vai, incessantemente, de um ponto a outro[9]. Para os filósofos, o deslocamento e a não fixação da existência sedentária nas relações afetivas exibe algo voltado para o mundo exterior e se prolifera na forma de descargas rápidas de emoções. Se os afetos são tanto projéteis, como armas, é porque, não apenas se diferenciam, mas desterritorializam a pretensa solidez dos laços e sentimentos amorosos do passado. A multiplicidade da máquina de guerra nômade, presente nos afetos, não se exprime pela simples via da pluralidade, mas, sim, pela capacidade de “desterritorializar” os anseios e as estruturas das relações instituídas pelo Estado e suas diversas formas de agenciamento das intensidades e dos fluxos da vida. A pluralidade, segundo eles, não é a multiplicidade.

O nomadismo deleuzeano suscita inúmeras e variadas reflexões em diversos âmbitos do pensamento contemporâneo. É possível tomar contato com o diagnóstico que ao buscar interpretar a componente nômade do discurso amoroso atual, privilegia o seu viés de impasse, fazendo sobressair o pessimismo. Sob essa ótica, o nomadismo revela a falência do referencial histórico para a compreensão dos fenômenos, a falência das categorias de emocional e racional para sua análise e, mesmo, a insuficiência da referência ao amor ao pai, para dar conta das transformações que se processam na vida íntima das novas gerações[10].

É visível a dificuldade destas análises para captarem os amores nômades, visto que se baseiam em uma perspectiva calcada no fio contínuo e linear da história do que tem sido os nomes infinitos do amor. Acrescenta-se, ainda, que a ideia de progresso e de razão mostram todo o seu limite quando há algo do passado, que retorna e se instala com certo vigor. Em relação à análise desse fenômeno, tudo leva a crer que as categorias racionais sobre as quais se edificam tais interpretações são instáveis e imprecisas, pois, a emergência do nomadismo, na esfera do amor, mostra que este deixou de constituir-se como exceção, para tornar-se uma realização efetiva e independente de suas expressões tradicionais[11].

 

O amor e a “não-relação”

 

Importa, contudo, abordar o nomadismo na vida amorosa tendo como guia, para o enfoque dos fenômenos de dessimetria no amor, a categoria lacaniana da “não-relação”. A maneira como a “não-relação” entre os sexos se exprime no contexto dos amores nômades assume consequências, até então, inéditas, para o psicanalista. Chama a atenção, para além da desterritorialização, as expressões não-sedentárias do amor que agudizam o fato clínico de que se a mulher equivale a um sintoma, para o homem, este último, por sua vez, é para uma mulher, fator de devastação. Ao contrário do que muitos podem pensar, para dar conta das vias atuais das relações sintomáticas entre os sexos, não cabe ao psicanalista simplesmente abandonar as categorias do inconsciente, do amor ao pai, do Édipo e outras, com o argumento de que se tornaram caducas[12]. Na verdade, elas estão mais vivas do que nunca, desde que, evidentemente, saibamos refundá-las e retratá-las com o que a clínica nos fornece cotidianamente como a marca do real próprio do sintoma que dissolve, sem cessar, o seu envoltório formal. Já conhecemos o que o último ensino de Lacan fez com o amor ao pai: mais do que desfazer-se dele, buscou-se mostrar em quê ele se mostra insuficiente e em quê é preciso ir além. É o que se traduz pelo aforismo: prescindir-se do pai, com a condição de saber servir-se dele.

É, nesse sentido, que cabe introduzir a questão: Como não captar, no nomadismo da vida amorosa, algo que se apresenta para além das ideias centradas na ruptura radical com a verticalidade das relações sociais? Para o psicanalista importa ressaltar, no nomadismo, o fato de que ele encarna uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera do amor. Como se exprime J.-A. Miller, haveriam, assim, labirintos do amor[13], o que torna ainda mais difícil a tarefa de nomeá-los. À diferença do discurso histérico, as novas formas de discurso amoroso – dentre as quais se inclui a homossexualidade masculina ––, não são baseadas e nem articuladas pelo amor ao pai.

O que se evidencia, no discurso atual, a propósito das relações amorosas entre os jovens, é que eles não amam. Ouve-se dizer: “Os jovens não conferem duração a seus namoros”; “O jovens não constroem frases com sujeito e predicado”; “Não há outro adjetivo para qualificar a vida de alguns adolescentes, que o da promiscuidade.” Essa atmosfera de mal-estar impregnada nos discursos dos pais e dos adultos em geral a respeito da forma de amar na atualidade, destaca o que vem sendo nomeado, nas análises da pós-modernidade, como o “pânico moral”. Ora, não cabe ao analista ter essa resposta diante do que se apresenta como um novo modo de vida. Até mesmo os pais que durante o tempo de suas juventudes introduziram uma verdadeira revolução em relação à geração precedente, reagem com um certo espanto. A indiferença, o individualismo, a falta de vergonha e pudor, e a perda da condição crítica dos sujeitos, apenas escamoteiam a indignação deles, diante da inexistência de um sentido referencial qualquer às identificações parentais. Isso vai de encontro com a constatação de que, nas últimas décadas, os homens se parecem mais com seu tempo que com seus pais[14].

“Na boate, as mulheres saem pra ficar com os caras e os caras saem pra pegar mulher. Neguinho já entra na pegação, entendeu? É a guerra.”, testemunha um jovem informante nos relatos de pesquisa antropológica, sobre o espaço e a subjetividade nas culturas nômades contemporâneas. Pode-se extrair desta pesquisa, algumas outras passagens, que, a nosso ver, caracterizam algumas identificações e posições de gozo, que não deixam de gerar uma variedade distinta de mal-estar e sintomas.

 

A derrisão do amor

 

Mais importante do que o caráter de transitoriedade e de intensidade volátil das relações dos jovens, que aparecem pelo emprego do “ficar”, parece-nos sugestivo ressaltar o lado derrisório e irônico, que se exprime no contexto mais amplo das configurações nômades. Muitas vezes, a diversão da night torna-se um “zoar”, que também implica um movimento de gravitação. Assim, “zoar” é “estar solto”, perder a censura”. “É deixar rolar”[15]. Zoar é você chegar com um monte de amigo seu e um ficar pegando mais mulher que o outro. Isso pode, inclusive, transformar-se numa competição, como o testemunha um outro jovem da pesquisa:

“Mulher que nego pega é o que mais mexe com o ego da pessoa. Se nego pega uma mulher gata…, (…). Eu tenho um amigo que a gente saía para pegar mulher feia também (…) Os outros é que escolhiam a mulher para o cara: aí, tem que pegar aquela. E tinha que passar de mão dada.[risos] (…) Chega num lugar que está horrível, o que agente pode fazer para animar a parada, entendeu? Pô, vamos pegar um monte de mulher feia, vamos fazer estas mulheres felizes? E você vê que as mulheres ficam amarradonas. [risos] E o ambiente fica legal.[16]

Esse depoimento mostra que os jovens procuram “ficar de boa”, neste turbilhão de gozo, que os faz passar rapidamente de um objeto para outro. O “não saber” em relação ao outro sexo, característico do início da puberdade, perdura-se. Poder-se-ia pensar que o “ficar” se apresenta como uma solução para este “não saber” angustiante: não saber como se aproximar do outro sexo, como aborda-lo, o que dizer, o que perguntar, o que conversar. Enfim: “O que fazer com o outro sexo?” Entretanto, o que ocorre é uma supressão da palavra, em detrimento de uma prática de gozo. Não é raro a conversa reduzir-se à uma sondagem sobre a possibilidade de alguém ficar com alguém, ser bem sucedida. E essa suspensão da palavra, que cumpre a função de adiar o encontro amoroso, não deixa de produzir uma série de sintomas, dentre os quais se destaca a inibição total da vida amorosa.

Portanto, a queda na crença de um sentido para as relações entre os sexos, que se insere no terreno movediço da inexistência do Outro, apenas favorece os efeitos do individualismo de massa no amor. É o que faz com que em nome do individual, cada um se torne o empresário de seu próprio desejo.

Pode-se dizer que este aspecto da auto-gestão do gozo na esfera da vida amorosa expressa os dois princípios básicos sobre os quais repousa o individualismo: (1) a liberdade individual, ou seja, o direito de se preocupar em primeiro lugar com a condição dos indivíduos da sociedade e, não, com a condição da própria sociedade; e (2) a autonomia moral, segundo a qual cada individuo deve fazer uma reflexão individual, sem que suas opiniões sejam ditadas por um grupo social qualquer. (Comunitarismo)

Diante dessa anulação do Outro social – ou dos referenciais simbólicos que organizam as relações –, é evidente que a instalação desse mercado atual das formas de gozo e do amor não acontece sem criar fontes para a redistribuição e o surgimento de novos sintomas e novas angustias. Esta inflexão da multiplicidade das soluções amorosas, acarretam como consequência a adoção do imperativo de ter que se identificar com sua própria diferença, de tentar se virar, custe o que custar, com um significante-mestre individualizado. Se os amores nômades interrogam a pulverização dos significantes-mestres, antes disponíveis e propostos pelo campo do Outro, isto não evita o fato de que ao fazer-se mestre de seu gozo; por outro lado, o sujeito “se faz objeto” para o outro, se faz de escravo para o seu parceiro. Este “fazer-se objeto” para outro, no caso do sujeito feminino, pode assumir proporções do que nomeamos como a devastação feminina.

 

[1] MILLER, Jacques-Alain. Psicanálise e política. In: Opção lacaniana, nº 34, outubro 2002.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. P. 8-9. O autor escreve: “Associamos ‘leveza’ ou ‘ausência de peso’, à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leve viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. Essas são razões para considerar ‘fluidez’ e ‘liquidez’ como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade.”
[3]MILLER, Jacques-Alain. El otro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
[4]BERSANI, Leo. Homos. Repenser l’identité. Paris: Editions Odile Jacob,1998.
[5]MILLER, Jacques-Alain. Des gays en analyse? Intervention conclusive au Colloque fanco-italien de Nice. In: La Cause freudienne, nº 55, p. 83.
[6]LAURENT, Eric. Normes nouvelles de l’homosexualité. In: La Cause freudienne, , nº 37.
[7] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 11-110.
[8] Ibid. p. 50-62.
[9]Em entrevista realizada para a edição italiana do “Mil platôs”, Deleuze revela que poderia ter escolhido como subtítulo do livro: “História universal da contingência”.
[10] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. In: ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 11-16.
[11] Ibid.
[12] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. Op. Cit., p. 11-16.
[13] MILLER, Jacques-Alain. Labirintos do amor. In: Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº56, agosto 2006, p. 14-19.
[14] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro. Contraponto, 1997.
[15] ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. P.125-128
[16] Ibid. p. 129

 


Ana Lydia Santiago E Jésus Santiago
Ana Lydia Santiago Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: analydia.ebp@gmail.com – Jésus Santiago Psicanalista, Analista da Escola em exercício (AE) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail:jesussan.bhe@terra.com.br



“Bons Rolês E Tudo O Que For Bom”: A Gente Não Quer Só Comida

RAQUEL GUIMARÃES E VIRGINIA CARVALHO

ÉDER OLIVEIRA

“A favela pede paz, mas a guerra nunca vai acabar…”, enuncia Juca, que vivencia em seu território um intenso e mortífero conflito que não cessa desde 2013. Trata-se de uma tensão entre dois grupos do tráfico, Bahia e Barriga, que se tornaram rivais por disputas que os integrantes não conseguem precisar o início.

 

Juca faz parte do Bahia, grupo constituído por jovens de 15 a 20 anos que agem de modo impulsivo e violento, sem demonstrar cálculo em suas ações que, em geral, são direcionadas ao outro grupo. Esses jovens vinham realizando frequentes enfrentamentos à gangue do Barriga. Para tanto, iam ao território inimigo, com armas em punho, ameaçando e convocando para o confronto. Em seguida, corriam para seu território aguardando o ataque rival.

 

“Estamos marcados para morrer”: o encontro fortuito com a morte

 

Uma proposta de trabalho com a gangue do Bahia se colocou a partir da perturbação que experimentaram esses jovens diante da notícia de que um de seus colegas havia contraído o vírus HIV. Tal diagnóstico se deu no momento em que o jovem foi ferido e hospitalizado após uma troca de tiros. Frente a esse diagnóstico, os jovens do Bahia se agitaram receando também ter o vírus, em função das parceiras em comum, e anunciaram: “Se a gente também tiver contaminado, vamos botar pra quebrar, já que estamos marcados pra morrer”.

 

A morte, presentificada no conflito que eles nomeiam “guerra”, não era questão para o grupo até o momento. Mas a notícia de que um dos integrantes havia contraído um vírus que poderia matá-lo traz para a cena o medo de morrer. A partir disso, tem-se o convite para a conversação.

 

Segundo Ana Lydia Santiago (2011, p. 97),

 

a conversação é uma prática da palavra para tratar as manifestações indesejadas que produzem insucessos e fracassos. Busca-se uma mutação do falar livremente sobre os problemas. O ponto de partida para as conversações é “o que não vai bem”, formulado por meio das queixas. A aposta da conversação é passar da queixa – que paralisa a ação [..] e produz identificações indesejáveis […] – a um outro uso da palavra em que a queixa toma a forma de uma questão e a questão, a forma de uma resposta: invenções inéditas.

 

Para tanto, a primeira pergunta, colocada aos jovens pela enfermeira, foi: “O que lhes tira o sono?”. Respondem dizendo da guerra, da polícia e dos “alemão”. Juca anuncia seu medo de que os irmãos e outros colegas morram por causa da guerra: “poucos da minha época estão vivos hoje, a maioria ou morreu, ou está presa”.

 

Os efeitos do primeiro encontro foram observados por um dos jovens, que disse que, após o encontro, só coisas boas aconteceram, sem mais troca de tiros entre os grupos.

 

A partir disso, um segundo momento é proposto. Frente à oferta da palavra, a demanda que surge dos adolescentes é a de que ali se falasse sobre o direito ao lazer, sobre o que a cidade oferece para eles se divertirem.

 

Atividades circenses realizadas por jovens abriram o terceiro encontro. Na conversação, em que foi lançada a pergunta sobre o que seria diversão para eles, algumas falas se destacaram: “Eles são bons de circo e nós somos bons de tiro. Se levar eles lá para fora, iremos dar aula de tiro”; “A erva (maconha) e as mulheres trazem tranquilidade; com a erva e as meninas nós ficamos suave”; “É necessário ter polícia para controlar, a polícia é quem mantém o controle”. Um dos jovens disse que a polícia evita uma guerra maior: “A polícia vem pra nos controlar, sem eles aqui todos vão andar armados, vai ter gente andando de bazuca”, e completa: “Se não fosse a polícia, a favela não existiria”.

 

Considerando que o primeiro instante da conversação é o de nomeação das queixas, localizou-se que o grupo se queixava de não saber como se divertir e que a “guerra” lhes tirava o sono. Nas falas, os jovens indicaram a adrenalina de se ter uma arma na mão, de fugir da polícia, de atacar o grupo rival. Falaram da identificação com a “quebrada” e do modo como circulam e se apropriam das ruas e becos, geralmente a partir de delimitações no território que a rivalidade com o outro grupo impõe.

 

“A gente não fica tranquilo depois de matar”: o mal-estar da “guerra”

 

Um novo encontro e a apresentação da “quebrada” fizeram-se importantes. Falaram sobre a violência gerada pela guerra e também sobre o impacto do conflito nas famílias, na comunidade e em suas vidas. Ao desenharem sua “quebrada”, duas frases se escrevem: “Paz na favela” e “A guerra nunca acaba”. Afirmaram que não é fácil estar em guerra, ter que matar o outro, mesmo sendo rivais. Localizam que não é só adrenalina e diversão e que estão permanentemente sobre tensão, com medo de serem surpreendidos pelo grupo rival e perderem suas vidas. Desvela-se um mal-estar na conversação, que é encerrada com a fala dos jovens de que não tem como a guerra acabar, pois isso está para além deles.

 

Anunciavam, com a angústia experimentada por se darem conta do lado mortífero da “guerra”, uma tentativa de passar da queixa inicial sobre a diversão a um questionamento sobre a guerra, em que estivessem incluídos. Demandavam diversão, mas as conversações indicavam um ponto de fixação na guerra que parecia dar contorno e sentido à vida dos jovens que dela participavam, ofertando um lugar na comunidade e, até mesmo, um modo de vida.

 

“Mil grau”: prescindir da guerra

 

O quinto encontro aconteceu em um lugar fora do território, permitindo ao grupo circular por outros espaços da cidade que pudessem ofertar diversão. Na chegada ao local programado, os jovens se mostraram animados para jogar futebol. Dois deles não jogaram por estarem com o movimento de uma das pernas comprometido por balas alojadas no corpo, demonstrando incômodo com a pouca mobilidade. O jogo de futebol foi repleto de provocações, mas sem conflitos. Os jovens relataram terem se divertido muito.

 

Após o jogo, foram em busca de mais diversão. Entraram por uma trilha seguindo o caminho que levava às quedas d’água. As brincadeiras giraram em torno do cotidiano da guerra. Fizeram muita algazarra correndo e gritando: “cuidado com os alemão”; “olha a polícia”. No retorno à quadra, os jovens se reuniram para a conversação, ratificando o que os interessava: “queremos bons rolês e tudo o que for bom; paz no coração e dinheiro”.

 

Os acontecimentos da “guerra” atravessaram os encontros. A polícia vinha se fazendo mais presente, com muitas prisões e apreensões de drogas, prejudicando as vendas do tráfico. Uma decisão foi tomada pelas lideranças de ambas as gangues Barriga e Bahia: era preciso pôr fim à guerra.

 

Na conversação que se sucedeu a essa decisão, os jovens solicitaram assistir a um filme escolhido por eles. Durante a exibição, se agitaram nos momentos em que era retratada a guerra entre duas gangues do Rio de Janeiro. A cena final do filme mostra o momento em que um dos personagens decide não dar continuidade aos confrontos, selando um acordo de paz com o rival. Os jovens se mostraram revoltados, dizendo não concordar com tal atitude do personagem.

 

Após o encontro, vão ao baile funk do bairro vizinho com armas e coletes à prova de balas, sugerindo uma rivalidade com o grupo que organizava o evento. Foram expulsos do baile pelas lideranças da gangue do local.

 

Esse episódio coloca em questão o movimento do grupo, que parecia insistir na guerra, indicando que ela tinha função, servindo como engrenagem que regula a relação com a comunidade, com os outros jovens. O que indicam eles ao se lançarem na guerra ao mesmo tempo em que demandam diversão?

 

A oferta da palavra a esses jovens nas conversações colocou-se no sentido de que eles localizassem a tensão e o medo provocados pelo conflito das gangues. O ponto de partida desse trabalho foi a angústia do grupo frente ao real da morte que irrompe, não da “guerra”, mas do HIV contraído por um dos integrantes. Nesse sentido, as intervenções, nos encontros, visavam a marcar um estranhamento à banalização da “guerra”. Os efeitos puderam ser recolhidos somente a posteriori, com o cessar fogo e com a necessidade de que algo se reconfigurasse no modo como eles vinham se movimentando na vida.

 

As conversações puderam ser concluídas com uma solicitação feita pelos jovens. Pediram a organização de uma partida de futebol contra os integrantes do grupo do Barriga. O jogo contou com um número significativo de jovens de ambas as gangues em uma calorosa disputa. Saíram dizendo que havia sido “mil grau”, muito bom. Atualmente pedem que outras partidas aconteçam. A guerra cessou.

 

“Eles são bons de circo, a gente é bom de tiro”

 

Na carta a Einstein, Freud (1932/1996) se dedica a trabalhar a questão “Por que a guerra?”, indicando, para tanto, que o desejo de aderir à guerra é efeito da pulsão de morte, impulso destrutivo que se apresenta no campo limítrofe entre o psíquico e o somático, demandando satisfação. A guerra, segundo o Freud de “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, de 1915, altera a relação dos homens para com a morte. Ela passa a não ser mais “um acontecimento fortuito” (p. 301), pois “o acúmulo de mortes põe um termo à impressão de acaso” (p. 301).

 

Faria (2013) lembra que, no Brasil, morrem mais jovens por ano nas guerras entre gangues do que nos países em guerra. Segundo sua pesquisa, esses jovens, em um momento vítimas e, em outro, agressores, são “levados pelo tráfico, pela conquista de território […], pelo prestígio, pela menina” (p. 12). Para ela, “o tênue limite que separa os `jovens da esquina’ ou as ‘galeras’ das ‘gangues’ se desfaz frente à ameaça de um terceiro, alguém da comunidade, uma turma de bairro vizinho e, em especial, a polícia” (p. 21). Nesses momentos de enfrentamento e ameaças, quando o sentimento de grupo se reforça, emergem as gangues: “O que, de início, era apenas turma, acaba se tornando grupo de conflito, com seus primeiros líderes e suas próprias regras de convivência” (p. 21).

 

Mas teriam as “guerras” entre gangues o mesmo estatuto que o das guerras entre os países? Se, nestas últimas, é possível identificar uma inscrição simbólica, essa outra “guerra”, feita pelos jovens, apresenta muito mais uma vertente de gozo, pela via da transgressão.

 

Freud (1915/1996) sustentava para Einstein que lutar contra a guerra seria contrapor à pulsão de morte seu antagonista, Eros. Ou seja, favorecer o estreitamento dos laços sociais atuaria contra a guerra. Para ele, o amor e a identificação seriam duas maneiras de promover tal estreitamento.

 

Miller (2015), ao comentar sobre a participação dos adolescentes no Estado Islâmico, nos lembra que, para Lacan, as identificações são determinadas pelo desejo do Outro, mas não satisfazem a pulsão. Perguntando-se sobre o motivo pelo qual as cenas de decapitação dissipadas pelo Estado Islâmico atrairia tantos recrutas, Miller interroga se não seria essa uma tentativa de uma nova aliança entre identificação e pulsão.

 

No relato do confronto entre Bahia e Barriga, chama atenção, mais do que as questões próprias da “guerra”, o modo jocoso como os jovens do Bahia se colocavam nela. A ideia da morte em função dos conflitos entre as gangues era certa e esperada, fora do acaso, como indica Freud, ao descrever a situação de guerra entre os países. No entanto, o diagnóstico do HIV coloca em cena a contingência e a necessidade de um rearranjo.

 

Se inicialmente os Bahia respondem, como grupo, pela vertente do “somos bons de tiro”, a dificuldade que revelam e pela qual pedem ajuda é a de fazerem parte do “circo”. Esses jovens, em seu “despertar dos sonhos” (Lacan, 1974/2003), querem se divertir, mas não sabem como fazê-lo. Conversando sobre a guerra, percebem que ela não é divertida, é mortífera. E pedem auxílio para encontrar na cidade lugares em que possam fazer “bons rolês” e encontrar “tudo mais que for bom”.

 

No jogo de futebol proposto por eles, os jovens do Bahia parecem ter encontrado um novo lugar para recolocar suas “armas” fálicas. Consentem com o fim da guerra depois do jogo, que deu lugar às provocações, fazendo borda ao conflito. Para Freud,

 

alguém que está crescendo deixa de brincar, renunciando claramente ao ganho de prazer que a brincadeira lhe trazia. Mas quem conhece a vida psíquica das pessoas sabe que nada é mais difícil do que renunciar a um prazer que um dia foi conhecido. No fundo, não poderíamos renunciar a nada, apenas trocamos uma coisa por outra; o que parece ser uma renúncia é, na verdade, uma formação substitutiva ou um sucedâneo (1908/2015, p. 55).

 

Em uma conversação, lidamos com a demanda do Outro e a do sujeito. Nesse caso, a demanda do Outro era a paz na favela. Considerava-se essa “guerra” como um sintoma. No entanto, dar voz aos jovens que vinham perdendo o sono com a possibilidade de morrerem de outro modo, que não nessa “guerra”, permitiu a localização do impasse deles em relação a ela. A dimensão mortífera da “guerra” se apresenta e eles se perguntam sobre como sair dela, dando lugar à pulsão. Foi possível se deslocarem da “guerra da favela”, rumo à pergunta sobre como fazer para se divertirem. O jogo de futebol entre as gangues parece ter entrado, nesse caso, como a invenção inédita desses jovens, através das conversações. Não como uma solução pret-à-porter pela via educativa ou sublimatória, mas como recurso para responderem aos impasses experimentados em suas construções adolescentes. Após o jogo, a paz até pode ser mantida na favela, mas não sem dar lugar à guerra pulsional de cada um.

 

[1] Texto elaborado a partir da conversação realizada no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) de Minas Gerais. O tema foi “a favela pede paz, mas a guerra nunca vai acabar: o que fazer com os jovens que enunciam essa frase?”.

 


 

BILBIOGRAFIA
FARIA, L. F. Tribos urbanas: os efeitos do abalo do Nome do Pai no contexto da violência juvenil (2013). Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG.
FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996
______. Por que a guerra? (1932) In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. O poeta e o fantasiar (1908). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud, Arte, Literatura e os Artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
LACADÉE, P. A passagem ao ato nos adolescentes. In: Asephallus. Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. Volume 2, número 4, maio a outubro de 2007.
LACAN, J. Prefácio a “O despertar da primavera” (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 20 mai. 2016.

Raquel Guimarães E Virginia Carvalho
Raquel Guimarães Lara. Psicanalista, graduada em psicologia pela PUC-Minas, especialista em Psicanálise pela Universidade FUMEC. Atua com políticas públicas de prevenção à violência e criminalidade. E-mail: raquelguima@yahoo.com.br – Virginia Carvalho. Psicanalista, coordenadora do CIEN Minas, doutoranda e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, especialista em Psicologia Clínica pela PUC-MG. Professora do curso de Psicologia da Educação da PUC-MG e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (FAE/UFMG). E-mail: vivscarvalho@yahoo.com.br.



Juventude À Deriva > Radicalização

FRANCESCA BIAGI-CHAI

 

 

GIULIA PUNTEL

O começo do século XXI viu aparecer na juventude um fenômeno que está crescendo: um certo nomadismo, uma grande mobilidade e labilidade[1]. À infância turbulenta, qualificada pelo termo medicalizado hiperativa, segue-se uma adolescência, uma juventude em constante busca de uma causa exterior a si mesma que lhe escaparia e lhe escapa sempre – uma juventude em suspensão. Nisso podemos ver a característica de uma época onde o fazer e o ter são mais importantes do que o ser, na qual o sujeito está ocupado em criar laços, em construir a vida, pois nada é óbvio. Privados da suposição de saber em relação aos pais e adultos, muitos são os jovens que se encontram liberados dessa parcela de interioridade tão elementar quanto preciosa. Com ela distancia-se a função mesma do insight, onde se enodam o desejo e sua causa, o gozo e seus sintomas, sintomas através dos quais eles puderam até então se endereçar ao Outro, abrindo uma via para a transferência. Era a Juventude abandonada para a qual August Aichhorn[2] nos sensibilizou em sua obra. Freud o presenteou com um notável prefácio sobre os três impossíveis: “governar, tratar, educar”, verificando a ética de uma clínica do Outro barrado.

 

A juventude de hoje está à deriva. A hemorragia do ser, o pseudoideal de transparência conduzem-na em direção do campo de uma exterioridade de si mesma e de uma relação com a imanência na qual tudo poderia ser visto e sabido. Então a transferência pareceria quase impossível por falta de sintoma, exceto pelo que identificamos daquilo que pode ter de sintomático na ausência do sintoma. Sintoma que vemos aflorar sob a forma da espera: espera de um acontecimento, espera de alguma coisa que faça corpo ou que venha nomear o que do corpo se manifesta no momento em que a significação do falo faz cada vez mais falta para esse uso. O lugar está preparado para que aquele que, inteiramente seguro, apareça como Outro do Outro, e tente alojar aí a sua própria causa: um canalha, como Lacan o define.

 

O que é o sintoma da ausência de sintoma?

 

Poderíamos dizer, “Psis, mais um esforço!”, se quisermos desalojar o canalha, para que cada sujeito possa ter, mais além do curto-circuito do agir, um acesso a seu dizer, a sua causa. Que o adolescente não tenha mais que se lançar em um discurso para sair de um impasse, nem tentar aparecer aí, de maneira selvagem, ou seja, fora de seu próprio discurso que não se formula. Lalíngua – tal como ela se encontra modificada e modifica por sua vez os modos de gozo de seu tempo – leva o adolescente a falar concretamente, de forma contável; tudo o que é suposto verdadeiro é verdadeiro, tudo o é suposto falso é falso. A dimensão do mais além é esmagada em proveito da imanência do efeito produzido. É agradável ou desagradável, eficaz ou ineficaz, prazeroso ou desprazeroso – uma língua sem paradoxos. Sensações igualmente que o adolescente expressa até o limite dos fenômenos de corpo: ele está irritado, isso não o interroga, isso o incomoda; ele está nervoso, ele espera encontrar o motivo nisso; ele está com raiva, “contra o quê? Contra nada… com raiva”. Essas palavras dizem o que é, aquilo a que talvez o sujeito como vazio esteja suspenso: ser ou não ser. Alguma coisa como o que diz Hamlet: “que me deem o meu desejo!”[3] O canalha é aquele que faz como fez o Ghost, que veio reclamar vingança. Através desse significante-mestre, do qual Hamlet foi apenas o braço armado, a morte levou tudo.

 

É diante dessa relação com o desejo que o analista não deverá recuar em seu encontro com o jovem à deriva. Muito pelo contrário, o analista deverá dar um passo… Em direção à adolescência[4], como nos convida Jacques-Alain Miller.

 

“Ser”, de ser retomado em um discurso

 

Conhecemos hoje essa inflação constante de jovens ditos “radicalizados na religião islâmica”, e que partem um após o outro para engrossar as fileiras de Daesh, instalados entre a Síria e o Iraque, a fim de se lançarem na jihad. A partir daí, eles se preparam para realizar assassinatos em massa, estando suas vidas sacrificadas de antemão. É com um “viva a morte” que cada um encontra seu Deus. É o que já estava lá, zona muda, morta, que o analista interroga. O que acontece com esses jovens antes que se opere essa conversão que abre as portas para sua partida?

 

O Outro que age junto a esses jovens, quem é ele? Está relacionado simplesmente com o religioso? Com o semblante, certamente. O semblante que autoriza tudo, todos os dizeres, já que ele é apenas cor de ser. O religioso é outra coisa: ele está em toda parte e em lugar nenhum, ele é discurso e nem tudo pode ser sustentado por ele; nos apropriamos dele ou não. O Outro que intoxica é o Outro no religioso. Ele se constituiu como mestre de gozo. Um mestre de gozo que se faz tomar pelo simbólico e que toca o real do outro. Ele persegue as zonas de fragilidade de jovens cujo mal-estar é palpável, o isolamento é notório, a suspensão do ser é perceptível, zonas abandonadas da transferência, para alojar nelas a máscara caricata de um sentido reencontrado, aquele de uma possível religião. Ele povoa o imaginário frágil de uma juventude desenraizada em sua própria casa por figuras ideais, não do lado, como poderíamos acreditar, do ideal do eu, herdeiro do pai, mas daquele mortífero, do duplo, aquele do eu ideal. É a dimensão fraterna dos irmãos mais velhos, captura imaginária: irmãos encontrados nas redes sociais, nos lugares públicos, nos colégios, nos bairros, nas prisões. É o início da história da partida. Progressivamente um jovem muda, não o reconhecemos mais. Desde então, uma estrutura se desenha: um buraco ou seu avesso, um muro. Um hiato entre passado e presente desfaz os laços do sujeito com os outros e com ele mesmo. O Outro privatizado se infiltra, se espalha. Ao desejo destruído se substituem a missão e sua ordem. Nessa depuração, nesse desfiar, o objeto-causa alojado no Outro está disjunto do sujeito. O outro no Outro lhe faz produzir então – poderíamos dizer, secretar – seu efeito tóxico, isto é, seu próprio real.

 

Isso não deve ser situado no registro do sentido – do tipo causa e efeito -, mas no registro do casual – do real da causa que leva à ação, que a organiza.

 

Esse fenômeno se estende às prisões aonde chegam, frequentemente, dez a vinte vezes seguidas, muitos dos chamados delinquentes, com fragilidades subjetivas não diagnosticadas, à beira da dissociação, tão bem descritas por esse esquecido termo hebefrenia. Ele descrevia essas patologias da ação, passagens ao ato iterativas e ingenuamente concebidas, mostração de uma busca nebulosa e informe às portas da esquizofrenia. O discurso analítico permanece como o único hoje a reivindicar para o homem a causalidade significante que o torna falasser. Alguns destinatários à altura de sua tarefa, os analistas, devem participar da vida da cidade plenamente, e apostemos que isso se mostrará cada vez mais necessário: o real despreza as leis.

 

Propomos aqui uma luz sobre esse real: o terrível encontro entre um jovem cujo discurso se desfaz e aqueles que tecem com ele o tecido da vontade deles. Talvez algo poderá ser alcançado sobre esse fato, isto é, somente o diálogo analítico pode alcançar o real: aos nossos políticos, para bom entendedor, uma palavra basta.

 

Agir para ser, enfim…

 

Tive a oportunidade de encontrar, em um local de detenção, um jovem estudante do segundo grau, como tantos outros. Nascido em uma família muçulmana não muito praticante, não comer carne de porco lhes era a única observância. Ele tinha vindo a Paris para realizar um assassinato em massa e vingar seus irmãos muçulmanos, punindo os ímpios e sua audácia em blasfemar, mas foi impedido.

 

Nessa época, a exibição de um filme considerado ofensivo ao islã havia provocado reações contra e a favor através de uma série de manifestações. Ele quis agir também como os outros.

 

Trata-se, portanto, de um jovem, G., até então não praticante, que acabava de fazer dezoito anos. Dezoito anos – idade adulta, da passagem à maioridade legal. Idade da responsabilidade civil e do direito ao voto, do direito a participar plenamente da vida política, dos negócios do mundo. É uma travessia, um salto para o desconhecido, às vezes para o vazio, o saut de l’ange[5].

 

G. mostra-se tímido, parece ser mais novo do que sua idade, uma certa imaturidade é perceptível. Está no terceiro ano do ensino médio e sempre foi um ótimo aluno, nunca teve problemas na escola, muito pelo contrário! Um amigo percebeu que “alguma coisa não ia bem” com G. Esse, não conseguindo mais falar com o amigo, consulta as redes sociais – para quem sabe ler, tudo está lá escrito: O homem que vai corrigir os erros aparecia sobre o pano de fundo do que antes era um “eu não estou aí, sou apenas um reflexo, eu retweeto[6]”. Ser, enfim, mesmo que seja na morte, e, além do mais, para alguma coisa.

 

Ele foi preso por posse de armas no trem.

 

Ser como todo mundo

 

Jovem inteligente, aberto à conversa, ele mostra, no entanto, durante a entrevista, uma incontestável reticência. Uma reticência do tipo: “Senhora, eu quero responder a todas as perguntas, lógico que responderei às perguntas, eu não deixarei de responder às perguntas, mas é claro, vou responder às perguntas”, o que é evidentemente uma maneira de não responder às perguntas. Isso se chama reticência prolixa, um muro de proteção: barragem fluida sustentada pelas estruturas de linguagem. Estar aí ou em outro lugar, tanto faz! A ironia se aplica a si mesmo, o resto não conta, ele está à espera daquele que fará alguma coisa dele. É nesse ponto que, com a nossa ética, nosso saber pode fazer concorrência com o sem fé nem lei do Outro bárbaro.

 

Nascido em uma cidade do interior, onde a família veio morar da África do Norte em uma data imprecisa, seu pai trabalhava “como todo mundo” e as pessoas gostavam dele. Sua mãe, dona de casa, criava os filhos. “Meu pai, diz ele, é como todo mundo, nós somos como todo mundo”. Ele não pode precisar mais além disso: essa significação última e absoluta, constituinte e identitária, lhe dava um lugar. De sua infância, ele não diz nada ou pouca coisa, pois ele acha que não tem nada a dizer, isso é um fato. É um fato fora da dialética. As únicas perguntas a serem feitas nesse caso são banais, concretas, que tentam se aproximar da motivação. Se ela existe, só poderá ser apreendida lateralmente, parcialmente às vezes, mas durante esse tempo, o diálogo continua.

 

O sexo, a morte por arrombamento

 

Muito querido por seus professores, sua infância se passou sem altos nem baixos, sem vícios, tanto no plano social quanto no plano psíquico. Ele não teve problemas e de fato quase nada foi problema para ele. Adaptava-se docilmente, moldava-se ao que lhe pediam para fazer. Nunca teve angústia, nenhuma preocupação, principalmente sobre a questão da morte. Para ele, isso não tinha nenhum interesse; tinha a vida e tinha a morte: palavras.

 

Passar das palavras às coisas é o que deve acontecer com a maioridade. Ele encontra uma jovem, “como todo mundo”, mas é preciso colocar um corpo, e isso não acontece: ele se dissocia e se esgarça. Alguns beijos, e logo uma parte dele tem pressa em pertencer a ela para se pertencer. Ele a assedia, chega mesmo a invadir sua sala de aula numa escola que não é a sua. O diretor dá queixa, sem resultado, ninguém se interessa por isso; a jovem faz o mesmo por causa de SMS invasivos, tanto de dia quanto à noite. Confrontar-se com o sexo, com a morte, é confrontar-se com a castração, com o não-todo. Ele é confrontado com o vazio, com a perda de qualquer senso crítico, com a ausência de divisão, já que impossível. Ele está condenado à necessidade de que o corpo e as palavras façam Um, façam Todo, sejam resposta e não pergunta.

 

Deus e o além

 

É nesse vazio, nessa incerteza, nessa espera em que tudo nele se oferece à abnegação, na condição de que ele recupere um corpo, que pôde se produzir a faísca de um encontro, um encontro no sentido forte, total, místico religioso ou não: uma experiência de gozo.

 

Ele me conta que, como bom cientista, consultou a internet para “entender como ser um homem”, “entender o que significa crer”. A conselho de um colega que lhe apresentou outros colegas, ele encontrou num site uma série que está passando ainda hoje. Esta lhe cai como uma luva, já que seu título está relacionado com a vida depois da morte. Mais amplamente com o Além, precisamente a dimensão que lhe falta, pois ele a identificou nos outros: eles têm um ar de cumplicidade, falam, gozam. O sexo e a morte se misturam, e ele, separado do um, é lançado no outro. Como Paulo, no caminho de Damasco, é uma revelação. Ele não sabia o que era a morte, ele a encontrou ali, naquela série. As novas palavras vieram nomear o sacrifício, a pergunta se abriu ao mesmo tempo em que a resposta a fechava novamente: a eternidade, e, sobretudo, uma vida no além, inefável, infinita.

 

Nessa série que vai em busca dos seres mais frágeis, ele é guiado, é carregado, colocam-lhe balizas. Ela expõe o dejeto e a morte, e, isso, de maneira muito concreta: “a riqueza, o dinheiro, tomam conta de você até que você visite o túmulo comigo”. As imagens nos conduzem: “Você já foi a um enterro em um cemitério? E aí você pensa, um dia serei eu”; “O crente não está preocupado com essa vida enganosa, o crente trabalha pela eternidade.” A morte torna-se objeto, objeto precioso, ela é o objeto que substitui o falo; então, para aquele a quem ele falta, ela se torna a mais-valia de seu ser, e seu ser pode aliená-lo a esse outro, que a colocou em jogo.

 

Nessa série, a morte manifesta-se topologicamente com o seu além, que é ao mesmo tempo um aquém ou, melhor dizendo, como uma eternidade de gozo concreta onde todo temor se apaga. É uma tomada de poder total. As ações podem ser perpetradas na dimensão megalomaníaca que lhe é consubstancial – careta do ideal –, enquanto a consciência e o espírito crítico desse jovem se obscureceram. De repente, ele tinha a imensidão diante dele. Isso vinha responder evidentemente à impotência que ele tinha diante da vida, do sexo, do amor.

 

A abnegação e sua lógica

 

Tendo se tornado crente à sua maneira, aqueles que ele encontra no rastro dessa captura são como ímãs “às voltas diretamente com o além”, mais fortes, portanto, do que os ímãs tradicionais. Ele está, desde então, diretamente ligado a um dever delirante. Um vídeo americano controverso, A inocência dos muçulmanos[7], causou um alvoroço naquele ano e manifestações aconteceram quase em toda a França. Ele deseja participar, mas perde-se no caminho. Experimenta então um mal-estar cada vez maior, “ele não fez o que tinha que fazer”; seguem-se raiva, tensão, nervosismo. A ideia de que “ele tem que fazer alguma coisa” começa a surgir em sua cabeça: a ação como razão cujo objeto resta a definir pelo outro, no outro. Ele quer viajar para o exterior, mas um hadith do profeta diz, no momento certo, que não deveria viajar sozinho. Um amigo perguntou se ele tinha ficado louco, o que o tornou suspeito a seus olhos. Ele se afasta progressivamente daqueles que proferem a menor dúvida ou pergunta. Precisava fazer alguma coisa, puro imperativo que não foi seguido por nenhuma declinação, por nenhum desenvolvimento e que é, para os psicanalistas, o indício da última muralha antes de uma precipitação na passagem ao ato ou no presente congelado de sua preparação.

 

Surge uma associação que “zomba” dos manifestantes, caricaturas são publicadas: é preciso eliminar os membros, pergunta-resposta sem o distanciamento da crítica, sem a passagem pela razão ou pela lei, absorvida no curto-circuito da ação, como um comando vindo de outro lugar.

 

G. comprou então armas e sua passagem. “O que você queria fazer?” “Matá-los, é proibido zombar, xingar.” “Como você teve essa ideia?” “Assim… eu passei da defesa ao ataque.” “Hoje você viajaria para algum lugar?” “É difícil dizer, é proibido viajar sozinho.”

 

A confissão de um gozo: uma mística materialista

 

O analista pode sustentar um diálogo no semblante, menos destinatário do que instrumento para ler o real, interessar-se pelo sujeito – é o que ele pode às vezes dar a saber: seu saber fazer está além de sua experiência, ele se regula pelo valor do real. De minha parte, eu avançava lentamente em direção a esse ponto de real que o cegara, real que não se apaga, mas insiste, único registro a ser desnudado, se pretendemos antecipar, desviar, até mesmo impedir seus piores efeitos. “Isso te levou muito longe, disse eu, seus colegas te deixaram sozinho. Você queria assistir de novo essa série, que foi em todo caso nociva, já que ela te levou à prisão?” Ele suspende sua resposta, reflete por um bom tempo – um momento de confiança, de laço, um esforço, um esboço de transferência. Ele me dá, com um sorriso distante, em um pedaço de real sua verdadeira resposta, sincera no diálogo: “Se, no verão, no deserto, alguém te oferecesse um excelente sorvete para provar, e você ignorasse a sua existência, você tem certeza de que não aceitaria mesmo?”

 

Não estamos mais no intelecto: aqui, o ponto de real é perceptível. G. experimentou, provou alguma coisa física, mística, ele que não sabia até então que tinha um corpo. Provar é do corpo, um êxtase material, um êxtase leigo.

 

Lugares para um laço

 

E aqui, evidentemente, isso diz que seu espírito estava obscurecido, mas isso diz também que isso pode, que isso tenta voltar. É preciso colocar mais tecido nisso, mais tecido psíquico, mas não só: como todo o seu percurso indica, convém trabalhar sutilmente com ele, na direção dele, não largá-lo, acompanhá-lo para que ele teça novamente laços humanos contra o êxtase mortal.

 

Impossível fechar os olhos para o fato de que há muito tempo a prisão suplantou os centros médico-psicológicos, os hospitais e os diferentes lugares de tratamento: facilidade financeira, pobreza teórica por ausência de bússola, é preciso economizar!

 

Os laços são o tecido que uma psiquiatria esclarecida pela psicanálise poderia tecer, em seus lugares institucionais, para que o fora não seja um fora antropofágico, onde aquele que se diz o mestre, o pai ou o irmão devora os seus. Esses jovens subitamente convertidos colocam menos a questão da justiça e da punição do que a questão de um saber a ser reencontrado pela psiquiatria. E, para aqueles que nos governam, revalorizar, aumentar lugares de proximidade onde exercê-la; onde a presença física, o tempo necessário não seriam quantificados mas dependeriam da relação com o gozo; lugares orientados pela psicanálise que é o futuro da psiquiatria para que aí se enganchem, com a transferência, aqueles que nomeamos com tanta facilidade como os desenganchados[8] – juventude à deriva oferecida a ser capturada.

 

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Márcia Souza Mezêncio

 

[1] Intervenção pronunciada durante a Jornada de Estudos “Psiquiatria e Justiça” no Nouvel Hôpital de Navarre de Evreux, em 2 de dezembro de 2014.
[2] Aichhorn A., Freud, S., Jeunesse à l’abandon [1925], reedição, Toulouse, Editions Privat, 1973.
[3] Lacan J., Le Séminaire, livre VI, Le désir et son interpretation, Paris, Seuil, 2013, p. 345
[4] Miller, J.-A., “Em direction de l’adolescence”, Interpeler l’enfant, collection La petite Girafe, 2015.
[5] NT: Fazer o “salto do anjo” significa saltar ou mergulhar de grandes alturas abrindo ao máximo os braços e juntando as pernas. A expressão é uma metáfora que nos remete à simbologia celeste das asas abertas de um anjo suspenso nos ares.
[6] NT: Em francês, “retweeter”, neologismo que significa reescrever tweets.
[7] L’innocence des musulmans é um vídeo americano difundido em 2012 no YouTube.
[8] NT: No original décrocheurs, no sentido daqueles que são abandonados, que se desgarraram, que perderam toda a referência.

 


Francesca Biagi-Chai
Analista Membro da Escola (AME) pela École de la Cause Freudienne (ECF), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: bia.chai@free.fr



Sobre A Saúde Mental: Que Instituição Para Os Adolescentes?

HENRI KAUFMANNER

ÉDER OLIVEIRA
Em suas reflexões sobre a psicologia escolar, Freud nos fala do impacto que causava o encontro casual de um antigo professor pelas ruas de Viena. Tal impacto era acompanhado por um estranhamento, que pode se resumir à pergunta: “será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, eram tão pouco mais velhos que nós?” (FREUD, 1977, p.74). Freud confessa que o encontro com seu antigo mestre lhe provoca uma dúvida sobre o que teria exercido a influência mais determinante em sua formação: sua preocupação com as ciências que lhe eram ensinadas ou a personalidade de seus mestres. Se, sob sua pena, a importante articulação entre o Outro e o Saber já revelava sua importância, o movimento de destituição desse lugar idealizado do Outro também se mostrava primordial. 

Não por acaso, nesse pequeno texto, Freud discorre sobre a importância do pai, ligação fundamental na vida de uma criança, presente particularmente naquilo que ele nomeia ambivalência emocional. Observa que, a partir da segunda metade da infância, a criança, começando a vislumbrar o mundo exterior, avança em direção a um desligamento dessa idealização primeira, afirmando ainda que tudo o que há de admirável e indesejável em uma nova geração é determinado por esse desligamento do pai.

 

O tema de nossos trabalhos neste semestre no NIPS (Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental) do IPSMMG (Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais) convoca-nos a investigar as questões trazidas pela adolescência quando nitidamente nos vemos diante de uma realidade bem distinta daquela experimentada por Freud.

 

Como pensar uma relação possível ao Outro, num tempo em que o Mestre não surpreende mais? Que instituições poderiam acolher e tratar os adolescentes, nos quais o desligamento do Outro é uma marca determinante? Como podem os adolescentes hoje em dia construir uma nova ligação a um Outro, no qual o que domina é a lógica do não todo?

 

Esse pequeno fragmento das reflexões de Freud já nos apresenta algumas variáveis do problema.

 

Miller (2015), em sua intervenção “Em direção à adolescência”, desvela uma dimensão autoerótica do saber que predomina hoje em dia. Os adolescentes trazem o saber no bolso, ele não passa mais pelo Outro. Em sua intervenção, somos ainda apresentados a uma série de consequências relativas ao declínio do Pai e à inexistência do Outro. Há toda uma diversidade de comportamentos ligados a uma demanda de respeito, à denúncia da tirania do Outro e à uma realidade imoral. O avanço da Ciência, ao deslocar do mestre o saber, esvazia a dimensão simbólica do Outro, que passa a se apresentar ora inconsistente, ora em uma consistência, diríamos, malévola.

 

Miller fala da adolescência como uma construção, e que poderia ser tomada em várias perspectivas. Temos, assim, a adolescência cronológica, a biológica, a psicológica, a cognitiva, a sociológica, entre outras. Assinala ainda que dizer que se trata de uma construção se refere a uma convicção de que se trata de um artifício significante. Segundo ele, vivemos uma época que nega, com muita boa vontade, o real, ocupando-se apenas dos signos que são, em última instância, semblantes.

 

Adolescência é um daqueles conceitos que, embora não psicanalítico, convoca-nos a operar com ele, tamanha a sua presença e o campo de sentido que cria, além dos inegáveis efeitos na cultura e na clínica. A adolescência é, no mínimo, um semblante de nossos tempos.

 

Freud, por seu lado, referia-se apenas aos acontecimentos da puberdade. Nos “Três ensaios”, o evento da puberdade é marcado pelo fato de que a pulsão sexual, até então autoerótica, encontra agora o objeto sexual. Assim, as pulsões passam a se subordinar à pulsão genital, tendo como consequência o estabelecimento de uma nova finalidade pulsional, repercutindo de modos diferentes no que seria um homem e no que seria uma mulher, determinando, assim, a diferença entre os sexos. As alterações produzidas pela puberdade tornariam a tensão pulsional impossível de ser satisfeita apenas em sua vertente de ternura, como até então, exigindo também do sujeito a colocação em cena de uma tensão sensual, chamada às vezes por Freud também de corrente agressiva da pulsão. É nítido observar que algo da ordem de uma irrupção no campo pulsional exige um rearranjo dos modos de satisfação que afetam o corpo, não mais apaziguados por aquilo que Freud nomearia de escolhas narcísicas do objeto.

 

As pulsões sexuais encontram seus primeiros objetos apegando-se às satisfações das pulsões do ego. Assim, as primeiras satisfações sexuais são experimentadas em ligação com as funções de preservação do Eu. Contudo, na puberdade, não é mais possível sublimar a corrente erótica do amor; a via da sublimação não é mais suficiente para manter o desejo sexual acomodado a uma satisfação apenas pela corrente da ternura, e, forçando a barreira do recalque, este cobra seu preço.

 

Assim, podemos associar a queda dos semblantes e a impossibilidade da sublimação como dois elementos marcantes dessa irrupção da puberdade. Um real que não se acomoda mais às soluções até então encontradas pela criança.

 

Foi Lacan quem articulou semblante e real. Um significante, por si só, não significa nada, é um qualquer um, e não há relação natural entre as palavras e as coisas. O que está em jogo é a sua utilização da linguagem como laço, e, para tanto, é necessária a mediação de um discurso. A estabilidade de um discurso é o que vela o valor de crença dos sentidos com os quais construímos a realidade. Assim, para que algum efeito de discurso se produza, resultando numa amarração no campo do sentido, é necessária uma rede de semblantes, e que essa rede de semblantes determine um mais-de-gozar. É a rotina, a regularidade dessa rede, que assegura um sentido na relação entre o significante e o significado, estabilizando, assim, o campo semântico.

 

A puberdade rompe com a regularidade narcísica da criança, desvela o valor de crença da realidade na qual a criança se sustentava até então. O sujeito se vê embaraçado diante da invasão de um gozo que não se pode sublimar fora do discurso.

 

Assim, se a puberdade, como assinala Freud, convoca o sujeito a um movimento, diria eu dialético, de desligamento/religamento do Outro, podemos vislumbrar que, diante do declínio do pai, da inexistência do Outro, os efeitos de tal convocação em nossos dias são inegavelmente angustiantes.

 

O adolescente contemporâneo depara-se com uma realidade na qual os semblantes se multiplicaram, não mais organizados em torno de um Outro idealizado. O avanço da ciência e o declínio do sentido por esse produzido transformaram o campo da realidade e dos semblantes, até então articulados.

 

A Ciência, inaugurada por Galileu, afirmava-se como a escrita da natureza pela matemática. Entretanto, se descolou dessa mesma natureza, e as letras, com as quais a Ciência se escreve hoje, tocam um real que não se confunde mais com o que nos acostumamos a pensar como natural. As letras, assim isoladas, passaram a circular em uma identidade de si, não mais atreladas ao sonho da universalidade da natureza, mas em um circuito que tem sua própria lógica e que, atuando sobre os corpos, produz efeitos com os quais nos deparamos e vamos nos deparar cada vez mais, devido a um inevitável aumento de sua dominância no mundo.

 

Tal dominância tem consequências significativas sobre os discursos e, por conseguinte, sobre a cadeia de sentidos pelos quais ordenamos nossa experiência de realidade, nossos semblantes.

 

Aos efeitos do avanço da ciência e à pulverização do campo de sentido produzido pela tentativa de redução do real à lógica resultante da livre circulação das letras, devemos acrescentar os efeitos incidentes na economia de gozo do falasser, consequentes à aliança da ciência ao capital. Essa aliança interfere diretamente na relação desses com o corpo, pela produção de objetos de consumo, gadgets gerados a partir da oferta de um gozo que agora se faria possível pelas ofertas do mercado.

 

É nesse contexto que encontraremos muitos dos adolescentes que chegam aos serviços da chamada Saúde Mental. Invadidos por essa experiência estrangeira do gozo, convocados ao consumo e ao ato, os adolescentes trazem no corpo a novidade. Uma novidade que transborda e que lhes exige uma construção sintomática.

 

Como religar onde o Outro não existe?

 

Não são poucas as instituições que buscam restaurar, de forma moral, esse Outro que assim reaparece em sua dimensão superegoica.

 

A psicanálise aposta em um caminho em que se torne possível acolher esses corpos e a novidade que neles incide em sua dimensão singular. É preciso um tempo para a invenção do falasser e seu sintoma. Um tempo para que cada um, atravessado que é nos dois polos de sua causação, desarticulado do sentido e imerso na liquidez do gozo, possa recorrer a novas invenções sintomáticas que lhe permitam uma resposta singular, só sua, não universalizável, ao que ele é. Com isso, talvez ele inscreva em sua vida o algo próprio e inalienável de seu ser.

 


BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 285-288. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIII).
FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 118 – 228. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.VII).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em: 20 fev. 2016.

Henri Kaufmanner
Henri Kaufmanner. Psiquiatra, Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Coordenador do NIPS/IPSMMG. E-mail:Kaufmanner@gmail.com



Adolescência, O Que É?

ROBERTO ASSIS FERREIRA

 

NICOLETTA CECCOLI. AUTO-RETRATO.

 

Adolescência, o que é? foi o título que me foi sugerido. Tenho como proposta falar para aqueles que atendem no campo da saúde mas entendem que a psicanálise pode trazer contribuições importantes à sua prática.

 

Sinto-me à vontade em trazer alguma coisa do campo da psicanálise para a medicina. A medicina sempre pescou em outros campos do conhecimento, como exemplos: a causalidade infecciosa de diversas doenças – uma contribuição de Pasteur, que era um biólogo; a genética de Mendel, este era um monge e botânico; a farmacologia de Pauling, e por aí afora.

 

Voltando ao tema, vamos começar com a adolescência e a puberdade. Esses são conceitos diferentes, vêm de áreas diferentes do conhecimento, e distingui-los clareou bastante minha prática. O conceito de puberdade vem da biologia, da medicina, corresponde a um momento do desenvolvimento do organismo humano, quando acontecem transformações muito intensas, sobretudo no corpo. Freud (1901-1905) fala em metamorfoses da puberdade. Os processos biológicos da puberdade são universais, mesmo com particularidades, variações individuais. Há casos de puberdade tardia e precoce, há fenômenos que caem no campo da patologia. Em síntese, a puberdade é um conjunto de transformações físicas e hormonais que marcam o fim da infância. Não vou aprofundar essa questão.

 

Já o conceito de adolescência tem várias compreensões. O que se chama adolescência desperta o interesse das ciências humanas e sociais: da antropologia, da sociologia, da psicologia e da própria psicanálise. Para alguns, é uma fase do desenvolvimento humano, confundindo-se um pouco com o conceito de puberdade. Vamos trabalhar com algumas contribuições da psicanálise. Miller (2015), no texto “Em direção à adolescência”, considera a adolescência uma construção. Pode-se falar em construção social, com particularidades em diversas culturas.

 

A adolescência é um momento de dois grandes chamamentos. Há um chamado que vem do corpo, do próprio corpo e do corpo do outro; e um segundo, que vem do campo do Outro, do desejo do Outro. O que esse Outro quer de mim? Há uma imagem que vi, não sei se em Lacan: um mosquitinho olhando para um louva-a-deus ameaçador de boca aberta. O mosquitinho, a mercê do louva-a-deus, se interroga: o que ele quer de mim? É isso aí, o ser falante se angustia diante do desejo do Outro. Como responder a essa grande boca aberta?

 

Freud apontava para duas questões nesse momento da puberdade. A primeira, no campo da sexualidade, para a qual o sujeito nunca está preparado. A segunda, a separação, ou seja, o descolamento dos pais ou, ainda, falando de forma mais ampla, a separação do outro familiar. Essa separação só será possível se alguma coisa aconteceu no tempo da infância, se alguma coisa aconteceu no Édipo, se houve, como clareou Lacan, a entrada do Nome do Pai.

 

Alexandre Stevens (2004) entende a adolescência como sintoma da puberdade. Essa é uma boa aproximação clínica: pensar a adolescência como uma resposta à irrupção pubertária. O sujeito, nesse momento, inventa um modo de sobrevivência visando a essa difícil travessia.

 

Gosto de ilustrar com uma analogia: você está andando de ônibus, está em pé, sem lugar para se assentar, “no balanço pra lá e pra cá”, é preciso se segurar em algo, senão se vai ao chão. Isso chamo de sintoma, um segurador de ônibus, alguma coisa em que o sujeito se segura para enfrentar as atribulações da vida. O sintoma, para a psicanálise, não é propriamente sintoma de doença, embora possa ser. Não é um fenômeno universal nem apenas particular, é algo singular, cada um tem sua adolescência como seu sintoma. Portanto, a partir da psicanalise, podemos adotar a compreensão de que adolescência, para cada um, é singular. É alguma coisa que dá sustentação ao sujeito. A adolescência entendida como sintoma pode dar sustentação à travessia da infância para o mundo adulto, substituindo, em nossa época, os ritos de passagem de outras culturas. Essa é uma leitura possível das coisas, o que não impede de haver outras.

 

Em direção à adolescência

 

Miller (2015), no texto “Em direção a adolescência”, provoca e incita o campo freudiano a trabalhar sobre a adolescência. Propõe que se trate das questões da atualidade, mas aponta a importância dos conceitos básicos. Não há como aprofundar esse debate sem partir do estudo da própria criança, sem ir ao que Freud e muitos pós-freudianos elaboraram, chegando-se ao que se produz hoje. Está colocado o desafio, principalmente àqueles que se dedicam à clínica da adolescência.

 

Miller coloca que, para a psicanálise, há três questões centrais na adolescência. Como primeira, a saída da infância, momento que vem à tona com a puberdade. Aí é fundamental ler Freud (1901-1905), em especial seu texto “Metamorfoses da puberdade”, mas também estudar fora da psicanálise.

 

Como segunda, um tema bem atual, a diferenciação sexual. Como essa questão se coloca para o ser falante na infância e na adolescência? Já não se sabe mais o que é ser um homem ou uma mulher. Os semblantes estão confusos, as balizas simbólicas já não dão tanta sustentação à transmissão vertical: o Nome do Pai, o Ideal do eu, as insígnias do Outro. Isso leva os jovens na contemporaneidade a construir respostas com seus próprios recursos, usando a transmissão horizontal, a identificação com os pares, os modismos, as “comunidades de gozo”. Essa falta de referência estimula a experimentação. Cada um procura, pela própria experiência, o que é melhor para ele, o que lhe dá mais satisfação.

 

Um parêntesis: a medicina biotecnológica, resultante da aliança da ciência com o capitalismo, traz grandes avanços técnico-científicos, mas deixa um resto, que bate às portas da medicina. A clínica do adolescente é precursora dessas manifestações, na qual há resistência, de clínicos e de pediatras, ao atendimento de adolescentes. Pode-se listar formas de adoecer, atuações de risco, enfim, desafios à saúde: depressão, bipolaridade, anorexia, vícios em informática, inibições sexuais, toxicomania, violência e mortalidade por causas externas, etc., problemas pouco valorizados pela medicina há algumas décadas.

 

Como terceira, o que Miller chama de “a imiscuição do adulto na criança”, aí está em discussão o que ele chama, sem gostar da expressão, de “desenvolvimento da personalidade”, no qual se articulam conceitos como o eu ideal e o Ideal do eu, nesse momento púbere em que o narcisismo se reconfigura. Miller (1999), em outro lugar, comentando o Seminário 5 e referindo-se ao terceiro tempo do Édipo, faz diferenciação entre Supereu e Ideal do eu, duas funções que têm sido confundidas na psicanálise. Afirma que o Supereu suporta funções de proibição, por outro lado,

 

o Ideal do eu exerce sua função sobre o desejo e a normatividade sexual. Lacan diz: tipificação. É uma função que coloca o sujeito sobre o eixo do que deve fazer como homem ou como mulher. Todas as perguntas sobre a identificação feminina ou viril são questões que, na teoria psicanalítica, giram em torno do Ideal do eu, noção que Lacan teve prontamente como leitor de Freud (MILLER, 1999, p. 75).

 

Adolescência, um momento especial de encontro com o real.

 

Costuma-se colocar a adolescência como um momento de despertar. Há uma famosa peça teatral de Wedekind, do fim do séc. XIX, “O Despertar da Primavera”, que foi comentada por Freud e Lacan. A peça conta a história de jovens que viveram esses chamamentos da puberdade, a vivência da sexualidade numa época de grande repressão sexual. Desenrola-se uma tragédia: um jovem se suicida, uma garota engravida e morre ao provocar aborto, outro rapaz é salvo do chamado ao suicídio por um avatar do pai – “um cavaleiro mascarado”. Nesse momento especial da puberdade, o que leva ao despertar é o que na psicanálise lacaniana se chama de Real, um encontro com o real. Um encontro com real pode levar o sujeito a mudar de direção: construir um sintoma; fazer uma passagem ao ato, como um suicídio; desencadear uma psicose…

 

O que seria esse real que leva o sujeito a despertar? O Real não pode propriamente ser definido, mas é possível tentar passar dele alguma compreensão. O Real como “encontro faltoso”, um encontro com a falta, como está no seminário 11; “como impossível”, impossível de suportar; como “encontro traumático”, aquilo que não tem sentido, aquilo que escapa à simbolização, enfim, um encontro com o que desencadeia a angústia: aquilo que não engana!

 

Em algum momento, contingencial ou não, há encontro com o Real. Em especial na adolescência, o simbólico que se constrói na infância, muitas vezes não é capaz de dar conta das situações enfrentadas, constituindo-se respostas sintomáticas.

 

No mundo contemporâneo: qual a resposta à invasão pubertária?

 

Na contemporaneidade, a adolescência tem caráter cada vez mais particular, de família, de época, de camada social, de grupos sociais. Há tendência a um alongamento da adolescência tanto para baixo, quando meninos e meninas de nove anos se portam como adolescentes, quanto para cima, quando rapazes de 26 a 30 anos ainda se comportam como adolescentes – ainda estão estudando, morando com os pais, sem definição de uma profissão.

 

Uma dimensão fundamental de nossa época é o declínio da ordem simbólica, ou seja, o declínio do Nome do Pai. Como consequência, pode-se falar do hedonismo contemporâneo. Vive-se em uma sociedade de grande insatisfação, na qual há a ilusão hedonista de um gozo ilimitado, levando à busca contínua de objetos de consumo, gadgets de toda ordem lançados continuamente no mercado. Jacques-Alain Miller criou a expressão I < a (Ideais < objetos).

 

Miller (2015), no texto já comentado – “Em direção à adolescência” –, aponta para o que há de novo na adolescência e ressalta questões que vêm sendo estudadas por nossos colegas analistas. Entre elas, a referida procrastinação da adolescência, como esse tempo de separação dos pais e do laço familiar vem se alongando. Isso é comum nas camadas médias mais abastadas, nas quais predominam famílias pequenas e gregárias, associando-se às dificuldades de inserção no mercado, dificultando ocupar um lugar no mundo do trabalho. Em outro aspecto, há uma nova relação com o saber: este já é não é mais propriedade dos adultos, está facilmente acessível, a transmissão já é não tão vertical pelos pais e pelos professores, que serviam de modelos. Os modelos estão nos próprios pares. Vive-se também uma realidade imoral, degradada, banalizada, até certo ponto amoral. Por outro lado, pode-se falar em socialização dos sintomas, em modismos sintomáticos, em “comunidades” de gozo. Miller aponta para diversas consequências das mutações da ordem simbólicas, como o declínio do patriarcado, a destituição das tradições e o déficit do respeito – “respeitar e ser respeitado”. Por fim, alerta para um fenômeno que cresce na própria Europa e se antepõe ao discurso da ciência, uma outra tradição: o Islã.

 

Clínica da recusa: uma característica da adolescência

 

Há uma particularidade de importância na condução do tratamento de adolescentes. Pode-se falar de recusa ou de rechaço ao tratamento. Essa é uma questão central no trabalho clínico com as anoréxicas. Isso está nas anoréxicas, mas também está nos adolescentes. O adolescente, na maioria das vezes, não tem demanda própria. Às vezes há motivações médicas: febre, dor no estômago, cefaleia, a puberdade que ainda não começou. Querem tratar disso e pronto!

 

Acontece que as preocupações dos pais podem ser de outra ordem. Estes usam essas queixas, que permitem ao adolescente ir ao médico para que sejam abordadas outras questões. É preciso entender que essa é uma característica dessa clínica. Não há demanda pois não há transferência prévia, o adolescente não supõe no Outro um saber sobre suas questões. Claro que o adolescente pode “ser transferido” com o profissional com quem trata desde a infância, mas é uma transferência constituída de outra ordem. O que não indica sempre que essa transferência permita uma abordagem no campo específico da adolescência. Alguma manobra vai ser necessária ao profissional, é preciso algum manejo para que se constitua espaço para as questões próprias da adolescência.

 

Dependendo das questões, elas podem ser abordadas pelo próprio profissional, outras devem ser referenciadas a outro, como a um analista ou a um psicólogo. Em geral, não dá bons resultados receitar inicialmente um psicólogo; há resistências. Antes, é preciso permitir que a subjetividade do sujeito venha à tona, que algo surja nesse campo. Essa é minha experiência. E, para que alguma coisa surja da subjetividade, de queixas subjetivas, é preciso uma pitada de escuta, abrir uma pequena janela de escuta, como tem insistido a prof.ª Cristiane de Freitas Cunha (2014).

 

Há uma nomeação que aprendi, é um instrumento. Por exemplo: um médico, para permitir ao adolescente se deslocar ao trabalho de suas questões com outro profissional e abordar aquelas que realmente estão perturbando a sua vida e a da sua família, tem que se colocar no lugar de um “médico passador” (MILLER, 2012, p. 98). Alguém que permita a passagem de um campo ao outro.

 

É o que se aprende no trabalho com as anoréxicas e com os adolescentes. O médico sabe que o paciente tem anorexia, mas, para permitir a entrada de um analista, de um profissional ligado às questões que estão ali incutidas, tem que estar disposto a escutar, possibilitar que a subjetividade do paciente apareça.

 

Concluindo, a clínica do adolescente é uma clínica da recusa, na qual não há demanda própria para tratamento das questões subjetivas. Mesmo quando há algum laço transferencial, este pode se romper. O que compete a nós? Escutar o adolescente e talvez ir um pouco além, ajudá-lo a encontrar um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Essa é uma tarefa que se coloca para cada profissional da área da saúde, mesmo para aqueles que não vão assumir a condução do trabalho psicoterápico ou psicanalítico.

 

A inscrição e a não inscrição no campo do Outro

 

Ainda um último aspecto! Um grande desafio à adolescência: como conquistar um lugar no campo do Outro? A questão do sujeito “se inscrever” ou “não se inscrever” no campo do Outro. Hugo Freda (1996), no artigo “O adolescente freudiano”, aborda esse tema em um texto muito rico e delicado. É uma questão muito clínica, pois muitos adolescentes não conseguem sair da adolescência e ficam perdidos na vida. Por não encontrar esse lugar, não foram capazes de se inscrever nesse campo do Outro. Alguns desses jovens até construíram ideais, tinham expectativas, mas fracassaram e não conseguem fazer a virada, ou seja, retificar suas expectativas, se reescrever no campo do Outro, fazer novas amarrações. Hugo Freda entende a adolescência como esse momento em que se buscam e se constroem os caminhos para a inscrição no campo do Outro. Ele cita Freud como um exemplo bem-sucedido. Ele queria trazer uma contribuição ao saber humano e trouxe. Cita outros exemplos bem-sucedidos e alerta que se pode repertoriar sintomas e comportamentos diante da impossibilidade da inscrição: o suicídio, a toxicomania, os viciados em jogos, delinquentes e, enfim, formas bizarras de inscrição.

 

Por fim, uma palavra aos profissionais que se dedicam à adolescência: feliz do jovem que, em dificuldades, encontra uma referência confiável no mundo adulto, um avatar do pai, “um cavaleiro mascarado”, uma referência capaz de dizer sim, de escutá-lo e ajudá-lo a construir uma direção.

 

Não devemos esquecer que a adolescência é um período de trabalho, de desafios, de incertezas, de sintomas sociais, mas também é um dos momentos mais belos da vida, merecendo ser vivida intensamente.

 

 

 

[1] Seminário de abertura sobre adolescência do NIPPM – 1º semestre de 2016. Texto gravado e transcrito por Bianca Ferreira Rocha, reformulado pelo expositor.

BIBLIOGRAFIA
CUNHA, C.F. A janela da escuta. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREDA, H. O adolescente freudiano. In: Adolescência: o despertar/Kalimeros, EBP: Rio de Janeiro, Heloisa Caldas e Vera Pollo (Orgs) 1996.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: transformações da puberdade (1905), In: Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006 (Edição Standard Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.7).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia.
______. Perspectivas do Seminário 5 de Lacan: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999.
______. Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2012.
 STEVENS, A. Adolescência como sintoma da puberdade. Clínica do contemporâneo. Curinga, Belo Horizonte, n.20, p.27-39, 2004.
WEDEKIND, B. F. O despertar da primavera. Lisboa: Ed. Estampa, 1991.

Roberto Assis Ferreira
Roberto Assis Ferreira. Médico, Analista praticante, Doutor em Medicina, Prof. Emérito da UFMG, Membro EBP/AMP. robassisf@gmail.com