Editorial Almanaque nº17

LUDMILLA FERES FARIA

Com vocês, o Almanaque 18, cujo tema “As novas configurações familiares”, com certeza, será de muito valor para nossos trabalhos rumo ao ENAPOL VIII – “Assuntos de família: seus enredos na prática”.

Em Trilhamentos contamos com a amável contribuição de Rose-Paule Vinciguerra, com o texto “A psicanálise em relação às famílias”, no qual a autora parte dos novos modelos de família, chamadas hipermodernas, para questionar se os efeitos da igualdade tendem a produzir uma indiferenciação sexual. Essa questão vai de encontro ao debate iniciado em nossa comunidade analítica rumo à XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – MG: “Inconsciente e diferença sexual, o que há de novo?”

Ainda em Trilhamentos, temos os textos de François Ansermet, “Avesso da Procriação”, e de Fabian Fajnwaks, “A família entre a ciência e a lei”. Os dois autores, cada um a seu modo, debatem os impasses subjetivos advindos do progresso da ciência e do discurso jurídico. Os casos clínicos apresentados demonstram a forma como a psicanálise pode contribuir para que os sujeitos inventem soluções para responder ao enigma de sua vinda ao mundo.

A rubrica Entrevista está imperdível! Não deixem de ler o que Marcia Tiburi, autora do livro “Uma fuga perfeita é sempre sem volta”, vai nos contar, de forma inédita, sobre o que constitui uma família. Sua afirmativa de que “é o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” é um fio condutor para o desdobramento de uma conversa que os instigará do início ao fim.

Na entrevista com Sérgio Laia, “O inconsciente e a família”, vocês verão a forma contundente com que o autor responde sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Recorrendo, em especial, ao texto de Lacan “Nota sobre a criança”, ele dará destaque “à função da psicanálise de amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias”. Agradecemos a Marcia Tiburi e a Sérgio Laia pela inestimável contribuição.

Em Incursões temos textos das colegas de Minas Gerais trabalhados nos espaços de investigação do IPSM-MG e da EBP-MG. Mônica Campos e Maria José Gontijo Salum abordam, através de estudos de casos e do filme “De cabeça erguida”, respectivamente, as possíveis conexões entre a psicanálise e o Direito e as saídas daí advindas. Já Márcia Rosa e Laura Félix Reis Maciel partem do postulado de Jacques-Alain Miller, segundo o qual a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais para questionar as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. O texto de Márcia e Laura nos serve, também, como uma guia de leitura da entrevista de Marcia Tiburi. Afinal, o que organiza uma família?

Em Encontros agrupamos as questões sobre a família em torno do vivo da clínica. Os autores Patrick Monribot, com “Esse X”, e Yves Depelsenaire, com “Grandeza e miséria de um nome”, apresentam a forma como o tratamento analítico possibilitou outros arranjos para os sujeitos lidarem com a herança familiar. Jean-Daniel Matet, em “Avatares e atualidade do complexo de castração”, faz uma releitura do conceito lacaniano “complexo de intrusão”. Vale a pena conferir!

Finalizamos este número em De uma nova geração, com duas ótimas contribuições das alunas do IPSM-MG: Ana Helena Souza, com o texto “Mentira e Ficção: o Discurso da Histérica, a Cura pela Fala e o Indizível do Sinthoma”, no qual recorre a uma obra de Samuel Beckett para investigar a relação do discurso da histérica com a mentira e a ficção, e o texto de Raquel Martins de Assis, que em “O amor pelo pai na histeria” retoma o paradigmático caso Dora de Freud e, a partir da leitura de Lacan, demonstra como o tema da armadura do amor ao pai se apresenta como uma importante faceta da histeria.

Agradecemos aos colegas que encaminharam seus textos, aos tradutores e aos revisores, sem os quais nosso trabalho seria impossível, assim como à equipe do Almanaque que, de maneira decidida, contribuiu para que este número fosse ao ar de tal forma, que pôde ser mais leve.

Desejamos que os leitores encontrem, neste número, pontos de pesquisa e de interesse que deságuem num debate profícuo dentro do nosso campo de trabalho.

Deixo com vocês o Almanaque 18. Bom trabalho!

Ludmilla Feres Faria
Diretora de Publicação



Drogas E Imagens: Novas Adições

LILANY PACHECO (RELATORA)

POR GIULIA PUNTEL

A abordagem do tema das toxicomanias no campo freudiano sempre se fez pelo reconhecimento de que as relações do sujeito com as drogas implicam o corpo próprio como Outro, na produção do gozo do corpo, e a identificação imaginária que sustenta a adesão, nem sempre dialetizável, à nomeação “eu sou toxicômano”. No contexto contemporâneo, especificamente, destacam-se os variados modos de gozo com as imagens e com os objetos mais de gozar, que têm funções distintas para os sujeitos – entre elas, a da droga para um toxicômano.

Propomos, neste relatório, conversação sobre uma possível distinção entre o fenômeno das adições e a toxicomania e sua dimensão clínica, tal qual a conhecemos no campo freudiano. Já na edição 88 da publicação “La Cause du Desir” (ÉCOLE DE LA CAUSE FREUDIENNE, 2015), colegas franceses definem as adições como um campo político que deve ser estudado para colocar à prova, para além das drogas ilegais e à luz da orientação lacaniana, a generalização do termo adição, o enxame de objetos e as práticas concernentes a esse campo.

Lidamos, hoje, com uma diversidade de manifestações sintomáticas centradas no corpo: pornografia, culto da aparência, exibicionismo, intervenções corporais apoiadas na tecnologia médico-científica para recomposição da imagem corporal e amarração da imagem ao gozo. Em seu primeiro seminário, Lacan (1954/1986) demonstra, ao inaugurar seu esquema ótico como formalização primeira do registro imaginário, que a urbild, imagem através da qual o eu se constitui, remete à operação capciosa de colocar um bouquet real em um vaso virtual – sabendo-se que a imagem real na fotografia é tal qual o arco-íris que vemos no céu. Trata-se de uma tarefa inacabada, da qual o sujeito falante terá de se ocupar por toda a vida, tendo em vista que há sempre algo desse bouquet que resiste em se alojar no vaso em questão.

Em “O inconsciente e o corpo falante”, Miller (2014) reconduz o tema do imaginário de modo a acolher os avanços do último ensino de Lacan. Desse texto, destacamos:

“o corpo se introduz, inicialmente, (…) como imagem, imagem no espelho”, decorrendo daí o estatuto dado por Lacan ao eu [moi], distinto daquele que encontramos na segunda tópica freudiana.

Lacan ilustra a articulação entre Ideal do Eu e eu ideal como um jogo de imagem, oferecendo a essas noções freudianas uma formalização inédita.

“A afinidade entre o corpo e o imaginário é reafirmada no ensino de Lacan sobre os nós. A construção borromeana enfatiza que é pelo viés de sua imagem que o corpo participa, primeiro, da economia do gozo”.

“O corpo condiciona tudo o que o registro imaginário aloja de representações: significado, sentido e significação, a própria imagem do mundo. É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da unidade do corpo”.

Mais além, Miller localiza o mistério lacaniano – “o corpo, como corpo falante, muda de registro”. Não trata mais do imaginário especular, sendo preciso, então, redefinir o imaginário.

Drogas e imagem – novas adições?

Tomando o ponto de partida lacaniano de que “o imaginário é o corpo” (LACAN, 1975-76/2005), perguntamos se, dessa equivalência, depreendem-se as questões: novas imagens, para além das imagens rainhas (MILLER, 1997)? Novos corpos, novas adições? Uma imagem pode ter o estatuto de droga para um sujeito? Qual a extensão das adições na atualidade? Novas adições são fenômenos clínicos paradigmáticos da época da inexistência do Outro? Podemos localizar essas questões dentro da clínica das toxicomanias?

Hoje, em lugar da escolha de um objeto articulado ao quadro de realidade erótica representada pela fantasia, o que se destaca é a prevalência do gozo autista (MARON, 2012), da iteração da pulsão e sua vocação aditiva. Contudo, em 1964, Lacan (1964/1998) já falava de época prodigiosamente atormentada por exigências idílicas que, longe de ser expressão de tendências libertadoras e prazerosas, descortinavam o horizonte do supereu insaciável e mortífero. O imperativo superegóico de gozo impulsiona o mercado capitalista: “todos consumidores” (MILLER; LAURENT, 1998). Isso equivale a dizer “todos toxicômanos”, permitindo a ideia de “toxicomania generalizada”? Afinal, as adições atuais ultrapassam o uso de substâncias tóxicas, lícitas e ilícitas. O campo da imagem e dos objetos virtuais evidenciam os esforços do sujeito para encontrar um ponto de amarração para seu gozo e constituir um “tamborete” para sustentar seu corpo valendo-se dos objetos à disposição, oferecidos pela ciência e suas articulações com o capitalismo, em tempos de simbólico esmaecido e inexistência do Outro.

Império das imagens, adições, toxicomanias – índices?

Ilustramos a discussão do tema proposto com peças da indústria da imagem: dois filmes e um seriado de TV, além de uma vinheta clínica, buscando aí elementos para articular a abordagem proposta neste relatório.

“Bling ring – gangues de Hollywood”: “Bling”, em inglês, refere-se a jóias grandes e ostentação; “ring” significa, literalmente, anel, mas também define um círculo de amigos ou cúmplices. ”Bling ring”, por sua vez, é o nome do filme baseado em fatos reais que trata da vida de jovens filhos de classe média-alta e inebriados por marcas, que invadem casas de celebridades a fim de roubar objetos de grife e “visitar” as mansões de ícones do espetáculo e do consumo.

Dentre os protagonistas dessa história, estão Marc, garoto tímido e que não se sente incluído em sua nova escola, destinada a alunos expulsos de outras instituições, e Rebecca, garota bonita e descolada, que se aproxima dele, convidando-o para buscar carros abertos e furtar o que de melhor encontrassem ali. O plano rende dinheiro e cartão de crédito e eles começam, em seguida, a invadir moradias de celebridades. Os closets, templos dos artigos de luxo, verdadeiros altares ornados pelos mais variados objetos ligados ao corpo, dá à dupla contato direto com o que acompanham na mídia especializada, como um vestido usado por determinada figura em um determinado evento.

Os dois alardeiem seus feitos em rodas de amigos. Nick, Sam e Chloe interessam-se pela aventura e, assim, forma-se um grupo. As invasões tornam-se frequentes e os jovens estreitam laços entre si, em meio a delitos e noitadas nas mais caras baladas. Acumulam toda sorte de objetos e dinheiro. A posse, o uso, a ostentação e a divulgação nas redes sociais, além do consumo de drogas, são os ingredientes do circuito de gozo aditivo que encenam. As drogas, por sua vez, não são o motor para a prática dos roubos, e seu uso não é próprio de uma toxicomania (tão bem demonstrada em outros filmes, como Réquiem para um sonho), mas apenas mais um produto na engrenagem de excessos e gozos fugazes.

O filme aborda outra faceta do consumo aditivo, a medicalização, pelo viés de uma mãe que tem o hábito de dar às filhas doses de Adderall, anfetamina indicada para tratamento de TDAH. A substância é chamada, na tradução em português, de “remedinho”, e está presente desde situações cotidianas, como no café da manhã, até em momentos realmente tensos, como o que antecede o julgamento pelos furtos. Reflete-se aí a banalização do consumo de medicamentos e as formas de tratar o fracasso da lei e da alteridade que os pais agenciam, no que Benetti (2012) chamou de “farmácia da vida cotidiana”.

Por fim, apreendidos, cada um dos jovens oferece sua versão para os motivos de entrada nesse circuito de gozo. Em comum, a fruição dos objetos e o deslumbramento, indicativos de uma adesão à cultura do espetáculo e do consumo – novas adições?

“O Lobo de Wall Street”: o filme é baseado na história autobiográfica de Jordan Belfort, que fez fortuna fraudando o mercado de ações. Belfort faz uso abusivo de drogas, jogos, sexo e objetos luxuosos. Apresenta-se ao espectador por meio de seu modo de gozo: “jogo como um depravado, bebo como um peixe, como prostitutas cinco ou seis vezes por semana. Tenho três agentes federais querendo me indiciar. Sim, querido. E eu amo drogas”. Elege o dinheiro como a melhor de todas as drogas, capaz de torná-lo invencível.

Belfort está inserido no discurso de Wall Street e em sua lógica capitalista. Seu primeiro chefe apresenta ao jovem o mundo das finanças, da venda de ações e um modo de fazer com que o lucro fosse exclusivamente do corretor: enganar o investidor. Diz a ele também sobre a “chave para o sucesso profissional”, uma combinação entre masturbação, cocaína, prostitutas e adição dos clientes, que, assim, investiriam mais e mais, “como se estivessem viciados”. Festas, drogas e prostitutas são ofertadas como prêmio aos funcionários de sua empresa pelas vendas das ações fraudulentas. A magnitude de seus negócios faz Belfort ganhar notoriedade na mídia e ser objeto de investigação policial. Encontramos aí matizes do consumo e diferentes índices aditivos, bem como diversos modos de enlaçamento dos sujeitos aos objetos e ao Outro. Não se trata, portanto, de um uso solitário.

A relação que Belfort estabelece com as drogas merece destaque por sua vertente ilimitada: “em uma base diária, consumo drogas o suficiente para sedar Manhattan, Long Island e Queens por um mês”. Ele escancara seu gozo e sua “parceria cínica com a era da ciência” (Santiago, 2001) convidando o espectador a compartilhá-la: “tomo Quaaluder 10 a 15 vezes por dia para minha dor nas costas e também para manter a concentração, Xanax para acalmar e tirar a ansiedade, cocaína para acordar novamente, e morfina, bem… porque é sensacional”.

No modo de gozo retratado no filme, não importa o objeto, mas sua natureza aditiva, que implica em um “cada vez mais” que nunca será o bastante, forma como Lacan define o “mais de gozar” em seu Seminário 20, trabalhado por Alvarenga (2012) em: “adição é o Um que se repete: 1+1+1… mas que não se adiciona”, respondendo à iteração da pulsão, objeto repetido na infinitização do gozo. Não todos aditos, ou todos aditos, mas não todos toxicômanos?

“Breaking bad”: as séries norteamericanas evocam o “monolinguismo da globalização” (SINATRA, 2014) e oferecem-se ao telespectador em formato de “pílulas” de fácil digestão, feitas para serem consumidas abundantemente, uma após a outra, no que se conforma ao uso adicto do objeto. Após o término da série que aqui apresentamos, inclusive, ficou famosa a expressão “órfãos de Breaking bad”, em alusão aos espectadores que ficaram sem sua “dose semanal” do programa. Essa lógica atende ao que Sinatra (2014) chama de geração dos “filhos da televisão”, que não se serve mais do pai, do Outro, para se identificar, mas de personagens televisionadas. Se o consumo está em jogo ao assistirmos televisão, somos também consumidos por ela: “os filhos tele-adictos são consumidos pela máquina omnivoyeur, são devorados pelo seu olhar” (SINATRA, 2014).

Uma das séries mais famosas e mais premiadas da atualidade desenrola-se em torno do objeto droga e seus diferentes usos. O verbo “breaking”, de seu título (não traduzido para o português), faz alusão tanto à ultrapassagem do limite da lei quanto ao que poderia ser traduzido como “quebra” ou “freio”. Estamos, aí, entre “tornar-se mal” e “frear o mal”, tensão constante na série e intrínseca à logica do consumo.

A história é protagonizada por Walter White, brilhante professor de química cujas escolhas de vida levaram ao fracasso financeiro e profissional. Trabalhando em uma escola secundária e buscando complementar a renda como lavador de carros, é supreendido pelo diagnóstico de um câncer terminal de pulmão e pouco tempo de vida. Decidido a deixar sua família (a mulher, grávida, e o filho adolescente) em uma situação financeira segura após sua morte e acreditando não ter nada a perder, começa a produzir metanfetamina em parceria com Jesse, ex-aluno e traficante medíocre que, diferente dele, consome o produto que comercializam.

A droga que Walter produz é de uma pureza impressionante, graças a seus conhecimentos de química e a seus cuidados, e ele acaba tornando-se um dos produtores mais respeitados e temidos do meio, além de um dos mais procurados pela polícia. Walter não consome a droga. No entanto, fica evidente o que poderíamos chamar de um “modo de funcionamento adicto”, marcado por um “não posso me abster” (TARRAB, 2004) e pela necessidade constante de “uma dose a mais” em relação a seu gozo.

A proximidade da morte faz com que Walter se dê conta de que passou a vida obedecendo ao Outro e mortificando seu desejo. Em lugar de uma retificação pela vertente simbólica e de uma responsabilização subjetiva, contudo, o que advém a partir dessa constatação é o ato. Ao verificar que o Outro não existe, assume uma posição canalha, em que não importam os meios, apenas a satisfação de sua própria demanda. O fim de Walter na série é emblemático: não sucumbe ao câncer, mas ao gozo.

Por outro lado, seu sócio, Jesse, evidencia a face toxicômana da relação com a droga. Apaga-se como sujeito, desiste de sua rotina e de seus compromissos e rompe com os laços sociais, administrando em casa, solitariamente, as doses de sua “próxima viagem”. Como produtor e distribuidor, ensaia saídas desse lugar objetificado. Nesses momentos, algo do sujeito aparece, geralmente pela via da culpa, da vergonha ou do amor. Contudo, termina consumido pela droga que consome, resto que cai, evidenciando sua posição ao longo de toda a vida, lugar em que se fixa diante de Walter e dos demais traficantes. Também obtém um gozo importante como “inconveniente”, “inadequado”, “infantil”, o que fica evidente em sua relação com seus pais, que desistem dele.

“Breaking bad” trata, principalmente, do que se passa em território ilícito. O que faz laço mostra-se, na série, continuamente ameaçado pela morte. Escamoteia-se, assim, o fato de que enlaçar-se não é negar o gozo, mas regulá-lo. Em extremos opostos, Walter e Jesse apresentam modos de existir semelhantes, calcados no funcionamento do “uma dose a mais”, e mostram que, uma vez ultrapassado o limite imposto pelo pacto civilizatório, atinge-se um atalho para a morte. De formas distintas, e em variados sentidos, não se sai vivo dessa empreitada.

“Tomar um back para ninguém me ver”: essa é a construção feita por Jota, 46 anos, usuário de cocaína injetável há quase três décadas. Encontra-se imerso no circuito paranoico que faz dele objeto visto e perseguido pelo Outro. Sua construção delirante, contudo, não é uma via pela qual encontra suficiente amarração e circunscrição para a sua angústia: os espíritos que abusam e se divertem com seu corpo não são excomungados pela religião, não sendo ela, portanto, um tratamento para o olho do Outro que o invade. Algumas próteses imaginárias fazem função estabilizadora para Jota, como o papel profissional que desempenha e o cumprimento de um protocolo que inventa para a função de ser pai. Porém, face às irrupções do olho do Outro no corpo gozado, sem bordas nem limites, impõe-se outra solução, a única encontrada até esse momento de seu percurso analítico: injetar-se cocaína. Não apenas injetar-se na lógica da reiteração do Um, constituindo um corpo que se goza, mas injetar em partes do corpo expostas ao Outro (mãos, braços e pescoço), particularidade que o impede de sair de casa e faz com que as pessoas não o vejam. A imagem de um corpo do qual não se apropria submete Jota ao Outro omnivoyeur, até que o ato de furá-lo, drogando-se, constrói uma imagem carregada de sentido pejorativo, denegrida, que o permite destacar-se do Outro e apaziguar sua angústia.

Encontramos aí, enfim, outra faceta do uso dos objetos e da função da droga, no singular. Tal caso de psicose evidencia o modo como os objetos ofertados pelo Outro da ciência e do consumo, contemporaneamente, confluem para a foraclusão estrutural, distinguido-se, assim, da abordagem generalizada às questões das adições à imagem no século XXI.
Notas

[1]Relatório apresentado durante o ENAPOL e na XVI Conversação do IPSM-MG em 19/03/2016
2 Integrantes do Relatório: Antônio Beneti, Adriane Barroso, Ary Santos Farias, Cassandra Dias, Claudia Generoso, Cristiana Pittella, Cristiane Cunha Grillo , Cristina Nogueira, Fabiana Cerqueira, Glória Maron, Guilherme Del Debbio, Elizabeth Medeiros, Jésus Santiago, Júlia Andrade Ramalho, Leonardo Scofield, Lilany Pacheco (relatora), Lisley Toniolo, Luiz Fernando Carrijo, Maria Célia Reinaldo Kato, Maria do Carmo Dias Batista, Maria Rachel Botrel, Maria Wilma Faria, Mariana Vidigal, Nádia Laguárdia, Renato Carlos Vieira, Soraya Alves Pereira.

 


Referências
ALVARENGA, Elisa. Não-todo adictos! @DDito: Boletim da XVII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais. 2012. Disponível em: http://jornadaebpmg.blogspot.com/2012_09_01_archive.html. Acesso em 05 jul. 2015.
BENETI, Antonio. Todos adictos: a farmácia da vida cotidiana contemporânea. @DDito: Boletim da XVII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais. 2012. Disponível em: <http://jornadaebpmg.blogspot.com/ 2012_09_01_archive.html>. Acesso em 05 jul. 2015.
ÉCOLE DE LA CAUSE FREUDIENNE. La cause du désir. France, n. 88, nov. 2015. Disponível em: http://www.causefreudienne.net/la-cause-du-desir-n88/. Acesso em 07 jul. 2015.
LACAN, Jacques. A tópica do imaginário. In: LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud [1954]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, Jaques (1964). Do “Trieb de Freud e do desejo do analista. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MARON, Glória. A dimensão aditiva do sintoma. Opção Lacaniana on line nova série. Ano 3, n. 7, mar. 2012. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/A_dimensao_aditiva_sintoma.pdf>. Acesso em 05 jul. 2015.
MILLER, Jacques Alain; LAURENT, Eric. El Otro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 1998.
MILLER, Jacques-Alain. A imagem rainha. In: MILLER, Jacques-Alain. Lacan elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente e o corpo falante. 2014. Disponível em: <http://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina= 4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9>. Acesso em 07 jul. 2015.
SANTIAGO, Jesus. A droga do toxicômano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
SINATRA, E. S. A identificaciones líquidas, adicciones sólidas. Virtualia, Buenos Aires, n. 29, nov. 2014. Disponível em: <http://virtualia.eol.org.ar/029/template.asp?Consecuencias-de-la-ultima-ensenanza/A-identificaciones-liquidas-adicciones-solidas.html>. Acesso em: 25 mai. 2015.
TARRAB, M. Mais além do consumo: Parte I – a maldição do sexo e a época. Curinga, Belo Horizonte, n. 20, p. 55-69, nov. 2004.

Lilany Pacheco (Relatora)
Psicanalista. Membro da EBP/AMP. E-mail: lilanypacheco@gmail.com



Comentário

SIMONE SOUTO

 

FOTO:FREDERICO BANDEIRAF

 

Localizo três aspectos que me pareceram importantes no relatório apresentado por Ludmilla Feres, por ocasião do VII ENAPOL, e que hoje, nesta Conversação do IPSM-MG, temos a oportunidade, mais uma vez, de discutir.

 

1) O texto parte da hipótese de que os adolescentes, hoje, recorrem às imagens dos meios digitais e aos objetos oferecidos pela técnica como um recurso para lidar com a inexistência da relação sexual e com as dificuldades relativas ao encontro com o Outro sexo. Como nos esclarece Ludmilla, através de uma citação de Miller, constatamos, na atualidade, um enfraquecimento do nome-do-pai e das instâncias que tinham a incumbência de transmitir “o que convém ser e fazer para ser um homem e para ser uma mulher”[i]. Assim, os adolescentes de hoje buscam na tecnologia não exatamente uma resposta pela via do sentido, mas o que, a meu ver, poderíamos chamar de certo “aparelhamento” para o gozo e, também, para lidar com o desencontro fundamental entre os sexos, que, na adolescência, é colocado em evidência de uma forma inédita.

 

Se, como nos diz Lacan no Seminário 20 (1985, p. 75.), “a realidade é abordada com os aparelhos do gozo”, vemos que, atualmente, essa abordagem da realidade se faz muito mais pela via do objeto que pela via do falo e suas significações, ou seja, são dos objetos criados pela tecnologia que o sujeito espera uma resposta com a qual ele possa fazer frente ao real do sexo. Por exemplo, no relatório da NEL (Nueva Escuela Lacaniana) apresentado no último ENAPOL (Encontro Americano da Psicanálise de Orientação Lacaniana), em um caso clínico relatado, um adolescente faz o seguinte comentário: “Por que não inventaram um aplicativo de um aparelhinho que diga como conquistar uma garota?” Ora, o recurso ao objeto como tentativa de fazer existir a relação sexual, nós o encontramos na fantasia através dos objetos que são demandados e ou oferecidos ao Outro: seio, fezes, olhar e voz. Mas o que muda quando esse objeto é um aparelhinho ao qual se pode ter acesso “por um clique”[ii], sem necessariamente passar pelo Outro? Quais as consequências disso com relação ao saber, à concepção que se tem do corpo, à relação com o parceiro? Parece-me que, facilitando ou dificultando os laços sociais, temos aí, na introdução dos meios digitais, algo que modifica completamente a forma de abordagem da realidade. Essa transformação no aparelhamento do gozo para lidar com a realidade é o primeiro aspecto que eu gostaria de salientar.

 

2) O segundo aspecto diz respeito à adição que os adolescentes têm hoje com os meios digitais, assim como ao apelo crescente à pornografia, problema abordado no texto apresentado por Feres, que faz referência a uma conversação na qual os adolescentes dizem que “esparram imagens pornográficas”[iii]. Podemos situar esse problema não exatamente como uma tentativa de fazer a relação sexual existir (pois, isso incluiria uma tentativa de abordagem do Outro), mas, ao contrário, como uma maneira de – diante da evidência da inexistência da relação sexual em nossos dias – tentar fazer o todo pela via do mais gozar, prescindindo-se do Outro como parceiro. Essa posição, a meu ver, poderia ser descrita mais ou menos assim: a relação sexual não existe, mas o gozo sim; então, é preciso que o gozo não pare. Essa solução se sustenta no apelo a um gozo que tende a ser mantido no registro do necessário, ou seja, do que não para de se escrever.

 

Nesse sentido, parece-me que existe, por parte dos adolescentes de hoje, uma constatação da inexistência da relação sexual, ocasionando, em muitos casos, uma descrença numa relação possível entre os sexos. Serge Cottet (2011) nos diz, em seu texto “O sexo fraco dos adolescentes…”, que presenciamos, hoje em dia, “uma forma moderna de não-relação”. Lacan, no Seminário 7, situa o amor cortês, na Idade Média, como uma forma elegante de não-relação, pois manter a dama em um lugar inacessível seria uma forma de não ter que se haver com a real impossibilidade da relação sexual, fazendo parecer que somos nós que colocamos a barreira que torna A Mulher inatingível. A elegância dessa solução provém do lugar de alteridade no qual a dama é colocada. Podemos aproximar essa forma de não-relação que encontramos nos dias de hoje (no apelo à pornografia e na adição aos objetos tecnológicos) dessa solução medieval, mas em uma versão, diríamos, bem menos elegante. Na forma atual de não-relação, é justamente a alteridade do parceiro que se encontra abolida, tendo sido substituída pelo gozo solitário, o gozo do Um-sozinho, que provém da relação direta com o objeto, um objeto que se encontra à mão e não depende, necessariamente, de uma relação com o Outro.

 

3) O terceiro aspecto importante diz respeito ao campo da linguagem. Não podemos desconhecer que um novo uso da linguagem é inaugurado a partir dos meios digitais: ela aparece de forma “abreviada, imperativa, na qual se misturam imagens, palavras, sinais sonoros, ícones”[iv]. Uma linguagem escrita, caracterizada pela exclusão da materialidade de um corpo a corpo entre os que nela estão envolvidos.

 

Diante disso, que efeitos podemos extrair da introdução da palavra falada e da presença dos corpos como, por exemplo, acontece em uma Conversação como a relatada por Ludmilla Feres? Penso que essa experiência da Conversação com os adolescentes mostra-nos que a introdução dos corpos e da fala acaba por revelar algo que, paradoxalmente, estava velado pela mostração das imagens pornográficas: a divisão diante do olhar do Outro – a divisão da sala (entre os estudiosos na frente e os bagunceiros do fundo), a divisão entre os sexos (entre meninos e meninas), a diferença entre os próprios meninos (os que “esparram” e os que “não esparram”), a diferença entre as meninas (as que mostram tudo e as que não mostram). Ou seja, a conversação introduz um furo na imagem, tanto do lado da escola como do lado dos alunos, fazendo aparecer a divisão e, ao mesmo tempo, localizando os diferentes modos de gozo. Além disso, podemos nos perguntar se a tendência dos alunos de tudo mostrar não seria uma resposta à posição da Escola, que, segundo eles, ocupa o lugar de uma câmera que tudo vê.

 


BIBLIOGRAFIA
COTTET, S. “O sexo fraco dos adolescentes: sexo-máquina e mitologia do coração”. In: Ensaios da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
LACAN, J. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor (Seminário de 1959-1960).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985 (Seminário de 1972-1973).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 28 de fev. de 2016.
Relatório “Os adolescentes nos meios digitais e seus novos laços”, apresentado no VII ENAPOL – Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana. São Paulo, set. de 2015
[i] MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança.
[ii] Idem.
[iii] Relatório – “Os adolescentes nos meios digitais e seus novos laços”, apresentado no VII ENAPOL –Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, em setembro de 2015, São Paulo.
4 MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança.

Simone Souto
Simone Souto. Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). ssouto.bhe@terra.com.br



Um Saldo De Saber: Do Jogo Aberto Nas Redes Sociais À Declaração De Amor

LUDMILLA FÉRES FARIA (RELATORA)
POR GIULIA PUNTEL

No início da década de 70, em seu Seminário Mais, ainda, Lacan anuncia o lugar de destaque que os instrumentos produzidos pela ciência ocuparão na vida dos homens. Chega a profetizar que a invenção de objetos como o microscópio e a radiotelevisão, que ele nomeia de gadgets, comandariam a existência dos homens, tornando estes cada vez mais “sujeitos dos instrumentos” (LACAN, 1973, p.110) e anuncia, ainda, a profunda modificação que eles trariam às formas de laço social.

Não passa despercebido ao psicanalista a relação entre a série de objetos e a fantasia de suprir o que “não se pode dizer, isto é, a relação sexual” (p. 110). Lacan dá peso ao fato de que a fantasia prometida pelos gadgets ― de harmonia entre o sujeito e o Outro ― escamoteia o fato de que esses objetos, na verdade, mantêm os sujeitos cada vez mais apegados ao gozo autoerótico.

Podemos considerar que a profecia de Lacan tomou um vulto que seria impossível medir. Os objetos da ciência invadiram a vida moderna. Nas últimas décadas, a chegada dos computadores seguida das mídias sociais possibilitou ao homem um acesso a lugares e coisas que ele jamais imaginaria. Não existem mais espaços inatingíveis. Paradoxalmente, é nesse universo inundado pelas telas, que nos conectam em tempo real com o outro, que constatamos que os homens não estão menos sozinhos. Ao contrário, os smartphones e os tablets ― extensão dos nossos corpos ― surgem como novos parceiros aos quais os homens se ligam cada vez mais, favorecendo a reiteração do gozo de “l’Un tout seul”.

Estamos diante de um problema de toda a sociedade humana: a dificuldade de saber quanto ao sexo. Pois, diferente da solução do instinto animal, o ser humano não possui um saber sobre o que o complementa. E, embaraçado com a pulsão, encontra esse buraco. Todavia, esse é um problema com o qual prioritariamente defrontam-se os adolescentes, justamente por ser esse o momento em que eles devem afastar-se de seu corpo de criança e das palavras de sua infância para decidirem pela escolha de seu objeto de desejo.

Nessa hora, recorrer aos objetos oferecidos pela técnica pode tanto favorecer um encontro possível com o Outro sexo ― conforme nos disse um jovem: “a rede social serve a um cara que é mais tímido” ―, como afastar os adolescentes para um turbilhão que os exilam cada vez mais do Outro. Miller, em seu texto Em direção a adolescência (2015), ao afirmar que os jovens modernos padecem mais da incidência do mundo virtual do que aqueles de gerações passadas, salienta que se trata do resultado do enfraquecimento do Nome-do-Pai, que foi intimidado pelos dispositivos de comunicação. Para ele, é importante destacar o desgaste sofrido pelas instâncias que tinham a incumbência de transmitir “o que convém ser e fazer para ser um homem e para ser uma mulher” (p. 6). Acrescenta que tais mudanças deixaram um saldo de desorientação profunda nos jovens de hoje.

Mas, advertidos de que o discurso da técnica não retrocederá e que as novas gerações estarão cada vez mais confrontadas com esses objetos, interessa-nos fazer uma leitura de qual uso os adolescentes fazem das mídias sociais no que se refere ao laço. Pode-se dizer que o acesso mais fácil ao gozo, nesses tempos que correm, faz mais fácil o acesso ao Outro sexo, tal qual nos chamou atenção o jovem citado anteriormente? E de que forma a psicanálise pode se inserir nesse debate?

O outro efeito da entrada na era digital é o fim do espaço íntimo. Segundo Wajcman (2010), estamos na era da permissividade, na qual tudo se publica e se expõe; isso sem nenhum índice de vergonha. Em entrevista, ele lembra as palavras de Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook: “é preciso romper o laço entre o secreto e o íntimo, porque esse laço é uma herança obsoleta do passado” (2010). Destaca que os mestres da internet não têm escrúpulos ao profetizar o futuro como o da era do fim das barreiras entre o privado e o público. Sua posição coaduna com a de Miller (2015) que afirma que “os constrangimentos naturais foram rompidos pelo discurso da ciência”.

Freud sublinha a importância das barreiras impostas pela educação na escolha do objeto, cita o pudor, o asco e a vergonha como diques de resistências que “conduzem as correntes sexuais pelos caminhos chamados normais e lhes impedem de reviver impulsos recalcados” (FREUD, 1987, p.42). E aponta que os impulsos mais atingidos por elas são os da fixação às pessoas da primitiva escolha de objeto. Ou seja, o laço com o Outro não se dá, segundo Freud, às expensas do recalque do primeiro objeto de desejo.

O que nos leva a realçar a queda das barreiras como uma das causas da invasão da pornografia na relação entre os sexos. Miller (2014) isolou a pornografia como o sintoma advindo da proliferação das imagens. Atesta que “passamos da interdição à incitação, ao forçamento”, o que não é sem consequência nos costumes das novas gerações.

Como os adolescentes situam-se nessa época da transparência, da exibição dos corpos e dos coitos? O que visam ao postarem cenas íntimas nas mídias, fato cada vez mais corriqueiro entre eles? E quais os efeitos dessas divulgações? Essas foram as questões que nos guiaram para abordar o problema apresentado pela equipe diretiva de uma escola de classe média de Belo Horizonte. Segundo relatos, os alunos do 2º ano E.M., de 16 a 17 anos, postaram fotos íntimas de colegas, gerando um constrangimento na turma e um impasse para a escola. Foi a partir desse ponto que demos início à “Conversação”[2], com a perspectiva de que eles pudessem nos dizer o que estava ali em jogo.

 

Da marca do olhar invasivo do Outro à transgressão

 

Após a apresentação do tema da “Conversação” para a turma ― o uso inadequado das redes digitais dentro da sala de aula e entre os colegas ―, os alunos negaram enfaticamente qualquer problema desse tipo: não fazem uso da internet, guardam o celular no início das aulas, nenhum deles tem esse comportamento…

Para eles, “a questão do celular é coisa da escola na era da tecnologia, não é para falar disso”. O problema da sala é a divisão entre “frente e fundo”. Sustentam que os professores traçam uma linha, com o olhar, que divide a sala em duas: os bagunceiros ficam atrás e os estudiosos, na frente. E completam: “o professor tem uma visão meio marcada de trás”. Em seguida, deslocam-se do professor para a presença de uma câmera filmadora. Essa, diferente do professor que chega até a inibir por estar próximo, não serve para nada. Acentuam: “aquela câmera ali não grava nada, serve só para causar!”. Demonstram, assim, o desprezo ao dispositivo que diuturnamente acompanha seus passos ao afirmarem de forma irônica: “Ah! não vou colar por que a câmera tá me vendo?”.

Agora, voltam-se para a divisão entre “meninas e meninos”. Surgem as questões sobre a diferença sexual, e não é sem consequência o fato de uma menina ficar no grupo de meninos. Nesse caso, ou a menina é “uma piranha” ou passa a ser vista “como menino”. Conta-nos uma delas: “eu me chamo Vitória Maria, mas me chamavam de Vítor Mário, porque eu só andava com meninos”. Com eles não é diferente, os que andam no meio de meninas também são “zoados”: “é galinha ou gay”. De “piranha a ‘maria-homem’” ou “de galinha a gay”, os grupos se classificam a partir dos comportamentos.

Mais à frente, a diferença é introduzida no cerne dos grupos. Há os homens que “fazem coisas” e não expõem as meninas, e aqueles que fazem, mas falam e expõem nas mídias sociais: “tipo o cara que pega mulher e vai contar pros amiguinhos no whats” e também “a mulher que fala”. Segundo eles, são os que “esparram”[1], que contam tudo. Passam assim de uma classificação a outra, na tentativa de encontrar uma resposta para o que é ser um homem e ser uma mulher.

Frente ao impasse dessa divisão, eles retornam à discussão sobre a função do Outro social. À vista disso, a escola surge novamente como o problema; primeiro proíbe demais: “não pode nem abraçar” ou “um menino tomou suspensão por causa de um selinho”. Ou, então, não sabe colocar limites: “o ideal seria deixar as pessoas namorarem, só que dentro de sala não”. Por fim, acrescentam que ela é mais rígida que os pais: “tem muito pai que deixa, mas a escola nunca deixa nada”. Para eles, o único motivo que leva a escola a proibir namoros, beijos, abraços e uso do celular é o dinheiro dos pais: “a escola proíbe por causa dos pais, pois eles pagam a mensalidade”.

Os jovens denunciam que a escola funciona como câmera filmadora, uma instância superegoica, que dita a lei de forma caprichosa. E que, assim, ela se excede nas proibições à medida que não flexibiliza, tornando-se mais rígida que os próprios pais: “o pai às vezes sabe e não fala nada; a escola não!”. Conforme Freud, o supereu é essa instância moral que não visa a uma obediência, mas a uma docilidade ao mandado.

Todavia, os jovens nos demonstram como colocam suas objeções a esse Outro que se apresenta invasivo: “eu acho melhor ficar assim, porque tudo que é proibido é mais gostoso”. Ou seja, a infração pode introduzir um “não” nesse imperativo, apontando o paradoxo da lei: ela é sua própria destituição. Nesse instante, foi importante uma intervenção para reafirmar que também é função da escola regular coisas que levam a excessos, isso que não é muito fácil de controlar, tal como o uso do celular e a relação entre os adolescentes, lembrando-lhes que esses excessos geram situações difíceis, como eles mesmos trouxeram: “os meninos que expõem as meninas mais do que elas gostariam” ou “a menina que fica com mais meninos do que eles acham que ela deveria”.

O que se segue demonstra o efeito da interpretação: os jovens deixam de lado a estratégia de afirmar que o problema é o Outro social que regula demais e passam a contar sobre o universo da pornografia, sem nenhuma regulação das mídias. Universo esse que permite ver o outro sem ser visto, exibir-se e convocar o outro a se exibirtudo feito de forma a evidenciar o não saber como lidar com isso que os excede. O que testemunha que, na pornografia, trata-se de uma convocação ao mais de gozo, resultante do enfraquecimento do Nome-do-Pai.

Veremos, em seguida, como a pornografia tomou conta da cena ― doravante ocupada pelas classificações e pela infração ― para responder aos impasses da sexualidade. A pornografia torna-se, então, o tratamento dado pelos jovens à “relação sexual que não há”. Miller é enfático ao afirmar que apenas a ausência da relação sexual pode dar conta de explicar a difusão planetária, a empolgação da pornografia. O que demonstra que, tal qual a classificação, ela um sintoma do império da técnica, que traz, como consequência, “o desencantamento, a brutalização e a banalização” (MILLER, 2015 ).

 

Do apagamento do Outro à difusão da pornografia

 

Dentre as mídias sociais, os jovens destacam o que chamam de “lado obscuro”: o “snapchat”[2], mais usado para mandar “nudes”[3]. O diferencial do programa é que a foto some da tela, sem deixar rastros, em poucos segundos. É usado, em especial, pelas meninas para mandar nudes para os namorados. Mas, o problema é que elas mandam para os namorados e eles podem “printar”[4] a foto e enviá-la para qualquer um. Eles dão o exemplo da garota que “mandou foto para o namorado dela e, depois que terminaram o namoro, ele postou um álbum no facebook”.

O impasse trazido pela exibição nas mídias configura-se da seguinte forma: as meninas se queixam que os meninos as expõem demais, e os meninos dizem que as meninas se exibem demais. Conforme diz o garoto: “as meninas ficam falando que homem é galinha, mas direto vaza foto de menina pelada”. E a resposta é: “o menino gosta também que a menina se exiba! E, depois, dizem que está exibindo demais”. Como regular esse impasse, que é traduzido por elas como um problema de confiança? “Ela não se expôs, ela mandou para quem confiava”. Por que os meninos “esparram” as fotos? Um deles afirma ser uma questão de imaturidade.

Tal movimento indica-nos uma tentativa de constituir a parceria amorosa. A menina tenta seduzir o menino enviando a foto, uma demanda de amor, como elas mesmas apontam. Os meninos, por seu lado, recuam frente a essa demanda e respondem com a divulgação. Pode-se depreender desse jogo uma estratégia dos meninos de fazer existir a relação sexual via degradação do objeto?

Essa é a hipótese freudiana desenvolvida no texto Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor, no qual é realçada a tendência universal à depreciação em consequência da necessária divisão entre corrente sensual e de ternura.

A ideia de Freud é que a criança, desde seus primeiros anos, leva consigo as marcas da presença arcaica de uma corrente afetiva ― dirigida àqueles que cuidaram dela ― em detrimento da corrente sensual. Assim, a escolha erótica do sujeito surge sob a égide do caráter primário da corrente afetiva. Durante o período de latência continua a primazia da corrente de ternura, e a sensual fica em suspensão. Na puberdade, momento em que o sujeito é confrontado com uma escolha de objeto distinta dos objetos parentais, surge a impossibilidade de manter essa aliança. A poderosa corrente sensual desperta e não se equivoca mais com seus objetivos. O sujeito deverá fazer a escolha do novo objeto a partir da junção das duas correntes. Todavia, esse objeto reencontrado, por portar traços do primeiro objeto de amor ― a mãe ―, despertará o horror ao incesto. Surge daí a necessidade de degradar o objeto, evitando a lembrança de qualquer traço do primeiro.

Trata-se de uma extraordinária artimanha, uma condição de amor: que a mulher escolhida seja depreciada. Ao fazer da depreciação uma condição universal para a escolha do objeto, Freud dá valor ao fato de que para os humanos não existe proposição sexual, pois, se existisse, um homem poderia eleger uma mulher, amá-la, desejá-la e gozar dela como mulher. A depreciação do objeto possibilita o acesso à mulher, mas não a todas, apenas às que passaram pelo processo. Nesses casos, algo da relação sexual que não existe pode se inscrever.

Contudo, as meninas dão testemunho do fracasso dessa estratégia masculina, quando estão em jogo as mídias, ao afirmarem que, mais do que degradá-las para em seguida possuí-las, os meninos pedem as fotos e depois as descartam: “tem homem que pede foto pelada para menina, porque se a menina mandar ele a larga”. Os meninos confirmam: “é tipo um teste: no primeiro mês de namoro você pede, se a menina já mandar é porque ela já fez isso outras vezes, aí você sabe que ela não é para você”. O que nos leva à hipótese de que, com as mídias sociais, a condição de depreciação não serve como estratégia para conter o gozo e direcioná-lo para o objeto de desejo. Diversamente, nesses tempos que o Outro não existe, a tendência ao rebaixamento provoca um empuxo ao “mais gozar”, via masturbação. Não é a mulher como causa de desejo que está em jogo, mas a mulher como objeto dejeto, que serve ao gozo do órgão, o que radicaliza a condição do impossível da relação sexual que não cessa de não se inscrever.

Os jovens passam a descrever a forma como esse desencontro radical apresenta-se para eles: “é traumático”, diz um garoto. Justamente por que, sem um saber prévio sobre o que fazer frente ao Outro sexo, os meninos acabam refém do gozo desse Outro, como o garoto acrescenta: “se você quer seduzir a pessoa e se você não souber do que eu gosto vai se tornar mais um trauma que sedução. Por isso que a sedução tem que ter um conhecimento”.

Frente a esse mal-entendido do encontro com o Outro sexo, os adolescentes necessitam inventar uma resposta singular, e é agora que Outro social pode transmitir-lhes uma invenção para encobrir esse vazio. Entretanto, essas respostas hoje são buscadas nas redes que trazem novamente para a cena a pornografia, afastando-os da possível construção de uma intimidade. Tudo, então, é pornográfico: “a mulher no baile funk, a que coloca a bunda de fora ou mesmo os funks”, pois se eles falam de carro para chamar mulher, “que tipo de mulher vai atrás de cara por dinheiro?”.

Um tumulto se instala na sala, os adolescentes passam a descrever comportamentos pornográficos, tornando necessário um corte que possibilite retomar a conversa sobre a intimidade, na qual se dá o laço com o Outro. Afinal, fica cada vez mais claro que abandoná-los à pornografia é mantê-los entregue ao gozo autoerótico, enviando-os de volta a seus gadgets ― parceiros dessa solidão globalizada. A intervenção feita nesse momento foi no sentido de dizer que nem tudo é pornografia, o que tornaria todos os atos desses jovens reprováveis; mas também que essa conversa instaurou uma bagunça, um rosário de acusações morais entre eles, ou seja, um gozo generalizado que não possibilita nenhum saldo de saber. Tal intervenção coaduna com o que Lacan adverte: “Não iremos falar do gozo assim. Já disse sobre ele o suficiente para que saibam que o gozo é tonel das Danaides, e que uma vez que ali se entra não se sabe onde isso vai dar. Começa com as cócegas e termina com labaredas de gasolina. Tudo isso é, sempre, o gozo” (LACAN, 1992, p. 68).

Torna-se necessário, portanto, regular isso que excede pela via da pornografia, o que foi feito dando ênfase às perguntas: o que é a intimidade? Como diferenciá-la da pornografia? Surgem as respostas: “a própria palavra diz, são só vocês dois, não tem que conversar em mídia social”, ou “intimidade tinha que ser entre quatro paredes, coisa de um casal”. Assim, abre-se um terceiro e último estágio, a partir da fala de um jovem que afirma: “falar da intimidade é tocar na ferida”, seguido por outros: “é coisa de mulher”, e, por fim, “é a dança do acasalamento”.

 

Intimidade: da pornografia à dança do acasalamento

 

Segundo Miller, a intimidade é o que é próprio ao registro da psicanálise, já que ela se nutre da vida privada. Assim como o ato analítico assemelha-se ao verbo intimar, que significa dar a conhecer. Entretanto, esse dar a conhecer em nada se iguala à exposição das mídias; contrariamente, trata-se do privado que “é designado pelo pudor” (LACAN, 2003, p. 558).

Assim, em oposição ao mestre moderno, que fixa os sujeitos no regime do gozo, sob os auspícios da liberação sexual e que reforça o sistema do mestre com o mando: “um esforço a mais para gozar!”, Lacan destaca a função do envergonhar-se, que consiste em dissociar os sujeitos dos significantes mestres e ainda levá-los a perceber o gozo que daí extraem.

Introduzir a barra no blá-blá-blá dos jovens sobre a pornografia proporcionou-lhes a oportunidade de abordar a sedução sob a roupagem do amor. Seduzir passa a ser “a dança do acasalamento” ou “a mulher para provocar o desejo do homem não precisa ‘jogar aberto’, exibir-se”, ou, ainda, “no jogo de sedução, a mulher tem que ser impossível para o menino se interessar”. E um garoto afirma: “acho que é a declaração de amor que elas querem”. Ou seja, os jovens atestam que a mulher, para manter sua alteridade fundamental, não deve se expor.

Nesse sentido, no trabalho com os jovens fascinados pela mostração, podemos tomar a direção apontada por Laurent “lá onde o mestre mostra, e mostra sem pudor, a obscenidade, o psicanalista, ao contrário, recoloca o véu e evoca esse demônio sob a forma da vergonha” (2002, p. 7).

Tais constatações nos levam a tomar a vergonha em sua função civilizatória, que ajuda a circunscrever o gozo, a fixá-lo. Ao analista, nesse momento, cabe a função de introduzir o véu sob o gozo escancarado de nossos dias, como demonstrado por alguns dos adolescentes, de tal forma que possa abrir caminho para que cada um se responsabilize por suas escolhas. Nesse sentido, o analista deve estar advertido de que seu lugar também depende da possibilidade, ou não, de um novo laço de amor se instalar.

 

1 Relatório apresentado durante o VII ENAPOL- Encontro Americano da Orientação Lacaniana. São Paulo. 2015 e posteriormente na Conversação do Instituto de Psicanálise de Minas Gerais (2016)
2 Participantes do Relatório: Bernardo Micheriff Carneiro (MG), Elizabeth Medeiros (MG); Inês Seabra (EBP/AMP/MG); Ludmilla Féres Faria (relatora. EBP/AMP/MG); Maria José G. Salum (EBP/AMP/MG; Mariana Aranha (MG); Michelle Sena (MG); Miguel Antunes (MG).
3 “Esparrar”: esparramar, colocar na rede social.
4 Snatchat: mensageiro semelhante ao WhatsApp.
5 Nudes: fotos e vídeos nus
6 Printar: salvar a imagem

 


Bibliografia
BROUSSE, M-H. El superyó: del Ideal hacia el objeto. Perspectivas políticas, clínicas y éticas. Coleccion Grulla: Cordobá, 2011.
ELKIN, M. Despertar de la adolescência. Freud y Lacan, lectores de Wedeking. Buenos Aires: Grama Ed., 2014.
FREUD, S. (1987). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor In: Contribuições à psicologia do amor (Vol. 11, 2a ed., pp. 161-173). Rio de Janeiro: Imago. (Publicada em 1909).
FREUD, S. (1987). Cinco lições de psicanálise (Vol. 11, 2a ed., pp. 12-51). Rio de Janeiro: Imago. (Publicada em 1909).
LACAN, J. (1992). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1969-1970).
LACAN, J. (1985). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1972-1973).
LACAN, J. (2003). Prefácio a O despertar da Primavera. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Publicada em 1974).
LAURENT, E. A vergonha e o ódio de si. In: Carta de São Paulo. EBP-MG, ano 9, n. 7, 2002.
MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Disponível em: <http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia>.
MILLER, J.-A. (2010). Extimidad. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. (Seminário de 1985).
MILLER, J.-A. (2012). La fuga del sentido. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. (Seminário de 1995).
WAJCMAN, G. A propósito de El ojo absoluto. Disponível em: <http://virtualia.eol.org.ar/020/template.asp?entrevistas/wajcman.html>.

Ludmilla Féres Faria (Relatora)
Ludmilla Féres Faria – Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: ludffaria@uol.com.br



Almanaque On-Line Entrevista – PHILLIPE LACADÉE

PHILLIPE LACADÉE

 

PHILLIPE LACADÉE

 

Ana Lydia Santiago: Jacques-Alain Miller, em seu texto “Em direção à adolescência”, apresenta a sua análise da demanda incondicional de respeito dos adolescentes: “Eu quero ser respeitado”. Segundo sua tese, o que especifica essa demanda é o fato de não ser articulada ao Outro. Ninguém sabe quem pode satisfazer essa carência, enquanto a questão do Outro permanece obscura. Na sua opinião, a que responde o vazio dessa demanda que o adolescente endereça ao Outro?

Philippe Lacadée: Analisei a demanda de respeito a partir de um momento preciso, na França: um movimento de estudantes de segundo grau em que adolescentes – eram moças – pediam respeito. Fiz disso um dos nomes do sintoma da adolescência tanto mais porque, naquele momento, eu estava especialmente interessado nos movimentos rap e hip hop e percebi que muitos desses adolescentes se mostravam desrespeitosos. E, na falta de respeito deles, o que queriam era receber respeito do outro. A palavra respeito vem do latim respectus, que significa nos voltarmos para olhar o outro. É como se, através de seus movimentos ou comportamentos desrespeitosos e provocativos, os jovens nos demandassem olhar para eles e distinguir o elemento de novidade que carregam em si. Essa é a tese de Hannah Arendt, em A crise na educação: cada criança ou cada adolescente carrega em si um elemento de novidade e deseja que o outro que cuida dele – seja o adulto parental ou o outro do mundo da educação – distinga, nele, seu lado particular, sintomático. Por isso mesmo a demanda de respeito é uma demanda invertida, já que normalmente aquele que tem direito ao respeito é, de preferência, o adulto ou o pai. Entretanto, como há uma carência da função paterna, ou uma carência do simbólico, os adolescentes não encontram outra solução para o que vivem em seus pensamentos ou em seus corpos senão colocar suas sensações em evidência para que se destaque o que eles são. Isso é muito importante porque não tem nada a ver com o respeito, tal como Kant o compreendia. Para esse filósofo, o respeito era um tipo de reciprocidade imaginária: “eu te respeito porque você me respeita”. Os adolescentes de hoje, muitos deles, se referem preferencialmente ao lado desrespeitoso, tal como bem mostrou um outro filósofo, Blaise Pascal: “eles pedem respeito para que possamos lhes distinguir”.

 

Ludmilla Feres: No início de nossa conversa, você citou o caso de um jovem que matou o próprio pai para ficar livre das exigências dele de participar do tráfico de drogas. Observou que o ato desse esse jovem foi uma tentativa de se separar de seu pai. Podemos ler, nesse caso, uma demanda de respeito do rapaz?

P.L.: Sim, claro! Podemos responder a essa questão retomando dois momentos precisos em que Lacan tratou a questão do respeito. Em “De uma questão preliminar…”, diz que o pai tem direito ao respeito em função do caso que faz a mãe de sua palavra. É como se, de fato, fosse muito importante para as crianças respeitar o pai porque a mãe dá crédito à palavra dele. E, ao final de seu ensino, Lacan diz que o pai só tem direito ao respeito se fizer de uma mulher o objeto causa de desejo. E, mais ainda, que o pai deve ter um cuidado paterno por seus filhos, o que poucos pais fazem. No caso desse jovem que matou o seu pai, do qual falei, o pai o utilizava apenas como um objeto de gozo, para obter dinheiro para o tráfico de drogas. Ele o desrespeitava como filho, de modo que o filho não podia mais respeitar seu pai. Esse é o problema da civilização moderna. Hoje, na França, temos problemas com as civilizações que vêm do Magreb, da África do Norte, onde a questão do respeito é muito importante. Nas famílias tradicionais de origem árabe, o pai é extremamente respeitado, o que faz com que o respeito esteja bem colocado. Tem-se, nesse caso, uma demanda invertida: a criança demanda respeito para ser considerada uma criança.

 

A.L.S.: Na adolescência, observa-se uma modificação sintomática na relação dos jovens com o saber. O próprio Freud a notou, em sua época. No entanto, isso toma uma nova configuração após a era digital, após a incidência do mundo virtual. Você poderia comentar essa modificação no saber a partir de sua experiência de Conversação em escolas?

P.L.: Uma professora escreveu um livro que se chama Presente[1], que mostra muito bem que os professores devem estar presentes na escola ou ter habilidade nas respostas para efetivamente conseguir transmitir um saber. O professor deveria ser capaz de transmitir sua disciplina da melhor maneira, encarnando-a, demonstrando como ele sabe saber-fazer com isso, pois se há algo que mudou em nossa civilização é o fato de certas crianças e adolescentes estarem diretamente conectados ao mundo virtual, através do Google, e, assim, podem ter acesso a conhecimentos que, no meu modo de ver, não são obrigatoriamente um saber. Para que o saber possa existir para os jovens, é preciso ser transmitido por um adulto. É o que se espera dos professores e, mesmo, de um pai ou de alguém que cuida de uma criança. Ou seja, não se trata de receber um saber desencarnado, que se arquive em meio a uma série de conhecimentos. Para que um saber possa ser transmitido, o adulto, o professor, deve conseguir demonstrar como o saber transformou sua própria existência. Essa é a verdadeira função da transmissão. Os alunos são muito sensíveis a duas dimensões essenciais nos professores – o olhar e a voz –. No entanto, é na maneira pela qual o professor dá vida à transmissão que o que ele ensina pode se elevar à dignidade de um saber.

 

Virginia Carvalho: Freud indica a “construção” como uma estratégia para lidarmos com o que a palavra é incapaz de dizer. A propósito, ele evoca o trabalho do arqueólogo, que precisa reconstruir culturas e sociedades antigas unindo os vestígios materiais que encontra. Ou seja, diante de peças soltas, inventa uma coerência para que constituam um todo. No CIEN Minas estamos trabalhando esse tema das “construções adolescentes”. Você poderia nos dizer algo sobre as construções contemporâneas que tem acompanhado no CIEN na França?

P.L.: Sim, há uma frase de Freud, em O nascimento da psicanálise, que permite esclarecer essa questão: ele diz que todo excesso de sensação impede a tradução em imagem verbal. Todo excesso de sensação inédita, de gozo que muitos adolescentes vivem, os impede de traduzir, de construir com palavras – pois o que Freud chama de imagens verbais são os significantes –, os impede de construir algo na língua do senso comum – língua dos adultos –, que eles rejeitam. No fundo, esse é o problema dos adolescentes: eles querem se fazer escutar em suas construções, que são feitas seja a partir do que resta da sua infância, seja a partir do que eles vivem. E é por isso que se veem surgir, no momento da adolescência, muitas construções – como eu mesmo vi, nos laboratórios do CIEN, no início, quando me interessei pelos textos dos cantores de rap e do hip hop – que retomam o resto das civilizações de seus pais. Como a teoria dos Griottes[1], tradição rejeitada pela geração que se mudou para a França para viver em uma civilização onde não se podia mais viver como vivia nos campos: os jovens dessa geração tiveram a ideia de utilizar esse resto de civilização para elevá-lo à uma dignidade da modernidade, introduzir isso em uma música e retomar os movimentos corporais, que são muito mais livres na África do Norte. Vê-se muito bem como, com isso, conseguiram construir um tipo novo de linguagem, muito ligada ao corpo e ao manejo do gozo. É preciso notar que tudo isso poderia muito bem ser tomado como algo do senso comum, da língua clássica, que os adolescentes rejeitam. Por isso, é preciso dizer sim aos que apresentam como construção, para não deixá-los isolados, sozinhos. Por isso me interessei pelo texto de suas músicas, para demonstrar que, nesses textos, os adolescentes retomavam questões fundamentais.

 

A.L.S.: Você está em Belo Horizonte a convite do 1º Colóquio Internacional OCA, promovido pela UFMG e pelo IPSM-MG, cuja proposta foi a de discutir o tema Mais além do gênero: o corpo adolescente e seus sintomas. A seu ver, qual foi o ponto mais candente desse debate? Você acredita que o tema da sexuação é apropriado para uma abordagem nos laboratórios do CIEN?

P.L.: Assisti a um colóquio formidável! E devo confessar que a discussão dos casos clínicos, no primeiro dia, me deixou preocupado e um tanto angustiado com a constatação de que, hoje, não precisamos mais ficar aprisionados no nosso próprio corpo, podemos trocar de sexo, trocar de gênero. De fato, é inquietante ver como uma criança pode querer modificar seu sexo, desde muito cedo. A pergunta que devemos nos fazer: como acompanhar esses casos? Deixamos as crianças, os adolescentes, e, mesmo, alguns pais responderem tão prontamente a essas modificações corporais e de sexo? Por isso acho muito importante poder trabalhar essas questões nos laboratórios do CIEN e nos núcleos do IPSM-MG, pois talvez seja preciso se dar conta de que, nessas demandas, pode haver sujeitos que sofrem de uma experiência de vida que designamos psicose, em que, em nome de uma certeza, pode-se acreditar que a simples mudança de sexo resolveria todos os problemas. Por esse motivo, considero também importante, como foi feito no Colóquio, voltar a Freud, retomar seu texto As metamorfoses da puberdade, em que se encontra uma diferenciação precisa entre sexo e sexualidade. Para Freud, a sexualidade não se reduz ao sexo. Há uma sexualidade que pode passar por objetos pulsionais, como o olhar e o objeto voz, que faz com que sensações de gozo se articulem a esses objetos pulsionais e não obrigatoriamente passem pelo órgão sexual. É importante também diferenciar as respostas, como faz Lacan em sua releitura de Freud, ao destacar que, mesmo para uma criança que se situa na lógica fálica, no momento em que ela se depara com a questão do seu sexo – como ocorreu com o pequeno Hans –, ela pode viver a ereção de seu pênis como um gozo estrangeiro, que chegaria até mesmo a persegui-lo. E sob o pretexto se livrar-se desse elemento estrangeiro que vive em seu corpo, pode acreditar que a supressão de seu pênis resolveria a questão. Não sou especialista, mas recomendo a leitura dos textos apresentados no Colóquio OCA e também da coletânea organizada por Fabian Fajwacks: Subversão lacaniana das teorias do gênero, em que se encontram oito textos sobre essa questão. E como bem disse François Ansermet durante o X Congresso da AMP, no Rio (abril/16), entraremos em uma época em que a criança poderá exigir o direito de não mais se enclausurar no corpo que recebeu como menino ou menina, e corremos o risco de chegarmos muito longe com essa questão. E é isso que me inquieta.

 

L.F.: O encontro da criança e do adolescente com um gozo estrangeiro, estranho, é retomado por você em vários momentos dessa nossa conversa, até a propósito do jovem magrebino, na França. Qual a abordagem da psicanalise para isso, que é da ordem do estrangeiro?

P.L.: No fundo, a psicanálise é uma experiência de palavra, que ajuda o sujeito a traduzir o que ele experimenta como estrangeiro, em seu interior, ou fora dele, mesmo sem conhecer a significação do fato. O que não quer dizer que o analista dará a sua própria significação. O analista pode permitir o sujeito traduzir melhor o que ele vive em seu corpo. Entretanto, sempre haverá um resto, uma opacidade sobre as questões do sexo, do corpo, porque a vida é assim, não se pode traduzir tudo para a linguagem.

 

A.L.S.: Em Bordeaux conversamos sobre a ampla literatura publicada atualmente sobre o Estado islâmico, e você mencionou seu trabalho com profissionais que estiveram em contato com jovens franceses envolvidos com a causa ideal do E. I., também designada A armadilha Daech, para utilizar o título do livro recente de Pierre-Jean Luizard[2]. Você poderia falar para o Almanaque sobre sua experiência?

P.L.: Sim. Nos bairros da periferia de Paris fui contatado pela responsável do “conselho tutelar” da infância, que conhecia os trabalhos que realizei em uma escola de Bobigny. Juntamente com uma juíza da infância de um tribunal, também de Bobigny, propuseram-me supervisionar um grupo de psicólogos cuja intervenção consistia em escutar jovens franceses que estavam se radicalizando e partindo para a Síria. Ela me falou de um grupo de 35 jovens parisienses que teriam partido e não retornaram: foram assassinados na Síria. Na França, atualmente, há algo muito preocupante que corresponde à crise da adolescência. De minha parte, prefiro falar da crise da língua articulada ao Outro, pois o Estado islâmico, Daesh, compreendeu que era preciso oferecer ao jovem um discurso que eles pudessem articular. É muito simples o que propõem. Dizem-lhes, por exemplo: “Desconfie de seus pais, eles não te dizem a verdade”. Assim, propõem uma certa verdade. Efetivamente, na adolescência, o jovem deve se desembaraçar da autoridade dos pais, dos semblantes, e o Estado islâmico chega dizendo-lhes: “Nós lhes propomos a verdade”. Por outro lado, fazem saber que, uma vez criado o Estado islâmico, haverá um caos – que corresponde à pulsão de morte –, e é a partir desse caos que poderá surgir o profeta – o Midas –. “E, se você se juntar a nós, poderá, você mesmo, se tornar esse profeta”. Os jovens tem então a impressão de que, se deixarem o discurso dos semblantes dos pais, porque eles não dizem a verdade – é a teoria do complô, muito presente na França atualmente, há um complô organizado –, e se largarem tudo isso pelo discurso jihadista, encontrarão a verdade e poderão encarnar esse profeta que surgirá. É por isso que funciona! Quando éramos adolescentes, o importante era ir para Índia, ou para Catmandu. Era a época dos hippies. Pensávamos que a verdadeira vida estaria lá, onde, então, estaríamos diretamente conectados… com…

 

GIULIA PUNTEL

 

Transcrição e tradução : Renato Sariedinne
Revisão : Ana Lydia Santiago
[1] Personagens na África do Norte que transmitiam oralmente a velha tradição clássica.
[1] LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[2] Le piège Daech. Paris: Découverte, 2015.



Almanaque On-Line Entrevista – MARIA ISABEL M. DE ALMEIDA

MARIA ISABEL M. DE ALMEIDA
GIULIA PUNTEL

Habitar o trajeto: o paradoxo do nomadismo

 

Almanaque: Poderia nos falar um pouco sobre os seus últimos trabalhos? 

 

 

Maria Isabel: Concluímos uma pesquisa com jovens que se chama “Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas: uma reflexão comparativa do recurso às drogas no contexto da contracultura e nas cenas eletrônicas contemporâneas”, que foi uma pesquisa que nós fizemos aqui no nosso centro de pesquisas (Cesap) na Universidade Candido Mendes, durante quatro anos, trabalhando essa articulação entre cenas eletrônicas e substâncias sintéticas. E, para isso, frequentamos as raves. Em especial, pesquisamos a relação entre a música eletrônica e o uso do ecstasy. Também fizemos, no âmbito dessa mesma pesquisa, Fernanda Eugênio[i] e eu, outro trabalho sobre essa questão das drogas. Ou seja, nós revisitamos um grupo especifico, que nos anos 70 foi entrevistado por Gilberto Velho e deu origem a seu livro Nobres & Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia[ii]. Essas pessoas tinham, na época, uns trinta anos, e nós voltamos a entrevistá-las, agora em 2000, quando elas têm por volta de sessenta, sessenta e poucos anos. Queríamos saber a relação delas, no passado, com as drogas, para compararmos com a juventude de hoje.

 

Almanaque: Na época consumia-se o que?

Maria Isabel: Na época eles consumiam, sobretudo, cocaína e maconha e realizavam as viagens lisérgicas, faziam uso de ácido. Em seguida, fizemos a pesquisa que deu origem ao livro Noites Nômades[iii]. Estávamos perseguindo essa ideia da relação entre subjetividade e espaço, o subtítulo é justamente “espaços e subjetividades nas culturas jovens contemporâneas”. Todas as nossas pesquisas são atravessadas por essa ideia da etnografia, quer dizer, de estar lá, de acompanhar, de não se restringir a entrevistas, mas viver com eles aquela situação. Na época das drogas foi uma loucura, porque eu trocava a noite pelo dia, eu chegava nas festas por volta de meia-noite mais ou menos e saía no dia seguinte por volta das 11 da manhã, ficando acordada o tempo todo. No caso do Noites Nômades, tinha que acompanhar os circuitos pela night. A pesquisa começava na loja de conveniência e depois se dirigia para os espaços de lazer, para as boates. Aquele era um momento em que a tecnologia estava começando com muita força, então havia toda uma capacidade deles usarem, lançarem mão da tecnologia para mudarem de espaço o tempo todo. Com o celular como fonte básica dessa tecnologia, eles ligavam para as galeras de outros bairros perguntando se as coisas lá estavam “bombando”. Tinham essa capacidade de esvaziar os espaços em segundos e também de ressemantizar o sentido dos espaços. Por exemplo, a porta, além de ser um lugar que une o dentro ao fora, também se torna um “point” onde eles ficavam e ali estabeleciam toda uma rede de sociabilidade.

 

Almanaque: Um ponto de passagem?

Maria Isabel: Além da passagem, um lugar onde eles se fincavam, onde eles se estabeleciam, não entravam, nem saíam, e ali virava um “point” de sociabilidade. As portas como espaços muito mais de fixação, quer dizer, toda uma capacidade de deslocamento e um tempo de transformar o deslocamento numa espécie de residência, isto é, eles habitam o trajeto. Esse habitar o trajeto também se reflete nas práticas afetivas, no “ficar”, por exemplo.

 

Almanaque: Em seu livro Noites Nômades, você apresenta esse paradoxo a partir de uma frase que nos interessou muito: “o nomadismo não se contrapõe à territorialidade”.

Maria Isabel: É uma ideia de Deleuze, para quem o nômade é aquele que não se desloca, ao contrário, está sempre habitando o trajeto, se reterritorializando na desterritorialização, quer dizer, ele se reterritorializa na desterritorialização. Então, no fundo, o nômade, paradoxalmente, é aquele que não se mexe.

 

Almanaque: Você pensa que podemos dizer que existe essa mesma espécie de nomadismo na escolha sexual? Temos visto muitos jovens que afirmam que gostam de ficar tanto com meninos quanto com meninas.

Maria Isabel: Temos sim relações mais lábeis e mais plásticas, mais no campo das meninas do que dos meninos. No campo das meninas, onde havia um lacre muito menor em relação ao “sou gay” e muito maior em “estou gay”, o “estou” está no lugar do “sou”. No caso dos meninos, talvez até por conta da sociedade brasileira, havia uma ideia de uma cristalização maior. Pela questão do machismo, para o menino que é gay voltar à condição de hetero é sempre uma coisa mais difícil, no sentido de como ele é pensado e agido no seu grupo. Com as meninas percebo uma capacidade, uma suavidade, maior nesse traslado, nessa mudança. No caso deles, percebemos menos. No sentido da subjetividade, acho que tudo converge para uma diminuição da dimensão entitária do ser, do ente. Temos uma significativa rarefação da ideia de unidade, da identidade una, indivisível, substancial, encapsulada, mas, ao contrário, temos uma porosidade muito maior. Não temos mais como carimbar a identidade “eu dançarina de tango”, “eu professora de matemática”, ou “eu gay”. Gay é uma das facetas que constituem o que eu sou.

 

Almanaque: A partir dessa labilidade nas relações e nos espaços que você destaca, como podemos pensar a relação entre dependência e autonomia que também encontramos nos jovens de hoje?

Maria Isabel: Os jovens são muito autônomos e não independentes, ou seja, isso caracteriza uma fronteira, um divisor de águas muito grande em relação à geração jovem contracultural, ou à geração que foi jovem nos anos 70, para a qual essa ideia de autonomia só era possível – até por uma questão de ênfase muito maior na ideologia, na visão de mundo que informava aqueles valores –, só se daria inevitavelmente, com a conquista da independência. Hoje você vê jovens absolutamente autônomos, donos das suas vidas, conhecendo tudo, dominando a tecnologia, até ensinando aos pais sobre esse mundo da tecnologia e, ao mesmo tempo, absolutamente retidos, sedentarizados, presos à questão financeira, numa total dependência. Então, hoje, esses dois aspectos podem ser combinados. Se você pensar em cinquenta anos atrás, não seria possível de se combinar, porque você só teria o estatuto de autonomia se fosse independente, se saísse de casa.

 

Uso das drogas: ruptura ou empresários de si mesmo?

 

Almanaque: A relação dos jovens com as drogas também mudou, desde os anos 70?

Maria Isabel: Essa diferença entre as gerações aparece muito clara no uso das drogas. É uma porta de entrada para entender a subjetividade, o contraste entre a geração que consumiu drogas nos anos 70, uma geração para quem a droga gerava um emburacamento definitivo. As pessoas muitas vezes tinham que parar de trabalhar, não conseguiam mais estudar – era um pouco aquela ideia da viagem sem volta, o tipo de visão escapista do mundo. Na pesquisa em que fizemos, vários entrevistados diziam ouvir o choro do filho e que era desesperador, porque eles não podiam fazer nada. Isso revela um nítido contraste com a geração dos anos 2000 que consumiu drogas, mas numa perspectiva de continuidade da vida e não de ruptura, do não emburacamento.

 

Almanaque: Por quê?

Maria Isabel: Porque eles, como disse um informante, de quem até hoje me lembro, numa rave, lá em Pedra de Guaratiba: “Ah! Olha, isso aqui que vocês estão vendo, essa rave, a diferença disso aqui para Woodstock é que na segunda-feira eu tenho que estar lá engomadinho no trabalho”. Ou seja, ele tem que manter as duas frentes. Então eles têm uma expertise imensa de como tomar a droga, como contracenar e dosar com a quantidade de água, como fazer a relação entre a cápsula do ecstasy e seu peso. Eles são pequenos empresários de si, possuem uma facilidade de administrar a conduta. É claro que muitas vezes acontece de baixar no hospital, mas possuem um padrão mais regular de conduta, que é contrário ao da geração dos anos 70, cujo consumo de drogas tinha um prazo de validade. Essa geração atual, na manhã de segunda-feira deve estar na faculdade, por isso não vai tomar a dose maior do ecstasy no domingo, vai tomar no sábado. Domingo eles vão precisar dormir bastante e não vão deixar de se hidratar. É muito diferente. É o grande divisor de águas entre o escape, o evadir-se, o sair daquela realidade. E hoje, a droga da presença, da “você está ali como jamais esteve”, como nos disse um desses jovens, é a droga que presentifica inteiramente a realidade do sujeito. Nessa hora eles não estão se evadindo de nada, nem embarcando em uma viagem sem volta, nem se opondo à realidade. Inclusive, essa dimensão de oposição, de antagonismo, é muito mais branda do que a ideia genuína da oposição que caracteriza o sentido de resistência predominante nos anos 70.

 

Almanaque: Pode-se perceber tal mudança também no que diz respeito ao envolvimento político dos jovens hoje? É menos revolucionário? Mais adaptado?

Maria Isabel: Ah, sim, com certeza. A categoria do desafio, da resistência, da oposição, se abrandou muito, porque a ideia de negociação e de composição com determinadas realidades é muito mais norteadora da subjetividade desses jovens. Por exemplo, nas realidades ligadas hoje à sustentabilidade, à ecologia, eles não pensam em parar de consumir, mas vão consumir menos, com mais noção, com mais regramento, sabendo o que vão consumir. É uma ideia muito próxima à ideia de resiliência, e não da resistência. Tudo é muito mais composto, adaptado, negociado. Não é mais a ideia de se tomar um caminho ou outro, são caminhos mais associados, adicionados, do que essa perspectiva matricial da contracultura, que é: ou você realmente é parceiro da luta armada ou você é um mauricinho preocupado em ganhar dinheiro, jogar na bolsa e, no final do mês, só pensar em mercado de capitais. Acho que isso aí realmente alterou muito as mentalidades. Um caminho como esse, como a luta armada, implicava a absoluta exclusão de todos os outros, e acho que hoje esse jovem já tem toda uma capacidade de compor várias trajetórias, sem que elas impliquem em contradição.

 

“Ver a escolha com olhos menos cativos”

 

Almanaque: Então, como enxergar a realidade dos jovens hoje com novas lentes em relação e essa dimensão da escolha?

Maria Isabel: É preciso não ver a escolha desse imaginário dos anos 60 com olhos ainda muito cativos, ou seja, enxergar a realidade sem essa contaminação. Para enxergar a realidade atual desses jovens, precisamos nos desfazer desses mapas que orientaram a nossa geração, senão a gente realmente não vê. Tem muitos autores que encaram o contemporâneo muito pelas lentes de uma espécie de nostalgia do que foi o ideal, os anos 60. A própria ideia do indivíduo em si, como ente, é uma coisa que hoje se desfaz. A gente vê inclusive essa ideia do “estou” versus o “ser”, do “estar” versus o “ser”, que imprime uma marca muito maior na arquitetura subjetiva hoje. Acho que é uma problematização mais rarefeita, mais simplificada. Não há um excesso de problematização e reflexividade sobre si, sobre os destinos. No lugar de uma carga narrativa, descritiva, temos uma espécie de comunicação fática, apenas algo que nos une ali naquele momento, que nos sutura. Uma interjeição ou outra, mas que não é realmente aquilo que a gente entenderia como a formação mesmo de uma comunicação baseada na ideia de uma categoria discursiva, tal qual era recorrente décadas atrás.

 

Almanaque: Hoje, no congresso da AMP, Viveiros de Castro nos contou que, se desejarmos nos aproximar de uma tribo indígena para aprendermos sua língua, após um período inicial, os índios vão recomendar que comamos a comida deles. Mais três meses, e eles dirão: “comam nossas mulheres”. Ainda assim, três meses depois, recomendarão o uso de suas drogas. É como se eles dissessem que não se pode aprender a língua sem colocar o corpo em cena. Para aprender a língua, a observação é insuficiente, é preciso ser “um dos nossos”, entrar com o corpo.

Maria Isabel: É! E por isso um pouco essa ideia de um trabalho de pesquisa em antropologia, muito menos cativo do que essa ideia de você ir lá e entrevistar, pra depois dizer para o jovem quem ele é. Quem é você pra dizer a ele quem ele é ou explicar o que ele faz?! A gente tenta uma imersão muito maior na dimensão relacional daquele contato, realmente.

 

Almanaque: Como foi realizada a pesquisa em festas raves? O que estava em jogo?

Maria Isabel: Era uma pesquisa de campo, uma etnografia. Eu não ia entrevistar esses jovens nas suas casas, queria entrevistá-los em ato. Queria vê-los consumindo drogas, vê-los em estado ou não de mobilização pelas drogas, vê-los dançando com a música. Nesse sentido pude ver, por exemplo, muitos que prescindiam da droga para dançar ou até para entrar em suposto êxtase, como eles diziam. A música em si já atuava nesse sentido. Outros tomavam a droga mas faziam vários desenhos performáticos com o corpo. Um grupo fazia uma dança que era chamada “almôndegas”, um tipo de exercício em que todos ficavam em círculo, de braços dados, e faziam movimentos quase que de sístoles e diástoles; se recolhiam todos e, depois, se abriam, como se fosse uma flor que fechava e abria. Depois eles dormiam muito. Tinha o momento que eles chamavam de “chill out”[iv], para descansar até a hora de ver um DJ específico que eles queriam.

 

Um novo ritmo: ovos com bacon

 

Almanaque: Atualmente qual pesquisa você está fazendo?

Maria Isabel: A última foi sobre a questão da criatividade, da primeira experiência profissional. Trabalhei com dois grandes grupos de jovens, jovens ligados a grupos basicamente de profissões mais executivas e empresariais, e jovens mais ligados ao lado lúdico, artístico: jovens que trabalhavam com arte, com cinema, com literatura. Percebe-se uma nova maneira de trabalhar desses jovens. Não existem mais fronteiras muito nítidas entre dia de semana e fim de semana, entre dia e noite, entre casa e trabalho. Percebe-se um movimento de contaminação recíproca muito grande, um profundo entrecruzamento de criatividade e profissionalização, ou seja, a ideia de profissionalização da criatividade e criativização da profissão. Ou seja, os jovens cuja opção profissional se alocava nos universos mais hard, mais duros, ligados ao mercado, aos bancos, às profissões executivas, tinham que, efetivamente, ser criativos para funcionarem bem, e os outros, os artistas, tinham que se profissionalizar. Uma irrigação mútua dos dois territórios. Interessante que vimos que a colaboração e o compartilhamento são circunstâncias muito mais fortes entre os jovens ligados a profissões executivas do que entre os artistas que ficam muito mais subservientes ao núcleo do autor, a quem é o autor. Por exemplo, os jovens que trabalham nas incubadoras científicas, as incubadoras de projetos, são muito mais capazes de descentralizar a autoria. Nos jovens do mundo artístico, a gente percebeu muito mais um atrelamento à coisa de “quem deu a ideia”, “quem é o autor”, “é minha e ninguém tasca”, ao eu, “fui eu que bolei isso”, “eu que inventei”. Sendo que a própria invenção hoje é uma coisa cada vez mais remota, porque tudo na sociedade contribui para algo ser criado. Não existe mais essa capacidade asséptica de dizer “aquilo foi exclusivamente feito ou pensado por mim”, o tempo todo a tecnologia te atravessa. Essa pesquisa está no livro que coordenei junto com um grande especialista da juventude em Portugal, José Machado Pais[v]. Fernanda Eugênio e eu escrevemos o artigo “Criatividade situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas práticas profissionais contemporâneas”[vi], no qual apresentamos uma discussão sobre tempo e espaço, essa coisa do estresse atual dos jovens, isso de eles procurarem uma equação ideal entre o lúdico e o trabalho. Uma jovem fala que ela está fazendo um doutorado em relações internacionais, mas que era também DJ e poeta. Toda essa coisa também da multiplicidade, da geração slash (“barra”): Poeta/videomaker/bailarina/pintora. Ela diz que em algumas circunstâncias da vida, trabalhar é como fazer ovos com bacon, porque tem vezes em que basta ser galinha, ou seja, a galinha põe o ovo e pronto. Isso equivale a um tipo de trabalho mais suave, no qual você tem o controle do seu processo e do seu ritmo, mas tem outras horas em que você é porco, tem que dar tudo de si, tem que entrar com tudo, como o porco, que entra com sua vida. Para fazer o bacon, ele tem que morrer. Isso demonstra como é que eles orquestram e graduam suas vidas em termos do esforço que aplicam no trabalho. Tudo isso é pensado, medido, muito diferente da ideia de “vai com tudo”, típica da contracultura.

 

Almanaque: Mas não tem, por outro lado, um mandato superegoico sobre esses jovens, de que eles têm que ter sucesso, têm que dar certo, têm que ganhar dinheiro?

Maria Isabel: Esse binarismo implacável entre o “winner” e o “looser” tem sido muito repensado. Peter Sloterdijk, autor da sociologia, da filosofia, define a modernidade como um processo de mobilização infinita, quer dizer, do progresso, da produção. Esse processo está ligado a uma relação ininterrupta com o tempo, à impossibilidade da “paragem”, um aceleracionismo permanente. Na linha contrária a essa da mobilização, temos o desmobilizar, ou seja, gerar intervalos, parar, tomar distância. Nós pesquisamos muito esses retiros de silêncio, que estão agora no auge. Jovens que estão optando por retiros de silêncio em áreas absolutamente reservadas ficam 10 dias inteiros em silêncio, fazem meditação e uma revisão de tudo ligado ao consumo, ao excesso.

 

Almanaque: Qual a justificativa para esses retiros? O que os jovens procuram?

Maria Isabel: Muitos vão pra organizar a vida, outros vão pra dar uma parada, um outro diz que foi porque terminou com a namorada, ou porque foi a um carnaval muito intenso e pirou, precisava descansar. São muitas demandas, muito adaptadas aos cotidianos de cada um. O que se destaca é essa ideia de baixar, de gerar um intervalo, de menorizar, de diminuir. A ideia de ganhar distância em relação à realidade. Estou preparando um livro sobre essa pesquisa das desmobilizações – que não é a ausência de mobilização, mas é essa ideia de contraponto a uma mobilização infinita. Eu trabalhei muito com retiros, foi uma pesquisa muito ligada à internet, sobre inúmero sites que eu coletei de jovens que estão tentando produzir alguma coisa que seja uma contrapartida a essa ideia da aceleração, em todos os níveis. Tem milhões de coisas. Tem o processo do homeschooling – essa ideia de você passar a ensinar ao seu filho em casa –, o questionamento da ideia do ritmo tradicional do ensino, de certa maneira pouco humanizado e muito competitivo; tem a ideia das feiras, nas quais você basicamente troca coisas ou pode pegar coisas sem que haja veiculação pecuniária – mas isso não elimina por completo a ideia da troca; há também as pessoas que hoje conseguem trabalhar viajando e ter um prazer muito maior, porque trocam muitas vezes um local que seria um pago, como um hotel, pela capacidade de cuidar da casa de alguém que viaja. Todas essas permutas, essas trocas. A comida, por exemplo, tem muitas experiências… Em Portugal, uma dessas experiências chama-se “fruta feia”. Frente à desesperança de muita gente com a crise, em relação à sociedade, neste momento, eles têm milhões de iniciativas, em geral de jovens. Essas frutas feias são aquelas que os estabelecimentos não querem, porque são imperfeitas, e então são vendidas pela quinta parte do preço. Essas frutas são tão boas quanto, só que têm defeitos. Vendem então nas praças, e tem um sistema de cooperativa enorme sobre isso. Há ainda a questão das compostagens, que são adubos feitos em casa. Há também as buscas deliberadas de solidão. Não a solidão como uma condição que caiu sobre o indivíduo sem ele querer e ele está totalmente isolado, solitário, mas as solidões deliberadas, não só do retiro de silêncio, mas as mudanças para o campo.

 

Almanaque: De fato há uma diferença entre solidão e isolamento, não é a mesma coisa.

Maria Isabel: Exato, ou a solidão acontecida versus a solidão deliberada.

 

Efeitos políticos dos corpos trepidantes: trabalhar com o que se tem

 

Almanaque: Qual o efeito político dessas práticas?

aria Isabel: Eu acho que é muito político. Hoje, por exemplo, em relação à cartilha e à ideia do queer – acho que passa por aí realmente, até no sentido de que, não sei se chega a ser um rótulo, mas é um rótulo do não rótulo –, nesse movimento você não consegue pegar e dizer: é isso, é trans, é homo, é gay, é não sei o quê. A coisa da Judith Butler e da Beatriz Preciado, as duas autoras que mais trabalham nessa linha. Então eu acho que isso diminui a segregação entre os jovens, sim.

 

Almanaque: Interessante que, diferente de outros autores, você não faz uma leitura pessimista desse momento dos jovens, ao contrário.

Maria Isabel: Ah, sim, completamente diferente de autores como Bauman, por exemplo, que realmente vê que tudo está líquido, nada fica em pé. Realmente, eu acho que são autores que estão presos a certas circunstâncias ideais que eles viveram e em relação a qual tudo hoje parece fenecer ou está ruim, estragou. Uma coisa do pânico moral, um Baudrillard, por exemplo.

 

Almanaque: Você acha que tem uma potência nesse novo? Tem uma invenção em cena?

Maria Isabel: Eu acho, com certeza. Isso é outra coisa. Trabalhar com o que tem, como o “se virar”, não tem mais aquela coisa da carreira, “um dia eu vou conseguir fazer alguma coisa”, etc. Essa noção de escada, de degrau a degrau, até você chegar. Hoje essas coisas não podem, não estão mais funcionando assim, são poucas as carreiras, a ideia de carreira. Eu fui num congresso, há pouco tempo, em Portugal, que era sobre essa questão do crepúsculo, dessa ideia do especialista, daquele que vai de degrau a degrau numa escalada. Hoje você sente que a horizontalização e a capacidade de se virar e de trabalhar com o que está diante de si é muito mais imperiosa do que essa ideia de esperar ou de galgar longas etapas.

 

Almanaque: E quando você fala jovens, qual faixa etária considera?

Maria Isabel: De 20 aos 40. Você não tem mais como se basear no IBGE, de 18 a 24 ou 25, porque realmente implodiu essa questão. Até porque a juventude perde a sua ancoragem cronológica e vira um estado de espírito. Todos querem ser jovens.

 

Almanaque: Podemos dizer que o nomadismo acaba sendo uma ferramenta que pode ser utilizada para ler todas essas práticas dos jovens?

Maria Isabel: Acho que é uma categoria que ajuda, sim. Ajuda na medida em que ela se contrapõe realmente até a visão literal do sedentário, do fixado, do territorializado, e também da hierarquia, mas não é um deslocamento do tipo dos não-lugares, do Marc Augé. Eu acho que há uma ressemantização dos lugares, por exemplo, os “points”. Eles recriam e reconfiguram, na cidade, espaços que, em geral, poderiam ser decodificados de uma forma fixa e tradicional, e que eles atribuem toda uma significação desvinculada às sociabilidades e aos tipos de agregação do momento.

 

Almanaque: Ou seja, esses locais são locais libidinizados, com uma carga de afeto, como você sugeriu, enquanto Marc Augé trabalha espaços sem identidade, como os aeroportos.

Maria Isabel: É, por exemplo, os postos de gasolina, que Augé também cita, é o início do circuito da night jovem, lugar da primeira calibragem, inclusive alcoólica. Era ali que realmente começava o chamado comboio e implicava sempre em atribuir sentido, graça, humor ou diversão a alguma coisa inerte, à qual não havia sido atribuído nenhum sentido, nenhuma significação, e que dependia realmente da interação entre eles. Por exemplo, transformar, de repente, o estacionamento de um hortifrúti em um campo de futebol, à meia-noite, ou ficar na escada de um prédio esperando outros amigos. Isso era o “zoar”, que tem uma dimensão de gratuidade, de transformação e de ocasionalismo muito grande.

 

Almanaque: E como você acha que a linguagem acompanha esse novo modo de se relacionar com o espaço?

Maria Isabel: A linguagem é muito mais rarefeita do que a forma de comunicação tradicional. Hoje ela é muito mais empírica, sensória, performática. Basta ver, por exemplo, a questão do corpo do jovem. Hoje o corpo é muito mais trepidante, ou seja, agitado por todos esses apelos e ao mesmo tempo pela simultaneidade dos estímulos de telefone, de som, de barulho de celular, barulho de televisão, computador. Há uma atenção profundamente descentralizada e que não prejudica a atenção. Uma socióloga argentina, Beatriz Sarlo[vii], diz que “só a curta duração retém a atenção”. Um jovem hoje, com essa trepidação do corpo, é muito difícil de ser visto numa cadeira, mesmo que seja confortável, ou numa poltrona, por duas, três horas, lendo um livro só. É impossível, a motórica corporal dele não permite; é uma agitação, é uma dispersão, é um outro corpo, realmente muito mais voltado para o oposto da metáfora da ampulheta, que vai de cima para baixo, acompanhando um movimento de verticalização da atenção. O que hoje se observa com mais frequência é uma descentralização e um espraiamento muito maior da atenção.

 

Almanaque: Interessante! Perguntamos sobre a linguagem, e você responde com o corpo. Nosso congresso é sobre isso mesmo!

Entrevista realizada em abril 2016, por Bruna Albuquerque e Ludmilla Féres Faria
Transcrição e edição: Bruna Albuquerque, Lisley Braun Toniolo
[i] Fernanda Eugênio – Pós doutora em antropologia e Pesquisadora Associada do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP-UCAM-IUPERJ, Rio de Janeiro). Fernanda Eugênio e Maria Isabel M. de Almeida. Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas : uma relfexão comparativa do recusro às ‘drogas’ no contexto da contracultura e nas cenas eletronicas contemporâneas. In: Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura (Org. Maria Isabel M. Almeida e Santuza Cambraia Naves) . Rio de Janeiro: Editora 7 Letras.
[ii] VELHO, G. Nobres & Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia? Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998.
[iii] ALMEIDA, M. I. M.; TRACY, K. A. Noites Nômades. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003.
[iv] Chill out: termo da língua inglesa que significa “relaxar totalmente”, “esfriar”. Usado pelos jovens para um momento de descanso, esfriar o corpo, relaxar.
[v] José Machado Pais, cientista social e professor universitário português. É licenciado em Economia e doutorado em Sociologia, é Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Professor Catedrático Convidado do ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa. Subdiretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do Senado da Universidade de Lisboa.
[vi] EUGENIO, F. Criatividade Situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas praticas profissionais contemporâneas. In: Criatividade Juventude e novos horizonte profissionais (org. Maria Isabel M. de Almeida e José Machado Pais). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-277, 2012.
[vii] Beatriz Sarlo lecionou literatura argentina na Universidade de Buenos Aires (UBA). Autora de Cenas da vida pós-moderna, intelectuais, arte e viodeocultura na Argentina. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. 2000

Maria Isabel M. De Almeida
Socióloga. Pós-doutora em Sociologia pela Universidade Paris V – René Descartes Professora do departamento de Ciências Sociais da PUC-RJ Coordenadora e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Ucam. Autora, entre outros livros de Noites Nômades( Rocco) e Culturas Jovens -Novos mapas do afeto. ( Jorge Zahar) E-mail: isabelmendes2008@gmail.com



O Manejo Da Transferência Diante Da Demanda Dos Pais

MARINA S. SIMÕES

FOTO: FREDERICO BANDEIRA

 

Analisar uma criança requer ir além de acolher e escutar o sujeito. O trabalho não depende apenas do desejo desse sujeito em trabalhar e do desejo do analista, mas requer a presença dos pais. São eles que procuram o analista, demandando a análise para a criança.

Sabemos que, para que uma análise seja possível, é imprescindível que ocorra transferência. A análise de uma criança requer, também, a transferência com os pais. Nós, enquanto analistas, temos o desafio de criar um laço transferencial com os pais, senão a criança, com o seu sintoma, não chega ao tratamento.

Geralmente são os pais que procuram o analista, demandando a análise da criança por diversos motivos que causam mal-estar: algo da criança que os incomoda, demanda da escola ou, ainda, por indicação de algum médico, parente ou amigo. A primeira demanda é dos pais. Acolhemos essa demanda tomando o cuidado de escutar a singularidade que uma criança desperta no adulto que nos procura.

Cabe ao analista investigar o que levou os pais a procurá-lo e qual é a posição deles diante do sintoma da criança. O analista dá lugar ao saber dos pais, acolhendo o que eles falam, atento à diferenciação entre o sintoma do par parental, o sintoma da mãe, do pai e da criança. Abrem-se aí questões fundamentais: qual é o lugar que a criança ocupa na família, assim como qual é o sintoma que ela ocupa para esse Outro?

Podemos obter algumas dessas respostas por meio das entrevistas com os pais, identificando onde se situa seu sintoma em relação à criança. A presença do desejo dos pais molda o sujeito, e a sua ausência deixa uma marca, que reaparecerá nas formações do inconsciente, incluindo o seu sintoma, que responde a uma falha na estrutura familiar.

A impossibilidade de estabelecer laços transferenciais ocorre quando os pais “não quererem saber” sobre o sintoma do filho. Nesses casos, não há possibilidade de transferência entre pais e analista. Esses pais não questionam, mas demandam respostas, querem que o analista “cure” o seu filho, fazendo com que o sintoma que incomoda desapareça.

Nos casos em que a criança é encaminhada por um terceiro, que pode ser a escola, um médico, um amigo, os pais não questionam, não demandam e, algumas vezes, não estão incomodados com o “problema” que o filho apresenta. Apenas cumprem o papel que lhes foi solicitado. Apostamos, então, na transferência com a criança, para que o tratamento seja possível.

Já nos casos em que os pais querem saber, a transferência não é apenas possível, mas necessária para o trabalho com a criança. Nesses casos, apostamos no inconsciente do pai e/ou da mãe para fazer o laço transferencial. Escutamos cada um do par parental, com o seu sintoma e o seu desejo. Aqui, cabe interpretar, diferente do primeiro caso, em que a transferência não é possível. De acordo com Freud, podemos interpretar apenas quando a transferência já está estabelecida, pois a emergência da transferência significa que há processo inconsciente.

Na relação paciente-analista, o paciente realiza o trabalho. É ele quem produz, entregando o material ao analista, a este cabendo recebê-lo, escutá-lo e, quando possível, interpretá-lo, intervindo enquanto Outro.

De acordo com Lacan (1964), a interpretação não está aberta a todo e qualquer sentido e tampouco toda interpretação é possível. Ela funciona quando toca o inconsciente, o que é complexo e exige cautela do analista. A interpretação não visa tanto ao sentido; visa mais a reduzir os significantes ao “não-senso”.

Os pais chegam ao psicanalista supondo que este saiba algo do sintoma do seu filho e pedem uma resposta. O analista ocupa o lugar de sujeito suposto saber, que é um mecanismo da transferência fundamental para a análise. O sujeito precisa se sentir amado e supor saber ao analista no primeiro momento da transferência. Lacan acreditava que o sujeito suposto saber é o pivô da transferência, pois a análise se estabelece com essa suposição de que o Outro, analista, sabe – posição esta que o paciente consente, mas com a qual o analista não se identifica. Lacan (1964) pontua que

 

Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber (…) há transferência. (…) Ora, é bem certo, do conhecimento de todos, que nenhum psicanalista pode pretender representar, ainda que da maneira mais reduzida, um saber absoluto (LACAN, 1964, p. 226).

 

Para Lacan (1938), o sintoma da criança está relacionado com a família, com esse Outro primordial, pois responde ao sintoma da estrutura familiar, representando a verdade do par parental. O sintoma da criança pode representar o que há de sintomático na mãe, no pai ou no casal. Lacan pontua que o destino psicológico da criança depende, primeiro, da relação que as imagens parentais têm entre si. Segundo Lacan, a criança é o sintoma do par parental. E é por esse viés que apostamos na possibilidade da análise com a criança.

 

(…) o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. O sintoma – esse é o dado fundamental da experiência analítica – se define, nesse contexto, como representante da verdade do casal familiar. Esse é o caso mais complexo, mas também o mais acessível a nossas intervenções (LACAN, 1938, p. 369).

 

Os pais com que trabalhamos são os pais reais, que queixam e demandam, e não os pais da fantasia da criança, como trabalhado por Freud em Romances familiares, aqueles que constituem uma autoridade única para a criança, que carrega o conhecimento sobre tudo. Mais tarde, a criança vai compará-los a outros pais e depois rivalizar com eles. Esses, nós tratamos na análise com a criança. Já os pais com que estamos trabalhando aqui ocupam uma função muito importante no tratamento das crianças, e nós contamos com eles para o trabalho ocorrer. Porém, ressaltamos o lugar da criança enquanto analisante, afinal, a análise é o espaço para a criança, enquanto sujeito, trabalhar as suas questões, e não o lugar de análise dos pais.

Algumas vezes os pais precisam do seu espaço para falar e colocar suas questões. Esse espaço, no entanto, deve ser encontrado fora da análise do filho. Perguntamos quando e como encaminhar um pai e/ou uma mãe a um analista, para que tenham um lugar onde eles possam tratar do seu sintoma.

O analista, quando faz uma intervenção com os pais, busca orientar o nó do amor, do desejo e do gozo de ambos. Sabemos a importância de ouvir cada um dos pais para o tratamento da criança, mas questionamos quando devemos chamá-los para conversar.

Convocamos os pais para conversar quando eles nos solicitam, quando acreditamos ser necessário investigar mais sobre a criança, quando percebemos algo errado com a criança que ela não dá conta de falar, quando sentimos a necessidade de dar um retorno e quando precisamos chamar o pai para a sua função, entre outras inúmeras situações. Eles são fonte de saber sobre a criança, mas não sabem de tudo. Buscamos construir, junto à criança e aos pais, algum saber. O trabalho com os pais é um trabalho conjunto, visando ao tratamento da criança.

Alguns pais pedem que o analista os ensine como lidar com o filho, questionando se agem certo ou errado com a criança. Ao analista cabe o cuidado no manejo da transferência com os pais, sendo possível orientá-los, para o trabalho caminhar. Orientar é diferente de dar respostas e ensinar. Orientar é construir soluções possíveis, pontuando o que for importante para a continuidade do trabalho.

Os pais são a primeira fonte de saber da criança, eles são a lei e o amor. Questionamos se o pai e a mãe ocuparam as suas funções para essa criança na construção do Édipo. A estrutura do sujeito depende do Outro e dele mesmo, de como a falta se instaura. O sujeito escolhe, via desejo, qual posição vai tomar, escolhe se alienar ou não, mas para conseguir chegar ao alcance da escolha, é necessário algo antes, e é aí que os pais entram.

Primeiro, o sujeito criança se aliena, dizendo “sim” ao Outro. De acordo com Lacan, esse é o primeiro passo da operação em que se funda o sujeito, sendo essencial a criança passar por ele para chegar ao segundo momento, no qual ele se separa, respondendo “não” ao Outro, dando uma resposta enquanto sujeito desejante. Isso é possível quando o seu lugar no desejo do Outro se torna enigmático para a criança, quando ela sai do lugar de assujeitamento ao gozo do Outro para assujeitar-se a uma lei – a lei do desejo, encarnada pela função do pai. É nesse segundo momento que o campo da transferência começa a ter lugar. O trabalho da análise consiste em ajudar a criança a fazer essa separação, intervindo no lugar em que nos é dado pela transferência.

Nesse momento de impasse, pode acontecer de alguns pais suspenderem o tratamento da criança, porque dizem que ela já está bem, quando o sintoma que os incomodava apazigua, ou quando acreditam que a criança “piorou”, está “rebelde”, “agressiva”, pois está se separando, se posicionando enquanto sujeito. Acontece que, quando a análise abre a possibilidade do sujeito criança aparecer, criando certa independência em relação aos pais, estes a interrompem, com ou sem transferência com o analista. São eles que decidem o momento de interromper, e não o analista junto ao analisante.

Na experiência com a clínica, assistimos a tratamentos de crianças sendo interrompidos por várias razões: além dos citados acima, porque os pais acreditam em outra(s) forma(s) de tratamento e creem que terão mais êxito, porque estão com baixas condições financeiras, porque acreditam que a criança já está há muito tempo em tratamento e não obtiveram os resultados esperados, também por questões de mudança de horário ou inviabilidade de levar a criança ao atendimento, entre outras. Nesse momento, nós, enquanto analistas, se possível, chamamos esses pais para mais uma conversa, além de outras ocorridas durante o tratamento da criança. Ressaltamos a importância do tratamento pontuando que ele ainda não chegou ao fim, e que, portanto, não concordamos com sua interrupção. Cabe ao analista amparar também os pais nessa separação.

Uma das causas da interrupção do tratamento da criança é a resistência, que pode ser do lado da criança ou do lado de um dos pais. Há casos em que o pai ou a mãe diz que a criança não quer mais ir às consultas. Investigamos de qual lado está a resistência, para trabalharmos com ela, afinal, a resistência é uma forma de transferência. Ela aparece como um obstáculo para a cura, mas com o manejo da transferência é possível vencê-la. De acordo com Freud (1912),

 

(…) a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise – e a análise como tal – muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influencia analítica junto aos pais (FREUD, 1912, p. 146).

 

Ainda segundo Freud (1912), os fenômenos da transferência – resistência, repetição e sugestão – representam grande dificuldade para o psicanalista, mas são necessários para tornar manifesto os impulsos eróticos ocultos do paciente, ou seja, para chegarmos ao inconsciente do sujeito.

Em 1912, Freud afirma que a resistência deve ser contornada através da interpretação, que é colocada como uma arte, principalmente no que diz da identificação das resistências. Trata-se do manejo da transferência dando o devido tempo para o paciente elaborá-la, superar a resistência e abrir a possibilidade, assim, de recordar e prosseguir com o tratamento.

 

Depois que ela for vencida, a suspensão das outras partes do complexo quase não apresenta novas dificuldades. (…) assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo da transferência (…) mas o papel que a transferência desempenha no tratamento só pode ser explicado se entrarmos na consideração de suas relações com as resistências (FREUD, 1912, p. 115-116).

 

De acordo com Freud (1912), citado por Miller (1988, p. 104), a transferência se produz quando o desejo do sujeito encontra um elemento particular na pessoa do analista, ou seja, quando algo do inconsciente se liga a algum significante que remete ao analista. Ainda segundo Freud (1912), a transferência se dá devido à imago paterna, semelhante à imago materna ou à imago fraterna, sendo a transferência a própria relação da cura, o tempo da experiência e da elaboração, na medida em que tem o Outro como figura central.

A transferência, com a possibilidade de interpretação, favorece o tratamento da criança abrindo espaço para ela construir o seu próprio sintoma, separado do sintoma do pai, da mãe ou do par parental.

Ainda de acordo com Freud (1912), os sintomas podem adquirir uma nova significação a partir da análise, pois o sintoma é um elemento com uma significação que se dirige ao Outro. Sendo assim, o sintoma pode se direcionar ao lugar ocupado pelo analista na cura, lugar este de receptor do sintoma onde, devido à transferência, ele pode operar sobre aquele.

Há, então, no tratamento com crianças, a possibilidade do advir de um sujeito, o que permite a interpretação do analista. Portanto, a análise da criança é, sim, possível, com o manejo da transferência do lado do pai, da mãe e do filho. Apostamos na possibilidade de a criança construir o seu sintoma e saber sobre ele num processo transferencial junto ao analista.

 


 

Bibliografia:
FREUD, S. (1909/2006) “Romances familiares”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908) Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol.IX, p. 219-222.
FREUD, S. (1912) “Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I)”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913), Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol XII, p. 137 – 158.
LACAN, J. (2964) “Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem”, In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 224 – 236.
LACAN, J. (1938) “Nota sobre a criança”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 369-370.
LACAN, J. (1938) “Os complexos familiares”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 29-90.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (I): A alienação” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 199-210.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (II): A afânise” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 211-223.

Marina S. Simões
Psicanalista. Graduado em Psicologia pela PUC MINAS. Graduated in Psychology from PUC MINAS. E-mail :marina.s.simoes@hotmail.com https://www.instagram.com/p/aEZJKAjG8o/?taken-by=fredbandeira



Puberdade, Adolescência E Estrutura

DAMASIA AMADEO DE FREDA

 

ÉDER OLIVEIRA: SÉRIE SEM TÍTULO 2005

 

A puberdade é um momento de grandes transformações, tanto físicas como psicológicas. Conhecemos as consequências psíquicas que essas transformações acarretam, a tal ponto que Freud não duvida em considerar esse momento uma verdadeira “metamorfose” da subjetividade.

A respeito das transformações físicas, Freud enfatiza o que acontece exclusivamente no que diz respeito aos órgãos sexuais, tanto internos como externos.

Vale destacar que tais transformações abrem possibilidades concretas que antes não existiam – a reprodução, por exemplo – e modificam a imagem de si de uma forma inédita até o momento. A isso se soma o fato de que a força pulsional, sublimada durante o período de latência, volta a catexizar as zonas erógenas sexualizadas desde a primeira infância e se concentra, sobretudo, nos órgãos sexuais que foram afetados pela completa transformação.

Freud disse muitas coisas importantes sobre esse período. Por exemplo, põe o acento no vai e vem da libido, do eu ao objeto e vice-versa, e adverte sobre os transtornos que poderiam suceder ao indivíduo se a libido se conformasse em ter o eu como único objeto. Um transtorno semelhante suporia a fixação libidinal em uma zona erógena em detrimento do órgão fálico.

Freud destaca que, nesse período, há um despertar das fantasias infantis, que haviam tido como finalidade dar uma resposta às interrogações típicas da infância – castração, sedução, cena primária. A tais fantasias acrescenta, agora, uma nova – mito do nascimento do herói –, que facilita o desprendimento da autoridade, processo fundamental para a passagem à idade adulta. Indica que tais fantasias são objeto da libido até que esta encontre e aceite um objeto novo fora do Outro parental. Adverte também sobre o fato de que as fantasias são precursoras do sintoma.

Indubitavelmente, esses indicadores freudianos são muito orientadores na clínica com púberes e adolescentes. Ainda que também saibamos que, na atualidade, tal clínica muitas vezes desconcerta o psicanalista.

O psicanalista se encontra regularmente com manifestações novas, as quais às vezes o desorientam. Por exemplo, a respeito da questão diagnóstica. Muitas vezes é pelo mesmo desconcerto que essa clínica lhe proporciona, que se precipita em querer elucidá-la por meio do diagnóstico.

Por exemplo, não faz muito tempo, quando uma paciente se apresentava ao analista com a prática da “automutilação”, em geral não se duvidava em diagnosticar uma psicose; logo, quando os sintomas próprios de tal estrutura não acompanhavam o quadro, se saia do atoleiro com o diagnóstico de psicose ordinária, sempre pronto para todo uso.

Hoje já não podemos continuar considerando a prática da automutilação um índice de psicose. O corte forma parte de uma prática amplamente estendida no campo da puberdade e da adolescência feminina, e, se os quadros são muito variados, as causas alegadas por aqueles que a praticam não deixam de ser obscuras.

O analista não desconhece que há aí um problema de quantidade, porque são as mesmas pacientes que o indicam. Elas falam de uma angústia, às vezes de uma tensão ou de uma energia que não podem dominar, e o corte vem funcionar como sangria, porque o sangue e a dor, produto da ferida, dão um destino ao excesso e um sentido ao que, na grande maioria dos casos, é um ponto de falta de significação. Que a falta de significação seja o correlato da falta de um significante, é indubitável. Que a falta de um significante concirna ao significante do Nome do Pai, isso não podemos assegurar e menos ainda generalizar. Agora, talvez essa prática generalizada nos indique que o significante do Nome do Pai, como articulador central da estrutura, começa a perder seus privilégios. Não seria desatinado pensar que essa prática é um indicador do declínio do Nome do Pai, ainda que não tanto na estrutura, mas na civilização, o qual repercute na noção de estrutura, relativizando-a.

Outra manifestação da atualidade é a passagem da heterossexualidade à homossexualidade e vice-versa, em púberes e adolescentes do gênero feminino, como meio de obtenção do gozo sexual. Sem dúvida, esse tipo de passagem mostra que o falo não é o órgão diretriz para a obtenção do gozo sexual. É possível que daí se deduza que o significante é fálico, e, portanto, a significação fálica esteja, no mínimo, modificada. Porém, que tudo isso desemboque em um diagnóstico de psicose, tal como se poderia depreender da leitura estruturalista de Lacan sobre as consequências na significação fálica no que diz respeito à presença ou ausência do Nome do Pai na estrutura, já não é tão certo. Quer dizer, hoje em dia não podemos deduzir de maneira unilateral de tais manifestações na sexualidade, própria dos púberes e dos adolescentes da época, um diagnóstico de psicose.

Outro exemplo, em vias de extinção, são as tribos urbanas, em que o que caracteriza o grupo são os traços semelhantes de seus integrantes. A diferença do que ocorre nos grupos sustentados graças a uma exceção, cujo protótipo é a figura do líder que viria representar e ser o porta-voz de uma ideia ou de uma ideologia, nas tribos urbanas não é a identificação ao traço do Outro o que possibilita a identificação entre os membros. Nesses bandos, a imagem de si e do outro se confundem até desintegrar-se em uma massa com um nome que os agrupa (emos, floggers). Observa-se claramente, nesse tipo de manifestação, como a ordem simbólica é substituída por uma ordem imaginária. Porque em tais agrupamentos não são os ideais nem as ideias que os comandam, portanto se compreende a inexistência daquele que cumpriria a exceção de transmiti-los. É simplesmente a vestimenta, os piercings, as tatuagens, o corte de cabelo, o penteado ou a maquiagem que permite identificar o grupo, e também são esses traços o que o mantém unido. Embora seja típico da puberdade e da adolescência o agrupar-se, e que em tal agrupamento esteja a tendência a igualar-se, existir um predomínio pronunciado do imaginário sobre o simbólico é o que o torna novidade. Que esse exemplo é um índice da modificação da ordem simbólica própria da nossa época, é evidente; que é índice do declínio do Nome do Pai, também. Porém, que daí se possa concluir que os púberes e adolescentes que integram ou integravam as tribos urbanas são psicóticos é um exagero, sem dúvida.

Por último, o fenômeno cada vez mais corrente do alistamento de púberes e adolescentes dispostos a matar e a se destruir em um único ato suicida-criminoso, em nome de um Um totalizador. O que podemos dizer desses casos que se estendem pelo mundo de um modo temível e sinistro? Que oferecer-se em sacrifício a um Outro incorpóreo é um delírio, não há nenhuma dúvida; que a pulsão assume, nesses casos, uma forma mortífera que não se vincula em nada com qualquer forma de sexualidade, quer dizer, que não há espaço para que se estabeleça um vínculo libidinal de objeto, parece evidente. Que a concentração da libido no eu seja a outra face da imolação ante um Deus obscuro, é muito possível. Porém, que esses jovens sejam psicóticos, no sentido lato do termo, é algo que não podemos assegurar, porque são muito raros, para não dizer inexistentes, os exemplos nos quais uma divisão subjetiva de qualquer índole pudesse vir a se colocar em questão ante tão radical eleição, para então conduzi-los a um psicanalista.

Esse último é um bom exemplo para o psicanalista atual; é um bom exemplo para lembrar-lhe que sua ação deve formar parte de uma política na qual um de seus fins seja interpretar o melhor possível a subjetividade da época, para poder incidir nela. Desse modo, o psicanalista poderá estar protegido de não errar além da conta em seu ato e, assim, poder integrar sua ação em uma causa que, embora se dirima no caso a caso, também pode apontar mais além do singular. Porque uma interpretação que abarque o conjunto permite elucidar a prática individual do mesmo modo que a prática individual contribui para esclarecer o conjunto. E é necessário, mais do que nunca, para o psicanalista, estar à altura da subjetividade desta época, difícil de interpretar.

Para finalizar, entendemos que a ideia freudiana da puberdade e da adolescência não dá elementos suficientes para se orientar na clínica atual. Ao contrário, consideramos que o último ensino de Lacan pôde contribuir para uma melhor leitura da subjetividade atual e que os púberes e os adolescentes são também a subjetividade da época. Sobretudo, vemos que se trata de uma subjetividade que já não parece responder aos parâmetros estruturalistas e deterministas com os quais nos regíamos, e, nesse sentido, vemos borrar-se as estruturas clínicas. Ao contrário, a noção de estrutura borromeana, cujos registros RSI se regem pela orientação e pela ordem, como único índice do predomínio de um sobre o outro como forma de fazer frente a um real, nos parece ser mais afim à clínica atual com púberes e adolescentes.

 

 

TRADUÇÃO: Kátia Márias
REVISÃO: Ernesto Anzalone

 


Damasia Amadeo De Freda
Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: damasiamadeo@fibertel.com.ar



Histeria: Do Matema Da Fantasia Ao Discurso

GERMANA PIMENTA BONFIOLI

 

As estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão – são decorrentes de três modos distintos de defesa contra a castração. Na neurose, o modo em questão é o recalque. Forma de negação da castração no Outro, que supõe o atravessamento do Édipo e a consequente inscrição do Nome do Pai. Como efeito, os sujeitos neuróticos, de posse da significação fálica, podem se inscrever de um dos lados na partilha do sexo. Dois tipos clínicos são característicos dessa estrutura: histeria e neurose obsessiva. A histeria tomada como a neurose de base e a neurose obsessiva como seu dialeto.

A histeria é, portanto, um modo particular do sujeito subjetivar a falta imposta pela castração, que poderá se manifestar nas maneiras sintomáticas variadas, mas preservando uma maneira típica de lidar com o desejo, estabelecer identificações e se relacionar com o Outro. Um modo do sujeito se defender dessa falta que coloca em marcha algumas estratégias fundamentais.

Destacaremos aqui dois momentos distintos ao longo da obra de Lacan em que ele irá trabalhar a histeria: nos anos 50, quando o matema da fantasia histérica aparece pela única vez, e em 1969/1970, no Seminário 17, em que a histeria é tomada como discurso.

No Seminário 8, ao se deter sobre os “efeitos sintomáticos do complexo de castração” (LACAN, 1960/1961, p. 242), analisando o caso Dora, Lacan enuncia, através do matema da fantasia histérica, uma estratégia fundamental de defesa histérica.

Objeto (a), sobre a sua castração imaginária, em sua relação com o Outro. Oferece, desse modo, sua própria castração ao Outro, como forma de garantir sua existência.

O sujeito histérico, mais que qualquer um, orienta-se pelo desejo do Outro. Interroga-se a todo tempo pelo desejo do Outro para a partir daí se colocar, como objeto, nesse lugar. De olho no que falta ao Outro, está sempre pronto a se posicionar, de modos diversos, como quem irá preencher essa falta. Essa versatilidade histérica pode ser facilmente observada na clínica, por exemplo, através dos variados estilos que uma histérica pode assumir diante de diferentes parcerias, fazendo-se a mulher sob medida para cada homem. Ao mesmo tempo, para manter esse outro desejante, é condição também se subtrair como objeto, não satisfazê-lo inteiramente, esquivando-se em tornar-se objeto de gozo. E aqui outro modo típico de funcionamento da mulher histérica aparece: ela segue em direção ao desejo do Outro, provoca-o e, na sequência, se esquiva dele como meio de resistir a ser tomada como objeto de gozo.

No matema da fantasia histérica, é como objeto a que a histérica se identifica, mas o que está por baixo da barra, aquilo que ela se esforça em ocultar, através dessa estratégia de oferecer-se como objeto de desejo do Outro, é sua própria castração. Do lado direito do matema, o que aparece como resultado dessa oferta é um Outro sem barra, o Outro não castrado. Ao apostar que pode completar o outro, fazendo-o passar de um Outro barrado para um Outro sem barra, o que está em jogo é a sua relação com a falta. A aposta é, em última instância, na sua própria existência, como toda. Se a barra não incide sobre o outro, não incide também sobre si mesma.

É a propósito de Dora, célebre caso de Freud (FREUD, 1905, p. 12-115), que Lacan irá nos esclarecer a respeito das regras desse jogo complicado. O pai de Dora, sabidamente impotente, é incapaz de copular com sua amante, a Sra. K. Mas isso não importa se é ela, seguindo o molde da fantasia histérica, quem irá sustentar a relação dos dois, fornecendo ao pai o signo fálico que lhe falta.

Pois tudo o que está em questão para Dora, como para toda histérica, é se fornecedora desse signo sob a forma imaginária. O devotamento da histérica, sua paixão por se identificar com todos os dramas sentimentais, de estar ali, de sustentar nos bastidores tudo que possa acontecer de apaixonante e que, no entanto, não é da sua conta, é aí que está a mola, o recurso do que vegeta e prolifera todo o seu comportamento (LACAN, 1960/1961, p. 243).

Tudo vai bem até o ponto em que estão todos insatisfeitos em seus desejos. Pois faz parte dos artifícios desse jogo que, para seguir desejando, o Outro seja mantido insatisfeito. Mesmo ao preço da insatisfação do seu próprio desejo, o que vai se tornar a marca registrada de uma histeria. Mais importante do que a satisfação do seu desejo é que o Outro mantenha o enigma como garantia da sua existência.

É ao seu pai que Dora demanda amor. Ao pai do terceiro tempo do Édipo, descrito por Lacan (LACAN, 1957/1958, p. 200), como aquele que estaria em condição de fornecer-lhe simbolicamente o que lhe falta. Nos dois tempos antecedentes, o sujeito, primeiramente, se identifica imaginariamente ao objeto de desejo da mãe. A seguir, a mãe de Dora, que mal aparece na história, é privada de seu falo imaginário e permanecerá aí ausente da situação. A lei paterna incide, a interdição é consumada, e assim estamos diante de um sujeito neurótico. Os dois primeiros tempos lógicos são atravessados e chega-se então à terceira etapa do Édipo, que guarda uma grande importância, pois “é dela que depende a saída do Complexo de Édipo” (LACAN, 1957/1958, p. 200).

O terceiro tempo do Édipo, destacado por Lacan, é aquele em que o pai tem que dar provas de possuir o objeto fálico, podendo dá-lo ou recusá-lo. No caso de Dora ele não o dá, porque não o tem, isso a mantém presa no complexo de Édipo, incapaz de atravessá-lo. Seu pai fracassa em fornecer-lhe o dom viril. Como boa histérica, Dora sofre de amor ao pai e segue ligada a ele. O tributo de amor ao pai, facilmente identificável em Dora, impede a histérica de atravessar o Édipo, deduzindo que o pai pode lhe dar o que lhe falta mantendo o seu ponto de castração intacto.

A Sra. K é, na medida em que é o desejo do pai, o objeto de desejo de Dora. Mas seu pai é impotente, e ”seu desejo pela Sra. K é um desejo barrado” (LACAN, 1957/1958, P380). Assim tem-se um desejo que não se satisfaz nem para Dora nem para seu pai. E isso é o que mantém as coisas equilibradas. Mas, para a manutenção desse equilíbrio, é necessário que Dora encontre um ponto de identificação que lhe permita sustentar seu pai em um lugar potente. Nesse caso, o Sr. K é que funciona como o outro imaginário portador das insígnias fálicas necessárias à identificação de Dora. É por intermédio dele, “é na medida que ela é o Sr. K, é no ponto imaginário constituído pela personalidade do Sr. K que Dora está ligada ao personagem da Sra. K” (LACAN, 1956-1957, p. 141).

Pelo seu apego homossexual à Sra. K, Dora irá se esforçar em dar suporte à sua relação com seu pai, deixando-se tomar como cúmplice. Nota-se a presença das indicações de Lacan (LACAN, 1956-1957) a respeito da histeria: a histérica ama por procuração, seu objeto é homossexual e ela o aborda por identificação a alguém do outro sexo.

Em Intervenção sobre a transferência (LACAN, 1951, p. 214-225), Lacan esconde do caso Dora três desenvolvimentos da verdade mediados por três inversões dialéticas. No primeiro desenvolvimento trazido por Dora a Freud, seu pai e a Sra. K são amantes há anos, e ela é oferecida como moeda de troca ao Sr. K. Numa primeira inversão dialética, Freud questiona: ”Qual é a sua própria parte na desordem de que você se queixa?”. Surge um novo desenvolvimento da verdade: a relação dos amantes perdura graças à sua cumplicidade. Na segunda inversão dialética, Freud observa que o ciúme de Dora pelo pai mascara seu interesse pela Sra. K. No terceiro desenvolvimento tem-se, assim, o fascínio de Dora pela Sra. K, que culminaria na última inversão dialética, em que a Sra. K é aquela quem guardaria a chave do mistério sobre a feminilidade. É ela quem pode responder à Dora a questão fundamental de toda histérica: o que é ser uma mulher?

Retomando o matema da fantasia na histeria, temos aqui um outro modo de lê-lo: do lado esquerdo, teríamos a identificação viril de Dora ao Sr. K, que recobre sua castração para, através dessa posição, poder fazer a pergunta à Sra. K, que encarna o outro sem barra e poderia, desse modo, responder a pergunta sobre A mulher.

Essa interrogação primordial, ”O que é ser uma mulher?”, pode ser tomada como algo que define a histeria. É isso que interessa saber à histérica. A despeito de toda a querelância em que um sujeito histérico pode incidir, de toda a sorte de queixumes típicos da insatisfação histérica que, para preservar seu desejo, mantém a falta recusando-se à satisfação, a queixa fundamental na histeria refere-se à falta de identidade, falta de um significante que possa definir o seu ser. Essa é, então, a questão crucial endereçada ao Outro, no caso de Dora, representado pela Sra. K. Esse endereçamento ao Outro de uma questão sobre o feminino é descrito também através do discurso histérico.

No seminário 17, Lacan nos oferece uma nova leitura da histeria, calcada na lógica discursiva. Institui o discurso histérico como um dos quatro modos de se estabelecer laço social, arranjando os elementos significantes, o sujeito e o gozo da seguinte forma:

 

 

Na parte superior do discurso da histeria, tem-se $® S1. A posição dominante desse discurso é ocupada pelo sujeito barrado, muito bem representado na histeria, sujeito dividido por excelência, que evidencia sua divisão através de seus enigmas. Quem ocupa o lugar do outro é um S1, somente a um mestre sua pergunta poderia ser confiada. Na parte inferior do matema, sob o sujeito barrado, o que aparece em posição de verdade é o objeto a, causa de desejo, como aquilo que o sujeito desconhece ao se endereçar ao mestre interrogando-o em busca de um S2. O saber instalado no lugar da produção deve responder a questão sobre o que é uma mulher para, de posse dele, poder sustentar a relação sexual. Em última instância, esse é o saber que a histérica espera ver produzido, e, para Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 98), é aí que reside o mérito desse discurso, por manter de pé em sua estrutura a pergunta sobre a relação sexual. Porém, o S2 que o mestre produz é, por estrutura, insuficiente para lhe dizer sobre o seu gozo de mulher, pois não há o significante que possa definir o que é uma mulher.

Ao eleger alguém para ocupar esse lugar S1 e endereçar-lhe sua questão, pressupondo que este pode produzir um saber a seu respeito, ela se aliena ao mestre deixando-se definir pelos sentidos vindos dele. A histérica interessa-se tanto por um mestre, esforça-se tanto por sustentá-lo que, como nos diz Lacan, é preciso indagar se não foi ela quem o inventou. Porém, é preciso que esse mestre tenha seus limites. É o que se vê na ambiguidade histérica, que está sempre colocando o senhor em cheque e destituindo-o.

Ela quer um mestre. Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa (LACAN, 1969-1970, pg. 136).

Se por um lado o sujeito histérico se endereça a um mestre, supondo-lhe uma potência em relação ao saber, por outro ele aliena-se do mestre, resistindo a ser dividido pelo S1, ao recusar que seu corpo obedeça a ele. É pela via do corpo que escapa a alienação ao mestre: isso que Freud chamava de complacência somática, Lacan nomeou por recusa do corpo na histeria.

No caso Dora, a impotência de seu pai perpassa toda a trama e ainda assim é no lugar do senhor que ele vai estar para ela, levando Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 100) a reafirmar a constituição do pai por avaliação simbólica. Por mais moribundo que possa estar, há uma ”potência de criação” implicada na palavra pai que faz com que ele desempenhe ”esse papel-mestre no discurso da histérica”. O pai colocado no lugar de S1, puro significante, é dotado de uma potência criadora sobre o real do seu gozo, sob a forma de um saber. Assim, na fantasia de que o pai é potente para fornecer-lhe o significante da relação sexual, ela o salva. Salvar o pai comporta, conforme Alvarenga (ALVARENGA, p. 19), o paradoxo de conferir a ele uma potência para, a seguir, jogá-lo na impotência, pois o saber que produz será sempre insuficiente para responder-lhe sobre o papel da mulher na relação sexual, deixando o próprio sujeito histérico na impotência. Mas isso não faz com que Dora desista de se dirigir ao mestre, pelo contrário: condena-a a insistir na questão. Fato que se observa muitas vezes na clínica sob a forma de uma demanda infinita ao pai ou a qualquer outro que venha a ocupar esse lugar de S1.

Uma saída seria através do que Lacan chamou, ainda no Seminário XVII, de ”terceiro homem”. Que a histérica possa se endereçar a um terceiro homem, que assim é chamado por ter o órgão, e que possa permitir dividir-se por ele, deixando-se tomar por objeto de seu gozo. É aquele que conjuga o ideal do pai universal abstrato com o desejo particular de um homem concreto (ALVARENGA, p. 20). O Sr. K convém a Dora como terceiro homem, por estar claro desde muito cedo, quando ele lhe assedia, ser possuidor do órgão. Mas Dora não se interessa por fazer do seu atributo fálico meio de gozo, por ”fazer dele sua felicidade” (LACAN, 1969-1970, p. 100). Quando o Sr. K diz à Dora: ”Minha mulher não é nada pra mim. (…) nesse momento o gozo do Outro se oferece ela, e ela não o quer, porque o que quer é o saber como meio de gozo…” (LACAN, 1969-1970, pg. 101). Assim, pode-se dizer que o Sr. K não cumpre sua função de terceiro homem para Dora, uma vez que ela não se deixa interpelar por ele, não consente como desejo dele.

Seguindo o caso Dora, através do matema da fantasia e do discurso histérico, em busca das estratégias de defesa na histeria, vê-se que sua pergunta fundamental, ”O que é uma mulher?”, é sua paradoxal defesa. Insistir na questão, apostando que outro tem a reposta, é seguir acreditando que A mulher existe. Ao escamotear à castração, através do seu enigma, ela não bascula para a posição feminina, que supõe que o sujeito possa se orientar pela lógica do não-todo, consentindo com algo da castração.

 

 


 

Bilbliografia
ALVARENGA, E. “Variedades do sintoma, unicidade do tipo clínico”, Correio. EBP, n. 58, p. 13-22.
FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. VII, p. 12-115.
LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1951. pp. 214-225.
LACAN, J. (1956-57). O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

Germana Pimenta Bonfioli.
Analista praticante. Psicóloga da rede de saúde mental de Mariana/MG. Email : germanabonfioli@hotmail.com



Amores Líquidos, Amores Nômades: Sobre As Formais Atuais Da Depreciação Da Vida Amorosa

ANA LYDIA SANTIAGO E JÉSUS SANTIAGO

 

FOTO : GIULIA PUNTELFOTO : GIULIA PUNTEL

O interesse dessa investigação clínica é buscar tratar a especificidade das formas atuais da depreciação da vida amorosa nas sociedades em que prevalece o fenômeno das vias democráticas do individualismo de massa[1]. É essencial mostrar que tais formas de depreciação não se esclarecem sem o devido tratamento do chamado individualismo de massa que, a nosso ver, é parte inerente dos diversos estilos de vida amorosa dos jovens, estilos marcados pela fluidez, inconstância e errância. Para captar o que vai de um lugar para outro e que se movimenta à vontade entre os jovens, utiliza-se, com frequência, a propriedade da fluidez pertencente aos estados da matéria líquida e gasosa. Tornou-se, assim, usual empregar a “leveza” ou a “ausência de peso” como atributo para fornecer os contornos do caráter lábil, frágil e inconstante dos atuais trajetos e rotas que definem a vida amorosa entre os jovens[2].

 

Amores líquidos

 

No entanto, não nos parece suficiente dizer – como quer a sociologia contemporânea – que o poder de derretimento da modernidade com relação aos valores e referências identificatórias que regiam as gramáticas afetivas tradicionais, seja fruto de uma mera quebra na verticalidade das relações sociais. Ao contrário de tais formulações, importa ressaltar em quê esses novos estilos encarnam uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera dos diversos modos de gozo. Se o que era a tradição e o padrão dos modelos do relacionamento amoroso se desfaz, irrompe, ao mesmo tempo, um variado leque de soluções que se traduzem pela interferência do individualismo de massa sobre o discurso e as práticas afetivas e sexuais dos homens. O psicanalista deve estar atento ao caráter inovador desta multiplicidade de soluções, que se expressa pelo imperativo de que cada sujeito deve identificar-se com sua própria diferença. Em outras palavras, o sujeito se vê obrigado, nos dias de hoje, a sobrepor-se a inexistência do Outro, com o recurso de algum significante-mestre (S1) que se apresenta como individualizado e pulverizado.

 

INDIVIDUALISMO DE MASSA –––––> S1s individualizados e pulverizados

 

Ao propor que a crise atual de nossa civilização se traduz pela inexistência do Outro, não se quer dizer que se trata apenas de uma crise que atinge o domínio do saber. Na época das mutações provocadas pelo discurso da ciência, a transformação do Outro, de seus ideais e do Nome-do-Pai em ficção, se estendem para o âmbito de uma crise que extrapola a ordem dos sentidos e dos valores de uma dada civilização. Ao contrário disto, ambiciona-se com a tese da inexistência do Outro, evidenciar que tal crise concerne o real inerente aos modos de gozo do sujeito, imerso no mundo em que o Nome-do-Pai e seus ideais se transmutam em semblantes. É por isso que, sob o fundo de uma angústia, o sujeito moderno introduz um questionamento que se repercute nas mais diversas esferas da vida, sob a forma do que é o real. É nesse sentido que não se deve privilegiar apenas a face negativa dos efeitos da inexistência do Outro. A conexão desses dois termos conflitantes e contraditórios, entre si – o individualismo e a massa –, constitui uma maneira de interpretar a face positiva, ou seja, as vias de respostas possíveis ao real do gozo, por meio de uma identificação com algum significante solto e isolado. É visível que o emprego desse sintagma paradoxal surge para aprofundar, ainda mais, o diagnóstico que compreende o mal-viver atual entre os sexos como uma resultante da inexistência do Outro[3].

A homossexualidade é exemplar do que vem a ser essa injunção do enxame de significantes-mestre individualizados, sobre as relações amorosas e sexuais em geral. Não é sem razão o fato de que a investigação sociológica universitária sobre os gêneros se mostre dominada, em escala mundial, pelos chamados “gay and lesbian studie” ou o “queer studies”[4]. O modo como a homossexualidade se configura, nos anos sessenta, por meio do movimento gay é uma prova de que a oferta de um significante-novo, capaz de captar o que transita no mercado do gozo, é suficiente para efetuar-se uma identificação que se designa como comunitária[5].

Com a emergência da nova norma homossexual gay, com o que se designa por essa identificação comunitária, fica para trás uma visão homossexualidade fortemente impregnada pela noção de inversão, cuja prática se exerce, de forma clandestina e, com o uso de uma fantasia particular[6]. A montagem discursiva que se instaura com a adoção do significante gay assume consequências para as práticas sexuais em geral, inclusive para os jovens, pois, o amor homossexual afirma-se como o ícone de um estilo de vida hedonista moderno, orientado pelo binômio prazer e liberdade. O sintoma social da homossexualidade gay torna-se, assim, modelo da representação máxima do casal igualitário em que não se exige a regra da coabitação, e não apenas, por não estar condicionada pela exigência da procriação, mas, também por estar desembaraçada das contaminações sentimentais das acepções românticas do amor. Em suma, fica-se com a impressão que se do lado da rotina dos héteros, tem-se o tédio, a tristeza; do lado do gay, a festa, o carnaval e as coisas divertidas.

Não há dúvidas de que a propagação desta nova norma homossexual, na vida social, contribuiu para tornar pouco credível a inclusão da sexualidade em uma ordem natural fixa e pré-estabelecida. É cada vez mais fora de moda, não admitir a homossexualidade como um estilo de vida similar a outros, como uma escolha de objeto que, apesar de ser minoritária, é tão defensável quanto outras. Como se pode constatar, não é à-toa, o fato de que o movimento dos homossexuais que, realizou e adotou a construção do gay, pôde desalojar do saber psiquiátrico, qualquer alusão diagnóstica normativa baseada na categoria de perversão. E o psicanalista, que posição ele adota com relação a essa repercussão subversiva, até então inédita, das práticas homossexuais com relação às normas que fixam e regulam os laços afetivos já existentes.

 

Amores nômades

 

É possível ainda, na abordagem das configurações atuais da depreciação da vida amorosa, tomar um outra direção, para apreender o que vem a ser uma tal inovação nos estilos de vida e nos modos de relação afetiva das novas gerações. Trata-se do que Gilles Deleuze e Félix Guattari designam com a marca contemporânea do discurso capitalista, a saber, o nomadismo, que como se sabe é concebido como uma máquina de guerra[7]. Refere-se ao caráter não-sedentário das relações amorosas como uma máquina de guerra porque estas agenciam do exterior e independente do moralismo centralista e falocêntrico do Estado, outras intensidades, fluxos territórios e enunciações.

Sob esse ponto de vista, o nomadismo, segundo Deleuze,

“(…) é uma forma de estar no mundo que subverte as expectativas sociais e as estruturas hegemônicas identificadas com o Estado. Esta “máquina de guerra” nômade apresenta três aspectos: um aspecto espacial-geográfico, um aspecto organizacional e um aspecto afetivo. A caracterização do nomadismo como um modo de ser específico está ligada à territorialidade, ou seja, à espacialização da experiência (social e subjetiva) em termos de deslocamento e não de fixação, como é o caso das existências sedentárias.” [8]

Em vez de fixar-se em um ponto do espaço, transformar-se em um lugar, como faz o sedentário –, o nômade não tem um território fixo e delimitado, pois, segue trajetos contingentes e vai, incessantemente, de um ponto a outro[9]. Para os filósofos, o deslocamento e a não fixação da existência sedentária nas relações afetivas exibe algo voltado para o mundo exterior e se prolifera na forma de descargas rápidas de emoções. Se os afetos são tanto projéteis, como armas, é porque, não apenas se diferenciam, mas desterritorializam a pretensa solidez dos laços e sentimentos amorosos do passado. A multiplicidade da máquina de guerra nômade, presente nos afetos, não se exprime pela simples via da pluralidade, mas, sim, pela capacidade de “desterritorializar” os anseios e as estruturas das relações instituídas pelo Estado e suas diversas formas de agenciamento das intensidades e dos fluxos da vida. A pluralidade, segundo eles, não é a multiplicidade.

O nomadismo deleuzeano suscita inúmeras e variadas reflexões em diversos âmbitos do pensamento contemporâneo. É possível tomar contato com o diagnóstico que ao buscar interpretar a componente nômade do discurso amoroso atual, privilegia o seu viés de impasse, fazendo sobressair o pessimismo. Sob essa ótica, o nomadismo revela a falência do referencial histórico para a compreensão dos fenômenos, a falência das categorias de emocional e racional para sua análise e, mesmo, a insuficiência da referência ao amor ao pai, para dar conta das transformações que se processam na vida íntima das novas gerações[10].

É visível a dificuldade destas análises para captarem os amores nômades, visto que se baseiam em uma perspectiva calcada no fio contínuo e linear da história do que tem sido os nomes infinitos do amor. Acrescenta-se, ainda, que a ideia de progresso e de razão mostram todo o seu limite quando há algo do passado, que retorna e se instala com certo vigor. Em relação à análise desse fenômeno, tudo leva a crer que as categorias racionais sobre as quais se edificam tais interpretações são instáveis e imprecisas, pois, a emergência do nomadismo, na esfera do amor, mostra que este deixou de constituir-se como exceção, para tornar-se uma realização efetiva e independente de suas expressões tradicionais[11].

 

O amor e a “não-relação”

 

Importa, contudo, abordar o nomadismo na vida amorosa tendo como guia, para o enfoque dos fenômenos de dessimetria no amor, a categoria lacaniana da “não-relação”. A maneira como a “não-relação” entre os sexos se exprime no contexto dos amores nômades assume consequências, até então, inéditas, para o psicanalista. Chama a atenção, para além da desterritorialização, as expressões não-sedentárias do amor que agudizam o fato clínico de que se a mulher equivale a um sintoma, para o homem, este último, por sua vez, é para uma mulher, fator de devastação. Ao contrário do que muitos podem pensar, para dar conta das vias atuais das relações sintomáticas entre os sexos, não cabe ao psicanalista simplesmente abandonar as categorias do inconsciente, do amor ao pai, do Édipo e outras, com o argumento de que se tornaram caducas[12]. Na verdade, elas estão mais vivas do que nunca, desde que, evidentemente, saibamos refundá-las e retratá-las com o que a clínica nos fornece cotidianamente como a marca do real próprio do sintoma que dissolve, sem cessar, o seu envoltório formal. Já conhecemos o que o último ensino de Lacan fez com o amor ao pai: mais do que desfazer-se dele, buscou-se mostrar em quê ele se mostra insuficiente e em quê é preciso ir além. É o que se traduz pelo aforismo: prescindir-se do pai, com a condição de saber servir-se dele.

É, nesse sentido, que cabe introduzir a questão: Como não captar, no nomadismo da vida amorosa, algo que se apresenta para além das ideias centradas na ruptura radical com a verticalidade das relações sociais? Para o psicanalista importa ressaltar, no nomadismo, o fato de que ele encarna uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera do amor. Como se exprime J.-A. Miller, haveriam, assim, labirintos do amor[13], o que torna ainda mais difícil a tarefa de nomeá-los. À diferença do discurso histérico, as novas formas de discurso amoroso – dentre as quais se inclui a homossexualidade masculina ––, não são baseadas e nem articuladas pelo amor ao pai.

O que se evidencia, no discurso atual, a propósito das relações amorosas entre os jovens, é que eles não amam. Ouve-se dizer: “Os jovens não conferem duração a seus namoros”; “O jovens não constroem frases com sujeito e predicado”; “Não há outro adjetivo para qualificar a vida de alguns adolescentes, que o da promiscuidade.” Essa atmosfera de mal-estar impregnada nos discursos dos pais e dos adultos em geral a respeito da forma de amar na atualidade, destaca o que vem sendo nomeado, nas análises da pós-modernidade, como o “pânico moral”. Ora, não cabe ao analista ter essa resposta diante do que se apresenta como um novo modo de vida. Até mesmo os pais que durante o tempo de suas juventudes introduziram uma verdadeira revolução em relação à geração precedente, reagem com um certo espanto. A indiferença, o individualismo, a falta de vergonha e pudor, e a perda da condição crítica dos sujeitos, apenas escamoteiam a indignação deles, diante da inexistência de um sentido referencial qualquer às identificações parentais. Isso vai de encontro com a constatação de que, nas últimas décadas, os homens se parecem mais com seu tempo que com seus pais[14].

“Na boate, as mulheres saem pra ficar com os caras e os caras saem pra pegar mulher. Neguinho já entra na pegação, entendeu? É a guerra.”, testemunha um jovem informante nos relatos de pesquisa antropológica, sobre o espaço e a subjetividade nas culturas nômades contemporâneas. Pode-se extrair desta pesquisa, algumas outras passagens, que, a nosso ver, caracterizam algumas identificações e posições de gozo, que não deixam de gerar uma variedade distinta de mal-estar e sintomas.

 

A derrisão do amor

 

Mais importante do que o caráter de transitoriedade e de intensidade volátil das relações dos jovens, que aparecem pelo emprego do “ficar”, parece-nos sugestivo ressaltar o lado derrisório e irônico, que se exprime no contexto mais amplo das configurações nômades. Muitas vezes, a diversão da night torna-se um “zoar”, que também implica um movimento de gravitação. Assim, “zoar” é “estar solto”, perder a censura”. “É deixar rolar”[15]. Zoar é você chegar com um monte de amigo seu e um ficar pegando mais mulher que o outro. Isso pode, inclusive, transformar-se numa competição, como o testemunha um outro jovem da pesquisa:

“Mulher que nego pega é o que mais mexe com o ego da pessoa. Se nego pega uma mulher gata…, (…). Eu tenho um amigo que a gente saía para pegar mulher feia também (…) Os outros é que escolhiam a mulher para o cara: aí, tem que pegar aquela. E tinha que passar de mão dada.[risos] (…) Chega num lugar que está horrível, o que agente pode fazer para animar a parada, entendeu? Pô, vamos pegar um monte de mulher feia, vamos fazer estas mulheres felizes? E você vê que as mulheres ficam amarradonas. [risos] E o ambiente fica legal.[16]

Esse depoimento mostra que os jovens procuram “ficar de boa”, neste turbilhão de gozo, que os faz passar rapidamente de um objeto para outro. O “não saber” em relação ao outro sexo, característico do início da puberdade, perdura-se. Poder-se-ia pensar que o “ficar” se apresenta como uma solução para este “não saber” angustiante: não saber como se aproximar do outro sexo, como aborda-lo, o que dizer, o que perguntar, o que conversar. Enfim: “O que fazer com o outro sexo?” Entretanto, o que ocorre é uma supressão da palavra, em detrimento de uma prática de gozo. Não é raro a conversa reduzir-se à uma sondagem sobre a possibilidade de alguém ficar com alguém, ser bem sucedida. E essa suspensão da palavra, que cumpre a função de adiar o encontro amoroso, não deixa de produzir uma série de sintomas, dentre os quais se destaca a inibição total da vida amorosa.

Portanto, a queda na crença de um sentido para as relações entre os sexos, que se insere no terreno movediço da inexistência do Outro, apenas favorece os efeitos do individualismo de massa no amor. É o que faz com que em nome do individual, cada um se torne o empresário de seu próprio desejo.

Pode-se dizer que este aspecto da auto-gestão do gozo na esfera da vida amorosa expressa os dois princípios básicos sobre os quais repousa o individualismo: (1) a liberdade individual, ou seja, o direito de se preocupar em primeiro lugar com a condição dos indivíduos da sociedade e, não, com a condição da própria sociedade; e (2) a autonomia moral, segundo a qual cada individuo deve fazer uma reflexão individual, sem que suas opiniões sejam ditadas por um grupo social qualquer. (Comunitarismo)

Diante dessa anulação do Outro social – ou dos referenciais simbólicos que organizam as relações –, é evidente que a instalação desse mercado atual das formas de gozo e do amor não acontece sem criar fontes para a redistribuição e o surgimento de novos sintomas e novas angustias. Esta inflexão da multiplicidade das soluções amorosas, acarretam como consequência a adoção do imperativo de ter que se identificar com sua própria diferença, de tentar se virar, custe o que custar, com um significante-mestre individualizado. Se os amores nômades interrogam a pulverização dos significantes-mestres, antes disponíveis e propostos pelo campo do Outro, isto não evita o fato de que ao fazer-se mestre de seu gozo; por outro lado, o sujeito “se faz objeto” para o outro, se faz de escravo para o seu parceiro. Este “fazer-se objeto” para outro, no caso do sujeito feminino, pode assumir proporções do que nomeamos como a devastação feminina.

 

[1] MILLER, Jacques-Alain. Psicanálise e política. In: Opção lacaniana, nº 34, outubro 2002.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. P. 8-9. O autor escreve: “Associamos ‘leveza’ ou ‘ausência de peso’, à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leve viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. Essas são razões para considerar ‘fluidez’ e ‘liquidez’ como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade.”
[3]MILLER, Jacques-Alain. El otro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
[4]BERSANI, Leo. Homos. Repenser l’identité. Paris: Editions Odile Jacob,1998.
[5]MILLER, Jacques-Alain. Des gays en analyse? Intervention conclusive au Colloque fanco-italien de Nice. In: La Cause freudienne, nº 55, p. 83.
[6]LAURENT, Eric. Normes nouvelles de l’homosexualité. In: La Cause freudienne, , nº 37.
[7] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 11-110.
[8] Ibid. p. 50-62.
[9]Em entrevista realizada para a edição italiana do “Mil platôs”, Deleuze revela que poderia ter escolhido como subtítulo do livro: “História universal da contingência”.
[10] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. In: ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 11-16.
[11] Ibid.
[12] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. Op. Cit., p. 11-16.
[13] MILLER, Jacques-Alain. Labirintos do amor. In: Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº56, agosto 2006, p. 14-19.
[14] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro. Contraponto, 1997.
[15] ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. P.125-128
[16] Ibid. p. 129

 


Ana Lydia Santiago E Jésus Santiago
Ana Lydia Santiago Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: analydia.ebp@gmail.com – Jésus Santiago Psicanalista, Analista da Escola em exercício (AE) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail:jesussan.bhe@terra.com.br