O Manejo Da Transferência Diante Da Demanda Dos Pais

MARINA S. SIMÕES

FOTO: FREDERICO BANDEIRA

 

Analisar uma criança requer ir além de acolher e escutar o sujeito. O trabalho não depende apenas do desejo desse sujeito em trabalhar e do desejo do analista, mas requer a presença dos pais. São eles que procuram o analista, demandando a análise para a criança.

Sabemos que, para que uma análise seja possível, é imprescindível que ocorra transferência. A análise de uma criança requer, também, a transferência com os pais. Nós, enquanto analistas, temos o desafio de criar um laço transferencial com os pais, senão a criança, com o seu sintoma, não chega ao tratamento.

Geralmente são os pais que procuram o analista, demandando a análise da criança por diversos motivos que causam mal-estar: algo da criança que os incomoda, demanda da escola ou, ainda, por indicação de algum médico, parente ou amigo. A primeira demanda é dos pais. Acolhemos essa demanda tomando o cuidado de escutar a singularidade que uma criança desperta no adulto que nos procura.

Cabe ao analista investigar o que levou os pais a procurá-lo e qual é a posição deles diante do sintoma da criança. O analista dá lugar ao saber dos pais, acolhendo o que eles falam, atento à diferenciação entre o sintoma do par parental, o sintoma da mãe, do pai e da criança. Abrem-se aí questões fundamentais: qual é o lugar que a criança ocupa na família, assim como qual é o sintoma que ela ocupa para esse Outro?

Podemos obter algumas dessas respostas por meio das entrevistas com os pais, identificando onde se situa seu sintoma em relação à criança. A presença do desejo dos pais molda o sujeito, e a sua ausência deixa uma marca, que reaparecerá nas formações do inconsciente, incluindo o seu sintoma, que responde a uma falha na estrutura familiar.

A impossibilidade de estabelecer laços transferenciais ocorre quando os pais “não quererem saber” sobre o sintoma do filho. Nesses casos, não há possibilidade de transferência entre pais e analista. Esses pais não questionam, mas demandam respostas, querem que o analista “cure” o seu filho, fazendo com que o sintoma que incomoda desapareça.

Nos casos em que a criança é encaminhada por um terceiro, que pode ser a escola, um médico, um amigo, os pais não questionam, não demandam e, algumas vezes, não estão incomodados com o “problema” que o filho apresenta. Apenas cumprem o papel que lhes foi solicitado. Apostamos, então, na transferência com a criança, para que o tratamento seja possível.

Já nos casos em que os pais querem saber, a transferência não é apenas possível, mas necessária para o trabalho com a criança. Nesses casos, apostamos no inconsciente do pai e/ou da mãe para fazer o laço transferencial. Escutamos cada um do par parental, com o seu sintoma e o seu desejo. Aqui, cabe interpretar, diferente do primeiro caso, em que a transferência não é possível. De acordo com Freud, podemos interpretar apenas quando a transferência já está estabelecida, pois a emergência da transferência significa que há processo inconsciente.

Na relação paciente-analista, o paciente realiza o trabalho. É ele quem produz, entregando o material ao analista, a este cabendo recebê-lo, escutá-lo e, quando possível, interpretá-lo, intervindo enquanto Outro.

De acordo com Lacan (1964), a interpretação não está aberta a todo e qualquer sentido e tampouco toda interpretação é possível. Ela funciona quando toca o inconsciente, o que é complexo e exige cautela do analista. A interpretação não visa tanto ao sentido; visa mais a reduzir os significantes ao “não-senso”.

Os pais chegam ao psicanalista supondo que este saiba algo do sintoma do seu filho e pedem uma resposta. O analista ocupa o lugar de sujeito suposto saber, que é um mecanismo da transferência fundamental para a análise. O sujeito precisa se sentir amado e supor saber ao analista no primeiro momento da transferência. Lacan acreditava que o sujeito suposto saber é o pivô da transferência, pois a análise se estabelece com essa suposição de que o Outro, analista, sabe – posição esta que o paciente consente, mas com a qual o analista não se identifica. Lacan (1964) pontua que

 

Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber (…) há transferência. (…) Ora, é bem certo, do conhecimento de todos, que nenhum psicanalista pode pretender representar, ainda que da maneira mais reduzida, um saber absoluto (LACAN, 1964, p. 226).

 

Para Lacan (1938), o sintoma da criança está relacionado com a família, com esse Outro primordial, pois responde ao sintoma da estrutura familiar, representando a verdade do par parental. O sintoma da criança pode representar o que há de sintomático na mãe, no pai ou no casal. Lacan pontua que o destino psicológico da criança depende, primeiro, da relação que as imagens parentais têm entre si. Segundo Lacan, a criança é o sintoma do par parental. E é por esse viés que apostamos na possibilidade da análise com a criança.

 

(…) o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. O sintoma – esse é o dado fundamental da experiência analítica – se define, nesse contexto, como representante da verdade do casal familiar. Esse é o caso mais complexo, mas também o mais acessível a nossas intervenções (LACAN, 1938, p. 369).

 

Os pais com que trabalhamos são os pais reais, que queixam e demandam, e não os pais da fantasia da criança, como trabalhado por Freud em Romances familiares, aqueles que constituem uma autoridade única para a criança, que carrega o conhecimento sobre tudo. Mais tarde, a criança vai compará-los a outros pais e depois rivalizar com eles. Esses, nós tratamos na análise com a criança. Já os pais com que estamos trabalhando aqui ocupam uma função muito importante no tratamento das crianças, e nós contamos com eles para o trabalho ocorrer. Porém, ressaltamos o lugar da criança enquanto analisante, afinal, a análise é o espaço para a criança, enquanto sujeito, trabalhar as suas questões, e não o lugar de análise dos pais.

Algumas vezes os pais precisam do seu espaço para falar e colocar suas questões. Esse espaço, no entanto, deve ser encontrado fora da análise do filho. Perguntamos quando e como encaminhar um pai e/ou uma mãe a um analista, para que tenham um lugar onde eles possam tratar do seu sintoma.

O analista, quando faz uma intervenção com os pais, busca orientar o nó do amor, do desejo e do gozo de ambos. Sabemos a importância de ouvir cada um dos pais para o tratamento da criança, mas questionamos quando devemos chamá-los para conversar.

Convocamos os pais para conversar quando eles nos solicitam, quando acreditamos ser necessário investigar mais sobre a criança, quando percebemos algo errado com a criança que ela não dá conta de falar, quando sentimos a necessidade de dar um retorno e quando precisamos chamar o pai para a sua função, entre outras inúmeras situações. Eles são fonte de saber sobre a criança, mas não sabem de tudo. Buscamos construir, junto à criança e aos pais, algum saber. O trabalho com os pais é um trabalho conjunto, visando ao tratamento da criança.

Alguns pais pedem que o analista os ensine como lidar com o filho, questionando se agem certo ou errado com a criança. Ao analista cabe o cuidado no manejo da transferência com os pais, sendo possível orientá-los, para o trabalho caminhar. Orientar é diferente de dar respostas e ensinar. Orientar é construir soluções possíveis, pontuando o que for importante para a continuidade do trabalho.

Os pais são a primeira fonte de saber da criança, eles são a lei e o amor. Questionamos se o pai e a mãe ocuparam as suas funções para essa criança na construção do Édipo. A estrutura do sujeito depende do Outro e dele mesmo, de como a falta se instaura. O sujeito escolhe, via desejo, qual posição vai tomar, escolhe se alienar ou não, mas para conseguir chegar ao alcance da escolha, é necessário algo antes, e é aí que os pais entram.

Primeiro, o sujeito criança se aliena, dizendo “sim” ao Outro. De acordo com Lacan, esse é o primeiro passo da operação em que se funda o sujeito, sendo essencial a criança passar por ele para chegar ao segundo momento, no qual ele se separa, respondendo “não” ao Outro, dando uma resposta enquanto sujeito desejante. Isso é possível quando o seu lugar no desejo do Outro se torna enigmático para a criança, quando ela sai do lugar de assujeitamento ao gozo do Outro para assujeitar-se a uma lei – a lei do desejo, encarnada pela função do pai. É nesse segundo momento que o campo da transferência começa a ter lugar. O trabalho da análise consiste em ajudar a criança a fazer essa separação, intervindo no lugar em que nos é dado pela transferência.

Nesse momento de impasse, pode acontecer de alguns pais suspenderem o tratamento da criança, porque dizem que ela já está bem, quando o sintoma que os incomodava apazigua, ou quando acreditam que a criança “piorou”, está “rebelde”, “agressiva”, pois está se separando, se posicionando enquanto sujeito. Acontece que, quando a análise abre a possibilidade do sujeito criança aparecer, criando certa independência em relação aos pais, estes a interrompem, com ou sem transferência com o analista. São eles que decidem o momento de interromper, e não o analista junto ao analisante.

Na experiência com a clínica, assistimos a tratamentos de crianças sendo interrompidos por várias razões: além dos citados acima, porque os pais acreditam em outra(s) forma(s) de tratamento e creem que terão mais êxito, porque estão com baixas condições financeiras, porque acreditam que a criança já está há muito tempo em tratamento e não obtiveram os resultados esperados, também por questões de mudança de horário ou inviabilidade de levar a criança ao atendimento, entre outras. Nesse momento, nós, enquanto analistas, se possível, chamamos esses pais para mais uma conversa, além de outras ocorridas durante o tratamento da criança. Ressaltamos a importância do tratamento pontuando que ele ainda não chegou ao fim, e que, portanto, não concordamos com sua interrupção. Cabe ao analista amparar também os pais nessa separação.

Uma das causas da interrupção do tratamento da criança é a resistência, que pode ser do lado da criança ou do lado de um dos pais. Há casos em que o pai ou a mãe diz que a criança não quer mais ir às consultas. Investigamos de qual lado está a resistência, para trabalharmos com ela, afinal, a resistência é uma forma de transferência. Ela aparece como um obstáculo para a cura, mas com o manejo da transferência é possível vencê-la. De acordo com Freud (1912),

 

(…) a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise – e a análise como tal – muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influencia analítica junto aos pais (FREUD, 1912, p. 146).

 

Ainda segundo Freud (1912), os fenômenos da transferência – resistência, repetição e sugestão – representam grande dificuldade para o psicanalista, mas são necessários para tornar manifesto os impulsos eróticos ocultos do paciente, ou seja, para chegarmos ao inconsciente do sujeito.

Em 1912, Freud afirma que a resistência deve ser contornada através da interpretação, que é colocada como uma arte, principalmente no que diz da identificação das resistências. Trata-se do manejo da transferência dando o devido tempo para o paciente elaborá-la, superar a resistência e abrir a possibilidade, assim, de recordar e prosseguir com o tratamento.

 

Depois que ela for vencida, a suspensão das outras partes do complexo quase não apresenta novas dificuldades. (…) assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo da transferência (…) mas o papel que a transferência desempenha no tratamento só pode ser explicado se entrarmos na consideração de suas relações com as resistências (FREUD, 1912, p. 115-116).

 

De acordo com Freud (1912), citado por Miller (1988, p. 104), a transferência se produz quando o desejo do sujeito encontra um elemento particular na pessoa do analista, ou seja, quando algo do inconsciente se liga a algum significante que remete ao analista. Ainda segundo Freud (1912), a transferência se dá devido à imago paterna, semelhante à imago materna ou à imago fraterna, sendo a transferência a própria relação da cura, o tempo da experiência e da elaboração, na medida em que tem o Outro como figura central.

A transferência, com a possibilidade de interpretação, favorece o tratamento da criança abrindo espaço para ela construir o seu próprio sintoma, separado do sintoma do pai, da mãe ou do par parental.

Ainda de acordo com Freud (1912), os sintomas podem adquirir uma nova significação a partir da análise, pois o sintoma é um elemento com uma significação que se dirige ao Outro. Sendo assim, o sintoma pode se direcionar ao lugar ocupado pelo analista na cura, lugar este de receptor do sintoma onde, devido à transferência, ele pode operar sobre aquele.

Há, então, no tratamento com crianças, a possibilidade do advir de um sujeito, o que permite a interpretação do analista. Portanto, a análise da criança é, sim, possível, com o manejo da transferência do lado do pai, da mãe e do filho. Apostamos na possibilidade de a criança construir o seu sintoma e saber sobre ele num processo transferencial junto ao analista.

 


 

Bibliografia:
FREUD, S. (1909/2006) “Romances familiares”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908) Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol.IX, p. 219-222.
FREUD, S. (1912) “Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I)”, In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913), Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol XII, p. 137 – 158.
LACAN, J. (2964) “Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem”, In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 224 – 236.
LACAN, J. (1938) “Nota sobre a criança”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 369-370.
LACAN, J. (1938) “Os complexos familiares”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 29-90.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (I): A alienação” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 199-210.
LACAN, J. (1964) “O sujeito e o Outro (II): A afânise” In: O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/2008, p. 211-223.

Marina S. Simões
Psicanalista. Graduado em Psicologia pela PUC MINAS. Graduated in Psychology from PUC MINAS. E-mail :marina.s.simoes@hotmail.com https://www.instagram.com/p/aEZJKAjG8o/?taken-by=fredbandeira



Puberdade, Adolescência E Estrutura

DAMASIA AMADEO DE FREDA

 

ÉDER OLIVEIRA: SÉRIE SEM TÍTULO 2005

 

A puberdade é um momento de grandes transformações, tanto físicas como psicológicas. Conhecemos as consequências psíquicas que essas transformações acarretam, a tal ponto que Freud não duvida em considerar esse momento uma verdadeira “metamorfose” da subjetividade.

A respeito das transformações físicas, Freud enfatiza o que acontece exclusivamente no que diz respeito aos órgãos sexuais, tanto internos como externos.

Vale destacar que tais transformações abrem possibilidades concretas que antes não existiam – a reprodução, por exemplo – e modificam a imagem de si de uma forma inédita até o momento. A isso se soma o fato de que a força pulsional, sublimada durante o período de latência, volta a catexizar as zonas erógenas sexualizadas desde a primeira infância e se concentra, sobretudo, nos órgãos sexuais que foram afetados pela completa transformação.

Freud disse muitas coisas importantes sobre esse período. Por exemplo, põe o acento no vai e vem da libido, do eu ao objeto e vice-versa, e adverte sobre os transtornos que poderiam suceder ao indivíduo se a libido se conformasse em ter o eu como único objeto. Um transtorno semelhante suporia a fixação libidinal em uma zona erógena em detrimento do órgão fálico.

Freud destaca que, nesse período, há um despertar das fantasias infantis, que haviam tido como finalidade dar uma resposta às interrogações típicas da infância – castração, sedução, cena primária. A tais fantasias acrescenta, agora, uma nova – mito do nascimento do herói –, que facilita o desprendimento da autoridade, processo fundamental para a passagem à idade adulta. Indica que tais fantasias são objeto da libido até que esta encontre e aceite um objeto novo fora do Outro parental. Adverte também sobre o fato de que as fantasias são precursoras do sintoma.

Indubitavelmente, esses indicadores freudianos são muito orientadores na clínica com púberes e adolescentes. Ainda que também saibamos que, na atualidade, tal clínica muitas vezes desconcerta o psicanalista.

O psicanalista se encontra regularmente com manifestações novas, as quais às vezes o desorientam. Por exemplo, a respeito da questão diagnóstica. Muitas vezes é pelo mesmo desconcerto que essa clínica lhe proporciona, que se precipita em querer elucidá-la por meio do diagnóstico.

Por exemplo, não faz muito tempo, quando uma paciente se apresentava ao analista com a prática da “automutilação”, em geral não se duvidava em diagnosticar uma psicose; logo, quando os sintomas próprios de tal estrutura não acompanhavam o quadro, se saia do atoleiro com o diagnóstico de psicose ordinária, sempre pronto para todo uso.

Hoje já não podemos continuar considerando a prática da automutilação um índice de psicose. O corte forma parte de uma prática amplamente estendida no campo da puberdade e da adolescência feminina, e, se os quadros são muito variados, as causas alegadas por aqueles que a praticam não deixam de ser obscuras.

O analista não desconhece que há aí um problema de quantidade, porque são as mesmas pacientes que o indicam. Elas falam de uma angústia, às vezes de uma tensão ou de uma energia que não podem dominar, e o corte vem funcionar como sangria, porque o sangue e a dor, produto da ferida, dão um destino ao excesso e um sentido ao que, na grande maioria dos casos, é um ponto de falta de significação. Que a falta de significação seja o correlato da falta de um significante, é indubitável. Que a falta de um significante concirna ao significante do Nome do Pai, isso não podemos assegurar e menos ainda generalizar. Agora, talvez essa prática generalizada nos indique que o significante do Nome do Pai, como articulador central da estrutura, começa a perder seus privilégios. Não seria desatinado pensar que essa prática é um indicador do declínio do Nome do Pai, ainda que não tanto na estrutura, mas na civilização, o qual repercute na noção de estrutura, relativizando-a.

Outra manifestação da atualidade é a passagem da heterossexualidade à homossexualidade e vice-versa, em púberes e adolescentes do gênero feminino, como meio de obtenção do gozo sexual. Sem dúvida, esse tipo de passagem mostra que o falo não é o órgão diretriz para a obtenção do gozo sexual. É possível que daí se deduza que o significante é fálico, e, portanto, a significação fálica esteja, no mínimo, modificada. Porém, que tudo isso desemboque em um diagnóstico de psicose, tal como se poderia depreender da leitura estruturalista de Lacan sobre as consequências na significação fálica no que diz respeito à presença ou ausência do Nome do Pai na estrutura, já não é tão certo. Quer dizer, hoje em dia não podemos deduzir de maneira unilateral de tais manifestações na sexualidade, própria dos púberes e dos adolescentes da época, um diagnóstico de psicose.

Outro exemplo, em vias de extinção, são as tribos urbanas, em que o que caracteriza o grupo são os traços semelhantes de seus integrantes. A diferença do que ocorre nos grupos sustentados graças a uma exceção, cujo protótipo é a figura do líder que viria representar e ser o porta-voz de uma ideia ou de uma ideologia, nas tribos urbanas não é a identificação ao traço do Outro o que possibilita a identificação entre os membros. Nesses bandos, a imagem de si e do outro se confundem até desintegrar-se em uma massa com um nome que os agrupa (emos, floggers). Observa-se claramente, nesse tipo de manifestação, como a ordem simbólica é substituída por uma ordem imaginária. Porque em tais agrupamentos não são os ideais nem as ideias que os comandam, portanto se compreende a inexistência daquele que cumpriria a exceção de transmiti-los. É simplesmente a vestimenta, os piercings, as tatuagens, o corte de cabelo, o penteado ou a maquiagem que permite identificar o grupo, e também são esses traços o que o mantém unido. Embora seja típico da puberdade e da adolescência o agrupar-se, e que em tal agrupamento esteja a tendência a igualar-se, existir um predomínio pronunciado do imaginário sobre o simbólico é o que o torna novidade. Que esse exemplo é um índice da modificação da ordem simbólica própria da nossa época, é evidente; que é índice do declínio do Nome do Pai, também. Porém, que daí se possa concluir que os púberes e adolescentes que integram ou integravam as tribos urbanas são psicóticos é um exagero, sem dúvida.

Por último, o fenômeno cada vez mais corrente do alistamento de púberes e adolescentes dispostos a matar e a se destruir em um único ato suicida-criminoso, em nome de um Um totalizador. O que podemos dizer desses casos que se estendem pelo mundo de um modo temível e sinistro? Que oferecer-se em sacrifício a um Outro incorpóreo é um delírio, não há nenhuma dúvida; que a pulsão assume, nesses casos, uma forma mortífera que não se vincula em nada com qualquer forma de sexualidade, quer dizer, que não há espaço para que se estabeleça um vínculo libidinal de objeto, parece evidente. Que a concentração da libido no eu seja a outra face da imolação ante um Deus obscuro, é muito possível. Porém, que esses jovens sejam psicóticos, no sentido lato do termo, é algo que não podemos assegurar, porque são muito raros, para não dizer inexistentes, os exemplos nos quais uma divisão subjetiva de qualquer índole pudesse vir a se colocar em questão ante tão radical eleição, para então conduzi-los a um psicanalista.

Esse último é um bom exemplo para o psicanalista atual; é um bom exemplo para lembrar-lhe que sua ação deve formar parte de uma política na qual um de seus fins seja interpretar o melhor possível a subjetividade da época, para poder incidir nela. Desse modo, o psicanalista poderá estar protegido de não errar além da conta em seu ato e, assim, poder integrar sua ação em uma causa que, embora se dirima no caso a caso, também pode apontar mais além do singular. Porque uma interpretação que abarque o conjunto permite elucidar a prática individual do mesmo modo que a prática individual contribui para esclarecer o conjunto. E é necessário, mais do que nunca, para o psicanalista, estar à altura da subjetividade desta época, difícil de interpretar.

Para finalizar, entendemos que a ideia freudiana da puberdade e da adolescência não dá elementos suficientes para se orientar na clínica atual. Ao contrário, consideramos que o último ensino de Lacan pôde contribuir para uma melhor leitura da subjetividade atual e que os púberes e os adolescentes são também a subjetividade da época. Sobretudo, vemos que se trata de uma subjetividade que já não parece responder aos parâmetros estruturalistas e deterministas com os quais nos regíamos, e, nesse sentido, vemos borrar-se as estruturas clínicas. Ao contrário, a noção de estrutura borromeana, cujos registros RSI se regem pela orientação e pela ordem, como único índice do predomínio de um sobre o outro como forma de fazer frente a um real, nos parece ser mais afim à clínica atual com púberes e adolescentes.

 

 

TRADUÇÃO: Kátia Márias
REVISÃO: Ernesto Anzalone

 


Damasia Amadeo De Freda
Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: damasiamadeo@fibertel.com.ar



Histeria: Do Matema Da Fantasia Ao Discurso

GERMANA PIMENTA BONFIOLI

 

As estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão – são decorrentes de três modos distintos de defesa contra a castração. Na neurose, o modo em questão é o recalque. Forma de negação da castração no Outro, que supõe o atravessamento do Édipo e a consequente inscrição do Nome do Pai. Como efeito, os sujeitos neuróticos, de posse da significação fálica, podem se inscrever de um dos lados na partilha do sexo. Dois tipos clínicos são característicos dessa estrutura: histeria e neurose obsessiva. A histeria tomada como a neurose de base e a neurose obsessiva como seu dialeto.

A histeria é, portanto, um modo particular do sujeito subjetivar a falta imposta pela castração, que poderá se manifestar nas maneiras sintomáticas variadas, mas preservando uma maneira típica de lidar com o desejo, estabelecer identificações e se relacionar com o Outro. Um modo do sujeito se defender dessa falta que coloca em marcha algumas estratégias fundamentais.

Destacaremos aqui dois momentos distintos ao longo da obra de Lacan em que ele irá trabalhar a histeria: nos anos 50, quando o matema da fantasia histérica aparece pela única vez, e em 1969/1970, no Seminário 17, em que a histeria é tomada como discurso.

No Seminário 8, ao se deter sobre os “efeitos sintomáticos do complexo de castração” (LACAN, 1960/1961, p. 242), analisando o caso Dora, Lacan enuncia, através do matema da fantasia histérica, uma estratégia fundamental de defesa histérica.

Objeto (a), sobre a sua castração imaginária, em sua relação com o Outro. Oferece, desse modo, sua própria castração ao Outro, como forma de garantir sua existência.

O sujeito histérico, mais que qualquer um, orienta-se pelo desejo do Outro. Interroga-se a todo tempo pelo desejo do Outro para a partir daí se colocar, como objeto, nesse lugar. De olho no que falta ao Outro, está sempre pronto a se posicionar, de modos diversos, como quem irá preencher essa falta. Essa versatilidade histérica pode ser facilmente observada na clínica, por exemplo, através dos variados estilos que uma histérica pode assumir diante de diferentes parcerias, fazendo-se a mulher sob medida para cada homem. Ao mesmo tempo, para manter esse outro desejante, é condição também se subtrair como objeto, não satisfazê-lo inteiramente, esquivando-se em tornar-se objeto de gozo. E aqui outro modo típico de funcionamento da mulher histérica aparece: ela segue em direção ao desejo do Outro, provoca-o e, na sequência, se esquiva dele como meio de resistir a ser tomada como objeto de gozo.

No matema da fantasia histérica, é como objeto a que a histérica se identifica, mas o que está por baixo da barra, aquilo que ela se esforça em ocultar, através dessa estratégia de oferecer-se como objeto de desejo do Outro, é sua própria castração. Do lado direito do matema, o que aparece como resultado dessa oferta é um Outro sem barra, o Outro não castrado. Ao apostar que pode completar o outro, fazendo-o passar de um Outro barrado para um Outro sem barra, o que está em jogo é a sua relação com a falta. A aposta é, em última instância, na sua própria existência, como toda. Se a barra não incide sobre o outro, não incide também sobre si mesma.

É a propósito de Dora, célebre caso de Freud (FREUD, 1905, p. 12-115), que Lacan irá nos esclarecer a respeito das regras desse jogo complicado. O pai de Dora, sabidamente impotente, é incapaz de copular com sua amante, a Sra. K. Mas isso não importa se é ela, seguindo o molde da fantasia histérica, quem irá sustentar a relação dos dois, fornecendo ao pai o signo fálico que lhe falta.

Pois tudo o que está em questão para Dora, como para toda histérica, é se fornecedora desse signo sob a forma imaginária. O devotamento da histérica, sua paixão por se identificar com todos os dramas sentimentais, de estar ali, de sustentar nos bastidores tudo que possa acontecer de apaixonante e que, no entanto, não é da sua conta, é aí que está a mola, o recurso do que vegeta e prolifera todo o seu comportamento (LACAN, 1960/1961, p. 243).

Tudo vai bem até o ponto em que estão todos insatisfeitos em seus desejos. Pois faz parte dos artifícios desse jogo que, para seguir desejando, o Outro seja mantido insatisfeito. Mesmo ao preço da insatisfação do seu próprio desejo, o que vai se tornar a marca registrada de uma histeria. Mais importante do que a satisfação do seu desejo é que o Outro mantenha o enigma como garantia da sua existência.

É ao seu pai que Dora demanda amor. Ao pai do terceiro tempo do Édipo, descrito por Lacan (LACAN, 1957/1958, p. 200), como aquele que estaria em condição de fornecer-lhe simbolicamente o que lhe falta. Nos dois tempos antecedentes, o sujeito, primeiramente, se identifica imaginariamente ao objeto de desejo da mãe. A seguir, a mãe de Dora, que mal aparece na história, é privada de seu falo imaginário e permanecerá aí ausente da situação. A lei paterna incide, a interdição é consumada, e assim estamos diante de um sujeito neurótico. Os dois primeiros tempos lógicos são atravessados e chega-se então à terceira etapa do Édipo, que guarda uma grande importância, pois “é dela que depende a saída do Complexo de Édipo” (LACAN, 1957/1958, p. 200).

O terceiro tempo do Édipo, destacado por Lacan, é aquele em que o pai tem que dar provas de possuir o objeto fálico, podendo dá-lo ou recusá-lo. No caso de Dora ele não o dá, porque não o tem, isso a mantém presa no complexo de Édipo, incapaz de atravessá-lo. Seu pai fracassa em fornecer-lhe o dom viril. Como boa histérica, Dora sofre de amor ao pai e segue ligada a ele. O tributo de amor ao pai, facilmente identificável em Dora, impede a histérica de atravessar o Édipo, deduzindo que o pai pode lhe dar o que lhe falta mantendo o seu ponto de castração intacto.

A Sra. K é, na medida em que é o desejo do pai, o objeto de desejo de Dora. Mas seu pai é impotente, e ”seu desejo pela Sra. K é um desejo barrado” (LACAN, 1957/1958, P380). Assim tem-se um desejo que não se satisfaz nem para Dora nem para seu pai. E isso é o que mantém as coisas equilibradas. Mas, para a manutenção desse equilíbrio, é necessário que Dora encontre um ponto de identificação que lhe permita sustentar seu pai em um lugar potente. Nesse caso, o Sr. K é que funciona como o outro imaginário portador das insígnias fálicas necessárias à identificação de Dora. É por intermédio dele, “é na medida que ela é o Sr. K, é no ponto imaginário constituído pela personalidade do Sr. K que Dora está ligada ao personagem da Sra. K” (LACAN, 1956-1957, p. 141).

Pelo seu apego homossexual à Sra. K, Dora irá se esforçar em dar suporte à sua relação com seu pai, deixando-se tomar como cúmplice. Nota-se a presença das indicações de Lacan (LACAN, 1956-1957) a respeito da histeria: a histérica ama por procuração, seu objeto é homossexual e ela o aborda por identificação a alguém do outro sexo.

Em Intervenção sobre a transferência (LACAN, 1951, p. 214-225), Lacan esconde do caso Dora três desenvolvimentos da verdade mediados por três inversões dialéticas. No primeiro desenvolvimento trazido por Dora a Freud, seu pai e a Sra. K são amantes há anos, e ela é oferecida como moeda de troca ao Sr. K. Numa primeira inversão dialética, Freud questiona: ”Qual é a sua própria parte na desordem de que você se queixa?”. Surge um novo desenvolvimento da verdade: a relação dos amantes perdura graças à sua cumplicidade. Na segunda inversão dialética, Freud observa que o ciúme de Dora pelo pai mascara seu interesse pela Sra. K. No terceiro desenvolvimento tem-se, assim, o fascínio de Dora pela Sra. K, que culminaria na última inversão dialética, em que a Sra. K é aquela quem guardaria a chave do mistério sobre a feminilidade. É ela quem pode responder à Dora a questão fundamental de toda histérica: o que é ser uma mulher?

Retomando o matema da fantasia na histeria, temos aqui um outro modo de lê-lo: do lado esquerdo, teríamos a identificação viril de Dora ao Sr. K, que recobre sua castração para, através dessa posição, poder fazer a pergunta à Sra. K, que encarna o outro sem barra e poderia, desse modo, responder a pergunta sobre A mulher.

Essa interrogação primordial, ”O que é ser uma mulher?”, pode ser tomada como algo que define a histeria. É isso que interessa saber à histérica. A despeito de toda a querelância em que um sujeito histérico pode incidir, de toda a sorte de queixumes típicos da insatisfação histérica que, para preservar seu desejo, mantém a falta recusando-se à satisfação, a queixa fundamental na histeria refere-se à falta de identidade, falta de um significante que possa definir o seu ser. Essa é, então, a questão crucial endereçada ao Outro, no caso de Dora, representado pela Sra. K. Esse endereçamento ao Outro de uma questão sobre o feminino é descrito também através do discurso histérico.

No seminário 17, Lacan nos oferece uma nova leitura da histeria, calcada na lógica discursiva. Institui o discurso histérico como um dos quatro modos de se estabelecer laço social, arranjando os elementos significantes, o sujeito e o gozo da seguinte forma:

 

 

Na parte superior do discurso da histeria, tem-se $® S1. A posição dominante desse discurso é ocupada pelo sujeito barrado, muito bem representado na histeria, sujeito dividido por excelência, que evidencia sua divisão através de seus enigmas. Quem ocupa o lugar do outro é um S1, somente a um mestre sua pergunta poderia ser confiada. Na parte inferior do matema, sob o sujeito barrado, o que aparece em posição de verdade é o objeto a, causa de desejo, como aquilo que o sujeito desconhece ao se endereçar ao mestre interrogando-o em busca de um S2. O saber instalado no lugar da produção deve responder a questão sobre o que é uma mulher para, de posse dele, poder sustentar a relação sexual. Em última instância, esse é o saber que a histérica espera ver produzido, e, para Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 98), é aí que reside o mérito desse discurso, por manter de pé em sua estrutura a pergunta sobre a relação sexual. Porém, o S2 que o mestre produz é, por estrutura, insuficiente para lhe dizer sobre o seu gozo de mulher, pois não há o significante que possa definir o que é uma mulher.

Ao eleger alguém para ocupar esse lugar S1 e endereçar-lhe sua questão, pressupondo que este pode produzir um saber a seu respeito, ela se aliena ao mestre deixando-se definir pelos sentidos vindos dele. A histérica interessa-se tanto por um mestre, esforça-se tanto por sustentá-lo que, como nos diz Lacan, é preciso indagar se não foi ela quem o inventou. Porém, é preciso que esse mestre tenha seus limites. É o que se vê na ambiguidade histérica, que está sempre colocando o senhor em cheque e destituindo-o.

Ela quer um mestre. Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa (LACAN, 1969-1970, pg. 136).

Se por um lado o sujeito histérico se endereça a um mestre, supondo-lhe uma potência em relação ao saber, por outro ele aliena-se do mestre, resistindo a ser dividido pelo S1, ao recusar que seu corpo obedeça a ele. É pela via do corpo que escapa a alienação ao mestre: isso que Freud chamava de complacência somática, Lacan nomeou por recusa do corpo na histeria.

No caso Dora, a impotência de seu pai perpassa toda a trama e ainda assim é no lugar do senhor que ele vai estar para ela, levando Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 100) a reafirmar a constituição do pai por avaliação simbólica. Por mais moribundo que possa estar, há uma ”potência de criação” implicada na palavra pai que faz com que ele desempenhe ”esse papel-mestre no discurso da histérica”. O pai colocado no lugar de S1, puro significante, é dotado de uma potência criadora sobre o real do seu gozo, sob a forma de um saber. Assim, na fantasia de que o pai é potente para fornecer-lhe o significante da relação sexual, ela o salva. Salvar o pai comporta, conforme Alvarenga (ALVARENGA, p. 19), o paradoxo de conferir a ele uma potência para, a seguir, jogá-lo na impotência, pois o saber que produz será sempre insuficiente para responder-lhe sobre o papel da mulher na relação sexual, deixando o próprio sujeito histérico na impotência. Mas isso não faz com que Dora desista de se dirigir ao mestre, pelo contrário: condena-a a insistir na questão. Fato que se observa muitas vezes na clínica sob a forma de uma demanda infinita ao pai ou a qualquer outro que venha a ocupar esse lugar de S1.

Uma saída seria através do que Lacan chamou, ainda no Seminário XVII, de ”terceiro homem”. Que a histérica possa se endereçar a um terceiro homem, que assim é chamado por ter o órgão, e que possa permitir dividir-se por ele, deixando-se tomar por objeto de seu gozo. É aquele que conjuga o ideal do pai universal abstrato com o desejo particular de um homem concreto (ALVARENGA, p. 20). O Sr. K convém a Dora como terceiro homem, por estar claro desde muito cedo, quando ele lhe assedia, ser possuidor do órgão. Mas Dora não se interessa por fazer do seu atributo fálico meio de gozo, por ”fazer dele sua felicidade” (LACAN, 1969-1970, p. 100). Quando o Sr. K diz à Dora: ”Minha mulher não é nada pra mim. (…) nesse momento o gozo do Outro se oferece ela, e ela não o quer, porque o que quer é o saber como meio de gozo…” (LACAN, 1969-1970, pg. 101). Assim, pode-se dizer que o Sr. K não cumpre sua função de terceiro homem para Dora, uma vez que ela não se deixa interpelar por ele, não consente como desejo dele.

Seguindo o caso Dora, através do matema da fantasia e do discurso histérico, em busca das estratégias de defesa na histeria, vê-se que sua pergunta fundamental, ”O que é uma mulher?”, é sua paradoxal defesa. Insistir na questão, apostando que outro tem a reposta, é seguir acreditando que A mulher existe. Ao escamotear à castração, através do seu enigma, ela não bascula para a posição feminina, que supõe que o sujeito possa se orientar pela lógica do não-todo, consentindo com algo da castração.

 

 


 

Bilbliografia
ALVARENGA, E. “Variedades do sintoma, unicidade do tipo clínico”, Correio. EBP, n. 58, p. 13-22.
FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. VII, p. 12-115.
LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1951. pp. 214-225.
LACAN, J. (1956-57). O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

Germana Pimenta Bonfioli.
Analista praticante. Psicóloga da rede de saúde mental de Mariana/MG. Email : germanabonfioli@hotmail.com



Amores Líquidos, Amores Nômades: Sobre As Formais Atuais Da Depreciação Da Vida Amorosa

ANA LYDIA SANTIAGO E JÉSUS SANTIAGO

 

FOTO : GIULIA PUNTELFOTO : GIULIA PUNTEL

O interesse dessa investigação clínica é buscar tratar a especificidade das formas atuais da depreciação da vida amorosa nas sociedades em que prevalece o fenômeno das vias democráticas do individualismo de massa[1]. É essencial mostrar que tais formas de depreciação não se esclarecem sem o devido tratamento do chamado individualismo de massa que, a nosso ver, é parte inerente dos diversos estilos de vida amorosa dos jovens, estilos marcados pela fluidez, inconstância e errância. Para captar o que vai de um lugar para outro e que se movimenta à vontade entre os jovens, utiliza-se, com frequência, a propriedade da fluidez pertencente aos estados da matéria líquida e gasosa. Tornou-se, assim, usual empregar a “leveza” ou a “ausência de peso” como atributo para fornecer os contornos do caráter lábil, frágil e inconstante dos atuais trajetos e rotas que definem a vida amorosa entre os jovens[2].

 

Amores líquidos

 

No entanto, não nos parece suficiente dizer – como quer a sociologia contemporânea – que o poder de derretimento da modernidade com relação aos valores e referências identificatórias que regiam as gramáticas afetivas tradicionais, seja fruto de uma mera quebra na verticalidade das relações sociais. Ao contrário de tais formulações, importa ressaltar em quê esses novos estilos encarnam uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera dos diversos modos de gozo. Se o que era a tradição e o padrão dos modelos do relacionamento amoroso se desfaz, irrompe, ao mesmo tempo, um variado leque de soluções que se traduzem pela interferência do individualismo de massa sobre o discurso e as práticas afetivas e sexuais dos homens. O psicanalista deve estar atento ao caráter inovador desta multiplicidade de soluções, que se expressa pelo imperativo de que cada sujeito deve identificar-se com sua própria diferença. Em outras palavras, o sujeito se vê obrigado, nos dias de hoje, a sobrepor-se a inexistência do Outro, com o recurso de algum significante-mestre (S1) que se apresenta como individualizado e pulverizado.

 

INDIVIDUALISMO DE MASSA –––––> S1s individualizados e pulverizados

 

Ao propor que a crise atual de nossa civilização se traduz pela inexistência do Outro, não se quer dizer que se trata apenas de uma crise que atinge o domínio do saber. Na época das mutações provocadas pelo discurso da ciência, a transformação do Outro, de seus ideais e do Nome-do-Pai em ficção, se estendem para o âmbito de uma crise que extrapola a ordem dos sentidos e dos valores de uma dada civilização. Ao contrário disto, ambiciona-se com a tese da inexistência do Outro, evidenciar que tal crise concerne o real inerente aos modos de gozo do sujeito, imerso no mundo em que o Nome-do-Pai e seus ideais se transmutam em semblantes. É por isso que, sob o fundo de uma angústia, o sujeito moderno introduz um questionamento que se repercute nas mais diversas esferas da vida, sob a forma do que é o real. É nesse sentido que não se deve privilegiar apenas a face negativa dos efeitos da inexistência do Outro. A conexão desses dois termos conflitantes e contraditórios, entre si – o individualismo e a massa –, constitui uma maneira de interpretar a face positiva, ou seja, as vias de respostas possíveis ao real do gozo, por meio de uma identificação com algum significante solto e isolado. É visível que o emprego desse sintagma paradoxal surge para aprofundar, ainda mais, o diagnóstico que compreende o mal-viver atual entre os sexos como uma resultante da inexistência do Outro[3].

A homossexualidade é exemplar do que vem a ser essa injunção do enxame de significantes-mestre individualizados, sobre as relações amorosas e sexuais em geral. Não é sem razão o fato de que a investigação sociológica universitária sobre os gêneros se mostre dominada, em escala mundial, pelos chamados “gay and lesbian studie” ou o “queer studies”[4]. O modo como a homossexualidade se configura, nos anos sessenta, por meio do movimento gay é uma prova de que a oferta de um significante-novo, capaz de captar o que transita no mercado do gozo, é suficiente para efetuar-se uma identificação que se designa como comunitária[5].

Com a emergência da nova norma homossexual gay, com o que se designa por essa identificação comunitária, fica para trás uma visão homossexualidade fortemente impregnada pela noção de inversão, cuja prática se exerce, de forma clandestina e, com o uso de uma fantasia particular[6]. A montagem discursiva que se instaura com a adoção do significante gay assume consequências para as práticas sexuais em geral, inclusive para os jovens, pois, o amor homossexual afirma-se como o ícone de um estilo de vida hedonista moderno, orientado pelo binômio prazer e liberdade. O sintoma social da homossexualidade gay torna-se, assim, modelo da representação máxima do casal igualitário em que não se exige a regra da coabitação, e não apenas, por não estar condicionada pela exigência da procriação, mas, também por estar desembaraçada das contaminações sentimentais das acepções românticas do amor. Em suma, fica-se com a impressão que se do lado da rotina dos héteros, tem-se o tédio, a tristeza; do lado do gay, a festa, o carnaval e as coisas divertidas.

Não há dúvidas de que a propagação desta nova norma homossexual, na vida social, contribuiu para tornar pouco credível a inclusão da sexualidade em uma ordem natural fixa e pré-estabelecida. É cada vez mais fora de moda, não admitir a homossexualidade como um estilo de vida similar a outros, como uma escolha de objeto que, apesar de ser minoritária, é tão defensável quanto outras. Como se pode constatar, não é à-toa, o fato de que o movimento dos homossexuais que, realizou e adotou a construção do gay, pôde desalojar do saber psiquiátrico, qualquer alusão diagnóstica normativa baseada na categoria de perversão. E o psicanalista, que posição ele adota com relação a essa repercussão subversiva, até então inédita, das práticas homossexuais com relação às normas que fixam e regulam os laços afetivos já existentes.

 

Amores nômades

 

É possível ainda, na abordagem das configurações atuais da depreciação da vida amorosa, tomar um outra direção, para apreender o que vem a ser uma tal inovação nos estilos de vida e nos modos de relação afetiva das novas gerações. Trata-se do que Gilles Deleuze e Félix Guattari designam com a marca contemporânea do discurso capitalista, a saber, o nomadismo, que como se sabe é concebido como uma máquina de guerra[7]. Refere-se ao caráter não-sedentário das relações amorosas como uma máquina de guerra porque estas agenciam do exterior e independente do moralismo centralista e falocêntrico do Estado, outras intensidades, fluxos territórios e enunciações.

Sob esse ponto de vista, o nomadismo, segundo Deleuze,

“(…) é uma forma de estar no mundo que subverte as expectativas sociais e as estruturas hegemônicas identificadas com o Estado. Esta “máquina de guerra” nômade apresenta três aspectos: um aspecto espacial-geográfico, um aspecto organizacional e um aspecto afetivo. A caracterização do nomadismo como um modo de ser específico está ligada à territorialidade, ou seja, à espacialização da experiência (social e subjetiva) em termos de deslocamento e não de fixação, como é o caso das existências sedentárias.” [8]

Em vez de fixar-se em um ponto do espaço, transformar-se em um lugar, como faz o sedentário –, o nômade não tem um território fixo e delimitado, pois, segue trajetos contingentes e vai, incessantemente, de um ponto a outro[9]. Para os filósofos, o deslocamento e a não fixação da existência sedentária nas relações afetivas exibe algo voltado para o mundo exterior e se prolifera na forma de descargas rápidas de emoções. Se os afetos são tanto projéteis, como armas, é porque, não apenas se diferenciam, mas desterritorializam a pretensa solidez dos laços e sentimentos amorosos do passado. A multiplicidade da máquina de guerra nômade, presente nos afetos, não se exprime pela simples via da pluralidade, mas, sim, pela capacidade de “desterritorializar” os anseios e as estruturas das relações instituídas pelo Estado e suas diversas formas de agenciamento das intensidades e dos fluxos da vida. A pluralidade, segundo eles, não é a multiplicidade.

O nomadismo deleuzeano suscita inúmeras e variadas reflexões em diversos âmbitos do pensamento contemporâneo. É possível tomar contato com o diagnóstico que ao buscar interpretar a componente nômade do discurso amoroso atual, privilegia o seu viés de impasse, fazendo sobressair o pessimismo. Sob essa ótica, o nomadismo revela a falência do referencial histórico para a compreensão dos fenômenos, a falência das categorias de emocional e racional para sua análise e, mesmo, a insuficiência da referência ao amor ao pai, para dar conta das transformações que se processam na vida íntima das novas gerações[10].

É visível a dificuldade destas análises para captarem os amores nômades, visto que se baseiam em uma perspectiva calcada no fio contínuo e linear da história do que tem sido os nomes infinitos do amor. Acrescenta-se, ainda, que a ideia de progresso e de razão mostram todo o seu limite quando há algo do passado, que retorna e se instala com certo vigor. Em relação à análise desse fenômeno, tudo leva a crer que as categorias racionais sobre as quais se edificam tais interpretações são instáveis e imprecisas, pois, a emergência do nomadismo, na esfera do amor, mostra que este deixou de constituir-se como exceção, para tornar-se uma realização efetiva e independente de suas expressões tradicionais[11].

 

O amor e a “não-relação”

 

Importa, contudo, abordar o nomadismo na vida amorosa tendo como guia, para o enfoque dos fenômenos de dessimetria no amor, a categoria lacaniana da “não-relação”. A maneira como a “não-relação” entre os sexos se exprime no contexto dos amores nômades assume consequências, até então, inéditas, para o psicanalista. Chama a atenção, para além da desterritorialização, as expressões não-sedentárias do amor que agudizam o fato clínico de que se a mulher equivale a um sintoma, para o homem, este último, por sua vez, é para uma mulher, fator de devastação. Ao contrário do que muitos podem pensar, para dar conta das vias atuais das relações sintomáticas entre os sexos, não cabe ao psicanalista simplesmente abandonar as categorias do inconsciente, do amor ao pai, do Édipo e outras, com o argumento de que se tornaram caducas[12]. Na verdade, elas estão mais vivas do que nunca, desde que, evidentemente, saibamos refundá-las e retratá-las com o que a clínica nos fornece cotidianamente como a marca do real próprio do sintoma que dissolve, sem cessar, o seu envoltório formal. Já conhecemos o que o último ensino de Lacan fez com o amor ao pai: mais do que desfazer-se dele, buscou-se mostrar em quê ele se mostra insuficiente e em quê é preciso ir além. É o que se traduz pelo aforismo: prescindir-se do pai, com a condição de saber servir-se dele.

É, nesse sentido, que cabe introduzir a questão: Como não captar, no nomadismo da vida amorosa, algo que se apresenta para além das ideias centradas na ruptura radical com a verticalidade das relações sociais? Para o psicanalista importa ressaltar, no nomadismo, o fato de que ele encarna uma resposta efetiva à manifestação da inexistência do Outro na esfera do amor. Como se exprime J.-A. Miller, haveriam, assim, labirintos do amor[13], o que torna ainda mais difícil a tarefa de nomeá-los. À diferença do discurso histérico, as novas formas de discurso amoroso – dentre as quais se inclui a homossexualidade masculina ––, não são baseadas e nem articuladas pelo amor ao pai.

O que se evidencia, no discurso atual, a propósito das relações amorosas entre os jovens, é que eles não amam. Ouve-se dizer: “Os jovens não conferem duração a seus namoros”; “O jovens não constroem frases com sujeito e predicado”; “Não há outro adjetivo para qualificar a vida de alguns adolescentes, que o da promiscuidade.” Essa atmosfera de mal-estar impregnada nos discursos dos pais e dos adultos em geral a respeito da forma de amar na atualidade, destaca o que vem sendo nomeado, nas análises da pós-modernidade, como o “pânico moral”. Ora, não cabe ao analista ter essa resposta diante do que se apresenta como um novo modo de vida. Até mesmo os pais que durante o tempo de suas juventudes introduziram uma verdadeira revolução em relação à geração precedente, reagem com um certo espanto. A indiferença, o individualismo, a falta de vergonha e pudor, e a perda da condição crítica dos sujeitos, apenas escamoteiam a indignação deles, diante da inexistência de um sentido referencial qualquer às identificações parentais. Isso vai de encontro com a constatação de que, nas últimas décadas, os homens se parecem mais com seu tempo que com seus pais[14].

“Na boate, as mulheres saem pra ficar com os caras e os caras saem pra pegar mulher. Neguinho já entra na pegação, entendeu? É a guerra.”, testemunha um jovem informante nos relatos de pesquisa antropológica, sobre o espaço e a subjetividade nas culturas nômades contemporâneas. Pode-se extrair desta pesquisa, algumas outras passagens, que, a nosso ver, caracterizam algumas identificações e posições de gozo, que não deixam de gerar uma variedade distinta de mal-estar e sintomas.

 

A derrisão do amor

 

Mais importante do que o caráter de transitoriedade e de intensidade volátil das relações dos jovens, que aparecem pelo emprego do “ficar”, parece-nos sugestivo ressaltar o lado derrisório e irônico, que se exprime no contexto mais amplo das configurações nômades. Muitas vezes, a diversão da night torna-se um “zoar”, que também implica um movimento de gravitação. Assim, “zoar” é “estar solto”, perder a censura”. “É deixar rolar”[15]. Zoar é você chegar com um monte de amigo seu e um ficar pegando mais mulher que o outro. Isso pode, inclusive, transformar-se numa competição, como o testemunha um outro jovem da pesquisa:

“Mulher que nego pega é o que mais mexe com o ego da pessoa. Se nego pega uma mulher gata…, (…). Eu tenho um amigo que a gente saía para pegar mulher feia também (…) Os outros é que escolhiam a mulher para o cara: aí, tem que pegar aquela. E tinha que passar de mão dada.[risos] (…) Chega num lugar que está horrível, o que agente pode fazer para animar a parada, entendeu? Pô, vamos pegar um monte de mulher feia, vamos fazer estas mulheres felizes? E você vê que as mulheres ficam amarradonas. [risos] E o ambiente fica legal.[16]

Esse depoimento mostra que os jovens procuram “ficar de boa”, neste turbilhão de gozo, que os faz passar rapidamente de um objeto para outro. O “não saber” em relação ao outro sexo, característico do início da puberdade, perdura-se. Poder-se-ia pensar que o “ficar” se apresenta como uma solução para este “não saber” angustiante: não saber como se aproximar do outro sexo, como aborda-lo, o que dizer, o que perguntar, o que conversar. Enfim: “O que fazer com o outro sexo?” Entretanto, o que ocorre é uma supressão da palavra, em detrimento de uma prática de gozo. Não é raro a conversa reduzir-se à uma sondagem sobre a possibilidade de alguém ficar com alguém, ser bem sucedida. E essa suspensão da palavra, que cumpre a função de adiar o encontro amoroso, não deixa de produzir uma série de sintomas, dentre os quais se destaca a inibição total da vida amorosa.

Portanto, a queda na crença de um sentido para as relações entre os sexos, que se insere no terreno movediço da inexistência do Outro, apenas favorece os efeitos do individualismo de massa no amor. É o que faz com que em nome do individual, cada um se torne o empresário de seu próprio desejo.

Pode-se dizer que este aspecto da auto-gestão do gozo na esfera da vida amorosa expressa os dois princípios básicos sobre os quais repousa o individualismo: (1) a liberdade individual, ou seja, o direito de se preocupar em primeiro lugar com a condição dos indivíduos da sociedade e, não, com a condição da própria sociedade; e (2) a autonomia moral, segundo a qual cada individuo deve fazer uma reflexão individual, sem que suas opiniões sejam ditadas por um grupo social qualquer. (Comunitarismo)

Diante dessa anulação do Outro social – ou dos referenciais simbólicos que organizam as relações –, é evidente que a instalação desse mercado atual das formas de gozo e do amor não acontece sem criar fontes para a redistribuição e o surgimento de novos sintomas e novas angustias. Esta inflexão da multiplicidade das soluções amorosas, acarretam como consequência a adoção do imperativo de ter que se identificar com sua própria diferença, de tentar se virar, custe o que custar, com um significante-mestre individualizado. Se os amores nômades interrogam a pulverização dos significantes-mestres, antes disponíveis e propostos pelo campo do Outro, isto não evita o fato de que ao fazer-se mestre de seu gozo; por outro lado, o sujeito “se faz objeto” para o outro, se faz de escravo para o seu parceiro. Este “fazer-se objeto” para outro, no caso do sujeito feminino, pode assumir proporções do que nomeamos como a devastação feminina.

 

[1] MILLER, Jacques-Alain. Psicanálise e política. In: Opção lacaniana, nº 34, outubro 2002.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. P. 8-9. O autor escreve: “Associamos ‘leveza’ ou ‘ausência de peso’, à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leve viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. Essas são razões para considerar ‘fluidez’ e ‘liquidez’ como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade.”
[3]MILLER, Jacques-Alain. El otro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
[4]BERSANI, Leo. Homos. Repenser l’identité. Paris: Editions Odile Jacob,1998.
[5]MILLER, Jacques-Alain. Des gays en analyse? Intervention conclusive au Colloque fanco-italien de Nice. In: La Cause freudienne, nº 55, p. 83.
[6]LAURENT, Eric. Normes nouvelles de l’homosexualité. In: La Cause freudienne, , nº 37.
[7] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 11-110.
[8] Ibid. p. 50-62.
[9]Em entrevista realizada para a edição italiana do “Mil platôs”, Deleuze revela que poderia ter escolhido como subtítulo do livro: “História universal da contingência”.
[10] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. In: ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 11-16.
[11] Ibid.
[12] RIBEIRO, Renato Janine. O passarinho de Godard. Op. Cit., p. 11-16.
[13] MILLER, Jacques-Alain. Labirintos do amor. In: Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº56, agosto 2006, p. 14-19.
[14] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro. Contraponto, 1997.
[15] ALMEIDA, Maria Isabel e TRACY, Kátia. Noites nômades. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. P.125-128
[16] Ibid. p. 129

 


Ana Lydia Santiago E Jésus Santiago
Ana Lydia Santiago Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: analydia.ebp@gmail.com – Jésus Santiago Psicanalista, Analista da Escola em exercício (AE) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail:jesussan.bhe@terra.com.br



“Bons Rolês E Tudo O Que For Bom”: A Gente Não Quer Só Comida

RAQUEL GUIMARÃES E VIRGINIA CARVALHO

ÉDER OLIVEIRA

“A favela pede paz, mas a guerra nunca vai acabar…”, enuncia Juca, que vivencia em seu território um intenso e mortífero conflito que não cessa desde 2013. Trata-se de uma tensão entre dois grupos do tráfico, Bahia e Barriga, que se tornaram rivais por disputas que os integrantes não conseguem precisar o início.

 

Juca faz parte do Bahia, grupo constituído por jovens de 15 a 20 anos que agem de modo impulsivo e violento, sem demonstrar cálculo em suas ações que, em geral, são direcionadas ao outro grupo. Esses jovens vinham realizando frequentes enfrentamentos à gangue do Barriga. Para tanto, iam ao território inimigo, com armas em punho, ameaçando e convocando para o confronto. Em seguida, corriam para seu território aguardando o ataque rival.

 

“Estamos marcados para morrer”: o encontro fortuito com a morte

 

Uma proposta de trabalho com a gangue do Bahia se colocou a partir da perturbação que experimentaram esses jovens diante da notícia de que um de seus colegas havia contraído o vírus HIV. Tal diagnóstico se deu no momento em que o jovem foi ferido e hospitalizado após uma troca de tiros. Frente a esse diagnóstico, os jovens do Bahia se agitaram receando também ter o vírus, em função das parceiras em comum, e anunciaram: “Se a gente também tiver contaminado, vamos botar pra quebrar, já que estamos marcados pra morrer”.

 

A morte, presentificada no conflito que eles nomeiam “guerra”, não era questão para o grupo até o momento. Mas a notícia de que um dos integrantes havia contraído um vírus que poderia matá-lo traz para a cena o medo de morrer. A partir disso, tem-se o convite para a conversação.

 

Segundo Ana Lydia Santiago (2011, p. 97),

 

a conversação é uma prática da palavra para tratar as manifestações indesejadas que produzem insucessos e fracassos. Busca-se uma mutação do falar livremente sobre os problemas. O ponto de partida para as conversações é “o que não vai bem”, formulado por meio das queixas. A aposta da conversação é passar da queixa – que paralisa a ação [..] e produz identificações indesejáveis […] – a um outro uso da palavra em que a queixa toma a forma de uma questão e a questão, a forma de uma resposta: invenções inéditas.

 

Para tanto, a primeira pergunta, colocada aos jovens pela enfermeira, foi: “O que lhes tira o sono?”. Respondem dizendo da guerra, da polícia e dos “alemão”. Juca anuncia seu medo de que os irmãos e outros colegas morram por causa da guerra: “poucos da minha época estão vivos hoje, a maioria ou morreu, ou está presa”.

 

Os efeitos do primeiro encontro foram observados por um dos jovens, que disse que, após o encontro, só coisas boas aconteceram, sem mais troca de tiros entre os grupos.

 

A partir disso, um segundo momento é proposto. Frente à oferta da palavra, a demanda que surge dos adolescentes é a de que ali se falasse sobre o direito ao lazer, sobre o que a cidade oferece para eles se divertirem.

 

Atividades circenses realizadas por jovens abriram o terceiro encontro. Na conversação, em que foi lançada a pergunta sobre o que seria diversão para eles, algumas falas se destacaram: “Eles são bons de circo e nós somos bons de tiro. Se levar eles lá para fora, iremos dar aula de tiro”; “A erva (maconha) e as mulheres trazem tranquilidade; com a erva e as meninas nós ficamos suave”; “É necessário ter polícia para controlar, a polícia é quem mantém o controle”. Um dos jovens disse que a polícia evita uma guerra maior: “A polícia vem pra nos controlar, sem eles aqui todos vão andar armados, vai ter gente andando de bazuca”, e completa: “Se não fosse a polícia, a favela não existiria”.

 

Considerando que o primeiro instante da conversação é o de nomeação das queixas, localizou-se que o grupo se queixava de não saber como se divertir e que a “guerra” lhes tirava o sono. Nas falas, os jovens indicaram a adrenalina de se ter uma arma na mão, de fugir da polícia, de atacar o grupo rival. Falaram da identificação com a “quebrada” e do modo como circulam e se apropriam das ruas e becos, geralmente a partir de delimitações no território que a rivalidade com o outro grupo impõe.

 

“A gente não fica tranquilo depois de matar”: o mal-estar da “guerra”

 

Um novo encontro e a apresentação da “quebrada” fizeram-se importantes. Falaram sobre a violência gerada pela guerra e também sobre o impacto do conflito nas famílias, na comunidade e em suas vidas. Ao desenharem sua “quebrada”, duas frases se escrevem: “Paz na favela” e “A guerra nunca acaba”. Afirmaram que não é fácil estar em guerra, ter que matar o outro, mesmo sendo rivais. Localizam que não é só adrenalina e diversão e que estão permanentemente sobre tensão, com medo de serem surpreendidos pelo grupo rival e perderem suas vidas. Desvela-se um mal-estar na conversação, que é encerrada com a fala dos jovens de que não tem como a guerra acabar, pois isso está para além deles.

 

Anunciavam, com a angústia experimentada por se darem conta do lado mortífero da “guerra”, uma tentativa de passar da queixa inicial sobre a diversão a um questionamento sobre a guerra, em que estivessem incluídos. Demandavam diversão, mas as conversações indicavam um ponto de fixação na guerra que parecia dar contorno e sentido à vida dos jovens que dela participavam, ofertando um lugar na comunidade e, até mesmo, um modo de vida.

 

“Mil grau”: prescindir da guerra

 

O quinto encontro aconteceu em um lugar fora do território, permitindo ao grupo circular por outros espaços da cidade que pudessem ofertar diversão. Na chegada ao local programado, os jovens se mostraram animados para jogar futebol. Dois deles não jogaram por estarem com o movimento de uma das pernas comprometido por balas alojadas no corpo, demonstrando incômodo com a pouca mobilidade. O jogo de futebol foi repleto de provocações, mas sem conflitos. Os jovens relataram terem se divertido muito.

 

Após o jogo, foram em busca de mais diversão. Entraram por uma trilha seguindo o caminho que levava às quedas d’água. As brincadeiras giraram em torno do cotidiano da guerra. Fizeram muita algazarra correndo e gritando: “cuidado com os alemão”; “olha a polícia”. No retorno à quadra, os jovens se reuniram para a conversação, ratificando o que os interessava: “queremos bons rolês e tudo o que for bom; paz no coração e dinheiro”.

 

Os acontecimentos da “guerra” atravessaram os encontros. A polícia vinha se fazendo mais presente, com muitas prisões e apreensões de drogas, prejudicando as vendas do tráfico. Uma decisão foi tomada pelas lideranças de ambas as gangues Barriga e Bahia: era preciso pôr fim à guerra.

 

Na conversação que se sucedeu a essa decisão, os jovens solicitaram assistir a um filme escolhido por eles. Durante a exibição, se agitaram nos momentos em que era retratada a guerra entre duas gangues do Rio de Janeiro. A cena final do filme mostra o momento em que um dos personagens decide não dar continuidade aos confrontos, selando um acordo de paz com o rival. Os jovens se mostraram revoltados, dizendo não concordar com tal atitude do personagem.

 

Após o encontro, vão ao baile funk do bairro vizinho com armas e coletes à prova de balas, sugerindo uma rivalidade com o grupo que organizava o evento. Foram expulsos do baile pelas lideranças da gangue do local.

 

Esse episódio coloca em questão o movimento do grupo, que parecia insistir na guerra, indicando que ela tinha função, servindo como engrenagem que regula a relação com a comunidade, com os outros jovens. O que indicam eles ao se lançarem na guerra ao mesmo tempo em que demandam diversão?

 

A oferta da palavra a esses jovens nas conversações colocou-se no sentido de que eles localizassem a tensão e o medo provocados pelo conflito das gangues. O ponto de partida desse trabalho foi a angústia do grupo frente ao real da morte que irrompe, não da “guerra”, mas do HIV contraído por um dos integrantes. Nesse sentido, as intervenções, nos encontros, visavam a marcar um estranhamento à banalização da “guerra”. Os efeitos puderam ser recolhidos somente a posteriori, com o cessar fogo e com a necessidade de que algo se reconfigurasse no modo como eles vinham se movimentando na vida.

 

As conversações puderam ser concluídas com uma solicitação feita pelos jovens. Pediram a organização de uma partida de futebol contra os integrantes do grupo do Barriga. O jogo contou com um número significativo de jovens de ambas as gangues em uma calorosa disputa. Saíram dizendo que havia sido “mil grau”, muito bom. Atualmente pedem que outras partidas aconteçam. A guerra cessou.

 

“Eles são bons de circo, a gente é bom de tiro”

 

Na carta a Einstein, Freud (1932/1996) se dedica a trabalhar a questão “Por que a guerra?”, indicando, para tanto, que o desejo de aderir à guerra é efeito da pulsão de morte, impulso destrutivo que se apresenta no campo limítrofe entre o psíquico e o somático, demandando satisfação. A guerra, segundo o Freud de “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, de 1915, altera a relação dos homens para com a morte. Ela passa a não ser mais “um acontecimento fortuito” (p. 301), pois “o acúmulo de mortes põe um termo à impressão de acaso” (p. 301).

 

Faria (2013) lembra que, no Brasil, morrem mais jovens por ano nas guerras entre gangues do que nos países em guerra. Segundo sua pesquisa, esses jovens, em um momento vítimas e, em outro, agressores, são “levados pelo tráfico, pela conquista de território […], pelo prestígio, pela menina” (p. 12). Para ela, “o tênue limite que separa os `jovens da esquina’ ou as ‘galeras’ das ‘gangues’ se desfaz frente à ameaça de um terceiro, alguém da comunidade, uma turma de bairro vizinho e, em especial, a polícia” (p. 21). Nesses momentos de enfrentamento e ameaças, quando o sentimento de grupo se reforça, emergem as gangues: “O que, de início, era apenas turma, acaba se tornando grupo de conflito, com seus primeiros líderes e suas próprias regras de convivência” (p. 21).

 

Mas teriam as “guerras” entre gangues o mesmo estatuto que o das guerras entre os países? Se, nestas últimas, é possível identificar uma inscrição simbólica, essa outra “guerra”, feita pelos jovens, apresenta muito mais uma vertente de gozo, pela via da transgressão.

 

Freud (1915/1996) sustentava para Einstein que lutar contra a guerra seria contrapor à pulsão de morte seu antagonista, Eros. Ou seja, favorecer o estreitamento dos laços sociais atuaria contra a guerra. Para ele, o amor e a identificação seriam duas maneiras de promover tal estreitamento.

 

Miller (2015), ao comentar sobre a participação dos adolescentes no Estado Islâmico, nos lembra que, para Lacan, as identificações são determinadas pelo desejo do Outro, mas não satisfazem a pulsão. Perguntando-se sobre o motivo pelo qual as cenas de decapitação dissipadas pelo Estado Islâmico atrairia tantos recrutas, Miller interroga se não seria essa uma tentativa de uma nova aliança entre identificação e pulsão.

 

No relato do confronto entre Bahia e Barriga, chama atenção, mais do que as questões próprias da “guerra”, o modo jocoso como os jovens do Bahia se colocavam nela. A ideia da morte em função dos conflitos entre as gangues era certa e esperada, fora do acaso, como indica Freud, ao descrever a situação de guerra entre os países. No entanto, o diagnóstico do HIV coloca em cena a contingência e a necessidade de um rearranjo.

 

Se inicialmente os Bahia respondem, como grupo, pela vertente do “somos bons de tiro”, a dificuldade que revelam e pela qual pedem ajuda é a de fazerem parte do “circo”. Esses jovens, em seu “despertar dos sonhos” (Lacan, 1974/2003), querem se divertir, mas não sabem como fazê-lo. Conversando sobre a guerra, percebem que ela não é divertida, é mortífera. E pedem auxílio para encontrar na cidade lugares em que possam fazer “bons rolês” e encontrar “tudo mais que for bom”.

 

No jogo de futebol proposto por eles, os jovens do Bahia parecem ter encontrado um novo lugar para recolocar suas “armas” fálicas. Consentem com o fim da guerra depois do jogo, que deu lugar às provocações, fazendo borda ao conflito. Para Freud,

 

alguém que está crescendo deixa de brincar, renunciando claramente ao ganho de prazer que a brincadeira lhe trazia. Mas quem conhece a vida psíquica das pessoas sabe que nada é mais difícil do que renunciar a um prazer que um dia foi conhecido. No fundo, não poderíamos renunciar a nada, apenas trocamos uma coisa por outra; o que parece ser uma renúncia é, na verdade, uma formação substitutiva ou um sucedâneo (1908/2015, p. 55).

 

Em uma conversação, lidamos com a demanda do Outro e a do sujeito. Nesse caso, a demanda do Outro era a paz na favela. Considerava-se essa “guerra” como um sintoma. No entanto, dar voz aos jovens que vinham perdendo o sono com a possibilidade de morrerem de outro modo, que não nessa “guerra”, permitiu a localização do impasse deles em relação a ela. A dimensão mortífera da “guerra” se apresenta e eles se perguntam sobre como sair dela, dando lugar à pulsão. Foi possível se deslocarem da “guerra da favela”, rumo à pergunta sobre como fazer para se divertirem. O jogo de futebol entre as gangues parece ter entrado, nesse caso, como a invenção inédita desses jovens, através das conversações. Não como uma solução pret-à-porter pela via educativa ou sublimatória, mas como recurso para responderem aos impasses experimentados em suas construções adolescentes. Após o jogo, a paz até pode ser mantida na favela, mas não sem dar lugar à guerra pulsional de cada um.

 

[1] Texto elaborado a partir da conversação realizada no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) de Minas Gerais. O tema foi “a favela pede paz, mas a guerra nunca vai acabar: o que fazer com os jovens que enunciam essa frase?”.

 


 

BILBIOGRAFIA
FARIA, L. F. Tribos urbanas: os efeitos do abalo do Nome do Pai no contexto da violência juvenil (2013). Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG.
FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996
______. Por que a guerra? (1932) In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. O poeta e o fantasiar (1908). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud, Arte, Literatura e os Artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
LACADÉE, P. A passagem ao ato nos adolescentes. In: Asephallus. Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. Volume 2, número 4, maio a outubro de 2007.
LACAN, J. Prefácio a “O despertar da primavera” (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 20 mai. 2016.

Raquel Guimarães E Virginia Carvalho
Raquel Guimarães Lara. Psicanalista, graduada em psicologia pela PUC-Minas, especialista em Psicanálise pela Universidade FUMEC. Atua com políticas públicas de prevenção à violência e criminalidade. E-mail: raquelguima@yahoo.com.br – Virginia Carvalho. Psicanalista, coordenadora do CIEN Minas, doutoranda e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, especialista em Psicologia Clínica pela PUC-MG. Professora do curso de Psicologia da Educação da PUC-MG e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (FAE/UFMG). E-mail: vivscarvalho@yahoo.com.br.



Juventude À Deriva > Radicalização

FRANCESCA BIAGI-CHAI

 

 

GIULIA PUNTEL

O começo do século XXI viu aparecer na juventude um fenômeno que está crescendo: um certo nomadismo, uma grande mobilidade e labilidade[1]. À infância turbulenta, qualificada pelo termo medicalizado hiperativa, segue-se uma adolescência, uma juventude em constante busca de uma causa exterior a si mesma que lhe escaparia e lhe escapa sempre – uma juventude em suspensão. Nisso podemos ver a característica de uma época onde o fazer e o ter são mais importantes do que o ser, na qual o sujeito está ocupado em criar laços, em construir a vida, pois nada é óbvio. Privados da suposição de saber em relação aos pais e adultos, muitos são os jovens que se encontram liberados dessa parcela de interioridade tão elementar quanto preciosa. Com ela distancia-se a função mesma do insight, onde se enodam o desejo e sua causa, o gozo e seus sintomas, sintomas através dos quais eles puderam até então se endereçar ao Outro, abrindo uma via para a transferência. Era a Juventude abandonada para a qual August Aichhorn[2] nos sensibilizou em sua obra. Freud o presenteou com um notável prefácio sobre os três impossíveis: “governar, tratar, educar”, verificando a ética de uma clínica do Outro barrado.

 

A juventude de hoje está à deriva. A hemorragia do ser, o pseudoideal de transparência conduzem-na em direção do campo de uma exterioridade de si mesma e de uma relação com a imanência na qual tudo poderia ser visto e sabido. Então a transferência pareceria quase impossível por falta de sintoma, exceto pelo que identificamos daquilo que pode ter de sintomático na ausência do sintoma. Sintoma que vemos aflorar sob a forma da espera: espera de um acontecimento, espera de alguma coisa que faça corpo ou que venha nomear o que do corpo se manifesta no momento em que a significação do falo faz cada vez mais falta para esse uso. O lugar está preparado para que aquele que, inteiramente seguro, apareça como Outro do Outro, e tente alojar aí a sua própria causa: um canalha, como Lacan o define.

 

O que é o sintoma da ausência de sintoma?

 

Poderíamos dizer, “Psis, mais um esforço!”, se quisermos desalojar o canalha, para que cada sujeito possa ter, mais além do curto-circuito do agir, um acesso a seu dizer, a sua causa. Que o adolescente não tenha mais que se lançar em um discurso para sair de um impasse, nem tentar aparecer aí, de maneira selvagem, ou seja, fora de seu próprio discurso que não se formula. Lalíngua – tal como ela se encontra modificada e modifica por sua vez os modos de gozo de seu tempo – leva o adolescente a falar concretamente, de forma contável; tudo o que é suposto verdadeiro é verdadeiro, tudo o é suposto falso é falso. A dimensão do mais além é esmagada em proveito da imanência do efeito produzido. É agradável ou desagradável, eficaz ou ineficaz, prazeroso ou desprazeroso – uma língua sem paradoxos. Sensações igualmente que o adolescente expressa até o limite dos fenômenos de corpo: ele está irritado, isso não o interroga, isso o incomoda; ele está nervoso, ele espera encontrar o motivo nisso; ele está com raiva, “contra o quê? Contra nada… com raiva”. Essas palavras dizem o que é, aquilo a que talvez o sujeito como vazio esteja suspenso: ser ou não ser. Alguma coisa como o que diz Hamlet: “que me deem o meu desejo!”[3] O canalha é aquele que faz como fez o Ghost, que veio reclamar vingança. Através desse significante-mestre, do qual Hamlet foi apenas o braço armado, a morte levou tudo.

 

É diante dessa relação com o desejo que o analista não deverá recuar em seu encontro com o jovem à deriva. Muito pelo contrário, o analista deverá dar um passo… Em direção à adolescência[4], como nos convida Jacques-Alain Miller.

 

“Ser”, de ser retomado em um discurso

 

Conhecemos hoje essa inflação constante de jovens ditos “radicalizados na religião islâmica”, e que partem um após o outro para engrossar as fileiras de Daesh, instalados entre a Síria e o Iraque, a fim de se lançarem na jihad. A partir daí, eles se preparam para realizar assassinatos em massa, estando suas vidas sacrificadas de antemão. É com um “viva a morte” que cada um encontra seu Deus. É o que já estava lá, zona muda, morta, que o analista interroga. O que acontece com esses jovens antes que se opere essa conversão que abre as portas para sua partida?

 

O Outro que age junto a esses jovens, quem é ele? Está relacionado simplesmente com o religioso? Com o semblante, certamente. O semblante que autoriza tudo, todos os dizeres, já que ele é apenas cor de ser. O religioso é outra coisa: ele está em toda parte e em lugar nenhum, ele é discurso e nem tudo pode ser sustentado por ele; nos apropriamos dele ou não. O Outro que intoxica é o Outro no religioso. Ele se constituiu como mestre de gozo. Um mestre de gozo que se faz tomar pelo simbólico e que toca o real do outro. Ele persegue as zonas de fragilidade de jovens cujo mal-estar é palpável, o isolamento é notório, a suspensão do ser é perceptível, zonas abandonadas da transferência, para alojar nelas a máscara caricata de um sentido reencontrado, aquele de uma possível religião. Ele povoa o imaginário frágil de uma juventude desenraizada em sua própria casa por figuras ideais, não do lado, como poderíamos acreditar, do ideal do eu, herdeiro do pai, mas daquele mortífero, do duplo, aquele do eu ideal. É a dimensão fraterna dos irmãos mais velhos, captura imaginária: irmãos encontrados nas redes sociais, nos lugares públicos, nos colégios, nos bairros, nas prisões. É o início da história da partida. Progressivamente um jovem muda, não o reconhecemos mais. Desde então, uma estrutura se desenha: um buraco ou seu avesso, um muro. Um hiato entre passado e presente desfaz os laços do sujeito com os outros e com ele mesmo. O Outro privatizado se infiltra, se espalha. Ao desejo destruído se substituem a missão e sua ordem. Nessa depuração, nesse desfiar, o objeto-causa alojado no Outro está disjunto do sujeito. O outro no Outro lhe faz produzir então – poderíamos dizer, secretar – seu efeito tóxico, isto é, seu próprio real.

 

Isso não deve ser situado no registro do sentido – do tipo causa e efeito -, mas no registro do casual – do real da causa que leva à ação, que a organiza.

 

Esse fenômeno se estende às prisões aonde chegam, frequentemente, dez a vinte vezes seguidas, muitos dos chamados delinquentes, com fragilidades subjetivas não diagnosticadas, à beira da dissociação, tão bem descritas por esse esquecido termo hebefrenia. Ele descrevia essas patologias da ação, passagens ao ato iterativas e ingenuamente concebidas, mostração de uma busca nebulosa e informe às portas da esquizofrenia. O discurso analítico permanece como o único hoje a reivindicar para o homem a causalidade significante que o torna falasser. Alguns destinatários à altura de sua tarefa, os analistas, devem participar da vida da cidade plenamente, e apostemos que isso se mostrará cada vez mais necessário: o real despreza as leis.

 

Propomos aqui uma luz sobre esse real: o terrível encontro entre um jovem cujo discurso se desfaz e aqueles que tecem com ele o tecido da vontade deles. Talvez algo poderá ser alcançado sobre esse fato, isto é, somente o diálogo analítico pode alcançar o real: aos nossos políticos, para bom entendedor, uma palavra basta.

 

Agir para ser, enfim…

 

Tive a oportunidade de encontrar, em um local de detenção, um jovem estudante do segundo grau, como tantos outros. Nascido em uma família muçulmana não muito praticante, não comer carne de porco lhes era a única observância. Ele tinha vindo a Paris para realizar um assassinato em massa e vingar seus irmãos muçulmanos, punindo os ímpios e sua audácia em blasfemar, mas foi impedido.

 

Nessa época, a exibição de um filme considerado ofensivo ao islã havia provocado reações contra e a favor através de uma série de manifestações. Ele quis agir também como os outros.

 

Trata-se, portanto, de um jovem, G., até então não praticante, que acabava de fazer dezoito anos. Dezoito anos – idade adulta, da passagem à maioridade legal. Idade da responsabilidade civil e do direito ao voto, do direito a participar plenamente da vida política, dos negócios do mundo. É uma travessia, um salto para o desconhecido, às vezes para o vazio, o saut de l’ange[5].

 

G. mostra-se tímido, parece ser mais novo do que sua idade, uma certa imaturidade é perceptível. Está no terceiro ano do ensino médio e sempre foi um ótimo aluno, nunca teve problemas na escola, muito pelo contrário! Um amigo percebeu que “alguma coisa não ia bem” com G. Esse, não conseguindo mais falar com o amigo, consulta as redes sociais – para quem sabe ler, tudo está lá escrito: O homem que vai corrigir os erros aparecia sobre o pano de fundo do que antes era um “eu não estou aí, sou apenas um reflexo, eu retweeto[6]”. Ser, enfim, mesmo que seja na morte, e, além do mais, para alguma coisa.

 

Ele foi preso por posse de armas no trem.

 

Ser como todo mundo

 

Jovem inteligente, aberto à conversa, ele mostra, no entanto, durante a entrevista, uma incontestável reticência. Uma reticência do tipo: “Senhora, eu quero responder a todas as perguntas, lógico que responderei às perguntas, eu não deixarei de responder às perguntas, mas é claro, vou responder às perguntas”, o que é evidentemente uma maneira de não responder às perguntas. Isso se chama reticência prolixa, um muro de proteção: barragem fluida sustentada pelas estruturas de linguagem. Estar aí ou em outro lugar, tanto faz! A ironia se aplica a si mesmo, o resto não conta, ele está à espera daquele que fará alguma coisa dele. É nesse ponto que, com a nossa ética, nosso saber pode fazer concorrência com o sem fé nem lei do Outro bárbaro.

 

Nascido em uma cidade do interior, onde a família veio morar da África do Norte em uma data imprecisa, seu pai trabalhava “como todo mundo” e as pessoas gostavam dele. Sua mãe, dona de casa, criava os filhos. “Meu pai, diz ele, é como todo mundo, nós somos como todo mundo”. Ele não pode precisar mais além disso: essa significação última e absoluta, constituinte e identitária, lhe dava um lugar. De sua infância, ele não diz nada ou pouca coisa, pois ele acha que não tem nada a dizer, isso é um fato. É um fato fora da dialética. As únicas perguntas a serem feitas nesse caso são banais, concretas, que tentam se aproximar da motivação. Se ela existe, só poderá ser apreendida lateralmente, parcialmente às vezes, mas durante esse tempo, o diálogo continua.

 

O sexo, a morte por arrombamento

 

Muito querido por seus professores, sua infância se passou sem altos nem baixos, sem vícios, tanto no plano social quanto no plano psíquico. Ele não teve problemas e de fato quase nada foi problema para ele. Adaptava-se docilmente, moldava-se ao que lhe pediam para fazer. Nunca teve angústia, nenhuma preocupação, principalmente sobre a questão da morte. Para ele, isso não tinha nenhum interesse; tinha a vida e tinha a morte: palavras.

 

Passar das palavras às coisas é o que deve acontecer com a maioridade. Ele encontra uma jovem, “como todo mundo”, mas é preciso colocar um corpo, e isso não acontece: ele se dissocia e se esgarça. Alguns beijos, e logo uma parte dele tem pressa em pertencer a ela para se pertencer. Ele a assedia, chega mesmo a invadir sua sala de aula numa escola que não é a sua. O diretor dá queixa, sem resultado, ninguém se interessa por isso; a jovem faz o mesmo por causa de SMS invasivos, tanto de dia quanto à noite. Confrontar-se com o sexo, com a morte, é confrontar-se com a castração, com o não-todo. Ele é confrontado com o vazio, com a perda de qualquer senso crítico, com a ausência de divisão, já que impossível. Ele está condenado à necessidade de que o corpo e as palavras façam Um, façam Todo, sejam resposta e não pergunta.

 

Deus e o além

 

É nesse vazio, nessa incerteza, nessa espera em que tudo nele se oferece à abnegação, na condição de que ele recupere um corpo, que pôde se produzir a faísca de um encontro, um encontro no sentido forte, total, místico religioso ou não: uma experiência de gozo.

 

Ele me conta que, como bom cientista, consultou a internet para “entender como ser um homem”, “entender o que significa crer”. A conselho de um colega que lhe apresentou outros colegas, ele encontrou num site uma série que está passando ainda hoje. Esta lhe cai como uma luva, já que seu título está relacionado com a vida depois da morte. Mais amplamente com o Além, precisamente a dimensão que lhe falta, pois ele a identificou nos outros: eles têm um ar de cumplicidade, falam, gozam. O sexo e a morte se misturam, e ele, separado do um, é lançado no outro. Como Paulo, no caminho de Damasco, é uma revelação. Ele não sabia o que era a morte, ele a encontrou ali, naquela série. As novas palavras vieram nomear o sacrifício, a pergunta se abriu ao mesmo tempo em que a resposta a fechava novamente: a eternidade, e, sobretudo, uma vida no além, inefável, infinita.

 

Nessa série que vai em busca dos seres mais frágeis, ele é guiado, é carregado, colocam-lhe balizas. Ela expõe o dejeto e a morte, e, isso, de maneira muito concreta: “a riqueza, o dinheiro, tomam conta de você até que você visite o túmulo comigo”. As imagens nos conduzem: “Você já foi a um enterro em um cemitério? E aí você pensa, um dia serei eu”; “O crente não está preocupado com essa vida enganosa, o crente trabalha pela eternidade.” A morte torna-se objeto, objeto precioso, ela é o objeto que substitui o falo; então, para aquele a quem ele falta, ela se torna a mais-valia de seu ser, e seu ser pode aliená-lo a esse outro, que a colocou em jogo.

 

Nessa série, a morte manifesta-se topologicamente com o seu além, que é ao mesmo tempo um aquém ou, melhor dizendo, como uma eternidade de gozo concreta onde todo temor se apaga. É uma tomada de poder total. As ações podem ser perpetradas na dimensão megalomaníaca que lhe é consubstancial – careta do ideal –, enquanto a consciência e o espírito crítico desse jovem se obscureceram. De repente, ele tinha a imensidão diante dele. Isso vinha responder evidentemente à impotência que ele tinha diante da vida, do sexo, do amor.

 

A abnegação e sua lógica

 

Tendo se tornado crente à sua maneira, aqueles que ele encontra no rastro dessa captura são como ímãs “às voltas diretamente com o além”, mais fortes, portanto, do que os ímãs tradicionais. Ele está, desde então, diretamente ligado a um dever delirante. Um vídeo americano controverso, A inocência dos muçulmanos[7], causou um alvoroço naquele ano e manifestações aconteceram quase em toda a França. Ele deseja participar, mas perde-se no caminho. Experimenta então um mal-estar cada vez maior, “ele não fez o que tinha que fazer”; seguem-se raiva, tensão, nervosismo. A ideia de que “ele tem que fazer alguma coisa” começa a surgir em sua cabeça: a ação como razão cujo objeto resta a definir pelo outro, no outro. Ele quer viajar para o exterior, mas um hadith do profeta diz, no momento certo, que não deveria viajar sozinho. Um amigo perguntou se ele tinha ficado louco, o que o tornou suspeito a seus olhos. Ele se afasta progressivamente daqueles que proferem a menor dúvida ou pergunta. Precisava fazer alguma coisa, puro imperativo que não foi seguido por nenhuma declinação, por nenhum desenvolvimento e que é, para os psicanalistas, o indício da última muralha antes de uma precipitação na passagem ao ato ou no presente congelado de sua preparação.

 

Surge uma associação que “zomba” dos manifestantes, caricaturas são publicadas: é preciso eliminar os membros, pergunta-resposta sem o distanciamento da crítica, sem a passagem pela razão ou pela lei, absorvida no curto-circuito da ação, como um comando vindo de outro lugar.

 

G. comprou então armas e sua passagem. “O que você queria fazer?” “Matá-los, é proibido zombar, xingar.” “Como você teve essa ideia?” “Assim… eu passei da defesa ao ataque.” “Hoje você viajaria para algum lugar?” “É difícil dizer, é proibido viajar sozinho.”

 

A confissão de um gozo: uma mística materialista

 

O analista pode sustentar um diálogo no semblante, menos destinatário do que instrumento para ler o real, interessar-se pelo sujeito – é o que ele pode às vezes dar a saber: seu saber fazer está além de sua experiência, ele se regula pelo valor do real. De minha parte, eu avançava lentamente em direção a esse ponto de real que o cegara, real que não se apaga, mas insiste, único registro a ser desnudado, se pretendemos antecipar, desviar, até mesmo impedir seus piores efeitos. “Isso te levou muito longe, disse eu, seus colegas te deixaram sozinho. Você queria assistir de novo essa série, que foi em todo caso nociva, já que ela te levou à prisão?” Ele suspende sua resposta, reflete por um bom tempo – um momento de confiança, de laço, um esforço, um esboço de transferência. Ele me dá, com um sorriso distante, em um pedaço de real sua verdadeira resposta, sincera no diálogo: “Se, no verão, no deserto, alguém te oferecesse um excelente sorvete para provar, e você ignorasse a sua existência, você tem certeza de que não aceitaria mesmo?”

 

Não estamos mais no intelecto: aqui, o ponto de real é perceptível. G. experimentou, provou alguma coisa física, mística, ele que não sabia até então que tinha um corpo. Provar é do corpo, um êxtase material, um êxtase leigo.

 

Lugares para um laço

 

E aqui, evidentemente, isso diz que seu espírito estava obscurecido, mas isso diz também que isso pode, que isso tenta voltar. É preciso colocar mais tecido nisso, mais tecido psíquico, mas não só: como todo o seu percurso indica, convém trabalhar sutilmente com ele, na direção dele, não largá-lo, acompanhá-lo para que ele teça novamente laços humanos contra o êxtase mortal.

 

Impossível fechar os olhos para o fato de que há muito tempo a prisão suplantou os centros médico-psicológicos, os hospitais e os diferentes lugares de tratamento: facilidade financeira, pobreza teórica por ausência de bússola, é preciso economizar!

 

Os laços são o tecido que uma psiquiatria esclarecida pela psicanálise poderia tecer, em seus lugares institucionais, para que o fora não seja um fora antropofágico, onde aquele que se diz o mestre, o pai ou o irmão devora os seus. Esses jovens subitamente convertidos colocam menos a questão da justiça e da punição do que a questão de um saber a ser reencontrado pela psiquiatria. E, para aqueles que nos governam, revalorizar, aumentar lugares de proximidade onde exercê-la; onde a presença física, o tempo necessário não seriam quantificados mas dependeriam da relação com o gozo; lugares orientados pela psicanálise que é o futuro da psiquiatria para que aí se enganchem, com a transferência, aqueles que nomeamos com tanta facilidade como os desenganchados[8] – juventude à deriva oferecida a ser capturada.

 

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Márcia Souza Mezêncio

 

[1] Intervenção pronunciada durante a Jornada de Estudos “Psiquiatria e Justiça” no Nouvel Hôpital de Navarre de Evreux, em 2 de dezembro de 2014.
[2] Aichhorn A., Freud, S., Jeunesse à l’abandon [1925], reedição, Toulouse, Editions Privat, 1973.
[3] Lacan J., Le Séminaire, livre VI, Le désir et son interpretation, Paris, Seuil, 2013, p. 345
[4] Miller, J.-A., “Em direction de l’adolescence”, Interpeler l’enfant, collection La petite Girafe, 2015.
[5] NT: Fazer o “salto do anjo” significa saltar ou mergulhar de grandes alturas abrindo ao máximo os braços e juntando as pernas. A expressão é uma metáfora que nos remete à simbologia celeste das asas abertas de um anjo suspenso nos ares.
[6] NT: Em francês, “retweeter”, neologismo que significa reescrever tweets.
[7] L’innocence des musulmans é um vídeo americano difundido em 2012 no YouTube.
[8] NT: No original décrocheurs, no sentido daqueles que são abandonados, que se desgarraram, que perderam toda a referência.

 


Francesca Biagi-Chai
Analista Membro da Escola (AME) pela École de la Cause Freudienne (ECF), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: bia.chai@free.fr



Sobre A Saúde Mental: Que Instituição Para Os Adolescentes?

HENRI KAUFMANNER

ÉDER OLIVEIRA
Em suas reflexões sobre a psicologia escolar, Freud nos fala do impacto que causava o encontro casual de um antigo professor pelas ruas de Viena. Tal impacto era acompanhado por um estranhamento, que pode se resumir à pergunta: “será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, eram tão pouco mais velhos que nós?” (FREUD, 1977, p.74). Freud confessa que o encontro com seu antigo mestre lhe provoca uma dúvida sobre o que teria exercido a influência mais determinante em sua formação: sua preocupação com as ciências que lhe eram ensinadas ou a personalidade de seus mestres. Se, sob sua pena, a importante articulação entre o Outro e o Saber já revelava sua importância, o movimento de destituição desse lugar idealizado do Outro também se mostrava primordial. 

Não por acaso, nesse pequeno texto, Freud discorre sobre a importância do pai, ligação fundamental na vida de uma criança, presente particularmente naquilo que ele nomeia ambivalência emocional. Observa que, a partir da segunda metade da infância, a criança, começando a vislumbrar o mundo exterior, avança em direção a um desligamento dessa idealização primeira, afirmando ainda que tudo o que há de admirável e indesejável em uma nova geração é determinado por esse desligamento do pai.

 

O tema de nossos trabalhos neste semestre no NIPS (Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental) do IPSMMG (Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais) convoca-nos a investigar as questões trazidas pela adolescência quando nitidamente nos vemos diante de uma realidade bem distinta daquela experimentada por Freud.

 

Como pensar uma relação possível ao Outro, num tempo em que o Mestre não surpreende mais? Que instituições poderiam acolher e tratar os adolescentes, nos quais o desligamento do Outro é uma marca determinante? Como podem os adolescentes hoje em dia construir uma nova ligação a um Outro, no qual o que domina é a lógica do não todo?

 

Esse pequeno fragmento das reflexões de Freud já nos apresenta algumas variáveis do problema.

 

Miller (2015), em sua intervenção “Em direção à adolescência”, desvela uma dimensão autoerótica do saber que predomina hoje em dia. Os adolescentes trazem o saber no bolso, ele não passa mais pelo Outro. Em sua intervenção, somos ainda apresentados a uma série de consequências relativas ao declínio do Pai e à inexistência do Outro. Há toda uma diversidade de comportamentos ligados a uma demanda de respeito, à denúncia da tirania do Outro e à uma realidade imoral. O avanço da Ciência, ao deslocar do mestre o saber, esvazia a dimensão simbólica do Outro, que passa a se apresentar ora inconsistente, ora em uma consistência, diríamos, malévola.

 

Miller fala da adolescência como uma construção, e que poderia ser tomada em várias perspectivas. Temos, assim, a adolescência cronológica, a biológica, a psicológica, a cognitiva, a sociológica, entre outras. Assinala ainda que dizer que se trata de uma construção se refere a uma convicção de que se trata de um artifício significante. Segundo ele, vivemos uma época que nega, com muita boa vontade, o real, ocupando-se apenas dos signos que são, em última instância, semblantes.

 

Adolescência é um daqueles conceitos que, embora não psicanalítico, convoca-nos a operar com ele, tamanha a sua presença e o campo de sentido que cria, além dos inegáveis efeitos na cultura e na clínica. A adolescência é, no mínimo, um semblante de nossos tempos.

 

Freud, por seu lado, referia-se apenas aos acontecimentos da puberdade. Nos “Três ensaios”, o evento da puberdade é marcado pelo fato de que a pulsão sexual, até então autoerótica, encontra agora o objeto sexual. Assim, as pulsões passam a se subordinar à pulsão genital, tendo como consequência o estabelecimento de uma nova finalidade pulsional, repercutindo de modos diferentes no que seria um homem e no que seria uma mulher, determinando, assim, a diferença entre os sexos. As alterações produzidas pela puberdade tornariam a tensão pulsional impossível de ser satisfeita apenas em sua vertente de ternura, como até então, exigindo também do sujeito a colocação em cena de uma tensão sensual, chamada às vezes por Freud também de corrente agressiva da pulsão. É nítido observar que algo da ordem de uma irrupção no campo pulsional exige um rearranjo dos modos de satisfação que afetam o corpo, não mais apaziguados por aquilo que Freud nomearia de escolhas narcísicas do objeto.

 

As pulsões sexuais encontram seus primeiros objetos apegando-se às satisfações das pulsões do ego. Assim, as primeiras satisfações sexuais são experimentadas em ligação com as funções de preservação do Eu. Contudo, na puberdade, não é mais possível sublimar a corrente erótica do amor; a via da sublimação não é mais suficiente para manter o desejo sexual acomodado a uma satisfação apenas pela corrente da ternura, e, forçando a barreira do recalque, este cobra seu preço.

 

Assim, podemos associar a queda dos semblantes e a impossibilidade da sublimação como dois elementos marcantes dessa irrupção da puberdade. Um real que não se acomoda mais às soluções até então encontradas pela criança.

 

Foi Lacan quem articulou semblante e real. Um significante, por si só, não significa nada, é um qualquer um, e não há relação natural entre as palavras e as coisas. O que está em jogo é a sua utilização da linguagem como laço, e, para tanto, é necessária a mediação de um discurso. A estabilidade de um discurso é o que vela o valor de crença dos sentidos com os quais construímos a realidade. Assim, para que algum efeito de discurso se produza, resultando numa amarração no campo do sentido, é necessária uma rede de semblantes, e que essa rede de semblantes determine um mais-de-gozar. É a rotina, a regularidade dessa rede, que assegura um sentido na relação entre o significante e o significado, estabilizando, assim, o campo semântico.

 

A puberdade rompe com a regularidade narcísica da criança, desvela o valor de crença da realidade na qual a criança se sustentava até então. O sujeito se vê embaraçado diante da invasão de um gozo que não se pode sublimar fora do discurso.

 

Assim, se a puberdade, como assinala Freud, convoca o sujeito a um movimento, diria eu dialético, de desligamento/religamento do Outro, podemos vislumbrar que, diante do declínio do pai, da inexistência do Outro, os efeitos de tal convocação em nossos dias são inegavelmente angustiantes.

 

O adolescente contemporâneo depara-se com uma realidade na qual os semblantes se multiplicaram, não mais organizados em torno de um Outro idealizado. O avanço da ciência e o declínio do sentido por esse produzido transformaram o campo da realidade e dos semblantes, até então articulados.

 

A Ciência, inaugurada por Galileu, afirmava-se como a escrita da natureza pela matemática. Entretanto, se descolou dessa mesma natureza, e as letras, com as quais a Ciência se escreve hoje, tocam um real que não se confunde mais com o que nos acostumamos a pensar como natural. As letras, assim isoladas, passaram a circular em uma identidade de si, não mais atreladas ao sonho da universalidade da natureza, mas em um circuito que tem sua própria lógica e que, atuando sobre os corpos, produz efeitos com os quais nos deparamos e vamos nos deparar cada vez mais, devido a um inevitável aumento de sua dominância no mundo.

 

Tal dominância tem consequências significativas sobre os discursos e, por conseguinte, sobre a cadeia de sentidos pelos quais ordenamos nossa experiência de realidade, nossos semblantes.

 

Aos efeitos do avanço da ciência e à pulverização do campo de sentido produzido pela tentativa de redução do real à lógica resultante da livre circulação das letras, devemos acrescentar os efeitos incidentes na economia de gozo do falasser, consequentes à aliança da ciência ao capital. Essa aliança interfere diretamente na relação desses com o corpo, pela produção de objetos de consumo, gadgets gerados a partir da oferta de um gozo que agora se faria possível pelas ofertas do mercado.

 

É nesse contexto que encontraremos muitos dos adolescentes que chegam aos serviços da chamada Saúde Mental. Invadidos por essa experiência estrangeira do gozo, convocados ao consumo e ao ato, os adolescentes trazem no corpo a novidade. Uma novidade que transborda e que lhes exige uma construção sintomática.

 

Como religar onde o Outro não existe?

 

Não são poucas as instituições que buscam restaurar, de forma moral, esse Outro que assim reaparece em sua dimensão superegoica.

 

A psicanálise aposta em um caminho em que se torne possível acolher esses corpos e a novidade que neles incide em sua dimensão singular. É preciso um tempo para a invenção do falasser e seu sintoma. Um tempo para que cada um, atravessado que é nos dois polos de sua causação, desarticulado do sentido e imerso na liquidez do gozo, possa recorrer a novas invenções sintomáticas que lhe permitam uma resposta singular, só sua, não universalizável, ao que ele é. Com isso, talvez ele inscreva em sua vida o algo próprio e inalienável de seu ser.

 


BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 285-288. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIII).
FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 118 – 228. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.VII).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em: 20 fev. 2016.

Henri Kaufmanner
Henri Kaufmanner. Psiquiatra, Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Coordenador do NIPS/IPSMMG. E-mail:Kaufmanner@gmail.com



Adolescência, O Que É?

ROBERTO ASSIS FERREIRA

 

NICOLETTA CECCOLI. AUTO-RETRATO.

 

Adolescência, o que é? foi o título que me foi sugerido. Tenho como proposta falar para aqueles que atendem no campo da saúde mas entendem que a psicanálise pode trazer contribuições importantes à sua prática.

 

Sinto-me à vontade em trazer alguma coisa do campo da psicanálise para a medicina. A medicina sempre pescou em outros campos do conhecimento, como exemplos: a causalidade infecciosa de diversas doenças – uma contribuição de Pasteur, que era um biólogo; a genética de Mendel, este era um monge e botânico; a farmacologia de Pauling, e por aí afora.

 

Voltando ao tema, vamos começar com a adolescência e a puberdade. Esses são conceitos diferentes, vêm de áreas diferentes do conhecimento, e distingui-los clareou bastante minha prática. O conceito de puberdade vem da biologia, da medicina, corresponde a um momento do desenvolvimento do organismo humano, quando acontecem transformações muito intensas, sobretudo no corpo. Freud (1901-1905) fala em metamorfoses da puberdade. Os processos biológicos da puberdade são universais, mesmo com particularidades, variações individuais. Há casos de puberdade tardia e precoce, há fenômenos que caem no campo da patologia. Em síntese, a puberdade é um conjunto de transformações físicas e hormonais que marcam o fim da infância. Não vou aprofundar essa questão.

 

Já o conceito de adolescência tem várias compreensões. O que se chama adolescência desperta o interesse das ciências humanas e sociais: da antropologia, da sociologia, da psicologia e da própria psicanálise. Para alguns, é uma fase do desenvolvimento humano, confundindo-se um pouco com o conceito de puberdade. Vamos trabalhar com algumas contribuições da psicanálise. Miller (2015), no texto “Em direção à adolescência”, considera a adolescência uma construção. Pode-se falar em construção social, com particularidades em diversas culturas.

 

A adolescência é um momento de dois grandes chamamentos. Há um chamado que vem do corpo, do próprio corpo e do corpo do outro; e um segundo, que vem do campo do Outro, do desejo do Outro. O que esse Outro quer de mim? Há uma imagem que vi, não sei se em Lacan: um mosquitinho olhando para um louva-a-deus ameaçador de boca aberta. O mosquitinho, a mercê do louva-a-deus, se interroga: o que ele quer de mim? É isso aí, o ser falante se angustia diante do desejo do Outro. Como responder a essa grande boca aberta?

 

Freud apontava para duas questões nesse momento da puberdade. A primeira, no campo da sexualidade, para a qual o sujeito nunca está preparado. A segunda, a separação, ou seja, o descolamento dos pais ou, ainda, falando de forma mais ampla, a separação do outro familiar. Essa separação só será possível se alguma coisa aconteceu no tempo da infância, se alguma coisa aconteceu no Édipo, se houve, como clareou Lacan, a entrada do Nome do Pai.

 

Alexandre Stevens (2004) entende a adolescência como sintoma da puberdade. Essa é uma boa aproximação clínica: pensar a adolescência como uma resposta à irrupção pubertária. O sujeito, nesse momento, inventa um modo de sobrevivência visando a essa difícil travessia.

 

Gosto de ilustrar com uma analogia: você está andando de ônibus, está em pé, sem lugar para se assentar, “no balanço pra lá e pra cá”, é preciso se segurar em algo, senão se vai ao chão. Isso chamo de sintoma, um segurador de ônibus, alguma coisa em que o sujeito se segura para enfrentar as atribulações da vida. O sintoma, para a psicanálise, não é propriamente sintoma de doença, embora possa ser. Não é um fenômeno universal nem apenas particular, é algo singular, cada um tem sua adolescência como seu sintoma. Portanto, a partir da psicanalise, podemos adotar a compreensão de que adolescência, para cada um, é singular. É alguma coisa que dá sustentação ao sujeito. A adolescência entendida como sintoma pode dar sustentação à travessia da infância para o mundo adulto, substituindo, em nossa época, os ritos de passagem de outras culturas. Essa é uma leitura possível das coisas, o que não impede de haver outras.

 

Em direção à adolescência

 

Miller (2015), no texto “Em direção a adolescência”, provoca e incita o campo freudiano a trabalhar sobre a adolescência. Propõe que se trate das questões da atualidade, mas aponta a importância dos conceitos básicos. Não há como aprofundar esse debate sem partir do estudo da própria criança, sem ir ao que Freud e muitos pós-freudianos elaboraram, chegando-se ao que se produz hoje. Está colocado o desafio, principalmente àqueles que se dedicam à clínica da adolescência.

 

Miller coloca que, para a psicanálise, há três questões centrais na adolescência. Como primeira, a saída da infância, momento que vem à tona com a puberdade. Aí é fundamental ler Freud (1901-1905), em especial seu texto “Metamorfoses da puberdade”, mas também estudar fora da psicanálise.

 

Como segunda, um tema bem atual, a diferenciação sexual. Como essa questão se coloca para o ser falante na infância e na adolescência? Já não se sabe mais o que é ser um homem ou uma mulher. Os semblantes estão confusos, as balizas simbólicas já não dão tanta sustentação à transmissão vertical: o Nome do Pai, o Ideal do eu, as insígnias do Outro. Isso leva os jovens na contemporaneidade a construir respostas com seus próprios recursos, usando a transmissão horizontal, a identificação com os pares, os modismos, as “comunidades de gozo”. Essa falta de referência estimula a experimentação. Cada um procura, pela própria experiência, o que é melhor para ele, o que lhe dá mais satisfação.

 

Um parêntesis: a medicina biotecnológica, resultante da aliança da ciência com o capitalismo, traz grandes avanços técnico-científicos, mas deixa um resto, que bate às portas da medicina. A clínica do adolescente é precursora dessas manifestações, na qual há resistência, de clínicos e de pediatras, ao atendimento de adolescentes. Pode-se listar formas de adoecer, atuações de risco, enfim, desafios à saúde: depressão, bipolaridade, anorexia, vícios em informática, inibições sexuais, toxicomania, violência e mortalidade por causas externas, etc., problemas pouco valorizados pela medicina há algumas décadas.

 

Como terceira, o que Miller chama de “a imiscuição do adulto na criança”, aí está em discussão o que ele chama, sem gostar da expressão, de “desenvolvimento da personalidade”, no qual se articulam conceitos como o eu ideal e o Ideal do eu, nesse momento púbere em que o narcisismo se reconfigura. Miller (1999), em outro lugar, comentando o Seminário 5 e referindo-se ao terceiro tempo do Édipo, faz diferenciação entre Supereu e Ideal do eu, duas funções que têm sido confundidas na psicanálise. Afirma que o Supereu suporta funções de proibição, por outro lado,

 

o Ideal do eu exerce sua função sobre o desejo e a normatividade sexual. Lacan diz: tipificação. É uma função que coloca o sujeito sobre o eixo do que deve fazer como homem ou como mulher. Todas as perguntas sobre a identificação feminina ou viril são questões que, na teoria psicanalítica, giram em torno do Ideal do eu, noção que Lacan teve prontamente como leitor de Freud (MILLER, 1999, p. 75).

 

Adolescência, um momento especial de encontro com o real.

 

Costuma-se colocar a adolescência como um momento de despertar. Há uma famosa peça teatral de Wedekind, do fim do séc. XIX, “O Despertar da Primavera”, que foi comentada por Freud e Lacan. A peça conta a história de jovens que viveram esses chamamentos da puberdade, a vivência da sexualidade numa época de grande repressão sexual. Desenrola-se uma tragédia: um jovem se suicida, uma garota engravida e morre ao provocar aborto, outro rapaz é salvo do chamado ao suicídio por um avatar do pai – “um cavaleiro mascarado”. Nesse momento especial da puberdade, o que leva ao despertar é o que na psicanálise lacaniana se chama de Real, um encontro com o real. Um encontro com real pode levar o sujeito a mudar de direção: construir um sintoma; fazer uma passagem ao ato, como um suicídio; desencadear uma psicose…

 

O que seria esse real que leva o sujeito a despertar? O Real não pode propriamente ser definido, mas é possível tentar passar dele alguma compreensão. O Real como “encontro faltoso”, um encontro com a falta, como está no seminário 11; “como impossível”, impossível de suportar; como “encontro traumático”, aquilo que não tem sentido, aquilo que escapa à simbolização, enfim, um encontro com o que desencadeia a angústia: aquilo que não engana!

 

Em algum momento, contingencial ou não, há encontro com o Real. Em especial na adolescência, o simbólico que se constrói na infância, muitas vezes não é capaz de dar conta das situações enfrentadas, constituindo-se respostas sintomáticas.

 

No mundo contemporâneo: qual a resposta à invasão pubertária?

 

Na contemporaneidade, a adolescência tem caráter cada vez mais particular, de família, de época, de camada social, de grupos sociais. Há tendência a um alongamento da adolescência tanto para baixo, quando meninos e meninas de nove anos se portam como adolescentes, quanto para cima, quando rapazes de 26 a 30 anos ainda se comportam como adolescentes – ainda estão estudando, morando com os pais, sem definição de uma profissão.

 

Uma dimensão fundamental de nossa época é o declínio da ordem simbólica, ou seja, o declínio do Nome do Pai. Como consequência, pode-se falar do hedonismo contemporâneo. Vive-se em uma sociedade de grande insatisfação, na qual há a ilusão hedonista de um gozo ilimitado, levando à busca contínua de objetos de consumo, gadgets de toda ordem lançados continuamente no mercado. Jacques-Alain Miller criou a expressão I < a (Ideais < objetos).

 

Miller (2015), no texto já comentado – “Em direção à adolescência” –, aponta para o que há de novo na adolescência e ressalta questões que vêm sendo estudadas por nossos colegas analistas. Entre elas, a referida procrastinação da adolescência, como esse tempo de separação dos pais e do laço familiar vem se alongando. Isso é comum nas camadas médias mais abastadas, nas quais predominam famílias pequenas e gregárias, associando-se às dificuldades de inserção no mercado, dificultando ocupar um lugar no mundo do trabalho. Em outro aspecto, há uma nova relação com o saber: este já é não é mais propriedade dos adultos, está facilmente acessível, a transmissão já é não tão vertical pelos pais e pelos professores, que serviam de modelos. Os modelos estão nos próprios pares. Vive-se também uma realidade imoral, degradada, banalizada, até certo ponto amoral. Por outro lado, pode-se falar em socialização dos sintomas, em modismos sintomáticos, em “comunidades” de gozo. Miller aponta para diversas consequências das mutações da ordem simbólicas, como o declínio do patriarcado, a destituição das tradições e o déficit do respeito – “respeitar e ser respeitado”. Por fim, alerta para um fenômeno que cresce na própria Europa e se antepõe ao discurso da ciência, uma outra tradição: o Islã.

 

Clínica da recusa: uma característica da adolescência

 

Há uma particularidade de importância na condução do tratamento de adolescentes. Pode-se falar de recusa ou de rechaço ao tratamento. Essa é uma questão central no trabalho clínico com as anoréxicas. Isso está nas anoréxicas, mas também está nos adolescentes. O adolescente, na maioria das vezes, não tem demanda própria. Às vezes há motivações médicas: febre, dor no estômago, cefaleia, a puberdade que ainda não começou. Querem tratar disso e pronto!

 

Acontece que as preocupações dos pais podem ser de outra ordem. Estes usam essas queixas, que permitem ao adolescente ir ao médico para que sejam abordadas outras questões. É preciso entender que essa é uma característica dessa clínica. Não há demanda pois não há transferência prévia, o adolescente não supõe no Outro um saber sobre suas questões. Claro que o adolescente pode “ser transferido” com o profissional com quem trata desde a infância, mas é uma transferência constituída de outra ordem. O que não indica sempre que essa transferência permita uma abordagem no campo específico da adolescência. Alguma manobra vai ser necessária ao profissional, é preciso algum manejo para que se constitua espaço para as questões próprias da adolescência.

 

Dependendo das questões, elas podem ser abordadas pelo próprio profissional, outras devem ser referenciadas a outro, como a um analista ou a um psicólogo. Em geral, não dá bons resultados receitar inicialmente um psicólogo; há resistências. Antes, é preciso permitir que a subjetividade do sujeito venha à tona, que algo surja nesse campo. Essa é minha experiência. E, para que alguma coisa surja da subjetividade, de queixas subjetivas, é preciso uma pitada de escuta, abrir uma pequena janela de escuta, como tem insistido a prof.ª Cristiane de Freitas Cunha (2014).

 

Há uma nomeação que aprendi, é um instrumento. Por exemplo: um médico, para permitir ao adolescente se deslocar ao trabalho de suas questões com outro profissional e abordar aquelas que realmente estão perturbando a sua vida e a da sua família, tem que se colocar no lugar de um “médico passador” (MILLER, 2012, p. 98). Alguém que permita a passagem de um campo ao outro.

 

É o que se aprende no trabalho com as anoréxicas e com os adolescentes. O médico sabe que o paciente tem anorexia, mas, para permitir a entrada de um analista, de um profissional ligado às questões que estão ali incutidas, tem que estar disposto a escutar, possibilitar que a subjetividade do paciente apareça.

 

Concluindo, a clínica do adolescente é uma clínica da recusa, na qual não há demanda própria para tratamento das questões subjetivas. Mesmo quando há algum laço transferencial, este pode se romper. O que compete a nós? Escutar o adolescente e talvez ir um pouco além, ajudá-lo a encontrar um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Essa é uma tarefa que se coloca para cada profissional da área da saúde, mesmo para aqueles que não vão assumir a condução do trabalho psicoterápico ou psicanalítico.

 

A inscrição e a não inscrição no campo do Outro

 

Ainda um último aspecto! Um grande desafio à adolescência: como conquistar um lugar no campo do Outro? A questão do sujeito “se inscrever” ou “não se inscrever” no campo do Outro. Hugo Freda (1996), no artigo “O adolescente freudiano”, aborda esse tema em um texto muito rico e delicado. É uma questão muito clínica, pois muitos adolescentes não conseguem sair da adolescência e ficam perdidos na vida. Por não encontrar esse lugar, não foram capazes de se inscrever nesse campo do Outro. Alguns desses jovens até construíram ideais, tinham expectativas, mas fracassaram e não conseguem fazer a virada, ou seja, retificar suas expectativas, se reescrever no campo do Outro, fazer novas amarrações. Hugo Freda entende a adolescência como esse momento em que se buscam e se constroem os caminhos para a inscrição no campo do Outro. Ele cita Freud como um exemplo bem-sucedido. Ele queria trazer uma contribuição ao saber humano e trouxe. Cita outros exemplos bem-sucedidos e alerta que se pode repertoriar sintomas e comportamentos diante da impossibilidade da inscrição: o suicídio, a toxicomania, os viciados em jogos, delinquentes e, enfim, formas bizarras de inscrição.

 

Por fim, uma palavra aos profissionais que se dedicam à adolescência: feliz do jovem que, em dificuldades, encontra uma referência confiável no mundo adulto, um avatar do pai, “um cavaleiro mascarado”, uma referência capaz de dizer sim, de escutá-lo e ajudá-lo a construir uma direção.

 

Não devemos esquecer que a adolescência é um período de trabalho, de desafios, de incertezas, de sintomas sociais, mas também é um dos momentos mais belos da vida, merecendo ser vivida intensamente.

 

 

 

[1] Seminário de abertura sobre adolescência do NIPPM – 1º semestre de 2016. Texto gravado e transcrito por Bianca Ferreira Rocha, reformulado pelo expositor.

BIBLIOGRAFIA
CUNHA, C.F. A janela da escuta. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREDA, H. O adolescente freudiano. In: Adolescência: o despertar/Kalimeros, EBP: Rio de Janeiro, Heloisa Caldas e Vera Pollo (Orgs) 1996.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: transformações da puberdade (1905), In: Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006 (Edição Standard Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.7).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia.
______. Perspectivas do Seminário 5 de Lacan: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999.
______. Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2012.
 STEVENS, A. Adolescência como sintoma da puberdade. Clínica do contemporâneo. Curinga, Belo Horizonte, n.20, p.27-39, 2004.
WEDEKIND, B. F. O despertar da primavera. Lisboa: Ed. Estampa, 1991.

Roberto Assis Ferreira
Roberto Assis Ferreira. Médico, Analista praticante, Doutor em Medicina, Prof. Emérito da UFMG, Membro EBP/AMP. robassisf@gmail.com



O Real Da Puberdade E A Saída Da Infância

MARGARET PIRES DO COUTO

FREDERICO BANDEIRA

Freud examina a puberdade no último dos Três ensaios, dando ênfase às metamorfoses que ela comporta. É a entrada na puberdade que anuncia o fim da infância, e, nesse contexto, Miller (2015) propõe que pensemos menos numa lógica evolutiva e mais numa topologia do corte. O novo emerge e agita esse corpo, que é desalojado da imagem ideal até então sustentada, exigindo um novo arranjo.

 

A experiência da psicanálise visa então a investigar esse momento e a permitir ao adolescente encontrar uma solução para esse novo que o agita.

 

O que seria esse real responsável pela metamorfose da puberdade? Como os jovens têm se arranjado com o novo que os acomete? Como a questão do sexo se inscreve para os jovens hoje diante de uma cultura que propõe não mais falar em diferença sexual? Como esse novo se inscreve e perturba o corpo? Quais arranjos esse falasser encontrará para inscrever esse corpo no discurso e na cultura?

 

1) O real da puberdade: o encontro com um gozo difícil de nomear

 

O real em jogo nas transformações do corpo, característico da puberdade, não pode ser reduzido a um real orgânico. O que se chama empuxo hormonal não deve ser entendido como um fenômeno exclusivamente físico, mas como um fenômeno de corpo. Corpo esse tomado por um gozo estrangeiro, não significantizado pela palavra e, por isso, experimentado como um gozo fora do corpo.

 

A irrupção de gozo constitui a emergência de alguma coisa diante da qual as palavras falham. Na puberdade, o sujeito depara-se com essa parte de desconhecido, em face da qual as palavras desfalecem, a ponto de se chocarem com um impossível de dizer, agitando tanto os corpos como o pensamento e tornando difícil sua tradução em palavras (LACADEÉ, 2011, p. 74).

 

O surgimento desse novo produz o que Lacan chamou de uma falha de saber no real. O que significa isso? Para os animais, o instinto é um saber no real que faz com que não haja nenhum problema quanto à relação sexual. Para o ser falante, esse saber no real não existe. Macho e fêmea não sabem o que fazer juntos e precisam da intervenção do Outro, da palavra do Outro, do discurso. Privado da solução animal do instinto, mas embaraçado com a pulsão em razão de sua inserção na linguagem, o sujeito, por razões de estrutura, encontra esse buraco, esse vazio na relação entre um homem e uma mulher. Trata-se, portanto, do encontro com a não relação sexual e da inexistência de saber no real quanto ao sexo.

 

O encontro com esse real, com esse gozo, traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem, com a língua, e pode levar tanto ao despertar quanto ao exílio.

 

O despertar do real da sexualidade, em vez de viabilizar a relação sexual, como se poderia esperar, pode suscitar o gozo das fantasias que afastam tal possibilidade. O despertar dos sonhos que os meninos adolescentes vão ter que enfrentar é malsucedido. No lugar de se relacionar com o Outro, ele se exila ainda mais em sua solidão (LACADÉE, 2011, p. 75).

 

Esse sentimento do despertar e do exílio do adolescente, que se articula com o encontro sexual, desterritorializa o sujeito de sua infância e antecipa a separação de sua família, de sua casa e de seus pais.

 

A queda dos semblantes paternos e das identificações fálicas

 

Freud, em seu texto “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar” (1914), apresenta a tarefa mais essencial do adolescente: separar-se da autoridade de seus pais como o desligamento de seu primeiro ideal. Freud afirma: “Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai” (1914, p. 288). Desligar-se do pai implica um trabalho de separação simbólica que, por sua vez, não deve ser entendido, como assinala Hugo Freda (1996), como “fazer sem o pai”. Sem pai, não há desligamento. O desligamento desse primeiro ideal permitirá ao adolescente encontrar outros modos de inscrição na cultura.

 

A identificação constituída como ideal do eu, produzida na saída do Édipo, faz traço e serve de base para que o sujeito se veja digno “de ser amado, e até amável”, permitindo-lhe ter uma ideia de si e orientar sua existência. O ideal do eu é o vetor sobre o qual a identificação constituinte se apoia. O ideal do eu equivale ao ponto de basta que estabiliza o sentimento de vida, que dá ao sujeito seu lugar no Outro (LACADÉE, 2011, p. 22).

 

Com a chegada do real da puberdade, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava a identificação constituinte de seu ser e o sentimento de vida. Esse ponto de apoio vacila e o sujeito se confronta com algo que, ao fazer “furo no real”, o reenvia a um vazio. Há, portanto, certo despedaçamento do imaginário com o surgimento desse real. Do lado da identificação simbólica, o sujeito precisará operar uma separação das figuras de seus pais e modular de outra forma seus ideais, de outra forma que não seja a modulação pela simples identificação paterna.

 

Desse modo, para que o adolescente avance para além da cerca simbólica da família, para que se abra para o mundo e afronte o inédito, ele precisará se servir dos traços e das experiências infantis à sua disposição, que servirão de ferramentas nessa trilha (FOCCHI, 2009).

 

A adolescência é, assim, essa delicada transição em que todo sujeito se encontra ao se separar do Outro. É o momento em que se separa do significante mestre ideal, quando é o caso, que até então lhe serviu de sustentação.

 

Em seu texto “Contribuições para discussão acerca do suicídio (1910)”, também interessante para pensar as questões dos adolescentes, Freud ressalta que esse é o momento da vida em que há o afrouxamento dos laços familiares, e, por isso, trata-se de momento oportuno para atos em que o sujeito se coloca em risco. Freud acusa a escola de não cumprir, nesse momento, uma função que lhe caberia: “não impelir os jovens ao suicídio” (FREUD, 1910, p. 217). A escola, como substituta da família, poderia enlaçar o jovem com a vida por meio da oferta de um saber que fosse transmitido mediante um desejo vivo, ancorado pelos educadores. O adolescente poderia encontrar ancoragens identificatórias no espaço escolar, que lhe serviriam de bússola nesse momento difícil da existência.

 

Damasia Freda, em El adolescente actual (2015), ressalta que, na ausência do ideal regulador, encontramos como sintoma contemporâneo entre os adolescentes a desorientação. Nesse sentido, é preciso que o tratamento analítico permita ao jovem encontrar algo, algum significante que possa servir de orientador na existência. Em seu livro, a autora cita a pesquisa que ficou conhecida como os “Nem-Nem”, também realizada no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas. Em 2013, a referida Fundação divulgou um dado alarmante: o Brasil tem hoje 1,5 milhão de jovens com idade entre 19 e 24 anos sem trabalho e fora da escola. Em face da desorientação promovida pelo declínio do ideal, os jovens aderem, com frequência, a discursos tanto religiosos como políticos de caráter totalitário, sem nenhuma dialética.

 

A mesma autora, ao citar os trabalhos de Hélène Deltombe, aponta que a adolescência se converte em uma etapa em que cada um busca seus apoios – sobretudo por meio de seus semelhantes – em identificações recíprocas que fundam modos de vida. Os sintomas podem se articular ao laço social e se converter em epidemias, tais como o alcoolismo, a toxicomania e a delinquência, acentuando seu traço de rechaço ao Outro. Trata-se de grupos em que se apaga a alteridade e que, ao permanecerem numa identificação horizontal, ganham uma consistência imaginária, que conduz à segregação.

 

2) Corpo e sexuação

 

O encontro com o real da puberdade, com aquilo que faz furo, perturba a vivência íntima do corpo e traz inquietações. O corpo torna-se o lugar onde se atualizam os problemas da identidade e do gozo indizível.

 

Algo agita o corpo, e, com frequência, o adolescente percebe as modificações de seu corpo como sendo outro corpo. O enlace da imagem do corpo com o corpo pulsional, que até então sustentava o corpo simbólico da criança, se modifica. O corpo tomado como semblante fálico, ou seja, como substituto do que falta à mulher e como equivalente do desejo do Outro, se encontra perturbado pela irrupção do gozo, fazendo com que o adolescente perca o suporte imaginário. Opera-se então uma desconexão entre seu ser de criança e seu ser de homem ou de mulher, que tinha sido constituído a partir do espelho do Outro, do desejo desse Outro. Lacadée (2011) sugere a noção do surgimento de uma mancha negra no campo dessa imagem, mancha essa que muito angustia o sujeito. Podem surgir, nesses momentos, os fenômenos mais diversos, como despersonalização, sensações de falta de limite, errâncias e produções de marcas no corpo, que visam a limitar e a localizar o gozo.

 

A ausência de uma resposta acabada e conclusiva sobre o seu ser sexuado no simbólico ganha, para o adolescente, valor de colocação à prova em relação ao real. Ele precisará agora subjetivar esse novo modo de ser. Os meninos e as meninas já não sabem o que fazer e vão procurar encontrá-lo no discurso.

 

A metamorfose que a puberdade produz é, assim, uma nova e radical distinção entre o menino e a menina. Até então, bastava que a distinção entre eles fosse uma distinção significante. Agora se trata de como se diferenciar a partir da relação com o outro sexo. É assim que a diferença menino e menina se extrai da diferença na linguagem e da diferença imaginária igual/não igual para se transformar numa diferença difícil para o sujeito de suportar e de subjetivar. O sexo deixa de ser apenas um fato de semblante, enquanto significante, e encontra o gozo sexual, que se destaca do corpo e se introduz entre os dois sexos. Os dois sexos se diferenciam por sua relação com o gozo sexual. Esse gozo fora do corpo é novo em relação às satisfações sexuais da infância, ligadas ao corpo e aos objetos pulsionais. Durante a infância, os semblantes entre os sexos estão sustentados e regulados pela autoridade dos pais. Mas, na puberdade, o real, esse novo que invade, rompe com essa dimensão do semblante, e o sujeito terá que se virar com isso (ROY, 2009).

 

O significante fálico é aquele que poderá operar no inconsciente como regulador do gozo, distribuindo o gozo de acordo com a diferença dos sexos. Falar de sexuação é, de alguma maneira, assumir inscrever-se de acordo com o significante fálico. A sexuação dependerá do encontro do corpo com o significante fálico que opera a significantização tanto da diferença sexual como do gozo, que o parasita e o agita (BRODSKY, 2003).

 

Quando esse significante fálico está ausente ou opera de forma muito precária, quais são as consequências para o campo da sexuação? De que tipo de artifício o sujeito poderá lançar mão na construção das identidades sexuais? Qual é o efeito hoje do apagamento da exceção e da diferença – presente na máxima do “todos iguais”, inclusive dentro da política de igualdade gêneros – para a sexuação?

 

Algumas respostas contemporâneas dos adolescentes ao real da puberdade

 

A adolescência é um dos momentos em que mais do que nunca a não relação sexual reaparece para o sujeito. Ao encontrar-se com a inexistência do Outro, o adolescente produzirá sua resposta sintomática. Trata-se, por conseguinte, de um arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com o mundo e sua relação com o gozo.

 

Stevens (2013) enumera uma série de possíveis respostas, por ele nomeadas intomáticas, que os adolescentes podem construir diante do real da puberdade. São respostas com o saber: quando eles se tornam apaixonados pela pesquisa e esse saber sobre o mundo torna-se um substituto da falta de saber sobre o sexual. Respostas em relação às identificações: os sujeitos inventam identificações imaginárias ou simbólicas, fundamento dos grupos de adolescentes. E uma terceira série de respostas em relação à fantasia que falha: os atos, sejam as passagens ao ato, sejam os acting-out. Quando falha o sintoma e surge o real sem borda, temos os atos como resposta.

 

Em todas essas respostas está em jogo o Outro, são respostas que jogam com o Outro. Na contemporaneidade, temos outra lógica: dispensar o Outro, sem dele se servir. Não se trata, como afirma Stevens (2013), do pai como sintoma, mas, cada vez mais, da dificuldade de responder com o pai, na medida em que há um declínio da função paterna. Quais seriam os efeitos disso sobre a adolescência?

 

Para Miller (2015), é sobre os adolescentes que se fazem sentir, com maior intensidade, os efeitos da ordem simbólica em mutação. A principal mutação diz respeito ao declínio da função paterna, que se degradou. Os registros tradicionais que ensinavam como ser um homem ou uma mulher não existem mais. A transmissão do saber e as maneiras de fazer escapam à voz do pai.

 

Outro efeito dessa mutação simbólica destacado por Miller se dá em relação ao saber. Miller o nomeia autoerótica do saber. Segundo ele, a incidência do mundo virtual faz com que o saber, antes depositado nos adultos, ou seja, no Outro, esteja agora no bolso, facilmente disponível, dispensando a mediação desse Outro. Antes, o saber era um objeto que se precisava buscar no Outro, era preciso extraí-lo do Outro, o que necessitava uma relação com o desejo desse Outro.

 

Na relação com o corpo, também encontramos soluções que revelam a presença do opaco e do indizível, presenças que resistem à subordinação da palavra e são portadoras de um tumulto pulsional, que pode conduzir ao pior. Por meio do pôr-se em risco, algo do gozo do corpo pede para ser limitado e regulado por uma marca simbólica, uma vez que a ordem da castração não opera. Por não receber essa marca do Outro simbólico, o adolescente a providencia sozinho.

 

Como ensina Lacadée (2011), o jovem trata e esfola seu corpo, cuida dele e o maltrata, ama-o e odeia-o com intensidade variável, ligada à sua história pessoal e à capacidade de seu entorno de lhe oferecer os limites necessários para refrear o gozo. Quando os limites não comparecem, o jovem os busca na superfície desse corpo. Ele testa os limites físicos, colocá-los em jogo para senti-los e apreendê-los, a fim de que possam conter o sentimento de identidade. Produz “marcas” corporais, criando uma espécie de nova pele, por meio das tatuagens e piercings, por exemplo, mas que podem chegar a ferimentos corporais deliberados: incisões, escarificações, etc. Outros podem fazer dos objetos mais diversos, inclusive os tecnológicos, uma extensão do próprio corpo e utilizá-los como modos de amarração.

 

Os adolescentes contemporâneos se apresentam frequentemente sob o signo do excesso. A demanda do Outro é recebida como um imperativo tirânico, e, por outro lado, os produtos de consumo encontram-se na lógica da adição (ROY, 2009). Eles ficam submetidos a uma ordem de ferro e são levados a escolher um modo de gozo que evite a questão sexual, um gozo-fora-do-sexo. A toxicomonia e também a anorexia-bulimia jogam com o consumo, com o vazio e com o pleno, mas ambas envolvem um gozo autista, ou seja, que pode ser obtido sozinho, sem o Outro.

 

Finalizo com uma indicação que extraio do texto de Hugo Freda (1996): se a passagem da infância à adolescência desaloja o sujeito de sua língua e de seu corpo infantil, é preciso então que ele possa encontrar novos modos de inscrição no mundo e de re-constituição de seu Outro.

 


BIBLIOGRAFIA
BRODSKY, G. “A escolha do sexo”. In: Clique. O sexo e seus furos, n.1. Belo Horizonte: IPSM-MG, 2003, p. 30-35.
FREDA, H. “O adolescente freudiano”. In: RIBEIRO, H. C. e POLLO, V. (Orgs.). Adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1996, p. 21-30.
FREDA, D. A. El adolescente actual. Nociones clinicas. San Martín: UNSAM, Fundación CIPAC, 2015.
FREUD, S. (1905/1990). “As transformações da puberdade”. In: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Obras completas de Sigmund Freud). Rio de Janeiro: Imago, vol. VII.
______. (1910/1990) “Contribuições para uma discussão acerca do suicídio”. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XI, p.217-218.
 ______. (1914/1990) “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar”. In: Idem. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII, p. 281-288
FOCCHI, M. “A adolescência como abertura do possível”. In: Mental, nº. 23. Quel avenir pour l’adolescence?, Paris, diffusion Seiul, dezembro de 2009, p. 29-40.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio. Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 557-559.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 20 de mai. 2016.
______. “Prólogo para Damasia”. In: El adolescente actual. Nociones clinicas.
San Martín: UNSAM, Fundación CIPAC, 2015.
ROY, D. “Proteção da adolescência”. In: Mental, nº. 23. Quel avenir pour l’adolescence?, Paris, diffusion Seiul, dezembro de 2009, p. 51-54.
STEVENS, A. “Quando a adolescência se prolonga”. In: Opção Lacaniana online, Ano 4, número 11, Junho 2013, p. 11-15.

Margaret Pires Do Couto
Margaret Pires Do Couto. Psicanalista, Membro da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. mpcouto@uol.com.br



Filiação: Demissão Da Autoridade, Desamparo Do Adolescente

MÕNICA CAMPOS SILVA

ATIVIDADE DE CHRISTINA FORNACIARI, “ESCULTURAS DE 1 MINUTO”. JOVEM DO PROGRAMA CAPUT

Para além do declínio do pai, como deixar de se servir dele? Embora estejamos contemporaneamente diante do enfraquecimento do Nome do Pai, a paternidade continua como uma função reguladora da tirania. Nessa medida, quando utilizamos o termo desfiliação, não é de qualquer ruptura que se trata, mas a da filiação, seja pelas ações processuais, seja pelo afastamento permeado pela revelação do fim do afeto.

 

Com sua intervenção “Em direção à adolescência”, Miller (2015) auxilia pensar os efeitos de uma desfiliação quando aponta que a adolescência é uma construção. Os recursos psíquicos necessários para tal construção estão também em como o sujeito nomeia sua família e em como as funções são estabelecidas, bem como no que essa constituição regula ou em como faz o empuxo à tirania. Assim, ao pensarmos na desfiliação, do que falamos? De um desenlaçamento, na medida em que o sentido que a função paterna possibilita ao gozo se ofusca, passando a não mais oferecer o apaziguamento, antes regulador.

 

Uma breve colocação sobre o pai em Freud e Lacan é necessária, visando a sustentar o que seriam os efeitos da desfiliação, ou seja, os efeitos subjetivos da judicialização do fim do compromisso parental.

 

Este tema conduz a duas vertentes para pensar a incidência do pai: a subjetivação pelo adulto do que é ser pai, e, o mais importante, aquela da criança para quem o pai funciona. Dessa maneira, também a judicialização da paternidade, propriamente dita, leva-nos a uma questão própria à psicanálise e melhor formalizada por Lacan – “o que é ser um pai?”. De início, na psicanálise, a preponderância do pai como função interditora relaciona-se à época freudiana, a lei da interdição do incesto é a condição do desejo. Não existe “acesso ao sujeito freudiano que não implique o pai como função chave, tanto por sua presença como por sua ausência” (FRYD, 2005).

 

Mesmo antes de utilizar a construção sobre o complexo de Édipo, em um artigo de 1906, intitulado “Romance familiar”, Freud demonstra que, para a criança, os pais são fonte de autoridade e conhecimento, o que a faz desejar igualar-se a eles. Em seu crescimento, a criança torna-se crítica e constata ser negligenciada em termos de amor pelos pais, ou seja, constrói uma fantasia, um mito próprio, que visa a responder sobre de onde vem e qual é seu lugar para os pais. O pai entra como suporte das identificações com as quais avança o sujeito, sendo também quem aponta a mãe como objeto desejável ao cifrá-lo com uma proibição. Em “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924) e em “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” (1925), Freud vai atentar para o fato de como a criança, diante de uma gama extensa de possibilidades em suas descobertas, depreende da sua relação com o pai, uma orientação que regule e ordene o modo como a sexualidade afeta seu corpo e suas relações na família e na sociedade.

 

Ao seguirmos a construção freudiana sobre o pai notamos que, a partir do momento em que Freud constatou o lugar do pai como o do interdito do incesto na economia psíquica, este ganha o lugar de alicerce da construção tanto do edifício social quanto do religioso, ficando estabelecida a concepção de Lei articulada ao pai. Este último, como uma construção mítica: morto como ser, conservado como significante. Nesse sentido, Freud dá ao pai o estatuto de função.

 

Para Lacan, o pai é o que introduz a castração, inicialmente, de um modo simbólico, como pai morto, e, posteriormente, como pai vivo, pela via de consequência de seu gozo representando e veiculando o interdito e vetorizando o desejo. Ao longo da obra de Lacan, há modificações sobre a noção de Pai. Partimos de um pai como sustentação da ordem simbólica, como fundamento do laço social reduzido a um símbolo até chegarmos à sua função de sinthoma, como pai vivo, múltiplo das “exceções”, a lei.

 

Em seu seminário 4, A relação de Objeto, Lacan nota que

 

se a castração merece efetivamente ser isolada por um nome na história do sujeito, ela está sempre ligada à incidência, à intervenção, do pai real. Ela pode igualmente ser marcada de uma maneira profunda, e profundamente desequilibrada, pela ausência do pai real. Essa atipia quando ocorre, exige então a substituição do pai real por alguma coisa, o que é profundamente neurotizante (LACAN, 1995, p.,180).

 

Após um salto, no final dos anos 60, em seu seminário De um Outro ao outro (1968-1969/ 2006), Lacan ratifica que o fato de não se ter certeza de quem é o pai é que está na essência e na função do Pai como Nome. É importante destacar que, nesse seminário, Lacan faz clara alusão à problematização da entrada da ciência no campo da paternidade:

 

A essência e a função do pai como Nome, como eixo do discurso, decorre precisamente de que afinal, nunca se pode saber quem é o pai. […]. Aliás, é absolutamente certo que a introdução da pesquisa biológica da paternidade não pode, de forma alguma, deixar de ter incidência na função do Nome-do-Pai (p. 149-150).

 

Embora Lacan já previsse a entrada da ciência no campo subjetivo, ele diz de uma incidência na função e não de um desmoronamento do Nome-do-Pai. Nesse sentido, Lacan continua servindo-se do pai, enquanto função, mesmo ao pluralizá-lo, dando a ele o estatuto de ferramenta da qual o sujeito pode se servir. Lacan marca que é por se conservar como “simbólico que o Nome-do-Pai é o eixo em torno do qual gira todo um campo da subjetividade” (p. 150). Assim, podemos arriscar que, mesmo a ciência se apresentando como forma de certificação de quem é o pai, ele permanece sendo essencialmente um desconhecido, sendo o que não é ofertado pela ciência e ratificado pela justiça, um conhecimento no real.

 

Em O avesso da psicanálise, Lacan insiste que a questão do pai não pode ser localizada pela ciência. Do pai real, que de alguma maneira efetiva a castração, a ciência não dá conta. É o ponto de incerteza que exige a nomeação do pai, sendo a construção da realidade psíquica ligada mais à função paterna do que ao biológico. O Nome-do-Pai é presente e constitutivo do sujeito como semidito, a falha fazendo parte do Nome-do-Pai.

 

No final de seu ensino, o Nome-do-Pai deixa de ser a garantia e passa a operar a partir de uma lacuna, sendo o que comportará um lugar para a causa do desejo, para o singular.

 

A escolha de um gozo e não de outro, daquele que é a causa do desejo por uma mulher e não do que está ligado à imposição da disciplina ou à aplicação da lei é que possibilitará a inscrição da marca paterna (ZENONI, 2007, p. 20).

 

Não se trata mais do universal da lei, mas do “um por um” dos sujeitos que se dizem pais, ou seja, da exceção que qualquer um pode fazer para que a função da exceção se torne modelo (LACAN, 1975).

 

Podemos concluir, a partir de Freud e Lacan, que a função do Nome do Pai responde a um uso prático, podendo-se dela prescindir com a condição de dela nos servirmos. Para Phillippe Lacadée,

 

(…) o pai é aquele que permite apreender a rotina que faz coincidir o significante e o significado. Por isso, é melhor que uma criança tenha acesso a um homem que lhe permita calcular, sob sua presença, a função essencial para todo o ser humano que é a invenção, uma vez que o pai é a invenção do sujeito (2006, p. 54).

 

Entretanto, se é no momento da adolescência que o sujeito precisa se descolar da autoridade parental, como fazer quando a sustentação necessária para essa transição se desfaz? Quando, diante da lei, a referência paterna é destituída? Quando o operador da função a abandona? Observamos que os endereçamentos após a desfiliação, da ruptura de promessa, ganham cores mais intensas. Os efeitos para esses sujeitos se apresentam mais devastadores, mais ainda na adolescência.

 

É no tribunal de família que chegam as demandas ao judiciário para se abdicar do lugar de pai. Escutar esses casos auxilia na busca por entender por que esse pai, por vezes figura viva, ao se demitir da paternidade, provoca profunda desregulação. Nessas situações, o supereu caprichoso viria ocupar esse lugar da função, transformando-se em tirania para esse sujeito? A pergunta se faz a partir da verificação de que, na maioria das vezes, há uma solução pela via de um tamponamento, tirânico, da questão. Há algo na desfiliação que abala profundamente a relação lei/desejo, tornando a vida exigente (imperiosa), e vemos muitas vezes impotentes, como as sentenças, medidas de proteção ou responsabilidade no campo do direito que não restabelecem a ordem e uma orientação para a subjetividade.

 

Em termos de efeitos subjetivos, notamos produzir nos jovens o que Miller (2015) aponta em seu texto, ou seja, um prolongamento, ou mesmo uma fixação da adolescência, como real, que não cessa de não se escrever, mas também, em alguns casos, diante do inassimilável, produz certa antecipação da posição adulta na criança e no adolescente. Para Lacan, uma das consequências da demissão do pai é que o significante serve mais ao gozo do que à comunicação. Assim, se o nome do pai é aquele que tem “as ferramentas necessárias à bricolagem da vida, ou ao menos que faz seu filho acreditar nisso” (LACADÉE, 2006, p. 56), por sua vez, a desfiliação expõe o insuportável, ”por ter revelado um buraco na significação de seu ser no Campo do Outro (Idem)”. É como se a nomeação simbólica vacilasse, ficando o sujeito à deriva de um puro real, irredutível ao efeito de sentido. E ainda que o pater incertus est, ao tornar-se pater est, tenha em si a certeza sobre a paternidade, incide sobre a ficção construída pelo sujeito. Dessa forma, na desfiliação,

 

o filho tem acesso direto a um pai que não sustenta mais a função paterna, tornando-se uma pessoa anônima, humilhando o filho que disso se envergonha. O pai não está mais ali para velar o objeto real, dando um nome ao real, ao contrário, não há mais ninguém para introduzir o filho em uma dívida simbólica devida à função do Nome do Pai (Idem).

 

A ruptura abrupta de uma história constitutiva pode deixar o sujeito, frente a um real, sem recurso. A prática institucional revela-nos que o efeito de uma destituição paterna na subjetividade do sujeito permite, ainda assim, a construção de uma saída, fazendo uso do pai. Contudo, um mal-estar, um impossível, se coloca, pois se o direito pode instaurar ou desinstaurar a paternidade do ponto de vista legal, na subjetividade, ao contrário, não se pode inscrever ou desinscrever o pai. A legalidade ou a prova pericial podem interferir drasticamente na vida de um sujeito, colocando em teste os recursos que ele articulará para encontrar um novo nome, uma nova resposta.

 

Na prática judiciária, frente aos casos que nos chegam, podemos perceber que a justiça, em certa medida, ao responder as ações, tenta demonstrar que, mesmo no judiciário, campo da lei, é preciso passar pelas regras que constituem o mundo humano, bem como por uma transmissão, ou seja, que algo da castração, do interdito, esteja presente. Para a psicanálise, o sujeito é constituído a partir do lugar que ocupa na relação pai e mãe. O direito, ao tentar regular aquilo que escapa, vai buscar modos de provar e estabelecer o que são e o que não são pai e mãe. Isso não só é difícil como impossível, localizando nesse ponto a dificuldade para tratar os casos nos quais se demanda, de algum modo, a judicialização da parentalidade em geral.

 

É certo que uma regulação é necessária e que a função do Estado é buscar oferecer o maior ou melhor interesse para a “pessoa em desenvolvimento”, conforme preconiza o ECA, tentando, inclusive, manter a filiação. Contudo, podemos perceber que o sentenciamento, por si só, não regula os sujeitos, e, como consequência, não promove mudanças significativas ou efeitos que beneficiem os jovens em questão. Pois é a própria impotência do sujeito para lidar com o que se apresenta, bem como para que essa intervenção do outro tenha efeitos, o que está em jogo. O dado externo, ou seja, a sentença, não regula o modo como o sujeito responde.

 

A problemática da filiação/desfiliação lançada no campo do direito alcança a construção ficcional realizada pelo sujeito, fazendo-nos buscar entender qual lugar ocupa a família para o sujeito. Mais além de seu aspecto social e seu percurso histórico, chegando à diversidade do que podemos chamar de família contemporaneamente, consideramos que, do ponto de vista psíquico, ela é a substituição do biológico pelo simbólico. De outro modo, na psicanálise, a família distingue a dimensão humana da condição biológica na medida em que a família é o que o sujeito nomeia, enquanto função, como pai e mãe (LAURENT, 2008). Nesse sentido, não há prova pericial e decisão judicial que por si só restitua ou destitua um pai. Uma criança, como o resto do encontro entre a causa de um desejo e um sintoma, é marcada por essa equação. Ela é esse fruto. Assim, os lugares de pai e mãe são inelimináveis, e a marca que deixam é o sujeito – não pode ser suspensa.

 

De tal modo, diante da casuística, buscamos apreender em que a presença de um homem, com seu investimento, se associa à função paterna e sobre as consequências subjetivas de um desaparecimento abrupto dessa figura, ou seja, quando há uma ruptura dos laços e do investimento estabelecidos concretamente. Entretanto, é possível antever que o sujeito filho não fica impune; há um abalo em sua crença sobre o semblante, sobre a ficção que construiu para seu ser a partir da função paterna.

 

Vinhetas práticas:

 

Uma criança é criada por seu pai até a entrada na adolescência. Após a separação do casal, o pai descobre que a criança não é sua. No que se refere à criança, a partir do resultado do DNA, ela perde a posição privilegiada no desejo desse pai e passa a ter acesso à sua raiva, que a humilha e exclui. A criança vive certa perturbação, se desorienta, respondendo com seu silêncio. Em um atendimento, a criança fala: “me chamam de bastardo. Não sei o que significa isso direito, mas tem a ver com o fato do meu pai não querer me ver”.

 

Em seu seminário De um Outro ao outro, Lacan aponta que o mais importante para a criança é entender como o saber, o gozo e o objeto a lhe foram oferecidos pela linguagem, ou seja, que aquilo que lhe foi oferecido seja sustentado pelo desejo de um pai e de uma mãe. Como fazer valer uma solução própria do sujeito, uma invenção diante do real fora de sentido que, nesse caso, advém do exame de DNA, resultando em uma desfiliação abrupta? Essa criança terá que decidir se e como responder a isso, tomando o ponto de vista de que há aquilo que não mudará. Embora a sentença judicial mantenha a paternidade do ponto de vista legal, há claramente a retirada desse pai de sua vida. Fica a impermeabilidade do DNA e, como consequência, esse sujeito faz uma interrupção na relação com o saber, e uma importante debilidade se instala.

 

Em outro caso, com percurso semelhante ao primeiro, o adolescente passa a se intoxicar e, em pouco tempo, morre de overdose. É possível perceber que se trata de uma revelação que faz cair a ficção, tendo como efeito de um saber absoluto que não deixaria lacuna para uma saída subjetiva.

 

Em outra situação, um jovem, ótimo aluno, com boas aspirações profissionais, é interpelado por seu pai que lhe revela, subitamente, não sê-lo. O genitor comunica que buscará a justiça para solicitar a retirada do registro paterno da certidão de nascimento, bem como para a suspensão do pagamento da pensão alimentícia, propondo que, apesar disso, o garoto continuasse a considerá-lo pai. Diante desse contexto, o adolescente passa a ter dificuldades na escola, desinteressando-se por ela e pela futura profissão. Inicia uma relação de amizade com o traficante da região, se aliando a este e indo vê-lo todos os dias, embora não seja usuário de drogas. Não sabe bem por que vai, mas é lá que quer estar. A resposta desse adolescente evidencia o engessamento e a devastação produzida.

 

O que a ruptura de promessa provocou? Parece-me que, após a perplexidade, com o fim da crença e tomados pela pulsão – já que o que regulava cai –, esses sujeitos buscam responder. A crença no Outro fica abalada, o real que aí aparece é inicialmente maciço e sem borda. Aparece, como comenta Miller, “uma realidade imoral, sem dialética e sem compromisso”[i].

 

Uma última casuística de demissão paterna chama a atenção: após a separação do casal, apesar de não haver obstáculos para a convivência paterno-filial, ocorre um distanciamento radical do pai. A judicialização, solução do filho para seu desamparo, nesse caso intitulado juridicamente de abandono afetivo, pouco ou nenhum efeito produziu na relação com seu genitor, mesmo que no nível das obrigações legais este não se ausentasse. Assim, fica a pergunta: teria acontecido uma “desadoção[ii]”, uma ruptura de promessa? A consequência maior para esse filho é uma desorientação, à qual busca dar tratamento pela Lei.

 

Diante das vinhetas apresentadas, alcançamos que, no mundo humano, diferente da natureza, um filho, biológico ou não, terá sempre que ser adotado, ou seja, terá que haver um investimento, um desejo que não seja anônimo, para que ali se constitua um sujeito.

 

A prática analítica permite perceber a importância do uso da ferramenta pai e como, apesar do sofrimento e do abandono iniciais, as demandas que se apresentam, principalmente dos filhos, vão ao viés de uma solução que os amparem. É o uso que cada um pode fazer da função paterna que orientará a construção de uma saída própria. Assim, podemos escutar a incompreensão e a desorientação quando verbalizam suas histórias e o anseio por uma resolução rápida. Ante os casos, é possível observar que a operação realizada pela função paterna não é passível de ser anulada, mas o desaparecimento da presença do pai tem efeitos para a criança e para o adolescente. Mesmo que tenham recursos simbólicos suficientes, isso não dá garantias de que as saídas serão tranquilas. Ao contrário, podemos ver, em nossa prática, que as saídas podem ser mortíferas. Nessa medida, o que podemos extrair é que não há intervenção do direito que altere o sujeito constituído. Entretanto, essas intervenções podem alterar o modo como o sujeito vinha lidando com a vida, com as faltas, com sua própria inscrição. Nos casos apresentados, vemos a constante em que os adolescentes são retirados do lugar de objeto de desejo e lançados para o lugar de dejeto, sem que qualquer tratamento seja dado à responsabilidade que cabe aos responsáveis pelo filho nessa situação.

 

É importante criar as condições para que cada um possa falar sobre seu lugar em sua história, permitindo uma responsabilização, principalmente dos adolescentes. Se o sujeito não aparece no enunciado, é preciso fazer valer a enunciação e auxiliá-lo para que ele se aproprie dela. Desse modo, permitir que uma elaboração possa ser feita não é encontrar uma resposta adequada, é muito mais suportar o que não encontra uma adequação. É sustentar que é possível uma nova saída que seja digna para o próprio sujeito, no sentido de sua responsabilidade, com contornos possíveis, e não um engessamento que não comporte nada do que é próprio ao sujeito.

 

[1] MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia.
[1] O termo “desadoção”, como o de desfiliação, é aqui utilizado para indagar o aspecto do desejo, da singularidade que deixa de existir.

 


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Mõnica Campos Silva
Mônica Campos Silva. Psicóloga, psicanalista, psicóloga judicial do TJMG, mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG. E-mail: monica.camposilva@gmail.com