O Real Da Puberdade E A Saída Da Infância

MARGARET PIRES DO COUTO

FREDERICO BANDEIRA

Freud examina a puberdade no último dos Três ensaios, dando ênfase às metamorfoses que ela comporta. É a entrada na puberdade que anuncia o fim da infância, e, nesse contexto, Miller (2015) propõe que pensemos menos numa lógica evolutiva e mais numa topologia do corte. O novo emerge e agita esse corpo, que é desalojado da imagem ideal até então sustentada, exigindo um novo arranjo.

 

A experiência da psicanálise visa então a investigar esse momento e a permitir ao adolescente encontrar uma solução para esse novo que o agita.

 

O que seria esse real responsável pela metamorfose da puberdade? Como os jovens têm se arranjado com o novo que os acomete? Como a questão do sexo se inscreve para os jovens hoje diante de uma cultura que propõe não mais falar em diferença sexual? Como esse novo se inscreve e perturba o corpo? Quais arranjos esse falasser encontrará para inscrever esse corpo no discurso e na cultura?

 

1) O real da puberdade: o encontro com um gozo difícil de nomear

 

O real em jogo nas transformações do corpo, característico da puberdade, não pode ser reduzido a um real orgânico. O que se chama empuxo hormonal não deve ser entendido como um fenômeno exclusivamente físico, mas como um fenômeno de corpo. Corpo esse tomado por um gozo estrangeiro, não significantizado pela palavra e, por isso, experimentado como um gozo fora do corpo.

 

A irrupção de gozo constitui a emergência de alguma coisa diante da qual as palavras falham. Na puberdade, o sujeito depara-se com essa parte de desconhecido, em face da qual as palavras desfalecem, a ponto de se chocarem com um impossível de dizer, agitando tanto os corpos como o pensamento e tornando difícil sua tradução em palavras (LACADEÉ, 2011, p. 74).

 

O surgimento desse novo produz o que Lacan chamou de uma falha de saber no real. O que significa isso? Para os animais, o instinto é um saber no real que faz com que não haja nenhum problema quanto à relação sexual. Para o ser falante, esse saber no real não existe. Macho e fêmea não sabem o que fazer juntos e precisam da intervenção do Outro, da palavra do Outro, do discurso. Privado da solução animal do instinto, mas embaraçado com a pulsão em razão de sua inserção na linguagem, o sujeito, por razões de estrutura, encontra esse buraco, esse vazio na relação entre um homem e uma mulher. Trata-se, portanto, do encontro com a não relação sexual e da inexistência de saber no real quanto ao sexo.

 

O encontro com esse real, com esse gozo, traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem, com a língua, e pode levar tanto ao despertar quanto ao exílio.

 

O despertar do real da sexualidade, em vez de viabilizar a relação sexual, como se poderia esperar, pode suscitar o gozo das fantasias que afastam tal possibilidade. O despertar dos sonhos que os meninos adolescentes vão ter que enfrentar é malsucedido. No lugar de se relacionar com o Outro, ele se exila ainda mais em sua solidão (LACADÉE, 2011, p. 75).

 

Esse sentimento do despertar e do exílio do adolescente, que se articula com o encontro sexual, desterritorializa o sujeito de sua infância e antecipa a separação de sua família, de sua casa e de seus pais.

 

A queda dos semblantes paternos e das identificações fálicas

 

Freud, em seu texto “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar” (1914), apresenta a tarefa mais essencial do adolescente: separar-se da autoridade de seus pais como o desligamento de seu primeiro ideal. Freud afirma: “Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai” (1914, p. 288). Desligar-se do pai implica um trabalho de separação simbólica que, por sua vez, não deve ser entendido, como assinala Hugo Freda (1996), como “fazer sem o pai”. Sem pai, não há desligamento. O desligamento desse primeiro ideal permitirá ao adolescente encontrar outros modos de inscrição na cultura.

 

A identificação constituída como ideal do eu, produzida na saída do Édipo, faz traço e serve de base para que o sujeito se veja digno “de ser amado, e até amável”, permitindo-lhe ter uma ideia de si e orientar sua existência. O ideal do eu é o vetor sobre o qual a identificação constituinte se apoia. O ideal do eu equivale ao ponto de basta que estabiliza o sentimento de vida, que dá ao sujeito seu lugar no Outro (LACADÉE, 2011, p. 22).

 

Com a chegada do real da puberdade, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava a identificação constituinte de seu ser e o sentimento de vida. Esse ponto de apoio vacila e o sujeito se confronta com algo que, ao fazer “furo no real”, o reenvia a um vazio. Há, portanto, certo despedaçamento do imaginário com o surgimento desse real. Do lado da identificação simbólica, o sujeito precisará operar uma separação das figuras de seus pais e modular de outra forma seus ideais, de outra forma que não seja a modulação pela simples identificação paterna.

 

Desse modo, para que o adolescente avance para além da cerca simbólica da família, para que se abra para o mundo e afronte o inédito, ele precisará se servir dos traços e das experiências infantis à sua disposição, que servirão de ferramentas nessa trilha (FOCCHI, 2009).

 

A adolescência é, assim, essa delicada transição em que todo sujeito se encontra ao se separar do Outro. É o momento em que se separa do significante mestre ideal, quando é o caso, que até então lhe serviu de sustentação.

 

Em seu texto “Contribuições para discussão acerca do suicídio (1910)”, também interessante para pensar as questões dos adolescentes, Freud ressalta que esse é o momento da vida em que há o afrouxamento dos laços familiares, e, por isso, trata-se de momento oportuno para atos em que o sujeito se coloca em risco. Freud acusa a escola de não cumprir, nesse momento, uma função que lhe caberia: “não impelir os jovens ao suicídio” (FREUD, 1910, p. 217). A escola, como substituta da família, poderia enlaçar o jovem com a vida por meio da oferta de um saber que fosse transmitido mediante um desejo vivo, ancorado pelos educadores. O adolescente poderia encontrar ancoragens identificatórias no espaço escolar, que lhe serviriam de bússola nesse momento difícil da existência.

 

Damasia Freda, em El adolescente actual (2015), ressalta que, na ausência do ideal regulador, encontramos como sintoma contemporâneo entre os adolescentes a desorientação. Nesse sentido, é preciso que o tratamento analítico permita ao jovem encontrar algo, algum significante que possa servir de orientador na existência. Em seu livro, a autora cita a pesquisa que ficou conhecida como os “Nem-Nem”, também realizada no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas. Em 2013, a referida Fundação divulgou um dado alarmante: o Brasil tem hoje 1,5 milhão de jovens com idade entre 19 e 24 anos sem trabalho e fora da escola. Em face da desorientação promovida pelo declínio do ideal, os jovens aderem, com frequência, a discursos tanto religiosos como políticos de caráter totalitário, sem nenhuma dialética.

 

A mesma autora, ao citar os trabalhos de Hélène Deltombe, aponta que a adolescência se converte em uma etapa em que cada um busca seus apoios – sobretudo por meio de seus semelhantes – em identificações recíprocas que fundam modos de vida. Os sintomas podem se articular ao laço social e se converter em epidemias, tais como o alcoolismo, a toxicomania e a delinquência, acentuando seu traço de rechaço ao Outro. Trata-se de grupos em que se apaga a alteridade e que, ao permanecerem numa identificação horizontal, ganham uma consistência imaginária, que conduz à segregação.

 

2) Corpo e sexuação

 

O encontro com o real da puberdade, com aquilo que faz furo, perturba a vivência íntima do corpo e traz inquietações. O corpo torna-se o lugar onde se atualizam os problemas da identidade e do gozo indizível.

 

Algo agita o corpo, e, com frequência, o adolescente percebe as modificações de seu corpo como sendo outro corpo. O enlace da imagem do corpo com o corpo pulsional, que até então sustentava o corpo simbólico da criança, se modifica. O corpo tomado como semblante fálico, ou seja, como substituto do que falta à mulher e como equivalente do desejo do Outro, se encontra perturbado pela irrupção do gozo, fazendo com que o adolescente perca o suporte imaginário. Opera-se então uma desconexão entre seu ser de criança e seu ser de homem ou de mulher, que tinha sido constituído a partir do espelho do Outro, do desejo desse Outro. Lacadée (2011) sugere a noção do surgimento de uma mancha negra no campo dessa imagem, mancha essa que muito angustia o sujeito. Podem surgir, nesses momentos, os fenômenos mais diversos, como despersonalização, sensações de falta de limite, errâncias e produções de marcas no corpo, que visam a limitar e a localizar o gozo.

 

A ausência de uma resposta acabada e conclusiva sobre o seu ser sexuado no simbólico ganha, para o adolescente, valor de colocação à prova em relação ao real. Ele precisará agora subjetivar esse novo modo de ser. Os meninos e as meninas já não sabem o que fazer e vão procurar encontrá-lo no discurso.

 

A metamorfose que a puberdade produz é, assim, uma nova e radical distinção entre o menino e a menina. Até então, bastava que a distinção entre eles fosse uma distinção significante. Agora se trata de como se diferenciar a partir da relação com o outro sexo. É assim que a diferença menino e menina se extrai da diferença na linguagem e da diferença imaginária igual/não igual para se transformar numa diferença difícil para o sujeito de suportar e de subjetivar. O sexo deixa de ser apenas um fato de semblante, enquanto significante, e encontra o gozo sexual, que se destaca do corpo e se introduz entre os dois sexos. Os dois sexos se diferenciam por sua relação com o gozo sexual. Esse gozo fora do corpo é novo em relação às satisfações sexuais da infância, ligadas ao corpo e aos objetos pulsionais. Durante a infância, os semblantes entre os sexos estão sustentados e regulados pela autoridade dos pais. Mas, na puberdade, o real, esse novo que invade, rompe com essa dimensão do semblante, e o sujeito terá que se virar com isso (ROY, 2009).

 

O significante fálico é aquele que poderá operar no inconsciente como regulador do gozo, distribuindo o gozo de acordo com a diferença dos sexos. Falar de sexuação é, de alguma maneira, assumir inscrever-se de acordo com o significante fálico. A sexuação dependerá do encontro do corpo com o significante fálico que opera a significantização tanto da diferença sexual como do gozo, que o parasita e o agita (BRODSKY, 2003).

 

Quando esse significante fálico está ausente ou opera de forma muito precária, quais são as consequências para o campo da sexuação? De que tipo de artifício o sujeito poderá lançar mão na construção das identidades sexuais? Qual é o efeito hoje do apagamento da exceção e da diferença – presente na máxima do “todos iguais”, inclusive dentro da política de igualdade gêneros – para a sexuação?

 

Algumas respostas contemporâneas dos adolescentes ao real da puberdade

 

A adolescência é um dos momentos em que mais do que nunca a não relação sexual reaparece para o sujeito. Ao encontrar-se com a inexistência do Outro, o adolescente produzirá sua resposta sintomática. Trata-se, por conseguinte, de um arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com o mundo e sua relação com o gozo.

 

Stevens (2013) enumera uma série de possíveis respostas, por ele nomeadas intomáticas, que os adolescentes podem construir diante do real da puberdade. São respostas com o saber: quando eles se tornam apaixonados pela pesquisa e esse saber sobre o mundo torna-se um substituto da falta de saber sobre o sexual. Respostas em relação às identificações: os sujeitos inventam identificações imaginárias ou simbólicas, fundamento dos grupos de adolescentes. E uma terceira série de respostas em relação à fantasia que falha: os atos, sejam as passagens ao ato, sejam os acting-out. Quando falha o sintoma e surge o real sem borda, temos os atos como resposta.

 

Em todas essas respostas está em jogo o Outro, são respostas que jogam com o Outro. Na contemporaneidade, temos outra lógica: dispensar o Outro, sem dele se servir. Não se trata, como afirma Stevens (2013), do pai como sintoma, mas, cada vez mais, da dificuldade de responder com o pai, na medida em que há um declínio da função paterna. Quais seriam os efeitos disso sobre a adolescência?

 

Para Miller (2015), é sobre os adolescentes que se fazem sentir, com maior intensidade, os efeitos da ordem simbólica em mutação. A principal mutação diz respeito ao declínio da função paterna, que se degradou. Os registros tradicionais que ensinavam como ser um homem ou uma mulher não existem mais. A transmissão do saber e as maneiras de fazer escapam à voz do pai.

 

Outro efeito dessa mutação simbólica destacado por Miller se dá em relação ao saber. Miller o nomeia autoerótica do saber. Segundo ele, a incidência do mundo virtual faz com que o saber, antes depositado nos adultos, ou seja, no Outro, esteja agora no bolso, facilmente disponível, dispensando a mediação desse Outro. Antes, o saber era um objeto que se precisava buscar no Outro, era preciso extraí-lo do Outro, o que necessitava uma relação com o desejo desse Outro.

 

Na relação com o corpo, também encontramos soluções que revelam a presença do opaco e do indizível, presenças que resistem à subordinação da palavra e são portadoras de um tumulto pulsional, que pode conduzir ao pior. Por meio do pôr-se em risco, algo do gozo do corpo pede para ser limitado e regulado por uma marca simbólica, uma vez que a ordem da castração não opera. Por não receber essa marca do Outro simbólico, o adolescente a providencia sozinho.

 

Como ensina Lacadée (2011), o jovem trata e esfola seu corpo, cuida dele e o maltrata, ama-o e odeia-o com intensidade variável, ligada à sua história pessoal e à capacidade de seu entorno de lhe oferecer os limites necessários para refrear o gozo. Quando os limites não comparecem, o jovem os busca na superfície desse corpo. Ele testa os limites físicos, colocá-los em jogo para senti-los e apreendê-los, a fim de que possam conter o sentimento de identidade. Produz “marcas” corporais, criando uma espécie de nova pele, por meio das tatuagens e piercings, por exemplo, mas que podem chegar a ferimentos corporais deliberados: incisões, escarificações, etc. Outros podem fazer dos objetos mais diversos, inclusive os tecnológicos, uma extensão do próprio corpo e utilizá-los como modos de amarração.

 

Os adolescentes contemporâneos se apresentam frequentemente sob o signo do excesso. A demanda do Outro é recebida como um imperativo tirânico, e, por outro lado, os produtos de consumo encontram-se na lógica da adição (ROY, 2009). Eles ficam submetidos a uma ordem de ferro e são levados a escolher um modo de gozo que evite a questão sexual, um gozo-fora-do-sexo. A toxicomonia e também a anorexia-bulimia jogam com o consumo, com o vazio e com o pleno, mas ambas envolvem um gozo autista, ou seja, que pode ser obtido sozinho, sem o Outro.

 

Finalizo com uma indicação que extraio do texto de Hugo Freda (1996): se a passagem da infância à adolescência desaloja o sujeito de sua língua e de seu corpo infantil, é preciso então que ele possa encontrar novos modos de inscrição no mundo e de re-constituição de seu Outro.

 


BIBLIOGRAFIA
BRODSKY, G. “A escolha do sexo”. In: Clique. O sexo e seus furos, n.1. Belo Horizonte: IPSM-MG, 2003, p. 30-35.
FREDA, H. “O adolescente freudiano”. In: RIBEIRO, H. C. e POLLO, V. (Orgs.). Adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1996, p. 21-30.
FREDA, D. A. El adolescente actual. Nociones clinicas. San Martín: UNSAM, Fundación CIPAC, 2015.
FREUD, S. (1905/1990). “As transformações da puberdade”. In: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Obras completas de Sigmund Freud). Rio de Janeiro: Imago, vol. VII.
______. (1910/1990) “Contribuições para uma discussão acerca do suicídio”. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XI, p.217-218.
 ______. (1914/1990) “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar”. In: Idem. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII, p. 281-288
FOCCHI, M. “A adolescência como abertura do possível”. In: Mental, nº. 23. Quel avenir pour l’adolescence?, Paris, diffusion Seiul, dezembro de 2009, p. 29-40.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio. Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 557-559.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 20 de mai. 2016.
______. “Prólogo para Damasia”. In: El adolescente actual. Nociones clinicas.
San Martín: UNSAM, Fundación CIPAC, 2015.
ROY, D. “Proteção da adolescência”. In: Mental, nº. 23. Quel avenir pour l’adolescence?, Paris, diffusion Seiul, dezembro de 2009, p. 51-54.
STEVENS, A. “Quando a adolescência se prolonga”. In: Opção Lacaniana online, Ano 4, número 11, Junho 2013, p. 11-15.

Margaret Pires Do Couto
Margaret Pires Do Couto. Psicanalista, Membro da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. mpcouto@uol.com.br



Filiação: Demissão Da Autoridade, Desamparo Do Adolescente

MÕNICA CAMPOS SILVA

ATIVIDADE DE CHRISTINA FORNACIARI, “ESCULTURAS DE 1 MINUTO”. JOVEM DO PROGRAMA CAPUT

Para além do declínio do pai, como deixar de se servir dele? Embora estejamos contemporaneamente diante do enfraquecimento do Nome do Pai, a paternidade continua como uma função reguladora da tirania. Nessa medida, quando utilizamos o termo desfiliação, não é de qualquer ruptura que se trata, mas a da filiação, seja pelas ações processuais, seja pelo afastamento permeado pela revelação do fim do afeto.

 

Com sua intervenção “Em direção à adolescência”, Miller (2015) auxilia pensar os efeitos de uma desfiliação quando aponta que a adolescência é uma construção. Os recursos psíquicos necessários para tal construção estão também em como o sujeito nomeia sua família e em como as funções são estabelecidas, bem como no que essa constituição regula ou em como faz o empuxo à tirania. Assim, ao pensarmos na desfiliação, do que falamos? De um desenlaçamento, na medida em que o sentido que a função paterna possibilita ao gozo se ofusca, passando a não mais oferecer o apaziguamento, antes regulador.

 

Uma breve colocação sobre o pai em Freud e Lacan é necessária, visando a sustentar o que seriam os efeitos da desfiliação, ou seja, os efeitos subjetivos da judicialização do fim do compromisso parental.

 

Este tema conduz a duas vertentes para pensar a incidência do pai: a subjetivação pelo adulto do que é ser pai, e, o mais importante, aquela da criança para quem o pai funciona. Dessa maneira, também a judicialização da paternidade, propriamente dita, leva-nos a uma questão própria à psicanálise e melhor formalizada por Lacan – “o que é ser um pai?”. De início, na psicanálise, a preponderância do pai como função interditora relaciona-se à época freudiana, a lei da interdição do incesto é a condição do desejo. Não existe “acesso ao sujeito freudiano que não implique o pai como função chave, tanto por sua presença como por sua ausência” (FRYD, 2005).

 

Mesmo antes de utilizar a construção sobre o complexo de Édipo, em um artigo de 1906, intitulado “Romance familiar”, Freud demonstra que, para a criança, os pais são fonte de autoridade e conhecimento, o que a faz desejar igualar-se a eles. Em seu crescimento, a criança torna-se crítica e constata ser negligenciada em termos de amor pelos pais, ou seja, constrói uma fantasia, um mito próprio, que visa a responder sobre de onde vem e qual é seu lugar para os pais. O pai entra como suporte das identificações com as quais avança o sujeito, sendo também quem aponta a mãe como objeto desejável ao cifrá-lo com uma proibição. Em “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924) e em “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” (1925), Freud vai atentar para o fato de como a criança, diante de uma gama extensa de possibilidades em suas descobertas, depreende da sua relação com o pai, uma orientação que regule e ordene o modo como a sexualidade afeta seu corpo e suas relações na família e na sociedade.

 

Ao seguirmos a construção freudiana sobre o pai notamos que, a partir do momento em que Freud constatou o lugar do pai como o do interdito do incesto na economia psíquica, este ganha o lugar de alicerce da construção tanto do edifício social quanto do religioso, ficando estabelecida a concepção de Lei articulada ao pai. Este último, como uma construção mítica: morto como ser, conservado como significante. Nesse sentido, Freud dá ao pai o estatuto de função.

 

Para Lacan, o pai é o que introduz a castração, inicialmente, de um modo simbólico, como pai morto, e, posteriormente, como pai vivo, pela via de consequência de seu gozo representando e veiculando o interdito e vetorizando o desejo. Ao longo da obra de Lacan, há modificações sobre a noção de Pai. Partimos de um pai como sustentação da ordem simbólica, como fundamento do laço social reduzido a um símbolo até chegarmos à sua função de sinthoma, como pai vivo, múltiplo das “exceções”, a lei.

 

Em seu seminário 4, A relação de Objeto, Lacan nota que

 

se a castração merece efetivamente ser isolada por um nome na história do sujeito, ela está sempre ligada à incidência, à intervenção, do pai real. Ela pode igualmente ser marcada de uma maneira profunda, e profundamente desequilibrada, pela ausência do pai real. Essa atipia quando ocorre, exige então a substituição do pai real por alguma coisa, o que é profundamente neurotizante (LACAN, 1995, p.,180).

 

Após um salto, no final dos anos 60, em seu seminário De um Outro ao outro (1968-1969/ 2006), Lacan ratifica que o fato de não se ter certeza de quem é o pai é que está na essência e na função do Pai como Nome. É importante destacar que, nesse seminário, Lacan faz clara alusão à problematização da entrada da ciência no campo da paternidade:

 

A essência e a função do pai como Nome, como eixo do discurso, decorre precisamente de que afinal, nunca se pode saber quem é o pai. […]. Aliás, é absolutamente certo que a introdução da pesquisa biológica da paternidade não pode, de forma alguma, deixar de ter incidência na função do Nome-do-Pai (p. 149-150).

 

Embora Lacan já previsse a entrada da ciência no campo subjetivo, ele diz de uma incidência na função e não de um desmoronamento do Nome-do-Pai. Nesse sentido, Lacan continua servindo-se do pai, enquanto função, mesmo ao pluralizá-lo, dando a ele o estatuto de ferramenta da qual o sujeito pode se servir. Lacan marca que é por se conservar como “simbólico que o Nome-do-Pai é o eixo em torno do qual gira todo um campo da subjetividade” (p. 150). Assim, podemos arriscar que, mesmo a ciência se apresentando como forma de certificação de quem é o pai, ele permanece sendo essencialmente um desconhecido, sendo o que não é ofertado pela ciência e ratificado pela justiça, um conhecimento no real.

 

Em O avesso da psicanálise, Lacan insiste que a questão do pai não pode ser localizada pela ciência. Do pai real, que de alguma maneira efetiva a castração, a ciência não dá conta. É o ponto de incerteza que exige a nomeação do pai, sendo a construção da realidade psíquica ligada mais à função paterna do que ao biológico. O Nome-do-Pai é presente e constitutivo do sujeito como semidito, a falha fazendo parte do Nome-do-Pai.

 

No final de seu ensino, o Nome-do-Pai deixa de ser a garantia e passa a operar a partir de uma lacuna, sendo o que comportará um lugar para a causa do desejo, para o singular.

 

A escolha de um gozo e não de outro, daquele que é a causa do desejo por uma mulher e não do que está ligado à imposição da disciplina ou à aplicação da lei é que possibilitará a inscrição da marca paterna (ZENONI, 2007, p. 20).

 

Não se trata mais do universal da lei, mas do “um por um” dos sujeitos que se dizem pais, ou seja, da exceção que qualquer um pode fazer para que a função da exceção se torne modelo (LACAN, 1975).

 

Podemos concluir, a partir de Freud e Lacan, que a função do Nome do Pai responde a um uso prático, podendo-se dela prescindir com a condição de dela nos servirmos. Para Phillippe Lacadée,

 

(…) o pai é aquele que permite apreender a rotina que faz coincidir o significante e o significado. Por isso, é melhor que uma criança tenha acesso a um homem que lhe permita calcular, sob sua presença, a função essencial para todo o ser humano que é a invenção, uma vez que o pai é a invenção do sujeito (2006, p. 54).

 

Entretanto, se é no momento da adolescência que o sujeito precisa se descolar da autoridade parental, como fazer quando a sustentação necessária para essa transição se desfaz? Quando, diante da lei, a referência paterna é destituída? Quando o operador da função a abandona? Observamos que os endereçamentos após a desfiliação, da ruptura de promessa, ganham cores mais intensas. Os efeitos para esses sujeitos se apresentam mais devastadores, mais ainda na adolescência.

 

É no tribunal de família que chegam as demandas ao judiciário para se abdicar do lugar de pai. Escutar esses casos auxilia na busca por entender por que esse pai, por vezes figura viva, ao se demitir da paternidade, provoca profunda desregulação. Nessas situações, o supereu caprichoso viria ocupar esse lugar da função, transformando-se em tirania para esse sujeito? A pergunta se faz a partir da verificação de que, na maioria das vezes, há uma solução pela via de um tamponamento, tirânico, da questão. Há algo na desfiliação que abala profundamente a relação lei/desejo, tornando a vida exigente (imperiosa), e vemos muitas vezes impotentes, como as sentenças, medidas de proteção ou responsabilidade no campo do direito que não restabelecem a ordem e uma orientação para a subjetividade.

 

Em termos de efeitos subjetivos, notamos produzir nos jovens o que Miller (2015) aponta em seu texto, ou seja, um prolongamento, ou mesmo uma fixação da adolescência, como real, que não cessa de não se escrever, mas também, em alguns casos, diante do inassimilável, produz certa antecipação da posição adulta na criança e no adolescente. Para Lacan, uma das consequências da demissão do pai é que o significante serve mais ao gozo do que à comunicação. Assim, se o nome do pai é aquele que tem “as ferramentas necessárias à bricolagem da vida, ou ao menos que faz seu filho acreditar nisso” (LACADÉE, 2006, p. 56), por sua vez, a desfiliação expõe o insuportável, ”por ter revelado um buraco na significação de seu ser no Campo do Outro (Idem)”. É como se a nomeação simbólica vacilasse, ficando o sujeito à deriva de um puro real, irredutível ao efeito de sentido. E ainda que o pater incertus est, ao tornar-se pater est, tenha em si a certeza sobre a paternidade, incide sobre a ficção construída pelo sujeito. Dessa forma, na desfiliação,

 

o filho tem acesso direto a um pai que não sustenta mais a função paterna, tornando-se uma pessoa anônima, humilhando o filho que disso se envergonha. O pai não está mais ali para velar o objeto real, dando um nome ao real, ao contrário, não há mais ninguém para introduzir o filho em uma dívida simbólica devida à função do Nome do Pai (Idem).

 

A ruptura abrupta de uma história constitutiva pode deixar o sujeito, frente a um real, sem recurso. A prática institucional revela-nos que o efeito de uma destituição paterna na subjetividade do sujeito permite, ainda assim, a construção de uma saída, fazendo uso do pai. Contudo, um mal-estar, um impossível, se coloca, pois se o direito pode instaurar ou desinstaurar a paternidade do ponto de vista legal, na subjetividade, ao contrário, não se pode inscrever ou desinscrever o pai. A legalidade ou a prova pericial podem interferir drasticamente na vida de um sujeito, colocando em teste os recursos que ele articulará para encontrar um novo nome, uma nova resposta.

 

Na prática judiciária, frente aos casos que nos chegam, podemos perceber que a justiça, em certa medida, ao responder as ações, tenta demonstrar que, mesmo no judiciário, campo da lei, é preciso passar pelas regras que constituem o mundo humano, bem como por uma transmissão, ou seja, que algo da castração, do interdito, esteja presente. Para a psicanálise, o sujeito é constituído a partir do lugar que ocupa na relação pai e mãe. O direito, ao tentar regular aquilo que escapa, vai buscar modos de provar e estabelecer o que são e o que não são pai e mãe. Isso não só é difícil como impossível, localizando nesse ponto a dificuldade para tratar os casos nos quais se demanda, de algum modo, a judicialização da parentalidade em geral.

 

É certo que uma regulação é necessária e que a função do Estado é buscar oferecer o maior ou melhor interesse para a “pessoa em desenvolvimento”, conforme preconiza o ECA, tentando, inclusive, manter a filiação. Contudo, podemos perceber que o sentenciamento, por si só, não regula os sujeitos, e, como consequência, não promove mudanças significativas ou efeitos que beneficiem os jovens em questão. Pois é a própria impotência do sujeito para lidar com o que se apresenta, bem como para que essa intervenção do outro tenha efeitos, o que está em jogo. O dado externo, ou seja, a sentença, não regula o modo como o sujeito responde.

 

A problemática da filiação/desfiliação lançada no campo do direito alcança a construção ficcional realizada pelo sujeito, fazendo-nos buscar entender qual lugar ocupa a família para o sujeito. Mais além de seu aspecto social e seu percurso histórico, chegando à diversidade do que podemos chamar de família contemporaneamente, consideramos que, do ponto de vista psíquico, ela é a substituição do biológico pelo simbólico. De outro modo, na psicanálise, a família distingue a dimensão humana da condição biológica na medida em que a família é o que o sujeito nomeia, enquanto função, como pai e mãe (LAURENT, 2008). Nesse sentido, não há prova pericial e decisão judicial que por si só restitua ou destitua um pai. Uma criança, como o resto do encontro entre a causa de um desejo e um sintoma, é marcada por essa equação. Ela é esse fruto. Assim, os lugares de pai e mãe são inelimináveis, e a marca que deixam é o sujeito – não pode ser suspensa.

 

De tal modo, diante da casuística, buscamos apreender em que a presença de um homem, com seu investimento, se associa à função paterna e sobre as consequências subjetivas de um desaparecimento abrupto dessa figura, ou seja, quando há uma ruptura dos laços e do investimento estabelecidos concretamente. Entretanto, é possível antever que o sujeito filho não fica impune; há um abalo em sua crença sobre o semblante, sobre a ficção que construiu para seu ser a partir da função paterna.

 

Vinhetas práticas:

 

Uma criança é criada por seu pai até a entrada na adolescência. Após a separação do casal, o pai descobre que a criança não é sua. No que se refere à criança, a partir do resultado do DNA, ela perde a posição privilegiada no desejo desse pai e passa a ter acesso à sua raiva, que a humilha e exclui. A criança vive certa perturbação, se desorienta, respondendo com seu silêncio. Em um atendimento, a criança fala: “me chamam de bastardo. Não sei o que significa isso direito, mas tem a ver com o fato do meu pai não querer me ver”.

 

Em seu seminário De um Outro ao outro, Lacan aponta que o mais importante para a criança é entender como o saber, o gozo e o objeto a lhe foram oferecidos pela linguagem, ou seja, que aquilo que lhe foi oferecido seja sustentado pelo desejo de um pai e de uma mãe. Como fazer valer uma solução própria do sujeito, uma invenção diante do real fora de sentido que, nesse caso, advém do exame de DNA, resultando em uma desfiliação abrupta? Essa criança terá que decidir se e como responder a isso, tomando o ponto de vista de que há aquilo que não mudará. Embora a sentença judicial mantenha a paternidade do ponto de vista legal, há claramente a retirada desse pai de sua vida. Fica a impermeabilidade do DNA e, como consequência, esse sujeito faz uma interrupção na relação com o saber, e uma importante debilidade se instala.

 

Em outro caso, com percurso semelhante ao primeiro, o adolescente passa a se intoxicar e, em pouco tempo, morre de overdose. É possível perceber que se trata de uma revelação que faz cair a ficção, tendo como efeito de um saber absoluto que não deixaria lacuna para uma saída subjetiva.

 

Em outra situação, um jovem, ótimo aluno, com boas aspirações profissionais, é interpelado por seu pai que lhe revela, subitamente, não sê-lo. O genitor comunica que buscará a justiça para solicitar a retirada do registro paterno da certidão de nascimento, bem como para a suspensão do pagamento da pensão alimentícia, propondo que, apesar disso, o garoto continuasse a considerá-lo pai. Diante desse contexto, o adolescente passa a ter dificuldades na escola, desinteressando-se por ela e pela futura profissão. Inicia uma relação de amizade com o traficante da região, se aliando a este e indo vê-lo todos os dias, embora não seja usuário de drogas. Não sabe bem por que vai, mas é lá que quer estar. A resposta desse adolescente evidencia o engessamento e a devastação produzida.

 

O que a ruptura de promessa provocou? Parece-me que, após a perplexidade, com o fim da crença e tomados pela pulsão – já que o que regulava cai –, esses sujeitos buscam responder. A crença no Outro fica abalada, o real que aí aparece é inicialmente maciço e sem borda. Aparece, como comenta Miller, “uma realidade imoral, sem dialética e sem compromisso”[i].

 

Uma última casuística de demissão paterna chama a atenção: após a separação do casal, apesar de não haver obstáculos para a convivência paterno-filial, ocorre um distanciamento radical do pai. A judicialização, solução do filho para seu desamparo, nesse caso intitulado juridicamente de abandono afetivo, pouco ou nenhum efeito produziu na relação com seu genitor, mesmo que no nível das obrigações legais este não se ausentasse. Assim, fica a pergunta: teria acontecido uma “desadoção[ii]”, uma ruptura de promessa? A consequência maior para esse filho é uma desorientação, à qual busca dar tratamento pela Lei.

 

Diante das vinhetas apresentadas, alcançamos que, no mundo humano, diferente da natureza, um filho, biológico ou não, terá sempre que ser adotado, ou seja, terá que haver um investimento, um desejo que não seja anônimo, para que ali se constitua um sujeito.

 

A prática analítica permite perceber a importância do uso da ferramenta pai e como, apesar do sofrimento e do abandono iniciais, as demandas que se apresentam, principalmente dos filhos, vão ao viés de uma solução que os amparem. É o uso que cada um pode fazer da função paterna que orientará a construção de uma saída própria. Assim, podemos escutar a incompreensão e a desorientação quando verbalizam suas histórias e o anseio por uma resolução rápida. Ante os casos, é possível observar que a operação realizada pela função paterna não é passível de ser anulada, mas o desaparecimento da presença do pai tem efeitos para a criança e para o adolescente. Mesmo que tenham recursos simbólicos suficientes, isso não dá garantias de que as saídas serão tranquilas. Ao contrário, podemos ver, em nossa prática, que as saídas podem ser mortíferas. Nessa medida, o que podemos extrair é que não há intervenção do direito que altere o sujeito constituído. Entretanto, essas intervenções podem alterar o modo como o sujeito vinha lidando com a vida, com as faltas, com sua própria inscrição. Nos casos apresentados, vemos a constante em que os adolescentes são retirados do lugar de objeto de desejo e lançados para o lugar de dejeto, sem que qualquer tratamento seja dado à responsabilidade que cabe aos responsáveis pelo filho nessa situação.

 

É importante criar as condições para que cada um possa falar sobre seu lugar em sua história, permitindo uma responsabilização, principalmente dos adolescentes. Se o sujeito não aparece no enunciado, é preciso fazer valer a enunciação e auxiliá-lo para que ele se aproprie dela. Desse modo, permitir que uma elaboração possa ser feita não é encontrar uma resposta adequada, é muito mais suportar o que não encontra uma adequação. É sustentar que é possível uma nova saída que seja digna para o próprio sujeito, no sentido de sua responsabilidade, com contornos possíveis, e não um engessamento que não comporte nada do que é próprio ao sujeito.

 

[1] MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia.
[1] O termo “desadoção”, como o de desfiliação, é aqui utilizado para indagar o aspecto do desejo, da singularidade que deixa de existir.

 


BIBLIOGRAFIA
FACCHIN, L. E. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
FREUD, S. (1896/1980). “A psicanálise e sua influência nos processos jurídicos”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 9. Rio de Janeiro: Imago.
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______. (1913/1980) “Totem e Tabu”. In: Idem, vol. 13.
______. (1923/1980) “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”. In: Idem, vol. 19.
______. (1924/1980) “A dissolução do complexo de Édipo”. In: Idem, vol. 19.
______. (1925/1980) “Algumas consequências da distinção anatômica entre os sexos”. In: Idem, vol. 19.
FRYD, A. (2005) O Reino que acabou. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus/numero_01/artigo_04port_edicao01.htm. Acesso em 30 mai. 2016.
LACADÉE, P. “O uso do Nome-do-Pai: a ferramenta do pai e a prática analítica”. In: Invenções Paternas. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, vol. 23, 1ª Ed., 2006, p. 55-70.
LACAN, J. (1969/2003) “Nota sobre a Criança”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1956-57/1995) O seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1968-69/2008) O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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______. (1974-75) O seminário, livro 22: R.S.I. – inédito.
______. (1975-76/2007) O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LAURENT, E. Século XXI – não relação globalizada e igualdade dos termos. (Inédito), 2008.
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 30 mai. 2016.
VILLELA, J. B. “Desbiologização da paternidade”. In: Revista da Faculdade de Direito, 21, 1979, p. 401-419. Disponível em www.abmp.org.br. Acesso em 30 jul. 2010.
ZENONI, A. “Versões do Pai na psicanálise lacaniana / O percurso do ensinamento de Lacan sobre a questão do pai”. In: Psicologia em Revista, 13, 2007, p. 15-26.

Mõnica Campos Silva
Mônica Campos Silva. Psicóloga, psicanalista, psicóloga judicial do TJMG, mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG. E-mail: monica.camposilva@gmail.com



A Química Da Libido

SAMYRA ASSAD

NICOLETTA CECCOLI. RECORDAR.

 

O gérmen, a letra

 

Química e libido, a princípio, parece-nos demonstrar dois termos que se opõem, a não ser quando, a partir de uma escolha (objetal) amorosa – seja ela permitida ou condenável, conveniente ou não –, frequentemente, escutamos: “existe uma química entre nós…” E ninguém ousaria explicar, prontamente, a razão disso. No máximo, fazemos poucas alusões, as quais cederiam o lugar, mais tarde, para transformar as alusões em ilusões. Desde aí, o impacto do corpo com o real, com o que não possui sentido, entra em cena na vida amorosa de um sujeito.

 

Assim, a química, a libido, enfim, certos aspectos do desejo, passam a ocupar lugares importantes no cenário de uma investigação psicanalítica, o que, inegavelmente, nos convida ao esforço de depurar, nessa mescla entre o eu e o objeto de desejo, o que advém de uma substância viva, ou, pelo menos, até aí chegar esbarrando com o que é inominável. Depurar a química da libido de um corpo vivo, marcado pela linguagem, certamente nos conduzirá a um corpo que a precedeu, portanto.

 

De algum modo, percebe-se uma conexão intrínseca entre esses dois termos com o lugar de uma inscrição no sujeito falante, dando partida à sua existência no mundo. A função dessa inscrição será dada a partir dos seus efeitos sobre o sujeito, sem que este, no entanto, possa a ela retornar senão sob a forma de um estranho familiar ou de um exterior totalmente íntimo. “O fenômeno da vida permanece em sua essência completamente impenetrável. Ele continua a nos escapar, não importa o que façamos” (RENNÓ, C., 1999, p. 5).

 

Ressalta-se nisso que “a psicanálise não se ocupa da substância viva, mas sim das forças que nela operam, (…) a pulsão” (Idem). Desse modo, é possível observar, através das forças que operam sobre a substância viva, um gérmen. Lacan afirma que “essas forças, de alguma forma, vão se estruturar em torno do que pode ser definido como a função da letra, fazendo desta um análogo do gérmen” (Idem, p.07). Miller prossegue:

 

(…) isso é ir muito longe na ‘biologização’ do significante. (…) o gérmen se inscreve no corpo, é distinto do soma, do corpo como soma; ele sobrevive ao soma. Por isso, podemos compreender porque a letra é análoga ao gérmen. Primeiramente porque sendo a letra aquilo que, do significante, se inscreve no corpo, ela é incorporada. (…) Em segundo lugar, ela não é o soma, e por último, a duração da letra se estende para além da vida do corpo, como nome próprio (…) a letra não é um gérmen; o gérmen é celular e a letra não (MILLER, 1999, p. 44-45).

 

A ideia de uma formação contingencial está presente nisso, nesse encontro do corpo com a linguagem, do qual resulta o traço como uma letra, trazendo consigo uma parte insondável, porém ali, sustentando a vida textual de um porvir do sujeito. Uma letra do destino, dizemos assim, podendo ser lida – contingencialmente também – em um modo de vida adotado: uma espécie de “marca registrada”, inventada, inimitável, única de cada um, singularmente patenteada. Letra do gozo, diríamos com Lacan. Uma espécie de nome próprio.

 

Portanto, através das forças que operam sobre a substância viva, um complexo caminho da necessidade ao desejo se desenrola. A química da natureza dos hormônios vai dando lugar a uma vida mental, à medida que um traço orientador de uma satisfação dá início a um circuito que tende a se repetir, já que o destino poderia ser entendido como um dos nomes do inconsciente.

 

Narcisismo, libido e objeto

 

A teoria da libido se baseia em grande parte no trabalho de Freud sobre o narcisismo. As formulações relativas à libido do eu e à libido do objeto são trazidas por ele especialmente pelo modo em que o eu e o objeto são peculiarmente interagidos, sendo o objeto invariavelmente uma representação mental. Podemos imaginar que isso acontece sob o foco de um olhar cujo ponto de onde advém a luz é faltoso.

 

Freud falava de uma “química especial”, através da qual se distinguiam quantidade e qualidade da libido. Logo, a produção, aumento ou diminuição, distribuição e deslocamento da libido do eu possibilitavam explicar os fenômenos psicossexuais observados em sua clínica.

 

Assim, na década correspondente aos anos de 1895 a 1905, Freud fazia recair a ênfase sobre a “química sexual”, dizendo-nos que “nos processos sexuais, substâncias de espécie peculiar decorrem do metabolismo sexual” (FREUD, S., 1905/1972, p. 222). No entanto, posteriormente, ele vai constatar: “estamos no escuro quanto ao órgão ou órgãos a que a sexualidade se prende” (Idem). Logo, restava ainda uma lacuna sobre a natureza da excitação sexual: “a análise das perversões e psiconeuroses mostrou-nos que essa excitação sexual não se origina apenas das partes chamadas sexuais, mas de todos os órgãos do corpo” (FREUD, S. 1905/1972, p. 223).

 

Freud, então, é levado a uma conclusão insatisfatória que emerge dos distúrbios da vida sexual, qual seja, a de “sabermos muito pouco sobre os processos biológicos que constituem a essência da sexualidade para podermos construir, com nossa informação fragmentária, uma teoria adequada à compreensão dos estados tanto normais quanto patológicos” (FREUD, S. 1905/1972, p. 250). Esse limite, por conseguinte, o impulsiona a recorrer ao mito, principalmente quando ele observa que existe algo que vai mais além do princípio do prazer.

 

Da biologia ao mito

 

Miller faz a leitura de que “é pelo viés da suplantação da biologia frente ao mito que ele (Freud) inventa a sua pulsão de morte e a inscreve no mito, não conseguindo que ela tivesse crédito no plano propriamente biológico” (MIILER, 1999, p. 14).

Parece-nos, então, que a biologia freudiana suplantada pelo mito que deu origem ao conceito de pulsão de morte foi sucedida pela biologia lacaniana, se posso dizer, trazida para sustentar o conceito de gozo ligado ao corpo vivo. Mas aqui não poderíamos supor, por exemplo, que haveria um saber próprio do corpo, o qual Freud teria revelado sob a espécie de uma química especial da função sexual, e que Lacan teria a relido como sendo o gozo próprio do corpo vivo?

 

Se assim o for, penso que isso sofisticaria, e de certo modo atualizaria, o que, enfim, diz respeito ao nosso objeto de investigação, a saber, o lugar da causalidade psíquica ligada à química da libido, portanto, no século XXI.

 

De Freud a Lacan

 

Pois bem. Como o regime da civilização na época de Freud se sustentava na interdição, o século XX se mostrou como sendo a era do Pai, do simbólico, de uma referência simbólica que orientaria as representações, o campo da significação. As transformações da puberdade contavam com essa referência; os sintomas eram interpretáveis a partir de uma cadeia simbólica inconsciente.

 

Os mitos de Édipo e de Totem e Tabu apresentavam a transmissão de um impossível acerca dos efeitos da libido sobre o corpo. Isso caracterizava, enfim, as neuroses sustentadas por uma lei que instaurava o desejo e a culpa, a partir da morte do Pai. Portanto, a inscrição da função paterna para o sujeito era trazida sob uma forma épica, implicando o aspecto simbólico da morte, da castração, em uma inscrição da linguagem no ser falante.

 

A adolescente Dora, o rapaz Homem dos Ratos e a jovem homossexual expressavam, portanto, no sentido mais restrito de uma subjetividade do século XX, a referência a um Pai, à castração – e, na perversão, o seu desmentido.

 

Em contrapartida, na nossa contemporaneidade, século XXI, o regime civilizatório não mais se assenta sobre a interdição, mas sobre o gozo. Observa-se, hoje, um quadro social em que a satisfação é exigida sem mesmo que o sujeito se pergunte sobre o que ele quer.

 

Situamo-nos, portanto, na era do mais além do Édipo. A predominância do real em detrimento do simbólico nos conduz, inclusive, a levantar uma hipótese – aquela de uma química inerente ao jogo libidinal do sujeito contemporâneo que não se interage com um traço constitutivo, mas com a sua pluralização, já que a referência paterna caiu. Encontrei depois um comentário de Marcelo Veras, em rede social, que me chegou como luvas: “Precisamos com urgência reler o texto Psicologia das Massas pensando os novos modelos de identificação, não mais organizados pelo traço, mas pelo gozo autista do objeto a”. (VERAS, M., 26/05/2016).

 

Quais seriam, então, os efeitos da libido sobre o sujeito diante da queda dos Ideais e, por conseguinte, da ascensão do gozo? Se aí o império é o da satisfação e da imagem, do olho absoluto e não o da castração, da desinibição e não o da inibição, qual será, enfim, a transformação da puberdade nos tempos atuais?

 

De outra ordem…

 

É notória a incidência crescente e expressiva das psicoses silenciadas ou ordinárias, provavelmente assentadas sobre uma ordem de ferro, sucedânea à queda do Pai. Assim Lacan a denominou em 1970, inclusive, preconizando a perda da dimensão amorosa na subjetividade. Podemos dizer que encontramos hoje essa ordem de ferro por meio de normas familiares, políticas, sociais e religiosas. Além disso, vemos as ofertas relativas aos dispositivos táteis e visuais, os quais favorecem uma conexão com o corpo através do uso superegoico inerente ao laço virtual entre os jovens adolescentes. Todos conectados![i]

 

Trago aqui, especialmente, um recorte clínico que tange os efeitos da libido sobre o caso de um jovem homossexual, por exemplo, que faz uso de aplicativos introduzidos em seu celular. Trata-se de um recurso para se distrair e fugir do tédio e da solidão. Esses aplicativos permitem ao jovem a exibição de seu corpo nu para que o outro o veja, e vice-versa, e, enfim, avaliam se querem ou não se relacionar sexualmente – não sem antes passarem pelo que se entende, assim, como crivo da beleza de um corpo, segundo o culto a ele dirigido via protuberância dos músculos.

 

De todo modo, parece haver aí a presença não de dois, tal como uma representação simbólica permitiria supor em se tratando de um endereçamento da libido, mas, de Um, de Um sozinho… Com o tato no celular através dos seus dedos, todo um império visual sustentado pela ordem de uma satisfação narcísica determina a sua excitação sexual. Eles marcam um encontro, se relacionam e vão embora, cada um depois permanecendo no anonimato do seu canto original, escuro, solitário, fazendo ressoar o vazio do silêncio quando o barulho da poeira abaixa.

 

Trata-se de uma ordem que permitiria ao jovem transitar entre elementos viventes dos mais diversos possíveis, inclusive descartá-los ou ser ele próprio descartado, em meio ao sexo casual e compulsivo: forte terreno do sadismo e do masoquismo, enfim, uma satisfação cujo pano de fundo pertence à pulsão de morte.

 

Aplicativos como Nude, Hornet, Grindr, Scruff e Tinder permitem o acesso e o descarte do gozo em nome de um uso narcísico cujas letras, para provar a existência do sujeito, passam por um aparelho, grosso modo dizendo, não propriamente mental… Possivelmente, isso demonstra outra transformação da puberdade nos tempos atuais. Outras letras ditam o destino do gozo para esse sujeito. A propósito, a materialidade fônica desses aplicativos é algo que salta aos ouvidos, acompanhada, inegavelmente, de um tom estrangeiro. Basta repeti-los seguidamente, lendo-os em voz alta…

 

Sirvo-me de uma pergunta de Miller, feita quando ele aborda o dispositivo da internet: “O que é que se multiplica nessas ficções? Multiplicam-se, finalmente, os semblantes de corpos. Isso torna apenas mais insistente a questão sobre o que está fazendo, de seu lado, o corpo original, enquanto seu semblante é mostrado” (MILLER, 1999, p. 32). Ou seja, nesse reenvio ao “corpo original”, algo de estranho, em ato, permanece.

 

Uma lacuna advém, tal como o jovem adolescente o demonstra: “O superficial é falso…” Sim, podemos concordar com ele, mesmo porque, “o elemento anulado pela distância não está presente, a saber, o que esses corpos não fazem juntos, presencialmente, pois, juntos, eles tornariam presente uma interdição, uma separação, uma não-relação” (MILLER, 1999, p. 32). O aforisma lacaniano – a relação sexual não existe – permanece intacto, independente das ilusões das quais o sujeito contemporâneo faz uso através do império das imagens. Talvez até o aguce.

 

Quando o sujeito enuncia a frase citada acima, vislumbra-se o caminho de sua desobjetalização, ou a uma submissão não-toda aos traços impostos nas ofertas de satisfação que o discurso da ciência e do capitalismo imprimiram na evolução dos tempos. Necessariamente, um ponto de angústia precederá tanto essa questão quanto uma solução singular.

 

Em se tratando da biologia dos corpos, do metabolismo sexual à substância gozante, ou do percurso que se inicia com a química da libido em Freud ao saber do corpo em Lacan, o adolescente freudiano transmite, com o seu sintoma, o dois em um; o adolescente lacaniano, o Um em dois, certa manifestação autística do gozo.

 

Parece ser assim que a solidão é trazida na cena analítica do século XXI.

[1] Com relação a esse aspecto, trabalhei um caso de uma adolescente que fez do seu inseparável iPhone uma extensão do seu corpo como uma solução. O lugar contingente que esse aparelho ocupou pôde ser extraído quando a fórmula confusional do sujeito, inicialmente trazida como “uma coisa pensa em mim”, adquiriu outro estatuto: esse aparelho como extensão do seu corpo alojou, justamente, esse fenômeno. O gozo se deslocou do corpo para o objeto inseparável de suas mãos, o que me permitiu introduzir um parêntesis especial para intitular esse caso: “I (am) phone…”. O trabalho foi apresentado na Jornada Clínica do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, “O Corpo Falante – Sobre o ICS no século XXI”, em abril de 2016 no Rio de Janeiro. Texto inédito.

 


BIBLIOGRAFIA
FREUD, S (1905/1972). “Transformações da Puberdade”, In: Obras Completas de Sigmund Freud. Escritos sobre “Três Ensaios da Teoria da Sexualidade” – 1905. Rio de Janeiro: Imago, vol. VII, págs. 213-250.
MILLER, J-A. Elementos de Biologia Lacaniana, Belo Horizonte, EBP-MG, 1999.
RENNÓ, Celso, “Apresentação”, in: MILLER, J-A. Elementos de Biologia Lacaniana. Belo Horizonte, EBP-MG, 1999, citando Lacan em 1955.
VERAS, M. Comentário em rede social, disponível em www.facebook.com.br, acesso em 26/5/2016.

Samyra Assad
Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: samyra@uai.com.br



Comentário – Cristiane de Freitas Cunha

CRISTIANE DE FREITAS CUNHA

 

POR GIULIA PUNTEL

O relato de Sérgio de Mattos nos instiga a percorrer suas referências. Com Viveiros de Castro, aprendemos a perspectiva ameríndia de construção do corpo, no processo de reclusão, exibição e metamorfose. Na cultura yawalapíti, o social constitui o corpo, não é algo externo que se deposita sobre ele. Nesse processo de fabricação, há uma dialética entre a reclusão e a exibição do corpo. A fabricação dos corpos, com a tecnologia da reclusão, tem início com as relações sexuais com a finalidade de procriação. Na puberdade, o corpo é recluso por um tempo, durante o qual o púbere depende da comunidade para sua sobrevivência, e os pais se abstém das relações sexuais. A reclusão da puberdade é marcada pela fragilidade e pela vergonha. Depois, há a exibição do corpo nos rituais comunitários, nos quais o corpo é marcado. A reclusão envolve, por fim, a morte e o luto. A fabricação produz seres humanos que acedem à vida, adquirem a capacidade de perpetuá-la e morrem. Há também a metamorfose, algo da ordem do excesso, do imprevisível, que pode transformar os homens em espíritos ou em plantas, como na experiência do xamanismo (CASTRO, 2002).

Um fragmento de uma entrevista do relatório de Mattos evoca também a modificação corporal para produzir um ser humano, ao dizer que “a pele é sua história: não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano”.

Seguimos Gustavo Dessal, em suas viagens e meditações sobre a vida amorosa. Em Boston, no verão de 2012, ele se depara com um encontro de cosplay[i]. Dessal captura imagens dessas identidades flexíveis, apartadas do encontro com o sexo, com o real, com a castração, com o desejo. Personagens que posam para a sua câmera e o ignoram. De Tóquio, ele nos fala da concretude da inexistência da relação sexual, materializada no deslocamento do encontro com o parceiro para a aquisição das bonecas infláveis – que não demandam nada, conforme o anúncio do fabricante –; no caminho para casa, evitando o encontro com o parceiro que demanda, quando há um; no trajeto pelas casas de massagens; nos aparatos que assessoram a masturbação. E, para saciar o desejo do encontro com um corpo vivo, há os bares onde os gatos podem ser acariciados. E, mais além do desejo, a reclusão dos hikikomori, adolescentes enclausurados em seus quartos. Em Nova Iorque, na primavera de 2013, Dessal visita lojas cenográficas onde se podem comprar corpos e pedaços de corpos. Ele observa que em Nova Iorque há lugar para a estranheza, desde que a diferença continue inserida no sistema produtivo, na lógica do empreendedorismo de si mesmo (DESSAL, 2013).

Continuamos pelo fio do empreendedorismo de si com Safatle, que nos fala da plasticidade mercantil do corpo (2015, p. 193). O capítulo que trata desse tema é aberto com duas citações: “eu creio que o corpo é obsoleto”, de Orlan, e outra, “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”, de Margaret Thatcher.

O corpo se torna obsoleto, o risco se torna obsoleto. Convocados a uma mutação e reconfiguração contínuas, a sociedade e os indivíduos assumem o estatuto de uma empresa. As técnicas de gestão e de intervenção terapêutica, a administração e a psicologia convergem para fornecer o arcabouço desse projeto de humanização do capitalismo e ajudam a gerir o medo do fracasso e a insegurança, inadmissíveis em uma sociedade flexível. Nesta, as normas não são transgredidas, são flexibilizadas em um cálculo preciso dos custos e resultados (SAFATLE, 2015).

No projeto da mutação corporal, as dietas, fármacos e cirurgias prometem uma configuração de si a baixo custo. E, no mercado do corpo, a mídia é um instrumento privilegiado de expansão, incorporando qualquer resistência. Nos anos 90 do século passado, observa-se um processo de reconfiguração de representações midiáticas relacionadas ao corpo. A Benetton lança uma campanha publicitária na qual corpos marcados pela aids são expostos. Calvin Klein e Versace investem na erotização de corpos doentes, mortificados, portadores de uma sexualidade ambígua. Os consumidores são convocados a um papel de cidadão diante do revestimento da mídia como forma de conscientização e provocação. E em uma perspectiva inclusiva dos consumidores, a mídia investe também na exposição dos corpos saudáveis e harmônicos, simultaneamente, expondo a bipolaridade das marcas (SAFATLE, 2015).

Uma peça publicitária da PlayStation apresenta o corpo com interface de conexão, um corpo protético e reconfigurável. Vemos um corpo diante da prateleira de cabeças, disponíveis para escolha e uso, como na loja de corpos e pedaços de corpos de Dessal. Uma outra peça contrapõe o tédio da vida cotidiana e a aventura da vida virtual (SAFATLE, 2015). Na vida cotidiana, a morosidade do trabalho; na virtual, a conquista de impérios com exércitos numerosos, que atesta o valor da existência.

O capitalismo avançado, humanizado, inclusivo, deixa à margem a experiência da estranheza, da fissura (LACAN, 1962-1963). Os mercados comuns tornam cada vez mais duros os processos de segregação (LACAN, 1968).

E são seres humanos à margem, segregados, que podem se aventurar na experiência analítica. Corpos marcados pelos significantes do Outro, que testemunham um mal-estar inerente ao ser humano. Que podem se permitir falar de modo precário sobre esse mal-estar no corpo que não se é, mas se tem. Um dos entrevistados por Sérgio de Mattos (2015) diz: “são coisas que remetem a algo que vivi (…) tinha problemas com o corpo e ainda tenho”. Ainda, apesar das modificações, suspensões, elevações, tentativas de sair do corpo. Ele atesta o fracasso da técnica, da ciência, para curar o mal-estar. E conclui: “não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano”.

[1] Cosplay: Segundo Dessal, condensação do inglês costume, disfarce; display, exibição; play, jogo.

 


BIBLIOGRAFIA
DESSAL, G. “Meditações de um psicanalista sobre a vida amorosa em Mutandia”. In: TORRES, M., SCHNITZER, G., ANTUÑA, A., PEIDRO, S. Transformaciones: ley, diversidad, sexuación. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2013, p. 267-275.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
______. Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École, in Silicet, Paris, Seuil, 1968, p. 14-30.
MATTOS, S de. “O que fazer com o seu corpo?” Disponível em <http://oimperiodasimagens.com.br/pt/faq-items/o-que-fazer-com-seu-corpo-sergio-de-mattos/>. 2015. Acesso em 28 de junho de 2016.
SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
CASTRO, E. A. V. de. Inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

Cristiane De Freitas Cunha
Cristiane de Freitas Cunha. Médica e Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: cristianedefreitascunha@gmail.com



O Que Fazer Com Seu Corpo?

SÉRGIO DE MATTOS (RELATOR)

GIULIA PUNTEL

Problema

Como se constrói hoje um corpo?

O corpo se evidencia no último ensino de Lacan; não se goza sem corpo. Contudo em “Adeus ao Corpo”, Le Breton cita Stelarc: o corpo é obsoleto, é urgente livrar-se dele ou emparelha-lo com tecnologias e experiências extremas para ampliar possibilidades. Na performance The third hand, uma prótese de mão, aumenta muito a eficácia corporal, a partir de sinais elétricos vindos dos músculos abdominais e da perna. Longe de ser supérflua, a terceira mão agarra objetos, gira sobre si, é capaz de sentir.

Ao mesmo tempo, os corpos cada vez importam mais, hiper investidos, mais visíveis que nunca. A perda do corpo do mundo, de suas coordenadas simbólicas orientando nossos modos de gozo, nos leva a preocupar-nos com o corpo para dar corpo à nossa existência.

Investigar o tema e testemunhos sobre sua construção permitiram apreender o problema desde as sociedades tradicionais até as contemporâneas. Recorremos a estudos antropológicos sobre a população ameríndia, à prática do Zazen e às atuais modificações corporais. A segunda vertente do relatório trabalha a construção a partir de conceitos da psicanálise.

Campo de construção

Seja para proteger, curar, negar, alimentar, gozar dele, extrair de outros substancias para compô-lo, o corpo é centro das preocupações humanas. Ele sofre, não funciona, não aquenta mais, precisa satisfazer-se, domina nossa existência nos momentos que não está bem. É na hiância onde o mal estar se instala que dele lembramos e precisamos construir ou reconstruí-lo.

Um corpo nunca esta pronto e a rigor não sabemos o que ele é. Sempre aquém ou além, surpreendente, desregulado, imaturo, o corpo que fala, é aberto a um espectro de afecções e capaz de ampla gama de respostas. É essa sensibilidade e potencialidade que o torna também capaz de sintomas e novos arranjos.

Algum corpo não passou por modificações? Consciente ou inconsciente, voluntariamente ou não, pela alimentação, pelo uso no cotidiano, pela estética, podemos afirmar que todo corpo é de uma forma ou outra alterado, transformado. A história da humanidade é marcada por modos de interferir no corpo com múltiplas justificativas. M. Mauss nas “técnicas do corpo” mostra como cada cultura constrói seu corpo à sua medida sem cessar. A psicanálise começou interessando-se pelo corpo que não obedecia a fisiologia. Os distúrbios psicogênicos na visão, paralisias histéricas são clássicos. Hoje visível em todos os lugares, o corpo sobe ao céu- não mais a alma – como lugar de gozo. Assim precisamos investigar como foram e são hoje construídos, o que as novidades nos ensinam e suas consequências.

O corpo Genérico – os Yalawapíti

de Castro mostra como a noção de corpo construído é intrínseca à vida ameríndia. Nos Yawalapíti o corpo humano é submetido a processos intencionais e periódicos de fabricação: inumakiná (Umá, fazer ou fabricar). As relações sexuais são o inicio dessa tarefa. Fabricar significa também “mudar o corpo” e consiste em intervenções que conectam corpo e mundo: fluidos vitais, alimentos, eméticos, furos, escarificações, pedaços de outros corpos, penas, peles, óleos. Porque o que faz um corpo (humano ou não) é o modo pelo qual é afetado: o que ele come, como se move, se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário. O corpo é um feixe de afecções e capacidades.[1]

O corpo das espécies, sendo o modo pelo qual o espírito universal indiferenciado se particulariza, faz de tudo que existe um possível enunciador, capaz de autorreflexão, em posição de sujeito da perspectiva de um corpo. Corpo animal e humano são instrumentos e não falsa aparência de uma essência; são dispositivos que especificam o espirito. Por isso é preciso construí-lo desde cedo. No perspectivismo ameríndio, corpo não é sinônimo de realidade em si, mas conjunto de modos de ser que constituem um habitus.

Trata-se menos de um processo de desanimalizar pela cultura que de particularizar algo inicialmente demasiado genérico,diferenciando-o de outros coletivos humanos e de outras espécies. [2] Não se trata de culturalização de um substrato natural mas de fabricação. E ao lado da fabricação a metamorfose – yaka –que reintroduz o excesso e a imprevisibilidade na ordem do socius. Vestir uma máscara ritual é ativar os poderes de um corpo outro, como no uso dos trajes de mergulho. Veste-se um escafandro para funcionar como um peixe, respirando sob a água. Com a aquisição da linguagem, passa-se o mesmo, para os índios, ela se dá no nível dos hábitos corporais. Aprende-la supõe que essa toque o corpo, com o sexo, os fluidos fisiológicos, a alimentação, com uma materialidade encarnada, que informa o envolvimento com a linguagem.

Zensualidade

Ao lado do livro de M.Hardt e A.Negri, Império, nosso encontro, evoca em Lituraterra: Império dos Semblantes. Alusão ao Império dos signos[3], livro de R.Barthes sobre o Japão, onde a escrita comporta o vazio de significação e a sociedade sabe lidar com o vazio: A troca de signos é de uma riqueza, de uma mobilidade, de uma sutileza fascinante […] A razão é que lá o corpo existe, segundo um puro projeto erótico.

O livro destaca a arte das embalagens, magníficos embrulhos do vazio. Apreço pela vacuidade, presente nos haicais e na própria escrita ideográfica, onde predomina isenção e efração do sentido. O que é aí o corpo, nesse mundo flutuante de signos que se entretém entre si? Na história japonesa, nota-se ao lado da produção de moldes, formas de entender, viver e expressar o corpo; um outro modo, perturbador, que o Zen gerou no seio dessa cultura.[4]

No primeiro caso, usos paradigmáticos do corpo, encarnados nos setores dominantes, em seguida imitados pela população. Conjunto de certa iconografia corporal: samurai, haijin, gueixa. Por outro, Zazen prova de que o Império dos signos não se fecha sobre si, funcionando como ferramenta opondo-se ao marco mental e social restritivo, intervindo no modo de entender o corpo e valer-se dele. Zen concebe o humano como corporal (sem alma, interioridade, sem sujeito que dirija), numa prática da vida da pessoa-desde-o-corpo, lugar de apagamento e esvaziamento do sentido. Corpo em transito entre bonbu e bodhy (vivência e representação do corpo mais imaginativa, sensorial). O Zazen não elimina paradigmas mas os desestabiliza, os relativiza, os subverte.

Tal postura surgiu do encontro das doutrinas budistas com uma visão gozosa, corporal e emotiva do ser humano, já encontrada em Genji Monogatari, encontro cujo produto é segundo Otávio Paz o que o Japão nos ensinou: uma sensibilidade.

Marca-se ai uma diferença em relação às abordagens paradigmáticas do corpo, nessas a construção social atua como realidade fundante do ser humano. A visada própria do Zen não desconsiderando fatos históricos, inclui uma resposta que não é dócil à pauta corporal proposta, abrindo-se à construção de uma dicção sobre eles! A lógica da posição anti-paradigmática é a explicitação da natureza singular da experiência corporal.[5]

Essa abertura ao novo emana do hara[6], desde onde o corpo pensa outramente, pensa sem pensar (mushin), sem consciência pessoal. Concentrando na postura, consentindo a tudo que lhe ocorre, sem ir contra nem se entretendo com isso, esse corpo deixa-se atravessar, por um saber, que não é nem instintivo, nem tampouco um sistema articulado. Saber que no budismo se chamaPrajna: Sabedoria além da sabedoria, experiência de vacuidade e interconexão entre as coisas, representável com imagens da vacuidade e transitoriedade (rios, nuvens) expressão de uma existência sem substância.

Body Mod: Identidade em pedaços

Alguns cortes fizeram girar o uso do corpo na história do ocidente que traçam a rota até o momento atual. O primeiro quando os anatomistas transgridem a fronteira da pele, dissecam os corpos, expõe as vísceras, abrindo espaço para o surgimento no ocidente de um corpo-objeto.[7] O segundo, instaurador da modernidade, o cogito cartesiano[8], separa o homem (substância pensante) do corpo cujo modelo é a máquina feita de peças e engrenagens (substancia extensa). O corpo encarna então a parte ruim e frágil, um rascunho a ser corrigido.

Outro fator de corte: as estruturas imaginárias da história; a rede de símbolos da tradição judaico-cristã. Na Criação divina homens são co-criadores, logo há valorização da ação sobre o mundo e gosto pela experimentação. O Cristianismo por exemplo fundamenta sua especificidade nos temas da encarnação, conduzindo a atividade espiritual que lhe é própria para seu enraizamento objetivo.

Nesse ambiente surge uma razão motivada a tomar o corpo imperfeito, mortal e sua reconstrução, como um dos empreendimentos mais importantes da modernidade. Essa razão militante adquire impulso, devido as novas tecnologias, tornando-se uma das apostas estratégicas mais subversivas e de alto impacto das performances contemporâneas. O empreendimento de compensação das fragilidades tem paradoxalmente o levado a tornar-se excesso e imagina-se seu desaparecimento, substituição, imersão num mundo virtual. Esse ativismo que invadiu o mundo com seus objetos técnicos, relativizou valores, perturbou tradições, desligou o homem de suas imagens estáveis propostas pelo social, deixando os corpos desligados de suas referencias vindas do Outro. Corpos deixados a si-mesmos convocados a se construírem sem as antigas referências que os dominavam mas também os confortavam. A atualidade dos corpos, configura-se com a convergência de alguns fatores importantes: 1) Corpo do ser falante nascido imaturo fragmentado 2) Discurso científico cujo método reduz o corpo a peças de uma máquina que podem ser trocadas, reparadas 3) Imaginário coletivo que pretende recriar a natureza 4) Introdução no mundo de próteses cada vez mais sofisticadas e potentes compensando os limites corporais.

Do ponto de vista da psicanálise, o cenário produz um corpo em que a libido a ele retorna com mudanças de distribuição. A libido que se ligava aos objetos do mundo e estabilizava imagens do eu enquadrada pelos ideais, retorna investindo novos objetos que erogenizam o corpo de formas isoladas. Constrói-se – com objetos-signos – ilhas de satisfação, em uma região que parece nova. Discernível entre um que de hipocondria (retorno da libido a novas áreas investidas do corpo que ganharão erogeidade) e um investimento num corpo construído individualmente para reconectar-se a um Outro cada vez mais circunscritas a âmbitos limitados entre pares ou como arte. O corpo encarna-se em performances individuais, com características inéditas.

Nas entrevistas[9], nota-se efeitos das modificações:

Thiago: Comecei com 15 anos… estava construindo minha identidade diferente da desejada pelos pais, o menininho que vai para a Igreja que não toca no corpo… não conseguiria viver sem essas modificações … sempre tive interesse por corpos que não fossem padrões.

Há uma satisfação diferente antes e depois das modificações? Thiago: Eu era completamente complexado com meu corpo, … estranha minha relação com ele, não usava bermuda, nem camisa regata…me achava branco, perna fina, braço fino, conforme fui me modificando fui recuperando meu próprio corpo. Tatuei a perna ganhei uma bermuda, tatuei o braço usei regata, até conseguir trabalhar com performance artística e chegar ao nu, foi recuperar o corpo mesmo – as modificações me ajudaram muito, é um outro Thiago …foi a forma que encontrei, outra pessoa encontra outra, fui ganhando meu corpo à medida que fui modificando-o.

Como escolhe o que vai colocar no corpo?

Rafa: O que escolho pode ter significado ou não… são coisas que remetem a algo que vivi … tinha problemas com o corpo e ainda tenho, sou muito tímido, era fechado e isso abriu uma porta, me forçou a socializar, a responder o que era aquilo que viam. Minha pele é minha história. Já fiz modificações, suspensão pra chegar no meu limite, queria me elevar, sair do corpo… Mas não tem padrão! Não quero que generalizem! Cada um faz por um motivo…um porque é doidão, outro quer uma elevação espiritual, você é modificado, não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano.

O corpo para você é obsoleto?

Thiago: Completamente. Se fosse levar em consideração o natural, já estaria morto. Além da construção da identidade e o recorte tatuagem e piercing, sou asmático, preciso de uma bombinha pra respirar, tenho esteretrocônio, precisei de transplante de córnea, lente de contato e óculos, precisei da tecnologia pra sobreviver.

Os testemunhos, embora não generalizáveis, contém constantes que encontramos nas bibliografias: construção da identidade, domínio de si, experimentação dos possíveis corporais. Aqui o indivíduo, torna-se ele próprio fonte de escolhas segundo as ofertas do seu mundo, como modo de vivificação e gozo. Os corpos ai respondem à lógica da bricolagem, sujeitos aos acontecimentos que o marcam, gerando uma erótica das peças. Tomados nesse contexto, como conjunto de peças carnais, é possível dizer com Orlan: “Querida amo seu baço e a linha de seu fêmur me excita”.

Na atividade artística propriamente dita Irene Accarine, com Stelarc, Orlan e outros, propõe um conceito que nos serviria para pensar esses corpos: o “alter-corpo” ou “corpos-elas”, eles contrastam com as imagens pseudo belas das publicações que alimentam os olhares dos solitários de nossa época, são corpos que gozam de si mesmos deslocados, feitos de outras bordas que aquelas delimitadas pelo domínio do signo fálico e da imagem ideal.

Construção pela psicanálise

A psicanálise também constrói seu corpo. O constrói como imagem, corpo do Outro e lugar de satisfação: corpo libidinal, pulsional. É para a psicanálise antes de tudo um corpo que se faz para gozar de si mesmo. Ela o constrói ao longo dos tratamentos, no autismo, psicoses e menos evidente nas neuroses; torna-se evidenciado nos testemunhos de Passes.

Como imagem, orientou Lacan, a relação entre ela e seu efeito de real. Eficaz por dar unidade ilusória a um organismo pontuado por ilhas de autoerotismo. O estádio do espelho advém dessa orientação, a imagem narcísica, o eu ideal ao qual o sujeito nunca se identificará totalmente e o ideal do eu, enunciações de valor e rejeição. Imagem global e corpo fragmentado se enlaçam nessa montagem através das zonas erógenas: pontos de abertura do organismo e grampos, permitindo a comunicação entre corpo e mundo exterior através das experiências de gozo.[10] Na ruptura desse laço, a explosão da imagem global, angustia, estranheza e catástrofes subjetivas.

É isso que causa alguns avanços da ciência: rupturas da imagem total, ao converter o organismo em objetos cortados, compráveis, refragmentando o corpo ao extremo. Também ao criar novas imagens, vistas por máquinas, ela escapa das redes simbólicas que as continham produzindo efeitos perturbadores. Neste contexto, M.H Brousse considera que o eu ideal vem substituindo o Ideal do Eu: à medida que a ciência avança em relação ao conhecimento e às modificações do organismo e das imagens, mais débeis são os ideais tradicionais, relacionados ao discurso do Outro sobre o corpo, e sobre essa questão corporal do gozo… esse ideal funciona, por certo, como imagem do corpo, mas uma imagem do corpo um pouco cortada do Outro da palavra. Mas parece-nos que além disso, um certo retorno a um relativo autoerotismo das peças soltas também ocorre.

É preciso notar que uma tese psicanalítica sobre a construção dos corpos, supõe uma comunicação, que se faz entre o corpo, a imagem e o Outro, ou sua falta. Talvez possamos ver nos testemunhos dos Body Moders uma espécie de reatualização do Estádio do Espelho num diálogo, as vezes monólogo, com o estatuto atual desse Outro. E nos testemunhos de passe aspectos dessas interações levada ao extremo.

O primeiro testemunho de Marcos André Vieira, nos lembra que o corpo que temos é feito daquilo que foi possível fazer com o que o Outro fez conosco. Ele se constitui a partir do encontro entre o excesso que nos habita e a incidência do Outro em nossa vida. O que se traça deste encontro define o que será e o que não será possível em termos de prazer e dor, assim como dos locais onde isso acontecerá.

Nesse espaço entre vivo, imagem e Outro, incorpora-se toda sorte de composição do que seria para cada corpo que fala, a construção de um modo de gozo que um tratamento pode construir.

Marcus testemunha como seu corpo montado pela fantasia vivia-se como um mosquito leve até ser tocado pela palavra do analista com a gravidade de um tambor: Seu coração é um tambor – estantanbour. A interpretação do analista é visceral; desloca a montagem significante e imaginária do fantasma (mosquito leve) e se serve da materialidade sonora ressoando no corpo como as batidas do coração tambor. Trata-se de um exemplo paradigmático, do uso da interpretação analítica, no que diz respeito a construção do corpo. Marcus testemunha a partir deste momento o acontecimento de um novo corpo. Naquele vivido como um mosquito, coração batendo rápido, tomado em uma constante luta de picadas e partidas, Marcus vê abrir-se um espaço corporal sem lugar e forma claros, e nada do Outro. Do mosquito ao corpo tambor aparece um vácuo, onde um novo corpo pode acontecer. Seria instrutivo investigar como neste nível da experiência analítica, tocar o corpo depende da materialidade sonora e de ressoar em um vazio? Jésus Santiago testemunha[11] como o orifício não é um oco e que é preciso alcança-lo – o vazio intrínseco da pulsão – para livrar-se do engodo fálico. Seriam nossos corpo, cada um a seu modo, como um tambor – borda/vazio – com suas sonoridades que poderão ou não ser tocado pelo analista segundo uma interpretação visceral?

Corpo do acontecimento de gozo

Desde o gozo, somos, e os passes dão seus testemunhos – antes de tudo construídos por acontecimentos de corpo, incorporação, corporificação, provocando desregulação no organismo, despedaçamentos, excessos jamais apaziguados pelo princípio do prazer. Somos feitos de efeitos no corpo chamados à partir do seminário XX de afetos. Afecções no corpo vivo, excitações perturbadoras que constituem na raiz os corpos que nos chegam para tratamentos, marcados as vezes febrilmente com signos que não lhe dá consistência.

O significante traumático, piercing significante, escarificação da linguagem, escrita litoral, faz buraco no corpo e carnaval, e poderíamos reserva-lhe o status do mais radical elemento material, de construção do corpo no que se refere à nossa práxis. Sobre essa carne cuja palpitação, condiciona e anima todo o universo mental [12], o acontecimento de corpo, é o que consideramos como a substancia última, a argamassa do que constrói hoje um corpo para nós.

Para finalizar uma advertência. Cito Lacan: Quando voltarmos à raiz do corpo, se revalorizamos a palavra irmão […] saibam que o que sobe, que ainda não vimos até as últimas consequências, e que se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. E. Laurent[13]comenta o que ai se anunciava, baseava-se na lógica de que diante do desatino do nosso gozo, só haveria o Outro para situá-lo:não sabemos o que é o gozo segundo o qual poderíamos nos orientar. Sabemos apenas rejeitar o gozo do outro. Daí a vontade de normalizar o gozo daquele que esta deslocado.

 

 


Sérgio De Mattos (Relator)
Sérgio de Mattos Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: sergioecmattos@hotmail.com



Comentário – Fernanda Otoni B-Brisset

FERNANDA OTONI B-BRISSET

FOTO: FREDERICO BANDEIRA

 

O relatório de Lilany traz orientações preciosas que articulam a clínica da toxicomania hoje e o que ela distingue como o campo político das adições. A distinção entre toxicomania e adição é um trabalho de investigação que a rede TyA tem feito e que nós acompanhamos.

Localizar as adições como um campo político me fez pensar que quando Lacan toma a política como um efeito de discurso, ele extrai dessa formulação que o inconsciente é a política. O inconsciente, como discurso do Outro, é um dos efeitos da copulação da linguagem com o corpo. Esse encontro contingente guarda um mistério – o do corpo falante – e determina uma política – a política do gozo. Ao marcar o corpo, o significante, num mesmo golpe, o mortifica e recorta na carne o vivo que anima o psiquismo. Esse encontro produz gozo e define sua orientação. Uma orientação para o gozo é uma das consequências desse encontro do significante com o corpo. Assim, entendo que o inconsciente é a política, o que se verificava mais claramente sob a lógica do inconsciente transferencial, na aproximação mesmo do inconsciente com o discurso do mestre, o lugar de agente dado ao S1.

Todavia, será que o inconsciente é a política ainda hoje, quando evidenciamos na clínica certa mutação no campo simbólico, face ao inconsciente real? Eu guardava essa questão comigo. Como atualizar a leitura dessa assertiva lacaniana com a derrocada dos mestres? Destacar as adições como um campo político parece se abrir a essa investigação. A política continua sendo um efeito de discurso, mas hoje o discurso capitalista é o que buzina nos nossos ouvidos. O direito ao gozo surge como uma marca do cidadão moderno. Os meios de comunicação, a favor desse discurso, ensejam o consumo dos objetos através de uma linguagem não articulada, palavras iterativas, imagens espetaculares, sem apelo à interpretação, mas que ressoam no corpo. Isto parece apontar que os significantes em circulação produzidos pelo discurso capitalista, sem apoio no sentido, se infiltram como um real no corpo, de forma rígida, determinando os modos aditivos do gozo. Na última lição do Seminário Orientação Lacaniana destacou-se que “o lugar do simbólico não é o espírito, mas o corpo”. Não seria no campo das adições que verificamos que o inconsciente real é a política? Todos adictos, cada um com sua droga, em terra onde o Outro não existe! Um discurso (capitalista), um inconsciente (real), uma política do gozo (aditivo).

Seguindo esta pista – o campo político da adição na era do parlêtre, numa leitura cruzada com o texto do Miller, em direção à adolescência -, vemos como as drogas e as imagens, hoje, participam da construção da adolescência de forma preponderante. O filme Gangues de Hollywwod destacado por Lilany, a partir de um caso real, é exemplar.

O filme, como na vida real, mostra como a eclosão do real do sexual desorganiza o sentido e soluções montadas na infância. O púbere não reconhece mais o corpo próprio, nem o Outro familiar é uma referência suficiente para restabelecer sua unidade. É um momento onde se nota uma desamarração, desentrincação… uma soltura das amarras do gozo estabelecidas na infância a exigir uma reconfiguração. A tendência ao agir se instala.

Miller, não gosta da expressão “desenvolvimento da personalidade”, mas a utiliza para destacar que esse momento é um tempo de indefinição, de impasse, embaraço, à espera de uma amarração do gozo que foi desinstalado na saída da infância. Dirá quando o narcisismo se reconfigura e que, de Freud a Lacan, a saída da infância é um momento onde, nessa sala de espera de um novo laço, dentre os objetos de desejo, o corpo do Outro surge de forma privilegiada, passando a jogar sua partida na economia do gozo.

Freud, em “A psicologia do escolar”, mostra como o adulto aí era tomado como modelo que poderia servir nessa reconfiguração. Prevalecia em Freud uma aposta de que a criança desorientada pelo despertar da adolescência poderia retomar a estrada principal a partir do encontro marcante com um Outro de fora, no caso, um adulto.

Porém, os tempos são outros. É para dizer dessa nova era que Miller, lendo Robert Epstein, vai sublinhar que os adolescentes, na história, foram considerados como adultos, viviam entre eles e podiam tomá-los como “modelos”. Contudo, agora, “fazemos adolescentes viver entre eles, isolados dos adultos, numa cultura que lhes é própria, suscetíveis a modas e entusiasmos”.

Lilany, nessa direção, enfatiza o que considero uma das teses do relatório: Na atualidade constata-se que em lugar da escolha de um objeto articulado ao quadro da realidade erótica representada pela fantasia, o que se destaca é a prevalência de um gozo autista, da iteração da pulsão e sua vocação aditiva. Evidência clínica que verifica que o gozo habita o corpo próprio. Os destinos da pulsão, hoje, em muitos casos seguem bem instaladas nesse curto-circuito, um circuito que não passa pelo Outro e faz do corpo próprio um Outro corpo para o sujeito.

Vejamos o filme. A princípio, não há adultos nele. Tem algo que ali se passa que testemunha esse deserto do adulto entre os jovens. Começa com um menino sem jeito, com um corpo que parece escapar de si. É excluído dos grupos. Até o encontro com uma menina. Não é o apelo erótico que aí faz o laço, mas o convite a extrair dos adultos os seus gadgets. Primeiro os carros largados, depois as casas esvaziadas de modelos famosas. Visitam seus closets, experimentam a transformação do corpo próprio num outro corpo e saem de lá vestidos delas. Imagens e mais imagens. Postam fotos e mais fotos de si nas redes sociais. Fazem bazar com os objetos, parecem populares. Acumulam malas, usam e espalham os objetos pela casa, e se acham: são muitos os espelhos. Interessante é que junto à montagem dos corpos com os objetos desses modelos famosos, os adolescentes vivem uma rotina atravessada por imagens e objetos, e ainda as drogas.

Jésus Santiago considera que “mesmo na experiência do espelho, pode surgir o momento em que a crença na imagem contida no espelho enfraquece-se e abala-se e por efeito torna-se alvo de perturbação no corpo.” Esta perturbação, esse resíduo desalojado do espelho, no caso da gangue de Hollywood, parece que era tratada com Louboutin, anestesiando esse pedaço. Assim, os jovens, compulsivamente, retornam várias vezes às mesmas casas, usam a casa como se fosse extensão deles, a cada vez que a celebridade viaja. Eles são elas. E o impressionante do filme é que nenhum adulto sente falta de nada que foi roubado. A gangue segue sustentando a unidade do corpo nessa amarração entre objetos e imagens, e Louboutin, compulsivamente. Até que uma câmara de TV captura a imagem da gangue, por acaso, e o adulto entre em cena na forma da polícia. A montagem de corpo cai da cena, de forma singular para cada um.

Miller nos convida a estudar a forma lógica da imiscuição, hoje. E é aí que uma pergunta do relatório pode nos orientar. Até que ponto a adesão ao campo das imagens e seus objetos virtuais, na era do outro que não existe, para alguns casos, denota um esforço para encontrar um ponto de amarração para o gozo? Lilany sugere que nossa clínica parece confirmar que pela adição aos objetos e imagens ofertados pelo discurso capitalista se faz uma amarração hoje, monta-se um tamborete sobre o qual um corpo se sustenta sem passar pela mensagem do Outro.

Será que na clínica do parlêtre – a clínica com adolescentes a demonstra como nenhuma outra -, certa imiscuição se passa na parceria com o campo político da adição? Poderíamos encontrar a lógica da imiscuição do adulto no púbere, não mais como mensagem como Lacan destaca no caso de Gide, mas um adulto imiscuído através do consumo de sua imagem e objetos, servindo de cabide para fazer um corpo no laço social?

Não seria uma saída como a de Gide, mas, em muitos casos, parece ser uma solução para o impasse, ainda que frouxa, uma orientação para a amarração do gozo. A lógica da imiscuição do adulto joga sua partida, com vigor, mas perguntaria se o adulto-modelo, hoje, também se imiscui através de imagens e objetos e não só por sua mensagem?

Um modelo biruta, né? Modelo século XXI.

 

[1] Comentários ao relatório: Drogas e imagens – novas adições, de Lilany Pacheco apresentado na XVI conversação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais


 

 

Fernanda Otoni B-Brisset
Fernanda Otoni B-Brisset. Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail:fernanda.otonibb@gmail.com



Drogas E Imagens: Novas Adições

LILANY PACHECO (RELATORA)

POR GIULIA PUNTEL

A abordagem do tema das toxicomanias no campo freudiano sempre se fez pelo reconhecimento de que as relações do sujeito com as drogas implicam o corpo próprio como Outro, na produção do gozo do corpo, e a identificação imaginária que sustenta a adesão, nem sempre dialetizável, à nomeação “eu sou toxicômano”. No contexto contemporâneo, especificamente, destacam-se os variados modos de gozo com as imagens e com os objetos mais de gozar, que têm funções distintas para os sujeitos – entre elas, a da droga para um toxicômano.

Propomos, neste relatório, conversação sobre uma possível distinção entre o fenômeno das adições e a toxicomania e sua dimensão clínica, tal qual a conhecemos no campo freudiano. Já na edição 88 da publicação “La Cause du Desir” (ÉCOLE DE LA CAUSE FREUDIENNE, 2015), colegas franceses definem as adições como um campo político que deve ser estudado para colocar à prova, para além das drogas ilegais e à luz da orientação lacaniana, a generalização do termo adição, o enxame de objetos e as práticas concernentes a esse campo.

Lidamos, hoje, com uma diversidade de manifestações sintomáticas centradas no corpo: pornografia, culto da aparência, exibicionismo, intervenções corporais apoiadas na tecnologia médico-científica para recomposição da imagem corporal e amarração da imagem ao gozo. Em seu primeiro seminário, Lacan (1954/1986) demonstra, ao inaugurar seu esquema ótico como formalização primeira do registro imaginário, que a urbild, imagem através da qual o eu se constitui, remete à operação capciosa de colocar um bouquet real em um vaso virtual – sabendo-se que a imagem real na fotografia é tal qual o arco-íris que vemos no céu. Trata-se de uma tarefa inacabada, da qual o sujeito falante terá de se ocupar por toda a vida, tendo em vista que há sempre algo desse bouquet que resiste em se alojar no vaso em questão.

Em “O inconsciente e o corpo falante”, Miller (2014) reconduz o tema do imaginário de modo a acolher os avanços do último ensino de Lacan. Desse texto, destacamos:

“o corpo se introduz, inicialmente, (…) como imagem, imagem no espelho”, decorrendo daí o estatuto dado por Lacan ao eu [moi], distinto daquele que encontramos na segunda tópica freudiana.

Lacan ilustra a articulação entre Ideal do Eu e eu ideal como um jogo de imagem, oferecendo a essas noções freudianas uma formalização inédita.

“A afinidade entre o corpo e o imaginário é reafirmada no ensino de Lacan sobre os nós. A construção borromeana enfatiza que é pelo viés de sua imagem que o corpo participa, primeiro, da economia do gozo”.

“O corpo condiciona tudo o que o registro imaginário aloja de representações: significado, sentido e significação, a própria imagem do mundo. É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da unidade do corpo”.

Mais além, Miller localiza o mistério lacaniano – “o corpo, como corpo falante, muda de registro”. Não trata mais do imaginário especular, sendo preciso, então, redefinir o imaginário.

Drogas e imagem – novas adições?

Tomando o ponto de partida lacaniano de que “o imaginário é o corpo” (LACAN, 1975-76/2005), perguntamos se, dessa equivalência, depreendem-se as questões: novas imagens, para além das imagens rainhas (MILLER, 1997)? Novos corpos, novas adições? Uma imagem pode ter o estatuto de droga para um sujeito? Qual a extensão das adições na atualidade? Novas adições são fenômenos clínicos paradigmáticos da época da inexistência do Outro? Podemos localizar essas questões dentro da clínica das toxicomanias?

Hoje, em lugar da escolha de um objeto articulado ao quadro de realidade erótica representada pela fantasia, o que se destaca é a prevalência do gozo autista (MARON, 2012), da iteração da pulsão e sua vocação aditiva. Contudo, em 1964, Lacan (1964/1998) já falava de época prodigiosamente atormentada por exigências idílicas que, longe de ser expressão de tendências libertadoras e prazerosas, descortinavam o horizonte do supereu insaciável e mortífero. O imperativo superegóico de gozo impulsiona o mercado capitalista: “todos consumidores” (MILLER; LAURENT, 1998). Isso equivale a dizer “todos toxicômanos”, permitindo a ideia de “toxicomania generalizada”? Afinal, as adições atuais ultrapassam o uso de substâncias tóxicas, lícitas e ilícitas. O campo da imagem e dos objetos virtuais evidenciam os esforços do sujeito para encontrar um ponto de amarração para seu gozo e constituir um “tamborete” para sustentar seu corpo valendo-se dos objetos à disposição, oferecidos pela ciência e suas articulações com o capitalismo, em tempos de simbólico esmaecido e inexistência do Outro.

Império das imagens, adições, toxicomanias – índices?

Ilustramos a discussão do tema proposto com peças da indústria da imagem: dois filmes e um seriado de TV, além de uma vinheta clínica, buscando aí elementos para articular a abordagem proposta neste relatório.

“Bling ring – gangues de Hollywood”: “Bling”, em inglês, refere-se a jóias grandes e ostentação; “ring” significa, literalmente, anel, mas também define um círculo de amigos ou cúmplices. ”Bling ring”, por sua vez, é o nome do filme baseado em fatos reais que trata da vida de jovens filhos de classe média-alta e inebriados por marcas, que invadem casas de celebridades a fim de roubar objetos de grife e “visitar” as mansões de ícones do espetáculo e do consumo.

Dentre os protagonistas dessa história, estão Marc, garoto tímido e que não se sente incluído em sua nova escola, destinada a alunos expulsos de outras instituições, e Rebecca, garota bonita e descolada, que se aproxima dele, convidando-o para buscar carros abertos e furtar o que de melhor encontrassem ali. O plano rende dinheiro e cartão de crédito e eles começam, em seguida, a invadir moradias de celebridades. Os closets, templos dos artigos de luxo, verdadeiros altares ornados pelos mais variados objetos ligados ao corpo, dá à dupla contato direto com o que acompanham na mídia especializada, como um vestido usado por determinada figura em um determinado evento.

Os dois alardeiem seus feitos em rodas de amigos. Nick, Sam e Chloe interessam-se pela aventura e, assim, forma-se um grupo. As invasões tornam-se frequentes e os jovens estreitam laços entre si, em meio a delitos e noitadas nas mais caras baladas. Acumulam toda sorte de objetos e dinheiro. A posse, o uso, a ostentação e a divulgação nas redes sociais, além do consumo de drogas, são os ingredientes do circuito de gozo aditivo que encenam. As drogas, por sua vez, não são o motor para a prática dos roubos, e seu uso não é próprio de uma toxicomania (tão bem demonstrada em outros filmes, como Réquiem para um sonho), mas apenas mais um produto na engrenagem de excessos e gozos fugazes.

O filme aborda outra faceta do consumo aditivo, a medicalização, pelo viés de uma mãe que tem o hábito de dar às filhas doses de Adderall, anfetamina indicada para tratamento de TDAH. A substância é chamada, na tradução em português, de “remedinho”, e está presente desde situações cotidianas, como no café da manhã, até em momentos realmente tensos, como o que antecede o julgamento pelos furtos. Reflete-se aí a banalização do consumo de medicamentos e as formas de tratar o fracasso da lei e da alteridade que os pais agenciam, no que Benetti (2012) chamou de “farmácia da vida cotidiana”.

Por fim, apreendidos, cada um dos jovens oferece sua versão para os motivos de entrada nesse circuito de gozo. Em comum, a fruição dos objetos e o deslumbramento, indicativos de uma adesão à cultura do espetáculo e do consumo – novas adições?

“O Lobo de Wall Street”: o filme é baseado na história autobiográfica de Jordan Belfort, que fez fortuna fraudando o mercado de ações. Belfort faz uso abusivo de drogas, jogos, sexo e objetos luxuosos. Apresenta-se ao espectador por meio de seu modo de gozo: “jogo como um depravado, bebo como um peixe, como prostitutas cinco ou seis vezes por semana. Tenho três agentes federais querendo me indiciar. Sim, querido. E eu amo drogas”. Elege o dinheiro como a melhor de todas as drogas, capaz de torná-lo invencível.

Belfort está inserido no discurso de Wall Street e em sua lógica capitalista. Seu primeiro chefe apresenta ao jovem o mundo das finanças, da venda de ações e um modo de fazer com que o lucro fosse exclusivamente do corretor: enganar o investidor. Diz a ele também sobre a “chave para o sucesso profissional”, uma combinação entre masturbação, cocaína, prostitutas e adição dos clientes, que, assim, investiriam mais e mais, “como se estivessem viciados”. Festas, drogas e prostitutas são ofertadas como prêmio aos funcionários de sua empresa pelas vendas das ações fraudulentas. A magnitude de seus negócios faz Belfort ganhar notoriedade na mídia e ser objeto de investigação policial. Encontramos aí matizes do consumo e diferentes índices aditivos, bem como diversos modos de enlaçamento dos sujeitos aos objetos e ao Outro. Não se trata, portanto, de um uso solitário.

A relação que Belfort estabelece com as drogas merece destaque por sua vertente ilimitada: “em uma base diária, consumo drogas o suficiente para sedar Manhattan, Long Island e Queens por um mês”. Ele escancara seu gozo e sua “parceria cínica com a era da ciência” (Santiago, 2001) convidando o espectador a compartilhá-la: “tomo Quaaluder 10 a 15 vezes por dia para minha dor nas costas e também para manter a concentração, Xanax para acalmar e tirar a ansiedade, cocaína para acordar novamente, e morfina, bem… porque é sensacional”.

No modo de gozo retratado no filme, não importa o objeto, mas sua natureza aditiva, que implica em um “cada vez mais” que nunca será o bastante, forma como Lacan define o “mais de gozar” em seu Seminário 20, trabalhado por Alvarenga (2012) em: “adição é o Um que se repete: 1+1+1… mas que não se adiciona”, respondendo à iteração da pulsão, objeto repetido na infinitização do gozo. Não todos aditos, ou todos aditos, mas não todos toxicômanos?

“Breaking bad”: as séries norteamericanas evocam o “monolinguismo da globalização” (SINATRA, 2014) e oferecem-se ao telespectador em formato de “pílulas” de fácil digestão, feitas para serem consumidas abundantemente, uma após a outra, no que se conforma ao uso adicto do objeto. Após o término da série que aqui apresentamos, inclusive, ficou famosa a expressão “órfãos de Breaking bad”, em alusão aos espectadores que ficaram sem sua “dose semanal” do programa. Essa lógica atende ao que Sinatra (2014) chama de geração dos “filhos da televisão”, que não se serve mais do pai, do Outro, para se identificar, mas de personagens televisionadas. Se o consumo está em jogo ao assistirmos televisão, somos também consumidos por ela: “os filhos tele-adictos são consumidos pela máquina omnivoyeur, são devorados pelo seu olhar” (SINATRA, 2014).

Uma das séries mais famosas e mais premiadas da atualidade desenrola-se em torno do objeto droga e seus diferentes usos. O verbo “breaking”, de seu título (não traduzido para o português), faz alusão tanto à ultrapassagem do limite da lei quanto ao que poderia ser traduzido como “quebra” ou “freio”. Estamos, aí, entre “tornar-se mal” e “frear o mal”, tensão constante na série e intrínseca à logica do consumo.

A história é protagonizada por Walter White, brilhante professor de química cujas escolhas de vida levaram ao fracasso financeiro e profissional. Trabalhando em uma escola secundária e buscando complementar a renda como lavador de carros, é supreendido pelo diagnóstico de um câncer terminal de pulmão e pouco tempo de vida. Decidido a deixar sua família (a mulher, grávida, e o filho adolescente) em uma situação financeira segura após sua morte e acreditando não ter nada a perder, começa a produzir metanfetamina em parceria com Jesse, ex-aluno e traficante medíocre que, diferente dele, consome o produto que comercializam.

A droga que Walter produz é de uma pureza impressionante, graças a seus conhecimentos de química e a seus cuidados, e ele acaba tornando-se um dos produtores mais respeitados e temidos do meio, além de um dos mais procurados pela polícia. Walter não consome a droga. No entanto, fica evidente o que poderíamos chamar de um “modo de funcionamento adicto”, marcado por um “não posso me abster” (TARRAB, 2004) e pela necessidade constante de “uma dose a mais” em relação a seu gozo.

A proximidade da morte faz com que Walter se dê conta de que passou a vida obedecendo ao Outro e mortificando seu desejo. Em lugar de uma retificação pela vertente simbólica e de uma responsabilização subjetiva, contudo, o que advém a partir dessa constatação é o ato. Ao verificar que o Outro não existe, assume uma posição canalha, em que não importam os meios, apenas a satisfação de sua própria demanda. O fim de Walter na série é emblemático: não sucumbe ao câncer, mas ao gozo.

Por outro lado, seu sócio, Jesse, evidencia a face toxicômana da relação com a droga. Apaga-se como sujeito, desiste de sua rotina e de seus compromissos e rompe com os laços sociais, administrando em casa, solitariamente, as doses de sua “próxima viagem”. Como produtor e distribuidor, ensaia saídas desse lugar objetificado. Nesses momentos, algo do sujeito aparece, geralmente pela via da culpa, da vergonha ou do amor. Contudo, termina consumido pela droga que consome, resto que cai, evidenciando sua posição ao longo de toda a vida, lugar em que se fixa diante de Walter e dos demais traficantes. Também obtém um gozo importante como “inconveniente”, “inadequado”, “infantil”, o que fica evidente em sua relação com seus pais, que desistem dele.

“Breaking bad” trata, principalmente, do que se passa em território ilícito. O que faz laço mostra-se, na série, continuamente ameaçado pela morte. Escamoteia-se, assim, o fato de que enlaçar-se não é negar o gozo, mas regulá-lo. Em extremos opostos, Walter e Jesse apresentam modos de existir semelhantes, calcados no funcionamento do “uma dose a mais”, e mostram que, uma vez ultrapassado o limite imposto pelo pacto civilizatório, atinge-se um atalho para a morte. De formas distintas, e em variados sentidos, não se sai vivo dessa empreitada.

“Tomar um back para ninguém me ver”: essa é a construção feita por Jota, 46 anos, usuário de cocaína injetável há quase três décadas. Encontra-se imerso no circuito paranoico que faz dele objeto visto e perseguido pelo Outro. Sua construção delirante, contudo, não é uma via pela qual encontra suficiente amarração e circunscrição para a sua angústia: os espíritos que abusam e se divertem com seu corpo não são excomungados pela religião, não sendo ela, portanto, um tratamento para o olho do Outro que o invade. Algumas próteses imaginárias fazem função estabilizadora para Jota, como o papel profissional que desempenha e o cumprimento de um protocolo que inventa para a função de ser pai. Porém, face às irrupções do olho do Outro no corpo gozado, sem bordas nem limites, impõe-se outra solução, a única encontrada até esse momento de seu percurso analítico: injetar-se cocaína. Não apenas injetar-se na lógica da reiteração do Um, constituindo um corpo que se goza, mas injetar em partes do corpo expostas ao Outro (mãos, braços e pescoço), particularidade que o impede de sair de casa e faz com que as pessoas não o vejam. A imagem de um corpo do qual não se apropria submete Jota ao Outro omnivoyeur, até que o ato de furá-lo, drogando-se, constrói uma imagem carregada de sentido pejorativo, denegrida, que o permite destacar-se do Outro e apaziguar sua angústia.

Encontramos aí, enfim, outra faceta do uso dos objetos e da função da droga, no singular. Tal caso de psicose evidencia o modo como os objetos ofertados pelo Outro da ciência e do consumo, contemporaneamente, confluem para a foraclusão estrutural, distinguido-se, assim, da abordagem generalizada às questões das adições à imagem no século XXI.
Notas

[1]Relatório apresentado durante o ENAPOL e na XVI Conversação do IPSM-MG em 19/03/2016
2 Integrantes do Relatório: Antônio Beneti, Adriane Barroso, Ary Santos Farias, Cassandra Dias, Claudia Generoso, Cristiana Pittella, Cristiane Cunha Grillo , Cristina Nogueira, Fabiana Cerqueira, Glória Maron, Guilherme Del Debbio, Elizabeth Medeiros, Jésus Santiago, Júlia Andrade Ramalho, Leonardo Scofield, Lilany Pacheco (relatora), Lisley Toniolo, Luiz Fernando Carrijo, Maria Célia Reinaldo Kato, Maria do Carmo Dias Batista, Maria Rachel Botrel, Maria Wilma Faria, Mariana Vidigal, Nádia Laguárdia, Renato Carlos Vieira, Soraya Alves Pereira.

 


Referências
ALVARENGA, Elisa. Não-todo adictos! @DDito: Boletim da XVII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais. 2012. Disponível em: http://jornadaebpmg.blogspot.com/2012_09_01_archive.html. Acesso em 05 jul. 2015.
BENETI, Antonio. Todos adictos: a farmácia da vida cotidiana contemporânea. @DDito: Boletim da XVII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais. 2012. Disponível em: <http://jornadaebpmg.blogspot.com/ 2012_09_01_archive.html>. Acesso em 05 jul. 2015.
ÉCOLE DE LA CAUSE FREUDIENNE. La cause du désir. France, n. 88, nov. 2015. Disponível em: http://www.causefreudienne.net/la-cause-du-desir-n88/. Acesso em 07 jul. 2015.
LACAN, Jacques. A tópica do imaginário. In: LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud [1954]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, Jaques (1964). Do “Trieb de Freud e do desejo do analista. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MARON, Glória. A dimensão aditiva do sintoma. Opção Lacaniana on line nova série. Ano 3, n. 7, mar. 2012. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/A_dimensao_aditiva_sintoma.pdf>. Acesso em 05 jul. 2015.
MILLER, Jacques Alain; LAURENT, Eric. El Otro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 1998.
MILLER, Jacques-Alain. A imagem rainha. In: MILLER, Jacques-Alain. Lacan elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente e o corpo falante. 2014. Disponível em: <http://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina= 4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9>. Acesso em 07 jul. 2015.
SANTIAGO, Jesus. A droga do toxicômano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
SINATRA, E. S. A identificaciones líquidas, adicciones sólidas. Virtualia, Buenos Aires, n. 29, nov. 2014. Disponível em: <http://virtualia.eol.org.ar/029/template.asp?Consecuencias-de-la-ultima-ensenanza/A-identificaciones-liquidas-adicciones-solidas.html>. Acesso em: 25 mai. 2015.
TARRAB, M. Mais além do consumo: Parte I – a maldição do sexo e a época. Curinga, Belo Horizonte, n. 20, p. 55-69, nov. 2004.

Lilany Pacheco (Relatora)
Psicanalista. Membro da EBP/AMP. E-mail: lilanypacheco@gmail.com



Comentário

SIMONE SOUTO

 

FOTO:FREDERICO BANDEIRAF

 

Localizo três aspectos que me pareceram importantes no relatório apresentado por Ludmilla Feres, por ocasião do VII ENAPOL, e que hoje, nesta Conversação do IPSM-MG, temos a oportunidade, mais uma vez, de discutir.

 

1) O texto parte da hipótese de que os adolescentes, hoje, recorrem às imagens dos meios digitais e aos objetos oferecidos pela técnica como um recurso para lidar com a inexistência da relação sexual e com as dificuldades relativas ao encontro com o Outro sexo. Como nos esclarece Ludmilla, através de uma citação de Miller, constatamos, na atualidade, um enfraquecimento do nome-do-pai e das instâncias que tinham a incumbência de transmitir “o que convém ser e fazer para ser um homem e para ser uma mulher”[i]. Assim, os adolescentes de hoje buscam na tecnologia não exatamente uma resposta pela via do sentido, mas o que, a meu ver, poderíamos chamar de certo “aparelhamento” para o gozo e, também, para lidar com o desencontro fundamental entre os sexos, que, na adolescência, é colocado em evidência de uma forma inédita.

 

Se, como nos diz Lacan no Seminário 20 (1985, p. 75.), “a realidade é abordada com os aparelhos do gozo”, vemos que, atualmente, essa abordagem da realidade se faz muito mais pela via do objeto que pela via do falo e suas significações, ou seja, são dos objetos criados pela tecnologia que o sujeito espera uma resposta com a qual ele possa fazer frente ao real do sexo. Por exemplo, no relatório da NEL (Nueva Escuela Lacaniana) apresentado no último ENAPOL (Encontro Americano da Psicanálise de Orientação Lacaniana), em um caso clínico relatado, um adolescente faz o seguinte comentário: “Por que não inventaram um aplicativo de um aparelhinho que diga como conquistar uma garota?” Ora, o recurso ao objeto como tentativa de fazer existir a relação sexual, nós o encontramos na fantasia através dos objetos que são demandados e ou oferecidos ao Outro: seio, fezes, olhar e voz. Mas o que muda quando esse objeto é um aparelhinho ao qual se pode ter acesso “por um clique”[ii], sem necessariamente passar pelo Outro? Quais as consequências disso com relação ao saber, à concepção que se tem do corpo, à relação com o parceiro? Parece-me que, facilitando ou dificultando os laços sociais, temos aí, na introdução dos meios digitais, algo que modifica completamente a forma de abordagem da realidade. Essa transformação no aparelhamento do gozo para lidar com a realidade é o primeiro aspecto que eu gostaria de salientar.

 

2) O segundo aspecto diz respeito à adição que os adolescentes têm hoje com os meios digitais, assim como ao apelo crescente à pornografia, problema abordado no texto apresentado por Feres, que faz referência a uma conversação na qual os adolescentes dizem que “esparram imagens pornográficas”[iii]. Podemos situar esse problema não exatamente como uma tentativa de fazer a relação sexual existir (pois, isso incluiria uma tentativa de abordagem do Outro), mas, ao contrário, como uma maneira de – diante da evidência da inexistência da relação sexual em nossos dias – tentar fazer o todo pela via do mais gozar, prescindindo-se do Outro como parceiro. Essa posição, a meu ver, poderia ser descrita mais ou menos assim: a relação sexual não existe, mas o gozo sim; então, é preciso que o gozo não pare. Essa solução se sustenta no apelo a um gozo que tende a ser mantido no registro do necessário, ou seja, do que não para de se escrever.

 

Nesse sentido, parece-me que existe, por parte dos adolescentes de hoje, uma constatação da inexistência da relação sexual, ocasionando, em muitos casos, uma descrença numa relação possível entre os sexos. Serge Cottet (2011) nos diz, em seu texto “O sexo fraco dos adolescentes…”, que presenciamos, hoje em dia, “uma forma moderna de não-relação”. Lacan, no Seminário 7, situa o amor cortês, na Idade Média, como uma forma elegante de não-relação, pois manter a dama em um lugar inacessível seria uma forma de não ter que se haver com a real impossibilidade da relação sexual, fazendo parecer que somos nós que colocamos a barreira que torna A Mulher inatingível. A elegância dessa solução provém do lugar de alteridade no qual a dama é colocada. Podemos aproximar essa forma de não-relação que encontramos nos dias de hoje (no apelo à pornografia e na adição aos objetos tecnológicos) dessa solução medieval, mas em uma versão, diríamos, bem menos elegante. Na forma atual de não-relação, é justamente a alteridade do parceiro que se encontra abolida, tendo sido substituída pelo gozo solitário, o gozo do Um-sozinho, que provém da relação direta com o objeto, um objeto que se encontra à mão e não depende, necessariamente, de uma relação com o Outro.

 

3) O terceiro aspecto importante diz respeito ao campo da linguagem. Não podemos desconhecer que um novo uso da linguagem é inaugurado a partir dos meios digitais: ela aparece de forma “abreviada, imperativa, na qual se misturam imagens, palavras, sinais sonoros, ícones”[iv]. Uma linguagem escrita, caracterizada pela exclusão da materialidade de um corpo a corpo entre os que nela estão envolvidos.

 

Diante disso, que efeitos podemos extrair da introdução da palavra falada e da presença dos corpos como, por exemplo, acontece em uma Conversação como a relatada por Ludmilla Feres? Penso que essa experiência da Conversação com os adolescentes mostra-nos que a introdução dos corpos e da fala acaba por revelar algo que, paradoxalmente, estava velado pela mostração das imagens pornográficas: a divisão diante do olhar do Outro – a divisão da sala (entre os estudiosos na frente e os bagunceiros do fundo), a divisão entre os sexos (entre meninos e meninas), a diferença entre os próprios meninos (os que “esparram” e os que “não esparram”), a diferença entre as meninas (as que mostram tudo e as que não mostram). Ou seja, a conversação introduz um furo na imagem, tanto do lado da escola como do lado dos alunos, fazendo aparecer a divisão e, ao mesmo tempo, localizando os diferentes modos de gozo. Além disso, podemos nos perguntar se a tendência dos alunos de tudo mostrar não seria uma resposta à posição da Escola, que, segundo eles, ocupa o lugar de uma câmera que tudo vê.

 


BIBLIOGRAFIA
COTTET, S. “O sexo fraco dos adolescentes: sexo-máquina e mitologia do coração”. In: Ensaios da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
LACAN, J. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor (Seminário de 1959-1960).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985 (Seminário de 1972-1973).
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia. Acesso em 28 de fev. de 2016.
Relatório “Os adolescentes nos meios digitais e seus novos laços”, apresentado no VII ENAPOL – Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana. São Paulo, set. de 2015
[i] MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança.
[ii] Idem.
[iii] Relatório – “Os adolescentes nos meios digitais e seus novos laços”, apresentado no VII ENAPOL –Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, em setembro de 2015, São Paulo.
4 MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto da Criança.

Simone Souto
Simone Souto. Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). ssouto.bhe@terra.com.br



Um Saldo De Saber: Do Jogo Aberto Nas Redes Sociais À Declaração De Amor

LUDMILLA FÉRES FARIA (RELATORA)
POR GIULIA PUNTEL

No início da década de 70, em seu Seminário Mais, ainda, Lacan anuncia o lugar de destaque que os instrumentos produzidos pela ciência ocuparão na vida dos homens. Chega a profetizar que a invenção de objetos como o microscópio e a radiotelevisão, que ele nomeia de gadgets, comandariam a existência dos homens, tornando estes cada vez mais “sujeitos dos instrumentos” (LACAN, 1973, p.110) e anuncia, ainda, a profunda modificação que eles trariam às formas de laço social.

Não passa despercebido ao psicanalista a relação entre a série de objetos e a fantasia de suprir o que “não se pode dizer, isto é, a relação sexual” (p. 110). Lacan dá peso ao fato de que a fantasia prometida pelos gadgets ― de harmonia entre o sujeito e o Outro ― escamoteia o fato de que esses objetos, na verdade, mantêm os sujeitos cada vez mais apegados ao gozo autoerótico.

Podemos considerar que a profecia de Lacan tomou um vulto que seria impossível medir. Os objetos da ciência invadiram a vida moderna. Nas últimas décadas, a chegada dos computadores seguida das mídias sociais possibilitou ao homem um acesso a lugares e coisas que ele jamais imaginaria. Não existem mais espaços inatingíveis. Paradoxalmente, é nesse universo inundado pelas telas, que nos conectam em tempo real com o outro, que constatamos que os homens não estão menos sozinhos. Ao contrário, os smartphones e os tablets ― extensão dos nossos corpos ― surgem como novos parceiros aos quais os homens se ligam cada vez mais, favorecendo a reiteração do gozo de “l’Un tout seul”.

Estamos diante de um problema de toda a sociedade humana: a dificuldade de saber quanto ao sexo. Pois, diferente da solução do instinto animal, o ser humano não possui um saber sobre o que o complementa. E, embaraçado com a pulsão, encontra esse buraco. Todavia, esse é um problema com o qual prioritariamente defrontam-se os adolescentes, justamente por ser esse o momento em que eles devem afastar-se de seu corpo de criança e das palavras de sua infância para decidirem pela escolha de seu objeto de desejo.

Nessa hora, recorrer aos objetos oferecidos pela técnica pode tanto favorecer um encontro possível com o Outro sexo ― conforme nos disse um jovem: “a rede social serve a um cara que é mais tímido” ―, como afastar os adolescentes para um turbilhão que os exilam cada vez mais do Outro. Miller, em seu texto Em direção a adolescência (2015), ao afirmar que os jovens modernos padecem mais da incidência do mundo virtual do que aqueles de gerações passadas, salienta que se trata do resultado do enfraquecimento do Nome-do-Pai, que foi intimidado pelos dispositivos de comunicação. Para ele, é importante destacar o desgaste sofrido pelas instâncias que tinham a incumbência de transmitir “o que convém ser e fazer para ser um homem e para ser uma mulher” (p. 6). Acrescenta que tais mudanças deixaram um saldo de desorientação profunda nos jovens de hoje.

Mas, advertidos de que o discurso da técnica não retrocederá e que as novas gerações estarão cada vez mais confrontadas com esses objetos, interessa-nos fazer uma leitura de qual uso os adolescentes fazem das mídias sociais no que se refere ao laço. Pode-se dizer que o acesso mais fácil ao gozo, nesses tempos que correm, faz mais fácil o acesso ao Outro sexo, tal qual nos chamou atenção o jovem citado anteriormente? E de que forma a psicanálise pode se inserir nesse debate?

O outro efeito da entrada na era digital é o fim do espaço íntimo. Segundo Wajcman (2010), estamos na era da permissividade, na qual tudo se publica e se expõe; isso sem nenhum índice de vergonha. Em entrevista, ele lembra as palavras de Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook: “é preciso romper o laço entre o secreto e o íntimo, porque esse laço é uma herança obsoleta do passado” (2010). Destaca que os mestres da internet não têm escrúpulos ao profetizar o futuro como o da era do fim das barreiras entre o privado e o público. Sua posição coaduna com a de Miller (2015) que afirma que “os constrangimentos naturais foram rompidos pelo discurso da ciência”.

Freud sublinha a importância das barreiras impostas pela educação na escolha do objeto, cita o pudor, o asco e a vergonha como diques de resistências que “conduzem as correntes sexuais pelos caminhos chamados normais e lhes impedem de reviver impulsos recalcados” (FREUD, 1987, p.42). E aponta que os impulsos mais atingidos por elas são os da fixação às pessoas da primitiva escolha de objeto. Ou seja, o laço com o Outro não se dá, segundo Freud, às expensas do recalque do primeiro objeto de desejo.

O que nos leva a realçar a queda das barreiras como uma das causas da invasão da pornografia na relação entre os sexos. Miller (2014) isolou a pornografia como o sintoma advindo da proliferação das imagens. Atesta que “passamos da interdição à incitação, ao forçamento”, o que não é sem consequência nos costumes das novas gerações.

Como os adolescentes situam-se nessa época da transparência, da exibição dos corpos e dos coitos? O que visam ao postarem cenas íntimas nas mídias, fato cada vez mais corriqueiro entre eles? E quais os efeitos dessas divulgações? Essas foram as questões que nos guiaram para abordar o problema apresentado pela equipe diretiva de uma escola de classe média de Belo Horizonte. Segundo relatos, os alunos do 2º ano E.M., de 16 a 17 anos, postaram fotos íntimas de colegas, gerando um constrangimento na turma e um impasse para a escola. Foi a partir desse ponto que demos início à “Conversação”[2], com a perspectiva de que eles pudessem nos dizer o que estava ali em jogo.

 

Da marca do olhar invasivo do Outro à transgressão

 

Após a apresentação do tema da “Conversação” para a turma ― o uso inadequado das redes digitais dentro da sala de aula e entre os colegas ―, os alunos negaram enfaticamente qualquer problema desse tipo: não fazem uso da internet, guardam o celular no início das aulas, nenhum deles tem esse comportamento…

Para eles, “a questão do celular é coisa da escola na era da tecnologia, não é para falar disso”. O problema da sala é a divisão entre “frente e fundo”. Sustentam que os professores traçam uma linha, com o olhar, que divide a sala em duas: os bagunceiros ficam atrás e os estudiosos, na frente. E completam: “o professor tem uma visão meio marcada de trás”. Em seguida, deslocam-se do professor para a presença de uma câmera filmadora. Essa, diferente do professor que chega até a inibir por estar próximo, não serve para nada. Acentuam: “aquela câmera ali não grava nada, serve só para causar!”. Demonstram, assim, o desprezo ao dispositivo que diuturnamente acompanha seus passos ao afirmarem de forma irônica: “Ah! não vou colar por que a câmera tá me vendo?”.

Agora, voltam-se para a divisão entre “meninas e meninos”. Surgem as questões sobre a diferença sexual, e não é sem consequência o fato de uma menina ficar no grupo de meninos. Nesse caso, ou a menina é “uma piranha” ou passa a ser vista “como menino”. Conta-nos uma delas: “eu me chamo Vitória Maria, mas me chamavam de Vítor Mário, porque eu só andava com meninos”. Com eles não é diferente, os que andam no meio de meninas também são “zoados”: “é galinha ou gay”. De “piranha a ‘maria-homem’” ou “de galinha a gay”, os grupos se classificam a partir dos comportamentos.

Mais à frente, a diferença é introduzida no cerne dos grupos. Há os homens que “fazem coisas” e não expõem as meninas, e aqueles que fazem, mas falam e expõem nas mídias sociais: “tipo o cara que pega mulher e vai contar pros amiguinhos no whats” e também “a mulher que fala”. Segundo eles, são os que “esparram”[1], que contam tudo. Passam assim de uma classificação a outra, na tentativa de encontrar uma resposta para o que é ser um homem e ser uma mulher.

Frente ao impasse dessa divisão, eles retornam à discussão sobre a função do Outro social. À vista disso, a escola surge novamente como o problema; primeiro proíbe demais: “não pode nem abraçar” ou “um menino tomou suspensão por causa de um selinho”. Ou, então, não sabe colocar limites: “o ideal seria deixar as pessoas namorarem, só que dentro de sala não”. Por fim, acrescentam que ela é mais rígida que os pais: “tem muito pai que deixa, mas a escola nunca deixa nada”. Para eles, o único motivo que leva a escola a proibir namoros, beijos, abraços e uso do celular é o dinheiro dos pais: “a escola proíbe por causa dos pais, pois eles pagam a mensalidade”.

Os jovens denunciam que a escola funciona como câmera filmadora, uma instância superegoica, que dita a lei de forma caprichosa. E que, assim, ela se excede nas proibições à medida que não flexibiliza, tornando-se mais rígida que os próprios pais: “o pai às vezes sabe e não fala nada; a escola não!”. Conforme Freud, o supereu é essa instância moral que não visa a uma obediência, mas a uma docilidade ao mandado.

Todavia, os jovens nos demonstram como colocam suas objeções a esse Outro que se apresenta invasivo: “eu acho melhor ficar assim, porque tudo que é proibido é mais gostoso”. Ou seja, a infração pode introduzir um “não” nesse imperativo, apontando o paradoxo da lei: ela é sua própria destituição. Nesse instante, foi importante uma intervenção para reafirmar que também é função da escola regular coisas que levam a excessos, isso que não é muito fácil de controlar, tal como o uso do celular e a relação entre os adolescentes, lembrando-lhes que esses excessos geram situações difíceis, como eles mesmos trouxeram: “os meninos que expõem as meninas mais do que elas gostariam” ou “a menina que fica com mais meninos do que eles acham que ela deveria”.

O que se segue demonstra o efeito da interpretação: os jovens deixam de lado a estratégia de afirmar que o problema é o Outro social que regula demais e passam a contar sobre o universo da pornografia, sem nenhuma regulação das mídias. Universo esse que permite ver o outro sem ser visto, exibir-se e convocar o outro a se exibirtudo feito de forma a evidenciar o não saber como lidar com isso que os excede. O que testemunha que, na pornografia, trata-se de uma convocação ao mais de gozo, resultante do enfraquecimento do Nome-do-Pai.

Veremos, em seguida, como a pornografia tomou conta da cena ― doravante ocupada pelas classificações e pela infração ― para responder aos impasses da sexualidade. A pornografia torna-se, então, o tratamento dado pelos jovens à “relação sexual que não há”. Miller é enfático ao afirmar que apenas a ausência da relação sexual pode dar conta de explicar a difusão planetária, a empolgação da pornografia. O que demonstra que, tal qual a classificação, ela um sintoma do império da técnica, que traz, como consequência, “o desencantamento, a brutalização e a banalização” (MILLER, 2015 ).

 

Do apagamento do Outro à difusão da pornografia

 

Dentre as mídias sociais, os jovens destacam o que chamam de “lado obscuro”: o “snapchat”[2], mais usado para mandar “nudes”[3]. O diferencial do programa é que a foto some da tela, sem deixar rastros, em poucos segundos. É usado, em especial, pelas meninas para mandar nudes para os namorados. Mas, o problema é que elas mandam para os namorados e eles podem “printar”[4] a foto e enviá-la para qualquer um. Eles dão o exemplo da garota que “mandou foto para o namorado dela e, depois que terminaram o namoro, ele postou um álbum no facebook”.

O impasse trazido pela exibição nas mídias configura-se da seguinte forma: as meninas se queixam que os meninos as expõem demais, e os meninos dizem que as meninas se exibem demais. Conforme diz o garoto: “as meninas ficam falando que homem é galinha, mas direto vaza foto de menina pelada”. E a resposta é: “o menino gosta também que a menina se exiba! E, depois, dizem que está exibindo demais”. Como regular esse impasse, que é traduzido por elas como um problema de confiança? “Ela não se expôs, ela mandou para quem confiava”. Por que os meninos “esparram” as fotos? Um deles afirma ser uma questão de imaturidade.

Tal movimento indica-nos uma tentativa de constituir a parceria amorosa. A menina tenta seduzir o menino enviando a foto, uma demanda de amor, como elas mesmas apontam. Os meninos, por seu lado, recuam frente a essa demanda e respondem com a divulgação. Pode-se depreender desse jogo uma estratégia dos meninos de fazer existir a relação sexual via degradação do objeto?

Essa é a hipótese freudiana desenvolvida no texto Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor, no qual é realçada a tendência universal à depreciação em consequência da necessária divisão entre corrente sensual e de ternura.

A ideia de Freud é que a criança, desde seus primeiros anos, leva consigo as marcas da presença arcaica de uma corrente afetiva ― dirigida àqueles que cuidaram dela ― em detrimento da corrente sensual. Assim, a escolha erótica do sujeito surge sob a égide do caráter primário da corrente afetiva. Durante o período de latência continua a primazia da corrente de ternura, e a sensual fica em suspensão. Na puberdade, momento em que o sujeito é confrontado com uma escolha de objeto distinta dos objetos parentais, surge a impossibilidade de manter essa aliança. A poderosa corrente sensual desperta e não se equivoca mais com seus objetivos. O sujeito deverá fazer a escolha do novo objeto a partir da junção das duas correntes. Todavia, esse objeto reencontrado, por portar traços do primeiro objeto de amor ― a mãe ―, despertará o horror ao incesto. Surge daí a necessidade de degradar o objeto, evitando a lembrança de qualquer traço do primeiro.

Trata-se de uma extraordinária artimanha, uma condição de amor: que a mulher escolhida seja depreciada. Ao fazer da depreciação uma condição universal para a escolha do objeto, Freud dá valor ao fato de que para os humanos não existe proposição sexual, pois, se existisse, um homem poderia eleger uma mulher, amá-la, desejá-la e gozar dela como mulher. A depreciação do objeto possibilita o acesso à mulher, mas não a todas, apenas às que passaram pelo processo. Nesses casos, algo da relação sexual que não existe pode se inscrever.

Contudo, as meninas dão testemunho do fracasso dessa estratégia masculina, quando estão em jogo as mídias, ao afirmarem que, mais do que degradá-las para em seguida possuí-las, os meninos pedem as fotos e depois as descartam: “tem homem que pede foto pelada para menina, porque se a menina mandar ele a larga”. Os meninos confirmam: “é tipo um teste: no primeiro mês de namoro você pede, se a menina já mandar é porque ela já fez isso outras vezes, aí você sabe que ela não é para você”. O que nos leva à hipótese de que, com as mídias sociais, a condição de depreciação não serve como estratégia para conter o gozo e direcioná-lo para o objeto de desejo. Diversamente, nesses tempos que o Outro não existe, a tendência ao rebaixamento provoca um empuxo ao “mais gozar”, via masturbação. Não é a mulher como causa de desejo que está em jogo, mas a mulher como objeto dejeto, que serve ao gozo do órgão, o que radicaliza a condição do impossível da relação sexual que não cessa de não se inscrever.

Os jovens passam a descrever a forma como esse desencontro radical apresenta-se para eles: “é traumático”, diz um garoto. Justamente por que, sem um saber prévio sobre o que fazer frente ao Outro sexo, os meninos acabam refém do gozo desse Outro, como o garoto acrescenta: “se você quer seduzir a pessoa e se você não souber do que eu gosto vai se tornar mais um trauma que sedução. Por isso que a sedução tem que ter um conhecimento”.

Frente a esse mal-entendido do encontro com o Outro sexo, os adolescentes necessitam inventar uma resposta singular, e é agora que Outro social pode transmitir-lhes uma invenção para encobrir esse vazio. Entretanto, essas respostas hoje são buscadas nas redes que trazem novamente para a cena a pornografia, afastando-os da possível construção de uma intimidade. Tudo, então, é pornográfico: “a mulher no baile funk, a que coloca a bunda de fora ou mesmo os funks”, pois se eles falam de carro para chamar mulher, “que tipo de mulher vai atrás de cara por dinheiro?”.

Um tumulto se instala na sala, os adolescentes passam a descrever comportamentos pornográficos, tornando necessário um corte que possibilite retomar a conversa sobre a intimidade, na qual se dá o laço com o Outro. Afinal, fica cada vez mais claro que abandoná-los à pornografia é mantê-los entregue ao gozo autoerótico, enviando-os de volta a seus gadgets ― parceiros dessa solidão globalizada. A intervenção feita nesse momento foi no sentido de dizer que nem tudo é pornografia, o que tornaria todos os atos desses jovens reprováveis; mas também que essa conversa instaurou uma bagunça, um rosário de acusações morais entre eles, ou seja, um gozo generalizado que não possibilita nenhum saldo de saber. Tal intervenção coaduna com o que Lacan adverte: “Não iremos falar do gozo assim. Já disse sobre ele o suficiente para que saibam que o gozo é tonel das Danaides, e que uma vez que ali se entra não se sabe onde isso vai dar. Começa com as cócegas e termina com labaredas de gasolina. Tudo isso é, sempre, o gozo” (LACAN, 1992, p. 68).

Torna-se necessário, portanto, regular isso que excede pela via da pornografia, o que foi feito dando ênfase às perguntas: o que é a intimidade? Como diferenciá-la da pornografia? Surgem as respostas: “a própria palavra diz, são só vocês dois, não tem que conversar em mídia social”, ou “intimidade tinha que ser entre quatro paredes, coisa de um casal”. Assim, abre-se um terceiro e último estágio, a partir da fala de um jovem que afirma: “falar da intimidade é tocar na ferida”, seguido por outros: “é coisa de mulher”, e, por fim, “é a dança do acasalamento”.

 

Intimidade: da pornografia à dança do acasalamento

 

Segundo Miller, a intimidade é o que é próprio ao registro da psicanálise, já que ela se nutre da vida privada. Assim como o ato analítico assemelha-se ao verbo intimar, que significa dar a conhecer. Entretanto, esse dar a conhecer em nada se iguala à exposição das mídias; contrariamente, trata-se do privado que “é designado pelo pudor” (LACAN, 2003, p. 558).

Assim, em oposição ao mestre moderno, que fixa os sujeitos no regime do gozo, sob os auspícios da liberação sexual e que reforça o sistema do mestre com o mando: “um esforço a mais para gozar!”, Lacan destaca a função do envergonhar-se, que consiste em dissociar os sujeitos dos significantes mestres e ainda levá-los a perceber o gozo que daí extraem.

Introduzir a barra no blá-blá-blá dos jovens sobre a pornografia proporcionou-lhes a oportunidade de abordar a sedução sob a roupagem do amor. Seduzir passa a ser “a dança do acasalamento” ou “a mulher para provocar o desejo do homem não precisa ‘jogar aberto’, exibir-se”, ou, ainda, “no jogo de sedução, a mulher tem que ser impossível para o menino se interessar”. E um garoto afirma: “acho que é a declaração de amor que elas querem”. Ou seja, os jovens atestam que a mulher, para manter sua alteridade fundamental, não deve se expor.

Nesse sentido, no trabalho com os jovens fascinados pela mostração, podemos tomar a direção apontada por Laurent “lá onde o mestre mostra, e mostra sem pudor, a obscenidade, o psicanalista, ao contrário, recoloca o véu e evoca esse demônio sob a forma da vergonha” (2002, p. 7).

Tais constatações nos levam a tomar a vergonha em sua função civilizatória, que ajuda a circunscrever o gozo, a fixá-lo. Ao analista, nesse momento, cabe a função de introduzir o véu sob o gozo escancarado de nossos dias, como demonstrado por alguns dos adolescentes, de tal forma que possa abrir caminho para que cada um se responsabilize por suas escolhas. Nesse sentido, o analista deve estar advertido de que seu lugar também depende da possibilidade, ou não, de um novo laço de amor se instalar.

 

1 Relatório apresentado durante o VII ENAPOL- Encontro Americano da Orientação Lacaniana. São Paulo. 2015 e posteriormente na Conversação do Instituto de Psicanálise de Minas Gerais (2016)
2 Participantes do Relatório: Bernardo Micheriff Carneiro (MG), Elizabeth Medeiros (MG); Inês Seabra (EBP/AMP/MG); Ludmilla Féres Faria (relatora. EBP/AMP/MG); Maria José G. Salum (EBP/AMP/MG; Mariana Aranha (MG); Michelle Sena (MG); Miguel Antunes (MG).
3 “Esparrar”: esparramar, colocar na rede social.
4 Snatchat: mensageiro semelhante ao WhatsApp.
5 Nudes: fotos e vídeos nus
6 Printar: salvar a imagem

 


Bibliografia
BROUSSE, M-H. El superyó: del Ideal hacia el objeto. Perspectivas políticas, clínicas y éticas. Coleccion Grulla: Cordobá, 2011.
ELKIN, M. Despertar de la adolescência. Freud y Lacan, lectores de Wedeking. Buenos Aires: Grama Ed., 2014.
FREUD, S. (1987). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor In: Contribuições à psicologia do amor (Vol. 11, 2a ed., pp. 161-173). Rio de Janeiro: Imago. (Publicada em 1909).
FREUD, S. (1987). Cinco lições de psicanálise (Vol. 11, 2a ed., pp. 12-51). Rio de Janeiro: Imago. (Publicada em 1909).
LACAN, J. (1992). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1969-1970).
LACAN, J. (1985). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1972-1973).
LACAN, J. (2003). Prefácio a O despertar da Primavera. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Publicada em 1974).
LAURENT, E. A vergonha e o ódio de si. In: Carta de São Paulo. EBP-MG, ano 9, n. 7, 2002.
MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Disponível em: <http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia>.
MILLER, J.-A. (2010). Extimidad. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. (Seminário de 1985).
MILLER, J.-A. (2012). La fuga del sentido. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. (Seminário de 1995).
WAJCMAN, G. A propósito de El ojo absoluto. Disponível em: <http://virtualia.eol.org.ar/020/template.asp?entrevistas/wajcman.html>.

Ludmilla Féres Faria (Relatora)
Ludmilla Féres Faria – Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: ludffaria@uol.com.br



Almanaque On-Line Entrevista – PHILLIPE LACADÉE

PHILLIPE LACADÉE

 

PHILLIPE LACADÉE

 

Ana Lydia Santiago: Jacques-Alain Miller, em seu texto “Em direção à adolescência”, apresenta a sua análise da demanda incondicional de respeito dos adolescentes: “Eu quero ser respeitado”. Segundo sua tese, o que especifica essa demanda é o fato de não ser articulada ao Outro. Ninguém sabe quem pode satisfazer essa carência, enquanto a questão do Outro permanece obscura. Na sua opinião, a que responde o vazio dessa demanda que o adolescente endereça ao Outro?

Philippe Lacadée: Analisei a demanda de respeito a partir de um momento preciso, na França: um movimento de estudantes de segundo grau em que adolescentes – eram moças – pediam respeito. Fiz disso um dos nomes do sintoma da adolescência tanto mais porque, naquele momento, eu estava especialmente interessado nos movimentos rap e hip hop e percebi que muitos desses adolescentes se mostravam desrespeitosos. E, na falta de respeito deles, o que queriam era receber respeito do outro. A palavra respeito vem do latim respectus, que significa nos voltarmos para olhar o outro. É como se, através de seus movimentos ou comportamentos desrespeitosos e provocativos, os jovens nos demandassem olhar para eles e distinguir o elemento de novidade que carregam em si. Essa é a tese de Hannah Arendt, em A crise na educação: cada criança ou cada adolescente carrega em si um elemento de novidade e deseja que o outro que cuida dele – seja o adulto parental ou o outro do mundo da educação – distinga, nele, seu lado particular, sintomático. Por isso mesmo a demanda de respeito é uma demanda invertida, já que normalmente aquele que tem direito ao respeito é, de preferência, o adulto ou o pai. Entretanto, como há uma carência da função paterna, ou uma carência do simbólico, os adolescentes não encontram outra solução para o que vivem em seus pensamentos ou em seus corpos senão colocar suas sensações em evidência para que se destaque o que eles são. Isso é muito importante porque não tem nada a ver com o respeito, tal como Kant o compreendia. Para esse filósofo, o respeito era um tipo de reciprocidade imaginária: “eu te respeito porque você me respeita”. Os adolescentes de hoje, muitos deles, se referem preferencialmente ao lado desrespeitoso, tal como bem mostrou um outro filósofo, Blaise Pascal: “eles pedem respeito para que possamos lhes distinguir”.

 

Ludmilla Feres: No início de nossa conversa, você citou o caso de um jovem que matou o próprio pai para ficar livre das exigências dele de participar do tráfico de drogas. Observou que o ato desse esse jovem foi uma tentativa de se separar de seu pai. Podemos ler, nesse caso, uma demanda de respeito do rapaz?

P.L.: Sim, claro! Podemos responder a essa questão retomando dois momentos precisos em que Lacan tratou a questão do respeito. Em “De uma questão preliminar…”, diz que o pai tem direito ao respeito em função do caso que faz a mãe de sua palavra. É como se, de fato, fosse muito importante para as crianças respeitar o pai porque a mãe dá crédito à palavra dele. E, ao final de seu ensino, Lacan diz que o pai só tem direito ao respeito se fizer de uma mulher o objeto causa de desejo. E, mais ainda, que o pai deve ter um cuidado paterno por seus filhos, o que poucos pais fazem. No caso desse jovem que matou o seu pai, do qual falei, o pai o utilizava apenas como um objeto de gozo, para obter dinheiro para o tráfico de drogas. Ele o desrespeitava como filho, de modo que o filho não podia mais respeitar seu pai. Esse é o problema da civilização moderna. Hoje, na França, temos problemas com as civilizações que vêm do Magreb, da África do Norte, onde a questão do respeito é muito importante. Nas famílias tradicionais de origem árabe, o pai é extremamente respeitado, o que faz com que o respeito esteja bem colocado. Tem-se, nesse caso, uma demanda invertida: a criança demanda respeito para ser considerada uma criança.

 

A.L.S.: Na adolescência, observa-se uma modificação sintomática na relação dos jovens com o saber. O próprio Freud a notou, em sua época. No entanto, isso toma uma nova configuração após a era digital, após a incidência do mundo virtual. Você poderia comentar essa modificação no saber a partir de sua experiência de Conversação em escolas?

P.L.: Uma professora escreveu um livro que se chama Presente[1], que mostra muito bem que os professores devem estar presentes na escola ou ter habilidade nas respostas para efetivamente conseguir transmitir um saber. O professor deveria ser capaz de transmitir sua disciplina da melhor maneira, encarnando-a, demonstrando como ele sabe saber-fazer com isso, pois se há algo que mudou em nossa civilização é o fato de certas crianças e adolescentes estarem diretamente conectados ao mundo virtual, através do Google, e, assim, podem ter acesso a conhecimentos que, no meu modo de ver, não são obrigatoriamente um saber. Para que o saber possa existir para os jovens, é preciso ser transmitido por um adulto. É o que se espera dos professores e, mesmo, de um pai ou de alguém que cuida de uma criança. Ou seja, não se trata de receber um saber desencarnado, que se arquive em meio a uma série de conhecimentos. Para que um saber possa ser transmitido, o adulto, o professor, deve conseguir demonstrar como o saber transformou sua própria existência. Essa é a verdadeira função da transmissão. Os alunos são muito sensíveis a duas dimensões essenciais nos professores – o olhar e a voz –. No entanto, é na maneira pela qual o professor dá vida à transmissão que o que ele ensina pode se elevar à dignidade de um saber.

 

Virginia Carvalho: Freud indica a “construção” como uma estratégia para lidarmos com o que a palavra é incapaz de dizer. A propósito, ele evoca o trabalho do arqueólogo, que precisa reconstruir culturas e sociedades antigas unindo os vestígios materiais que encontra. Ou seja, diante de peças soltas, inventa uma coerência para que constituam um todo. No CIEN Minas estamos trabalhando esse tema das “construções adolescentes”. Você poderia nos dizer algo sobre as construções contemporâneas que tem acompanhado no CIEN na França?

P.L.: Sim, há uma frase de Freud, em O nascimento da psicanálise, que permite esclarecer essa questão: ele diz que todo excesso de sensação impede a tradução em imagem verbal. Todo excesso de sensação inédita, de gozo que muitos adolescentes vivem, os impede de traduzir, de construir com palavras – pois o que Freud chama de imagens verbais são os significantes –, os impede de construir algo na língua do senso comum – língua dos adultos –, que eles rejeitam. No fundo, esse é o problema dos adolescentes: eles querem se fazer escutar em suas construções, que são feitas seja a partir do que resta da sua infância, seja a partir do que eles vivem. E é por isso que se veem surgir, no momento da adolescência, muitas construções – como eu mesmo vi, nos laboratórios do CIEN, no início, quando me interessei pelos textos dos cantores de rap e do hip hop – que retomam o resto das civilizações de seus pais. Como a teoria dos Griottes[1], tradição rejeitada pela geração que se mudou para a França para viver em uma civilização onde não se podia mais viver como vivia nos campos: os jovens dessa geração tiveram a ideia de utilizar esse resto de civilização para elevá-lo à uma dignidade da modernidade, introduzir isso em uma música e retomar os movimentos corporais, que são muito mais livres na África do Norte. Vê-se muito bem como, com isso, conseguiram construir um tipo novo de linguagem, muito ligada ao corpo e ao manejo do gozo. É preciso notar que tudo isso poderia muito bem ser tomado como algo do senso comum, da língua clássica, que os adolescentes rejeitam. Por isso, é preciso dizer sim aos que apresentam como construção, para não deixá-los isolados, sozinhos. Por isso me interessei pelo texto de suas músicas, para demonstrar que, nesses textos, os adolescentes retomavam questões fundamentais.

 

A.L.S.: Você está em Belo Horizonte a convite do 1º Colóquio Internacional OCA, promovido pela UFMG e pelo IPSM-MG, cuja proposta foi a de discutir o tema Mais além do gênero: o corpo adolescente e seus sintomas. A seu ver, qual foi o ponto mais candente desse debate? Você acredita que o tema da sexuação é apropriado para uma abordagem nos laboratórios do CIEN?

P.L.: Assisti a um colóquio formidável! E devo confessar que a discussão dos casos clínicos, no primeiro dia, me deixou preocupado e um tanto angustiado com a constatação de que, hoje, não precisamos mais ficar aprisionados no nosso próprio corpo, podemos trocar de sexo, trocar de gênero. De fato, é inquietante ver como uma criança pode querer modificar seu sexo, desde muito cedo. A pergunta que devemos nos fazer: como acompanhar esses casos? Deixamos as crianças, os adolescentes, e, mesmo, alguns pais responderem tão prontamente a essas modificações corporais e de sexo? Por isso acho muito importante poder trabalhar essas questões nos laboratórios do CIEN e nos núcleos do IPSM-MG, pois talvez seja preciso se dar conta de que, nessas demandas, pode haver sujeitos que sofrem de uma experiência de vida que designamos psicose, em que, em nome de uma certeza, pode-se acreditar que a simples mudança de sexo resolveria todos os problemas. Por esse motivo, considero também importante, como foi feito no Colóquio, voltar a Freud, retomar seu texto As metamorfoses da puberdade, em que se encontra uma diferenciação precisa entre sexo e sexualidade. Para Freud, a sexualidade não se reduz ao sexo. Há uma sexualidade que pode passar por objetos pulsionais, como o olhar e o objeto voz, que faz com que sensações de gozo se articulem a esses objetos pulsionais e não obrigatoriamente passem pelo órgão sexual. É importante também diferenciar as respostas, como faz Lacan em sua releitura de Freud, ao destacar que, mesmo para uma criança que se situa na lógica fálica, no momento em que ela se depara com a questão do seu sexo – como ocorreu com o pequeno Hans –, ela pode viver a ereção de seu pênis como um gozo estrangeiro, que chegaria até mesmo a persegui-lo. E sob o pretexto se livrar-se desse elemento estrangeiro que vive em seu corpo, pode acreditar que a supressão de seu pênis resolveria a questão. Não sou especialista, mas recomendo a leitura dos textos apresentados no Colóquio OCA e também da coletânea organizada por Fabian Fajwacks: Subversão lacaniana das teorias do gênero, em que se encontram oito textos sobre essa questão. E como bem disse François Ansermet durante o X Congresso da AMP, no Rio (abril/16), entraremos em uma época em que a criança poderá exigir o direito de não mais se enclausurar no corpo que recebeu como menino ou menina, e corremos o risco de chegarmos muito longe com essa questão. E é isso que me inquieta.

 

L.F.: O encontro da criança e do adolescente com um gozo estrangeiro, estranho, é retomado por você em vários momentos dessa nossa conversa, até a propósito do jovem magrebino, na França. Qual a abordagem da psicanalise para isso, que é da ordem do estrangeiro?

P.L.: No fundo, a psicanálise é uma experiência de palavra, que ajuda o sujeito a traduzir o que ele experimenta como estrangeiro, em seu interior, ou fora dele, mesmo sem conhecer a significação do fato. O que não quer dizer que o analista dará a sua própria significação. O analista pode permitir o sujeito traduzir melhor o que ele vive em seu corpo. Entretanto, sempre haverá um resto, uma opacidade sobre as questões do sexo, do corpo, porque a vida é assim, não se pode traduzir tudo para a linguagem.

 

A.L.S.: Em Bordeaux conversamos sobre a ampla literatura publicada atualmente sobre o Estado islâmico, e você mencionou seu trabalho com profissionais que estiveram em contato com jovens franceses envolvidos com a causa ideal do E. I., também designada A armadilha Daech, para utilizar o título do livro recente de Pierre-Jean Luizard[2]. Você poderia falar para o Almanaque sobre sua experiência?

P.L.: Sim. Nos bairros da periferia de Paris fui contatado pela responsável do “conselho tutelar” da infância, que conhecia os trabalhos que realizei em uma escola de Bobigny. Juntamente com uma juíza da infância de um tribunal, também de Bobigny, propuseram-me supervisionar um grupo de psicólogos cuja intervenção consistia em escutar jovens franceses que estavam se radicalizando e partindo para a Síria. Ela me falou de um grupo de 35 jovens parisienses que teriam partido e não retornaram: foram assassinados na Síria. Na França, atualmente, há algo muito preocupante que corresponde à crise da adolescência. De minha parte, prefiro falar da crise da língua articulada ao Outro, pois o Estado islâmico, Daesh, compreendeu que era preciso oferecer ao jovem um discurso que eles pudessem articular. É muito simples o que propõem. Dizem-lhes, por exemplo: “Desconfie de seus pais, eles não te dizem a verdade”. Assim, propõem uma certa verdade. Efetivamente, na adolescência, o jovem deve se desembaraçar da autoridade dos pais, dos semblantes, e o Estado islâmico chega dizendo-lhes: “Nós lhes propomos a verdade”. Por outro lado, fazem saber que, uma vez criado o Estado islâmico, haverá um caos – que corresponde à pulsão de morte –, e é a partir desse caos que poderá surgir o profeta – o Midas –. “E, se você se juntar a nós, poderá, você mesmo, se tornar esse profeta”. Os jovens tem então a impressão de que, se deixarem o discurso dos semblantes dos pais, porque eles não dizem a verdade – é a teoria do complô, muito presente na França atualmente, há um complô organizado –, e se largarem tudo isso pelo discurso jihadista, encontrarão a verdade e poderão encarnar esse profeta que surgirá. É por isso que funciona! Quando éramos adolescentes, o importante era ir para Índia, ou para Catmandu. Era a época dos hippies. Pensávamos que a verdadeira vida estaria lá, onde, então, estaríamos diretamente conectados… com…

 

GIULIA PUNTEL

 

Transcrição e tradução : Renato Sariedinne
Revisão : Ana Lydia Santiago
[1] Personagens na África do Norte que transmitiam oralmente a velha tradição clássica.
[1] LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[2] Le piège Daech. Paris: Découverte, 2015.