Editorial Almanaque º19

LUDMILLA FERES FARIA

Eis aqui o Almanaque, o 19º de nossa série. Nossos textos foram cuidadosamente selecionados pelos integrantes da equipe de publicação desta revista eletrônica do IPSM-MG, a partir dos movimentos do Campo Freudiano. Neste número, você, leitor, encontrará material sobre o tema do XI Congresso Mundial de Psicanálise, “As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência”, e sobre o tema do VIII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL) “Assuntos de família, seus enredos na prática”. Acreditamos que a fluidez da internet possibilite que essas discussões reverberem e provoquem a participação de vários.

Na rubrica Trilhamentos, três autores abordam de forma clara e instigante as mudanças introduzidas na clínica psicanalítica a partir da construção do sintagma psicose ordinária, por Jacques Alain-Miller, nos anos 90. Iniciamos com o texto “Psicoses, ordenadas sob transferência”, de Miquel Bassols – atual presidente da Associação Mundial de Psicanálise –, no qual se questiona a forma discreta e dispersa com que as psicoses ordinárias se revelam, desfazendo as fronteiras e impossibilitando a construção de um mapa geral, o que poderia acabar por fazer evaporar essa categoria “precisamente pela extensão e efetividade deste uso”. Para avançar nessa discussão, o texto “Clínica lacaniana da psicose”, de Angelina Harari, atual vice-presidente da AMP, traça um percurso cuidadoso pela obra de Lacan, no tocante à psicose, demonstrando os fundamentos do que se passou entre a marca estruturalista recebida de Clérambault até a clínica universal do delírio. Yves Vanderveken, por sua vez, abordará no texto “Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos” as consequências desse sintagma para a direção do tratamento na clínica contemporânea.

Não deixe de ler! Você será fisgado pela tensão que se apresenta nos três textos em torno do tema das psicoses ordinárias. O Almanaque, em sua busca por tornar-se uma das referências sobre os temas discutidos nos espaços do IPSM-MG, passou a incluir, a partir deste número, uma bibliografia de textos sobre o tema a ser trabalhado.

Para saber sobre o que surge de novo em termos da psicose na prática cotidiana dos hospitais psiquiátricos, a equipe do Almanaque foi conversar com Juliana Motta, gerente tecno-assistencial do Instituto Raul Soares, que, na entrevista “Do confinamento ao manejo clinico”, resgata a história dos hospitais psiquiátricos de Minas Gerais e as mudanças ocorridas nesses espaços a partir da reforma psiquiátrica. A entrevistada deu destaque à importância da presença dos analistas de orientação lacaniana na construção desses espaços. É surpreendente a forma como essa articulação se mantém viva até os dias de hoje, em especial na parceria com o IPSM-MG, que, como ela nos lembra, foi celebrada a partir de um convênio entre as duas instituições no início deste semestre.

A psicose é também o mote do trabalho de Lacadée – “O escabelo de François Augiéras: escritura e pintura do corpo do de-lito (de-leito)” –, na rubrica Encontros, sobre o escritor e artista François Augiéras, que encontra em suas criações um lugar para abrigar sua “solidão extrema” e sua “crueldade de vida”.

Em Incursões, contamos com os textos produzidos nos espaços de pesquisas do IPSM-MG sobre o tema sobre a família contemporânea. No texto “A família contemporânea e o real do sexo”, Suzana Barroso questiona as consequências do que seria a “educação sem gênero” para a constituição subjetiva. Seguindo a autora, podemos perguntar qual seria a repercussão sobre o “ser-para-o-sexo” (LACAN, 1968/2003, p.363) dessa extrema liberdade concedida às crianças quanto à escolha do sexo. Pergunta essa de grande relevância para o momento atual e também para a investigação da XXI Jornada de EBP-MG, “O inconsciente e a diferença sexual : o que há de novo?”. Lúcia Mello, por sua vez, interroga se as transformações culturais e sociais que incidiram sobre os discursos atingiram o que Freud formulou como a lei primordial da humanidade: o tabu do incesto. Já Mariana Vidigal aborda o tema da família no texto “Os filhos de toxicômanos”, no qual procura questionar as respostas universais dadas por algumas políticas públicas no que diz respeito ao afastamento das crianças de seus pais quando estes são usuários de droga. Vidigal não deixa de destacar que a relação toxicômana com a droga pode provocar efeitos nefastos para os sujeitos, e que por isso mesmo elas devem ser tomadas no singular. Esses três textos, somados ao texto de Cassandra Dias, “Assuntos de família no discurso toxicomaníaco: impasses”, apresentam as consequências subjetivas advindas das mudanças no núcleo familiar. Para além do debate que ocorrerá em Buenos Aires, convidamos o leitor a ler esses textos, assim como “The Wolfpack: entre filmes e lobos”, considerando não apenas o viés clínico, mas também o viés político encontrado nas presentes elaborações.

Para finalizar, temos os textos apresentados por Magda Casarotti e Nubia Ferreira de Melo na última Jornada do IPSM-MG, cujo cuidado e rigor teórico na escrita nos permitem finalizar esta publicação recolhendo os efeitos que o curso de formação do IPSM-MG tem provocado em seus alunos.

Esperamos que o leitor encontre, nesta edição, referências que o convide a participar de nossos espaços de investigação e a nos remeter, também, suas produções e contribuições para nossas próximas publicações.

Desejamos-lhe uma ótima leitura!




Editorial Almanaque nº18

LUDMILLA FERES FARIA

Com vocês, o Almanaque 18, cujo tema “As novas configurações familiares”, com certeza, será de muito valor para nossos trabalhos rumo ao ENAPOL VIII – “Assuntos de família: seus enredos na prática”.

Em Trilhamentos contamos com a amável contribuição de Rose-Paule Vinciguerra, com o texto “A psicanálise em relação às famílias”, no qual a autora parte dos novos modelos de família, chamadas hipermodernas, para questionar se os efeitos da igualdade tendem a produzir uma indiferenciação sexual. Essa questão vai de encontro ao debate iniciado em nossa comunidade analítica rumo à XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – MG: “Inconsciente e diferença sexual, o que há de novo?”

Ainda em Trilhamentos, temos os textos de François Ansermet, “Avesso da Procriação”, e de Fabian Fajnwaks, “A família entre a ciência e a lei”. Os dois autores, cada um a seu modo, debatem os impasses subjetivos advindos do progresso da ciência e do discurso jurídico. Os casos clínicos apresentados demonstram a forma como a psicanálise pode contribuir para que os sujeitos inventem soluções para responder ao enigma de sua vinda ao mundo.

A rubrica Entrevista está imperdível! Não deixem de ler o que Marcia Tiburi, autora do livro “Uma fuga perfeita é sempre sem volta”, vai nos contar, de forma inédita, sobre o que constitui uma família. Sua afirmativa de que “é o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” é um fio condutor para o desdobramento de uma conversa que os instigará do início ao fim.

Na entrevista com Sérgio Laia, “O inconsciente e a família”, vocês verão a forma contundente com que o autor responde sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Recorrendo, em especial, ao texto de Lacan “Nota sobre a criança”, ele dará destaque “à função da psicanálise de amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias”. Agradecemos a Marcia Tiburi e a Sérgio Laia pela inestimável contribuição.

Em Incursões temos textos das colegas de Minas Gerais trabalhados nos espaços de investigação do IPSM-MG e da EBP-MG. Mônica Campos e Maria José Gontijo Salum abordam, através de estudos de casos e do filme “De cabeça erguida”, respectivamente, as possíveis conexões entre a psicanálise e o Direito e as saídas daí advindas. Já Márcia Rosa e Laura Félix Reis Maciel partem do postulado de Jacques-Alain Miller, segundo o qual a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais para questionar as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. O texto de Márcia e Laura nos serve, também, como uma guia de leitura da entrevista de Marcia Tiburi. Afinal, o que organiza uma família?

Em Encontros agrupamos as questões sobre a família em torno do vivo da clínica. Os autores Patrick Monribot, com “Esse X”, e Yves Depelsenaire, com “Grandeza e miséria de um nome”, apresentam a forma como o tratamento analítico possibilitou outros arranjos para os sujeitos lidarem com a herança familiar. Jean-Daniel Matet, em “Avatares e atualidade do complexo de castração”, faz uma releitura do conceito lacaniano “complexo de intrusão”. Vale a pena conferir!

Finalizamos este número em De uma nova geração, com duas ótimas contribuições das alunas do IPSM-MG: Ana Helena Souza, com o texto “Mentira e Ficção: o Discurso da Histérica, a Cura pela Fala e o Indizível do Sinthoma”, no qual recorre a uma obra de Samuel Beckett para investigar a relação do discurso da histérica com a mentira e a ficção, e o texto de Raquel Martins de Assis, que em “O amor pelo pai na histeria” retoma o paradigmático caso Dora de Freud e, a partir da leitura de Lacan, demonstra como o tema da armadura do amor ao pai se apresenta como uma importante faceta da histeria.

Agradecemos aos colegas que encaminharam seus textos, aos tradutores e aos revisores, sem os quais nosso trabalho seria impossível, assim como à equipe do Almanaque que, de maneira decidida, contribuiu para que este número fosse ao ar de tal forma, que pôde ser mais leve.

Desejamos que os leitores encontrem, neste número, pontos de pesquisa e de interesse que deságuem num debate profícuo dentro do nosso campo de trabalho.

Deixo com vocês o Almanaque 18. Bom trabalho!

Ludmilla Feres Faria
Diretora de Publicação



Grandeza E Miséria De Um Nome

YVES DEPELSENAIRE

 

O patronímico desse sujeito condensa toda sua neurose. Alguma coisa como uma “falsa ascensão”[i], a combinação de um nome plebeu e um aristocrático, ao mesmo tempo, como é nos célebres (Giscard D’Estaing e Galouzeaus de Villepin).

 

Marca de uma distorção da verdade, índice de um erro no registro do bem-dizer, o memorial de uma infâmia, aos olhos da história. Fonte de vergonha, por longo tempo ele foi reduzido pelo sujeito a sua primeira parte, tipo de letra encarnada, não consentida, contrastante, estranha, com sua distinção de linguagem e costumes.

 

Sobriamente elegante, pensativo, cortês, culto, trata-se de um homem na casa dos quarenta, oficial sênior em uma instituição internacional. Ele decide empreender uma análise por arrastar um rancor amargo após uma ruptura sentimental que retorna depois de muitos anos e, porque em sua função, era confrontado por conflitos difíceis com seu país de origem, que o incomodavam.

 

O sucesso profissional desse único homem, entre os irmãos, pela dolorosa exigência parental de estar à altura de seu nome o exclui precocemente das brincadeiras com sua três irmãs para permanecer em sua mesa de estudos. Ele conserva, entretanto, as lembranças alegres de seus primeiros anos passados em um país africano no qual seu pai, diplomata, recebeu o título de administrador colonial após a repressão sangrenta de revoltas. Onde ele foi frequentemente confiado a uma babá cuja afeição contrastava com a frieza maternal. Agora, ele verifica que a história colonial não é sem relação à origem da fortuna da família, que remonta ao tempo do comércio trilateral dos mercadores de escravos entre a França, a África e as Antilhas.

 

Ao se conscientizar de tudo isso durante a adolescência, o sujeito, habitado por uma nostalgia da África, entra em conflito com seu pai e toma horror das aclamações contínuas da nobreza de seu nome próprio, adquirido alhures. Por um longo tempo ele se apresentará usando somente a parte plebeia de seu nome, em que o paradoxo faz ressoar, de modo poderoso, a dimensão de cruz e de impostura. Não escapa, de modo algum, a esse analisante, que seu pai não é mais que um elo, na cadeia de um discurso, como sugere Lacan, quando evoca, no Seminário 2[ii], a herança do pai, como seus pecados:

 

Estou condenado a reproduzi-los porque é preciso que eu retome o discurso que ele me legou, não só porque sou filho dele, mas porque não se para a cadeia do discurso, e porque estou justamente encarregado de transmiti-lo em sua forma aberrante a outrem. Tenho de colocar a outrem o problema de uma situação vital onde existem todas as probabilidades que ele também venha a tropeçar, de forma que este discurso efetua um pequeno circuito no qual se acham presos uma família inteira, um bando inteiro, uma nação inteira ou a metade do globo (p. 118).

 

O sujeito, de fato, acusa menos seu pai de sua participação na administração colonial de que sua falta de reflexão sobre isso e do estilo de enunciação de suas certezas. É desse discurso que ele tenta se separar, esse de seu pai, certamente, mas também o de um bando – a aristocracia, um campo –, a contrarrevolução da Vendée[iii], uma nação que possui um passado colonial mal assumido. Presumivelmente, uma culpa do pai mais diretamente em relação ao prazer sexual está correlacionado a essas condições. Pois é ao preço de sintomas que tornam complicada e até condenam ao fracasso sua vida amorosa.

 

A mulher amada é para ele como Mary Poppins voando com seu guarda-chuva, cena que o levou às lágrimas durante sua primeira ida ao cinema. Nos compromissos arrastados por muitos anos, e, de repente, a quebra das promessas, escolhidas no modelo austero da mãe, que culminaram em relações, pelo contrário, ele se sente obrigado a terminar logo que a mulher esboça sua demanda ou que um compromisso pudesse se estabelecer, isto é, logo que se aproxima a perspectiva de se tornar pai. Ser o último de uma “falsa ascensão” é a maneira como paga a dívida que herdou com seu próprio nome, a neurose por meio da qual ele protesta, como Lacan diz sobre o Homem dos Ratos. Sem pagamento em direito comercial, o protesto é também o ato por meio do qual essa falha é contatada pelas autoridades judiciais. Daí o simulacro de reedição da dívida que constitui para esse analisante o sacrifício de seu desejo de paternidade.

 

Tendo rapidamente desenvolvido em sua análise as coordenadas de sua história, ele sonha, então, em se desvencilhar dela para obter o direito de um outro sobrenome. Ele se vale, para tal, da figura de um antigo vinicultor da linhagem materna – que era uma fonte de vergonha por um momento em que ainda isso era socialmente uma desonra –, que cometeu suicídio, o que não trouxe muitas contribuições.

 

Uma sepultura lhe foi negada no cemitério da cidade, de modo que foi enterrado em um bosque de uma comunidade vizinha. Em sua infância, o analisante acompanhava, às vezes, seu avô materno em uma caminhada melancólica, durante a qual arrancava as ervas daninhas que invadiam o túmulo. É o nome da comunidade onde se situa esse túmulo anônimo, marcado por uma simples cruz, que ele sonha carregar.

 

Em apoio a um desejo do qual ele se sente despossuído, ele faz um Nome do Pai surpreendente, nome do pai deserdado, a imagem do túmulo do ancestral arruinado, exilado, sem carregar culpa de qualquer má conduta. A vinha de que derivou seu sustento tinha sido destruída pela filoxera.

 

O que dizer dessa nova Nominação? Processo de inocência? Mortificação decidida? Ele não trabalhava em análise essa solução imaginária e, a princípio, eu, erroneamente, me preocupei um pouco. Se ele renuncia a ela, é, de fato, que através dela, ele pode perceber de um novo modo seu nome odiado. A parte aristocrática do nome designa um lugar chamado exatamente como o pseudônimo que ele visava. Ele é reduzido a um nome comum, de uma comunidade qualquer, precisamente. Em seu sobrenome reduzido a qualquer significante, de repente deixa então de ressoar o pecado que a herança pesou sobre os seus ombros. O alívio dos sintomas advém; a tensão que viveu em suas relações com a família, e também em sua vida profissional, se dissolve e se descola de seu ressentimento tenaz em relação às mulheres. Em relação à paternidade, é um desejo que não parece proibido; a questão, em todo caso, agora está aberta para ele.

 

 

 

[i] Tradução livre da expressão original “Faux de la Haute Levée”.

[ii] LACAN, J. (1954–55) O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

[iii] Relativa a região francesa Vedée.

 

 

 

 


YVES DEPELSENAIRE

Tradução: Lilany Pacheco Revisão: Juliana Sander




Esse X – PATRICK MONRIBOT

PATRICK MONRIBOT

 

Ela se lembra de um detalhe que considera “divertido”. Ela designa sistematicamente seu analista pelo apelido de “Senhor X”, um hábito que faz rir seus amigos. De que se trata, de uma descrição indispensável, ou de um mistério intrigante? O status desse anonimato é revisto quando seu analista lhe pergunta “Mas enfim, quem é esse X?” (Qui est sous ce X). Inesperadamente, suas lágrimas correm. Mas ela entendeu “Qui est-ce sous X” (“Quem não foi registrado e dado anonimamente à adoção?”)[i]. Atônito, ouço, depois de vários anos de análise, o que foi até então um segredo absoluto, ela pariu um bebê sem registrá-lo (“sous X”) e entregou-lhe para adoção. Ela disfarçou sua gravidez engordando, ninguém viu nem percebeu nada, nem mesmo o homem com quem então dividia sua vida. Ela se justificou com vários argumentos, como o da sua pouca idade, o conhecimento tardio da gravidez, a provável agressividade do parceiro violento, a certeza de que seria desaprovada por sua família argelina, que não aceita gravidez antes do casamento… Em suma, foram muitas explicações relevantes que não esclareciam o enigma de sua escolha, ainda mais porque, posteriormente, solteira, ela teve duas crianças de parceiros diferentes, sem ter se preocupado demais. Duas crianças que, por sinal, não se traduziam na presença de um laço: “É difícil ser mãe”, dizia ela, “sou uma sem-família.”

 

Vie perdue 

 

O segredo revelado, a confrontação da palavra precipita sua divisão. “Não é um abandono”, disse ela. “Aliás, como poderia abandonar uma criança que não reconheci?” A observação é justa – o procedimento do abandono não é esse do “sous X” – mas ela não se ilude com seu enunciado, pois foi ela quem introduziu o significante “abandono” em sua análise. A palavra desvela o pensamento e, o que ela falou, fica falado. Uma certa versão significante do caso a captura em seu caminho. Posteriormente, é ela quem aparece – no plano da fantasia – como a criança abandonada! No entanto, há mais do que a ficção para se coser. Ela desenha os contornos de uma outra dimensão, a do objeto. Com as sessões, essa criança se constitui menos um objeto abandonado do que um objeto perdido. Perdido no sentido freudiano do termo, pois essa menina – da qual se conhecia apenas o sexo – lhe foi “roubada”, “extraída de seu corpo”, dentro do procedimento clássico, anestesiada, antes mesmo de tê-la tido como sua, antes mesmo de tê-la visto, conhecido e reconhecido. Na fórmula apresentada originalmente, “elle est perdue de vie” [ii], perdida à vida, cuja tradução “ela não está na minha vida, eu não estou na sua.” A temporalidade é um elemento notável dessa análise, visto que a criança se torna uma perda dezoito anos depois e não na ocasião do nascimento. Sessão por sessão, ela passa de um fato inicialmente chamado pudicamente de “a coisa” – se referindo à gravidez e ao parto escondidos –, um objeto perdido, mas perdido après-coup. É o início de um luto estranho que se resume em uma frase: “Posso perder o que nunca tive?”.

 

tchau [au revoir] 

 

Essa perbolação necessita de análise. A construção de seu romance familiar supõe uma versão do pai. Ela não fala quase nada de sua mãe – que hoje vive na França separada do marido –, apenas em termos de devastação, assim como dos seus irmãos, apresentados como metonímia do ódio materno. Desde seu nascimento, a mãe decepcionada briga com ela por conta da cor de sua pele, que julga muito escura, pois mais para negra, ela manchava a família. O pai aposentado voltou para a Argélia, onde refez sua vida. Ela se lembra de algo essencial, quando criança e ainda estava no Magrebe: ela acreditou que seu pai tinha lhe abandonado, um traço selado, digamos, no fantasma. Numa certa manhã, ele já não estava mais no vilarejo. Sua mãe era um túmulo, nunca lhe deu qualquer explicação, vivia essa forma opaca de gozo. Na verdade, o pai decidiu emigrar para sustentar sua família, não para a destruir, o que ela só soube depois, quando foi à França para se juntar a ele. Assim era a pintura historicizada. Ela me anunciou uma descoberta, que o traumatismo é menos da partida do pai que do seu silêncio. “Ele foi sem me dizer tchau”. Interrupção imediata da seção, curta, nesse dia, para pontuar o dito silêncio paterno, mas com um ato preciso, eu lhe disse “tchau” insistentemente. A sessão seguinte será ainda mais curta, pois antes mesmo de entrar na sala, ela se confunde e me diz “tchau” no lugar de bom dia. O lapso me obriga, eu a tomo ao pé da letra, a conduzo à saída, ela ri, ela chora e consente em pagar. A primeira sessão é uma pontuação sobre o significante “tchau” – ela lhe dá consistência –, a segunda é um corte no significante – ela o desconstrói –, indicando a continuação. Como continua?

 

Perdu de vue 

 

O significante “tchau” [au revoir] se difrata e toca o real. Primeiramente, ela decide contactar o pai depois de muitos anos, “perdu de vue”. Eu aprovo. Ela vai revê-lo [revoir] num canto perdido da Argélia, pouco antes da morte do velho, e lhe apresenta suas duas crianças. Quando ela volta, comenta: “É a primeira vez que minhas crianças vêm um pai.” Não será a última, pois ela tece um laço inédito entre elas e seus pais respectivos, que eram até então simples genitores afastados pelas brigas. Mais ainda, ela passa a guarda do caçula ao pai, que já a tinha pedido. “Esse arranjo não é um abandono”, diz ela, “não sou menos mãe por isso, pelo contrário!” Ela tem razão: não fala mais de sua impotência “de ser mãe” e constitui pela primeira vez uma família, mesmo que decomposta. Uma família ao avesso, de certa maneira…

 

Outro efeito das duas sessões curtas: a questão do pai “perdue de vue” se encadeia a essa da menina “perdue de vie”. Ela a encontrará também? Aliás, ela realmente quer?

 

Interrogar assim seu desejo – ela realmente quer? a divide e faz surgir o objeto pulsional no princípio de sua divisão. Um dia na televisão, ela acredita “reconhecer” [sic!] essa menina nunca vista, por conta do olhar particular de uma jovem figurante mestiça sobre o palco. É o mesmo olhar inesquecível que esse de seu próprio pai. Nenhuma certeza, mas… e se for ela? Desde então, o objeto escópico invade a cena analítica e dará à transferência seu gosto especial. É o momento escolhido para que ela deite no divã.

 

O objeto a – o olhar – surge de trás da criança desconhecida e não é o objeto perdido freudiano. Através do pai morto que ela não verá novamente, através da menina nunca vista, pelo analista agora subtraído do seu campo de visão, um olhar aparece, com todo seu peso, colorindo a transferência: “Não vejo se você me vê”, diz ela deitada no divã, exacerbada.

 

Bricolage [iii] 

 

Refazendo os laços com a série dos pais, ela abre mão do gozo de ser uma sem-família. Certamente a partir de onde ela estabelece um laço mínimo com sua mãe, que aceita, enfim, receber seus netos… Viável por uma devastação temperada. Sim, uma família torna-se possível para ela, mas sob fundo da perda do pai, do caçula que se vai e da criança sous X, que não voltará jamais. A possibilidade de fazer família existe então a partir de um objeto perdido – a criança – e a partir de um objeto de gozo reencontrado o olhar. “Essa família”, diz ela, “é feita com o que se encontra pela frente, é puro bricolage!” Assim seja. Mas haveria, para quem quer que seja, uma família que não seja bricolada? De fato, a composição não é realmente edipiana, apesar do reencontro do amor pelo pai morto. Não que essa jovem esteja em uma foraclusão psicótica do Édipo, mas a família que ela está recompondo não obedece a uma lógica edípica clássica. O declínio da função paterna próprio à nossa época se destaca nessa família desenraizada e devastada. O único arranjo lhe permitindo tecer um possível laço se obtém a partir do gozo. Saber lidar com os modos de gozo de cada um foi o grande progresso de sua análise, percebido no seu “reatamento” familiar tão pouco tradicional. Daí a dúvida dessa formação composta que se chama família. Uma família claudicante que constrói atualmente a fundação de sua queixa: está sempre ruim! Em outras palavras, ela construiu um sintoma.

 

Qual é a alquimia desse enlaçamento? O primeiro ingrediente é a criança impossível. “Sous X” lhe aparece como nome do real. “Não conheço seu nome nem seu sobrenome”, disse, “não imagino como ela é. Um dia eu disse ‘minha filha’, mas soou falso. Não tenho as palavras pra falar dela. É isso mesmo, o ‘sous X’!” Sobra apenas um olhar efêmero e suposto, efetivamente um verdadeiro resto, em um oceano de perdas. Esse é o outro ingrediente do caso, a pulsão escópica emergindo no contexto da análise.

 

O que nos ensinam as medidas dessa análise ainda em curso? Uma sequência lógica está se desenhando. Partimos de um puro gozo silencioso, ligado a esse da mãe. A confissão “da coisa” leva a forjar um objeto perdido sobre um fundo do qual aparece um mais-de-gozar, o olhar. Ela pode então se proclamar mãe e constituir uma família hoje sintomatizada. Para se produzir cada etapa, precisou de uma intervenção, um ato do analista – isso não acontece por si só. Observamos, enfim, o seguinte deslocamento: a opacidade do gozo materno deu lugar a um gozo pulsional, escópico, no caso. Apenas os desfiles transferenciais da demanda permitem pacientemente aferir tal objeto. Como resultado, a devastação e a errância do “sem-família” se atenua em proveito de uma vida sintomática “em família”.

 

Esperança 

 

Então, esperança no epílogo? Questão recente e dolorosa: ela colocará uma carta na pasta DDASS[iv] dessa menina, quando, segundo suas palavras, a lei lhe permitiria acesso à menina até que ela completasse seus 18 anos? Depois disso, ela supõe, sua escolha será irreversível, e o prazo termina em cinco semanas. Suspense… Me informei e ela se enganou, a criança pode consultar seu arquivo depois de seus 18 anos, mas não há prazo para que a mãe possa deixar um traço que lhe identifique. Esse engano grosseiro – e que engano! – indica bem um impossível, verdadeiro ponto de exclusão de onde se inicia um novo círculo não muito redondo de uma família recauchutada. Essa criança nascida sous X não pode ser reavida. Oh! Ela não renuncia ao arquivo de sua filha, é verdade, mas atarda a possibilidade de dar um sinal, apesar da pressão dos amigos, agora informados da existência de sua filha.

 

“Devo ou não fazer?” Não é assim que ela se coloca a questão. Ela não cede às pressões do supereu e aposta na análise para esclarecer seu desejo, ainda opaco, para tomar a decisão na hora certa. Por enquanto, ela mantém o X. O caso continua…

 

 

[i] A expressão francesa sous X designa o parto onde o recém-nascido não é registrado pelos seus pais e entregue a uma instituição para adoção. Os pais têm o direito de permanecer anônimos. A criança não guarda laços de filiação com seus genitores e não recebe o sobrenome deles. Ver mais a respeito no serviço de informação do governo francês: https://www.service-public.fr/particuliers/vosdroits/F3136 (acesso em 13/12/2016)
[ii] Perdue de vue, com um “u” est a fórmula francesa corrente que literalmente se traduz por “perdido de vista”, ou sem contato visual, de tão longínquo. A expressão “Perdue de vie” é construída pela paciente e se traduz literalmente por “perdida de vida”.
[iii] Termo francês que designa trabalhos realizados sem um projeto previamente estabelecido, com ferramentas limitadas, e que não são fabricadas especialmente para as funções específicas de um projeto. Foi introduzido como conceito na história das ciências humanas por Claude Lévi-Strauss, (La pensée sauvage, Plon, 1962, Paris). Essas condições fazem Lévi-Strauss opor o bricoleur ao engenheiro.
[iv] Direction départementale des affaires sanitaires et sociales é a extinta instituição à qual se atribuía a função social do cuidado com as crianças.

 

 


PATRICK MONRIBOT
Tradução: Renato Sarieddine
Revisão: Márcia Bandeira
Patrick Monribot: ECF/NLS/AMA: monribot@wanadoo.fr



A Transparência Do Gozo Da Mãe E O Delírio Como Segredo

LAURA FÉLIX REIS MACIEL / MÁRCIA ROSA

 

Victor Brauner Surrealist painter

 

VICTOR BRAUNER SURREALIST PAINTER

Ao formular as estruturas de parentesco, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1947/2009)[1] evidenciou a presença de um conjunto de regras muito restritas que comportam uma primeira lei, a exogamia. Partindo daí, traçou as condições algébricas da escolha de objeto: as estruturas de parentesco são elementares quando se fundam em regras que não apenas proíbem, mas também prescrevem os objetos com os quais laços são permitidos, tornam-se complexas quando há proibição, mas não prescrição. Nesse caso, respeitada a interdição do incesto, o sujeito é livre para estabelecer suas alianças.

 

Fundamentado em suas extensas pesquisas sobre o parentesco, Lévi-Strauss (1970/2015)[2] listou as suas propriedades invariantes ou traços distintivos, aqueles que permaneceriam imutáveis através da diversidade das raças, culturas, línguas, etc. Para ele, a família tem sua origem no matrimônio, inclui o marido, a mulher, os filhos nascidos de sua união; os membros estão unidos entre si por laços jurídicos, por uma rede precisa de direitos e obrigações sexuais e sentimentos tais como o amor, o afeto, o respeito, o temor, etc. (1970/2015, p. 60)[3]. Para definir a família Lévi-Strauss se serviu da linguística de Saussure, de modo que a família levistraussiana é um sistema fundado no poder ordenador das diferenças, diferença nas funções do pai e da mãe e diferença sexual.

 

O declínio da potência simbólica do pai faz vacilar os fundamentos lingüísticos da família e sua sustentação nas diferenças. Tal como afirma a psicanalista Marie-Hélène Brousse (2010)[4], na medida em que a diferença homem-mulher, organizadora das leis de aliança e de parentesco, é tocada, todo o sistema se reformula. Passa a existir um intercâmbio de autoridade e de cuidado e ele institui uma equivalência ali aonde antes operava uma diferença, institui um valor comum, gerando o que vem sendo denominado parentalidade.

 

Esse valor comum intercambiável se sustenta na aposta de que pai e mãe são funções simbólicas e que podem ser exercidas por um homem e uma mulher, por dois homens, duas mulheres, etc. Em que pese isso, Lacan não deixa de levar em conta que “não é a mesma coisa ter tido sua mãe e não a mãe do vizinho, o mesmo para o seu pai”. (LACAN, 1975-1976, p.45)[5] Com isso, assinala a presença do real na constituição e na manutenção da família. Essa dimensão apresenta-se na definição de família proposta por Jacques-Alain Miller, em resposta aos invariantes antropológicos de Lévi-Strauss: “(…) a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. (…) é essencialmente unida por um segredo, pelo não-dito. (…) É um desejo não-dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe? (…)”. (MILLER, 2007, s.p.)[6] Esse excesso, esse real trazido pelo modo de gozo dos pais mantido secreto introduz uma configuração familiar fundada na contingência ou em afinidades eletivas, eleições aleatórias e, muitas vezes, transitórias.

 

Em vista disso, interessa-nos pesquisar a presença estruturante do postulado milleriano —a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais—, bem como as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. Ao considerarmos que ele não deixa de estar relacionado ao Édipo, indagamos: e quando o recalque não opera?

 

O Segredo De C

 

C., 37 anos, foi internada em um hospital psiquiátrico da Rede Pública pela força policial, após ter agredido fisicamente sua vizinha, ameaçando-a de morte. Diz não ter privacidade em casa, “os vizinhos fazem a maior putaria lá”, querem roubar seu barracão e matá-la.

 

Natural de uma cidade no interior do estado de Minas Gerais, a paciente mora com seu atual companheiro, J, há oito anos em Belo Horizonte. Ela tem três filhos (de 20, 19 e 18 anos), frutos de um relacionamento anterior.

 

Segundo o prontuário, o quadro clínico foi desencadeado durante a gravidez do primeiro filho. Embora não se saiba muito sobre essa gravidez, C diz que em sua segunda gravidez deu à luz filhas gêmeas, mas que a médica responsável “roubou” uma das crianças: “é, a médica loira pegou a outra neném, porque eram gêmeas, né? Mas ela só me deu uma, que é a P.”

 

Quanto à sua própria mãe, C afirma que esta morreu há quatorze anos. Afirma também que não conheceu o pai, uma vez que “não era só um que deitava com sua mãe”. Ela se refere a ele como um “pai invisível”, não tendo o nome do mesmo em sua certidão de nascimento. Tem irmãos, mas não sabe ao certo quantos, sabe apenas que são filhos de pais diferentes.

 

No decorrer da entrevista, depois de falar abertamente, e sem qualquer incomodo, sobre a desorientação do gozo materno —de como à noite a mãe colocava lingerie preta e recebia homens em casa—, espontaneamente, e com um tom de cumplicidade, ela pergunta a entrevistadora: “posso lhe contar um segredo?” E, então, confidencialmente, afirma ser dona de uma frota do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Diz ter sido aconselhada por um guarda do Hospital G. V. a comprar ambulâncias como forma de investimento. Em função disso, não pode se casar, uma vez que, ao se enlaçar matrimonialmente, seus filhos deixariam de ganhar a parte que lhes é devida da renda gerada por essa frota da qual ela é dona.

 

A Família E O Inconsciente

 

Em O seminário, livro 5, As formações do inconsciente Lacan escreve a estrutura familiar com a formula de Metáfora Paterna. Nela, o pai entra como um nome, o Nome-do–Pai, como lei de interdição do incesto, e a mãe com o desejo (D), como um significante que obedece à lei de estar lá ou não. Os restos produzidos por essa relação metafórica, que atestam que o sujeito é apenas efeito de linguagem, Lacan os promove como objeto a. Eles mostram que algo foge da compreensão e clama por sentido, é onde prolifera um emaranhado de interpretações sobre o desejo do Outro. As soluções desses enigmas se encontram nos laços familiares e nos segredos neles presentes.

 

Miller (1997)[7] em “Los padres dans la direction de la cure”, diz que a forma como o sujeito foi separado de seu objeto primordial, como foi afetado, o fantasma que surge e o gozo recuperado dessa catástrofe, é o que aparece nas histórias de família que o sujeito conta. A família, então, é tida como uma resposta simbólica ao efeito do real, que tem como princípio a impossibilidade de se escrever a relação sexual.

 

Lacan reduz a ordem familiar à disjunção pai/genitor, em que “o pai não é o genitor” (LACAN apud COTTET, 2007, p.14)[8]. “É, de fato, o recalque desta oposição significante que preside a criação da família conjugal.” (COTTET, 2007, p.15)[9]. Entretanto, nem todas as famílias são edipianas, visto que não são todas que se ordenam pela metáfora paterna e que colocam em jogo o desejo enigmático da mãe. É possível que se desenhem famílias que não respondem à metáfora paterna, que não coloquem em jogo o desejo enigmático da mãe nem a lei de interdição ao gozo. Na falta da metáfora paterna, o que prevalece é um desejo errante, um desejo anônimo. Carmem Galano, em “Família e Inconsciente” define o desejo anônimo como “um desejo indeterminado, errante na metonímia das derivas significantes, um desejo que não se sabe de quem, não encarnado em um vivente particular, um desejo pelo qual nada, nem ninguém, responde.” (GALANO, 2007, p.17)[10].

 

Se o que prevalece é um vazio enigmático e um desejo anônimo, o sujeito pode acabar à mercê de uma ditadura do mais-de-gozar e de uma cultura da permissividade. Essa última, “bem como a crise da autoridade que acompanha o declínio do pai, exige uma transparência que abole os segredos da família, denuncia as hipocrisias, subverte as barreiras das gerações.” (COTTET, 2007, p.2)[11]. No entanto, a inexistência do segredo no romance familiar não é sem consequências para o sujeito. “Compreendemos bem porque o cristianismo inventou a Santa Família, pois é preciso nada menos que Deus para normalizar, normatizar, o gozo materno. O princípio de unidade, da Santa Família do inconsciente, é o segredo.” (MILLER, 2007, p.82)[12].

 

E Quando O Recalque Não Opera?

 

Na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, Lacan afirma que o Édipo, sendo ectópico, apresenta um problema: “abri-lo permitiria restaurar ou mesmo relativizar sua radicalidade na experiência” (LACAN, 1967/2003, p.261)[13]. Sendo a instância paterna, no primeiro ensino de Lacan, reduzida ao simbólico, o que ocorre quando esse significante é foracluído?

 

Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose”, Lacan trabalha a foraclusão do Nome-do-Pai, a qual, “pela carência do efeito metafórico, provoca um furo correspondente no lugar da significação fálica”. (LACAN, 1957-1958/1999, p.564)[14]. A carência dessa significação acarreta uma dificuldade para o sujeito em apreender o desejo do Outro e em circunscrever o gozo. Frente a isso, o que é foracluído no simbólico retorna no real, “retorna no real como gozo do Outro”. (MILLER, 1983/1996, p. 168)[15]. Na ausência do falo para significar o gozo, o que se observa é a invasão de um gozo outro, inédito e supremo.

 

Acrescido à falha no simbólico, a foraclusão do Nome-do-Pai “ressoa sobre a estrutura imaginária, ela a dissolve, a conduz à estrutura elementar chamada estádio do espelho”. (MILLER, 1983/1996, p.122)[16]. Essa regressão especular desnuda o objeto a, deixando o sujeito reduzido à sua miséria. Sobre essa dejeção e o valor extremo de gozo, que se condensa no mais-de-gozar, Miller aponta a exigência do mais-de-gozar como bússola para aqueles que carecem do significante mestre. Isso faz com que a liberdade do gozo prevaleça, embora, continua ele, a relação sexual se torne ainda mais impossível, uma vez que “para fazer existir a relação sexual, é preciso refrear, inibir, recalcar o gozo.” (MILLER, 2005, 13.)[17].

 

Como possibilidade de apaziguamento do gozo, no momento em que Um-pai é convocado, frente ao furo no simbólico surge a metáfora delirante. Passado o momento da perplexidade, no qual o sujeito se depara com fenômenos incompreensíveis para ele próprio, há a certeza que vem com o delírio.

 

Diante da falta do significante mestre, da transparência do gozo materno e da identificação ao objeto, prevalece um-dito que, aparentemente, não guarda qualquer segredo. Frente a ele, o sujeito não tem outra saída, senão utilizar suas próprias invenções. No caso clínico de C, acrescido à inoperância paterna, “um pai invisível”, encontra-se uma cultura da permissividade, avessa à privacidade. Ela começa pela mãe, mas não excetua os vizinhos que “fazem a maior putaria lá”.

 

A prevalência ditatorial do mais-de-gozar “devasta a natureza, faz romper os casamentos, dispersa a família, remaneja o corpo” (MILLER, 2005, p. 13)[18]. No caso de C, a transparência do gozo materno e a invasão desmedida que isso gera, a deixa privada de recursos simbólicos. Diante desse embaraço, restam suas invenções delirantes como tentativas de limitar o gozo.

Diferentemente da neurose, em que o não-dito cabe ao segredo, nesse caso, em que o recalque não opera e, com isso, o gozo da mãe não está ordenado pelo significante fálico, a dimensão de não-dito incide sobre a forma delirante com a qual C trata o real de gozo. Curiosamente, são as suas construções delirantes, tentativas de cifrar esse real de gozo, que ela, de algum modo, mantém em silêncio. Paradoxalmente, aí também um segredo organiza as relações familiares.

 

 

 

 

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] LÉVI-STRAUSS, Claude. (1947) As estruturas elementares do parentesco. Petropólis:Ed. Vozes, 2009.
[2] ———————————-. (1970) “La familia”. In:——. La mirada distante. Buenos Aires, El cuenco de plata, 2015.
[3] Ibdem.
[4] BROUSSE, Marie-Helene. “Um neologismo de actualidad: La parentalidad”; In: TORRES, Monica E. Uniones Del mismo sexo: diferencia, invención y sexuación. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010.
[5] JACQUES, L. (1975) “Conférences et entretiens: Columbia University. Le symptôme”.Scilicet, n.6-7, Seuil, Paris, 1976.
[6] MILLER, J-A., (2007) “Assuntos de família no inconsciente”. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007.
[7] MILLER, Jacques-Alain. (1997) “Los padres dans la direction de la cure”. Quarto, Revue de psychanalyse, n.63, Automne 1997.
[8] COTTET, Serge “O avesso das famílias: o romance familiar parental. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007. Acesso em julho de 2016.
[9] Ibdem.
[10] GALANO, Carmen. “Familia e Inconsciente”. Revista de Psicanálise Stylus: Familia e Inconsciente. N.º15, p.11-24. Associação Fóruns do campo Lacaniano. Novembro de 2007.
[11] COTTET, Serge “O avesso das famílias: o romance familiar parental. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007. Acesso em julho de 2016.
[12] MILLER, J-A., (2007) “Assuntos de família no inconsciente”. Extraído de asephallus, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. V.2, n.º4, maio a outubro de 2007.
[13] JACQUES, L. (1967) “Proposição de 09 de outubro para o psicanalista da Escola”. In: —————–. Outros Escritos. Rio de Janeiro:JZE, 2003.
[14] JACQUES, L. (1957-1958) O Seminário, livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro:JZE, 1999.
[15] MILLER, Jacques-Alain. (1983) “Suplemento Topológico a ‘De uma questão preliminar…’. In:———-. Matemas I. Rio de Janeiro:JZE, 1996. p.119-137.
[16] Ibdem.
[17] —————————-. “Uma fantasia”. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Fevereiro 2005, n.42. São Paulo: Edições Eolia, 2005.
[18] Ibdem.
LACAN, Jacques. ————————. (1968) “Nota sobre a criança”. In:—–. Outros Escritos. Rio de Janeiro:JZE, 2003.
———————-. (1983) “Des-sentido para a psicose!”. In:———-. Matemas I. Rio de Janeiro: JZE, 1996. p. 162-170.
———————–. “Leitura crítica dos “Complexos familiares”,de Jacques Lacan”. In: Opção Lacaniana on line. Acessado em novembro de 2016 em: www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n2/pdf/artigos/jamleitura.pdf
———————-. “A invenção do delírio”. In: Opção Lacaniana on line. Acessado em novembro de 2016 em: ww.opcaolacaniana.com.br/antigos/pdf/artigos/JAMDelir.pdf
MALEVAL. Jean Claude. “Lógica del delírio”. Acessado em novembro de 2016 em: https://drive.google.com/drive/folders/0B1xRnCyxqy5ndU11N05tTlV0aGs

Laura Félix Reis Maciel / Márcia Rosa
Laura Félix Reis Maciel. Graduada em Psicologia pela UFMG em 2017. Pesquisadora de Iniciação Cientifica com bolsa da FAPEMIG (2014-2015). Rua São Roque 676 apto 401. Sagrada Família. Belo Horizonte. MG. Fone 996712242. laurafelixreis@gmail.com
Márcia Rosa. Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Doutorado em Literatura Comparada (UFMG). Professora na Pós-Graduação em Psicologia (UFMG). Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Rua Xingu 115. Alto Santa Lúcia. Belo Horizonte. MG. CEP 30360690. Fone (31)996176443. marcia.rosa@globo.com



Erguer A Cabeça E Tomar A Palavra: Efeitos Socioeducativos Na Adolescência De Malony

MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM

 

De cabeça erguida[1], uma produção francesa de 2014, mostra situações da vida de um adolescente em conflito com a lei – que guarda similaridades com o que acomete muitos desses jovens no Brasil. O filme relata o percurso do personagem principal, Malony, pelas instituições assistenciais e socioeducativas que percorreu durante a maior parte de sua vida.

 

Logo no início, vemos o primeiro encontro de Malony e sua família com a justiça, aos seis anos de idade. Na primeira cena do filme, ficamos sabendo que sua mãe fora denunciada pelo Ministério Público por não se responsabilizar pela escolaridade do filho. Anteriormente, a escola e o serviço social haviam tentado fazer contato sobre o problema escolar da criança. Como ela não se manifestou, ocorreu a intimação a pedido do promotor. Ela comparece ao juizado com Malony e seu outro filho, um bebê. Quando indagada pela situação educativa do filho, ela se mostra acuada e tenta se defender atacando àqueles que ela julga acusarem-na: professores, assistentes sociais, promotor, juíza. Por fim, a mãe entrega seu filho para a justiça e a juíza o encaminha para um abrigo.

 

Quanto a Malony, ele demonstra curiosidade pelo que está acontecendo. Ele conversa, responde, brinca, interage, se interessa pelo que está sendo dito. Ele mostra seu laço com o Outro: olha, atentamente, para os que estão na sala, fala com as pessoas presentes e recebe os afagos da assistente social quando sua mãe vai embora.

 

Na cena seguinte, Malony tornou-se um adolescente e está com a mãe e o irmão, agora criança. Ele dirige um carro no qual os três estão juntos, e vibram com o passeio. A mãe se empolga com as manobras que o filho realiza ao dirigir e grita: Malony, campeão do mundo!

 

Após essa cena, vemos Malony e sua família retornarem ao tribunal, para a primeira de muitas audiências com a juíza por toda a sua adolescência. Ficamos sabendo que ele é bastante conhecido na pequena cidade de Dunquerque pelos furtos de carro que comete com frequência. O Outro social o vê como um delinquente. De boné, ele se mantém de cabeça baixa, cortando o olhar e a fala: ele não olha para as pessoas no juizado, se esconde por trás do boné, não fala, não se interessa pelo que está acontecendo, pelo que estão falando, e não responde ao que lhe é perguntado.

 

A partir dessa cena, inicia-se a entrada de Malony no que seria o equivalente francês das medidas socioeducativas no Brasil. Primeiramente, ele é advertido pela juíza e, na sequência, percorre as instituições para adolescentes em conflito com a Lei; desde as educativas até as prisionais. No decorrer do filme, até os 17 anos, Malony estará às voltas com as medidas jurídicas em resposta às suas infrações.

 

As atuações de Malony são a tônica do filme. Não somente aquelas que são tipificadas como atos infracionais, mas, também, suas agressões diante dos embaraços e impasses para lidar com as situações difíceis da vida: retorno à escola, não ver a mãe, afastamento do irmão, ter um trabalho, estabelecer uma relação com uma mulher. Percebemos como essas atuações acontecem nas vezes em que ele se mostra angustiado.

 

A adolescência é um sintoma da puberdade, como nos indicou Stevens (2004)[2]. Ser adolescente, identificar-se com esse significante é uma maneira de tentar atravessar esse difícil túnel, a puberdade, como metaforiza Freud (1905/1969)[3]. E essa travessia não se faz sem angústia. No encontro com a angústia, usualmente, o sujeito busca saídas pelo via sintomática ou pela inibição, tão típicas da adolescência. Mas, também, pela passagem ao ato ou pelo acting-out. No caso de Malony, prevalecem os acting-outs como formas de tentar lidar com a angústia suscitada por suas dificuldades consigo mesmo e com o outro.

 

Essas diferentes saídas frente à angústia ocorrem por circunstâncias distintas, como nos esclarece Lacan (1962-63/2004)[4]. Uma resposta sintomática acontece quando o sujeito encontra, em sua história, coordenadas simbólicas para subjetivar a castração como falta, tanto a sua como a do Outro. Isso ocorre quando a saída encontrada está relacionada ao dispositivo simbólico. Assim, de forma metaforizada, o sujeito pode dizer de suas dificuldades e embaraços.

 

A passagem ao ato e o acting-out são formas de atuar no lugar de dizer. Isso acontece quando a via sintomática não consegue se formular, ou seja, quando não se elabora, subjetivamente, uma resposta. Nessa situação, no lugar de surgir o sujeito do desejo inconsciente, aparece um atuar. É isso o que ocorre nas passagens ao ato e nos acting-outs. Essas duas formas de agir dizem respeito a um sujeito que não encontrou um apoio simbólico para inscrever a castração como falta. Dessa forma, ou ele reproduz seu embaraço em uma encenação, caso do acting-out, ou sucumbe a ele, como na passagem ao ato.

 

No filme, vemos os atos infracionais de Malony acontecerem como uma sequência de acting-outs, a cada vez que ele se depara com os impasses próprios da adolescência. Inicialmente, sem o amparo das coordenadas simbólicas do Outro, Malony não consegue construir uma forma sintomática de atravessar o túnel que concerne à adolescência. Ele se encontra sozinho e sem recursos para enfrentar esse real. Mas, ao longo do filme, vemos surgir para ele as figuras do Outro, e elas adquirirem importância para que ele possa construir novos caminhos e projetos para sua vida. Ele passa a estabelecer laços com a juíza, o educador, a namorada, a própria mãe. Com muita dificuldade, Malony vai mostrando-nos a contundência da frase de Lacan, que nos adverte: “No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele.” (LACAN,1973/2003 p. 533)[5]. Inicialmente, Malony não pensa, ele age. As figuras do Outro e seu desejo permitem a ele separar-se do gozo ao qual se encontrava entregue, colocando um corte na repetição de atuações.

 

Pode-se dizer que o filme retrata a construção, com muita dificuldade, dos dispositivos simbólicos para enfrentar a dureza da vida de um adolescente. Aos dezessete anos, Malony vai recuperando o olhar, a voz, o laço com o Outro que vimos no início do filme, quando ele era uma criança. Nesse processo, ele vai se colocando como um sujeito que pode desejar: uma mulher, um trabalho, um filho, um projeto. Ele pode, com seu desejo, investir na vida. Torna-se alguém que pode fazer uso dos objetos do desejo para circular no social, podendo dispensar as falácias das atuações para fazer-se reconhecer no campo social. Como efeito, ele pode erguer a cabeça, olhar e tomar a palavra.

 

 

 


Referências:
[1] STEVENS, A. Adolescência, sintoma da puberdade. Revista Curinga n. 20. Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais. p. 27-39. 2004
[2] FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. v. VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
[3] LACAN, J. O Seminário Livro 10: A angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2004.
[4] ______. Televisão (1973). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.



A Família Na Interface Direito E Psicanálise

MÔNICA CAMPOS SILVA

 

 

Podemos observar que a família, sua construção social e os efeitos subjetivos que advieram dessa forma de aglomeração transformaram-se através dos tempos, acompanhando mudanças religiosas, econômicas e socioculturais. O conceito de família é muito extenso, podendo ser a forma de agrupamento dos indivíduos buscando a perpetuação da espécie; uma sociedade constituída por um homem e uma mulher, unidos por laço matrimonial e pelos filhos nascidos dessa união e também os novos modos e arranjos que constituem uma família na atualidade, monoparental, homoafetiva, entre outros.

 

Qual seria o lugar da família na constituição subjetiva? A partir da inscrição do sujeito no campo da linguagem, é possível uma destituição das funções paterna e materna pelo campo da Ciência e do Direito? Quais seriam os efeitos de tal experiência para o sujeito?

 

Verificamos que o desafio essencial ao direito de família na atualidade é a tentativa de normatizar e regular a família a partir da judicialização da parentalidade. Essa seria a intervenção do judiciário nos casos em que a filiação e as funções parentais não são exercidas e/ou não são, a princípio, reconhecidas, levando a uma demanda de regulação que pode ser realizada sem a concordância de algum dos envolvidos.

 

A filiação, como ponto decisivo da família, tem para o direito várias conceituações, das quais duas interessam mais de perto à psicanálise: a que é descrita exprimindo a relação que existe entre o filho e as pessoas que o geraram, bem como a que sustenta que filiação é a relação existente entre o filho e seus pais, independente da condição de concepção.

 

Quando a filiação é posta em dúvida, do ponto de vista jurídico, inicialmente, a comprovação da paternidade é feita pela certidão de nascimento do filho. Caso não seja essa constatação possível, ela pode ser verificada pelos meios de provas existentes no processo civil, tais como: prova testemunhal, prova documental e prova pericial ou científica.

 

De início, podemos nos indagar se, com as ações judiciais que visam à formatação da família e com o uso de prova cientifica, estaríamos voltando ao campo da natureza, quase não humano, ao se tentar estipular as funções de pai e mãe em base estritamente biológica, campo onde filiação e não-filiação não se distinguem no que é estrutural para a cultura. Nesta, se definiria a referência à lei e à interdição, sendo que a simples presença da biologia na definição da parentalidade, por si só, não produziria os efeitos necessários para uma inserção na cultura. Para a psicanálise, seja na família, seja na filiação, o que está em causa é mais as relações de troca, ou seja, a proibição sexual, o interdito, do que uma definição concreta de um pai ou uma mãe pela genética. Em outras palavras, as funções maternas e paternas, no sentido da constituição do sujeito, estão mais do lado simbólico do que da ratificação da biologia.

 

Ao ser atravessada por vários discursos em busca de sua constituição formal, a família contemporânea ganha certas problematizações. Para Miller (2007, p. 5),

 

(…) é possível que hoje, no discurso da ciência se possa dar o matema da reprodução, dar uma fórmula significante. Isso torna ainda mais necessário o estabelecimento de uma descontinuidade entre os modos de reprodução e a família, e explica também aquilo que nós chamamos de “dimensão histórica da família”, que não foi sempre tal como nós a conhecemos hoje. No decorrer do tempo, foram inventados diferentes modelos de família, o que nos permite estabelecer esta descontinuidade entre a natureza e a família.

 

Segundo o jurista João Batista Villela, a paternidade é uma condição cultural, tendo “sido a precedência histórica da natureza sobre a cultura que fez da paternidade, desde os tempos mais remotos, um conceito primário quando não prevalentemente biológico” (VILLELA, 1979, p. 412). Desse modo, quando o homem consegue relacionar o nascimento de uma vida nova com o desempenho anterior da atividade sexual, ele dá um salto, desligando-se da determinação da natureza e passando ao plano da cultura. A relação de causa e efeito aparece e ele preocupa-se, então, em instituir regras sociais e valores sobre fenômenos da casualidade física.

 

A origem deixa sua condição arraigada em pura base biológica e passa a ter um caráter cultural, sendo o aspecto da natureza dado por uma relação de causalidade material: a fecundação e seus necessários desdobramentos. O homem coloca em cena a vontade e a decisão sobre a geração de um ser. Como afirma esse jurista, “o homem tem o poder de pôr em ação mecanismos da natureza de que decorre o nascimento de uma pessoa ou abster-se de fazê-lo. E, diante do nascimento da pessoa, tem de novo o poder de comportar-se em relação a ela por modos vários, que vão desde o seu mais radical acolhimento à sua absoluta rejeição” (Ibidem).

 

Assim, também na vertente do direito, notamos que, no humano, é preciso pensar a filiação e a paternidade pela via da cultura, ou seja, não é o instinto e sim a transmissão, através das gerações, de leis – sendo a principal, a interdição do incesto – que permite a vida comum, entre elas, a familiar. Do ponto de vista da psicanálise, a constituição dos lugares de pai, mãe e filho são subordinados ao modo como cada sociedade e cultura se funda, sendo, contudo, necessário um desejo decidido, uma adoção por parte daqueles que produziram um fruto de sua relação. Stiglitz , em seu artigo “Adoções. A indecisão da origem”, marca que

 

(…) a função paterna opera sempre ad-hoc segundo a jurisprudência de cada época e depende da vontade de um homem. Salvo, atualmente, nas novas formas de família possibilitadas pelas técnicas de inseminação (famílias monoparentais, casais homossexuais), onde não se trata justamente da paternidade ligada a um homem, ou nas famílias judicializadas quando se trata de ratificar a paternidade contra a vontade de um homem (STIGLITZ, 2007, p. 43).

 

As novas configurações e arranjos da família em nossa atualidade têm colocado o judiciário frente a constantes desafios e impasses. Constata-se a mutação de valores e o reposicionamento de funções e lugares, diminuindo o poder do pai e produzindo reconfigurações na estrutura tradicional da família. A experiência no tribunal de família permite verificar as mudanças sociais e como o direito necessita, a cada tempo, se atualizar para responder à demanda social. Assim, casos de pedidos de guarda por companheiros do mesmo sexo eram tidos como difíceis e problemáticos na década de 90, sendo que hoje não são mais um grande desafio para o judiciário, entretanto, outras provocações se colocam. Diante dos embaraços que aparecem na regulação da família e, consequentemente, diante das novas demandas à justiça, cria-se também a necessidade da articulação do direito a outros discursos, entre eles, a psicanálise.

 

De forma breve, a transformação da família ao longo do tempo passa pela noção de pater familiae. Esse conceito, que vem desde a antiguidade, envolve a noção de família e da autoridade do pater – pai –, fazendo distinguir a natureza do aspecto cultural no que tange a figura do pai: “enquanto o genitor designa o pai que gerou fisicamente o filho, pater é a figura social que conjuga as funções de chefe da casa, representante do judiciário, chefe político e religioso” (Blisktein, 2006, p. 8).

 

O poder familiar, que tem como referência para seu estudo histórico o direito romano, era algo comparável ao poder de propriedade, sempre exercido pelo pai, chefe da família, sobre todos que o cercavam – filhos, esposas e outros que compusessem o que era interpelado como família (cf. Grisard Filho, 2000, p. 29), tendo o pai um poder perene sobre sua prole. Essa estrutura máxima do poder familiar se mantem na Idade Média, acontecendo uma primeira mudança na Idade Moderna, com a troca do sistema feudal pelo conceito de Estado Nacional, em que se estende ao estado o que antes eram funções somente da família, entre as quais a de defesa e de assistência, iniciando, de algum modo, o enfraquecimento do patriarcado. Mais adiante, na Idade Contemporânea, outro acontecimento importante mexe com a estrutura e funcionamento da família: a Revolução Industrial. Momento em que cada membro vai trabalhar dentro das fábricas, passando a exercer uma função econômica. Entretanto, mesmo havendo certa divisão nas obrigações e um rastro nítido de certo declínio do patriarcado, é com o pai que permanece o pátrio poder.

 

Na atualidade, podemos perceber que a família ganhou gestores laterais – a justiça, a educação, a ciência – que vêm intervindo no seu modo de funcionar. Observamos como na época presente a família vem perdendo sua autonomia, sua particularidade, em face ao “padrão familiar”, ou seja, ao que é ser família (um exemplo é o Estatuto da Família). Nessa medida, temos como consequência um excesso de regulação pelo jurídico na família, em resposta às demandas contemporâneas de normatização das relações parentais. Os efeitos desse excesso de intervenção no seio familiar, no singular constituído, também podem ser percebidos nos modos de parentalidade e filiação em nosso tempo, quando os lugares já não respondem enquanto função, e a impotência estabelecida retorna como outra demanda de regulação externa.

 

Desse modo, cada vez mais, as dificuldades se colocam para o direito de família e mesmo para a sustentação de uma lei reguladora. O que fazer com o que escapa e não cessa de demandar novas respostas? A psicanálise, diante do insustentável da resposta padrão de como deve ser uma família, vai buscar o singular da constituição familiar para o sujeito, mantendo viva, em sua interlocução com o jurídico, as perguntas: é possível que uma filiação ou uma paternidade seja construída somente com a prova biológica e ou com a sentença judicial? Que uma família seja constituída assim? São questões de difícil resposta, considerando a história particular de cada caso. Entretanto, podemos notar que o “senhor absoluto” da certeza e da garantia retorna pelo viés da natureza, do organismo, quando, em nome do biológico, se destitui ou se estipula uma parentalidade, sem a inscrição própria à função que estaria no campo da cultura. Fica a questão se os efeitos do declínio do poder do pai na civilização estariam provocando um retorno deste pela via da natureza.

 

No Direito, encontramos a terminologia “verdade real”, que introduz alguma coisa para além dos laços afetivos e familiares, abrindo espaço ao caráter especificamente biológico. Constata-se, contudo, que o mesmo direito, em sua relação com a contemporaneidade, tenta buscar, em outros meios de prova, o estabelecimento da paternidade, ou seja, relações de família, o amor, o afeto, a relação de pais e filhos, contrapondo-se ele próprio à “verdade real”, determinada exclusivamente pela biologia, pela ciência.

 

A entrada dos dispositivos da ciência tem, no entanto, impactado essa mudança. O advento do DNA e de novas leis e jurisprudências vêm diminuindo a autonomia do arranjo familiar e delegando à ciência e à justiça o poder de nomeação e conceitualização da paternidade e maternidade. Do lado da Ciência, temos o DNA decidindo o destino das relações de parentesco. Do lado da Lei, temos a legislação das relações de parentesco e do como fazer nas funções parentais, como as recentes leis de alienação parental e da palmada[1]. Contudo, é importante perceber que, atualmente, em sua ausência de identidade, a família permite e solicita a entrada desses discursos, e vem buscando também cada vez mais reguladores externos para sustentá-la, introduzindo uma sorte de efeitos para os quais ela também não se sente preparada.

 

Lacan situa como função da família e do pai a transmissão da lei e do interdito, sendo, por conseguinte, o que faz inserção na cultura. Para a psicanálise, a família que habita o mundo não está sozinha e, nesse sentido, é regulada por toda uma série de regras e leis que escapam à própria singularidade familiar. Em seu texto “A Família”[2], Lacan (1938, p. 14) esclarece que

 

(…) a família humana permite observar, nas funções maternais, por exemplo, alguns traços de comportamento instintivo, identificáveis aos da família biológica, basta refletir no que o sentimento da paternidade deve aos postulados espirituais que marcaram o seu desenvolvimento, para compreender que neste domínio as instâncias culturais dominam as naturais.

 

Assim, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura, presidindo os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, “estabelecendo assim entre as gerações uma continuidade psíquica”, ou seja, “uma instituição cuja função primordial é a de uma transmissão” (Lacan, 1938, p. 13-19), sendo essa veiculada pela função paterna. Essa transmissão seria da castração, ela própria efeito da linguagem. Lacan esclarece que o Nome-do-Pai é o pai simbólico, o pai morto que media as relações do sujeito com o mundo. Assim, a noção de pai está diretamente vinculada com a noção de Nome-do-Pai. Há, em Lacan, nesse momento de sua teoria, outras duas vertentes de pai: a real, agente da castração, e a imaginária, que incide no sujeito de modo ameaçador, também pelo viés da castração. Em todos os casos, o Nome-do-Pai é o princípio regulador, ação simbólica fundante de uma estrutura. Lacan desenvolverá mais tarde a dimensão do Nome-do-Pai, operador da transmissão, que “tem a missão de introduzir a relação entre o significante e o significado, de tal forma que se possa elucubrar uma linguagem a partir dos elementos da língua” (Stiglitz, 2007, p. 44).

 

Em “Nota sobre a criança” , Lacan (1969/2003) situa as funções do pai e da mãe como nomes que marcam uma particularidade do desejo da criança, sendo instrumentos de inscrição do sujeito. Postula ainda que “o sintoma da criança é capaz de responder pelo que há de sintomático na estrutura familiar, sendo o representante da verdade do par parental” (LACAN, 1969/2003, p. 369-370). Nessa nota, vemos ser tratado o que a prática psicanalítica experiencia junto às varas de família, ou seja, a criança traz seu sintoma, seu ponto de alienação, representando seu lugar no fantasma parental. Muitas vezes os filhos, como puro objeto, são motivo da disputa judicial que, na realidade, diz respeito a questões que se referem, exclusivamente, ao homem e à mulher. A criança vai corporificar o lugar de fracasso e engano ao assumir o lugar da verdade, produzindo sintoma.

 

Podemos extrair ainda desse texto que há, no seio da família, uma “irredutibilidade de uma transmissão” (Idem, p. 369), que é de outra ordem que não a da vida,

 

(…) segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo, ou seja, é por tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do pai. Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas, do pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma encarnação da lei no desejo (Ibidem).

 

De tal forma, o lugar da família na história do sujeito marca, principalmente, o modo como um desejo particularizado se inscreveu e como, diante desse investimento, o sujeito respondeu, ao se colocar como filho e nomear seu pai e sua mãe. Nas ações em que as funções parentais são questionadas – ou mesmo nas paternidades judicializadas – , o que podemos perceber é o aparecimento de uma disjunção entre lei e desejo. Essa disjunção pode permitir o surgimento de uma equivalência perigosa entre a paternidade/maternidade, campo do desejo, e a parentalidade fundada pela justiça ou pela ciência. Tal correspondência, ao ignorar a subjetividade e privilegiar a certeza e garantia dada pelo direito ou pela biologia, produz o equívoco da naturalização da paternidade.

 

Miller (2007, p. 4-5), ao comentar o tema, propõe que a família

 

(…) é um lugar inesgotável de interpretação, pois cada família tem um ponto de “não se fala disso”, não existe família sem esse ponto; isso pode ser o tabu do sexo ou falar da falta de um ancestral. No centro dos assuntos de família encontram-se sempre coisas proibidas. Bem entendido, há primeiramente o tabu do incesto. É a razão pela qual a família como lugar do Outro da língua, é também o lugar do Outro da lei.

 

Desse modo, a constituição da família para o sujeito se daria a partir da resposta dos pais ao lugar que ocupam frente às necessidades e demandas de seu filho, permitindo o aparecimento do desejo, ou seja, o lugar de um filho, de um pai e de uma mãe. Lacan (1969/2003) comenta que o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. Ao introduzir a cena edipiana, indica que o pai é aquele que vai fazer a mediação entre o desejo e a lei. Lembramos, assim, que o pai vai veicular a lei e o desejo em face ao gozo, sendo necessário, no entanto, que a mãe autorize. A entrada de um terceiro na relação entre mãe e criança é o que pode ofertar uma inserção no campo da linguagem com seu efeito de castração e produção de um desejo, sendo melhor que a criança revele a verdade do par parental do que a subjetividade da mãe, ao evidenciar a verdade do objeto, em uma relação dual.

 

Miller avança e cerne o que podemos manter como família para o sujeito diante do grande espectro que esse núcleo ganhou em nossa época. Segundo ele,

 

(…) o que nós poderíamos dizer, hoje, dessa definição da família? Que ela tem origem no casamento? Não, a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. Que ela seja formada pelo marido, pela esposa e suas crianças, etc.? Não, a família é formada pelo Nome-do-Pai, pelo desejo da mãe e pelo objeto a. Que eles são unidos por laços legais, por direitos, por deveres e etc.? Não, a família é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não dito. Qual é o segredo? Qual é esse não dito? É um desejo não dito, é sempre um segredo sobre o gozo (Miller, 2007, p. 6).

 

Nessa vertente, quando Miller (2007) pondera sobre as questões que recaem sobre a família hoje, podemos pensar que há uma busca de normatização do campo familiar, proporcional ao ensejo de naturalizar as relações de parentesco. A paternidade judicializada, baseada no exame do DNA, nos dá a noção da tendência que vem sendo empregada frente às demandas de resoluções em certos conflitos familiares, desconsiderando o mal-entendido, o desejo, o segredo e o não-dito.

 

Para Laurent (2008, p. 1),

 

(…) o que a psicanálise nos demonstra é a família no lugar de substituição do biológico pelo simbólico: a mãe e o pai são definidos como funções. O sujeito é que terá, portanto, a tarefa de constituir sua família, no sentido em que ela institui uma distribuição dos nomes do pai e da mãe. A tarefa não é, portanto, aliviada pela ficção jurídica. Alguma coisa dos lugares do pai e da mãe é, portanto, ineliminável: não como garantidor, mas como resíduo.

 

Diante dessa perspectiva, as intervenções no campo jurídico não teriam efeitos no que está inscrito como família, não há a possibilidade de se instaurar as funções parentais do ponto de vista psíquico pelo viés jurídico. Terá que haver um consentimento, um investimento que passa pelo sujeito pai ou mãe para que essas inscrições se registrem. Não há também, pelo mesmo caminho, como destituir ou anular uma função e seus efeitos subjetivos no sujeito filho. Sabemos que a resposta da ciência e a ratificação pelo jurídico vão tocar na verdade do sujeito, imprimindo a necessidade de uma nova solução diante do real que se oferece. Contudo, o jurídico tem sua base muito próxima ao pai, quando tratamos da instauração da cultura pela assimilação da lei, e talvez nesse sentido seja possível apostar que o direito possa se tornar mais sensível às questões do sujeito, às particularidades do “um a um” que se envolvem nas demandas sobre a família.

 

Para concluir, há, como atestam Laurent (2008) e Stiglitz (2007), algo ineliminável na família que a ficção jurídica não contempla. Mesmo que se imponha uma filiação ou paternidade pelo viés jurídico, isso não dá a garantia de uma inscrição subjetiva do pai. A outra face dessa mesma moeda é que, mesmo inscritos o pai e a lei do desejo, a saída de cena do pai pode provocar efeitos no sujeito que a ficção jurídica não contempla.

 

 

[1] Trata dos limites dos genitores no castigo com os filhos.
[2] Este texto foi posteriormente nomeado como “Os Complexos Familiares”.

 

 

 


REFERÊNCIAS 
Blisktein, D. DNA, paternidade e filiação. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
______. (1909/1980) O romance familiar. In: ESB, vol. 9. Rio de Janeiro: Imago.
Grisard Filho, W. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
Lacan, J. (1938/1981) A Família. Lisboa: Assírio e Alvim.
______. (1953/1987) Mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim
______. (1969/2003) Nota sobre a Criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1956-57/1995) O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1957-58/1999) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1974-75) O seminário, livro 22: R.S.I. – inédito.
Laurent, E. Século XXI – não relação globalizada e igualdade dos termos. 2008, Inédito.
Legendre, P. (1999) Seriam os fundamentos da ordem jurídica razoáveis? In: S. Altoé (Org.). Sujeito do direito, sujeito do desejo. Rio de Janeiro: Revinter.
Miller, J.-A. (out. 2007) Assuntos de família no inconsciente. Recuperado em 4 de dezembro de 2010 www.nucleosephora.com/asephallus/…04/traducao_01.htm
Sliglitz, G. Adoção. A indecisão da Origem. In: Opção Lacaniana (vol.50). São Paulo: Eolia, 2007, p. 43-45.
Villela, J. B. (1979) Desbiologização da Paternidade. In: Revista da Faculdade de Direito, 21, p. 401-419. Recuperado em 30 de julho de 2010, /www.abmp.org.br
MÔNICA CAMPOS SILVA



Inconsciente E Família

SÉRGIO LAIA

 

 

A família se configura como um tema de fundamental interesse para a sociedade contemporânea e, consequentemente, para a clínica psicanalítica. Em que sentido as profundas transformações que essa instituição tem sofrido, acarretam consequências na transmissão de uma constituição subjetiva?

A referência à “transmissão… de uma constituição subjetiva”, como sabemos, pode ser encontrada no segundo parágrafo da célebre “Nota sobre a criança”, escrita por Jacques Lacan[1]. Esse parágrafo, por sua vez, se conclui dizendo que tal transmissão implica “a relação com um desejo que não seja anônimo”[2]. Já nessa conclusão desse segundo parágrafo, temos elementos para responder à questão sobre as transformações da família e suas consequências na sociedade contemporânea. Afinal, vivemos em um mundo onde os nomes proliferam, por exemplo, na designação de orientações ou mesmo identidades sexuais, de transtornos mentais, de modos de composição familiar, de marcas de produtos de consumo, etc. Entretanto, será que essa proliferação ou, retomando outra expressão que Lacan utilizou em “A subversão do sujeito e suas relações com o inconsciente freudiano”, esse “mar dos nomes próprios”[3], efetivamente deixa espaço para um desejo não-anônimo? Se tomarmos como referência para responder a essa questão um clássico da sociologia como Durkheim[4], diríamos que não, porque esse sociólogo articula o aparecimento da então sociedade industrial com o desvanecimento da “família patriarcal”, o surgimento da “família conjugal” e a intensificação da “anomia”, ou seja, do anonimato. Porém, o ensino de Lacan nos abre outra via. Para tematizá-la, me sirvo também do escrito lacaniano sobre a subversão do sujeito, produzido no início dessa década de 1960 que, sabemos, foi um marco das transformações familiares com o “amor livre”, o aumento dos “desquites” e dos “divórcios”, a “liberação feminina”, a disseminação do uso dos “anticoncepcionais”, etc. Segundo Lacan, um “ser aparece como que faltando no mar dos nomes próprios”[5] ou, em outras palavras, a proliferação dos nomes não apaga o que lhe falta: o inominável insiste, nesse “mar dos nomes próprios”, mas ele não deve ser confundido com o anônimo, pois se insurge entre os nomes próprios, “como que faltando”[6]. Mas que ser inominável é esse? A resposta de Lacan, nesse mesmo escrito de 1960, não é direta, mas articula tal ser a um lugar que ele chama de “Gozo… cuja falta tornaria vão o universo”[7]. Ora, não há dúvida de que as sociedades contemporâneas vivem sob a pressão de um gozo que sempre precisa dar mostras de sua existência e de sua efetividade, que não pode parar e cujo mínimo vacilo é vivido como um desmoronamento do universo ou, para retomar os termos de Lacan, um universo vão. Neste mundo do gozo a qualquer preço, a “transmissão de uma constituição subjetiva” não é necessariamente abolida, nem apagada. Ela me parece transmutada. Antes, ela tentava se valer de referenciais que evocavam uma unicidade: na transmissão de tipo patriarcal, tudo se remetia ao “nome de família”, à “referência paterna” (a “esposa de fulano”, o “filho de beltrano”…) ou, por oposição, também ao que esse nome e essa referência não conseguiam abarcar (a “adúltera”, a “prostituta”, o “bastardo”, o “desviado”…). No mundo contemporâneo, a constituição subjetiva se pluraliza: em vez de um referencial unitário, há muito mais uma “constelação” de referências, e evoco essa dimensão constelar me servindo de “Lituraterra”[8]. Porém, ao invés de simplesmente se entusiasmar ou ajudar a propagar essa proliferação de nomes, a psicanálise de orientação lacaniana nos leva muito mais a interessar pela falha que, nesse “mar dos nomes próprios”, não deixa de se reiterar, mesmo se o gozo que aí transborda nem sempre a faz ser escutada. A experiência analítica é uma espécie de amplificador dessa falha que, embora insistente no mundo contemporâneo, é cada vez mais inaudível em meio à proliferação dos nomes próprios. Através dessa experiência e do que ela amplifica, verificamos que a especificidade de cada constituição subjetiva, ou, para evocar um termo caro aos nossos dias, a “diferença”, virá muito mais dessa falha que da proliferação dos nomes próprios.

 

De que maneira as distintas funções que coexistem no grupo familiar e os laços sintomáticos que se efetuam são afetados por uma época do Outro que não existe?

Efetivamente, o que você chama de “distintas funções que coexistem no grupo familiar” são, para Lacan (e aqui retorno ao escrito “Nota sobre a criança”), apenas duas: a função do pai e a função da mãe. Sobretudo tendo em vista os debates atuais sobre as diferentes formas de se compor uma família, e que são diferentes especialmente frente ao chamado “modelo heteronormativo”, sublinho que, por estarem associados ao termo função, as palavras pai e mãe não correspondem respectivamente a homem e mulher anatomicamente falando. Como nossa época é também tomada pelo que se apresenta como performance, acho igualmente importante lembrar que, para Lacan, função não é sinônimo de “papel” ou “desempenho”: ele me parece extrair esse termo da matemática e, assim, função é o que, por exemplo, estabelece uma relação entre dois diferentes conjuntos, entre elementos heterogêneos. Assim, a função da mãe é tematizada por Lacan como aquela cujos “cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas”[9], ou seja, essa função relaciona, pelo viés dos cuidados, a criança (conjunto 1) e o que diz respeito à própria particularidade de quem dela cuida, ou seja, ao modo como a criança vem responder às “faltas” de quem ela recebe os cuidados, às formas como a mãe é parte interessada (conjunto 2) nos cuidados da criança. Nesse viés, os cuidados ditos maternos implicam interesses que extrapolam a maternidade. Por sua vez, a função do pai também relaciona elementos provenientes de distintos conjuntos, porque, segundo Lacan, “seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”[10] e, assim, temos, por um lado, numa espécie de conjunto B, os elementos, digamos, mais abstratos que são “nome”, “vetor”, “Lei” e, por outro lado, numa espécie de conjunto C, os elementos que eu chamaria de mais corporais e que são “encarnação” e “desejo”. Tanto na função da mãe, quanto na função do pai, reencontramos o que, na resposta à questão anterior, eu assinalei como o que falha na proliferação dos nomes próprios: se há um interesse particular da mãe ao cuidar da criança, cada mãe será muito diferente do que se idealiza ou padroniza como sendo “A Mãe” e estará em falta frente a todos os nomes próprios que procuram designar o que é ser mãe; por sua vez, um pai estará em falta com “O Pai” idealizado ou padronizado e com os nomes próprios que pretendem referenciar o que é ser pai, na medida em que a encarnação da Lei no desejo não comporta um padrão ou o que valeria para tudo e para todos. Nesse contexto, e retomando o final de sua questão, se nossa época está efetivamente marcada pela inexistência do Outro, isto é, desse lugar onde encontraríamos todos os significantes que procuram designar-nos, os nomes próprios proliferam como tentativas de serem referenciais. Assim, o Outro não existe, mas os mais diversos nomes próprios podem ser acessados, o que cada um deseja toma a dimensão de lei inexorável, as crianças se tornam objetos de cuidados como nunca antes se viu em nossa civilização. Entretanto, a experiência analítica ensina-nos que a imposição da lei do desejo não é efetivamente encarnar a lei no desejo, ou seja não é articular elementos distintos (lei e desejo); nesse mesmo viés, o afã contemporâneo de se tomar a criança como objeto inquestionável de cuidados muitas vezes desconsidera completamente as particularidades específicas de cada criança, assim como a diversidade sempre crescente dos nomes próprios não favorece necessariamente um saber sobre o que nos designa ou nomeia em nossas particularidades. Por conseguinte, neste mundo do Outro que não existe, os sintomas continuam proliferando, mesmo se já não se manifestam mais exatamente como chegavam, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, ao consultório de Freud.

 

Em cada época, cabe aos analistas interpretar e responder às conjunções de cada cultura, com uma posição ética e eficaz, considerando a psicanálise enquanto uma prática aplicada ao sofrimento humano. Nessa perspectiva, até que ponto a Orientação Lacaniana se configura como um vetor da prática psicanalítica em nossos dias?

Sem dúvida, a psicanálise de orientação lacaniana, ao poder amplificar e responder, sem calar ou suturar, a falha que insiste meio a todas as nomeações que proliferam em nossos dias, tem muito a fazer neste mundo e é uma ferramenta de grande efetividade. Porém, essa orientação nos exige conceber a psicanálise muito mais do que, nesta terceira pergunta, é evocado como “prática aplicada ao sofrimento humano”. Certamente, ela incide e se aplica a tal sofrimento, mas sua força está muito mais em nos permitir a nos interessar pelo que está além do que um Nietzsche chamou de “humano demasiadamente humano”. Por isso, de acordo com o que Jacques-Alain Miller diversas vezes ressaltou, Lacan vai preferir em falar de “experiência analítica”: a noção de experiência pode comportar inclusive o que extrapola as concepções do que é humano, mas sem que isso implique qualquer desumanização – ela nos convoca a estarmos atentos às invenções, a como cada um se vira frente ao que não lhe é “humano, demasiadamente humano” e que ao mesmo tempo lhe habita e transtorna.

Quanto à parte da sua pergunta que procura averiguar se a orientação lacaniana pode ser “um vetor da prática psicanalítica” hoje, considero que, embora estejamos em muitos lugares e muito além de nossos consultórios particulares, não é ainda possível sustentar que tal orientação seja um vetor da prática analítica. Como um exemplo, contemplando o tema “Inconsciente e família”, cito o livro Francisco Bosco, Orfeu de bicicleta: um pai no século XXI, publicado pela Editora Foz, do Rio de Janeiro, em 2015. Trata-se de um depoimento sobre como a paternidade se apresentou por duas vezes na vida desse autor e de como ele a vive de modo completamente diferente do que acontecia, em geral, aos pais de algumas décadas atrás. Já no início da Primeira Parte, por exemplo, poderemos ler uma frase que, recortada, soa bem lacaniana: “a paternidade é uma questão” (p. 17). Ao longo do livro, vemos Francisco Bosco, mesmo perpassado pela inexistência do Outro, tendo de se colocar como um Outro, por exemplo, para sua filha primogênita e seu filho caçula. Entretanto, quando ele busca a psicanálise para tematizar a questão que lhe toma o corpo especialmente com o nascimento de seus filhos, suas referências são Sigmund Freud, Donald Winnicott, Françoise Dolto, Contardo Caligaris e Maria Rita Khel. Embora, de algum modo, a referência a Lacan não deixa de estar presente em Dolto, Caligaris e Khel, não se trata propriamente ainda da orientação lacaniana e, quando li os diferentes (e bem contemporâneos) modos como Francisco Bosco é afetado e responde ao que ele mesmo chama de “impacto enorme” da paternidade em sua vida, diversas vezes me ocorreu o quanto a orientação lacaniana poderia contribuir para suas elaborações e seus impasses…

 

Na sua opinião quais as questões fundamentais deverão orientar a nossa reflexão sobre o tema: Inconsciente e família?

 

Acho que sobretudo suas duas primeiras questões e a última são guias excelentes para essa reflexão. Além delas, eu acrescentaria, a princípio, mais duas.

Uma, me ocorreu outro dia, quando relia “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” e me deparei com a seguinte consideração freudiana sobre uma das possibilidades de se sair do complexo de Édipo: “no caso normal – melhor dizendo: ideal – não subsiste mais um complexo de Édipo no inconsciente, o Super-eu é seu herdeiro”[11]. Parece-me que não é incomum, sobretudo em certos casos de adolescentes e jovens adultos que chegam hoje a nossos consultórios, nos depararmos com esse tipo de situação “ideal” aludida por Freud: eles não nos reportam propriamente o que o criador da psicanálise localizava como “conflitos edipianos”, a vida familiar que têm (mesmo com os problemas que ela comporta) é considerada por eles como absolutamente “normal” e, de fato, parece ser mesmo. Alguns sequer conseguem localizar exatamente o que lhes levam a procurar-nos, embora queiram analisar-se e são frequentes nas sessões. Mas, imerso nessa “normalidade”, não deixamos de encontrar a presença insidiosa do supereu. Nesse contexto, parece-me interessante explorar como, em casos assim, a não subsistência do complexo de Édipo no inconsciente poderia implicar a presença insidiosa do supereu que, no entanto, é herdeiro desse mesmo complexo. Em outros termos, se o complexo de Édipo não subsiste no inconsciente, tal “normalidade” seria tomada pelo supereu que alguns pós-freudianos preferiram qualificar de “pré-edípico” e que Lacan pôde destacar mais claramente nas psicoses? Eu não incluo, nas psicoses, os casos a que faço alusão aqui, mas me parece impressionante que, no mundo onde o Outro não existe, tudo tende a ser considerado “normal” e, nesse viés, poderíamos investigar se o supereu se imporia, então, como uma espécie de retorno no real de conflitos que, por não mais subsistirem no inconsciente, não se apresentam na realidade e, assim, fazem com que a realidade pareça normal embora, efetivamente, ela seja perturbada pela presença real do supereu.

Uma outra questão seria sobre o estatuto do falo hoje e de como Lacan, sobretudo no final de seu ensino, tematiza o falo. Por um lado, vivemos em um mundo que confere a todo tempo descrédito ao falo, sobretudo porque o toma como “patriarcal”, “heteronormativo”, bastião de um “binarismo” que desconsidera completamente a “diversidade sexual”. Por outro lado, no Seminário 23, Lacan aborda o falo como “falácia” que “testemunha” o real e como “único real que verifica o que quer que seja”[12]. Nessa abordagem, não encontraríamos meios para enfrentarmos o descrédito contemporâneo atribuído ao falo e até de – sem qualquer retorno ao chamado “falocentrismo” – irmos além dos impasses que tal descrédito não deixa de implicar?

 

Considerando-se o fenômeno do “domínio materno”, indicado por Miller como uma “expressão da feminização da nossa época”, qual a contribuição da psicanálise, tendo em vista as dificuldades das famílias contemporâneas para articular lei e desejo, no processo de transmissão de uma constituição subjetiva?

 

Vivemos em um mundo onde cada vez mais a fala tende a perder o lastro corporal (por exemplo nas “conversas” intermináveis por Whatsapp) e os corpos tendem a se mostrar como se pudessem desconectar-se da fala (por exemplo, na demanda imperativa “manda nudes!”). Antes, a função paterna procurava dar algum lugar à conjugação da fala e do corpo, mas que se demonstra hoje muitas vezes insustentável porque soa (ou mesmo efetivamente é) autoritária, centralista, pouco ou nada afeita às nuances do que lhe escapa e se apresenta como “feminino”. A meu ver, a psicanálise de orientação lacaniana apresenta-nos um uso inédito da conjugação da fala e do corpo porque esse uso implica ir “mais além do complexo de Édipo” e outro modo de “viver as pulsões”. Nesse contexto, ela tem muito a contribuir, inclusive para que descubramos, nas tramas da feminização do mundo, a reiteração, mesmo de modo transmutado, do domínio materno. Mas devemos também zelar para que essa contribuição não tome, como algumas vezes escuto (até mesmo entre nós, psicanalistas de orientação lacaniana) uma perspectiva messiânica e salvacionista. Afinal, o próprio Freud já nos ensinou que, sob a face sacrificial do filho salvador, o que insiste é o sacrifício do pai que torna o pai morto mais forte que o pai quando vivo. Logo, se a contribuição da psicanálise de orientação lacaniana tomar uma perspectiva messiânica e salvacionista, ela se fará em “Nome do Pai” e perderá seu ineditismo de conjugar corpo e fala e de dar um lugar ao feminino como uma exceção diversa do pai, da mãe e mesmo d’A mulher.

 

Respostas redigidas por Sérgio Laia

Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME), pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Professor Titular IV do Mestrado de Estudos Culturais Contemporâneos e do Curso de Psicologia da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura); Pesquisador com projeto aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e pelo Programa de Pesquisa e Iniciação Científica (ProPIC) da Universidade FUMEC; Mestre em Filosofia e Doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

 

[1] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[2] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[3] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[4] DURKHEIM, Émile (1892/1975). La famille conjugale. In: Textes. Paris: Minuit.
[5] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,, p. 834.
[6] LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[7]LACAN, Jacques (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 834.
[8] LACAN, Jacques (1971/2003). “Lituraterra”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 24.
[9] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[10] LACAN, Jacques (1969/2003). Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 369.
[11] FREUD, S. (1925/2011). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In: Obras Completas, vol. 16. São Paulo: Companhia das Letras, p. 297.
[12] LACAN, Jacques (1975-1976/2007). O seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, p. 101-115.



Entrevista Com Márcia Tiburi Sobre O Livro “Uma Fuga Perfeita É Sem Volta

LUDMILLA FÉRES FARIA E MÁRCIA MEZÊNCIO

 

 

SWAYING 1

 

 

Nosso encontro com seu livro foi provocado por uma entrevista a uma rádio de BH, por ocasião do seu lançamento, que ressoou com o tema de trabalho ao qual nos dedicaremos no ano de 2017 na Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais, que são os assuntos de família. Nessa entrevista, você localizava o ponto de partida da trama e a notícia da morte do pai transmitida entre trivialidades e dizia ter se perguntado se não havia exagerado ao propor essa situação. Em nossos consultórios, tem nos chamado a atenção justamente a forma como são relatadas algumas situações, entre banalidades, particularmente alguns assuntos de família, de forma alguma banais.
Assim, nossa entrada se dá por esse viés e, ainda que os temas abordados pelo livro nos proponham inúmeras questões, foi ele o que nos orientou a
leitura, prazerosa e desconcertante, desse romance.

 

Em sua entrevista, ao blog da Editora Record, sobre o livro “Uma fuga perfeita é sem volta”, você afirma que o romance nasceu de alguns sonhos seus, e que a psicanálise não daria conta daqueles sonhos. Em que sentido você faz essa afirmação? A escrita do livro foi, então, uma forma de responder as questões que os sonhos colocaram?

 

O livro nasceu apenas porque eu tinha um sonho recorrente. A cena inicial na qual Klaus demonstra sua perplexidade com a notícia, e a forma como ela é dada, era o conteúdo com o qual sonhei várias vezes. No sonho, eu ligava para uma de minhas irmãs e ela me dizia, entre trivialidades, que meu pai tinha morrido. No sonho, eu ficava perplexa. Ao acordar, permanecia perplexa. Inclusive, em algum momento, cheguei a pensar que pudesse ser verdade e que minha família fosse tão estranha que pudesse deixar de me falar uma coisa dessas.

 

Embora eu faça análise (ainda que esteja, exatamente neste momento, em uma lacuna no tempo da análise), creio que, depois de Lacan, o sonho não importa mais do mesmo modo como importava em uma leitura freudiana. Mas os sonhos são importantes para mim, mais do que por questões psicanalíticas, porque são narrativas elementares que mostram coisas muito evidentes. São ideias em estado primitivo. Pensamentos primitivos, cheios de conteúdo, às vezes melhor formulados do que pensamentos racionais. Meu personagem empresta muito da minha própria pessoa, inclusive meus sonhos. Com exceção do sonho do gago com o morto no sótão, os demais são sonhos que eu realmente tive. Ou seja, esse livro é atravessado por um caderno de sonhos.

 

Desde o início, o tema da família ocupa um lugar preponderante no desenrolar da trama e, em especial, na escritura da identidade” do protagonista, que, conforme você afirma, está aprisionado nos ditos e nas histórias familiares. Ao final, ele afirma ter encontrado uma “nova forma de viver”. Seria essa sua metamorfose, desaprisionar-se da família “das paredes gélidas e escuras da lembrança que desabam sobre nós um dia” (p. 98)?

 

Meu personagem nasceu de um modo muito espontâneo, mas aos poucos fui me dando conta de que ele era uma espécie de estrangeiro desde o nascimento. Um estrangeiro na própria casa. Há algo nele de Antígona, mas só percebi essa questão bem tarde. Ele vive aquela ideia benjaminiana de que não há nada mais estrangeiro do que o corpo. Ora, a cidade é corpo. A política é corpo. Digamos que o próprio corpo é uma primeira experiência de estrangeirismo. A nova forma de viver é um modo de assumir sua condição estrangeira. É saber-se diferente no meio de uma identidade ameaçadora e aniquiladora. A família nos constrói, pouco do que somos é autônomo. O desejo é essa porta que se abre, ou a porta que conseguimos abrir para escapar da prisão, digamos assim. Nesse sentido, a fuga do meu personagem é uma fuga da prisão da família. A família que permanece dentro de nós, para sempre.

 

Ao tema da família, então, se liga o tema da fuga. Considerando a fuga perfeita, sem volta, como afirmado no título, e ainda “que a grande fuga se dá de fora para dentro, não de dentro para fora” (p. 139), que é seguida da ideia da possibilidade de retorno ao Brasil, perguntamo-nos se existe fuga perfeita e se o personagem a atinge. Podemos ler assim quando, referindo-se ao conto de A. A., ele diz que Saint-Éxupery “precisava de uma fuga perfeita que pudesse salvar sua própria vida, e o único modo era acabar com ela e redimensioná-la” (p. 574), e ainda que “Ele organizou a fuga perfeita. A fuga por metamorfose. A fuga sem volta.” (p. 588)? Voltar para confirmar-se (p. 199) não ser o que eles são, desobrigado de qualquer dívida, ainda que preso a si mesmo (p. 143)?

 

O que significa essa fuga perfeita? Fugas há muitas, mas uma perfeita é mais bem complicado. Klaus experimenta um aprisionamento em si mesmo ao qual foi condenado pela família, incapaz de olhar para ele. A mãe que morre louca, o pai que não suportava sua figura, a irmã que era uma esperança e que, infelizmente, não foi capaz de perceber o caráter extraordinário que os unia. Mas ele se sente culpado, sobretudo pela irmã. Ao mesmo tempo, ele se considera digno de uma outra vida possível. Daí o papel de A. A. A criação de Agnes Atanassova a partir do que está disponível, os objetos da casa, as roupas e acessórios do velho guarda-roupa, um pedaço de história escrita em um caderno abandonado, os restos deixados pelos outros nos achados e perdidos. Klaus é, a meu ver, um efeito do abandono ao qual estamos todos condenados. A. A. tem o teor de um encontro. Eu fui abandonado, mas eu posso encontrar, no que foi abandonado, uma saída para o meu próprio abandono. Todo encontro, todo “encontrar” é, também, em alguma medida, inventar. É isso o que Klaus nos faz saber. Agnes Atanassova é a fuga perfeita. A meu ver, a história da morte de Saint-Éxupery é redimensionada porque o próprio Klaus percebe que ele pode desaparecer para ser outro. No caso, ele escolherá ser outra.

 

Você afirma ter se inspirado livremente na passagem de Saint-Éxupery pelo Brasil para construir a questão da fuga que permite a evolução do romance, e que se torna uma questão mais decisiva no fim do livro. Destaca também a questão do Desterro, nome original da ilha, articulada ao personagem desterrado da própria casa e da própria língua. Para a condição de estrangeiro e exilado, uma passagem parece decisiva: que a notícia da morte do pai tenha sido dada em português e não na “nossa língua” materna. Mãe que dá a vida e a morte (p. 403). Humanidade relacionada ao estatuto de falante, o que não significa comunicação (p. 64). Qual o estatuto dessa língua materna? Em que medida constitui a família, ou seu “pano quente de silêncio”? 

 

Aqui tenho que falar novamente de algo muito pessoal. No momento em que respondo essa entrevista, tive que passar dois dias em Portugal e tive uma sensação nova. A língua portuguesa falada por lá me deu a sensação de que eu falo uma língua estrangeira. É verdade que o português é a nossa língua materna, mas confesso que sinto como se não fosse a minha. Eu me sinto totalmente estrangeira ao falar e escrever em português; ao mesmo tempo, a sensação de paradoxo não me deixa, porque não aprendi outra língua antes da língua portuguesa, ainda que meus avós paternos, com quem cresci, falassem italiano. Estou sempre com a impressão de que falo a língua errada. Não procuro na literatura a língua correta, mas a língua que eu posso falar. A literatura é a minha língua materna em certo sentido. A língua de quem não tem língua. De quem tem, como Klaus, a língua quebrada. Verdade que criei a gagueira de Klaus porque, pessoalmente, a gagueira sempre me impressiona, sempre me comove. Mas havia um sentido necessário ao personagem: ele não poderia ser um falante comum, alguém capaz de conversar e de se sair bem na vida porque tinha essa habilidade. A gagueira é esse impedimento, essa marca física e metafísica de um erro original, de uma impossibilidade. Eu me sinto gaga de alma. E me tornei falante como filósofa, uma estudiosa do diálogo humano. Minha profissão me levou a ser falante até demais, na vida real, devido à minha profissão de professora. Fora isso, na vida cotidiana, eu prefiro o silêncio, pois nunca sei o que dizer. A literatura certamente permite o silêncio como a sua forma de fala. Klaus também a encontrará no caderninho vermelho e a transformará em performance. Ele será A.A.

 

De que forma você descreveria a relação entre a irmã Agnes e a solução encontrada pelo protagonista Klaus Wolf Sebastião? Em um dado momento do livro, ele chega a afirmar: “Agnes, sou eu, Agnes, sou eu” (p. 53). Isso poderia, a posteriori, ser escutado “eu sou Agnes”? 

 

Lembro bem quando escrevi essa frase. Eu mesma me surpreendi. Ele tinha percebido que, já naquele momento, ele estava diante de um espelho. Depois, esse espelho se materializará. Penso que não há nada de mais apavorante do que a nossa semelhança com os nossos. Nesse sentido, sermos adotivos é sempre menos pavoroso, ainda que, para muitas pessoas, possa parecer um desabono. Recorrendo novamente a um fato pessoal, confesso que passei a minha infância tentando entender se eu era ou não adotiva. Havia na minha família esse registro ambíguo que era quase um bulliyng que as pessoas faziam comigo. Eu nasci com cabelos pretos e crespos em um ambiente de gente loira com olhos azuis. Nesse caso, creio que Klaus vive de modo muito mais sofisticado algo que eu vivia. Emprestei a ele essa experiência riquíssima de horror daquilo que é familiar e a estanha satisfação de descobrir em si uma dimensão de diferença em si mesma redentora.

 

O que significa dizer “É o pacto do enterro que define a família. Não o parentesco, mas o enterro” (p. 100)? É desse pacto que o personagem se vê excluído, como lemos em “Não se pode negar a herança” (p. 386), “Irmãos como espólio um do outro” (p. 444) e “Em uma família só os testamentos são verdadeiros” (p. 511)? 

 

Talvez o que eu vá responder soe um pouco mórbido. Talvez seja muito particular e não vou sugerir que isso tenha validade universal. A meu ver, há muita coisa em comum entre famílias e romances, mas sobretudo um elemento: os mortos. Todos os livros que escrevi foram livros sobre a morte e sobre os mortos. Todos foram, em certa medida, para poder conviver e, quem sabe, poder enterrar meus mortos. Aqueles mortos, inclusive, que não sei se poderei enterrar um dia, pois talvez eu morra antes. Nesse sentido, o raciocínio é lógico. Enterrar os outros significa ter sobrevivido. Escrevo, nesse sentido, para sobreviver. Nessa frase em particular, eu vejo um sinal de profunda solidariedade. Somos irmãos quando enterramos nossos mortos comuns, somos filhos quando enterramos nossos pais, aqueles que, simbolicamente, ajudamos a matar, para lembrar do Totem e Tabu. Mas, sobretudo, vejo o registro de Antígona, para quem o enterro do irmão era uma questão essencial. O último gesto ético, um gesto que vai além da generosidade e do dever, um gesto de compaixão final. Um gesto que equivale, por certa inversão, por estar próximo de uma inversão, ao gesto do nascimento. Pode parecer morbidez em torno de um niilismo, mas se trata, muito mais, de um acordo que se fecha. De um profundo companheirismo em torno de um projeto no qual a morte não é o coroamento, mas o fracasso inexoravelmente experimentado e que merece toda a compaixão.




A Família Entre A Ciência E A Lei

FABIAN FAJNWAKS

 

 

Famílias recompostas, monoparentais ou homoparentais. As diversas figuras da família que nossa época nos apresenta encontram-se determinadas pelos progressos da ciência – pelo discurso jurídico que acompanha esse progresso –, em que o impacto da psicanálise na cultura também tem seu lugar.

 

Há algumas semanas um autor escrevia, com certo cinismo, nas colunas de um jornal de grande circulação na França, que, da mesma maneira que os anos 70-80 condenaram o casamento à morte – o que se pode discutir –, os anos 90-2000 estabeleceram, definitivamente, como obsoleta a noção de casal. “O conceito de fidelidade – diziam – tornou-se tão ridículo, obsoleto, bárbaro como era em outra época o conceito de castidade”. Se atualmente todos os sexos são semelhantes, todas as sexualidades se diferem umas das outras. O fim do modelo de casamento/celibato, seguido do modelo de casal/solidão, anda hoje de mãos dadas com a superação da distinção arbitrária masculino/feminino, do hiato absurdo hetero/homossexual. A nova individualidade não é mais étnica, nem geográfica, nem social ou cultural: é sexual. Uma nova individualidade que permite viver a liberdade sexual que reivindicamos transcendendo as divisões, depreciando as distintas comunidades. Ela permite fabricar um sexo.

 

Com a psicanálise, não saberíamos desmentir essas palavras, mas voltemos ao ponto em que esse autor fala de “inventar um sexo” e de “uma nova individualidade”. Saber que a “individualidade” do nosso tempo implica que cada um pode gozar como quiser, desde que isso não incomode muito nem aos outros nem à sociedade, sendo exclusivamente esse “cada um pode gozar como quiser” o que faz em nossa época o laço social, a questão ética que acompanha esse tipo de gozo de “fazer um sexo” se impõe necessariamente. Isso significa que a diferença entre o que é uma posição de “vontade de gozo”, o que empurra ao que – como Lacan disse em Televisão e antecipando essas questões – “no desatino de nosso gozo, não há mais o Outro para situá-lo, e agora esse gozo se localiza a partir do mais-de-gozar”2 e o que se deduz de uma posição subjetiva em relação ao desejo é, poderíamos dizer, cada vez mais frágil, e somente a psicanálise pode escutar essa diferença.

 

Para dizer de outro modo: vivemos em uma época em que o fato de que a cada um está permitido reivindicar um modo de gozar – o que toca a sexualidade e a estrutura da família – impõe uma reformulação jurídica que enquadre esse mais-de-gozar permitido, e uma reflexão ética a que todos os indivíduos que compõem a sociedade estão desde agora convidados, e é o que se verifica na presença da palavra “ética” em todos os discursos sociais, como sintoma dessa questão.

 

“Inventar um sexo” é acompanhado também de poder “inventar uma família”, que acompanha a maneira de viver essa sexualidade, e não surpreende, então, por exemplo, a reivindicação dos homossexuais de adotar ou de procriar, como é possível para as homossexuais já há alguns anos. Um sociodemógrafo indicava há uns dias no Liberation3 que “o amor, ou melhor, o casal, se constrói atualmente a partir da sexualidade enquanto que há um tempo, era o casamento que desempenhava esse papel” 4.

 

A família homoparental constitui uma revolução que a ciência permite há uns anos e que o jurídico está em vias de adaptar-se com a legislação correspondente. Existe há três anos, na França, o PACS (Pacto Civil de Solidariedade), que reconhece as uniões homossexuais. Até poucos anos atrás, ser gay significava a renúncia do sujeito à procriação, e que a partir de agora é possível driblar, “verônica** – para usar um termo de Oscar Masotta – a castração”, ou, nesse caso, se quiserem, um “duplo drible”.

 

Não se trata aqui, como observado por Lacan em Os Complexos Familiares, de “afligir com um pretenso afrouxamento dos laços de família”5, o que levaria inevitavelmente a uma posição moralista, desconectada da psicanálise, ou dizer “os homossexuais já não são mais o que eram antes”… Trata-se de notar, em primeiro lugar, que a família homoparental não faz mais que colocar em evidência o que conhecemos há um século com Freud e Lacan: que, por um lado, há uma diferença entre a família – estrutura que garante a transmissão em relação à procriação – e o Complexo, enquanto o dispositivo que permite que um sujeito advenha como desejante; e que, dentro desse complexo, as funções fundamentais de Desejo da Mãe e de Nome do Pai se articulam mais além dos lugares biológicos, mesmo se estão encarnados.

 

Recordemos o que nos assinala Lacan em Duas notas sobre a criança:

 

A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades – mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo6.

 

“A relação com um desejo que não seja anônimo”: aqui, temos articulada a metáfora mínima necessária para a constituição do sujeito, que implica que tenha transmissão de outra ordem que não a da necessidade. Frente ao fato de que a família tenha sido reduzida a seu agrupamento biológico – ou sexual, poderíamos acrescentar, a partir da perspectiva do que estamos abordando – à medida que integrava os maiores progressos culturais, perguntemo-nos como o fez Lacan – nessa passagem de Os complexos familiares – pelos “efeitos psicológicos” ou subjetivos dessas alterações que tocam o que ele chama de “declínio social da imago paterna”. Mas não nos alarmemos tanto como podem fazer os psicólogos ou outros humanistas ou profissionais do social: a psicanálise, desde Freud – Lacan o recorda nesse texto em que evoca o “melting pot” das formas familiares mais diversas que constituía a Viena do princípio do século e que deu lugar a essa reflexão –, diferencia a estrutura familiar do “Complexo” de Édipo, e o que as mudanças contemporâneas da família nos fornecem talvez seja menos inovador. Esse “declínio social da imagem paterna” produzirá novas fobias, por exemplo, nesses novos grupos familiares nos quais a imagem do pai se vê alterada ou reforçada nas parcerias em que justamente ele está ausente? Assinalemos o fato de que muitas vezes o filho do qual se trata é o filho feito ao pai ou à mãe do sujeito. Em todo caso, podemos encontrar, nessa reivindicação, a confirmação da “função de resíduo”, de resto da família que Lacan sublinha, ou seja, no desejo dos casais homossexuais de “fazer família”, segundo o modelo da parceria heterossexual.

 

Uma série de reformas jurídicas realizadas recentemente na França parece sustentar a “decadência social da imago paterna”7. Desde o mês de fevereiro (de 2002) e, rompendo com uma tradição que data de oito séculos, uma mãe pode transmitir a seus filhos seu sobrenome, ou seja, o de seu pai, no lugar do sobrenome do pai de seus filhos, e isso por simples pedido e acordo dos cônjuges. No momento em que o parlamento francês aprovou essa reforma, que constitui uma pequena revolução, os jornais evocavam o lugar simbólico do Pai como transmissor do nome, citando a referência lacaniana do Nome-do-Pai. Já existia na França a possibilidade de que a mãe reconhecesse seu filho e lhe transmitisse seu sobrenome, ou que o filho carregasse os sobrenomes de ambos os pais, ainda que sempre fosse o de seu pai o que se transmitia. Contudo, no contexto atual, que a lei promulgue a possibilidade desse tipo de transmissão coloca, entre outras, a questão sobre se ela não condescende com a possibilidade de alimentar um fantasma de possessão materna, em que é o próprio pai da mãe que aparece como transmissor do Nome. Para dizer de outro modo, se o que funciona como constatação lacaniana no social é a decadência da imago paterna. Lacan apresenta, no texto citado, todas as interrogações concernentes à falha de transmissão dos ideais por esse motivo, sendo os ideais do pai os que alimentam, segundo Freud, o ideal do eu do filho, perguntando-se também pelo lugar que toma o supereu como reforço, uma vez constatada essa decadência da imago paterna. Cabe perguntar também acerca da forma que toma o empuxo à mulher no social que acompanha essa decadência, e que se verifica em toda psicose. Mônica Torres falou, há um tempo, desse empuxo à mulher no social e que haveria de desenvolver esse conceito. Aqui vemos uma estranha convergência entre os efeitos do progresso da ciência e o discurso jurídico, em que um acompanha o outro, produzindo um tipo de fantasma do todo feminino, no qual já não há mais pais, ou seu lugar aparece apagado, mas também não há mais homens, a partir do momento em que a ciência pode fazer a mulher procriar prescindindo do ato sexual, que é o que introduz a diferença dos sexos, reduzindo o homem ao banco de esperma. A clonagem, forma que definitivamente pode prescindir da reprodução sexual, alimenta esse fantasma em que já não se trata de um todo feminino, mas de um empuxo a ele, sem nenhuma alteridade, e em que as reflexões de Freud em Além do princípio do prazer, acerca do progresso que a reprodução sexuada supõe sobre a reprodução assexuada, são atuais, nos promete para amanhã o retorno à reprodução assexuada – se a clonagem for possível.

 

Outra modificação é a aplicação, na França, da lei chamada “reforma da autoridade parental”, aprovada em meados de fevereiro de 2002: a lei reconhece uma competência igual aos pais e às mães no caso do divórcio, seguindo, assim, um movimento que os jornais chamaram de uma ideologia da “copaternidade”, que já provocou a tensão das organizações feministas francesas. Uma jurista comentava essa tensão, ressaltando “o apego visceral das feministas à divisão jurídica dos sexos: não somente obtiveram o direito ao aborto, como também o de perseguir (juridicamente) o homem que é o genitor de seus filhos, em uma espécie de reivindicação de domínio primário em detrimento do pai”9.

 

Talvez possamos evocar, para terminar, o que muitos sociólogos apontaram no momento dessas mudanças da estrutura e da inscrição jurídica da família: que no momento social atual em que, para retomar as palavras do escritor que citávamos no princípio, cada sexo tem exatamente os mesmos direitos de reivindicar um modo singular de viver sua sexualidade, de “inventar” sua sexualidade, a guerra dos sexos parece, então, deslocar-se do campo da família…

 

 

 

 


Referências:
1 Moix, Yann, Loisirs totalitaires. Libération, 17 de fevereiro, 2001.
2 LACAN, J. Televisão. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p. 535.
3 Jornal editado em Paris, fundado em abril de 1973 com o auspício de Jean-Paul Sartre.
4 BOZON, M. Le Pacs n’enfante pas l’adoption homo. Libération. 27 mar., 2002.
5 LACAN, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros escritos: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p.66.
6 Ibid., p. 369.
7 Ibid., p. 66.
8 FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Vol. XVIII.
9 IACUB, Marcela. Libération, março, 2002.
** N.R. “Verónica” é um termo para definir a manobra do toureiro durante as touradas: como o touro é incapaz de distinguir cores, é atraído pelo movimento do pano – um capote com capa vermelha e forro amarelo – usado para driblar o animal com um recuo de pernas. O vermelho só serve para disfarçar as manchas de sangue.

FABIAN FAJNWAKS
Tradução: Mônica Campos Silva
Revisão: Kátia Mariás
Trabalho publicado na Revista Enlaces nº 7, Revista do “Departamento de estudos psicanalíticos sobre a família – Enlaces”, 2002.
Fabián Fajnwaks, psicanalista, professor do Departamento de Psicanálise (Paris VIII), Membro de l’ECF e da Associação Mundial de Psicanálise.