O Avesso Da Procriação

FRANÇOIS ANSERMET

 

 

Poderia-se definir a família como uma instituição feita para tratar a diferença dos sexos e das gerações. Baseado nessas diferenças, ela é, ao mesmo tempo, uma construção artificial que vela o real que essas diferenças indicam. Ela é, portanto, fundamentalmente desnaturada, sempre para além dos fatos biológicos sobre os quais ela repousa, mudando de forma antes que se tenha tempo de entendê-la, mas permanecendo como uma necessidade – o que revelam, por exemplo, seus dispositivos contemporâneos, como no caso de casais homossexuais e transexuais e seu desejo, por vezes militante, de adotar ou mesmo conceber crianças.

A família fornece, em seu seio, procriação e genealogia. É preciso, no entanto, compreender bem que procriação e genealogia são dois registros radicalmente heterogêneos. Mas a fascinação contemporânea pela causalidade natural quer superpô-los a todo preço – inclusive com um recurso cada vez mais frequente aos testes de paternidade, tornados disponíveis para todos em caso de dúvida súbita, sob a forma de kits comandáveis pela internet. As cerdas de uma escova de dentes ou um pequeno resto sobre uma colher de sobremesa são suficientes para saber de onde vem ou se sua criança vem mesmo de si.

O parentesco biológico é assim frequentemente evocado, com veemência, para negar aquilo que se teceu no fio das identificações e da história – como se nada houvesse se passado desde o nascimento! É o caso, em se tratando da inseminação com doador (IAD – insémination avec donneur), quando se convoca a genética no lugar da história, ou seja, o doador de esperma no lugar do pai, como se ele pudesse se apagar diante do espermatozoide. É também o caso no que concerne à adoção, com os famosos pais ditos biológicos. Geração e adoção são efetivamente duas visões concorrentes do parentesco. Existem, inclusive, casos limites em que a adoção foi vista como um “a mais” em relação ao parentesco por geração, como nos Mbaya-Guaicuru citados por Lévi-Strauss nos Tristes trópicos (1955, p. 260):

“Esta sociedade se mostrava muito adversa aos sentimentos que nós consideramos como naturais; assim ela experimentava um forte nojo pela procriação. O aborto e o infanticídio eram praticados de maneira quase normal, e a perpetuação do grupo se efetuava bem mais por adoção que por geração, um dos alvos principais das expedições guerreiras sendo o de encontrar crianças. Assim calcula-se, no começo do século XIX, que no máximo 10% dos membros de um grupo guaicuru lhe pertencia por laços de sangue.”

 

[1]Vertigens biotecnológicas 

 

É preciso admitir que os universos subjetivos, simbólicos e imaginários da sexualidade, da procriação, da gestação, do nascimento e da filiação são fundamentalmente sem relação entre si, a não ser pelo fato de estarem às voltas com o real impensável da origem, com as suplências inventadas por cada um para compensar as disjunções – entre elas, a criança – que reconduzem mais ao real que à origem. É assim que, em análise, pode-se, por vezes, levantar o véu que recobre esse real e distinguir, a propósito do que concerne à família, a vertente do semblante da vertente do gozo, este último sendo, definitivamente, o avesso da família.

Na clínica só podemos nos orientar a partir de uma concepção desnaturalizada da estrutura familiar. É o que revelam, de maneira explícita, as procriações justamente chamadas artificiais, quando elas utilizam paradoxalmente a natureza como um artífice – mostrando, pela defasagem que elas implicam, aquilo sobre o qual repousa toda procriação.

As procriações medicamente assistidas (PMAs) revelam o diferencial sexual curto-circuitando-o. Elas desvelam também o âmbito do diferencial geracional congelando o tempo através da crioconservação, que comporta o potencial, senão a possibilidade de saltar gerações.

Seja como for, as PMAs forçam-nos a pensar a procriação da qual não temos habitualmente representação. Temos uma data de nascimento, não uma data de procriação. Elas obrigam a pensar o impensável, a representar o irrepresentável. Nisso, as PMAs são uma falsa resposta a uma verdadeira questão, a uma questão impossível, aquela da origem e da procriação. Está aí a fonte principal das vertigens que induzem as biotecnologias, que apontam justamente o real em torno do qual giram os laços familiares.

No buraco do impossível, tudo vem submergir, em particular as teorias sexuais infantis próprias a cada um dos pais, que têm a característica de contornar o sexo, como nas biotecnologias da procriação. É nesse ponto que, finalmente, somos todos nascidos fantasmaticamente de PMA! Mas é preciso também reconhecer que as PMAs podem acrescentar à realidade modos de fazer inéditos, ao ponto de tornar a natureza artificial, na medida da fantasia de cada um. Brevemente, tudo será possível: até procriar a partir de células-tronco, podendo ser transformadas seja em espermatozoide, seja em óvulo – isso ainda é experimental –, com a perspectiva, melhor ainda que pela clonagem, de se tornar filho de si mesmo, como Galaad para Lancelot.

As PMAs, dissociando a sexualidade da procriação e a procriação da gestação, deixam finalmente às únicas referências simbólicas – aquelas da diferença dos sexos e das gerações – a possibilidade de construir uma filiação, instalando, ao mesmo tempo e de maneira inesperada, as referências próprias à psicanálise sobre o que está no centro da cena. Esse é um efeito paradoxal das vertigens biotecnológicas que se trata de destacar.

 

O avesso da biografia

 

A biografia não é redutível à história, inclusive aquela da procriação. Como indica Lacan (2006a, p. 332), o que determina a biografia é inicialmente “a maneira pela qual se apresentaram os desejos do pai e da mãe”, quer dizer, o modo “como eles efetivamente ofereceram ao sujeito o saber, o gozo e o objeto a”[2].

É disso que a criança deve advir, ela que faz sua entrada no mundo no lugar de objeto a – “aborto do que foi, para aqueles que a engendraram, causa do desejo” (LACAN, 1991, p. 207)[3]. Ela deve advir como sujeito a partir desse estatuto de objeto, para vir “se substituir à hiância que se designa no impasse da relação sexual” (Idem, 2006a, p. 347)[4]: essa é uma marca particularmente forte na clínica das PMA.

Eu poderia citar o caso desse casal que quer dizer a seus filhos, nascidos de esperma doado, a verdade sobre sua origem. A mãe me fala do pai biológico. O pai se retrai. Por que falar do pai biológico e não de doador de esperma? O que é um pai? O que é um espermatozoide? O que é um doador de esperma? Eles retornam para repensar no fato de dizer mais do que na maneira de dizer… A mãe me fala de sua fantasia: se as crianças desejarem um dia encontrar o doador de esperma – as duas crianças são do mesmo doador depois de uma única inseminação –, ela será perturbada a ponto de ser tomada de paixão por esse homem… Afirmação que a surpreende a ponto de deixar a questão momentaneamente em suspenso.

Eu poderia também evocar o caso de Pierre-Marie, que não para de perguntar “onde está papai?”. Pierre-Marie tem três anos. Sua mãe é uma mulher que concebeu essa criança sozinha, de maneira artificial por FIV (fecundação in vitro) em Boston, com doação de esperma. Ela queria oferecer fantasmaticamente essa criança à sua mãe, que teve que dá-la, no seu nascimento, à sua própria mãe e não podia mais ter filhos, em consequência de complicações ginecológicas consecutivas à gravidez.

Pierre-Marie veio de um doador de esperma americano, definido pela ficha do banco de esperma californiano como de origem francesa e alemã – o que representa alguma coisa na história dessa mulher – mas também cherokee (etnia indígena norte-americana), tendo como principal qualidade o otimismo, como principal defeito a procrastinação e como livro preferido: The power of one. Eis que ela volta para a Suíça, grávida, depois de uma FIV que lhe deixa ainda um zigoto à disposição, crioconservado em Boston.

Ela deu à luz, sem problemas, uma criança que se desenvolverá normalmente, mas a inquietando – inquietante estranheza – ainda mais depois do dia em que ele começa a falar e não para de invocar o pai: Quem é papai? Onde está papai? Questões reiteradas que deixam a mãe completamente desprovida, sem voz. Tais questões tornam-se progressivamente, para Pierre-Marie, a principal via para agredir sua mãe.

Depois de uma aventura, ao modo de Wim Wenders, através dos Estados Unidos para encontrar os traços do doador, de centros de PMA aos bancos de esperma, ela acaba por fazer um novo implante do zigoto crioconservado que restou – dessa vez, sem sucesso. Da árvore genealógica conhecida à árvore genealógica suposta, tudo isso não cessará até que ela aceite meu dizer, endereçado a ela e a seu filho, de que a única resposta a essa questão é que não há resposta. Essa intervenção traz uma pacificação na relação com o filho e uma melhora sintomática quase imediata para a criança.

Em resumo, é a partir de um lugar já estabelecido e de decisões já tomadas que a criança terá que fazer suas próprias escolhas para ir além de seu estatuto de objeto, além dos modos de gozo dos quais ela descende.

O que ele inventa, então, o separa para além daquilo que o determina, segundo um desejo que lhe é próprio, que emerge das respostas através das quais ele se constitui, qualquer que seja o modo de procriação ou os modos de gozo dos quais ele advém.

 

A morte na procriação

 

Pode-se então observar o gozo como uma primeira versão desse avesso da procriação. Mas o avesso da procriação é também a morte, com o estatuto nem vivo nem morto dos embriões crioconservados em suspenso no nitrogênio líquido a -196 graus. É uma espécie de avesso de Senhor Waldemar, de Edgar Allan Poe, que queria manter-se por hipnose entre a vida e a morte no momento de morrer. Aqui, ao contrário, é no momento de emergência da vida que o futuro é congelado. Novas formas de demanda se articulam concernindo os embriões e os gametas crioconservados: assim, uma mulher gostaria de congelar seus óvulos no momento de aceitar um emprego importante que lhe tomará todo seu tempo, para dispor deles quando sua carreira estiver estabelecida. É também instituída hoje a oferta de separar e crioconservar os espermatozoides, ou, mais recentemente, os óvulos, quando um tratamento oncológico ofereça risco de esterilidade – esses gametas podem inclusive sobreviver àqueles de quem eles provém. Encontramos as mesmas questões com os embriões que se acumulam nos laboratórios. Daí uma nova lei na Suíça que obriga a tomar uma decisão após cinco anos de crioconservação – ou se implanta o embrião, ou se o destrói – escolha impossível para a maior parte.

Temos então uma clínica nova nutrida de enunciados inéditos, testemunhando sobre o estranho estatuto dado às crianças vindas dos zigotos crioconservados entre procriação e gestação, como essa mãe que, no final da consulta, diz para seu filho: “Vem, meu pequeno Findus, está na hora!”[5]. Ou essa outra que fala de seu filho como seu “pequeno congelado”. Qualquer que seja seu modo, toda procriação visa a parte imortal no vivente mortal, para retomar a expressão de Sócrates referindo-se às proposições de Diotima no Banquete de Platão. Para que procriar tenha seu sentido pleno, como o enuncia Lacan: “É preciso ainda, que nos dois sexos, haja apreensão, relação com a experiência da morte” (1981, p. 330)[6]. É esse avesso da procriação que o projeto de clonagem rejeita, como os delírios de procriação dos psicóticos, com a perspectiva prometida de poder se recriar idêntico a si, portanto, eterno – o que é impossível, pois o clone será de toda maneira outro independente daquele de onde ele vem, devido à existência do Outro e do sujeito, ele mesmo.

 

Pós-criação

 

Isso nos leva a uma terceira versão do avesso da procriação, para além do gozo e da morte: aquela da criação, onde o sujeito realiza para além de sua procriação.

Se a procriação realiza uma suplência à não relação sexual, uma conexão para além da disjunção entre o gozo e o Outro, entre o homem e a mulher, o avesso da procriação se apoia sobre uma parte de intransmissível que oferece, paradoxalmente, ao sujeito, o espaço de criação, de uma “pós-criação” para retomar uma formulação de Joyce em Ulisses (1995, p. 442)[7], que dá sua versão do avesso da procriação como criação para além do que foi procriado.

De todo modo, a partir de acasos que empurram para a direita ou para a esquerda, o sujeito vai se fazer um destino (LACAN, 2006b, p.162)[8] que ele recompõe a posteriori. A grande lei do universo é, com efeito, a contingência. Tudo depende do imprevisto, do encontro. Como o enuncia Lacan (1998, p.18), “Vocês surgiram desta coisa fabulosa, totalmente impossível, que é a linhagem geradora. Vocês nasceram de duas células que não tinham nenhuma razão para se conjugar, se não fosse por esta espécie de maluquice que se convencionou chamar de amor.”[9] De qualquer modo, o sujeito é fundamentalmente disjunto de seu modo de procriação. Qualquer que seja a técnica pela qual a criança nasceu, nada pode resolver para o sujeito o enigma de sua vinda ao mundo. Só lhe resta se inventar, encontrar suas próprias respostas – e, por que não, também, por meio de uma análise – desorganizando e reorganizando diferentemente o que estava no seu nascimento para além do que presidiu sua concepção.

 

 

 

 

 


REFERÊNCIAS:
[1] Lévi-Strauss, Claude. Tristes tropiques, Paris. Librairie Plon. Terre Humaine, 1955, p.260.
[2] ______. Le Séminaire, Livre XVI. ’un Autre à l’autre. Paris, Le Seuil, 2006a, p.332.
[3] ______. Le Séminaire, Livre XVII. L’envers de la psychanalyse. Paris, Le Seuil, 1991, p. 207.
[4] ______. Le Séminaire, Livre XVI, Op. cit., p.347.
[5] Ansermet, F. Le roman de la congelation. La Cause Freudienne, n.60. Paris, Navarin Éditeur, 2005, p.55-61.
[6] LACAN, J. Le Séminaire, Livre III, Les psychoses, Paris, Le Seuil, 1981, p.330.
[7] Joyce, J. Les breufs du soleil, Ulisses. Oeuvres Complètes II. Paris, Gallimard. La Pléiade, 1995, p.442.
[8] ______. Le Séminaire, Livre XXIII, Le synthome. Paris, Le Seuil, 2006b, p.162.
[9] ______. Le phénomène lacanien . Conferência de 30 de novembro em Nice. Les cahiers cliniques de Nice n. 1, 1998, p.18.

FRANÇOIS ANSERMET
Tradução: Lúcia Grossi
Revisão: Luciana Andrade
François Ansermet é psiquiatra, psicanalista e membro da École de la Cause Freudienne.



A Psicanálise Em Relação Às Famílias

ROSE-PAULE VINCIGUERRA

 

Se o inconsciente é político, não é “fora das antinomias que constituem as relações dos homens com a natureza e a sociedade” (LACAN, 2001a, p.59)[1] que o psicanalista deve situar sua pesquisa. O que ocorre, então, nas famílias hipermodernas – famílias recompostas ou apresentando todas as variações que a procriação médica assistida autoriza nos casais heterossexuais ou homossexuais –, com as inevitáveis questões em que se coloca a criança no momento da sua entrada na sexuação genital, concernindo o mistério do nascimento, a relação sexual dos pais e a diferença dos sexos? E, especialmente, quando a separação entre sexualidade, conjugalidade e filiação é reivindicada pela liberdade contemporânea? Quando também a ideologia da igualdade reina em todos os níveis da parentalidade? Quando, enfim, uma suposta “fraternidade contratual” vem no lugar da figura irredutível e trágica do pai freudiano?

 

Desse ponto de vista, qual pode ser a eficácia do discurso analítico? Há aquilo que os psicanalistas podem constatar das relações reais no campo social e há o que eles podem fazer. Mas, quando o sofrimento insiste, o ato psicanalítico não pode se esquivar nem se opor – “boca fechada”.

 

Conjugalidade, sexualidade em suas relações à filiação: a era da liberdade 

 

A psicanálise ensina que as esperanças colocadas na reconciliação do ser humano com sua sexualidade se verificam fechadas tão logo elas são abertas. O parceiro é sempre o parceiro-sintoma. A clivagem do desejo sexual e da conjugalidade já havia sido notada por Diderot no Supplément au voyage de Bougainville. Quanto a isso, a instituição familiar sempre tentou arrumar e tamponar esse impossível. Mas esse paradoxo, mascarado até então, tende hoje a aparecer claramente, pois a esfera do privado tende facilmente a se exibir, e a reivindicação do direito a gozar se afirma livremente; se revela, então, ao mesmo tempo, o real impossível em torno do qual a família era constituída. Mais ainda, nas famílias que nós hoje chamamos “hipermodernas”, chega-se até a pensar numa procriação “para além do sexo”. Assim, as relações sexuais, elas mesmas, se tornam separadas da gestação (especialmente com as procriações médicas assistidas).

 

Uma das consequências é que, na sociedade dita “pós-sexual”, a criança nascida sem ato sexual se torna objeto de direito ou de contrato quando não é pura questão de mulher. “Nós cortamos alguma coisa do pai”, notava Lacan (1994, p.350)[2] já há cinquenta anos. É preciso ver, nessa clivagem prazer sexual/gestação – e nas montagens das ficções jurídicas que as validam –, um progresso irreprimível das Luzes e do Direito contra o obscurantismo do segredo concernente ao desejo e ao gozo dos pais? O que se passa, a partir de então, para a criança que se vê tornar-se receptora do dever de transparência dos quais os adultos se dizem os portadores? Como se formulará essa exigência de transparência se, porventura, a tecnologia do útero artificial vier a se realizar?

 

No inconsciente, entretanto, a criança não cessa de colocar a questão de sua origem de ser vivo. O mistério da origem resta como aquele do sujeito. A criança particulariza a questão leibniziana “Por que existe alguma coisa ao invés do nada?” para uma “por que eu existo?”. Existe a “estúpida e inefável existência”. Existe o corpo falante, do qual nenhum saber objetivo pode esgotar o real. Fica a cargo de cada sujeito encontrar o significante mestre da sua existência.

 

Essa questão, a criança vai colocar buscando sempre desvendar o segredo da sexualidade dos adultos. O segredo do gozo parental é o lugar de uma cena primitiva, vista, ouvida ou fantasiada pela criança, e, como tal, é a tentativa de pensar o impensável. Freud foi o primeiro a reparar que esse enigma constituía o nó das questões infantis: o que fazem os pais na sua intimidade? Nós podemos então pensar que, no melhor dos casos, a criança reconstituirá a esfera do interdito, pois o recalque não se edifica da repressão do gozo; é o inverso. A família é, ela mesma, uma criação que se edifica do recalque, como evoca Lacan, que acrescenta: “Mesmo se as lembranças da repressão familiar não forem verdades é preciso inventá-las” (1956-1957/1994, p. 350)[3].

 

Igualdade e diferença 

 

Nós podemos constatar que a família hoje não é mais vista como uma estrutura da parentalidade assegurando a passagem da natureza à cultura através de interditos e de funções simbólicas, ou mesmo como manifestando a deserção da autoridade paterna, mas como um lugar descentrado e polimorfo. Como já podemos dizer, essa família horizontal parece “uma rede assexuada (…) sem hierarquia nem autoridade” (ROUDINESCO, 2002, p. 191)[4]. Em resumo, a família é pensada como o lugar de uma igualdade formal, sem princípio de garantia nem de diferenciação. Será ela a última das comunidades utópicas? A criança não é mais como pensava o poeta romântico Wordsworth, o pai do homem; ao invés disso, temos que nos haver com a criança companheira.

 

Se há igualdade, essa só pode ser no encontro da linguagem com o pulsional, como Lacan o sublinhava no seu Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: “Do ponto de vista da instância da sexualidade, todos os sujeitos estão em igualdade, desde a infância até a idade adulta” (1973). Eles não têm, com efeito, “que se haver a não ser com o que da sexualidade passa nas redes da constituição subjetiva, nas redes do significante” (LACAN, 1973). Podemos então nos perguntar se essa igualdade formal no seio das novas famílias não esconde um delírio social partilhado, aquele da possibilidade de se emancipar da diferença e, especialmente, da diferença dos sexos. É preciso dizer que a fascinação pelas explorações da ciência moderna não contradiz essa ideia, que fez com que Michel Houellebecq sustentasse essa proposição delirante: “Logo vai haver três, quatro, cinco sexos diferentes”. Chegará talvez um tempo em que nós poderemos escolher o sexo das crianças. Mas o desejo de ter uma criança – a ser distinguido de querer – faz objeção a “mesmidade” (LACAN, 1965)[5] do Outro, ao amor a sua própria imagem, que é a essência da simetria. Ele aposta na contingência da anatomia, do aleatório do momento, do encontro.

 

Do mesmo modo podemos dizer que o que é o real do sexo é não sabido; ele está em falta no saber no Outro, escapa a toda mestria; ele é “à exaustão impossível” (Ibid.)[6], diz Lacan. O que vem aí fazer suplência é o phallus; é ao falo como significante da falta que é atribuída a dissimetria entre os sexos. É na medida em que o instrumento de conjunção (a cópula) é negativizado no inconsciente que o sujeito entra na verdade do sexo. Esse viés se chama castração. Nesse sentido, há sempre desigualdade do sujeito a toda subjetivação de sua realidade sexual. O voto de igualdade sem diferença é, então, um delírio sobre a abolição da cópula.

 

De uma dita fraternidade 

 

Enfim, após a reivindicação de liberdade e de igualdade, não assistimos então ao aparecimento de uma falsa fraternidade contratual entre pais e crianças, que viria substituir a hierarquia implicada na lei do desejo? Se, com efeito, o pai não é mais essa figura “de peso” da história como havia pensado Freud, é a uma rede de aparência fraternal, em que cada um se sente “funcionalizado”, que parece a família. Essa forma de contrato é uma das figuras da própria ordem social, uma ordem social desde então sem transcendência, repartindo os lugares aos quais o sujeito se conforma em uma identificação às insígnias. Em 1974, Lacan notava que nós havíamos chegado a um ponto da história no qual o “nomeado à”, do qual o social detém o poder, se via ultrapassar o que era do Nome-do-Pai. Ele notava aí o caráter de “degeneração catastrófica” (LACAN, 1974)[7].

 

Esse “ser nomeado à”, perguntaríamos então, não é “indicado, traçado, projetado pela unicamente pela mãe?”. A mãe moderna não traduz o Nome-do-Pai por um não; ela pode agora bastar-se a si mesma para exercer essa função de “nomear à”. Essa mãe totalmente só não é o nome do gozo Da mulher colocada em posição absoluta, o que seria retornar a um aquém da essência classificatória devotada ao pai do nome e a um aquém do pai da aliança? Esse seria então o império ilimitado do gozo feminino para além do phallus, que daria o “a”. O contrato da ordem social, a fortiori o contrato fraternal pais-crianças, mascararia assim a ferocidade da “ordem de ferro” materna.

 

Como, desde então, a proibição do incesto pode ser ainda veiculada e, a função paterna, inscrita?

 

Se, como notava Lacan em 1971, as mães são incontáveis[8] – e não são os efeitos das novas tecnologias de procriação que poderiam o desmentir –, o mesmo não se pode dizer da função do pai, que, ele, resta “contável”.

 

Nesse sentido, não é a função do pai enquanto “valor de uso”, enquanto “utilidade social”, como Éric Laurent (2005)[9] havia observado, que pode conectar o desejo maternal faltoso ou seu gozo transbordante. Nem o jurídico, nem o biológico, nem mesmo o afetivo saberia responder de maneira apropriada ao que é a utilidade do pai, pois esse pai não é “de modo algum um ser consciente” (LACAN, 1973, p. 58.)[10].

 

Da mesma maneira, também não são com os “substitutos imaginários” do pai que as crianças se põem a forjar quando entram numa transferência analítica a que poderiam responder. Por esses substitutos, os sujeitos tentam simbolizar um real sem lei, inventar uma norma social de uso interno, mas essa ligação imaginária não parece ser suficiente para fazer um nó que segure. A partir de então a criança, confrontada cedo ou tarde à questão da emergência da sexualidade na puberdade, verá esse edifício desmoronar-se. O pai enquanto real permanece desconhecido. A ordem familiar, dizia Lacan, não faz senão traduzir que “o Pai não é o genitor” (LACAN, 2001c, p. 532)[11].

 

O que pode então a psicanálise, se um pai não vem particularizar em um desejo vivo o cuidado que ele pode assegurar à criança? É aqui que um analista pode, nos bons casos, fazer intervir uma nomeação que venha se sobrepor (e não se opor) ao real do gozo e permitir, assim, se servir dela, indo além do gozo. Certamente não é toda nomeação que pode ter essa função de particularizar o Nome-do-Pai em um desejo vivo. Entretanto, o analista, quanto a isso, não é menos requisitado em seu ato. O sujeito pode então reencontrar a falta, própria ao seu desejo, lá onde o peso do gozo do Outro havia feito traumatismo. Não há, portanto, nenhum conselho nem preceito geral do ato analítico, tampouco existem soluções ready-made face ao que fez carência paterna.

 

Assim, que a psicanálise tenha alguma coisa a dizer sobre a família não quer dizer que ela coloque a família no lugar. Ela permitiria, sobretudo, a cada um, reinventar sua família. Em todo caso, a psicanálise, se ela funda a liberdade de desejar, põe-se fora das promessas de liberdade e de fraternidade. É sobretudo no discurso analítico que nós podemos perceber o índice da fraternidade. Em 1972, Lacan dizia: “Não vos parece que esta palavra ‘irmão’, é justamente aquela a qual o discurso analítico dá a sua presença, ao menos pelo que ele traz da bagagem familiar?” Ele acrescenta: “Isso tem haver com muitas outras coisas e não somente a bagunça familiar. Nós somos irmãos de nosso paciente enquanto que como ele, nós somos os filhos do discurso” (LACAN, 1972)[12]. Não se trata aqui de uma relação “a eu e a mim” pois cada um sabe que ela pode ser “bastante conflituosa” (LACAN, 1966, p. 591)[13], nem de um contrato de boa intenção nem de bons sentimentos. É uma outra relação que está em questão.

 

Trata-se, sobretudo, enquanto somos filhos do discurso analítico, de sustentar com ele “o complô da verdade” (LACAN, 1974)[14]. A política da psicanálise consiste em liberar, contra “a ordem de ferro do nomear à”, o lugar da verdade; nós não podemos, com efeito, “ser nomeados à psicanálise” (LACAN, 1974)[15]. É o saber no lugar da verdade que pode se opor aos saberes que reinam na cidade.

 

Essa operação não é, entretanto, possível, senão porque, no interior de uma cura, o analista não é “um puro”. Sua posição tem “qualquer coisa de obscuro” (LACAN, 1968)[16]; ele sabe se fazer “o que o outro quer fazer dele” (LACAN, 1973, p. 58)[17] para permitir, no final, ao analisante, a báscula de sua posição e fazer nascer “o pivô no qual uma balança pode se estabelecer e que se chama justiça” (LACAN, 1972)[18]. O discurso analítico, só, permite “respeitar no Outro […] sua diferença, seu incomparável” (MILLER, 1997/1998)[19], que se esclarece a partir da destituição subjetiva; só, ele permite isso que Lacan um dia chamou “nosso irmão transfigurado que nasce da conjuração analítica” (LACAN, 1972)[20].

 

 

 

 


[1] LACAN, J. Les complexes familiares dans la formation de l’individu, Autres écrits, Paris, Le Seuil. 2001a.
[2] ______. Le Séminaire, livre IV, La Relation d’objet (1956-1957), Paris, Le Seuil, 1994.
[3] ______. Télévision, In: op.cit. 2001b.
[4] Roudinesco, E. La famille em désorde, Paris, Fayard, 2002.
[5] LACAN, J., Le Séminaire, livre XII, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, 12 mar. 1965, inédito.
[6] Ibid., 9 jun. 1965.
[7] ______. Le Séminaire, livre XXI, Les non-dupes errent, 19 mar. 1974, inédito.
[8] ______. Le Séminaire, livre XVIII, D’um discours qui ne serait pas du semblant, 19 jun. 1971, inédito.
[9] LAURENT, É. “Le nom-du-Pére entre réalisme et nominalisme”, La Cause Freudienne, No 60, Paris, Le Seuil/Navarin, jun. 2005.
[10] LACAN, J. Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1973.
[11] ______. Télévision, In: op.cit. 2001c.
[12] ______. Le Séminaire, livre XIX, …ou pire, 21 jun. 1972, inédito.
[13] ______. La direction de la cure et les principesde son pouvoir (1958), Écrits, Paris, Le Seuil, 1966.
[14] ______. Le Séminaire, livre XXI, In: op.cit. 1974.
[15] Ibid., abr. 1974.
[16] ______. Le Séminaire, livre XV, L’acte psychanalytique, 24 jan. 1968, inédito.
[17] ______. Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1973.
[18] ______. Le Séminaire, livre XIX, In: op.cit. 1972.
[19] MILLER J.-A. Séminaire de politique lacanienne, 1997-1998, inédito.
[20] LACAN, J. Le Séminaire, livre XIX, …ou pire, 21 jun. 1972, inédito.

ROSE-PAULE VINCIGUERRA
Tradução: Letícia Soares
Revisão: Luciana Andrade
Rose-Paule Vinciguerra é psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana.



O Amor Pelo Pai Na Histeria

RAQUEL MARTINS DE ASSIS

 

 

Quem, como eu, invoca os mais maléficos e maldomadosdemônios que habitam o peito humano, com eles travando combate,deve estar preparado para não sair ileso desta luta.(Freud, 1905, Caso Dora, p. 75)

Em 1977, Lacan finaliza Considerações sobre a histeria pelo tópico “O amor” que possui apenas uma frase: “O que nossa prática revela, é que o saber, saber inconsciente, tem uma relação com o amor” (Opção Lacaniana, 2004, p. 22). A frase aparece quase como que jogada ao vento, mas colocando em trabalho aquele que tenta compreender os meandros da histeria. Nesse trabalho, diversas perguntas podem ser colocadas: Por que Lacan conclui sua exposição de maneira tão “interminada”? Por que justamente o amor, esse tema tão caro à histeria, foi deixado em duas linhas quase como um anúncio a ser retomado pelo ouvinte/leitor? Um anúncio importante que fica em suspenso[1].

Nessa pequena frase deixada em suspenso, Lacan faz uma afirmação essencial: para compreendermos algo da histeria precisamos atentar-nos para as relações entre o saber inconsciente e o amor. Há um saber sobre o amor presente na histérica, mas por ela desconhecido. Assim, conforme Lacan, a histérica não sabe o que diz, mesmo que diga algo com as palavras que lhe faltam (Lacan, 2007)[2]. Do que se trata, então, esse não saber da histérica? O que ela não sabe de si?

O paradigmático caso Dora, publicado pela primeira vez em 1905, apresenta a análise de um caso de histeria. Trata-se de uma jovem de dezoito anos que apresentava sintomas de tosse nervosa e afonia, sendo seu quadro definido como uma “petite hystérie”. Nesse caso, Freud[3] adverte que desde que lançara “Estudos sobre a histeria” em 1895, seus métodos já haviam se modificado:

“Naquela época, o trabalho [de análise] partia dos sintomas e visava esclarecê-los um após o outro. Desde então, abandonei essa técnica por achá-la totalmente inadequada para lidar com a estrutura mais fina da neurose. Agora deixo que o próprio paciente determine o tema do trabalho cotidiano” (Freud, 1996, s.p.).

Desse modo, o caso Dora não é apenas uma discussão sobre a histeria, mas descortina um momento no qual Freud adota a perspectiva de deixar que o paciente determine o rumo do que é dito. Nesse sentido, Dora poderá dizer, pelas palavras que lhe faltam, aquilo que não sabe sobre si. Nesse espaço deixado por Freud emerge a trama amorosa da histérica.

A trama amorosa, nesse caso, possui três personagens: o casal Sr. e Sra. K, amigos da família da jovem, e seu pai. A cena que se desenrolava nas palavras de Dora era a seguinte: seu pai havia feito uma íntima amizade com o casal K. Nesse desenrolar, a Sra. K tornou-se muito próxima do pai, cuidando dele em seus momentos de enfermidade. Enquanto isso, o Sr. K aproximou-se de Dora, levando-a para passear e presenteando-a com pequenos objetos. Após uma estadia na residência dos K, da qual a jovem retornara abruptamente, Dora conta à sua mãe que o Sr. K fizera-lhe uma proposta amorosa quando se encontraram a sós na margem do lago de Garda. Pede à mãe que transmitisse sua história ao pai. A partir daí, a jovem começa a insistir para que seu pai rompa relações com a família de amigos, especialmente com a Sra. K. O pai, entretanto, assim como o Sr. K, diante da revelação feita por Dora, a acusam de ter imaginado a cena do lago. Na família, começam a pairar suspeitas sobre a lascívia da jovem que, na época, lera A fisiologia do amor do sexólogo darwinista Paolo Mantegazza[4] (Roudinesco e Plon, 1998).

É no calor desses acontecimentos que Dora é levada a Freud por seu pai. Inicia-se o tratamento. No trabalho de análise, persistiam as certezas alimentadas pela moça a respeito do caso amoroso paterno. Também surgiam as suposições sobre as possíveis relações sexuais orais entre a Sra K e o pai de Dora, já que este era impotente. Freud afirma a impossibilidade de tratar a histeria sem mencionar temas sexuais, pois os sintomas histéricos estão fortemente ligados à sexualidade. Nas Considerações sobre a histeria, Lacan amplia essa fórmula ao afirmar: “o essencial do que disse Freud é que existe a maior relação entre o uso das palavras em uma espécie que tem as palavras à sua disposição e a sexualidade que reina nesta espécie” (Lacan, 2007, p. 20). Da narração de Dora, Freud conclui que os sintomas de enfermidade da jovem visavam seu pai: “como as acusações contra o pai se repetiam com cansativa monotonia e ao mesmo tempo sua tosse continuava, fui levado a achar que esse sintoma poderia ter algum significado relacionado com o pai.” (Freud, 1996, s.p). Possuindo uma finalidade na trama amorosa, os sintomas de Dora eram de difícil remoção, já que ela necessitava e tirava vantagem deles a fim de sensibilizar seu pai e separá-lo da Sra. K. De acordo com Freud, o sentimento de Dora em relação ao pai era como o de uma esposa ciumenta, sentindo-se preterida por outra mulher. Mas por que esse enamoramento pelo pai, resquício inativo do Édipo[5], tornava a se reavivar? Conclui que o amor pelo pai consistia em uma forma de resistência à atração de Dora pelo Sr. K.

Freud estabelece um diálogo com a jovem em que evidencia suas conclusões sobre o amor que Dora nutria pelo Sr. K. Depois disso, ela não retornaria mais, dando fim à analise. Freud se perturba com a interrupção do tratamento e questiona seu manejo da transferência:

“Será que eu poderia ter conservado a moça em tratamento, se tivesse eu mesmo representado um papel […] e lhe mostrasse um interesse caloroso que, mesmo atenuado por minha posição de médico, teria equivalido a um substituto da ternura que ela ansiava?” (Freud, 1996, p. 75).

Considerando as relações entre a transferência e os anseios de ternura de Dora, Freud escreve um posfácio ao caso no qual a dimensão transferencial da análise é o ponto central em que ele se vê falhando:

“Não consegui dominar a tempo a transferência […]esqueci a precaução de estar atento aos primeiros sinais de transferência que se preparava com outra parte do mesmo material, ainda ignorada por mim. Desde o início ficou claro que em sua fantasia eu substituía seu pai.” (Freud, 1996, s.p.)

Ao ter sido surpreendido pela transferência no tratamento da jovem, ocorre um x incompreensível para Freud. Em notas posteriores (1923), reconhece que havia sido incapaz de compreender a natureza da ligação homossexual que unia Dora e a Sra. K (Roudinesco e Plon, 1998)[6]. Lacan, no Seminário 3[7], sobre a questão histérica, comenta que Freud cometeu um erro: ao colocar o imperativo do amor ao pai como foco principal da trama amorosa histérica, Freud não pôde visar o objeto realmente desejado por Dora, isto é, a Sra K. Durante a análise, entretanto, emergia repetitivamente a outra mulher: Dora, de diversos modos, falava sobre as mulheres que ela supunha amadas por seu pai. Primeiro sua mãe, com quem se identificara por suas enfermidades. Depois, com a Sra. K por meio da tosse excessiva, metáfora do prazer sexual que ela imaginava entre o pai e a amante. Lacan, em Intervenção sobre a transferência, denomina a atração de Dora pela Sra K. como um fascinado apego. Nesse fascínio se encerra aquilo que é um mistério para a histérica: aceitar-se como objeto de amor de um homem. Essas operações ligadas ao encantamento pela mulher objeto de amor, entretanto, são desconhecidas pela histérica. Daí que ela coloque em palavras o seu não saber sobre si, palavra do sintoma (Lacan, 1978)[8].

Assim, para Lacan, a histeria é marcada pela pergunta “o que é ser uma mulher”. Diante dessa questão e no movimento que lhe é possível, a histérica identifica-se com um homem enquanto cede sua posição feminina a alguma outra mulher que encarna o mistério da feminilidade (Schejtman e Godoy, s.d). Desse modo, a histérica recebe um dom fálico (Gody, Mazzuca e Schejtman, 2012), como aponta Lacan: “É a prevalência da Gestalt fálica que, na realização do complexo edípico, força a mulher a tomar emprestado um desvio através da identificação com o pai, e portanto a seguir durante um tempo os mesmos caminhos que um menino” (Lacan, 1997, p. 201). No modelo Dora, a identificação viril ao pai vem carregada do signo da impotência. Disso resulta que a histeria esteja colocada na posição masculina, mas em situação de virilidade decaída, isto é, marcada por algo que lhe falta. Assim, na formulação lacaniana, a histérica é não toda. Ela não se toma por uma mulher, mas pergunta sobre a mulher. Essa posição insatisfeita, expressa por uma pergunta que não se sabe responder, é própria do gozo histérico, isto é, o gozo da privação e da impotência. Para Godoy, Mazzuca e Schetjman (2012)[9], a identificação com o pai é uma saída neurótica que permite ao sujeito histérico construir para si uma definição que lhe escapa. Dessa forma, surge uma possibilidade de lidar com o problema do feminino.

Sendo o pai impotente, a histérica o ama pelo que ele não pode dar, isto é, pelo que não tem. Mas se a histérica e seu pai são marcados pelo não ter, imagina-se que em algum lugar, algo tem isso que lhes falta. O gozo da privação, portanto, implica supor a existência de um gozo absoluto e consistente (todo) – o gozo do Outro – frente ao qual a histérica pressente a si mesma como uma quimera, leve sombra, um sopro sem consistência. Esse algo absoluto e consistente é geralmente localizado, pela histérica, no pai ideal ou na outra mulher adorada que possui aquilo que ela não tem. Para Freud, a Sra K. tinha o pai de Dora, daí a identificação da jovem com essa outra mulher. Para Lacan, ao ter o pai, a outra mulher tem, para a histérica, a resposta da feminilidade. A histeria supõe, portanto, a identificação amorosa ao pai.

Enfim, na narrativa histérica é possível emergir a armadura do amor ao pai. Essa armadura outorga consistência e estabilidade ao sujeito histérico como possibilidade de defesa frente ao real do gozo feminino que coloca em questão a identidade e a unidade da histérica (Schejtman e Godoy,s.d)[10]. Devido a tal consistência, a histérica tem dificuldade de renunciar ao falo paterno:

“resulta importante ressaltar el concepto de renuncia porque justamente el sostén que encuentra la histeria en esse amor marca la dificultad de hacer um despegue de la posición en la cual se espera de recibir um don del padre que resuelva su relación con lo feminino.” (Schjetman e Godoy, 2012, p. 266).

Ao não conseguir renunciar ao falo paterno, à espera do dom que se pode receber do pai (marcado, entretanto, pelo que não se dá), a histérica não consegue conceber nada que possa receber de outros, seja um homem, um grupo de pessoas, uma relação de trabalho. Sendo o amor definido por Lacan, no Seminário 8, pelo dar o que não se tem, o amor histérico é engendrado pela armadura do amor ao pai, na qual se estreitam os laços entre amor-impotência-saber.

 

 

[1] No texto Intervenção sobre a transferência, Lacan se remete ao efeito Zeiganirk adotado por Lagache ao tratar da transferência no caso Dora. O efeito Zeiganirk é assim explicado: “trata-se do efeito psicológico que se produz por uma tarefa inacabada, quando ela deixa uma Gestalt em suspenso; por exemplo, pela necessidade geralmente sentida de dar a uma frase musical seu acorde resolutivo.” (Lacan, 1978, p. 214).
[2] LACAN, Jacques. Considerações sobre a histeria. Opção lacaniana, n.50. p. 17-22. Dezembro de 2007.
[3] FREUD, Sigmund. (1905 [1901]). Fragmento de análise de um caso de histeria. Acessado em 10.10.2016 e retirado de http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-07-1901-1905.pdf
[4] Durante o século XIX e boa parte do século XX, era recomendado um cuidado especial com os livros apresentados às jovens, pois as leituras, principalmente de romances, podiam incliná-las à dissipação e desordenamento amoroso. Assim, no caso de Dora, é significativo, para a cultura da época, que a leitura de a Fisiologia do amor tenha sido utilizada como um sinal para sua “desordem psicológica”, ou seja, para o fato de que ela poderia imaginar algo que realmente não havia acontecido.
[5] No Complexo de Édipo, Freud introduziu o terceiro masculino: o pai. A criança, no declínio do Édipo, se volta para um pai concebido como ideal, onipotente, possuidor do falo e por isso digno de ser amado. O sujeito histérico, entretanto, supõe não a onipotência, mas a impotência no pai. A histérica, portanto, sabe que não tem o pai ideal (KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar editora, 1996).
[6] ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1998.
[7] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[8] LACAN, Jacques. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
[9] GODOY, Cláudio; MAZZUCA, Roberto; SCHEJTMAN, Fabián. El amor al padre y la estabilidade histérica em la primera ensenanza de Lacan. Em: SCHEJTMAN, Fabián (Org.). Elaboraciones lacanianas sobre las neuroses. Buenos Aires: Grama editora, 2012, p. 263-268.
[10] GODOY, Cláudio; SCHEJTMAN, Fabián. La hysteria en el último período de la ensenanza de J. Lacan. Anuário de Investigaciones. Vol. XV, p. 121-125, s.d.

 


Raquel Martins De Assis
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (NIPSE) – Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. Email: rmassis.ufmg@gmail.com



Mentira E Ficção: O Discurso Da Histérica, A Cura Pela Fala E O Indizível Do Sinthoma

ANA HELENA SOUZA

 

O texto de Beckett ao qual recorro aqui é considerado o auge da depuração de sua escrita. Chama-se Worstward Ho, literalmente, “em direção ao pior, vamos”. Traduzi-o como Pra frente o pior (Beckett, 2012)[1]. Essa prosa é construída com extrema desconfiança e cautela. As palavras introduzidas repetem-se, transformam-se, assumem diferentes categorias sintáticas, são recombinadas, produzem ecos, num jogo de permutações que, aos poucos, compõe imagens e uma tênue narrativa.

 

Beckett disse ter encontrado sua própria voz, ao começar a escrever diretamente em francês depois da Segunda Guerra. Compreendeu que em sua obra devia trabalhar com a falha, a impotência, a ignorância. Radicalizou a experiência de abandono dos recursos literários: reduziu ou praticamente eliminou enredo, personagens, nexos temporais, recursos à verossimilhança e à plausibilidade. Worstward Ho, de 1983, começa assim: “On. Say on. Be said on. Somehow on. Till nohow on. Said nohow on.” (Beckett, 2009, p. 81)[2]. Em português: “Adiante. Dizer adiante. Ser dito adiante. De algum modo adiante. Até que de nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Idem, 2012, p. 65). Citá-lo em inglês é importante para marcar os significantes básicos que se fazem presentes ao longo de todo o texto: on e o seu inverso espelhado no, que comparece nesse primeiro trecho em nohow. Os verbos do dizer, no presente e no passado, say e said, incitados pelo on, são ao mesmo tempo relativizados pelos advérbios somehow e nohow. A narrativa constitui-se basicamente do que se tem a dizer e, desde o início, é posta à prova. É preciso dizer “de algum modo” até chegar ao dito que não pode “de nenhum modo” prosseguir. O que o texto faz surgir é algo que se forma dentro de um crânio. Adquirem contorno um lugar, um corpo, um olho, uma penumbra e algumas imagens. Escreve-se, assim, o empenho em tornar tanto essas imagens como o dizer que as cria mais precisos, embora a tarefa, nos é dito, esteja fadada ao fracasso.

 

Para a primeira aproximação desse texto com a psicanálise, cito uma observação de J-A Miller sobre o modo possível de nos referirmos ao real, com os instrumentos do simbólico:

 

“O fato de o real ser inassimilável faz com que seja sempre introduzido por um ‘não’. É uma positividade que só pode ser abordada pelo negativo – pelo menos no que depende do simbólico –, ou seja, em sua face de impossível. É preciso haver uma articulação simbólica para podermos dizer que alguma coisa é impossível.” (2011, p. 24)[3].

 

Em Pra frente o pior, o texto se compõe, ao mesmo tempo, sob o signo do ON e do NO – do imperativo de continuar e da impossibilidade. Por isso, permeiam-no referências a um dizer que é sempre qualificado como “mal dito”, como “pior”. Paradoxalmente aqui o pior, definido no texto, implica o que se pode fazer de melhor. É possível entrever, no esforço de ter de valer-se do simbólico, aquilo que no simbólico não se deixa apreender, nem dizer: “Tentar de novo. Falhar de novo. Melhor de novo. Ou melhor pior.” (Beckett, 2012, p. 66)

 

Vimos que o texto começa com “on”. À medida que a leitura avança, percebe-se que este “on” não apenas iniciou um discurso, mas incluiu nele enunciador e destinatário, bem como lhe deu uma direção de sentido que orienta a ficção. Numa segunda aproximação, relaciono esse começo à observação de Miller sobre a entrada em análise:

 

“Uma análise começa sob o modo de formalização. O amorfo se vê dotado de uma morfologia. (…) Ao longo das primeiras sessões, a massa mental do amorfo se reparte em elementos de discurso. Só o fato de você convidar a falar aquele que está diante de você faz com que o amorfo mental dele adote uma estrutura de linguagem. (…) O desenho que surge, então, é condicionado, pelo menos em parte, pelo endereçamento, pelo destinatário.” (Miller, 2011, p. 101)

 

O início de uma análise institui um ordenamento, convida à construção de uma narrativa. Gostaria de destacar na citação de Miller o “endereçamento” e ampliá-lo para não apenas incluir um destinatário, mas um direcionamento temporal. Tal direcionamento é dado por uma expectativa de resolução, de um fim, à medida que toda análise iniciante propõe uma pergunta e deseja chegar à resposta.

 

No seu livro The sense of an ending, o crítico literário Frank Kermode[4] aborda os sentidos que a presença do fim imprime às ficções. Parte da sua argumentação encontra-se resumida na discussão de como dotamos de sentido o som que um relógio emite:

 

“Perguntamo-nos o que ele diz: e concordamos que diz tique–taque. Por meio dessa ficção, nós o humanizamos, fazemos com que fale nossa língua. (…) Tomo o tique-taque do relógio como modelo do que chamamos de enredo, uma organização que humaniza o tempo ao dar-lhe forma; e o intervalo entre o taque e o tique representa o tempo meramente sucessivo, desorganizado, do tipo que precisamos humanizar.” (Kermode, 2000, p.44-45)

 

Segundo Kermode, com o tempo nossas ficções também mudam as formas de dar sentido ao fim. Quando, por exemplo, a ficcionalização linear do tique-taque já nos parece muito fácil, partimos para algo do tipo taque-tique, num enredo como o do Ulysses de Joyce (Idem, 2000, p. 45). De algum modo, parece-me que a entrada em análise, com suas correspondentes formalização e histerização do discurso, e as revelações que ensejam (Miller, 2011, p. 104), equivale em ficção a um enredo ordenado mais em conformidade com o tique-taque simbólico. Esse tipo de ordenamento, que faz com que os eventos se encaixem numa sequência regular de antes e depois, pode ser percebido no desvendamento dos casos de histeria mais simples relatados por Freud.

 

O caso de Miss Lucy R. ilustra bem um suposto não-saber da histérica que, antes de Freud[5], era muitas vezes encarado como uma mentira, uma ficção. Miss Lucy, inglesa, 30 anos, governanta das filhas de um diretor de fábrica viúvo e morador dos arredores de Viena, procura Freud com sintomas olfativos subjetivos. Sente com frequência um cheiro de torta queimada, além de apresentar um desânimo e uma irritabilidade constantes.

 

Freud soluciona o caso em etapas temporalmente invertidas. O primeiro sintoma com que Miss Lucy a ele se dirige foi desencadeado pelo evento ocorrido mais recentemente. Brincava de cozinhar com as crianças, quando chega uma carta de sua mãe. A carta lembra-lhe que pedira demissão, e isso a levaria a voltar à casa materna e deixar as crianças, que ela amava e das quais prometera cuidar. Neste momento, a torta que faziam queima.

 

Com a solução desse primeiro sintoma aparece um outro: o cheiro de fumaça de charuto. Este corresponde ao evento intermediário, ainda não propriamente ao acontecimento traumático. O patrão de Lucy grita com um velho amigo da família que se despedira das crianças com beijos, algo que o pai não tolera. É depois do jantar, e os homens fumam. Daí o incômodo cheiro de fumaça de charuto.

 

Ao evento traumático propriamente dito não se liga uma conversão histérica. Freud apenas especula que ele tenha gerado o “abatimento de ânimo” da paciente. Os acontecimentos posteriores têm a função de encobrir o acontecimento traumático, de modo que fica claro que o trauma nem sempre dá origem ao sintoma. Freud relaciona os acontecimentos “auxiliares” (2016, p. 179), que produzem o sintoma, a “um intervalo de incubação” e menciona que Charcot a isso se referia como “o tempo de elaboração psíquica”. (2016, p. 193)

 

A cena traumática, a que Freud chega depois de desvendar as auxiliares, é a acusação e ameaça de demissão do patrão a Lucy, porque uma senhora em visita à casa beijou as crianças, algo que ele abominava, e que ela deveria impedir de acontecer. Sua ira e rispidez levam-na a compreender que não existe nenhum sentimento amoroso da parte dele para com ela. O primeiro dos sintomas, que corresponde ao evento intermediário, sobrevém apenas quando ela presencia cena semelhante, na qual o patrão grita com o velho amigo da família que também beijara as crianças. Já o segundo sintoma, que encobre o primeiro, surge por ocasião do recebimento da carta da sua mãe, lembrando-lhe da intenção de abandonar o emprego e as crianças.

 

Todos os eventos remetem ao amor despertado em Lucy pelo patrão, quando este, numa conversa mais afável sobre a educação das filhas, dirige-lhe um olhar terno. Freud sugere o sentimento à paciente, por não se convencer que os eventos auxiliares eram bastante significativos para gerar o sintoma. Ela concorda de imediato. Perguntada por que lhe ocultara isso, diz: “Não o sabia de fato, ou melhor, não queria sabê-lo, queria tirar isso da minha cabeça, nunca mais pensar a respeito (…)”(Freud, 2016, p. 170). Numa nota, Freud comenta: “Jamais pude obter descrição melhor do singular estado em que ao mesmo tempo sabemos e não sabemos alguma coisa.” (Idem, ibidem, n.30)

 

A respeito do esquecimento dos eventos, Freud afirma: “…esse esquecimento é com frequência intencional, desejado. E é sempre bem-sucedido apenas de forma aparente.” (Freud, 2016, p.162) Há, no relato de Miss Lucy, um apego a um não-saber que está longe de ser efetivo, mas que se vale de certos recursos psíquicos para encobrir as lembranças traumáticas. Tais recursos estão presentes também em várias ficções, o que torna possível aproximá-las, neste caso, do desvendamento dos sintomas.

 

No Seminário 10, Lacan define a angústia como um afeto (o afeto que não engana) e, esclarece que se pode “encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram.” (Lacan, 1992, p. 23)[6] Ora, Miss Lucy sabe que ama o patrão. Mas percebeu que seu sentimento não era correspondido, quando ocorreu a cena entre os dois depois de uma convidada ter beijado as crianças. A reiteração desse saber na segunda cena, desta vez diretamente com outro convidado, produziu o sintoma do cheiro de fumaça de charuto, depois encoberto pelo de cheiro de torta queimada. Aqui há inversão temporal, o último sintoma prevalece sobre o primeiro, na tentativa de empurrar o afeto a que se liga para o esquecimento, e há deslocamento, da raiva do patrão dirigida a ela à raiva dele dirigida ao convidado. Aparece uma estrutura de ficção, no que a ficção pode apresentar como suspense, encobrimento para posterior descoberta, paralelismos, reviravoltas, em suma, no que com frequência se reconhece como mentiras, truques ficcionais. No caso de Lucy, as soluções seguem o tiquetaquear simbólico de um desvelamento linear – mesmo que de trás para a frente. Ainda era o século XIX, as histéricas ainda eram acusadas de mentirosas. Freud lhes dá um direito de defesa:

 

“Assim, por um lado, o mecanismo que produz a histeria corresponde a um ato de hesitação moral; por outro, apresenta-se como um dispositivo de proteção que se acha às ordens do Eu. Há não poucos casos em que é preciso admitir que a defesa contra o crescimento de excitação, pela produção de histeria, foi mesmo, então, a coisa mais apropriada (…).” (Freud, 2016, p. 178 – grifo meu)

 

Quando Freud no final pergunta à paciente: “E você ainda ama o diretor?” Ela responde: “Amo-o seguramente, mas isso já não me perturba. Posso pensar e sentir comigo mesma o que quiser.” (Freud, 2016, p. 176) Com os poucos elementos fornecidos, pode-se arriscar dizer que a satisfação de Lucy com a resolução do seu sintoma se sustenta no gozo de um amor não correspondido. Sua análise interrompe-se ainda naquela fase inicial que J-A Miller diz se desenvolver “sob o signo da revelação” (Miller, 2011, p. 104). Esse caso, a meu ver, é bem típico da “talking cure” em seu começos. Começos da psicanálise: o começo freudiano, com o método psicanalítico propriamente dito; mas também o começo lacaniano[7], com a prevalência do simbólico sobre o real. Em ambos, buscava-se chegar à cura pela fala.

 

Mas quando Freud elabora em Além do princípio do prazer o conceito de repetição, Lacan diz que aí entra em jogo o gozo (Lacan, 1998b, p. 43)[8]. Trata-se aqui de um “gozo opaco”, esse gozo que Miller caracteriza como “insubmisso, rebelde, incompatível aos olhos da estrutura da linguagem e que não se deixa significar” (2011, 190). A existência do real se impõe, sem que a linguagem possa verdadeiramente apreendê-lo, no sentido de fazer com que faça sentido. Lacan coloca as coisas assim: “Porém, o que é verdadeiro? Meu Deus, é aquilo que é dito. E o que é dito? É a frase. Mas a frase, não há meios de fazê-la se sustentar em outra coisa senão no significante, na medida em que este não concerne ao objeto.” (Lacan, 1998b, p. 53) Chega-se assim ao sinthoma como “o elemento que não pode desaparecer, que é constante” (Miller, 2011, p. 11), a um final que pode se presentificar no “passe do falasser, que não é o testemunho de um sucesso, mas de um certo modo de ratear.” (Miller, 2011, p. 124)

 

Numa ficção, mesmo que não haja nenhuma revelação a ser feita, há de qualquer forma sempre um fim. De volta a Beckett, esse fim diz de si mesmo e, ao fazê-lo, expõe o esgotamento do texto: “De nenhum modo menos. De nenhum modo pior. De nenhum modo nada. De nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Beckett, 2012, p. 87) Com isso quero dizer que a ficção de Beckett também esbarra no irredutível, de onde revela tanto o fracasso como o sucesso do seu dito, ao expor a falha da linguagem.

 

[1] BECKETT, S. “Pra frente o pior”, Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2012.
[2] BECKETT, S. “Worstward Ho”, Company etc. Faber & Faber: London, 2009.
[3] MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio De Janeiro: Zahar, 2011.
[4] KERMODE, F. The sense of an ending: studies in the theory of fiction. Oxford: Oxford University Press, 2000.
[5] FREUD, S. Obras Completas (1893-1895), v. 2: Estudos sobre a Histeria, em coautoria com Josef Breuer. Trad. Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[6] LACAN, J. (1962-1963) O Seminário. Livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[7] LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a, p. 591-652.
[8] LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b.

 


Ana Helena Souza
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG. Tradutora, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP) e autora do livro A tradução como um outro original. Email: ahelenasouza@gmail.com



Avatares E Atualidade Do “Complexo De Intrusão”

JEAN-DANIEL MATET

 

O destino do Complexo de Édipo e o que está para além dele selam o destino da família pela estrutura fora da natureza da transmissão humana que eles condicionam. Nesse ponto, a família lacaniana é, numa primeira abordagem, bem semelhante à família freudiana. Será que poderíamos dizer que a diferença entre “neurose familiar” e “psicose de tema familiar”, introduzida por Lacan nos Complexos Familiares[1] para declinar as variedades patológicas da família, teria sido reduzida posteriormente no seu ensino pelo lugar dado ao Nome-do-Pai e suas modalidades? Essa diferença indicava a falha do laço social nas psicoses e fazia do sintoma neurótico o sintoma familiar por excelência, na melhor inspiração freudiana.

 

Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud sublinha a solidariedade existente entre o que ele chama então de psicologia individual e psicologia coletiva. Lacan dará importância a essa fonte freudiana durante todo o seu ensino: o outro “[…] está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um auxiliar, um oponente […]” (FREUD, 1921/1976, p. 91)[2].

 

A irmandade: uma pequena multidão freudiana

 

Os irmãos e irmãs são muitas vezes a primeira multidão com a qual o sujeito é confrontado, condicionando, em parte, o estilo das suas futuras relações sociais. As famílias se revestem de formas diferentes, segundo as tradições que as organizam; a etnologia nos deu as mais precisas descrições sobre isso. A “contração” da instituição familiar descrita por Lacan (1938/2003, p. 32), reduzida ao casal parental e a um ou dois filhos, não deixa de ser ainda hoje muito atual. O que mudou, como observou Éric Laurent, foi a importância do casamento e se o filho único não desapareceu – é comum hoje que a família se amplie pela recomposição, tendo em vista que o contrato de duração determinada substituiu o “para sempre” das coabitações parentais. A família não é mais somente o lugar da transmissão filial, distribuindo entre os irmãos e irmãs um estatuto suscetível de variar e de marcar, assim, a vida social. Havia antes os irmãos de sangue e os irmãos de leite, há hoje os meios-irmãos e irmãs que não tem, às vezes, nenhuma ligação de sangue, caso a recomposição da família já tenha conhecido várias etapas.

 

O psicanalista poderia ficar tentado a abandonar ao sociólogo, ao etnólogo ou ao sistemista essas considerações sobre a família, preferindo se ocupar somente dos destinos sintomáticos do sujeito, qualquer que fosse seu modo de existência social. Freud, que passava longe do risco de dizer uma banalidade, justificava essas considerações sobre os irmãos e irmãs pela distância que ele constatava existir entre o ideal social da família e a realidade das relações fraternas, citando, para esse propósito, Bernard Shaw: “Via de regra, só existe uma pessoa que uma menina inglesa odeia mais do que a sua mãe; é a sua irmã mais velha” (FREUD, 1915-16/1976, p. 246)[3]. A concorrência e a rivalidade entre irmãos e irmãs são, portanto, inerentes à irmandade e corroboram, assim, a observação feita por Freud (Ibidem), segundo a qual não poderia haver uma nursery sem conflito entre seus habitantes, sendo o desejo de monopolizar, em seu proveito, o amor dos pais, a possessão dos objetos e do espaço disponível ao seu motor.

 

Enodamentos singulares

 

Um sujeito dispensa todos os seus esforços para assegurar a legitimidade de seus meios-irmãos e irmãs. Durante toda a sua vida, os pais não fizeram nada para abolir a distinção entre os filhos nascidos fora do casamento e aqueles que tinham chegado depois. Com um desejo apaixonado de reparação familiar, esse sujeito vai tentar abolir o que é percebido como uma injustiça na distribuição do amor parental. Essa determinação fantasmática toma consistência no contexto de uma família recomposta, que coloca o filho em posição de adotar ou rejeitar um ou outro recém-chegado. Essa tentativa de impor a seus irmãos e irmãs uma justiça erigida como dogma, que viria corrigir as falhas dos pais, presentifica, para esse sujeito, seu esforço para assumir o erro paterno, mas ele não encontra, entretanto, a aprovação que esperava.

 

Quem, senão os pais, decide que se é irmão ou irmã numa família recomposta? Entretanto, o estatuto contratual ou legal não basta mais para definir os lugares ocupados por cada um numa família. Assim, filhos que não têm nenhum laço de consanguinidade, pois são enteados de uniões precedentes, poderão se reconhecer como irmãos e irmãs. Meios-irmãos e irmãs quererão, ao contrário, ignorar a fraternidade deles. O esforço dos pais para fazer existir esses laços familiares é certamente determinante, mas deixa uma parte da decisão a cargo do filho, que a legitimidade vela em uma irmandade consanguínea. Ora, apesar de não interrogar objetivamente a legitimidade do lugar de cada um, a irmandade tradicional é, entretanto, a balança do valor de cada um.

 

O sujeito interpreta, persegue eventualmente o objeto que ele foi para sua mãe e sua conjuntura de nascimento no desejo de seu pai. Caçula ou primogênito, o lugar ocupado na irmandade não é indiferente: ao contrário, ele constitui a especificidade da conjuntura do nascimento de um filho numa irmandade e dos traços que vão alimentar seu romance familiar. Houve um tempo em que, nas irmandades numerosas, além das mortes dos filhos pequenos, determinadas pelo estado sanitário da época, o papel de cada um era predeterminado. As filhas mais velhas ajudavam a mãe com os mais novos quando não estavam destinadas a alguma união. Quanto aos rapazes, estes encontravam um lugar em função da posição e da fortuna familiar; numa fazenda, no exército ou na igreja eles asseguravam o funcionamento patrimonial ou estavam condenados a vender sua força de trabalho à melhor oferta. Hoje, os traços de uma tal determinação são visíveis unicamente nas famílias reais que fazem a alegria dos tabloides especializados.

 

No império da subjetividade, libertação de uma mulher, entre irmã e filha

 

Na família contemporânea, os irmãos e as irmãs dependem do arbitrário de sua subjetividade. Assim, uma caçula de dois filhos deduzia sua própria inutilidade do seu lugar no discurso parental e do papel exercido por sua irmã mais velha: por um lado, ela podia dizer que se parecia com seu pai e que era a preferida da mãe, por outro, ela atribuía seus sintomas aos efeitos da devastação materna e à vontade que ela tinha de ser a eleita do pai.

 

Para um sujeito masculino, tratava-se de perceber, durante uma longa análise, a partir da morte de um irmão e do aparecimento de uma fobia dos meios de transporte, o que foi interpretado por ele como irreparável, ao passo que, para um outro sujeito, que veio fazer tardiamente uma análise, era a supervalorização da qual ele foi objeto por parte do pai, que era problemática.

 

Ora, tanto para um quanto para o outro, a morte de um irmão sancionara uma vida malsucedida, apesar de um grande investimento materno. O sucesso social fora favorável aos dois, sem que isso abalasse sua parceria sintomática com uma irmã um pouco mais velha do que eles. Quanto ao primeiro sujeito, a lembrança de uma brincadeira com sua irmã, na qual ele negava ao caçula de sete anos sua qualidade de irmão, atribuindo-lhe outros pais, diz muito sobre sua intenção segregativa. A seu modo, esses dois sujeitos são herdeiros, herdeiros do pai e da culpa que o acompanha, herdeiros do Édipo como sintoma.

 

Ao contrário, uma distribuição justa aparentemente aconteceu com um sujeito feminino, verdadeiro herdeiro, assim como seus numerosos irmãos e irmãs, da fortuna de uma avó. Ela decidiu começar então uma análise para suportar não ser mais uma assalariada do setor social e imaginar um futuro de far niente. Aconteceu que, para gozar da herança, ela deveria renunciar a um outro gozo que a depreciava e que a deixava no nível de uma medíocre desocupada com sonhos de artista “bricoleur”. Um sintoma acompanhava suas aspirações a uma vida religiosa, a uma vida de oferenda de sua própria vida, que lhe fazia endossar o apelido de uma santa: as relações com os homens às quais, entretanto, ela aspirava, causavam-lhe um grande pavor. Ela se queixava de uma castidade inevitável e persistente que lançava numa atividade fantasmática toda prática sexual. A fraternidade era seu principal modo de se relacionar, assegurando seus apoios ao sintoma, depois de ter-se refugiado numa coletividade religiosa, não sem que suas relações intensas com seus irmãos e irmãs persistisse. Admiração e irritação pelos irmãos mais velhos, especialmente pelas irmãs, desprezo pela mais nova e por seu sucesso universitário fácil demais, constituíam a sua trama. Tinha uma relação privilegiada com a irmã um ano mais nova e com a qual dizia compartilhar aspirações artísticas e também sintomas, o que constituía a base de sua conivência. Colocar à prova na análise o que ela concebia como uma nova relação fraterna, a valorização pelo analista de todos os seus projetos “egoístas”, para retomar a expressão de Freud (1915-16), tiveram como efeito a decisão de retomar seus estudos e uma atividade assalariada à altura de seus novos diplomas, cultivando um modo de satisfação que até então ela negava a si mesma. O avesso da conivência com sua irmã caçula, feito de rivalidade e de aversão odiosa, surgiu então; ele permanece, aliás, alguns anos depois, sob a forma de uma irritação. O modo fraterno foi interpretado pouco a pouco como algo que encobria o conjunto das relações desse sujeito com o mundo, incluindo os pais, o pai procurando sempre imperativamente a cumplicidade de suas filhas para compartilhar seus prazeres musicais ou literários. Foi para ela uma revelação tomar conhecimento da intensidade carnal da relação de seus pais. Um sonho recente faz intervir o pai como sedutor. Numa atitude erótica sem equívoco com a paciente, o pai a chama pelo apelido de uma tia materna considerada um ícone de beleza e explicitamente rival da mãe. Esse sonho só vinha confirmar o que já tinha acontecido muitos anos antes, quando ela tinha enfim decidido aceitar as investidas de um sedutor muito mais velho do que ela, que inaugurou sua nova e tardia vida amorosa. Fazer parte da série das mulheres desejadas por esse homem não era um obstáculo, mas, ao contrário, uma condição sine qua non. Nenhum ciúme, nenhuma reivindicação de exclusividade apareceu em uma relação que deveria ser efêmera, mas que durou, apesar de tudo, durante vários anos, revelando ao sujeito os benefícios da atuação de um desejo sexual. Quando percebeu que sua satisfação não estava à altura do que ela mostrava diante das exigências do amante, sentiu esse quiproquó como uma mentira e pôs um fim nessa relação. Temendo, além disso, que a conjuntura específica dessa ligação a tornasse única, ela tentou se colocar à prova com outros parceiros. Esse sujeito atribui explicitamente seu sucesso profissional e a atuação do mal-entendido amoroso ao sucesso terapêutico de sua análise. Ela descreve o seu tratamento como uma operação de abandono de vestimentas sucessivas: a santa, a neta preferida da avó paterna, a irmã generalizada, fazendo com que ela se reaproximasse do que considera o campo dos gozadores em detrimento do campo dos deprimidos, no qual ela coloca vários dos seus irmãos e irmãs, dentre eles sua irmã mais nova, que continua a irritá-la. Essa evolução aconteceu ao preço de um abandono da questão do filho que ela não pode esperar do pai, segundo a tradição freudiana, introduzindo, assim, na análise, um limite na borda do que a determina como objeto para o outro, já que o poder do “semelhante ao mesmo” da grande irmandade se impôs.

 

Atualidade política do complexo de intrusão

 

Lacan constata, a respeito do seu “complexo de intrusão” nos Complexos Familiares, que a observação experimental da criança e as investigações psicanalíticas, ao demonstrarem a estrutura do ciúme infantil, colocaram em evidência seu papel na gênese da sociabilidade e do conhecimento humano. O ciúme, na sua essência, representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental, acrescenta ele. A doutrina da psicanálise faz do irmão o objeto eletivo das exigências da libido homossexual, insistindo na confusão desse objeto de duas relações afetivas, amor e identificação, cuja oposição será fundamental para o estágio ulterior.

 

Encontramos no adulto essa ambiguidade original na paixão do ciúme amoroso – poderoso interesse que o sujeito demonstra pela imagem do rival (apesar de ele ser afirmado como ódio) ou em ser motivado pelo pretenso objeto do amor. Esse sentimento amoroso o domina tanto que ele pode ser interpretado como interesse essencial e positivo da paixão. A agressividade máxima encontrada nas formas psicóticas da paixão está constituída pela negação desse interesse particular, mais do que pela rivalidade que parece justificá-la.

 

Em seu ensino, Lacan faz frequentes referências às irmandades, retomando os casos freudianos do pequeno Hans, de Dora ou da jovem homossexual, comentando os casos de fobias de Anelise Schnurmann ou de Hélène Deutsch, a psicose das irmãs Papin, colocando a invidia agostiniana como uma referência maior e, sobretudo, dando todo o peso à tragédia de Antígona no Seminário VII, A ética da psicanálise.

 

Em 1972, na via de seu “Há Um”, no Seminário inédito …Ou pior, Lacan faz o elogio do Parmênides de Platão, que antecipa a dialética do mestre e do escravo de Hegel. Ele supõe o mito histórico no qual, para além das relações do mestre e do escravo, somos todos irmãos, enquanto filhos do discurso. Uma fraternidade que traz certamente as “armas e bagagens familiares”, diz ele, e que faz do analista o irmão do analisante, enquanto o analista tiver que suportar a abjeção à qual pode se agarrar o que vai nascer do dizer, não sem o bem-dizer da interpretação à qual o analista é convidado. “Nosso irmão transfigurado, é isso que nasce da conjuração analítica e é o que nos liga àquele que impropriamente chamamos de nosso paciente” (LACAN, 1972)[4]. Mas, não é sem medo de um retorno violento que Lacan evoca a noção de irmão nesse contexto da visada da análise. A essa nota universalizante, que ele nos lembra ser regulada pela exceção paterna, aquela que diz não à castração para melhor assegurar o seu alcance, ele opõe o aumento dos perigos. Retornando “à raiz do corpo”, na fraternidade do corpo, é a verdade do racismo que se anuncia e cujas últimas consequências ainda não vimos.

 

A nova aposta de Pascal

 

Antecipação luminosa quando, trinta anos depois, um telefilme intitulado Pascal e o irmão mais velho tem um sucesso de audiência em um momento em que há um aumento das segregações comunitárias. Trata-se de um educador nomeado para cuidar de uma adolescente com dificuldades, que mantém uma relação apocalíptica com sua mãe, que quer colocá-la numa instituição. O milagre opera e o educador, que soube fazer valer os argumentos de autoridade sob a máscara da fraternidade, tem sucesso na operação. É, aliás, a isso que a ideia do “irmão mais velho” se refere, herdeiro do antigo direito de primogenitura. É ele que suscita a confiança de todos os irmãos, que é amado como um irmão ao mesmo tempo em que ameaça e exerce a sua autoridade.

 

Pode-se observar que, além das caricaturas de políticos, o termo “irmão mais velho” era atribuído, na época da Guerra Fria, a uma potência estrangeira que, compartilhando seus valores, oferecia também sua proteção. É assim que hoje as periferias reivindicam seu irmão mais velho, aquele do qual suportamos os desvios de conduta e ao qual concedemos um direito de gozo, como contrapartida da autoridade que ele exerce sobre o grupo.

 

As irmandades são para a psicanálise o lugar da atualidade do que restou do Édipo. Aliás, a clínica dos sujeitos psicóticos testemunha isso, o que é também confirmado pelo êxito dos casos de algumas terapias familiares como reguladora da distância ideal entre os membros do grupo. Existem irmandades com sucesso e são, sem dúvida, aquelas nas quais o sujeito está convencido de que é sempre possível conviver com os seus piores inimigos quando as hostilidades não existem mais. O que resta no cerne da experiência analítica é a maneira pela qual o sujeito terá negociado sua parceria sintomática; assim, o irmão ou a irmã encarna, em um dado momento, um resto do desejo dos pais, deixando sua marca na sociabilidade do tempo. Dessa forma, a fraternidade à qual a nossa época nos convida sempre um pouco mais, até o clone, para uma melhor igualdade, deve suscitar a vigilância do psicanalista formado para uma clínica que o impulsiona a não apostar no grupo para o tratamento do gozo e a estar atento à segregação que essas fraternidades carregam.

 

[1] LACAN, J. (1938). Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90.
[2] FREUD, S. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, vol. 18, p. 91-179. Edição Standard das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud.
[3] FREUD, S. (1916-17) Aspectos arcaicos e infantilismo dos sonhos. In: Conferências introdutórias à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, vol. 15, p. 239-254. Edição Standard das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud.
[4] LACAN, J.(1972). O Seminário Livro XIX …Ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

 

 


JEAN-DANIEL MATET
Tradução: Márcia Bandeira Revisão da tradução: Márcia Mezêncio