The Wolfpack: Entre Filmes E Lobos

GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR

O cinema oferece hoje ocasião para reflexões sobre a clínica, já que, ao lado da psicanálise, a arte contemporânea é um discurso que põe em relevo as mudanças culturais hodiernas (BROUSSE, 2014). Nesse sentido, tomamos para apreciação The Wolfpack (2015): um documentário sobre a história da família Angulo, cujos sete irmãos cresceram dentro de um apartamento e foram isolados do mundo exterior. Saíram pouquíssimas vezes, e até que se contrapusessem à resolução delirante imposta por um pai onipotente, muito tempo se passou. Portanto, debruçamo-nos primeiro sobre a paternidade psicótica. Em seguida, investigamos como o cinema tornou a clausura possível por algum tempo e alicerçou também uma invenção através da qual Mukunda, um dos irmãos, pôde se enlaçar ao “mundo lá fora”.

 

A apresentação de Oscar, o pai, prenuncia a tônica paranoica intrínseca ao modo de organização dessa família, correlata à característica disposição de retorno da libido narcísica elucidada por Freud (1911/1996) sobre a psicose. Sujeito distante e silencioso, Oscar revela ter grande influência no arranjo familiar, cujo fundamento parece convergir absolutamente ao seu ser: “Meu poder está influenciando todos”. Em resposta às interferências manipuladoras da sociedade, protege a si e a sua família na delimitação panóptica de um espaço onde o seu olhar vigilante impera, detendo o controle e a guarda de sua comunidade. Compartilhando os valores hippies, o casal Oscar e Susanne (a mãe) aspiram à criação dos filhos na liberdade da natureza, purificados da babel civilizatória. Encontram na língua primeira, o sânscrito, os nomes de seus filhos. Ao mudarem-se para Nova York, onde teriam que somar recursos para tal projeto, veem-se cada vez mais sitiados na malha urbana. Ilhados num apartamento, o casal decide que a educação dos filhos Bhagavan, Govinda, Narayana, Mukunda, Krsna, Jagadisa e Visnu aconteceria nos limites desse microcosmo, incontaminado pela violência, drogas, filosofia ou religião. A foraclusão da norma simbólica (LACAN, 1959/1998) em Oscar se evidencia na radical separação da “sociedade”, seu Outro denso e não castrado. Fixando uma lei de ferro, ele tenta fazer barreira ao gozo ilimitado, estabelecendo um ponto cego ao real do olhar que goza dos corpos e os robotiza em favor dos interesses do sistema. Para a paternidade, Oscar se identifica ao deus Krishna, sustentando imaginariamente um lugar de Outro para a família. A condição subjetiva desse pai, sem a marca da divisão, parece transmitir o apagamento da diferença no clã dos meninos-lobo. Com cabelos longos e corpos esguios, eles se apresentam homogeneizados, atuando como um só corpo; uma alcateia. De objeto privilegiado do olhar do Outro, Oscar, em sua tribo, encontra-se no lugar imperativo do “Olho que tudo vê”, convergindo para si a pulsão escópica que circula na família.

 

Mukunda, por sua vez, afirma que o pai sempre encheu as cabeças dos filhos com filmes. Ademais, argumenta que “há um mundo lá fora”, e que devido ao fato de não o conhecerem, teve de criar, junto com a irmandade, um mundo próprio, servindo-se dos filmes para tal. Nessa cena, um dos outros irmãos chega a pontuar: “mas sempre soubemos a diferença entre a vida real e os filmes”. Segundo Metz (1980), o filme pode ser entendido como um espelho, pois tanto em um quanto em outro, qualquer coisa pode ser projetada. Inobstante, o primeiro diferencia-se do espelho primordial a partir do momento em que o espectador de cinema não tem, diante de si, sua imagem especular. Por já haver ultrapassado a primitiva indiferenciação entre eu e tu, o humano é capaz de reconhecer que existem objetos; que ele próprio é um sujeito e que há quem seja seu semelhante. Ele pode, portanto, acompanhar como observador o que se apresenta na tela. “No cinema, é sempre o outro que está no écran: eu estou lá para o ver” (METZ, 1980, p. 58).

 

Metz (1980) entende que há um saber do sujeito sem o qual nenhum filme seria possível. Vendo um filme, o indivíduo dá-se conta de que ele próprio percebe o imaginário; que seus órgãos sensoriais são fisicamente atingidos e que não está “fantasiando”. Simultaneamente, o material percebido-imaginário depõe-se no sujeito – estrutura de linguagem –, sendo aí agrupado e organizado numa continuidade. Há, por parte de quem vê o filme, uma identificação com o ato do perceber; um jogo dialético entre agente da percepção (sujeito) e percebido (tela), através do qual o imaginário do cinema, ao ser captado pelo espectador, acede ao simbólico, fazendo-se por isso uma atividade social e institucionalizada. O que, todavia, não eclipsa as possibilidades identificatórias, já que, na trilha de Brousse (2014), o império das imagens é uma trademark de nosso tempo, da qual o cinema certamente não está livre.

 

Portanto, na criação de um mundo, curiosa solução começa a se apresentar. Pulp Fiction e Reservoir Dogs são algumas das obras cujas falas Mukunda transcreve, ipsis litteris, para o papel. Ele explica que a vida enclausurada fica muito entediante, e que, assim, interpreta com seus irmãos as cenas copiadas. O figurino dos personagens, pistolas de papelão e uma sonoplastia improvisada se articulam em encenações fiéis aos mínimos detalhes. Parece estar em jogo um modo de gozo coletivizado. Mukunda fala que as encenações têm algo de mágico, e fazem com que ele se sinta vivo. Afirma poder, com isso, ser os personagens que encarna. Lacan (1979/2003) formulará ao final de seu ensino que ser falante não é, mas tem e fala com seu corpo; tem um evento corporal, isto é, o sintoma. A gente o tem, e “Ter é poder fazer alguma coisa com” (LACAN, 1979/2003, p. 562). Mukunda e os lobos põem seus corpos em cena. Interpretam, sorriem, matam e morrem. Porque no parecer-real sobre o qual se erige um mundo-dentro-do-apartamento, isso se pode fazer. Para Lacan, o imaginário é o corpo, que se introduz justamente como imagem (MILLER, 2015). Aqui, tal registro ganha tonalidade sobretudo na afinidade dos irmãos com os filmes de Tarantino, que, além de ofertarem muitos personagens que a irmandade pode ser e encenar, sempre retratam a selvageria da civilização.

 

Ademais, o espectador notará que mesmo antes de The Wolfpack (2015), a câmera já não era estranha aos Angulo. Veem-se as filmagens caseiras da família em que as crianças se assemelham a autômatos, corpos inertes à deriva dos caprichos de seu diretor todo-poderoso. O close em suas faces, posicionadas rentes ao rosto do pai, parece figurar o seu duplo especular. A câmera e a televisão são os objetos de fascínio nessa família; recursos que permitem a projeção e a captura da imagem e o emparelhamento do gozo escópico em curto-circuito. Para Metz (1980), se no cinema, o espectador identifica-se consigo mesmo enquanto olhar, pura percepção, ele também se identifica com a câmera, que, antes dele, olhou aquilo que ele vê agora. Para o autor, nós mantemos verdadeiras relações de objeto com o filme e, em Lacan (1971/2009), é o objeto a a preencher – enquanto olhar, seio, voz e excrementos – o local do mais-de-gozar. Mas através dessas filmagens, os membros da família não veem senão a si mesmos, aproximando-se o filme mais do imaginário que do simbólico. Sobretudo porque o olhar dos irmãos é controlado pelo pai onipotente, quem, por sua vez, se refugia do olhar do Outro. O clã só assiste aos filmes e ao outro lado da janela. Tamanho é o controle, que Mukunda lembra-se de seus quinze anos, quando o pai detinha as chaves da casa e, mais ainda, ditava os cômodos em que o garoto poderia ou não estar. Os irmãos chegam a se descrever como trabalhadores de uma terra da qual o pai é o senhor; veem-se prisioneiros de seu delírio tribal. Segundo Mukunda, “é difícil não poder querer sair dessa caixa”.

 

As imposições excessivas atingiam o insuportável. Certo dia, pela manhã, ainda aos 15 anos, Mukunda se levantou, vestiu-se de preto, respirou fundo, colocou uma máscara e partiu para a rua. Afirma que sentiu uma urgência de sair e não ser reconhecido por ninguém – nem mesmo Oscar. Algo aí se assemelha a uma cena na qual o jovem, trajando uma bela armadura do Batman, confeccionada por ele próprio com caixas de cereal e tapete de yoga, argumenta que interpretar o herói é muito pessoal, uma grande responsabilidade. Após haver assistido a Batman: The Dark Knight, Mukunda fala que passou a acreditar que algo era possível de acontecer. A experiência o fez sentir como se estivesse num outro mundo, o qual ele fez de tudo para tornar realidade, podendo, assim, escapar de seu próprio. Sendo um super-herói de identidade secreta, o garoto consegue, à maneira de sua fuga e num só tempo, vigiar e permanecer invisível. Como justiceiro e combatente do crime, ele parece encarnar em si uma lei que faz anteparo aos excessos do pai.

 

“Entrar na mente” de Bruce Wayne abre caminho, no sentido de que agora Mukunda pode se servir de um olhar o qual, até o momento, foi tão controlado. Emocionado, descreve sua evasão do apartamento e afirma que, após ela, confrontou Oscar lhe dizendo que não mais seguiria suas ordens: “me livrei das amarras e me libertei”. Talvez um passo a mais em direção à cidade; ao salto do homem-morcego que voará livre pela noite de Gotham City.

 

A partir daí a alcateia inicia uma gradual ruptura do isolamento. O documentário mostra os rapazes na praia, no parque e no cinema. Surpreendentemente, Mukunda chega a contar como procurou e conseguiu um emprego. Mais ainda, já na conclusão de The Wolfpack (2015), diz estar trabalhando num filme próprio, a ser mostrado nos créditos finais. É a história de um homem que, de sua poltrona, assiste aos sentimentos que passam do outro lado da janela. Cada afeto é interpretado por um irmão: raiva, tristeza e felicidade. O jovem descreve sua produção ressaltando que “tudo era, praticamente, medo. O medo foi colocado. Eu ainda tenho medo”. Mas ainda que o tenha, Mukunda coloca. Eis a novidade: ele introduz algo de seu. Se num primeiro tempo os filmes trazidos pelo pai eram fielmente reproduzidos, agora se inaugura um lugar de criação, em que Mukunda é agente. Ele coloca numa obra sua própria história: a de um menino que, do apartamento, apenas via passar em sua frente o mundo-lá-fora. Essa solução deslinda extraordinária metalinguagem: há um filme sobre a vida dos Angulo, o documentário, que, por sua vez, desfecha com outro filme: o dos sentimentos na tela. E isso passa pelo Outro social, porque circula na cultura introduzindo os Irmãos Lobo (2015) na instituição-cinema. Tal fenômeno convida-nos a pôr em cena a noção de escabelo. Para Miller (2015), essa palavra, que é do século XXI, tempo do falasser, pode ser entendida como um pedestal sobre o qual o ser falante se ergue para elevar a si mesmo à dignidade da Coisa. “O que chamamos de cultura não é nada além da reserva dos escabelos na qual se vai buscar com o que esticar o colarinho e bancar o glorioso” (MILLER, 2015, p.129). Traçando um paralelo entre escabelo e sinthoma, Miller (2015) situará o primeiro no nível do gozo da fala, que inclui o sentido e é sustentáculo dos ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo. O segundo já diz respeito ao corpo, relacionado a um gozo que, noutra via, exclui o sentido. O que deixa Lacan (1979/2003) perplexo em Joyce é que este, além de haver gozado com Finnegan’s Wake, o publicou, deixando toda a literatura com o flanco à mostra. É a façanha de Joyce que fez convergir sintoma e escabelo; fez do próprio sintoma, fora de sentido e ininteligível, o escabelo de sua arte (MILLER, 2015). Joyce se consuma como sintoma; é sintomatologia; um fabricante de escabelo que fez arte com o gozo opaco do sintoma (MILLER, 2015), e o fez sem recorrer à experiência de uma análise (LACAN, 1979/2003). “[…] a ironia do ininteligível é o escabelo de que alguém se mostra mestre” (LACAN, 1979/2003, p. 566).

 

The Wolfpack (2015) é riquíssimo nesse aspecto. De um lado, o “primeiríssimo” Lacan (1938/2003) argumentará que a conservação e progresso humanos, por serem indissociáveis da comunicação, delimitam uma obra coletiva que constitui a própria cultura e “introduz uma nova dimensão na realidade social e na vida psíquica. Essa dimensão especifica a família humana, bem como, aliás, todos os fenômenos sociais no homem” (LACAN, 1938/2003, p. 29). De outro, temos os Angulo, submetidos a esse sistema paranoico que os isola e prefigura uma horda de iguais. Nesse setting, está o percurso de Mukunda: prisioneiro de um capricho delirante, ele não deixa de sentir medo. Mas para sair de sua caixa, deve colocar isso em algum lugar. Talvez esteja aí sua sublimação; seu savoir-faire com esse gozo opaco, sem sentido, através do qual o jovem lobo faz algum enlace com o “mundo-lá-fora” para então deixar na cultura seu escabelo; sua marca radicalmente singular. Afinal, sabemos de Lacan (1949/1998) que não só a análise pode levar o sujeito ao limite extático do tu és isto, em que se revela para ele a cifra de seu destino mortal; momento em que começa a verdadeira viagem.

 


Referências
BROUSSE, M.-H. Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho. In: Opção Lacaniana online nova série, n. 15, p. 1-17, nov. 2014. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_15/Corpos_lacanianos.pdf>. Acesso em jun. 2017.
FREUD, S. (1911/1996). “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides).” In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 12, p. 13-89.
LACAN, J. (1938/2003). Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J (1949/1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1959/1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1971). De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
LACAN, J. (1979/2003). Joyce, o Sintoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
METZ, C. O significante imaginário – Psicanálise e Cinema. Livros Horizonte: Lisboa, 1980.
MILLER, J.-A. “O INCONSCIENTE E O CORPO FALANTE”. In: O osso de uma análise + o inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. p. 115-138.
The Wolfpack. Direção: Crystal Moselle. Estados Unidos, 2015 (1h29min), cor.

GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR
GABRIEL SILVA MEDEIROS Acadêmico de Psicologia das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros (FIPMoc) e aluno do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental (NIPSM). gabrielsmedeiros@hotmail.com
ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIO Psicólogo, Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Hospital Universitário Clemente de Faria/ Universidade Estadual de Montes Claros (HUCF/Unimontes), foi aluno do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental (NIPSM). robertopiresjr@yahoo.com.



Os Filhos Dos Toxicômanos

MARIANA FURTADO VIDIGAL

 

 

BRIGID MARLIN

 

Falar sobre os filhos dos toxicômanos nos exige definir antes a quem chamamos de toxicômanos. Não poderíamos, orientados pela ética da psicanálise, estabelecer uma categoria universal para os toxicômanos e seus filhos. Verificamos, há anos, os efeitos ineficazes e catastróficos de intervenções que afetam os usuários de drogas e desconsideram sua condição de sujeitos e cidadãos, inferindo uma indiferenciação entre o sujeito e o objeto-dejeto-droga. Entretanto, sabemos como uma relação toxicômana com a droga pode provocar efeitos nefastos que comprometem a relação com a própria subjetividade e com o outro.

 

Percorreremos, portanto, dois eixos: o que a teoria psicanalítica e a clínica podem nos indicar sobre os possíveis efeitos subjetivos em uma família com pais toxicômanos e, a partir da noção lacaniana de função social de nomeação, ler o lugar do toxicômanos e de seus filhos no discurso atual de “os filhos do crack” e “as mães do crack”.

 

A função da família

 

Lacan (1969/2003) apresenta a função da família conjugal na constituição subjetiva da criança como a de uma transmissão irredutível que implica a relação de um “desejo que não seja anônimo” (p. 369). Trata-se de uma função de outra ordem que não a satisfação das necessidades, cabendo à mãe, a partir de seus cuidados, transmitir “a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas” (p. 369) e, ao pai, em seu nome, ser o “vetor de uma encarnação da Lei no desejo” (p. 369).

 

Estando em jogo a dimensão da falta materna, o pai – enquanto função – pode intervir como lei na relação mãe-criança, dando uma significação ao desejo materno, a significação fálica. A mãe é aquela que deve transmitir o Nome do Pai, consentindo, com a regulação do próprio gozo, o que permitirá ao filho sair do lugar de objeto (falo) e lançá-lo na metonímia do desejo. Mas, mesmo com a significação fálica, o enigma sobre o desejo do Outro permanece indecifrável, assim como o objeto último do próprio desejo. A perda do objeto é estrutural, tornando-se aquilo que causa o desejo e fazendo com que busquemos substitutos para o objeto a.

 

A criança se identifica ao que supõe ser o desejo do Outro, produzindo uma resposta sintomática ao sintoma do par parental e denunciando a verdade em jogo ali. Inscrita a função fálica, o sujeito poderá se posicionar sexualmente tanto em relação ao gozo quanto em relação à escolha de objeto, sustentado por identificação ao pai ou à mãe e orientado pela significação fálica.

 

Contudo, quando temos a forclusão do Nome-do-Pai, a criança resta como objeto tampão da falta da mãe, que se torna presença maciça, permanecendo identificada ao gozo do Outro. Permance no lugar de objeto, comprometendo o desejo e a metaforização do gozo no corpo – que retorna do real como delirio ou alucinação.

 

No último momento do ensino lacaniano há a reformulação da função do par parental como a de transmitir, enquanto homem e mulher, uma relação com o objeto a – tanto como causa de desejo quanto como gozo. Para ser um pai digno de amor e de respeito, deve-se apresentar uma versão de como pôde fazer com uma mulher, tomando-a como causa de seu desejo enquanto ela se ocupa de seus filhos, semblantes de objeto a para ela. Aqui a função paterna é transmitir ao filho o que ele pode inventar diante da não-relação sexual.

 

Vimos que o desejo não anônimo pela criança é peça constitutiva de sua subjetividade, mas, para Miller (2005) é em torno de um segredo que se une uma família: “de que gozam a mãe e o pai”. Um não-dito sobre o gozo, indevido, é o que se transmite entre as gerações.

 

Isso nos permite localizar uma versão de família menos idealizada do que as dos discursos normatizadores. As funções parentais são funções exercidas por homens e mulheres de maneiras particularizadas; o que se transmite é uma invenção singular para o impossível em jogo para todo ser falante e um resíduo sobre o gozo. Mesmo o desejo não anônimo por um filho mantém um caráter enigmático irredutível, e ao filho caberá, em alguns casos, responder ao que ele toma dessa transmissão residual com seu sintoma e formulando uma fantasia particular sobre o desejo do Outro, constituindo, assim, sua própria relação com o objeto a (S/ ◊ a). E, nos casos em que há uma presença maciça da mãe, desejosa demais, o sujeito pode se colocar alienado como o próprio objeto a da fantasia do Outro como objeto tampão (LACAN, 1969/2003).

 

A toxicomania e a família

 

A toxicomania não é uma relação qualquer com a droga, mas um ato contínuo e desenfreado de consumo, “um gozo que vale mais do que o amor à vida” (MILLER, 2000, p. 176). Lacan (1975) formula a droga como aquilo que permitiria o “rompimento do casamento do corpo com o petit-pipi” romper também com o excesso de gozo que invade o corpo, referenciando-se ao caso do pequeno Hans. Entretanto, tratar o excesso libidinal sem o recurso da linguagem que permitiria metaforizá-lo, sem os limites da significação fálica, pode provocar um gozo experienciado de maneira ainda mais desenfreada e mortífera no corpo próprio. Em outros casos, a droga se torna um tratamento para esse real pulsional que invade o corpo desde sempre, amenizando estes efeitos nefastos, como os dos delírios, que atormentam o sujeito.

 

Na toxicomania, a droga é um objeto “causa de gozo” (MILLER, 1995, p.17), um gozo autístico que pode provocar uma suspensão da circulação do desejo em torno de outros objetos e da relação com o outro. Em tese, pode-se concluir que comprometeria a transmissão pela mãe de um cuidado particularizado com o bebê e a transmissão de um desejo não anônimo direcionado a ele. Em tese.

 

A droga, em alguns casos, entra como uma resposta à não-relação sexual, fazendo do corpo próprio o seu único parceiro e objeto, o que poderia comprometer o casal por excluir o parceiro sexuado como causa de desejo para obter uma relação assexuada e autística com a droga (MILLER, 2000). E se o que a família transmite é um segredo sobre o gozo, de que gozam o pai e a mãe, o que se transmite quando o gozo que deveria se manter obsceno se coloca tão em cena, como geralmente acontece na toxicomania?

 

Contudo, na clínica é possível encontrar respostas diversas dos toxicômanos e de seus filhos. Há sujeitos que têm dificuldade em exercer as funções parentais pelo uso de drogas ou por sua condição de errância, de “desarraigamento” de toda referência simbólica (GELLER, 2016). Nesses casos, é possível um tratamento para se estabilizarem enquanto são auxiliados nos cuidados com os filhos, por outros membros da família e por políticas públicas competentes, mas preservando o vínculo parental. Em outro caso, “ser mãe” introduziu um intervalo na relação toxicômana com a droga em nome dessa nova nomeação e amor ao filho. Assim como a paternidade fez com que um sujeito quisesse ser um exemplo diferente para o filho.

 

Há pacientes que edipicamente elegem parceiros tomando o gozo toxicômano do pai como traço que se repete, identificando-se com o lugar da mãe na parceria sintomática do casal, ou tentando salvar o pai toxicômano assassinado ao tentar salvar os homens toxicômanos com os quais se relacionam. Um jovem toma a imagem do pai toxicômano e traficante como identificação especular maciça e de difícil dialetização da nomeação “patrão”, repetindo o caráter mortífero desse gozo. Em muitos outros casos, o sintoma e a fantasia do sujeito não se dão em relação ao uso de drogas dos pais e a droga não se torna uma questão em suas vidas adultas. Um homem produz um curto-circuito na relação amorosa ao eleger momentaneamente a droga como objeto de gozo, retirando-se da relação e repetindo o sintoma de seu par parental. Teríamos elementos para afirmar que a toxicomania em um par parental produziria efeitos na constituição subjetiva de seus filhos, pois suporia um colapso nas posições referidas à função paterna e materna – em tese, pois o que a clínica nos ensina é que as relações familiares são absolutamente singulares e o que cada filho toma como transmissão sobre o desejo e o gozo do Outro é enredado em uma ficção própria, não previsível e não necessariamente a ver com um ideal.

 

Objeto-dejeto-crack

 

O lugar da família e da droga são atrelados ao discurso social prevalente em uma época, com efeito na formação dos sintomas e no tratamento dado a eles. Com o declínio do pai, Lacan (1973/1974) advertiu sobre os riscos de a mãe tomar exclusivamente para si a função de “nomear para” ou, ainda mais grave, de o social deter esse poder de nomeação determinando “a trama de tantas existências” com uma ordem de ferro. Interessa-nos analisar as consequências na existência de famílias que recebem nomeações pelo social como “mães do crack” e “filhos do crack”.

 

Os toxicômanos são frequentemente nomeados como “zumbis” e “crackeiros” e sofrem com políticas higienistas que pretendem eliminá-los do olhar dos “cidadãos de bem”. Vê-se, nessa lógica de “mães do crack” e “filhos do crack”, mais uma versão em que sujeito e objeto-dejeto sofrem uma holófrase – são o objeto-dejeto-crack, desalojados de um lugar social, de sua subjetividade e de sua condição civil de direitos. Nessa trama discursiva, tem sua condição jurídica próxima ao homo sacer[i] de Agabem (2002, p. 71): “não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio”.

 

Em Belo Horizonte, em 2014, a 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível lançou as recomedações 05 e 06/2014 às maternidades públicas e às Unidades Básicas de Saúde para notificar a Vara sobre “as gestantes ou mães” que “manifestem interesse em entregar os seus filhos para adoção”. Além disso, os profissionais de saúde deveriam notificar sobre “mães usuárias de substâncias entorpecentes”, (nomeadas extra-oficialmente como “mães do crack”), os casos de “gestantes que recusam fazer o pré-natal” e as “situações de abandono de recém-nascido nos estabelecimentos de saúde, de negligência e maus–tratos ao nascituro ou ao recém-nascido”.

 

Em 2016, a Vara Cível da Infância e da Juventude baixou a portaria N° 3/VCIJBH/2016, que dispõe sobre o encaminhamento ao Juizado de recém-nascidos e dos genitores em grave suspeita de situação de risco para oitiva e aplicação de medidas de proteção. Essa “situação” se refere a casos em que “a família não apresenta ambiente que garanta o desenvolvimento integral, em especial em virtude da dependência química e/ou trajetória de rua dos genitores, sem condições imediatas de exercer a maternidade e a paternidade responsável” para decidir sobre “a aplicação de medidas protetivas, inclusive, se for o caso, a medida de acolhimento familiar ou institucional.

 

No entanto, segundo o movimento “De quem é este bebê?”[ii], na prática, mulheres, em sua maioria negras e pobres,

 

(…) estão sendo retidas nas maternidades, sem justificativa médica e sem necessidade clínica. Seus bebês estão sendo abrigados sem o levantamento da família extensa e sem a criação de um fluxo de atendimento que vise a sua recuperação. São sumariamente separadas de seus filhos, sem a possibilidade do alojamento conjunto. Existem muitos relatos de mulheres que sequer são aditas mas que são denunciadas por não terem feito o pré-natal, estarem infectadas com sífilis, terem feito uso recreativo de alguma substância antes mesmo de saberem que estavam grávidas.

 

Sendo esse o cenário, os nomeados “filhos do crack” e “mães do crack” constituiriam uma nova categoria de crianças e de mães, ambos nomeados como o pior, como o crack, vidas das quais o Estado se sente no direito de dispor à revelia da Constituição. Como ser filho de um objeto como o crack? Como ser o crack? Qual trama está sendo traçada para essas existências com essa nomeação pelo social?

 

Para Lacan (1973/1974), quando o social toma a função de nomear, tem efeito de uma “degenerescência castástrófica”, ou seja, um lugar como esse no discurso social não dá outro destino que não a catástrofe. Já o encontro com esses sujeitos – quando tomados nessa condição – nos ensina que é preciso aguardar a construção dos lugares de pai, mãe e filho e como cada família se configurará. Uma separação precoce e sem cálculo retira da família a possibilidade de construírem uma ficção singular para o que lhe acomete. Como nos diz Laurent, citado por Campos (2017):

 

O sujeito é que terá, portanto, a tarefa de constituir sua família, no sentido em que ela institui uma distribuição dos nomes do pai e da mãe. A tarefa não é, portanto, aliviada pela ficção jurídica (…) alguma coisa dos lugares do pai e da mãe é ineliminável: não como garantidor, mas como resíduo.

 

A toxicomania não é uma situação permanente. É possível um tratamento que possibilite uma regulação do gozo, um suporte para uma outra invenção menos danosa para conter o sofrimento e uma nova relação com o corpo próprio e com o Outro/outro. Permanentes talvez sejam os danos da nomeação “objeto-dejeto-crack” na existência desses sujeitos.

 


Referências
AGAMBEM, G. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua. Henrique Burigo (trad). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
CAMPOS, M. A familia na interface direito e psicanálise. Almanaque, revista eletrônica do IPSMMG, n.18, 2017. Disponível em http://almanaquepsicanalise.com.br/a-familia-na-interface-direito-e-psicanalise/, acesso em maio de 2017.
GELLER, S. Prefácio. In: MILLER, J.-A. y otros: Desarraigados. Buenos Aires: Paidós, 2016.
LACAN, J. (1969) “Duas notas sobre a criança”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, pp. 369-370.
LACAN, J. “Radiofonia”. In: Ibidem. pp. 403-447.
LACAN, J. (1973/74) El seminario 21: los no incautos yerran. Clase 10. Inédito.
LACAN, J. (1975) “Jornada de estudos dos cartéis da Escola Freudiana: Sessão de encerramento”. Documentos para uma Escola. Letra Freudiana: Escola, psicanálise e Transmissão. Ano 1, nº0, p. 117. Circulação interna.
MILLER, J-A. “A teoria do parceiro”. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000, pp. 153-207.
MILLER, J-A. Para una investigación sobre el goce auto-erótico. In Sujeto, goce y modernidade, fundamentos de la clínica. Buenos Aires: Instituto del Campo Freudiano – Atuel-TYA, 1995, p.17
MILLER, J-A. Assuntos de família no inconsciente. Recuperado em 05 de abril de 2017 em http://www.isepol.com/asephallus/numero_04/traducao_01.htm
[i] Homem sacro (ou sacer) é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguem matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advem que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro”.
[ii] Disponível em https://dequemeestebebe.wordpress.com/entenda-o-caso/, acesso em abril de 2017.

MARIANA FURTADO VIDIGAL
Psicanalista em Belo Horizonte, mestre em Estudos Psicanálíticos pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas da UFMG. marianafvidigal@yahoo.com.br (31) 991646605



O Real Na Família Contemporânea – Questões Sobre O Incesto

LUCIA MELLO

 

 

O real na família contemporânea comporta pesquisas sobre os vários sentidos desse nome para Lacan, de desde seu texto inicial, da década de 50, até as mudanças operadas em seu último ensino. Neste, o real surge enquanto dimensão contingente que concerne a cada um, sem sentido, acarreta ruptura tanto com o saber quanto com a causalidade, separado que está da dimensão ficcional do inconsciente estruturado como linguagem, e modifica o próprio conceito de inconsciente.

A pergunta que orienta essa investigação diz respeito às transformações culturais e sociais que incidiram sobre os discursos e atingiram o que Freud formulou como uma lei primordial da humanidade – advinda de pesquisas sociológicas e resultado da incidência do pai e inscrita como mito, fantasia e tabu do incesto – ou seja, a como se apresenta o tabu do incesto no tempo do real sem lei.

O comentário feito por Lacan sobre a ficção do pai primeiro, construída por Freud, assinala a importância da família na transmissão da cultura, por vários meios, quando destaca o medo, protótipo da repressão edipiana, inspirado pela castração real promovida pela versão do pai gozador de Totem e tabu. A proibição do incesto construída no mito freudiano incide sobre a mãe e “tem um caráter universal, através de relações de parentesco infinitamente diversificadas… essa proibição é sempre expressamente formulada e sua transgressão é marcada por uma reprovação constante” (LACAN, 1938/2003, p. 29). Na ficção, o tabu decorre da orgia sacrificial seguida do banquete totêmico e da rivalidade entre os membros do clã, de quem resultam tradições morais e culturais.

Essas tradições se veem abaladas como consequência da disjunção entre sexualidade, procriação e filiação ocorrida no século XX. O nascimento de uma criança não depende mais do encontro de um homem com uma mulher. Os enigmas da sexualidade são deslocados do campo do desejo para as demandas de mercado. A família contemporânea definida por Lacan no texto de 1938, os “Complexos familiares”, como instituição, fato social, mito em que se inscreviam em triplo registro a reprodução da espécie, função organizadora da filiação e os fundamentos de transmissão entre gerações, exacerba sua dupla face entre interdição e permissão do gozo. A família parece perder progressivamente sua função de transmissora da cultura, das relações de parentesco.

As mutações na civilização apontadas por Lacan desde os anos 70 produzem efeitos e transtornos decorrentes das transformações no discurso do mestre, repercutem sobre a lei da castração e afetam profundamente a família contemporânea. Passa-se da autoridade paterna para a autoridade parental. Marie-Hélène Brousse considera a parentalidade um neologismo utilizado pelo novo discurso da ciência para apagar os termos tradicionais de pai e mãe e homem e mulher, modificando o sistema de parentesco e a transmissão da lei e pretendendo recobrir a impossibilidade de escrever a relação sexual.

Em seu artigo sobre o tema, Brousse (2005) comenta que, onde havia o drama de uma relação entre termos diferentes, funções diferentes, se impõe a equivalência, a similaridade e a permuta, movidas pelas vontades de gozo, pelo apagamento das funções alteradas para termos iguais que se repetem em série: “Confiado à ciência, o real da reprodução se encontra separado do simbólico da filiação.” (p. 121). O circuito do desejo que necessariamente implica a diferença sexual também é apagado pela parentalidade, que se impõe como um sintoma da sociedade pós-moderna. Na condição de significante único, a parentalidade transmuta os lugares de pai e mãe para a série de Uns esparsos e disjuntos, sem o Outro como parceiro de mito e ficção.

Essa transformação da família afeta a criança recebida, escolhida ou produzida como objeto a, que, na condição de objeto mais-de-gozo, torna-se passível de consumo pela via da parentalidade – vítima de vigilâncias, permutas e abusos diversos. Indaga-se, portanto, sobre as mutações no estatuto das interdições e seus efeitos para o que Freud conceituava como economia psíquica. Indaga-se ainda se a parentalidade, promotora de equivalências na série de Uns esparsos, apagaria a diferença dos nomes e do desejo como impossível.

A esse respeito, Laurent (2005) evoca a contribuição freudiana, situada no decorrer de sua obra, sobre o lugar do pai como portador da interdição do incesto na economia psíquica. Em suas quatro versões do pai, Totem e tabu, Édipo, Hamlet, Moisés e o monoteísmo, o pai freudiano traz sua marca na angústia, na sociedade, nas religiões. A passagem do pai legislador para versões tirânicas e totalitárias assinala a transformação e a dispersão em versões do pai, perversões não inscritas nas fantasias mas distribuídas entre parceiros de sexos mutantes.

Lacan, relendo Freud, modifica e interroga o estatuto da família lembrando que pai e mãe são nomes que marcam uma particularidade do desejo de criança em todas as sociedades. Isso porque a ordem familiar, em vez de base da história, torna-se resíduo, produto da história. Lembra ainda que o pai como nome é vetor de uma encarnação da Lei sobre o desejo, portanto não é apenas o pai que interdita, mas o que reúne contradições entre interdição, desejo e gozo. Enquanto o pai freudiano abriga-se no universal entre ideal e utopia, o pai lacaniano inscreve-se pelo amor – se ele faz causa de desejo uma mulher objeto a, assim como seus filhos.

Os múltiplos usos dos sistemas de nomes encontrados no caso a caso da clínica levam em consideração um real, próprio à psicanálise, que opera sobre um resíduo irredutível, o impossível em jogo tanto na família quanto na sociedade e que comparece na experiência de uma análise. Esse real do sintoma será sempre reinterpretado, isto é, lido – leitura que marca percursos diversos da relação do sujeito com seu inconsciente.

Segundo Lacan, em outro texto, a psicanálise constata que a criança contemporânea revela o que é de estrutura para todos, pois é o sujeito que se encarrega de constituir sua família, quando institui uma distribuição dos nomes de pai e de mãe. Esse ato de nomeação não é sem consequência tanto para o lugar ocupado pela criança que faz uma família quanto para a realização de sua presença como objeto na fantasia materna.

 

Questões sobre o incesto

 

Com o título de “O inferno das famílias”, Alain Merlet (2007, p. 63) traz uma contribuição interessante sobre o tema do incesto. Inicialmente, o autor assinala uma diferença importante entre o semblante incestuoso aparelhado às fantasias e a passagem ao ato incestuoso como um real do gozo e seus efeitos, por vezes profundamente devastadores e destrutivos e sem retorno para um sujeito. Essa diferenciação parece importante na medida em que se verificam, na clínica, com alguma frequência, os semblantes incestuosos constitutivos de fantasias diversas, descortinando os paradoxos do desejo enquanto as passagens ao ato incestuoso ocorrem em situações mais graves em alguns casos de psicose, cujas consequências, em alguns casos, se mostram refratárias ao tratamento. O autor propõe a separação entre o dito e o dizer demarcando a incidência do trabalho clínico sobre as enunciações.

Dos casos clínicos examinados sobre os quais a experiência analítica incidiu, ele extrai três propostas muito pertinentes que constituem, por si próprias, vias de enfrentamento de um tabu que passou ao ato sem as consequências culturais de sua proibição contidas no mito freudiano, ou seja, incesto em sua versão século XXI, que tem o mérito de causar horror, surpresa, mas, por outro lado, de instigar novas premissas:

  1. Não se deve recuar diante do horror do incesto, sob o risco de sacralizá-lo, ignorar sua diversidade clínica e suas coordenadas.
  2. A incongruência de tal ato transpira sempre alguma coisa do objeto com o qual o ser falante tenta responder e se constituir como sintoma.
  3. A disciplina do dizer quando pode cumprir-se é, em si, um tratamento do gozo incestuoso e, portanto, uma realização da proibição do incesto.

A diversidade clínica apontada pelo ser falante mergulhado em um ato que saiu da esfera mítica para o campo do real desvela a inadequação do simbólico para operá-lo e mostra-se atingido por inibições diversas. O convite feito por Miller para outro modo de leitura e interpretação e a busca pelo auxílio da letra sem perder de vista a falta irremediável no campo do Outro parecem mais adequados para abordar o paradoxo de uma proibição no tempo de mutações extremas sem o apoio da relação de causalidade.

Dois paradoxos contemporâneos 

No capítulo dos paradoxos atuais verifica-se, do lado da ciência, a ação desenfreada promovida por um discurso que trabalha no campo da genética e da reprodução, inventando um saber em que todos são animais, combinando, sem cessar, óvulos, espermatozoides, doadores, provetas e úteros que, ao sabor dos caprichos, produzem humanos resultados de combinatórias incestuosas. Os integrantes do avesso das procriações aguardam sem críticas as crianças produtos desses experimentos e sem considerar o impossível situado na origem, o real dos laços familiares.

No campo da educação brasileira, colhe-se, no site Uol Educação[i], de 8 de junho deste ano, a notícia de que o MEC vai recolher das escolas públicas o livro infantil Enquanto o sono não vem, de José Mauro Brant. Um dos contos, “A triste história de Eredegalda”, narra a saga de um rei que queria se casar com a mais bonita das próprias filhas. Quando ela se nega ao casamento, é castigada e acaba morrendo de sede. Destinado a crianças de seis a oito anos, o livro faz parte do Programa de Alfabetização e, antes de ser enviado às escolas públicas, contou com a avaliação e a indicação de órgãos do Ministério da Educação.

A reportagem informa que o recolhimento do conto decorreu de críticas feitas pelos pais, mas, sem situar o teor dessas observações, acrescenta que, segundo a Secretaria de Educação Básica do MEC,

As crianças do ciclo de alfabetização, por serem leitores em formação e com vivências limitadas, ainda não adquiriram autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas com alta densidade, como é o caso da história em questão[ii].

Recoberto por nomes diversos, práticas científicas, literaturas, bullying, abusos, atos imotivados, compulsões e adições, o tabu do incesto comporta a advertência feita por Lacan nos seus trabalhos iniciais sobre o tratamento da psicose e retomado por Merlet no artigo citado anteriormente: não recuar diante do trabalho clínico instigado pelo horror de um ato que parece, na atualidade, situar-se entre loucura e debilidade.

 


Referências
BROUSSE, M. H. “Un néologisme d’actualité: la parentalité” In: La cause freudienne. Paris: Navarin, 2005, nº 60.117.
LACAN, J. “Os complexos familiares na formação do indivíduo” (1938) In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LAURENT, É. “Le Nom-du-Père entre réalisme e nominalisme”. In: La cause freudienne. Paris: Navarin, 2005, nº 60. 131.
MERLET, A. “L’enfer des familles” In: La cause freuienne. Paris: Navarin, 2007, nº 65, p. 63.
[i] UOL educação, disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/06/08/mec-diz-que-vai-recolher-livro-infantil-de-escolas-por-falar-de-incesto.htm, acesso em 8/6/2017.
[ii] Idem.

LUCIA MELLO
1. UOL educação, disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/06/08/mec-diz-que-vai-recolher-livro-infantil-de-escolas-por-falar-de-incesto.htm, acesso em 8/6/2017.