The Wolfpack: Entre Filmes E Lobos
GABRIEL SILVA MEDEIROS E ROBERTO CARLOS PIRES JÚNIOR
O cinema oferece hoje ocasião para reflexões sobre a clínica, já que, ao lado da psicanálise, a arte contemporânea é um discurso que põe em relevo as mudanças culturais hodiernas (BROUSSE, 2014). Nesse sentido, tomamos para apreciação The Wolfpack (2015): um documentário sobre a história da família Angulo, cujos sete irmãos cresceram dentro de um apartamento e foram isolados do mundo exterior. Saíram pouquíssimas vezes, e até que se contrapusessem à resolução delirante imposta por um pai onipotente, muito tempo se passou. Portanto, debruçamo-nos primeiro sobre a paternidade psicótica. Em seguida, investigamos como o cinema tornou a clausura possível por algum tempo e alicerçou também uma invenção através da qual Mukunda, um dos irmãos, pôde se enlaçar ao “mundo lá fora”.
A apresentação de Oscar, o pai, prenuncia a tônica paranoica intrínseca ao modo de organização dessa família, correlata à característica disposição de retorno da libido narcísica elucidada por Freud (1911/1996) sobre a psicose. Sujeito distante e silencioso, Oscar revela ter grande influência no arranjo familiar, cujo fundamento parece convergir absolutamente ao seu ser: “Meu poder está influenciando todos”. Em resposta às interferências manipuladoras da sociedade, protege a si e a sua família na delimitação panóptica de um espaço onde o seu olhar vigilante impera, detendo o controle e a guarda de sua comunidade. Compartilhando os valores hippies, o casal Oscar e Susanne (a mãe) aspiram à criação dos filhos na liberdade da natureza, purificados da babel civilizatória. Encontram na língua primeira, o sânscrito, os nomes de seus filhos. Ao mudarem-se para Nova York, onde teriam que somar recursos para tal projeto, veem-se cada vez mais sitiados na malha urbana. Ilhados num apartamento, o casal decide que a educação dos filhos Bhagavan, Govinda, Narayana, Mukunda, Krsna, Jagadisa e Visnu aconteceria nos limites desse microcosmo, incontaminado pela violência, drogas, filosofia ou religião. A foraclusão da norma simbólica (LACAN, 1959/1998) em Oscar se evidencia na radical separação da “sociedade”, seu Outro denso e não castrado. Fixando uma lei de ferro, ele tenta fazer barreira ao gozo ilimitado, estabelecendo um ponto cego ao real do olhar que goza dos corpos e os robotiza em favor dos interesses do sistema. Para a paternidade, Oscar se identifica ao deus Krishna, sustentando imaginariamente um lugar de Outro para a família. A condição subjetiva desse pai, sem a marca da divisão, parece transmitir o apagamento da diferença no clã dos meninos-lobo. Com cabelos longos e corpos esguios, eles se apresentam homogeneizados, atuando como um só corpo; uma alcateia. De objeto privilegiado do olhar do Outro, Oscar, em sua tribo, encontra-se no lugar imperativo do “Olho que tudo vê”, convergindo para si a pulsão escópica que circula na família.
Mukunda, por sua vez, afirma que o pai sempre encheu as cabeças dos filhos com filmes. Ademais, argumenta que “há um mundo lá fora”, e que devido ao fato de não o conhecerem, teve de criar, junto com a irmandade, um mundo próprio, servindo-se dos filmes para tal. Nessa cena, um dos outros irmãos chega a pontuar: “mas sempre soubemos a diferença entre a vida real e os filmes”. Segundo Metz (1980), o filme pode ser entendido como um espelho, pois tanto em um quanto em outro, qualquer coisa pode ser projetada. Inobstante, o primeiro diferencia-se do espelho primordial a partir do momento em que o espectador de cinema não tem, diante de si, sua imagem especular. Por já haver ultrapassado a primitiva indiferenciação entre eu e tu, o humano é capaz de reconhecer que existem objetos; que ele próprio é um sujeito e que há quem seja seu semelhante. Ele pode, portanto, acompanhar como observador o que se apresenta na tela. “No cinema, é sempre o outro que está no écran: eu estou lá para o ver” (METZ, 1980, p. 58).
Metz (1980) entende que há um saber do sujeito sem o qual nenhum filme seria possível. Vendo um filme, o indivíduo dá-se conta de que ele próprio percebe o imaginário; que seus órgãos sensoriais são fisicamente atingidos e que não está “fantasiando”. Simultaneamente, o material percebido-imaginário depõe-se no sujeito – estrutura de linguagem –, sendo aí agrupado e organizado numa continuidade. Há, por parte de quem vê o filme, uma identificação com o ato do perceber; um jogo dialético entre agente da percepção (sujeito) e percebido (tela), através do qual o imaginário do cinema, ao ser captado pelo espectador, acede ao simbólico, fazendo-se por isso uma atividade social e institucionalizada. O que, todavia, não eclipsa as possibilidades identificatórias, já que, na trilha de Brousse (2014), o império das imagens é uma trademark de nosso tempo, da qual o cinema certamente não está livre.
Portanto, na criação de um mundo, curiosa solução começa a se apresentar. Pulp Fiction e Reservoir Dogs são algumas das obras cujas falas Mukunda transcreve, ipsis litteris, para o papel. Ele explica que a vida enclausurada fica muito entediante, e que, assim, interpreta com seus irmãos as cenas copiadas. O figurino dos personagens, pistolas de papelão e uma sonoplastia improvisada se articulam em encenações fiéis aos mínimos detalhes. Parece estar em jogo um modo de gozo coletivizado. Mukunda fala que as encenações têm algo de mágico, e fazem com que ele se sinta vivo. Afirma poder, com isso, ser os personagens que encarna. Lacan (1979/2003) formulará ao final de seu ensino que ser falante não é, mas tem e fala com seu corpo; tem um evento corporal, isto é, o sintoma. A gente o tem, e “Ter é poder fazer alguma coisa com” (LACAN, 1979/2003, p. 562). Mukunda e os lobos põem seus corpos em cena. Interpretam, sorriem, matam e morrem. Porque no parecer-real sobre o qual se erige um mundo-dentro-do-apartamento, isso se pode fazer. Para Lacan, o imaginário é o corpo, que se introduz justamente como imagem (MILLER, 2015). Aqui, tal registro ganha tonalidade sobretudo na afinidade dos irmãos com os filmes de Tarantino, que, além de ofertarem muitos personagens que a irmandade pode ser e encenar, sempre retratam a selvageria da civilização.
Ademais, o espectador notará que mesmo antes de The Wolfpack (2015), a câmera já não era estranha aos Angulo. Veem-se as filmagens caseiras da família em que as crianças se assemelham a autômatos, corpos inertes à deriva dos caprichos de seu diretor todo-poderoso. O close em suas faces, posicionadas rentes ao rosto do pai, parece figurar o seu duplo especular. A câmera e a televisão são os objetos de fascínio nessa família; recursos que permitem a projeção e a captura da imagem e o emparelhamento do gozo escópico em curto-circuito. Para Metz (1980), se no cinema, o espectador identifica-se consigo mesmo enquanto olhar, pura percepção, ele também se identifica com a câmera, que, antes dele, olhou aquilo que ele vê agora. Para o autor, nós mantemos verdadeiras relações de objeto com o filme e, em Lacan (1971/2009), é o objeto a a preencher – enquanto olhar, seio, voz e excrementos – o local do mais-de-gozar. Mas através dessas filmagens, os membros da família não veem senão a si mesmos, aproximando-se o filme mais do imaginário que do simbólico. Sobretudo porque o olhar dos irmãos é controlado pelo pai onipotente, quem, por sua vez, se refugia do olhar do Outro. O clã só assiste aos filmes e ao outro lado da janela. Tamanho é o controle, que Mukunda lembra-se de seus quinze anos, quando o pai detinha as chaves da casa e, mais ainda, ditava os cômodos em que o garoto poderia ou não estar. Os irmãos chegam a se descrever como trabalhadores de uma terra da qual o pai é o senhor; veem-se prisioneiros de seu delírio tribal. Segundo Mukunda, “é difícil não poder querer sair dessa caixa”.
As imposições excessivas atingiam o insuportável. Certo dia, pela manhã, ainda aos 15 anos, Mukunda se levantou, vestiu-se de preto, respirou fundo, colocou uma máscara e partiu para a rua. Afirma que sentiu uma urgência de sair e não ser reconhecido por ninguém – nem mesmo Oscar. Algo aí se assemelha a uma cena na qual o jovem, trajando uma bela armadura do Batman, confeccionada por ele próprio com caixas de cereal e tapete de yoga, argumenta que interpretar o herói é muito pessoal, uma grande responsabilidade. Após haver assistido a Batman: The Dark Knight, Mukunda fala que passou a acreditar que algo era possível de acontecer. A experiência o fez sentir como se estivesse num outro mundo, o qual ele fez de tudo para tornar realidade, podendo, assim, escapar de seu próprio. Sendo um super-herói de identidade secreta, o garoto consegue, à maneira de sua fuga e num só tempo, vigiar e permanecer invisível. Como justiceiro e combatente do crime, ele parece encarnar em si uma lei que faz anteparo aos excessos do pai.
“Entrar na mente” de Bruce Wayne abre caminho, no sentido de que agora Mukunda pode se servir de um olhar o qual, até o momento, foi tão controlado. Emocionado, descreve sua evasão do apartamento e afirma que, após ela, confrontou Oscar lhe dizendo que não mais seguiria suas ordens: “me livrei das amarras e me libertei”. Talvez um passo a mais em direção à cidade; ao salto do homem-morcego que voará livre pela noite de Gotham City.
A partir daí a alcateia inicia uma gradual ruptura do isolamento. O documentário mostra os rapazes na praia, no parque e no cinema. Surpreendentemente, Mukunda chega a contar como procurou e conseguiu um emprego. Mais ainda, já na conclusão de The Wolfpack (2015), diz estar trabalhando num filme próprio, a ser mostrado nos créditos finais. É a história de um homem que, de sua poltrona, assiste aos sentimentos que passam do outro lado da janela. Cada afeto é interpretado por um irmão: raiva, tristeza e felicidade. O jovem descreve sua produção ressaltando que “tudo era, praticamente, medo. O medo foi colocado. Eu ainda tenho medo”. Mas ainda que o tenha, Mukunda coloca. Eis a novidade: ele introduz algo de seu. Se num primeiro tempo os filmes trazidos pelo pai eram fielmente reproduzidos, agora se inaugura um lugar de criação, em que Mukunda é agente. Ele coloca numa obra sua própria história: a de um menino que, do apartamento, apenas via passar em sua frente o mundo-lá-fora. Essa solução deslinda extraordinária metalinguagem: há um filme sobre a vida dos Angulo, o documentário, que, por sua vez, desfecha com outro filme: o dos sentimentos na tela. E isso passa pelo Outro social, porque circula na cultura introduzindo os Irmãos Lobo (2015) na instituição-cinema. Tal fenômeno convida-nos a pôr em cena a noção de escabelo. Para Miller (2015), essa palavra, que é do século XXI, tempo do falasser, pode ser entendida como um pedestal sobre o qual o ser falante se ergue para elevar a si mesmo à dignidade da Coisa. “O que chamamos de cultura não é nada além da reserva dos escabelos na qual se vai buscar com o que esticar o colarinho e bancar o glorioso” (MILLER, 2015, p.129). Traçando um paralelo entre escabelo e sinthoma, Miller (2015) situará o primeiro no nível do gozo da fala, que inclui o sentido e é sustentáculo dos ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo. O segundo já diz respeito ao corpo, relacionado a um gozo que, noutra via, exclui o sentido. O que deixa Lacan (1979/2003) perplexo em Joyce é que este, além de haver gozado com Finnegan’s Wake, o publicou, deixando toda a literatura com o flanco à mostra. É a façanha de Joyce que fez convergir sintoma e escabelo; fez do próprio sintoma, fora de sentido e ininteligível, o escabelo de sua arte (MILLER, 2015). Joyce se consuma como sintoma; é sintomatologia; um fabricante de escabelo que fez arte com o gozo opaco do sintoma (MILLER, 2015), e o fez sem recorrer à experiência de uma análise (LACAN, 1979/2003). “[…] a ironia do ininteligível é o escabelo de que alguém se mostra mestre” (LACAN, 1979/2003, p. 566).
The Wolfpack (2015) é riquíssimo nesse aspecto. De um lado, o “primeiríssimo” Lacan (1938/2003) argumentará que a conservação e progresso humanos, por serem indissociáveis da comunicação, delimitam uma obra coletiva que constitui a própria cultura e “introduz uma nova dimensão na realidade social e na vida psíquica. Essa dimensão especifica a família humana, bem como, aliás, todos os fenômenos sociais no homem” (LACAN, 1938/2003, p. 29). De outro, temos os Angulo, submetidos a esse sistema paranoico que os isola e prefigura uma horda de iguais. Nesse setting, está o percurso de Mukunda: prisioneiro de um capricho delirante, ele não deixa de sentir medo. Mas para sair de sua caixa, deve colocar isso em algum lugar. Talvez esteja aí sua sublimação; seu savoir-faire com esse gozo opaco, sem sentido, através do qual o jovem lobo faz algum enlace com o “mundo-lá-fora” para então deixar na cultura seu escabelo; sua marca radicalmente singular. Afinal, sabemos de Lacan (1949/1998) que não só a análise pode levar o sujeito ao limite extático do tu és isto, em que se revela para ele a cifra de seu destino mortal; momento em que começa a verdadeira viagem.