Editorial Almanaque nº20

KÁTIA MARIÁS

Voilà! Chegamos à vigésima edição do Almanaque! Aqui, você, leitor, poderá realizar um travelling pelo tema do nosso XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “A queda do falocentrismo: consequências para a prática analítica”, que ocorrerá no Rio de Janeiro, de 23 a 25 de novembro. Selecionamos textos importantes e acreditamos que muito auxiliarão e provocarão seu mergulho nas incidências clínicas do declínio dos semblantes, que não oferecem mais a garantia e um arranjo com o gozo regrado pelo falo.

 

Em Trilhamentos, Jésus Santiago e Camilo Ramirez abordam exuberantemente que o sintagma contemporâneo “declínio da virilidade” não é privilégio da civilização atual. Jésus Santiago, em “Adeus ao pai morto ou clínica da pai-versão”, afirma que o significante-mestre da modernidade, o culto ao ‘Um-inteiramente-só’, contrapõe-se ao ideal feminista de ‘igualdade entre os sexos’ e adverte que o psicanalista surdo à reivindicação feminista da igualdade entre os sexos permanece nas sombras, escutando o inconsciente pela orelha do amor ao pai. Ramirez, em “Vacilações salutares: travelling pela virilidade no século XX”, apresenta retratos de homens no cinema que revelam o quanto a virilidade depende de uma construção fantasmática, na qual o que se destaca não é a elevação fálica, mas certa separação do objeto que vem tamponar a castração. Demonstra, ainda, que cada grande transformação na história mundial produziu um sentimento de desperdício viril ao mesmo tempo que certo triunfo da feminização.

 

Mônica Campos nos presenteia com a resenha “O saber absoluto e o declínio do viril”, em que J.-A. Miller, a propósito de “Buenos dias, sabiduría”, parte de um problema tratado por Kojève ao saber o que este chama de “verdadeiro mundo novo”. Kojève extrai, das novelas de Françoise Sagan, as consequências do saber absoluto na relação sexual. A época do saber absoluto é, portanto, correlata do declínio do viril, ou, como ele diz, “encontramo-nos em um mundo sem homens”. A tese defendida por Miller é que o declínio e o desaparecimento do viril não são possíveis de serem pensados sem o declínio do pai.

 

Você encontrará também uma bibliografia sobre o tema da queda do falocentrismo.

 

Com o rigor e a generosidade que lhe são peculiares, Antônio Teixeira responde, em Entrevista, à duas perguntas cruciais sobre a querela Lacan e Derrida presentes no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, desvelando a verdade precária da ordem fálica e o apagamento de toda referência ao ideal.

 

Na rubrica Incursões, temos seis textos: três deles de colegas de Minas e outros três produzidos por colegas de outros continentes. Rose-Paule Vinciguerra, em “O avesso da ficção masculina”, afirma que, em relação ao desejo, não é possível concluir tão rapidamente que os homens representam o sexo forte. Na verdade, com uma mulher, um homem não sabe o que fazer. Em “Paradoxal virilidade”, Fabian Fajnwaks constata que, para representar o macho, nossa civilização do empuxo-ao-gozo perdeu tudo no que diz respeito a qualquer semblante, particularmente ao semblante fálico. O verdadeiro ganho de uma análise e a subversão que ela introduz em relação ao triunfo do vazio contemporâneo no que diz respeito aos semblantes é que ela permite situar o real em jogo na fantasia do falasser, autorizando-o a se desidentificar das posições que o impede de aceder a uma posição desejante. Ainda em Incursões, temos alguns textos que dialogam entre si. Philippe Lacadée, em “A violência no jovem: sintoma ou não?”, retoma a intervenção de Jacques-Alain Miller na Jornada do Instituto da Criança para diferenciar a violência do ódio: o amor, como o ódio, são modos de expressão afetiva de Eros. O ódio está do lado de Eros e, portanto, trata-se de um laço social. A violência, por sua vez, está do lado de Thanatos, do lado da morte. Adverte que levar em consideração apenas o comportamento violento pode confirmar e produzir ainda mais violência. Cristiane de Freitas Cunha, seguindo a mesma via que Lacadée no que tange à violência entre os jovens, interroga, em “A radicalização da recusa frente à inexistência da relação sexual”, o radicalismo de algumas das formas contemporâneas da recusa como modalidade de defesa do sujeito diante da inexistência da relação sexual. Ana Maria Lopes parte da polêmica série 13 Reasons Wwhy para diferenciar ‘passagem ao ato’ de acting out para abordar o suicídio na adolescência como paradigma na clínica do ato. Nessa série, a personagem endereça fitas cassetes gravadas por ela mesma, descrevendo os motivos que a levaram ao suicídio. Cada um dos lados dessas fitas revela tentativas de soluções precárias, que se inscrevem na perspectiva especular e dão consistência à erotomania mortífera que se concluirá no ato suicida. Aline Aguiar Mendes aborda, em “O valor de uma aposta: Tecendo a Rede nas instituições de saúde”, a função da conversação para a construção do caso clínico com equipes de saúde mental no campo da infância e da adolescência. A aposta com as equipes é que se tornem aprendizes, introduzindo a dimensão da causalidade, evitando, assim, práticas de controle e segregatórias.

 

Na rubrica Encontros, os textos de Bernadete de Carvalho e Admardo Gomes Jr., frutos de um seminário clínico no Núcleo de Psicanálise e Direito, discutem subjetividade e trabalho, a partir de fragmentos de casos de psicose. Bernadete, em “O mundo do trabalho e subjetividade nas psicoses: identificações, estabilizações e desencadeamentos”, chama a atenção para o fato de que, depois de tanto afirmar a importância do trabalho como forma de inscrição dos sujeitos no Outro e como um campo de soluções para as inclinações do gozo, ele também é um contexto fecundo para as interpretações delirantes na paranoia. Admardo, em “Conter e contar a vida secreta das palavras”, comenta o filme A vida secreta das palavras, em que vemos as elações estabelecidas pelos sujeitos com o trabalho e as consequências para suas vidas.

 

Em De uma nova geração, temos “Entre a cruz e a espada: culpa e gozo em um caso de neurose obsessiva”, de Rodrigo Almeida. O autor retoma o tema do masoquismo e as mudanças que Freud introduz ao longo da sua obra, evidenciando sua dimensão econômica e a presença da pulsão de morte na pulsão de vida. Rodrigo Almeida aponta a função que a análise desempenhou em um caso em que o gozo mortífero tomava a cena da vida do sujeito e como foi possível conter algo da ordem da sua atuação.

 

Vale uma parada sobre os textos que, cuidadosamente, escolhemos para nos orientar durante este semestre e, assim, nos prepararmos para o grande Encontro de novembro, no Rio.

 

Com a palavra, nossa Diretora de Publicação, Ludmilla Féres Faria:

 

Este Boletim, de número 20, é o ultimo da diretoria composta por Ana Lydia Santiago, como diretora-geral, e Maria José Gontijo Salum, diretora-secretária. Agradecemos às duas, bem como às colegas Lilany Pacheco, diretora de Seção Clínica, e Graciela Bessa, diretora de ensino, pela oportunidade, confiança e trabalho profícuo durante o biênio 2016-2018. Aproveitamos para renovar, em nome da diretoria-geral e de publicação, nossos agradecimentos à equipe de publicação, que se dedicou, durante este biênio, à construção dos espaços Almanaque, Minas com Lacan e Agenda, além das páginas nas redes sociais. Foi um prazer trabalhar com vocês e gostaria de registrar aqui o nome de cada um: Bruna Albuquerque, Cristina Vidigal, Ernesto Alzalone, Jorge Mourão. Letícia Soares, Lisley Braun, Kátia Mariás, Márcia de Souza Mezêncio, Márcia Bandeira, Maria das Graças Sena, Michelle Sena, Mônica Campos , Renato Sariedinne e Virginia Carvalho.




Entre A Cruz E A Espada: Culpa E Gozo Em Um Caso De Neurose Obsessiva

RODRIGO ALMEIDA

RODRIGO ALMEIDA- GUSTAV KLIMT

O tema do masoquismo aparece na obra de Freud em sua elaboração sobre as perversões, na fundamentação da criança perverso-polimorfa e, posteriormente, em relação aos sintomas neuróticos, em que sadismo e masoquismo só devem ser considerados patologias em casos extremos.

 

Na elaboração da teoria das pulsões, Freud afirma que as pulsões de autoconservação são também pulsões sexuais. Em “As pulsões e seus destinos” (1914), aponta os quatro destinos da pulsão: reversão a seu oposto, retorno ao próprio eu, recalcamento e sublimação. Detendo-se aos dois primeiros, no retorno ao próprio eu, Freud propõe que o sadismo é anterior ao masoquismo e que o masoquismo é um sadismo contra a própria pessoa.

 

“A observação analítica realmente não nos deixa duvidar de que o masoquista partilha da fruição do assalto a que é submetido e de que o exibicionista partilha da fruição de sua exibição. (…) não podemos deixar de observar, contudo, que nesses exemplos o retorno em direção ao eu do indivíduo e a transformação da atividade em passividade convergem ou coincidem.” (FREUD, 1914, p. 132)

 

Notamos, nesse momento de sua construção teórica, que o masoquismo encontra satisfação sexual no sadismo. A mudança da atividade para a passividade faz parte do mecanismo pelo qual a pulsão busca a satisfação.

 

No texto “Uma criança é espancada” (1919), Freud busca esclarecer sobre o masoquismo e faz uma leitura das perversões, argumentando que as fantasias sádicas ou masoquistas podem estar presentes nas neuroses, em que algo de um traço perverso permaneceu. A primeira fase, representada pela frase “meu pai está batendo na criança que eu odeio”, acontece em um período muito precoce, em que o sadismo ou o masoquismo não se define muito bem, visto que aquele que cria a fantasia não é o mesmo que espanca; a segunda, “estou sendo espancada pelo meu pai”, é importante porque mostra um caráter masoquista, em que o que é colocado em evidência são os aspectos psíquicos, e não a dor. Freud nos orienta que o agente de mudança da fantasia é a culpa, esta que aparece com a interdição do incesto. Assim podemos aferir que algo do amor que foi interditado e da culpa estão presentes no masoquismo.

 

Na terceira, “O meu pai está batendo nas crianças, ele só ama a mim”, apesar de sádica, Freud orienta que nessa fantasia a satisfação é masoquista, pois a outra criança nada mais é que a própria criança.

 

Uma nova mudança se dá em 1920, em “Além do princípio do prazer”. Atento ao que percebe como compulsão, a repetição em sua clínica, Freud nota que o que está em jogo não é uma busca pelo prazer, mas algo que se satisfazia ali no ato de repetir uma experiência desprazerosa para o sujeito. Com o dualismo pulsional, pulsão de vida e pulsão de morte, Freud propõe que sadismo e masoquismo estão presentes em todo sujeito.

 

Porém a grande mudança em relação ao masoquismo se confirma em sua elaboração de 1924, “O problema econômico do masoquismo”, em que no par de oposição prazer-dor há um ponto de vista econômico em relação ao princípio do prazer e à ameaça que o masoquismo representa para a vida psíquica. O masoquismo, sempre “enigmático”, aparece agora no que guarda relação com os componentes libidinais em cada indivíduo.

 

Nesse texto, o masoquismo não é mais oriundo de um sadismo. Freud reconhece e nomeia três formas de masoquismo: o primário, o feminino e o moral. Este último permite a Freud avançar em relação aos problemas ligados ao sentimento de culpa. “O masoquismo apresenta-se a nossa observação sob três formas: como condição imposta a excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento” (1924, p. 179).

 

Essa dimensão econômica, colocada aqui de forma mais evidente, nos abre os olhos para a pulsão de morte que, de forma silenciosa, se apresenta nos sintomas do sujeito. O masoquismo é o sinal da presença da pulsão de morte na pulsão de vida.

 

No masoquismo moral, o que vai importar é o sofrimento, já que o verdadeiro masoquista sempre oferece a face, onde quer que a oportunidade se apresente.

 

É o que se pode observar nos fragmentos de um caso clínico que trazemos. João relata situações nas quais o outro sempre se aproveita da sua boa intenção e da sua disponibilidade. Apesar de saber que ao final ele será prejudicado, não consegue negar ao outro que lhe pede. O mal-estar que dizer não ao outro produz em João é que faz com que o sentimento de culpa apareça. Podemos perceber a satisfação que a culpa traz a este sujeito, que na sua estratégia para lidar com o outro abraça o seu sintoma. O que importa é manter o sofrimento.

 

“A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o bastião do indivíduo no lucro que aufere da doença (…) o sofrimento acarretado pelas neuroses é exatamente o fator que as torna valiosas para a tendência masoquista.” (FREUD, 1924, p. 183)

 

Recolhemos outros pontos na fala deste sujeito, que colocam mais luz sobre o seu modo de gozo. O fato de sempre “se colocar em risco”, como deixar o carro em lugar que pode ser roubado ou arriscar-se contratando garotos de programa e indo com eles para lugares desertos, tendo sido por duas vezes espancado e roubado, atesta para o seu modo de masoquismo. É como se apenas ser roubado ou espancado fosse pouco para este sujeito, que está sempre à espreita para que algo pior lhe aconteça. A dimensão mortífera e silenciosa da pulsão aparece como que orientando a sua vida.

 

O outro, que aparece aqui como um abusador, e o sujeito que não sabe sobre o seu próprio gozo nos colocam diante do seu caráter masoquista. Vemos, assim, a prevalência do que Freud nomeia de verdadeiro masoquista, que está sempre pronto para dizer ao outro como abusar dele, e alcançar a punição. O masoquista é quem diz como quer ser espancado, tem a posição ativa mascarada pela passividade, pois é quem procura por aquele que vai lhe infligir a tortura; tortura essa que vá de encontro ao ponto fantasmático do seu sintoma.

 

Lacan (1956), ao retomar Freud em “Uma criança é espancada”, nos aponta a questão da satisfação pulsional. No primeiro momento existe o ódio ao rival espancado pelo pai, o segundo momento é quando, através da fantasia masoquista primordial, o sujeito dá sua entrada no simbólico, onde se coloca na dialética significante. É no terceiro momento que Lacan propõe uma reformulação: bate-se numa criança, acrescentando o índice de indeterminação do sujeito, em que a função paterna surge de maneira vaga. A produção fantasística faz com que qualquer um possa bater, não só o pai. A posição do sujeito será por ele reeditada nos seus sintomas e na sua repetição. Podemos pensar este como o momento em que o sujeito fabrica a sua fantasia.

 

A atualização deste ponto fantasmático é o lugar de onde o sujeito constrói sua relação com o outro. Acreditamos ser importante abordar o sujeito obsessivo e sua relação com o Outro:

 

“Mas aquele que importa é o Outro diante de quem tudo isso se passa. É esse que é preciso preservar a qualquer preço, o lugar onde se registra a façanha, onde se inscreve sua história. (…) O que o obsessivo quer manter acima de tudo, sem dar a impressão disso, com um jeito de quem almeja outra coisa é esse Outro onde as coisas se articulam em termos de significante.” (LACAN, p. 431)

 

Ainda no caso de João, um indicativo dessa importância com o Outro aparece no seu relacionamento amoroso, em que o dinheiro não pode deixar de se apresentar nada pode faltar ao Outro. Diz ele: “quando o dinheiro acaba, o amor voa pela janela”. Com o relacionamento a que ele sempre se refere como “abusivo”, podemos articular várias questões: sua posição de gozo, sua forma de não suportar a falta do Outro e a dimensão da culpa.

 

Durante o seu percurso de análise, João pergunta por que se coloca sempre em risco, por que se deixa abusar. “Deixa?” é a forma com que intervenho na tentativa de implicar o sujeito em seu modo de gozo. Mais adiante, ele passa a falar de situações pontuais no trato com o outro em que se destaca sua própria demanda de ser abusado. Conclui, destes relatos, que ele mesmo busca situações sem saída, como se tivesse entre a cruz e a espada.

 

João se sente culpado de negar o que o outro lhe pede. A necessidade de punição aparece ao se colocar em situações de risco e o sujeito se vê sem saída, a culpa cumpre seu papel, fazendo o desejo ficar subsumido, e a dimensão do gozo aparece no que ela guarda de mais mortífero para este sujeito. A punição está sempre no seu horizonte.

 

Podemos pensar aqui no que concerne à culpa e ao supereu na neurose obsessiva. O supereu desempenha o papel de figura feroz.

 

Como nos orienta Freud em “O mal-estar na civilização”:

 

“O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo deste agente crítico, a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela da pulsão voltada para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego”. (FREUD, 1930, p. 139)

 

Portanto, vemos que a agressividade que é percebida como tensão pelo ego retorna ao próprio ego em razão do supereu. O eu, ao tornar-se masoquista, cria uma relação erótica com o supereu. Esse ponto se apresenta pelo sentimento de culpa, o eu vai usar da culpabilidade para se proteger.

 

Neste fragmento clínico, as relações do obsessivo com a culpa e o gozo estão presentes; a culpa se apresenta de forma silenciosa, advinda dessa satisfação masoquista do eu em que o sujeito está sempre à espera de punição.

 

Outro ponto importante é a relação do obsessivo e seu desejo, no que diz respeito ao Outro, à demanda e ao gozo. Em O seminário, livro 5, Lacan nos fala sobre o obsessivo e seu desejo, denegado pelo sujeito. Para o teórico, essa denegação vai surgir como a expressão do sentimento de culpa. Esta se inscreve, no que concerne ao desejo e à demanda. Como percebemos no obsessivo, a culpa seria o sinal do desejo. Na relação com a demanda que o mata, nada pode ser desejado pelo obsessivo sem que esteja recoberto pela culpa. “O obsessivo resolve a questão do esvaecimento de seu desejo fazendo dele um desejo proibido. Faz com que ele seja sustentado pelo Outro, precisamente pela proibição do Outro”. (LACAN, 1957-8, p. 427).

 

Preservar o Outro é a estratégia pela qual o obsessivo consegue tornar válido algo do seu desejo. Portanto, o mecanismo de defesa do obsessivo está posto em relação ao seu desejo.

 

João passa a se antecipar antes de ser capturado pelo seu gozo de arriscar-se. Um saber sobre o seu sintoma começa a ser construído. Começa a se perguntar se não está se colocando em risco e se a resposta é sim, tenta fazer diferente. Diante disso, lhe observo que ele está trazendo uma novidade. João se posiciona como aquele que sabe algo sobre a sua repetição e a satisfação presente no seu sintoma. Então ele questiona se realmente é preciso oferecer tudo ao outro, quando intervenho com um corte e a pergunta: “o que é possível oferecer ao outro?”

 

Mais adiante admite que se não tivesse buscado uma análise, poderia já ter morrido. Vemos aqui algo desse gozo mortífero, com que o sujeito, nesta frase direcionada para a sua análise, demonstra que foi possível conter algo da ordem da sua atuação.

 

Nosso tema não se esgota neste artigo. Propomos, para além deste trabalho, uma articulação em torno da questão da defesa no fazer da clínica. Para pensar na direção da cura na neurose obsessiva, é preciso levar em conta os pontos da defesa nas estratégias do sujeito, em que reconhecer a inconsistência do outro não traga algo de terrível e que não necessite mais ser um trabalhador incansável do supereu.

 


Referências bibliográficas
FREUD, S. (1915/2006). “Os instintos e suas vicissitudes”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV, p. 117-144.
_____. (1919/2006) “Uma criança é espancada”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, p. 193-218.
_____. (1920/2006). “Além do princípio do prazer”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro: Imago, vol. XVII, p. 13-75.
_____. (1924/2006). “O problema econômico do masoquismo” In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p. 175-188.
_____. (1930/2006). “O mal-estar na civilização”. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, p. 67-148.
LACAN, J. (1956-57). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
_____. (1957-58). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.



Conter E Contar A Vida Secreta Das Palavras

ADMARDO BONIFÁCIO GOMES JÚNIOR

 

 

ADMARDO – FILME FULL-THE-SECRET-LIFE-OF-WORDS

A vida secreta das palavras, filme dirigido por Isabel Coixet, conta a história de Hanna (Sarah Polley), uma mulher de 30 anos, parcialmente surda, solitária, silenciosa e fechada em seu mundo. Empregada exemplar em uma fábrica têxtil, um dia, no fim de uma jornada de trabalho, é advertida por um colega, que a faz ligar seu aparelho de surdez, pois está sendo chamada, pelo serviço de alto falante, para comparecer à diretoria. Lá, é convencida pelo diretor a tirar um mês de férias. Há pressão do sindicato e dos colegas contra seu padrão excessivamente adequado à produção. Seguindo a sugestão de seu chefe, ela segue de férias a um pequeno povoado costeiro. Antes de sua partida, vemos Hanna em casa, comendo os mesmos nuggets, arroz e meia maçã de sua refeição diária. Na bagagem para a viagem, ela coloca vários sabonetes, todos iguais, como elementos que compõem uma rígida rotina.

 

No local das férias, ela escuta, da conversa de um desconhecido ao telefone, que estão precisando de uma enfermeira para cuidar de um trabalhador acidentado em uma plataforma petrolífera em pleno alto mar, longe da civilização. Decidida do que fazer com o vazio do tempo das férias, ela se oferece para o trabalho.

 

Hanna se expressa pouco. Seu rosto tem sempre a mesma expressão séria, entristecida e concentrada. As poucas palavras que fala denotam uma objetividade quase constrangedora. Aos poucos, descobrimos que Hanna é enfermeira, trabalhou com pacientes queimados e é estrangeira. Mas há muito mais a descobrir.

 

Na plataforma de petróleo desativada devido a um recente acidente, ela encontra seu paciente, Josef (Tim Robbins), um homem que sofreu uma série de queimaduras que o deixaram temporariamente cego e bastante comprometido para uma remoção até um hospital. No primeiro contato entre os dois, Josef, cego, procura, com as palavras, se aproximar de Hanna e criar alguma imagem da mulher que lhe cuida, não sem tentar estabelecer com ela alguma intimidade. Os contatos entre os dois personagens são estabelecidos entre os cuidados medicinais prestados por Hanna e as constantes questões que Josef lhe faz sobre sua vida e seu cotidiano. Ela se restringe às obrigações de enfermeira, sem respostas, sem intimidade, sem nem mesmo dizer seu nome, que Josef tentara adivinhar e acaba por nomeá-la Cora: o nome de uma freira que cuidou de um jovem e que, diante da morte dele, descobre que o amava.

 

Um belo e delicado encontro começa a se estabelecer entre esses dois personagens, no qual a cegueira temporária de Josef, que lhe impõe a necessidade de recriar as imagens de seu mundo com as palavras, se depara com mundo particular de Hanna, um meio mantido sob controle, como que ao alcance do botão de seu aparelho de surdez. Nesse encontro, entre a audição – agora necessária para Hanna – e a fala como único recurso para Josef, imobilizado e cego, as palavras ganham uma inigualável força vital e desvelam segredos. Aos poucos, as frases engraçadas, brincadeiras e piadas que Josef cria no contato com Hanna vão fazendo sua expressão facial mudar, pequenos sorrisos se esboçam e algumas confissões tomam o lugar do silêncio e da rígida defesa.

 

Os então habitantes da plataforma de petróleo são Hanna e Josef, um ganso que se chama Lisa e mais seis homens: Simon, Abdul, Dimitri, Martin, Scott e Liam. Vamos, aos poucos, conhecendo a singular história de cada um desses portadores da vida secreta das palavras. Personagens cujos trabalhos lhes preservam a solidão como forma de viver em paz. Simon é um exímio cozinheiro e diz que, para suportar o tédio do local e não ficar louco, cozinha pratos de diferentes nacionalidades, ao som das músicas de cada país a ser representado na culinária. Martin é oceanógrafo e gosta de jogar basquete sozinho. Seu trabalho é medir, pelas ondas que se chocam contra a plataforma todos os dias, a força do mar. Scott e Liam cuidam da casa de máquinas, têm, cada um, suas famílias e filhos e vivem ali, na plataforma, uma relação amorosa. Abdul trata da limpeza. Delicadamente, Hanna se integra àqueles habitantes exatamente por se sentir confortável em meio a seus inabituais, mas familiares silêncios e palavras, repletos de solidão e lembranças.

 

Dimitri é o encarregado geral e é quem um dia relata, a pedido de Hanna, o acidente que feriu Josef e matou o melhor amigo deste. As palavras de Dimitri sobre a morte do amigo de Josef são:

 

Esse homem queria se matar. Se lançou às chamas. Josef tentou salvá-lo, mas… tudo aconteceu muito rápido. Todos vimos ele se jogando às chamas. Não dissemos à companhia tudo o que se passou. Deixamos que pensassem que foi um acidente. Esse homem deixou uma mulher e dois filhos. Por que dizer a verdade? Deixamos que pensassem que morreu acidentalmente. Isso deixaria dinheiro para a família. E… no fundo… tudo é um acidente.

 

O filme segue. Há muito mais para contar, mas pensemos sobre a função subjetiva do trabalho. O que A vida secreta das palavras nos permite desvelar dessa função? Parece-nos que, se pensarmos o trabalho como “uso de si” (SCHWARTZ, 2000), ele é inteiramente uma reflexão sobre muita coisa do que se passa aí. É um filme em que fica claro que as escolhas possíveis que cada pessoa faz ali, no campo do trabalho, diz muito sobre a dimensão subjetiva de cada uma delas. A diretora Isabel Coixet soube trazer para a história toda a dramática do uso que cada personagem faz ali, de si, na relação com o trabalho. No filme, trabalho e vida não se separam, eles estão na mesma plataforma.

 

Depois que descobrimos alguns dos segredos das palavras que contam a história de Hanna, entendemos melhor o uso que a personagem parece fazer de si na fábrica têxtil. O trabalho ali é o da contenção, na repetição de uma rotina sem muita invenção. A mesma comida todos os dias, o mesmo trabalho repetitivo, quatro anos sem aparente interrupção. Tudo isso indica cumprir uma função. Seu modo sintomático de viver busca amarrar registros por demais disjuntos pelos traumas vividos.

 

A vida secreta das palavras de Hanna na fábrica segue seu rumo, organizado de forma a conter. Manter dentro de si. Sob certo uso. Sem risco de transbordar e inundar a vida de lágrimas. Mas eis que algo interrompe sua surdez também controlada. O eventual, a contingência, o inesperado, o acidental: as férias forçadas que a conduzem ao litoral. No ônibus, a caminho das férias, podemos ver Hanna bordando um pedaço de pano. Nesse novo lugar, o trabalho de bordado é dispensado numa lixeira. Prenúncio de um novo uso de si? Do uso de conter para o uso de contar a vida secreta das palavras? ”Sou enfermeira”, diz Hanna, ao seu vizinho de mesa cuja conversa ela ouvia. É surpreendente a forma decidida com que Hanna se apresenta. Naquele momento, as palavras servem para contar algo de muito importante da sua história. Sou enfermeira. Um significante que a nomeia. Uma palavra que a identifica, e cujo emprego acaba por expô-la ao trabalho de contar sua vida.

 

O trabalho de enfermeira reenvia Hanna a sua vida no ponto em que ela foi paralisada. Onde ela brutalmente foi obrigada a se conter. Uma formação interrompida pela guerra. Uma escolha impedida. Um projeto de uso de si violentamente abortado. Retomar essa atividade, esse uso de seu corpo na função de cuidar do outro, parece ir, aos poucos, permitindo fazer conviver experiências incomunicáveis: o antes e o depois das atrocidades vividas, as marcas indeléveis das torturas sofridas na guerra. Nesse trabalho, um novo uso do corpo, que lhe exige reordenar, com as palavras, as novas experiências do encontro com alguém que lhe demanda cuidado e afeto. Um encontro no qual o amor e a confiança permitem que ela possa dizer, afinal, algo de seu trabalho e de si. Numa manhã, Hanna, ao limpar o corpo de Josef, relata:

 

Quando estudava em Dubrovnik, sempre temia o momento de limpar os pacientes. Sentia-me desconfortável… pensando que eles estavam com vergonha. Mas percebi que as pessoas gostam de estar limpas. Não importa como você os limpa… ou quem limpa, eles gostam de estar nas suas mãos. Gostam de te confiar o seu corpo. Como se dissessem: É apenas o meu corpo. Só um corpo. Você nunca vai saber o que penso realmente, quem sou.

 

Essa é a frase que desencadeia a sequência de palavras que descortinam algumas das doses do horror guardadas em segredo pela personagem. Na cena, Hanna diz dos cortes e cicatrizes que levaram à morte aquela que vivia com ela e que era sua melhor amiga. E ela desnuda seu corpo para que seu paciente, cego, possa tocar e sentir as cicatrizes que o marcam. A última palavra dita nessa sequência responde à pergunta de Josef “Como se chamava a tua amiga?”: “Hanna”, ela responde. Só então Josef pôde saber seu nome. Nesse ato, corpo, história e nome se enlaçam. Amor e trabalho, nesse momento, parecem cumprir mais um passo no caminho da sublimação da pulsão de morte contida e contada nesse corpo.

 

Estaríamos aí frente a um novo uso do trabalho enquanto significante mestre S1, que parece conter a vida da personagem? Podemos pensar que retomar no corpo os gestos do saber-fazer de sua escolha profissional de enfermeira a convoca a contar a vida em um novo uso de si?

 

Lembremos de Freud (1930) em O mal-estar na civilização, da ênfase concedida ao trabalho, da livre escolha, do uso das moções pulsionais, do que a sublimação nesse domínio pode operar. Lembremos de Lacan (1976-1977) ao dizer do savoir y faire para entender que o saber que aí se produz não é da ordem da troca, do sentido, do pensamento, da interpretação. Ele é uso, é emprego, é fazer com. Não é que não possa ser aprendido, mas é que não se deixa apreender no formalismo do ensino, nos programas disciplinares, nas prescrições do trabalho, nas sugestões terapêuticas, etc. Não é um saber da racionalidade orientada pelos conceitos, mas pela dialética desses com a atividade da vida. É um saber que permite lidar com o fato de que, na vida secreta das palavras, como disse o encarregado Dimitri, “tudo é um acidente”. Aberto às contingências, às múltiplas causalidades, às arbitragens, às variações de possibilidades de ordenar as palavras e com elas ampliar os sentidos de seu uso.

 

Ao final do filme, a voz de criança que narra parte da vida de Hanna, a acompanha e a acolhe, pode se fazer mais ausente. Essa presença imaginária que ajuda Hanna a se enlaçar é substituída pela presença real de uma família que ela pôde constituir. O amor dedicado ao marido e às crianças e o trabalho de cuidar, contido no lar, parecem fazer prosseguir a pulsão por um destino mais sublime.

 


Referências: 
A VIDA SECRETA DAS PALAVRAS (La vida secreta de las palabras). Dir.: Isabel Coixet. Distribuído por: Monopole-Pathé. Espanha, Irlanda. Cor, 2005, 115 min.
FREUD, S. (1930/1976). O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. (1976-1977) “O Seminário, Livro 24: Lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra”. In: Obras completas de Lacan em cd-rom.
SCHWARTZ, Y. (2000). “Trabalho e uso de si”. In: Pro-Posições, Vol.1, Nº5 (32), julho.

ADMARDO BONIFÁCIO GOMES JÚNIOR
Pós-doutor pela Fae/UFMG, doutor em Educação Fae/UFMG e em Filosofia pela Aix-Marseille Université. Professor do CEFET-MG. Rua São João Evangelista, 525/101, Santo Antônio – Belo Horizonte – MG admardo.jr@gmail.com 31 9 8557 4281



O Mundo Do Trabalho E Subjetividade Nas Psicoses: Identificações, Estabilizações E Desencadeamentos

MARIA BERNADETE DE CARVALHO

 

ANA OU LACADE – FOSFOROS

Tempos atrás, mais ou menos entre 2004 e 2008, integrei um grupo interessado pelas questões do mental no trabalho. Nossas pesquisas e reflexões estiveram polarizadas pelas discussões a respeito dos nexos causais entre trabalho e adoecimento mental. Em que medida pode-se estabelecer um vínculo entre o trabalho e o adoecimento?

 

Tratava-se de uma questão que nos chegava dos sindicatos, de instâncias jurídicas, de profissionais de saúde vinculados à clínica com trabalhadores e até da Secretaria de Saúde do Estado. O reconhecimento médico e jurídico de uma relação causal entre um trabalho e certo adoecimento tem implicações em termos de direitos sociais, podendo o trabalhador receber ou não os auxílios previstos por lei. E, numa deformação, o adoecimento vira, muitas vezes, a via de luta, ou melhor, a forma individual de responder a condições degradantes de trabalho.

 

Nesse momento, chamava a atenção o número de trabalhadores afastados por problemas de saúde mental e, marcadamente, em certas atividades laborais, como os teleatendentes, os professores, os trabalhadores da saúde. Sintomas transestruturais, como o alcoolismo, as depressões, as fibromialgias e as perturbações do sono eram e, ainda são, frequentes.

 

Verificava-se também, estatisticamente, que algumas categorias profissionais eram especialmente afetadas por um ou outro desses sintomas, o que fazia pensar que as relações no trabalho e/ou sua organização poderiam estar na causa de certas manifestações sintomáticas, tal como se conseguiu comprovar para o caso de adoecimentos orgânicos, como a silicose.

 

Condições sociais diferentes colocam desafios diferentes à constituição subjetiva, que é de cada um. Mas, capturados pelos discursos sociais, os sujeitos se manifestam, inclusive sintomaticamente, de formas semelhantes, como por meio dos sintomas citados acima, sintomas sociais. A relação desses sintomas com o trabalho não é sem as mediações que são dadas pelas condições subjetivas de cada um. São esses os sintomas ou nomeações do mal-estar que, muitas vezes, nos chegam na clínica e cuja função e sentido vamos, aos poucos, entendendo em cada sujeito.

 

Estávamos, naquele momento, em outro nível de análise em relação ao que agora se coloca quando partimos da psicose.

 

De um modo geral, se o trabalho pode ser degradante, exigente e se constituir como a encarnação do Outro malévolo ou como espaço de realizações, ele é, sobretudo, o local, por excelência, do laço social. Vale retomar o que Freud diz em O mal-estar na civilização e que Nicola Purgato recorta, no seu texto intitulado “A benção do trabalho” (PURGATO, 2017, p. 10):

 

Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade (FREUD, 1930/1996., p. 87-88.).

 

Hoje, mais que nunca, o trabalho é central em nossas vidas, medida do seu valor e mediador de laços sociais. E, como um universal, o trabalho tem a qualidade de estar posto para todos. Ele é parte da condição humana. Desse modo, quando nos fazemos representar pelo trabalho, isso, por si só, nos garante um lugar na comunidade humana. Essa possibilidade é preciosa para todos, mas, na psicose, quando o campo do Outro é especialmente insuportável, as identificações com o trabalho podem oferecer a sensação de ocupar um lugar no mundo e viabilizar estabilizações e trajetórias de vida bastante normais. Alguns casos nos ajudam a avançar, já que isso ocorre de formas singulares.

 

Uma vinheta de Nicola Purgato é exemplar a respeito da estabilização pela identificação ao S1 trabalho, e a transcrevo abaixo:

 

Giuseppe, cinquentão single, há anos trabalha part-time em uma instituição pública, orgulha-se de fazer o seu trabalho, […] porque se sente o único que realmente trabalha e faz a instituição andar pra frente com certo cuidado, uma vez que todos os seus colegas são preguiçosos, só conversam e – por isso – o denigrem. Não há muitos sinais de psicose manifesta nele, embora se possa intuir sua estrutura subjacente […]. O trabalho para ele, por isolá-lo dos outros, o conecta com uma sensação que o mantém, de algum modo, ligado ao Outro (PURGATO, 2017, p. 11).

 

Há algum tempo, acompanhei um jovem, Jota, 30 anos, cuja relação com o trabalho e com os colegas em muito se aproxima à descrição acima. No entanto, ele chegou até mim num momento em que algo na junção com o sentimento de vida se desarranjou e que ele experimentou, repentinamente, uma total ausência de interesse pelo mundo. Tudo ficou cinza, diz ele, indicando um forte recolhimento libidinal.

 

Após uma licença e não sem dificuldades, Jota conseguiu reconstruir seu retorno ao trabalho. Sua explicação para o ocorrido e sua estratégia para o retorno centraram-se no excesso de trabalho: foi porque ele trabalhava demais, assumindo tarefas que eram difíceis para os outros e o lugar de um consultor, que ele terminou por ficar deprimido. Ao lado disso, e penso que mais importante, ele experimentou uma descrença na possibilidade de conseguir fazer o seu setor funcionar direito. Ele relata sobre uma conversa que teve com um diretor, em que este o teria sondado a respeito de como empregar os recursos destinados ao treinamento do pessoal da casa. Nessa conversa, Jota não só descobre a total ignorância do chefe a respeito dos problemas e seu menosprezo pela questão como também se vê colocado numa posição de exceção.

 

Esse relato, a perplexidade que o acompanha e sua desorganização corporal nas ocasiões em que é chamado a se responsabilizar por seu sobrinho, levou-me a trabalhar com a hipótese de que seu desencadeamento se devia à impossibilidade de ocupar esse lugar de exceção. Nesse momento, as solicitações de que era alvo começaram a se tornar invasivas.

 

Seu retorno ao trabalho se construiu sobre a limitação das tarefas de que se encarrega, embora permaneça sendo aquele que, diferente dos colegas, trabalha corretamente. Sua descrença quanto à possibilidade de mudar o funcionamento do mundo introduz um peso em sua relação com o trabalho e ele procura por alternativas. Esse trabalho, no entanto, com a flexibilidade que ele admite, dá um lugar no mundo a esse sujeito, cuja existência é bastante restrita.

 

Muito mais tarde no tratamento, Jota revelará que sua depressão sobreveio no momento em que iniciava um relacionamento com uma colega. Esse relacionamento, único em sua vida, não passou de alguns encontros, pois o estado em que se viu o levou a por um fim na história. Ele diz que, quando entendeu que estava deprimido, telefonou para a moça e falou que não poderia continuar. Aqui, também, o sujeito não pôde ocupar uma posição de exceção.

 

Nicola Purgato (2017, p. 11) chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, não é preciso que o trabalho seja formalizado ou socialmente muito significativo para sustentar uma existência e possibilitar a sensação de um lugar no mundo. Ele dá o exemplo de um jovem desempregado que se incumbe de estudar para descobrir como os políticos e economistas nos enganam. Com isso, ele escreve pequenos artigos para um jornal local, pelos quais nada recebe, mas que, para ele, é o trabalho mais importante para a construção de um mundo melhor. Aqui, também, o significante ‘trabalho’, sozinho, opera de modo a sustentar o sujeito e a dar-lhe um lugar no mundo.

 

Podemos lembrar do caso da Estamira, cuja vida foi alvo de um documentário que está disponível no Youtube. Ela encontrará um lugar no mundo através de um trabalho bastante à margem, o trabalho de catadora no lixão. Ela encontra, nesse trabalho, a oportunidade de construção de um cotidiano e de laços sociais, ao mesmo tempo em que trata seu ser de dejeto, pelo reaproveitamento do que ela aí encontra e que ela compartilha com seus familiares.

 

Já o caso do Homem do Relógio, parece-me exemplar a respeito do recurso às identificações imaginárias pelo trabalho. Trata-se de um caso sobre o qual escrevemos um artigo há tempos (CARVALHO; MACEDO, 2007), investigando tanto as condições de estabilidade quanto o que se revelou insuportável para esse sujeito. A importância do trabalho, para ele, pode ser transmitida pelo trecho abaixo, passagem do depoimento colhido em entrevista por pesquisadores das relações entre trabalho e adoecimento, após o seu desencadeamento:

 

Não gosto de olhar no espelho. Quando eu ia trabalhar, eu gostava. Tinha aquele pensamento bom: “Sou vigia, vou vencer mais este turno”. Mas, agora, não tenho mais esse gosto. Fui à barbearia, tinha um espelho muito grande, e eu fiquei muito aborrecido em ver essa imagem minha. Deu medo de me ver naquele espelho e não poder dizer comigo mesmo: “Eu sou vigia noturno” (LIMA et al, 2002, p. 236).

 

É o trabalho que lhe permite construir uma imagem de si. Isso se reafirma com o seu relato de que, após o desencadeamento, se entrega a devaneios em que se trata de rever, como num filme, todo o ritual de se aprontar, olhar-se no espelho e dirigir-se ao trabalho; não sem marcar seu orgulho em se ver fardado.

 

Trabalhador impecável, esse sujeito que zela por seu bom nome através de recursos imaginários sucumbirá ao encontrar um chefe que quer tudo controlar. Esse chefe, ao mesmo tempo tirano com os empregados e permissivo em seu comportamento, presentifica um Outro abusador, que se tornará mais e mais insuportável para esse sujeito. Esse chefe, com sua presença e seus dispositivos de vigilância, irá desalojá-lo da posição de quem vigia, de quem olha, e transformá-lo no objeto de um olhar invasivo.

 

Esse senhor passa a apresentar sobressaltos, ausências, insegurança, sinais de desorganização corporal que vão de diarreias a dores e tonteiras, além da extrema rigidez na obediência às determinações insanas do chefe. Após seu desligamento do trabalho, ele desenvolve a compulsão de desenhar o relógio que, no trabalho, devia ser acionado de 20 em 20 minutos, para provar que estava desperto. Sem o trabalho e sem o relógio, ele o desenha para poder acioná-lo, o que tem o efeito de acalmá-lo. É interessante que, até com o relógio, ele termine por estabelecer uma relação especular, de rivalidade: quem vigia quem? Quando ele perde seu posto, ele quer manter o trabalho com seu relógio, de quem se tornou amigo. Senão, ele pergunta, “como explicar por que que ele faz falta pra mim?” (LIMA, 2002).

 

Evoco ainda outro caso, que li recentemente no livro da Nieves Soria Dafunchio, Confines de las psicoses (2008). Trata-se de uma jovem que desencadeia aos 19 anos, no momento em que seu pai e sua mãe sofrem quedas e fraturas, um após o outro. Eme, como a chamaremos, cai, como seus pais, e passa por uma internação psiquiátrica, iniciando aí, uma depressão e anorexia radical. Sete anos depois, ela será internada por desnutrição e iniciará o tratamento psicanalítico. Conforme se revelará, para Eme, o alimento e a voz da mãe se sobrepõem, fazendo com que, quando ela come, não tem como não escutar a voz da mãe. Quando ela come, escuta a voz da mãe por dentro. Nieves isola a expressão “não tem como não”. Ela comenta que falta a Eme o “não” do Nome-do-Pai, que permitiria limitar a voz superegoica da mãe.

 

Mas o que me interessou nesse caso, para incluí-lo aqui, é que, para além das intervenções de sua analista, no sentido de deslocar essa sobreposição entre a voz superegoica e o alimento, um trabalho sobre o objeto voz será possibilitado pela escolha profissional de Eme.

 

Atuando junto a um comissariado de proteção de mulheres vítimas de violência familiar, ela produz petições, slogans e textos de divulgação que buscam dar voz aos que não têm voz. Ela se ocupa em dizer pelos que não podem ou não sabem dizer, apropriando-se de sua voz. O reconhecimento de seu trabalho pelos colegas permite a Eme tomar a palavra e ser escutada, no lugar de escutar a voz da mãe. Nesse tratamento, está colocada a possibilidade de que a nominação de Eme pelo trabalho faça suplência ao Nome-do-Pai e se constitua como um suporte para o sujeito.

 

Depois de afirmar a importância do trabalho como forma de inscrição dos sujeitos no Outro e como um campo de soluções para as inclinações do gozo, indo até à suplência do Nome-do-pai, gostaria também de dizer que ele é um contexto fecundo para as interpretações delirantes na paranoia. Facilmente um pedido ou uma observação de um chefe ou colega são interpretados como humilhação, perseguição ou avanço de caráter sexual. Alguns sujeitos conseguem inventar artifícios, por vezes discretos, como horários alternativos, que servem para limitar o gozo do Outro, experimentado como invasivo. São manobras que visam esvaziar a consistência do Outro e diferenciar o sujeito. Aqui, como na clínica com esses sujeitos, o que se viabiliza é o tratamento do Outro.

 


Referências:
CARVALHO, M. B.; MACEDO, L. F. (relat.) “O Homem do relógio”. In: Curinga: a variedade da prática analítica. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, nº 25, nov. 2007, p. 55-59.
DAFUNCHIO, N. S. “Confines entre esquizofrenia y melancolia – el miedo al cuerpo”. In: Confines de las psicoses: teoria e prática. Buenos Aires: Del Bucle, 2008, p. 211-235.
FREUD, S. [1930] “O mal-estar na civilização”. In: Obras completas de Sigmund Freud. ESB. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1996, p. 65-148.
LIMA, M. E. A.; ASSUNÇÃO, A. A.; FRANCISCO, J. M. S.D. “Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho”, In: JACQUES, M. G.; CODO, W. (orgs.). Saúde mental & trabalho: leituras. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 209-246.
PURGATO, N. (2017) “A benção do trabalho”, in Papers nº 2: Desordens, sintomas e sinais discretos: XI Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Disponível em https://congresoamp2018.com/wp-content/uploads/2017/07/PAPERS-7.7.7.-N%C2%B02-Portugu%C3%AAs.pdf. Acesso em: 8 fev. 2018.

MARIA BERNADETE DE CARVALHO
Analista praticante. Membro aderente da EBP-MG. Socióloga. Mestre em Sociologia. Doutora em Psicanálise. bernadetec59@gmail.com



O Valor De Uma Aposta: Tecendo A Rede Nas Instituições De Saúde

ALINE AGUIAR MENDES

 

 

ALINE 

Este texto resulta da apresentação do dia 30 de agosto de 2017, na noite do CIEN, que teve como mote o CIEN e as instituições. Contamos com a presença de Philippe Lacadée, que realizou uma intervenção com base em nossa experiência.

 

O laboratório Tecendo a Rede (TaR) trabalha com a construção do caso clínico por meio da conversação com equipes de saúde e saúde mental no campo da infância e da adolescência. Dois pilares sustentam nossa prática, quais sejam, a presença de um aluno, aprendiz na equipe – que denominamos AT não somente por sua função de Acompanhante Terapêutico, mas também, e mais fundamentalmente, como veremos, por sua função de colocar a equipe a trabalho – e a construção do caso clínico, por meio da conversação com as equipes.

 

O aluno aprendiz inicia seu trabalho com a condução de um caso escolhido pela equipe na função de acompanhante terapêutico dentro e fora da instituição.

 

O caso encaminhado ao aluno deverá, necessariamente, ser construído em, pelo menos, três conversações com a equipe. Nas conversações, são expostos o percurso do paciente na instituição e sua história de vida e clínica (quando surgiram os sintomas, os tratamentos realizados), bem como são discutidos livremente os pontos de impasse.

 

Essa prática nos propiciou elaborar o que se tornou um achado: a equipe não existe previamente a um caso, ao contrário, é a construção do caso que faz existir uma equipe ou, melhor dizendo, o que chamamos de ‘efeito-equipe’. A construção do caso clínico, ao implicar os profissionais, faz existir uma equipe, fazendo valer que, ali, há sujeitos concernidos pelo caso, o que é distinto de uma equipe composta, por exemplo, pelos profissionais designados burocraticamente pela instituição. Além disso, não se pode entender o efeito-equipe como o estabelecimento de uma unidade, de uma equipe coesa em torno do caso, tampouco que implique todos os profissionais, mas que um ou mais profissionais, ao serem tocados, cada um ao seu modo, pelo impasse, se tornem um aprendiz do caso, o que reorienta suas intervenções, antes dirigidas pelos significantes mestres normatizantes da instituição.

 

Nessa perspectiva, estamos alinhados com o projeto do CIEN como o que

 

consiste em abordar a nova situação da criança nos discursos, ou seja, nos vários discursos que se encarregam dela: a escola, os dispositivos assistenciais, a família, a língua que lhe dá seu lugar, o direito. (…) Mas de forma a localizar o que separa a criança de um discurso da palavra especializada[i] (LAURENT, 2017, p. 37).

 

Assim como experimentamos em nossa prática, a conversação no CIEN não é uma conversa livre. Ela se pauta por um impasse que deve ser localizado pelos participantes e possui um fim, um objetivo, que não é o alívio de um mal-estar. A conversação visa a introduzir a dimensão da causalidade psíquica nos campos em que esta é extirpada para que não sejam reproduzidas práticas segregatórias nem de controle. O encontro com a opacidade do discurso, com o que não se sabe, com o que não vai bem, permite o desajuste das identificações que mortificam os sujeitos. Isso propicia que o sopro de vida se faça presente na invenção testemunhada pelos laboratórios do CIEN.

 

Nessa perspectiva, apresentaremos uma de nossas experiências em parceria com o laboratório Janela da Escuta[ii].

 

Conversação sobre o caso Rocha[iii]: sobre o truco! o valor de uma aposta

 

Dividimos nosso relato das conversações para a construção do caso clínico em três momentos: 1a e 2ª conversações: tempo de ver; 3a conversação: tempo de escutar-se; e 4a conversação: do que resta a construir.

 

1ª e 2ª conversações: tempo de ver

Na primeira conversação para a construção do caso, Rocha é apresentado como um adolescente encaminhado ao Janela da Escuta em função de seu quadro clínico de hipertensão e obesidade e também por sua difícil inserção na escola, que o expulsa reiteradamente e chama pela mãe, para que esta responda por suas atitudes. No entanto, ao longo da conversação, o que se apresenta como impasse em seu tratamento é a relação do jovem com sua mãe. Desse modo, durante a 1ª conversação, começa a se delinear um outro caso, distinto daquele para o qual fomos inicialmente apresentados. Rocha é apresentado pela equipe como um adolescente cuja imagem reflete a imagem da mãe: vestiam roupas parecidas, ambos estavam obesos e a ginecomastia de Rocha acentuava, ainda mais, a semelhança entre mãe e filho.

 

O que é relatado pela equipe no percurso de Rocha no Janela da Escuta

 

Rocha e Lúcia encontram o Janela da Escuta quando o rapaz contava doze anos de idade. O acompanhamento clínico pela hebiatra do adolescente estava atento ao quadro de obesidade, associado à hipertensão, e exerceu, até a construção do caso, função de escuta do jovem. A psiquiatria procura intervir frente às respostas impulsivas e agressivas apresentadas por ele. Além disso, Rocha participa da oficina que acontece semanalmente no serviço, a Arte na Espera[iv], na qual consegue estabelecer importante vínculo com os pares, com o serviço e com uma produção de saber.

 

Nas consultas médicas, endereçava seus embaraços na relação com seu próprio corpo. Por vezes solicitava para não ser pesado e medido nos atendimentos, no que era respeitado. Além disso, entrava e saía várias vezes, interrompendo e recomeçando a consulta. Rocha, certa vez, relata a sua médica a repercussão que o filme Malévola exerce sobre ele, dizendo: “A Malévola perdeu suas asas e lutou para retomá-las. Também quero ser livre”. Nesses atendimentos clínicos, a mãe parecia se presentificar muito, participando ativamente dos atendimentos, ora entrando com filho, ora se apresentando ao final, quase sempre para se queixar dele. Num jogo de escrever e soletrar palavras, realizado com a médica, Rocha interroga: “Mãe, onde coloca o assento?”

 

No Janela da Escuta, outro espaço é ofertado a Lúcia, para dizer do mal-estar em sua relação com Rocha. A psicóloga que a atende no Janela da Escuta relata que o trabalho de escuta da mãe permitiu a ela que investisse em seu próprio corpo, tornando-o mais feminino. A mãe coloca Rocha num lugar próximo ao pior do pai: “vagabundo como o pai (…) homem debaixo da asa da mãe…”. E, ainda, a psicóloga relata que mãe e filho dormem juntos, trocam segredos e que ele lhe mostra suas ereções. Ela teme que um dia ele a mate ou a estupre.

 

Ainda nesse primeiro encontro para a construção, ante o relato apresentado, buscou-se demarcar o ponto a partir do qual o estagiário poderia operar. A equipe do Janela da Escuta debruça-se, então, sobre os impasses na relação de Rocha com a escola. Em dois encontros realizados com a escola, os professores alegam que não é possível uma intervenção específica destinada a Rocha, pois eles priorizam casos “mais graves que o de Rocha”. Nada poderia ser ofertado a Rocha, já que ele não era grave o suficiente nem “normal” como outros alunos. A direção da escola passou a comunicar cada vez mais que o jovem não poderia continuar ali, por qualquer motivo, como soltar um pum.

 

Na segunda conversação, que fazemos para recolher os efeitos da primeira conversação para construção do caso, a equipe do Janela da Escuta relata que viabiliza a doação de um fogão para a nova casa de Lúcia e Rocha, tendo em vista que só recentemente passam a ter sua própria casa. Esse passo representava, para Lúcia, uma importante separação de sua própria mãe, que a humilhava constantemente. A esse ato, Lúcia responde: “eu e o Rocha, a gente está fazendo tanta comida, tanta comida… estamos comendo até. A gente está fazendo tanta comida gostosa, porque, lá na minha casa, eu não posso fazer comida. Agora eu tenho minhas coisas”.

 

Com base nas falas que foram se decantando na construção, cernimos uma outra fala do paciente a sua médica: “quero cortar minhas mamas com faca”. Embora houvesse um avanço reconhecido, a partir do tratamento de Rocha com sua médica e, por outro lado, uma evolução no tratamento da mãe, no tocante a seu lugar como mulher e como mãe, persistia, na fala da equipe, o modo como a mãe era convocada a responder pelos atos de Rocha, tanto na escola quanto no serviço. Foi o que pontuamos como um impasse do caso. Durante as reuniões, escutamos como mãe e filho dormem, comem e engordam juntos.

 

O modo como o Outro materno olha e manipula o corpo de Rocha e o horror que esse filho ocupa no discurso de Lúcia nos orientam a oferecer um lugar de escuta distinto, no qual o olhar do Outro possa estar suspenso. Ao cernimos essa lógica do caso, a médica de referência afirma que é preciso introduzir um outro agente, além dela, na referência do caso e assinala que não se trata apenas dos impasses de Rocha, mas, na verdade, são três os casos a serem considerados: o caso Rocha, o caso Lúcia e o caso da própria equipe. Desde então, a estagiária passou a atender Rocha semanalmente.

 

3ª conversação: tempo de escutar-se

 

Nessa conversação para a construção do caso, iniciamos com uma apresentação/leitura, projetada em slide, das falas dos técnicos sobre o que se decantou da conversação. É muito interessante porque permite que cada um da equipe, ao ler suas falas projetadas, escute a própria voz: o que disseram, como se posicionam frente ao caso. Recolhemos momentos de surpresa dos profissionais e também uma possibilidade de a palavra circular sem se repousar em um mestre.

 

A relação mãe-criança é um ponto fundamental, e sua relação com o modo como a equipe vinha trabalhando é salientado como um ponto de impasse da equipe. A coordenadora do serviço pontua: “Sem dúvida, quando você coloca assim, ele repete uma coisa assim da relação com a mãe, na relação com a sua médica”.

 

Outros pontos são trabalhados sobre como intervir com a escola e também sobre o horror com o qual Rocha muitas vezes se apresenta, como nos diz a coordenadora da oficina Arte na Espera: “Tem um pior aí, sabe, assim, nos vídeos… ou são histórias de terror, que ele quer horrorizar… aí os meninos dão um chega para lá nele, aí ele para”.

 

Nessa conversação, a estagiária também narra os atendimentos com Rocha. Nas primeiras entrevistas, Rocha, por vezes, demorava a ir ao atendimento, necessitando que a estagiária insistisse e sustentasse o seu desejo de escutá-lo. Jogar truco viabilizou o laço transferencial, na medida em que se trata de um significante do sujeito, o qual demarcava um lugar no qual Rocha sabe transitar. E, mais, o truco se tornou um significante a partir do qual a estagiária transmitia sua aposta no sujeito: “truco que você não tem nada a dizer”, ou “truco que você só quer ficar em casa dormindo”.

 

Na construção do caso, o manejo dos jovens (participantes das oficinas) com Rocha foi se desvelando, como a direção do tratamento: pontuar os excessos sem se horrorizar, o que mantêm o laço e permite a Rocha experimentar outras posições. Ele passa, daquele que assusta o outro tentando ‘sujá-lo’ de tinta, àquele que faz artes no corpo do outro, ‘maravilhas’, como diz uma das oficineiras. Dessa forma, a oficineira joga truco com ele e, ao não se horrorizar diante de uma ação intempestiva do jovem tentando ‘sujá-la’, legitima tal movimento como um ato subjetivo. Portanto, “o caso não pode ser tomado no horror”. O truco aparece como a invenção desse sujeito, acolhida pela equipe, que rompe com a palavra especializada: ele pode passar a trucar a palavra do Outro que o nomeia no lugar do pior, como a escola fazia.

 

4ª conversação: sobre o que resta a construir…

 

Nessa conversação, a estagiária fala de como estava o processo de seu desligamento do TaR e se faz a apresentação de uma nova estagiária e de uma psicóloga do Janela da Escuta para a continuidade do tratamento. Ela relata para equipe o que Rocha responde sobre continuar indo aos atendimentos: “só se elas souberem jogar truco”.

 

Vários são os impasses que se decantam da construção do caso, que nos lançam, mais uma vez, ao trabalho. Nessa perspectiva, nos perguntamos se um dos efeitos da conversação foi a escuta do significante truco, que pode romper com a palavra especializada que mortifica o sujeito, e se esse significante poderia propiciar a separação da palavra da mãe.

 

Comentário de Philippe Lacadée[v]:

 

A invenção de vocês é surpreendente: dois pilares fundam a prática exercida. A presença de um aluno aprendiz, na equipe designada AT (Aluno a trabalho), tem a função de colocar a equipe para trabalhar. Isso permite criar o efeito-equipe, visto que a equipe, como Outro, não existe. Existem, assim, os efeitos-equipes, que só existem por causa da proposta de construção do caso. Produzem-se diferentes efeitos-equipes com a construção de caso. Em última instância, esses efeitos-equipes são efeitos de palavra. Tratam-se, portanto, de efeitos de criação, a partir de pontos de impasse.

Sobre o caso que Aline apresenta, é evidente a relação particular do jovem com sua mãe, pois sua imagem reflete a imagem de sua mãe. Ele se veste como ela, ambos são obesos, e a semelhança fica ainda mais facilitada pela particularidade de o jovem apresentar ginecomastia. Além disso, destaca-se a deficiência do rapaz, que permite ao par mãe-filho sobreviverem, já que recebem o BPC (Benefício de Prestação Continuada).

A construção clínica, com base na orientação lacaniana, mostra que vocês foram sensíveis ao fato de que ele tem um problema com o próprio corpo. No curso de uma das consultas, ele faz um jogo de fort-da: entra e sai da sala. E, sobretudo, não demanda mais que o seu corpo seja gozado pelo outro, recusando ser pesado e medido. E, finalmente, apoiando-se em um filme, diz que a personagem Malévola perdeu suas asas e quer recuperá-las. Diz também: “Eu quero ser livre”, o que nos remete à posição do sujeito. Ele quer voar com as próprias asas e, depois de dizer isso, faz um enunciado formidável: pergunta a sua médica: “mãe, onde coloca o assento”? Ele brinca com a homofonia. Acentua o lugar. Destaca o fato de cada um ter um lugar. Observem bem a palavra lugar: certamente é uma surpresa da linguagem, mas, ao mesmo tempo, é o testemunho da posição de gozo. Lacan diz que, nesse momento o analista se torna um leitor. Mais além do acento, o analista lê que, na história entre sua mãe e ele, trata-se de cada um encontrar o seu assento.

A mãe começa a reinvestir em seu corpo, a tornar-se feminina. Ela não é mais somente mãe. Porém, o corpo invisível da criança penetra o corpo da mãe e ela vai aceitar que o filho mostre as ereções. A luz sempre tem um lado obscuro. Nesse momento chega-se, então, à questão do lugar. Que lugar conceder a ele? De que lugar a gente vai operar?

É possível ver que essa criança precisa de ajuda. Em um determinado momento, Lacan propôs apoiar na função do pai como princípio de separação. A equipe do Janela da Escuta, para ajudar a criança a se separar de sua mãe, inventou um novo Nome do Pai: o dom do fogão. Para ajudar a criança a se separar da mãe, apostou–se no fogão, que veio modificar completamente a relação da mãe com a avó. Mãe e filho passam a cozinhar pratos deliciosos. Não se trata mais de comer o segredo do filho, à noite, nem de fazer um único corpo com o filho, menos ainda de engordarem juntos. De um momento a outro, a mãe pode se separar da própria mãe. O que o filho vai fazer diante disso? Pouco tempo depois, o filho vai decidir cortar as próprias mamas. Pode-se perceber, nisso, que há uma passagem na qual ele busca se separar de seu excesso de semelhança com sua mãe.

Na Terceira conversação também tem algo extraordinário: vocês introduzem o significante da repetição. Sem dúvida, ele repete alguma coisa. Ele repete alguma coisa da relação de sua mãe com a de seu médico. Como vocês notaram bem, alguma coisa se deslocou. Ele vai se apresentar de uma maneira completamente diferente a partir do momento em que se separou da repetição de seu corpo com o de sua mãe. Ele vai utilizar os vídeos com histórias de terror para fazer medo. Não se está mais no momento da repetição do corpo com o de sua mãe, pois ele teve acesso a uma outra coisa: o que Lacan chamou de pantomina, ou seja, ele coloca em evidência o fato de poder utilizar o semblante, de fazer medo. Da mesma maneira, ele vai utilizar o jogo do truco. Ele pode fazer isso porque se separou de um excesso de gozo no seu corpo para utilizar, então, o jogo do truco. Ele próprio coloca em ação um jogo baseado sobre a aposta, sobre o blefe. De fato, nesse momento há uma aposta na escuta, mais além do campo do visível que poderiam interessar a medicina que, por sua vez, diz que o corpo é obeso. Vocês deram testemunho de saber trabalhar sob a orientação lacaniana ao escutarem que o corpo não é isso, mas é algo que, para um cada um, se goza. A estagiária diz: “eu truco que você não tem nada a dizer”. Assim, ela apreende que se trata de um significante da transferência. Ela o utiliza na relação com a língua, como se dissesse: “já que é você que se interessa pelo truco, eu te reenvio sua mensagem, mas na forma invertida, e truco que você não tem nada a dizer.”

O jogo do truco é, essencialmente, um jogo, ou seja, um objeto, e isso pode ser a invenção do Rocha, ou seja, sua descoberta. Para que haja uma passagem da descoberta à invenção, é necessário que aconteça um efeito-equipe, que se constrói em torno do objeto carta-truco. O efeito-equipe permite elevar o objeto truco à dignidade de um significante, um significante que não está mais sozinho, porque ele pode gozar de si mesmo. É no momento em que vocês o elevam à dignidade de significante que ocorre a aposta. Se, por exemplo, o fogão pudesse vir como princípio de separação, como interdito do gozo, seria uma aposta sobre o fogão, aposta no pai. Entretanto, com o truco como significante, o que ocorre é uma aposta sobre o par significante: S1-S2. Se truco é um S1– “eu truco que você não tem nada a dizer” –, esse “você não tem nada a dizer” é uma nomeação de sua posição silenciosa, tendo reconhecido o truco como significante da transferência. Então, é possível esperar o que pode vir a ser dito. Não é mais o saber do handicap, mas um saber que será inventado. Por enquanto, o botar medo de Rocha é tomado no âmbito de um acting out, na própria cena da instituição. Ele ainda vai bancar o terror, fora da instituição. Mas não pensem que isso é uma resposta à intervenção “truco que você não tem nada a dizer”. Em relação à questão colocada em seu texto (se “truco” poderia ser uma separação com relação ao dizer da mãe), pode-se dizer que o truco pode ser uma entrada para uma separação possível, apoiada na palavra da estagiária, sim, mas também há a palavra da mãe. Ele pode até entrar na aposta, mas não sem continuar fazendo um pouco horror e medo.

Graças ao significante que vocês inventaram – aluno aprendiz –, significante que consegue enodar a questão do aprendiz como aquele que ensina aos outros, entendo que a aprendizagem só é possível pelo desejo, o que a distingue do adestramento. O aprendiz ensina à equipe que apenas se pode ensinar a partir do que se constrói sob um ponto de não-saber. A aprendizagem pode deslizar o significante do desejo que, nesse caso, é bem ilustrado, com base na maneira como o aprendiz fez a aposta do truco: isso é a pérola, é o desejo.

 


Referências
ALKMIM, W. (org.) VIGANÒ, Carlo. Novas conferências. Belo Horizonte, Scriptum Ed. 2010. 264p.
BRISSET, F.; SANTIAGO, A.; MILLER, J. (orgs.) Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte. Scriptum Ed. 2013.
BROWN, N.; MACÊDO, L.; LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP editora. 2017.
FREUD, S. (1937/1975) “Construções em Análise” In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. RJ. Imago.
LACAN, J. “Apertura de la sección clínica”. 5 de janeiro de 1977. Disponível em: www.ecole-lacanienne.net/wp-content/upload/2016/04/ouverture de la section clinique.pdf.
MENDES, A. O efeito-equipe e a construção do caso clínico. Curitiba, PR: CRV editora. 2015.
[i] LAURENT, E. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual” In: BROWN, N. MACÊDO, L. LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP Editora, 2017 (p. 37-47).
[ii] O laboratório Janela da Escuta, coordenado por Cristiane Cunha, trabalha com o acolhimento de adolescentes e suas famílias, por meio da formação de profissionais em uma prática clínica interdisciplinar orientada pela psicanálise em um ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG.
[iii] Os nomes utilizados na apresentação desse caso são fictícios.
[iv] Oficina de arte que ocorre junto às atividades do Janela da Escuta, coordenada por uma artista. Os adolescentes participam das oficinas enquanto esperam para serem atendidos pelos profissionais.
[v] O comentário de Philippe Lacadée, presente neste texto, foi extraído da conversação clínica realizada no CIEN no dia 30 de agosto de 2017.
[1] Esse texto foi escrito com colaboração de Ângela Maria Resende Vorcaro e Alice Rezende Oliveira, esta última, estagiária do Tecendo a Rede.
[1] LAURENT, E. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual” In: BROWN, N. MACÊDO, L. LYRA, R. (orgs). Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil. São Paulo. EBP Editora, 2017 (p. 37-47).
[1] O laboratório Janela da Escuta, coordenado por Cristiane Cunha, trabalha com o acolhimento de adolescentes e suas famílias, por meio da formação de profissionais em uma prática clínica interdisciplinar orientada pela psicanálise em um ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG.
[1] Os nomes utilizados na apresentação desse caso são fictícios.
[1] Oficina de arte que ocorre junto às atividades do Janela da Escuta, coordenada por uma artista. Os adolescentes participam das oficinas enquanto esperam para serem atendidos pelos profissionais.
[1] O comentário de Philippe Lacadée, presente neste texto, foi extraído da conversação clínica realizada no CIEN no dia 30 de agosto de 2017.

ALINE AGUIAR MENDES
Doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do CIEN-Minas. Coordenadora do Tecendo a Rede. Professora da PUC Minas. alineaguiarmendes@yahoo.com.br



Passagem Ao Ato E Adolescência

ANA MARIA C. S. LOPES

ANA MARIA – LOUISE-BOURGEOIS, FEMME MAISON

 

Na clínica contemporânea, deparamo-nos com uma significativa incidência de novos sintomas, sobretudo aqueles nos quais se verifica o privilégio do registro do ato; da convocação do corpo que, por vezes, supõe uma precariedade do registro simbólico, uma tentativa de apagamento da dimensão subjetiva. As mídias anunciam o aumento dos atos violentos no espaço das escolas e da cidade, atos que se inscrevem via o ato compulsivo de utilização de substâncias tóxicas e atos infracionais que expõem o sujeito adolescente a situações de risco. Verifica-se, enfim, a clínica da supremacia do imaginário, da impossibilidade de amarração simbólica, independente da estrutura clínica, e, por conseguinte, o imperativo da clínica do ato.

 

Então, é preciso perguntar: qual é a função que está em jogo na clínica do ato? Lacan faz do ato suicida o modelo de ato, pensa o ato a partir do suicídio, independente da estrutura (neurose, psicose ou perversão). Há algo no sujeito que não trabalha para o seu bem, não trabalha para o útil; ao contrário, trabalha para a destruição. Na elaboração de Lacan, todo ato verdadeiro é um “suicídio do sujeito”. O sujeito não é o mesmo depois do ato, renasce desse ato de modo diferente. Há um antes e um depois. Todo ato é transgressão, no sentido que contém, em si, um atravessamento de uma lei, de um conjunto simbólico.

 

O ato tem uma dimensão paradoxal, pois o sujeito, ao cometer o ato contra o próprio organismo, visa à homeostase. O ato se direciona ao cerne do ser: o gozo. Nessa perspectiva, na adolescência, são comuns os comportamentos de risco, tais como toxicomanias, transtornos alimentares, tentativas de suicídio, entre outras. Soluções que têm a ver com uma prática da ruptura, um curto-circuito da relação ao Outro. Alguns adolescentes prescindem do Outro e até mesmo recusam o Outro na medida em que esses sujeitos devem se separar da autoridade parental. O adolescente não possui palavras para traduzir o que acontece no corpo ou em seu pensamento. O que não se traduz em palavras tenta se inscrever via ato (LACADÉE, 2007).

 

Nesse ponto, torna-se essencial distinguir passagem ao ato e acting out. Podemos falar de acting out quando há uma cena; essa cena é a palavra, e o sujeito se coloca a atuar sobre essa cena sob o olhar do Outro. Necessita do Outro, do espectador. Ao contrário, a passagem ao ato não tem um espectador, o que se tem é a desaparição da cena. Digamos que o sujeito está, eventualmente, morto.

 

A passagem ao ato

 

A expressão “passagem ao ato” tem sua origem na psiquiatria francesa dos anos 20 do século XX, articulada à criminologia, e é utilizada para referir-se, de forma exclusiva, a atos violentos, delituosos. Lacan, na tese de 1932, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade, e na análise do caso das irmãs Papin (1933), introduz a passagem ao ato como solução mecanicista, liberadora do Kakon, palavra grega que significa “dor”, “desgraça” (VON MONAKOW; MOURGUE, 1928). Nas psicoses autopunitivas, que se traduzem pelo “delírio de interpretação”, as energias autopunitivas do superego se dirigem contra as pulsões agressivas provenientes do inconsciente do sujeito e visam a retardar, atenuar e desviar o impulso assassino. Guiraud (1931) apoia-se em von Monakow e Mourgue e destaca o Kakon como liberação de um complexo de natureza automática que, por ato-reflexo, encontra uma saída mecanicista. Para Guiraud, o objetivo da passagem ao ato é o de desembaraçar o sujeito da sensação dolorosa que o invade, concepção adotada por Lacan na tese de 1932, quando aproxima a passagem ao ato de Aimée ao mecanismo liberador do Kakon, o inimigo interno (LACAN, 1932, p. 236).

 

Em “Agressividade em psicanálise” (LACAN, 1948), o Kakon surge a propósito das reações violentas na psicose. Em “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946), Lacan sublinha que Guiraud reconhece que o sujeito atinge, no objeto que ele fere, o Kakon de seu “próprio ser” (LACAN, 1946, p. 176). Silvia Tendlarz ressalta que Guiraud não relaciona o Kakon ao ser do sujeito, e sim ao mal, à doença, transposto no mundo externo, de forma que Lacan utiliza o “próprio ser” para tratar o ser do sujeito, a saber, o conceito de gozo, como se Kakon nomeasse algo que estivesse fora de teorização naquela época e que, conceitualmente, seria abandonado posteriormente (TENDLARZ, 1990).

 

Em O seminário 10: a angústia, Lacan articula passagem ao ato, angústia e objeto. Lacan concebe o acting out como dirigido ao outro e a “passagem ao ato” como o instante em que o sujeito se coloca no lugar de puro objeto. Então, no primeiro momento (1932), pode-se afirmar que o sujeito passa ao ato para liberar-se do mal interior, ou, por um imperativo superegoico, atinge no outro a imagem de si mesmo. No segundo momento (1962), a passagem ao ato representa o instante em que nenhuma mediação é possível e visa promover uma separação radical do outro. O sujeito “deixa-se cair” sai de cena (LACAN, 1963, p. 118).

 

O sujeito passa ao ato no momento em que não é possível a distância mínima entre o eu e o outro, numa regressão tópica ao especular. Ressalta-se, aqui, o que Lacan introduz como a situação de júbilo da criança diante do espelho, em que ela pede ao outro uma confirmação do que experimenta ao ver sua imagem refletida. A criança, via olhar, via voz do outro, pode fazer a passagem dessa imagem, ainda não unificada do eu, para a unificação da imagem. Então, antes do estádio do espelho, o que se tem é a falta de contorno que a imagem do espelho poderia dar ao sujeito como eu.

 

Em suma, o sujeito se encontra face ao não reconhecimento da imagem especular: algo que não é reconhecido como especularizável pelo sujeito não é passível de ser proposto ao reconhecimento do outro. Aí o sujeito é capturado por essa vacilação, por essa experiência despersonalizante, cuja saída é a passagem ao ato que se inscreve na dimensão do deixar cair, daquilo que é resto. Na passagem ao ato, o sujeito sai da cena (LACAN, 1962). Nessa perspectiva, torna-se necessário distinguir passagem ao ato e acting out.

 

O acting out e a clínica do impossível de dizer a clínica do Real

 

Fenichel (1945), no artigo intitulado “Neurotic Acting-Out”, considera que o acting out alivia, inconscientemente, a tensão interna e produz uma descarga parcial de impulsos, como sentimentos de culpa. A presente situação se encontra conectada com o conteúdo recalcado e é utilizada como uma ocasião para a descarga de energias recalcadas. O acting out é, então, considerado uma descarga de energia egossintônica. É uma forma especial de representação na qual a recordação antiga é representada de uma maneira mais ou menos disfarçada. A experiência recordada conserva sua organização original. Fenichel considera que estar em análise favorece o acting out e há sempre uma qualidade motora da ação que se difunde a todo o acting out (FENICHEL, 1945, apud GREENACRE, 1950).

 

No acting-out, a ação é mais importante do que a linguagem. Em geral, a criança que sofreu frustrações orais expressa seu sofrimento através de uma motilidade difusa e uma exacerbada incapacidade para tolerar frustrações. Possui também uma exacerbação em relação ao ver e ser visto, que marca a fragilidade narcisista do eu, e apresenta, ainda, uma dificuldade de fazer a passagem do pré-verbal ao verbal (FENICHEL, 1945, apud GREENACRE, 1950). Lacan, no Seminário 10: a angústia, na aula de 23/1/1963, irá articular o acting out à cena analítica e enfatizar que não se trata da questão da fragilidade do eu, mas de casos não analisáveis e da supremacia do pré-verbal. Para Lacan, no acting out, está em jogo a questão do objeto, por isso não se trata de intervirmos no sentido de um fortalecimento ou não do ego. O acting out articula-se à cena analítica; a clínica do acting out coloca em jogo o que não pode ser dito – não por um déficit do simbólico, mas por questão de estrutura, em relação àquilo que o simbólico delimita como resto, o objeto a. Se o que está em questão no acting out é o objeto a, a interpretação é inútil. O acting coloca em jogo a clínica do impossível de dizer a clínica do real (RUBISTEIN, 1993).

 

Para Lacan, o acting out não deve de ser interpretado, mas pode ser respondido, via manejo da transferência. Via acting out, o sujeito coloca em jogo, desde a tenra infância, a causa do desejo, via o ato que se dirige ao Outro. Nessa perspectiva, como pensar a clínica do ato na contemporaneidade, sobretudo na adolescência? Aqui, recorro à série da Netflix, adaptada do original 13 Reasons Why, título original do romance de Jay Asher, cujo título da edição brasileira é Os 13 porquês, como paradigma ou modelo para se pensar a clínica do ato na adolescência.

 

13 Reasons Why e a clínica do ato

 

O autor Jay Asher, em 13 Reasons Why, desenvolve o tema do suicídio de uma adolescente e tenta demonstrar que a decisão de tirar a própria vida é dela, mas destaca que as pessoas causam impacto na vida umas das outras. Na narrativa do livro Os 13 porquês, os motivos que a levaram ao suicídio estão gravados em fita cassete. O romance é construído com duas narrativas simultâneas. Na primeira, Hannah conta suas motivações para o ato suicida e, na segunda, o autor descreve imediatamente as reações de Clay, personagem escolhido para ser os “olhos e ouvidos” do leitor ao longo do romance.

 

Hannah escolhe, entre os colegas da escola, treze, aos quais diz: “Vou contar aqui a história da minha vida. Mais especificamente, por que ela chegou ao fim. E, se estiver escutando estas fitas, você é um dos motivos.” Hannah convoca cada colega escolhido a escutar todas as fitas. No momento das gravações doa áudios, talvez seja possível formular que há uma dimensão de acting out. O que está em jogo é a questão do objeto – voz e olhar –, a tentativa da articulação a uma cena, colocar em jogo o que não pode ser dito, aquilo que o simbólico delimita como resto, o objeto a.

 

O acting coloca em jogo a clínica do impossível de dizer a clínica do real. No momento em que Hannah grava essas fitas, a dimensão do Outro está presente. Porém, é possível articular que, no momento em que cada fita é escutada pelos colegas, algumas semanas depois do seu suicídio, a dimensão que o envio dessas fitas provoca é da passagem ao ato. Ou seja, cada um dos lados dessas fitas são tentativas de soluções precárias, que se inscrevem somente na perspectiva especular e criam um percurso que dá consistência à erotomania mortífera, que finalizará no ato suicida.

 

A série Os 13 porquês narra, desde o início, situações habituais da adolescência atual, tal como o primeiro beijo da adolescente – uma experiência que deveria ter sido maravilhosa e que, pela transmissão de uma imagem via WhatsApp por um colega, se torna um dos pontos que, segundo a adolescente, arruinou sua vida. Hannah revela seu sentimento de ter sido traída e as consequências de boatos geradores de uma série de histórias sobre si, entre as quais nem ela mesma sabe qual seria a mais popular. Nessa perspectiva, há, na gravação das fitas, uma tentativa de desembaraçar-se da sensação dolorosa que a invade, do inimigo interno inscrevendo-se no campo da passagem ao ato, enquanto, definido, a partir da noção de Kakon, como liberação do mal interior. Os relatos de Hannah evidenciam a progressão da impossibilidade de distinção mínima entre o eu e o outro e a passagem ao ato e o acting out são tentativas, por vezes precárias, de soluções.

 

Considerações finais:

 

A construção percorrida por Hannah ao gravar as fitas se revela – como solução precária para a ausência de um aparato simbólico – para lidar com a problemática da castração, que, aqui, se presentifica no real. Hanna grava as fitas e as destina a cada um dos colegas. A Justin e Jessica, que a magoaram; a Alex, Tyler, Courtney e Marcus, que destruíram sua reputação; a Zack e Bryan, que abalaram sua alegria; e a Bryce Walker, que destruiu sua alma. O percurso de gravação das fitas, pelo menos momentaneamente, possibilita a ela algum alívio, momento em que procura o orientador da escola e fala sobre seu sofrimento subjetivo; pede ajuda, mas não é escutada. Ressalta-se, aqui, que o modelo do ato, a partir do suicídio, independe da estrutura. O ato é sempre auto: autocastigo, autopunição.

 

Nesse sentido, torna-se possível formular que a adolescência é marcada por algo da ordem do gozo sem sentido, da busca pela construção de respostas. Por vezes, o sujeito adolescente convoca a dimensão do olhar do Outro, momentos em que se verifica a clínica do acting out, mas, na passagem ao ato, não tem um espectador, tem-se a desaparição da cena; o ato é um autocastigo, uma tentativa de separação do Outro. A psicanálise pode oferecer intervenções aos adolescentes, tais quais espaços de conversação para que possam surgir soluções para além do puro ato.

 


Referências
ASCHER, J. Os 13 porquês. 1ª. Ed. São Paulo: Ática, 2009.
FENICHEL, O. “Teoria psicanalítica das neuroses”. Rio de Janeiro: Ateneu. 1945 [1981]. Citado por LOMBARDI, G. Infortúnios del acto analítico. Buenos Aires: Atuel, 1993. p. 31-38.
GUIRAUD, P. “Les meurtres immotivés”. L’Evolution Psychiatrique. 2ª série, mar. 1931.
GREENACRE, P. “General problems of acting out”. In: Psychoanalitic Quaterly, n. 19, 1950, p. 455-467.
LACADÉE, P. “A passagem ao ato nos adolescentes”. (2007). Disponível em: Revista eletrônica do Núcleo Sephora. www.isepol.com/assephalus/numero 04.pdf. p. 85-91. Acesso em 29/1/2018.
LACAN, J. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
______. “Os complexos familiares” (1938). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984. In: O seminário 10: a angústia. [1962-63 (2005)]. 1962-1963. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. “A agressividade em psicanálise” (1948). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949). In: Ibidem.
______. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. (1950). In: Ibidem.
MONAKOW, C. Von, MOURGUE, R. “Introduction biologique à la neurologie pathologique” (1928). In: LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
RUBISTEIN, Adriana. “Acerca Del comentário de Lacan ao artículo de Greenacre: problemas generals del acting out”. In: Infortúnios del acto analítico. Buenos Aires: Atuel, 1993. p. 31-38.
TENDLARZ, S; GOROG, F.; CHOURAQUI-SEPEL, C. “Nouvelles considérations sur les meuertres immotivés”. Nervure, t. III, nº. 6, set. 1990.

ANA MARIA C. S. LOPES
Psicanalista praticante, membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. E-mail: amcslopes@ig.com.br



A Radicalização Da Recusa Frente À Inexistência Da Relação Sexual

CRISTIANE DE FREITAS CUNHA VINICIUS MOREIRA LIMA

Domenico Cosenza (2014) percorre a ‘delicada transição’ da adolescência em três tempos lógicos. O primeiro é o tempo dos sonhos; sem eles, não se pode pensar em fazer amor (LACAN, 1974). O segundo tempo é o do trauma; a inconsistência dos sonhos se revela, constata-se que, sob o véu, não há nada. No terceiro tempo, o percurso se bifurca; alguns adolescentes aceitam entrar no jogo da vida amorosa, sem garantia. O amor e a linguagem seriam saídas elegantes que podem fazer suplência à inexistência da relação sexual (LACAN, 1972-73/1975). Outros permanecem em uma posição de recusa. A posição da recusa coloca em cena o objeto nada, causa de não desejo (COSENZA, 2017).

 

No laboratório Janela da Escuta, temos nos deparado com casos de adolescentes que se nomeiam trans ou travestis nos quais a posição da recusa frente à inexistência da relação sexual é notável. O corpo se revela como um território de investimento pulsional intenso, que absorve o sujeito. Demandas são tecidas e endereçadas à tecnociência, abrangendo a administração de hormônios e intervenções cirúrgicas e, ao campo do direito, para a mudança do nome de registro. Temos, assim, o discurso universitário, na posição autoritária de semblante, com o objetivo de melhorar a relação entre os sexos (LACAN, 1973/1975, p.63) ou de velar a falta da relação entre eles. No discurso de alguns desses jovens, não há referência ao amor.

 

Um jovem trans, Ivan, procura o Janela da Escuta com a demanda de se submeter à mastectomia. Ele nos conta que a transição para uma identidade masculina foi harmônica: começou a se hipertrofiar com a musculação, depois começou a usar hormônios masculinos. Obteve o registro do nome social, com o qual se matriculou na universidade. Os pais têm aceitado o processo. A única ‘desarmonia’ é no campo amoroso, ao qual ele renuncia.

 

Do outro lado do Atlântico, na França, somos convidados a participar de uma pesquisa clínica com jovens extremistas que aderiram ao Estado Islâmico (EI). Na construção dos casos, desvela-se uma outra forma de recusa. Jovens que recusam qualquer dialética, qualquer opacidade, qualquer equívoco.

 

Hana, 13 anos, encontrava-se presa em uma cidade de fronteira, na França. Hana é neta de marroquinos e, assim como seus pais, nasceu na França. A infância é marcada pela violência sexual. Desde os onze anos, apresenta anorexia. A assistente social, que foi visitá-la na prisão, se impressionou com sua magreza, evidenciada pela retirada dos véus e túnicas. E, sobretudo, com o olhar de Hana: “ela já está morta”. A incorporação da morte que antecede a sua anunciada e abortada explosão de si mesma.

 

O radicalismo islâmico usa a tecnociência para se difundir, captando adeptos nas redes sociais. As redes e mídias são também o veículo de difusão do terror; as imagens captadas no momento dos atentados se impõem, sem mediação simbólica. Não há uma narrativa em torno dos atentados, uma demanda (LACHANCE, 2016). O enigma se instala do lado do Outro, assim como a angústia. Tentativa de fazer o Outro existir?

 

Do lado dos extremistas, vemos a simplificação do discurso islâmico, que produz conceitos inequívocos sobre a sexualidade e os papéis a serem desempenhados no laço sexual.

 

Relatos das conversões na Tunísia nos mostram as prescrições da incorporação dos textos, do treinamento corporal e da aquisição de hábitos e costumes (corte do cabelo, barba, comprimento da túnica, perfume). Diante das mulheres, o olhar deve se desviar para baixo. As mulheres são classificadas dicotomicamente: as muçulmanas são candidatas ao casamento, muitas vezes mediado por agências matrimoniais do próprio EI. As outras mulheres, as não crentes, podem ser objeto de violência sexual e/ou física. Há um esvaziamento do simbólico, que permitiria o equívoco do inconsciente, em favor de uma proliferação dos signos (SELAMI e SALEM, 2016).

 

Uma nova relação se instaura: entre irmãos. Oliver Roy (2016) enfatiza a inexistência de extremistas mais velhos. De uma forma diferente da observada em grupos como o Hamas, no EI há uma ruptura geracional. Quando já havia uma evaporação do pai, um enfraquecimento da função paterna, delineia-se um corte, a saída de casa, a adoção de ritos e referências alheios à família.

 

Os novos nomes trazem na raiz o Abu, o pai. Jeffrey (2016) nos lembra que o termo radicalização se refere à raiz, à filiação. Um novo pertencimento se instaura, destruindo o que havia antes. Assim, cada um porta um nome do pai, uma versão do pai, que dá acesso a uma relação fraternal e a uma relação regulada com as mulheres.

 

O ódio de si pode se externalizar no ódio do Outro, com a permissão e a exaltação da violência. É uma cultura da pulsão de morte. Oliver Roy (2016) diz que não se trata de um islamismo radical, mas da radicalização do islamismo. A radicalização seria a pura recusa da opacidade do sexual.

 


Referências
COSENZA, D. Le refus dans l’anorexie. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2014.
COSENZA, D. La dimensione S0 e l’oggetto niente nelle psicosi ordinarie. Disponível em: https://congresoamp2018.com/wp-content/uploads/2017/04/PAPERS-7.7.7.-N%C2%B01-Multilingue.pdf > Acesso em 21 de agosto de 2017.
JEFFREY, D. “La radicalisation des jeunes djihadistes”. In: JEFFREY, D. et al. Jeunes et djihadisme – les conversions interdites. Paris: Les Presses de l’Université Laval, 2016.
LACAN, J. Prefácio a O despertar da primavera (1974). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.557-559.
LACAN, J. (1972-73/1975). Le Séminaire, livre XX: Encore. Texte établi par Jacques-Alain Miller. Paris: Éditions du Seuil.
LACHANCE, J. In: JEFFREY, D. et al. Jeunes et djihadisme – les conversions interdites. Clamecy: Les Presses de l’Université Laval, 2016.
ROY, O. L’interview: Rencontre avec Oliver Roy “La crise du monde musulman”. In: Mental: Identités en crise. Paris: La nouvelle imprimerie laballery, 2016.
SELAMI, M., SALEM, J. H. “Conversion djihadiste des jeunes en Tunisie postrévolucionaire: alterité, corporalité et spatialité”. In: JEFFREY, D. et al. Jeunes et djihadisme – les conversions interdites. Paris: Les Presses de l’Université Laval, 2016.

CRISTIANE DE FREITAS CUNHA VINICIUS MOREIRA LIMA
Membro da Escola Brasileira de Psicanalise (AMP) cristianedefreitascunha@gmail.com VINICIUS MOREIRA LIMA



A Violência No Jovem: Sintoma Ou Não?

PHILIPPE LACADÉE

 

ANA OU LACADE – QUEBRAR LEIS

Por ocasião da Jornada do Instituto da Criança[1], Jacques-Alain Miller perguntava-se se a violência na criança era um sintoma. Pois quem diz sintoma, em psicanálise fala, em termos freudianos, de deslocamento, de substituição de uma satisfação pulsional, o que, em termos lacanianos, pode se traduzir como gozo. A violência produz-se quando, precisamente, não há esse deslocamento, essa substituição? Eis a questão que se deve colocar: “O surgimento da violência não é testemunho de que não houve substituição do gozo?”, precisa J.-A. Miller.

 

No capítulo II de “Inibição, sintoma e angústia”, Freud (1926 [1925] 1980) define: “Um sintoma é um o sinal e o substituto de uma satisfação pulsional que não ocorreu”.

 

Recusa de gozo

 

O sintoma caracteriza-se como substituto de um gozo recusado. A castração é definida por Lacan a partir de uma recusa do gozo, o que introduz uma referência à iniciativa do sujeito no âmbito de uma escolha – aceita-se ou recusa-se.

 

Assim, a castração como recusa de gozo implica o fato de que este não ocorrerá. Porém, Lacan, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo” (1998), introduz um raciocínio dialético: “O gozo deve ser recusado para ser alcançado”. Ele não deve ter tido lugar para advir. Trata-se do fato de que a castração é um deslocamento do gozo, de que o gozo deve ser recusado, em certo plano, para ser alcançado no nível da lei. Ele deve ser recusado no real para ser alcançado sob a égide do simbólico.

 

O que Lacan chama de lei do desejo é justamente essa recusa do gozo no real, a passagem do gozo para baixo (da barra). É isso que repercute a metáfora paterna, que é a tradução, em termos edípicos, do processo do recalque e pode ser generalizada, caso se postule que o operador essencial do recalque é a própria linguagem, a palavra, que opera essa passagem do gozo para baixo, no sentido de que bloqueia sua ocorrência.

 

O resultado do ‘processo do recalque’, como esclarece Freud, é precisamente o sintoma. O preço do recalque é a formação do sintoma como signo e substituto de um gozo não realizado. Em outras palavras, a legalização do gozo paga-se com a formação do sintoma. O ser humano, como falasser, está condenado a ser sintomático.

 

Lacan, em seu retorno a Freud, especifica que o adversário de Eros, do amor, não é o ódio; é a morte, Thanatos. É preciso diferenciar a violência do ódio. O amor, como o ódio, são modos de expressão afetiva de Eros. O ódio está do lado de Eros e é, de fato, um vínculo muito forte ao outro, é um laço social eminente, como se viu na Jornada. Quanto à violência, ela está do lado de Thanatos.

 

Uma pragmática da abordagem da violência, retorno à agressividade

 

Proponho retomar o conceito de agressividade tal como Lacan o elabora em “Agressividade na psicanálise” (1998), de 1948, para esclarecer a violência a partir da agressividade, já que ele diferencia intenção agressiva de tendência à agressão. Durante a delicada transição da adolescência, a questão do corpo entra em jogo de maneira violenta, seja sobre o corpo do outro, seja sobre o próprio corpo mediante mutilações ou escarificações.

 

Constatei, após 35 anos de prática com muitos em hospital-dia para adolescentes, que a violência é mais presente na clínica hoje, frequentemente porque os jovens que recebemos foram tratados, antes, em programas de terapias cognitivo-comportamentais (TCC), em que não são acostumados a falar e dizer de seus sofrimentos, em que são reduzidos a objetos que devem entrar em escores terapêuticos sem que seja reconhecida a relação deles com a língua e com o corpo. Encontram-se, portanto, novas modalidades de se fazer ouvir pelo Outro, que passam por fenômenos de gozo de corpos, sob o modo de violência verbal ou de violência sobre o corpo.

 

Intenção agressiva e tendência à agressão

 

A intenção agressiva, Lacan situa na vertente de uma vontade de dizer do sujeito que não chega a se revelar ao Outro numa dialética do sentido. Ela pressupõe um sujeito que se manifesta na intenção de um Outro. Lacan chega até a introduzir a noção de reivindicação como modo fundamental de se endereçar ao Outro. A reivindicação é demandar alguma coisa que se crê merecer. Se, mais tarde, Lacan vai declarar que todo discurso é demanda, em 1948, ele afirma que toda palavra é agressão. A posição de neutralização da agressividade que o discurso analítico oferece permite que a intensão de significação mascarada pela intenção agressiva surja. O analista não se apresenta como aquele contra quem se dirige a agressão, mas enseja à agressão se inscrever no registro verbal. Para Lacan, a intenção significa que a agressão é decifrável como acting-out a ser lido como sintoma – há, pois, uma possibilidade de interpretação. Trata-se, precisamente, de encontrar um lugar de destinação do sofrimento inerente à intenção agressiva. Seu mecanismo evidencia, antes, a negação, e, portanto, o recalque está incluído, preferencialmente a uma falha da defesa. Nesse caso, não é a foraclusão que está em jogo.

 

Lacan passa “da subjetividade da intenção à noção de tendência à agressão”, isto é, faz uma transposição da fenomenologia à metapsicologia. E, assim, ele vai esclarecer não só uma clínica de psicose mas também os acessos de violência dos jovens em função da tendência à agressão.

 

A tendência é, como esclarece J.-A. Miller, algo já objetivado, algo que se apresenta de maneira bruta, sem qualquer dialética de sentido, e algo sobre que a interpretação permanece sem efeito.

 

Na tendência à agressão, o sujeito é tomado por uma experiência de vida em que ele não é mais um efeito de sentido, mas encontra no real alguma coisa fixada no corpo que o arromba. Pode-se apreender essa tendência destacando-se do registro da foraclusão do sujeito, e, portanto, da passagem ao ato. Lacan desenvolve, desse modo, uma tese: o homem deve assumir seu despedaçamento original, em decorrência do qual se pode dizer que, a cada momento, ele constitui seu mundo pelo próprio suicídio e do qual Freud teve a audácia de formular a experiência psíquica tão paradoxal como expressão, em termos biológicos, do instinto de morte – que, mais tarde, chamará de pulsão de morte – ou mesmo como gozo fora de sentido.

 

A orientação lacaniana em face da violência é, pois, essencial. Não se deve desconhecer que há um despedaçamento original do sujeito, que Freud chama de Hiflosigheist, situado por Lacan principalmente na perspectiva da paranoia. Quando o sujeito se encontra sem o recurso a um discurso estabelecido e que se reatualiza no momento do despertar da primavera.

 

Em texto de Lacan sobre a agressividade, o despedaçamento do sujeito apresentado como a forma mais essencial da subjetividade humana é a paranoia – e essa paranoia como relação ao Outro imprime a modalidade da agressão. Pode-se compreender, em duas histórias, com base em dois sujeitos adolescentes, como os acessos de violência se desencadeiam para eles em consequência do fracasso no estabelecimento da defesa. Aliás, ambos dizem muito claramente que são violentos para se defender, que essa é a única possibilidade. O operador essencial do recalque, que é a linguagem, não opera, para eles, a passagem do gozo para baixo, não bloqueia sua ocorrência. No caso dos dois, o gozo não é recusado, nenhuma castração se opera. Alexis, jovem herói de A Virgem dos assassinos, ilustra essa tendência à agressão enodada ao próprio corpo como única saída para se defender de um real pulsional que o persegue, no seio mesmo de seu corpo, e atualiza sua violência sobre o corpo dos outros e, também, na cidade. Definitivamente, é o triunfo da pulsão de morte e da violência como ato gratuito. Para Alexis, é o sinal da liberdade, porque desligada de qualquer causa. Os sicários, contudo, rendem homenagem à Virgem, já que encontram, nesse ato, um ponto de apoio essencial para justificar, na falta da metáfora paterna, suas existências. Petit Roi, o herói da novela Inferno, ensina como as marcas violentas dos golpes de sua mãe, na falta de um pai para se apoiar, o confrontam com uma escolha forçada: matar ou morrer, a solução de ser um ator da violência na cidade. Ele ilustra plenamente o mais de gozo implicado na sua violência, como se estivesse preso no turbilhão de uma violência sem porquê. Ele nunca teve lugar nem endereço, devido à ausência de seu pai e à violência de sua mãe, para situar uma possível razão para o enigma de sua existência. Nenhuma explicação provável para o desejo do Outro e, por via de consequência, não pode se vincular ao Outro. Como resultado, é a violência que se tornará sua única resposta concebível em face do real que o persegue. É possível que a violência da criança anuncie, exprima, uma psicose em formação. É preciso, então, se questionar o intento da agressão e tentar apreender se a violência é uma violência com palavras – ou seja, se o paciente pode expô-la em palavras, se ela é simbolizada ou simbolizável. Ou se a violência resulta da tendência agressiva pelo puro surgimento da pulsão de morte, por um gozo no real. Se é um puro gozo no real, isso não sinaliza, necessariamente, psicose. Isso traduz, em qualquer caso, uma ruptura na trama simbólica, de que é preciso saber se é pontual ou durável, o que verá no caso de Jean. Um apelo urgente da mãe de Jean no momento em que se revela um acontecimento de violência Certa manhã, a mãe de Jean me telefona, às 8h, para dizer que não pode mais e quer que eu a receba com urgência, porque seu filho havia destruído tudo em casa. Digo-lhe: “Mas você sabe que devo vê-lo às 17h”. E ela responde: “Sei. Ele está ao meu lado”. E acrescenta: “Porém, não é mais possível. É preciso fazer alguma coisa, e ele concorda com que eu o acompanhe”. Recebo os dois. A mãe está com muita raiva do filho e explica-me que ele tinha quebrado tudo. Ele diz que arrebentou uma corda grossa e bateu a cabeça contra a parede, para se acalmar. Decido não aceitar sem discutir a imposição do significante ‘violento’ usado pela mãe e por seu filho. Isso pode ser apenas um fator secundário. Tento não ignorar que há uma revolta da criança, que pode ser sã e se distinguir da violência errática. Pode ser que ele teve razão de se revoltar? “Tem-se razão de se revoltar”[2]. Com Jean, nesse dia acompanhado de sua mãe, devo, então, entrar no plano da investigação sobre crianças violentas proposto por J.-A. Miller. Trata-se de uma violência que pode ser falada e, em caso afirmativo, resta saber o que ela diz? Não é, também, o caso de se procurarem os traços discretos da paranoia precoce, sem se esquecer de que o sujeito aparece, que a criança nasce sob a égide da paranoia? A violência que fala pode ser tanto de ordem paranoica quanto de ordem histérica. No que concerne mais propriamente ao recalque, levando-se em conta o Freud posterior a Inibição, sintoma e angústia, deve-se, igualmente, questionar a defesa da pulsão, uma defesa que se inscreve aquém do nível do recalque. É preciso ‘distinguir quando a violência resulta de um fracasso no processo do recalque ou de uma falha no estabelecimento da defesa’. Evidentemente, ela é mais facilmente alcançada no primeiro caso. A mãe insiste sobre a violência do filho e diz que esta deve ter uma causa, que ela não a aguenta mais, e detalha-me as circunstâncias da situação. Dou-me conta de que ao filho foi destinado, muito cedo, o lugar de violento, de quebrador.

 

Mesmo considerando que a violência na criança talvez seja de ordem psicótica, tento implantar-lhe um significante de autoridade, um ersatz com ofício de significante mestre, pois a mãe não para de afirmar que é a única a tomar posição e que, divorciada, o marido se recusa a intervir. Digo-lhe que, se isso é insuportável, ela pode chamar a polícia, pois não tem de suportar tudo, que há limites e que a polícia, como guardiã da paz, também pode ser usada para tanto, que “às vezes é preciso de um terceiro para parar”. Ela perturba-se: “Mas meu filho não é um delinquente e vim falar com um psicanalista e não com um comissário de polícia”. Minha intervenção visava a introduzir um significante com a função, o valor, de S1. Procuro ‘distinguir a violência como surgimento de uma potência no real da violência simbólica inerente ao significante’ que se sustenta na imposição de um significante mestre. Se essa imposição de um significante mestre falta, Jean não precisa encontrar um substituto e acaba impondo violência a seu corpo, porque não é a primeira vez.

 

Embora eu tenha evocado verbalmente um apelo ao guardião da paz, o analista não deve se tornar o guardião da realidade social. Ele tem apenas o poder de reparar, eventualmente, um defeito do simbólico ou de reordenar a defesa. E, de qualquer forma, o efeito de seus atos ocorre apenas lateralmente. Decido, então, manejar uma contraviolência simbólica, procedendo, antes, de forma suave, utilizando o poder da palavra, já que resta, de fato, saber por que Jean cometeu violência contra o próprio corpo.

 

Quando começa o domínio da violência

 

“Não sabemos em que confins a palavra se destitui e começa o domínio da violência, em que ela reina sem ser preciso provocá-la” (LACAN, 1998, p. 375).

 

Esse domínio da violência dá testemunho de fenômenos de corpos aberrantes, como o acesso de violência sobre si mesmo ou sobre o outro, o que nos leva a investigar o tempo que a precedeu e em que tais fenômenos vêm se inscrever. Qual é a articulação significante que, por essa via, produz esses fenômenos de corpo?

 

“Eu proporia que, quando se lida com o que chamamos, na nossa vulgata, fenômenos próprios de gozo, se busque sempre articulá-los em seu lugar no processo simbólico, porque isso continua a ser a lição fundamental de Lacan” (MILLER, 2003, p. 239).

 

Em “Questão preliminar”, Lacan sugere uma articulação em dois tempos: um primeiro, no âmbito de um processo simbólico, em que há uma articulação significante S1-S2; um segundo, quando há irrupção de um gozo. O fenômeno do corpo transborda a dimensão simbólica, mas inscreve-se no contexto de uma lógica. Jamais se deve, porém, deixar de associá-lo ao processo simbólico anterior. Tratando-se da criança violenta, não se pode deixar fascinar pela causa. ‘Há uma violência sem porquê, que é, em si mesma, sua própria razão, que é, em si mesma, gozo’. Somente num segundo momento, buscar-se-á o determinismo, a causa, o mais de gozar que é o motivo do desejo de destruir, da ativação desse desejo. Há, no caso de Jean, um ‘defeito no processo de recalque ou, em termos edípicos, um malogro da metáfora paterna’.

 

A propósito de Jean, interrogo-me, então, sobre a defesa no que concerne à pulsão, defesa que se inscreve aquém do nível do recalque. É preciso ‘distinguir quando a violência resulta de um malogro no processo do recalque ou de uma falha no estabelecimento da defesa’.

 

O processo simbólico

 

Proponho-me, em seguida, tomar distância do significante designado pelo Outro. O sujeito deve ser considerado um lugar de indeterminação. Pergunto-me então: que escolha ele fez? Que direção tomou?

 

Isso só pode ser abordado mais tarde. Resolvo, nesse momento, ser muito minucioso no levantamento dos propósitos da mãe no que concerne a seu “destruiu tudo”, solicitando-lhe especificar o que Jean tinha destruído e, levantando-me da minha cadeira, olho a cabeça dele e digo-lhe: “Sua cabeça, porém, não tem nada. Não vejo onde ela arrebentou”.

 

Esclareço aos dois que, às vezes, é preciso prestar atenção às palavras que se emprega, porque, depois, não se apreende muito bem o que aconteceu. Após a invocação ao guardião da paz, empreendo um processo simbólico.

 

A mãe explica-me então, que, na verdade, Jean quebrou o vidro de uma mesa, socando-a com o punho cerrado, e, em seguida, quebrou a porta de seu quarto com um soco. “Você sabe que essa não é a primeira vez. Na escola também, um dia, por causa de sua namorada, Léa, ao socar a porta do banheiro, com raiva, ele luxou o pulso. Logo você vê bem que ele é violento com ele mesmo, que ele se bate. E estou farta de ele quebrar tudo”.

 

Jean explica-me que, de fato, não arrebentou a cabeça, mas que a bateu contra a parede, para acalmar “seu surto de violência”:

 

– Ah, bom! Você teve um surto de violência? Pode explicar como isso aconteceu?

– Sim. A coisa sobe e a única maneira de acalmar tudo é a minha tendência, são os punhos cerrados.

– Explique-me isso: “minha tendência são os punhos cerrados”.

– Começa no baixo ventre e, depois, me toma o corpo, a garganta, fixa-se em mim e faz cócegas nos braços. Meus braços contraem-se, como em convulsões, e a única maneira de se resolver, de fazer isso parar, é socar com os punhos cerrados, para o arrancar.– Arrancar o quê?

– É como alguma coisa em excesso, fixada em mim, cócegas enormes.– Ah, bom! Porém, às vezes, sentir cócegas é agradável, não?

– Não. De fato, no caso, é a cólera que me faz cócegas no corpo; são as observações que fazem a meu respeito. Guardo-as para mim, em mim, e, depois, isso transborda do meu corpo e sai pelos punhos cerrados.

 

Em seguida, conta-me que, sem dúvida, ele passa por um registro muito diferente, quando bate a cabeça contra as paredes – trata-se, na verdade, do muro da linguagem, pois afirma, com segurança, ter arrebentado a cabeça, o que não parece uma metáfora, mas, sim, o que ele viveu no real. Parece que esse fenômeno traduz, então, o fracasso do processo de defesa, e é por isso que tentei, ao me levantar e olhar a cabeça de Jean, um processo de deslocamento.

 

Quando a violência parece ser o contrário de um sintoma

 

A violência de Jean parece ser o oposto do sintoma. Ela não é resultado do recalque, mas, antes, a marca de que este não se operou. E não parece ser um substituto da pulsão, mas, ao contrário, a satisfação da pulsão de morte.

 

A criança violenta é aquela que quebra e encontra prazer no simples fato de quebrar, de destruir. Será preciso interrogar Jean sobre o gozo implicado nisso e sobre o que se poderia chamar de “o puro desejo de destruição”. J.-A. Miller determina: “Quando se denunciam os quebradores, denuncia-se, no final das contas, o puro gozo de quebrar. Não se denuncia a política dos quebradores, denuncia-se o ‘mais de gozar’ implícito na violência dos quebradores”. É, pois, esse ‘mais de gozar’ que convém questionar.

 

Para Jean, esse não parece ser o caso. Ele declara que não tem palavras no momento da ocorrência, portanto, não pode repeti-las, já que é como uma pulsão, algo que cresce e se replica. Ele tenta, então, um esforço de tradução do que lhe parece aumentar esse gatilho de violência. É, no mais das vezes, uma recusa de sua mãe, mas ligada, sobretudo, às palavras ditas por ela. Afirma, a propósito, que são essas que o ferem, principalmente as observações dela, que se repetem em sua cabeça e se transformam nele, como se ele próprio se dissesse: “Você só faz merda. Ainda que trabalhe, não conseguirá nada”. O que o deixa colérico é o fato de as advertências de sua mãe lhe tomarem o corpo, como se ele os contivesse em si mesmo, quando, como explica, “elas são dela e, de repente, me encontro com elas em mim, o que me faz perder a cabeça”. Jean não compreende os comentários dela, porque ele sabe que consegue:

 

Tiro boas notas, embora seja verdade que não faço os exercícios de revisão, pois, para mim, é perda de tempo. Presto atenção às aulas, tenho uma memória excelente e isso é suficiente. No entanto, ela quer que eu deixe minha tela e faça as revisões. E, de noite, ela toma meu celular.

 

E, nesse momento, pesa, cada vez mais, o fato de a mãe se recusar a aceitar Léa, a namorada dele, ou de concordar que ele saia pela cidade com ela. Além disso, à noite, toma-lhe o celular, para que eles não se falem pelo telefone por toda a noite. É, portanto, essa recusa de sua mãe, ligada à sua maneira de falar com ele, que o faz explodir. É, pois, essa recusa do gozo no real que ele não pode simbolizar. No caso de Jean, mostra-se defeituoso o próprio operador da linguagem – ou seja, a palavra. Então, sobrevém-lhe um gozo sem sentido e a violência, para tentar se liberar disso.

 

De fato, Jean também explica muito bem que o que ele não suporta é o tom de voz de sua mãe, sua maneira de lhe dirigir observações. Ele sente na entonação dela o fato de o tratar como um cão, que deve obedecer, e sente-se um pouco humilhado. Há nisso um traço discreto de paranoia? Porque ele se sente perseguido por essa voz, que parece doutrinar seu ser. Sente-se que, quando sua mãe lhe fala, isso fala dele e, mesmo, fala nele. Como indica Lacan, em “Posição do inconsciente”, para o sujeito, “isso fala dele e é nisso que ele se apreende” (LACAN, 1998, p. 843). Em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache…” (LACAN, ibid. 653-691), há uma passagem muito elucidativa sobre a determinação do sujeito pelo discurso que o precede. Antes mesmo que ele surja, isso fala dele. Porém, de fato, Jean será mais preciso.

 

Quando a violência parece fazer sintoma

 

Ele dirá que sente, nessa voz, o fato de sua mãe não ser feliz, visto que ela declarou, um dia, aos filhos, que tinha sacrificado tudo – sua carreira, sua vida de mulher – para criá-los sozinha. Então, ele lhe fala que não entende por que ela não é feliz; que se isso lhe é insuportável, ela deveria refazer sua vida, ter um companheiro e, sobretudo, tentar de novo o curso superior, a fim de ganhar mais e parar de se queixar de sua vida diante deles:

 

Eu queria me orgulhar dela, mas ela não se orgulha de si mesma, não se ama e isso eu não suporto. (…) Quando ela, do seu jeito, me impede de aproveitar a vida, de sair com minha namorada, de jogar no computador, isso me encoleriza e me faz ter esses surtos de violência, quebrar tudo e me bater, para tentar parar o que acontece comigo (…) Pois não tenho vontade de fazer o que ela faz: não aproveita a própria vida e me condena a ser igual a ela. (…) Amo minha mãe, mas sinto que ela não se ama; então não quero ser igual a ela e, ao mesmo tempo, do mesmo modo, não me amo e bato para parar isso.

 

A violência de que Jean fala pode ser tanto de ordem paranoica quanto de ordem histérica. Com base no que ele informa, pode-se levantar a hipótese de que, numa clínica sob transferência, no ponto em que a palavra permite encontrar um lugar de endereçamento, tal violência é de ordem histérica. Ela tem o valor de demanda de amor ou de queixa contra a falta a ser. E encontra seu lugar no registro de Eros. Nesse registro, a violência da criança é o substituto de uma satisfação não advinda da demanda de amor. Em tal contexto, com efeito, a violência é um sintoma e é o que permite marcar e tornar operatória uma clínica analítica.

 

Conclusão

 

Vimos que é preciso ‘distinguir a violência como surgimento de uma potência no real e da violência simbólica inerente ao significante’, que se sustenta na imposição de um significante mestre: “Quando essa imposição do significante mestre falta, o sujeito pode se encontrar um ersatz, marcando-se a si mesmo – escarificação, tatuagem, piercing, diferentes maneiras de se cortar, de se torturar, de impor violência contra o próprio corpo”, como afirma J.-A. Miller (2003).

 

Hoje, isso está de tal forma generalizado, que se torna moda, é um fenômeno de civilização, é superficial; mas eu diria que é o sintoma da perturbação própria da ordem simbólica herdeira da tradição. Isso dito, restará sempre saber por que alguns sujeitos são mais sensíveis que outros, a ponto de cometerem violência contra seus corpos.

 

Por isso, levar em consideração apenas o comportamento violento pode confirmar e produzir ainda mais violência, como pude verificar no final de minha prática em instituição. E é por isso, ainda, que importa, como propõe J.-A. Miller, referir-se ao último ensino de Lacan e considerar, também, a violência na criança como um sinthoma, ou seja, impõe-se dar lugar a “uma violência infantil como modo de gozo, mesmo quando isso é uma mensagem, o que significa não a atacar de frente” (MILLER, 2003).

 

Não a atacar de frente implica saber responder à margem, se deslocar, propondo modalidades de respostas variadas, e saber lidar com certa agressividade necessária, que, como afirma Lacan no início de seu ensino, é a via para se apoiar sobre uma identificação ao outro como semelhante. Daí a necessidade de uma prática por vários. Não é, afinal, o que tentei, ao oferecer um espaço de conversação a Jean e a sua mãe, para destravar as identificações muito petrificantes que, frequentemente, levam ao pior?

 

 


Referências
FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. XX, p. 107-200.
LACAN, Jacques. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 807-864.
LACAN, Jacques. “A agressividade em psicanálise”. In: ______. p. 104-126.
LACAN, Jacques. Introdução ao comentário de Jeans Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: ­­______. p. 375.
MILLER, Jacques.-Alain. Conversation sur les embrouilles du corps. Ornicar? Revue du Champ Freudien, n. 50, 2003, p. 239.
VALLEJO, Fernando. La Vierge des tueurs (1942) [La Virgen de los sicarios]. Paris: Belfond, 1997. Romance adaptado para o cinema pela cineasta Barbet Schroeder (2000).
Tradução e revisão
Ana Lydia Santiago e Cristina Vidigal
[1] Trata-se da 4ª Journée de l’Institut Psychanalytique de l’Enfant – Após a infância –, promovida pela Université Populaire Jacques-Lacan, no Palais de Congrès d’Issy-les-Moulineaux, em Paris, em 18 de março de 2017. No encerramento desse encontro, em conferência proferida de praxe por Jacques-Alain Miller, ele propos para a próxima jornada, em 2019, o tema Crianças violentas. Tal conferência, objeto do presente artigo, está publicada em Opção Lacaniana, nº 77, ago. 2017, p. 23-31.
[2] Cf. MILLER, J.-A. “Comment se révolter?”, In: La Cause freudienne, no 75, jul. 2010, p. 212-217.



Paradoxal Virilidade

FABIAN FAJNWAKS

 

VIRILIDADE – DAVID HOCKNEY OLYMPICS POSTER 1984.

Nossa época parece ter incorporado a ideia de que a virilidade não passa de uma impostura, e se Jacques Lacan fazia valer, em 1958, que a ‘parada viril’ não é sem apresentar algum traço da feminilidade, hoje é a própria virilidade que parece se apresentar sob um estatuto paradoxal, até mesmo ‘impossível’ (COURTINE, 2011, p. 7). Talvez mesmo: paradoxal, uma vez que impossível. Lá onde Lacan apontava o efeito de redobramento produzido pela parada viril de se vestir com uma máscara que feminiza o macho, para “representar o macho”, nossa civilização do empuxo-ao-gozo perdeu todo o respeito para com todo semblante, particularmente o semblante fálico, donde essa constatação de “impossibilidade” ou de “paradoxo”. Essas são as palavras que voltam na escrita de um historiador como Jean-Jacques Courtine, para quem a emancipação das mulheres e a liberalização dos costumes minaram o antigo privilégio da virilidade; e essa mudança de regime na civilização produziu o efeito paradoxal de que, “no início do século XX, a virilidade parece se dissociar do corpo masculino do qual ela foi por tanto tempo o emblema, a mercadoria, performance, travestilidade ou paródia, como soube discernir Judith Butler” (COURTINE, 2011, p. 10). Basta seguir o destino que a moda, a publicidade, a indústria cosmética e a cirurgia estética imprimiram no corpo da mulher, nele explorando completamente o paradoxo sublinhado por Lacan, sem que isso perturbe mais ninguém.

 

O direito à satisfação sexual generalizada, a obsessão erétil, a difusão maciça da pornografia, juntamente com a medicalização das falhas genitais, teriam contribuído para uma disseminação de uma cultura da impotência. A virilidade pós estudos do gênero e pós-queer seria, então, uma virilidade fundada sobre a fraqueza: “Como compreender então, pergunta-se o historiador, que uma representação baseada sobre a força, a autoridade e o domínio tenha terminado por parecer frágil, instável e contestada?” (COURTINE, 2011, p. 10). O homem aparece, a partir de então, marcado por um signo de impotência, e os emblemas da virilidade teriam migrado para outro lugar.

 

Essas constatações coincidem com o que a experiência de uma análise ensina: que a virilidade articula um impossível, que está na ausência de uma inscrição do corpo falante no tipo de gênero ao qual ele corresponde. Se as identificações e a relação a um tipo de gozo lhe permitem dar uma solução a esse furo que a sexualidade implica, essa solução se declina sobre um fundo de ausência de um escrito que lhe daria um ser sexuado, ser que, portanto, não cessa de não se escrever. Não surpreende que as observações da época coincidam com as de uma análise, porque agora a análise aborda a experiência do falasser do lado do gozo, para além de todo Ideal e de todo semblante. Exceto que, aqui, em que a época verifica que o homem se apresentaria desprovido de todo semblante, sobretudo fálico, a análise deixa a um homem a possibilidade de se orientar pela relação a um desejo.

 

Angry white men

 

Sabe-se pelos jornais que existe, principalmente nos EUA, uma vasta homem-osfera, que se desenvolveu na internet nos últimos anos, furiosamente misógina, muito irritada contra o gênero feminino e com o feminismo triunfante, e que espera restabelecer o lugar anteriormente ocupado pelo povo masculino. Esses “homens de verdade” viram, na vitória de Donald Trump, uma revanche e um progresso para a causa masculina, contra o antimacho Barack Obama (Cf. LESNE, 2017). É como se o retorno de compensação do discurso sobre a paridade social e familiar tivesse dado lugar à reivindicação dos verdadeiros valores machos e ao movimento “masculinista”. Warren Farrell, autor do O mito do poder masculino, antigo professor na Universidade Rutgers, em Nova Jersey, e ex-militante feminista, talvez constitua o melhor exemplo desse movimento de contrapeso: ele foi eleito três vezes para o Departamento Nacional de Defesa das Mulheres (NOW[i]), no fim dos anos de 1970. Defensor do direito das crianças de contar com ambos os pais após os conflitos relacionados aos divórcios e também com a presença incondicional desses junto aos filhos, atraiu a ira das feministas mais radicais, antes de se tornar abertamente inimigo delas, no momento da publicação de um livro sobre as desigualdades sociais no qual sustenta que os homens têm melhores salários do que as mulheres, mas que elas gozariam de uma vida mais equilibrada, forçando, assim, a ideia de que ganhar mais não implica necessariamente em mais poder.

 

De acordo com W. Farrell, os homens brancos se sentiram incompreendidos quando Hilary Clinton falou sobre a igualdade de salários e se voltaram massivamente para Trump, que soube captar essa parte importante do eleitorado branco, com seu discurso neomachista e discriminatório. Hoje, os homens brancos se sentiriam fracos, não tendo mais a impressão de fazer parte das estruturas de poder, e estariam, então, duplamente fracos, já que as outras minorias os considerariam privilegiados. Eles esperam, assim, que se reconheçam seus ‘sofrimentos’ e que se dê a eles o poder de que gozavam antigamente.

 

Livrar-se do carcan fálico

 

Tomo emprestado de Bruno Halleux o termo carcan[ii] para dizer o quanto, em meu caso, eu idealizava a virilidade e seus semblantes: tendo crescido cercado por mulheres, eu manifestava certo sarcasmo diante da impostura viril, uma vez que eu a via como uma enganação. À maneira do famoso aforisma nietzschiano, atrás dessa impostura eu só via a comédia de um Ideal… Que era também a minha! Pois esse olhar irônico escondia uma certa idealização dessa posição viril associada ao ‘porto fálico’, uma vez que eu me defendia de querer ser o falo do Outro, sob a forma do idiota. Rapidamente, a análise me permitiu desmascarar essa posição que estava na origem das minhas inibições e de meus sintomas e me desalojou dela. Mas isso não me satisfez e eu me lancei à conquista desse Ideal, de ‘superidentificar’ com aquele que tem o falo. No momento em que eu começava a me liberar da posição infantil, na qual eu estava aprisionado, eu me trancava em uma nova jaula: aquela do homem surdo a toda sensibilidade feminina e, até mesmo, às demandas legítimas de abrigar seu ser em minha castração, divisão que eu guardava para mim, deixando a parceira em sua desorientação.

 

Eu me tornava, então, o ator de meu próprio Ideal, dessa vez, viril! Para quebrar essas defesas, precisei, inicialmente, isolar o traço de castração presente nas ‘demandas loucas’ das mulheres da minha família que, para além da minha fantasia fundamental, faziam apelos no sentido de tudo dar ao Outro – verdadeiros cantos de sereias aos quais eu havia respondido amarrando-me ao mastro das inibições, ainda que fosse ao preço de renunciar ao meu desejo. Uma vez que a demanda foi esvaziada desse excesso de gozo, eu pude escutar a demanda de uma mulher e condescender a lhe dar um lugar, ao renunciar ao narcisismo que me protegia desse chamado de medusa. O mais-de-virilidade que eu acreditava assim obter se esvaziou e, com ele, o conteúdo angustiante que lhe dava consistência, revelando, no mesmo movimento, seu caráter de defesa. O Outro que queria minha castração perdeu sua consistência, e eu pude fazer uso do jogo de semblantes que me solicitava como homem, menos viril, certamente, mas ainda mais seguro, podendo, agora, dar sua falta para reconfortar o ser evanescente de sua parceira.

 

Uma análise feminiza um homem, permitindo-lhe estar o mais próximo, mesmo que homem, de uma mulher. Se, para aceder a esse efeito de feminização, ele deve renunciar ao fantasma da castração, assim como ao Ideal de virilidade, que o mantém em sua posição fálica, esse efeito de feminização permite que ele se afirme, mais ainda, em uma posição desejante, para além dos semblantes viris que estão a serviço de sua defesa. Verdadeira posição masculina para além de toda fraqueza ou impotência sintomática entoadas pela época. Se ele perderá de novo, a partir daqui, talvez possa ele perder melhor?

 

Talvez seja esse o verdadeiro ganho de uma análise e a verdadeira subversão que ela introduz em relação ao triunfo da vacuidade contemporânea no que diz respeito aos semblantes. Ali, onde a nossa civilização trata a virilidade como uma mera máscara, com seu efeito curioso de feminização (LACAN, 1966, p. 695), uma análise permite situar o real em jogo na fantasia do falasser, autorizando-o a se desidentificar com as posições que o impediam de aceder a uma posição desejante e, também, aos semblantes que lhe permitem articular seu desejo.

 

 

L’homme au carcan4L’HOMME AU CARCAN4

 


Referências:
COURTINE. J.-J. “Impossible virilité”. In: CORBIN A., CORTINE J.-J., VIGARELLO G. (s/dir.), Histoire de la virilité, Vol. III, Paris, Seuil, 2011.
LACAN, J. A significação do falo (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.
LESNE, C. “Les monologues du pénis”, Le Monde, 15 de janeiro de 2017. Disponível na internet.
Tradução: Jorge Mourão
Revisão: Maria Bernadete de Carvalho

FABIAN FAJNWAKS
Psicanalista, AE da Escola da Causa Freudiana e Escola de Orientação Lacaniana – fabian.fajnwaks@orange.fr



O Avesso Da Ficção Masculina

ROSE-PAULE VINCIGUERRA

ROSE – YAYOI KUSAMA

 

Na relação entre os sexos, os homens sempre representaram o sexo forte em relação ao desejo. Mas não é assim tão simples. Interroguem-se!, pede Lacan. Diante de um corpo de mulher, um homem é “embaraçado”, perturbado, bloqueado. Não que ele não saiba demonstrar, às vezes, brilhantemente, aquilo de que é capaz, mas isso é ao preço de ultrapassar inibição ou angústia; em todo caso “embaraço”, que assinala que uma barra é colocada sobre o sujeito, há um excesso. Resumindo: diante de uma mulher, um homem não saberia, “literalmente”, o que fazer.

 

De onde poderia vir o mal-estar masculino? O discurso amoroso clama pela unidade dos amantes, unidade perdida que os amantes desejariam reencontrar. Engano! Platão percebeu bem quando criticou, no Banquete, o mito de Aristófanes, do animal com dois troncos, cujas duas metades teriam sido para sempre separadas por Zeus e buscariam se unir novamente. Muthos no lugar onde o logos fracassa! A loucura desse mito nunca mais foi revista, dirá Lacan; o corte irremediável entre o homem e a mulher aconteceu. Mas isso não encerra a questão para Platão e ele resolve o embaraço do dois pelo três, pois é em direção ao Bem que, no amor, os dois tendem.

 

Freud faz, ele também, referência a esse mito de Aristófanes, mas se ele nomeia Eros a pulsão de vida, é para fazer a hipótese de que a substância viva, de início “explodida em partículas”, foi reagrupada “de maneira cada vez mais abrangente” e assim “mantida” (FREUD, 2005, p. 282). Mas essa é uma hipótese especulativa, e Freud confessa não saber em qual medida crê nisso.

 

Em contrapartida, quando se trata de homens e mulheres, ele não crê no Um do discurso amoroso; o que não impede que ele o comente. Mas que haja complemento entre eles, que o feminino seja o passivo do qual o homem será o ativo, nada é menos seguro.

 

Seguramente que um homem fique embaraçado pelo corpo de uma mulher, Freud o sabe. Analisando as perturbações da função sexual masculina, ele chega a dizer que “a impotência psíquica” (FREUD, 1969, p. 61) caracteriza a vida amorosa do homem civilizado atual. A pressão da educação certamente não está aí por acaso, mas Freud considera, nessa questão, sobretudo a insuficiência do interdito edipiano e a incapacidade dos fantasmas de se separar dos objetos sexuais primitivos, mesmo através da substituição. A mãe contamina a mulher, seja como objeto idealizado, respeitado, mas intocável, seja como um objeto rebaixado. De todo modo, a mulher vem sempre em substituição à única, à primeira, e por isso a satisfação não será, jamais, certa. Faltará sempre alguma coisa! Qualquer que seja a condição de desejo exigida no fantasma, ainda que narcísica! Não “estar familiarizado com a representação do incesto com a mãe ou a irmã” (FREUD, 1969, p. 61) permanece no horizonte dos embaraços da castração para um homem, quando se trata de abordar uma mulher. Em certos aspectos, ela permanece como tabu. Sem fusão dos sexos, portanto, mas um ideal: a convergência em uma mulher da corrente afetiva e da corrente sensual pode existir, à condição de que haja castração.

 

Lacan lê essa questão de modo um pouco diferente. É a partir da falta própria ao sexo feminino que o phallus se torna objeto simbólico, mas o significante fálico como significante do desejo não é de nenhum sexo, é um terceiro na relação dos sexos. Ainda assim, o homem deve, imaginariamente, colocar que ele o tem. Entretanto, ele não pode assumir os atributos de seu sexo senão “através de uma ameaça, ou até mesmo sob o aspecto de uma privação” (LACAN, 1998, p. 692). “Ameaça” do Outro edipiano ou “privação” por um pai real! Há aí uma “antinomia interna”. A solução mais comum aos homens é, então, dividir-se entre duas mulheres: aquela da demanda e aquela do desejo. Mas será que isso faz do homem menos embaraçado para com uma mulher? Apegado que ele é, como Ulysse, ao mastro phallus, ele experimenta o corpo de uma mulher sempre como estrangeiro. Esse corpo, próximo do ponto obscuro da Coisa, não fascina o desejo senão na medida do símbolo fálico que o separa desse gozo impossível da Coisa.

 

Retornando a essa “ficção viril, que poderia mais ou menos traduzir-se assim: ‘a gente é aquele que tem’”, Lacan tem esta fórmula: “Não há nada de mais satisfatório que um tipo que jamais enxergou além da ponta do nariz (…). Essa ficção simplória, devo dizer, está seriamente em via de revisão. Desde algum tempo se percebeu que isso é um pouquinho mais complicado” (LACAN, 1967, p. 319). Como, então, atravessar a ilusão desse ideal de potência?

 

De fato, a dificuldade de um homem, na sua abordagem no corpo de uma mulher, deve-se à particularidade de seu gozo. Mais precisamente, à detumescência do órgão correlativa ao momento do gozo sexual, que constitui um limite em relação a um gozo infinito, que seria mortífero. Há aí, com efeito, uma perda, uma subtração de gozo que se opera. Diferentemente do que ocorre com uma mulher, que, a ela, “não lhe falta nada”. E contrariamente ao que se poderia pensar até aqui.

 

Com efeito, não se trata aqui de ameaça de castração, mas de perda, de uma “perda de vida que lhe é própria, por ele ser sexuado” (LACAN, 1998, p. 863). Essa parte perdida do vivo marca a relação da sexualidade com a morte.

 

O que desaparece assim, para um homem, só o objeto dito a, por Lacan, um objeto de “separtição”, de partição interna do corpo, pode fazer reparação. Esse objeto é exterior ao campo do Outro, mas é ele que é eleito, positivado e deslocado sobre o corpo de uma mulher. Fazendo isso, um homem sempre “satisfaz” uma mulher (LACAN, 2004. p. 210).

 

Mas, que uma mulher queira gozar dele, e eis aí a angústia: é o seu ser que ela quer, ela quer castrá-lo! (Cf. LACAN, 2004, p. 21).

 

Assim, também, forjam os homens o fantasma de um masoquismo feminino (Cf. LACAN, 2004, p. 222), qual seja, o de um objeto sempre pronto a gozar de ser objeto de gozo, o que repararia a perda e lhes reasseguraria.

 

Se um homem não pode gozar senão do gozo do órgão, o orgasmo, enquanto tal, não é, entretanto, sem angústia. Mas esse tempo de angústia não está ausente da constituição do desejo! (Cf. LACAN, 2004, p. 204). Desse gozo fechado, a angústia pode, com efeito, produzir um objeto causa do desejo (Cf. MILLER, 2004). Mas é necessário, ainda, para que um homem experimente esse desejo por uma mulher, que essa angústia seja velada (Cf. MILLER, 2004)! E, aí, é ao amor que é preciso se reportar para fazer “condescender” o gozo a esse desejo.

 

Essa questão é algo trágico? Ou cômico? Lacan tende para o cômico: “é quando um homem é mulher que ele ama” (LACAN, 1979, p. 9). Comédia do falo, seguramente! O homem avança desprovido de potência, e isso o feminiza. Mas também comédia da psicose! Um homem apaixonado cria e crê em “A Mulher como sendo todas as mulheres” (LACAN, 1975, s/p.). Assim fazendo, “ele aspira por qualquer coisa que é o seu objeto” (LACAN, 1979, p. 9) e crê na relação sexual. Infelizmente, nós não sabemos o que é a mulher, essa “desconhecida dentro da caixa” (LACAN, 1967, p. 319), e, se A mulher não existe, não há significante para estabelecer a relação sexual.

Entretanto, prossegue Lacan, “é na qualidade de homem que ele deseja, ou seja, ele se sustenta de alguma coisa que na verdade é propriamente a ereção” (Idem). É que, através do seu fantasma, ele sonha com perversão, mas, qualquer que seja esse sonho, ele não pode gozar senão de partes do corpo do outro. Nada em seu gozo que lhe dê relação ao Outro sexo e constitua o corpo do Outro.

 

Assim, o gozo sexual faz barreira à relação sexual, que não existe, ao mesmo tempo em que lhe faz suplência. Há dois sexos. Uma bipartição que escapa certamente, mas sem que haja, entre esses dois sexos, contradição. Isso seria muito simples! E sem que haja, portanto, três! É preciso resolver, no impossível, o dois dos gozos. É assim que eles vivem e se comunicam! E é assim que o mal-entendido continua.

 

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Luciana Andrade

 


Referências
FREUD, S. “Le moi et le ça” (1923), In: Essais de psychanalyse. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 2005.
______. “Sur le plus general des rabaissements de la vie amoureuse” (1912), In: La vie sexuelle. Paris: PUF, 1969.
LACAN, J. “A significação do falo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. Le Seminaire, livro XIV: La logique du fantasme. Aula de 9 abr. de 1967.
______. Le Séminaire, livro X: L’Angoise (1962-1963). Texto preparado por Jacques-Alain Miller. Paris: Seuil, col. Champ Freudien, 2004.
______. Le Séminaire, livre XXV: Le moment de conclure. Aula de 15 nov. 1977, Ornicar?, nº 19, 1979.
______. Le Séminaire, livre XXII: “R.S.I”. Aula de 21 jan. 1975, inédito.
MILLER, J.-A. “La psychanalyse et l’évaluation”. Aula proferida em contexto do Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, em 2 de junho de 2004.

ROSE-PAULE VINCIGUERRA
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana. AE,AME da ECF rosepaule.vinciguerra@orange.fr