Entrevista Com Antônio Teixeira Por Márcia Mezêncio, Maria Das Graças Senna E Ludmilla Féres Faria

ANTÔNIO TEIXEIRA

ENTREVISTA

NEM MESTRE NEM JOKER: O DESTINO DA CARTA EM DERRIDA E LACAN 

 

Almanaque: Alguns autores consideram que Derrida, ao elaborar críticas pontuais e certeiras à leitura lacaniana de “A carta roubada”, se precipita ao generalizar essas críticas ao conjunto da obra de Lacan, mais especificamente aos Escritos. O que pode nos dizer a respeito dessa afirmação? Pode-se dizer que o texto “O carteiro da verdade”, de Derrida, apresenta uma vertente contra Lacan?

 

Antônio Teixeira: Não há dúvida de que “O carteiro da verdade” seja uma crítica veemente de Derrida a Lacan; tem-se ali uma carta expressamente dirigida a seu destinatário, e é nesse sentido que o texto-missiva de Derrida provoca entre nós, lacanianos, um visível efeito de comoção. Sentimo-nos afetados pela crítica de Derrida a Lacan, como se isso exigisse de nós um posicionamento em defesa de nosso mestre, coisa que de fato se sucedeu. Não faltaram intervenções da parte de autores lacanianos destinadas a expor os equívocos de Derrida, com vistas a salvaguardar o valor da doutrina de J. Lacan. Eu creio, contudo, que hoje em dia não caiba mais socorrer Lacan. O valor e a coerência de sua doutrina estão mais do que estabelecidos, Lacan dispensa nosso socorro. No lugar de tomar partido de Lacan contra Derrida, eu preferiria aqui expor a temática que essa polêmica mobiliza, pois acredito que uma abordagem mais desapaixonada, menos afetada pelo dever de defesa, talvez nos permita melhor localizar o que estava em questão no tratamento psicanalítico de um texto literário, no que diz respeito a seu endereçamento significante.

A bem da verdade, se de fato considerarmos de saída o que significa a abordagem psicanalítica de uma ficção literária, encontramos motivos para localizar, em “O carteiro da verdade”, não apenas uma vertente crítica, mas também um elogio aberto de Derrida a Lacan. Antes de Lacan, o que até então normalmente se encontrava na psicanálise da literatura, paradigmaticamente ilustrado na vasta psicografia de Edgar Alan Poe por Marie Bonaparte, era uma prática de desnudamento das motivações inconscientes do autor, por meio de uma busca pelo sentido oculto de suas elaborações ficcionais. Valendo-se de dados biográficos, a psicanálise, ali, visava o desvelamento alegórico das supostas determinações fantasmáticas do autor sob o conteúdo manifesto do texto literário, ora fazendo da carta roubada um substituto do pênis materno originalmente perdido, ora interpretando o pagamento em ouro a Dupin pela rainha como uma representação simbólica da restituição do falo que o ficcionista tenta recuperar ao longo da trama. Pois nada disso se dá na leitura lacaniana do texto de Poe, reconhece J. Derrida. Nada de psicografia, nada de carta-pênis, nada de papai-rei, nada de mamãe-rainha, nada de filhinho Dupin. Sobretudo nada de hermenêutica, nada de busca pelo sentido oculto. Em Lacan, escreve elogiosamente Derrida, a lógica do significante interrompe esse semanticismo ingênuo, num “estilo feito para frustrar o acesso um sentido unívoco, determinável além da escritura”.

E, de fato, ao lermos o texto de Lacan, raramente dimensionamos a diferença que sua leitura produziu sobre o que se fazia antes, porque, de certa maneira, nos habituamos ao que originalmente se deu de modo inabitual nessa diferença. Se hoje as interpretações alegóricas de uma Marie Bonaparte nos fazem bocejar, é porque Lacan nos formou num novo tipo de leitura que recusa o semanticismo ingênuo que até então vigorava na interpretação psicanalítica do texto literário. Lacan dispensa a via hermenêutica fazendo-nos notar, desde as primeiras páginas de seu texto sobre a carta roubada, que o sentido do que motiva o delito se encontra eliminado da narrativa. O problema se limita à busca pela devolução do objeto-carta, cujo conteúdo semântico não tem lugar no desenrolar da trama. O que conta são os deslocamentos, são as mudanças de posição da carta como significante puro, e não o significado que se lhe possa atribuir.

Armado da perspectiva estruturalista, Lacan, ali, nos convida a detectar, no texto de Edgar Alan Poe, o modo pelo qual uma ordem simbólica autônoma, ou seja, independente dos significados circunstanciais do contexto, vem constituir a posição do sujeito. Interessa-lhe, sobretudo, destacar a primazia do significante nessa determinação subjetiva, tal como se ilustra nos efeitos gerados pela posse do significante-carta sem que esteja em questão o conteúdo da mensagem epistolar. O módulo intersubjetivo da ação assim se repete na forma dos três olhares que se supõem um ao outro, no interior dessa ordem simbólica afetada pela carta roubada, e que se alternam em função da circulação do significante que a carta materializa:

  1. o olhar que nada vê, representado pelo rei, no primeiro momento, e em seguida pela polícia;
  2. o segundo olhar, que vê que o primeiro não vê e que se engana por crer encoberto o que expõe, encarnado pela rainha e depois pelo ministro;
  • e, finalmente, o terceiro olhar, que vê que o primeiro não vê e que vê o que se encontra a descoberto justamente para ser escondido: o ministro e, em seguida, Dupin.

Percebe-se, assim, que cada personagem se determina como um olhar em função do deslocamento promovido pela circulação do significante-carta que, a cada um, afeta não pelo que significa, mas pelo que comporta de suspensão da significação. O rei e a polícia, sustentações icônicas do discurso em sua ordem fálica, ali encarnam a imbecilidade do olhar que nada vê. Diante do falo, que o rei e a polícia encarnam, na forma do significante que prescreve a ordem das significações, o olhar inteligente se diferencia em sua capacidade de ler entre as linhas (inter-legere), o que se oculta nos intervalos das significações prescritas. Já a imbecilidade do rei se encarna na cegueira do olhar, que não percebe a carta exposta sobre a mesa, porque somente enxerga as significações codificadas, assim como a estupidez realista da polícia consiste em não perceber, como diz Lacan, que o que se oculta é algo que falta em seu lugar simbólico. Incapaz de escrutar o simbolicamente oculto no empiricamente exposto, ela se exaure inutilmente no esquadrinhamento interminável das ocultações reais.

Por oposição, pois, ao rei, ícone precário destinado a dar permanência à lei fálica, a rainha desestabiliza essa permanência por ocupar o lugar do feminino cujo ser se funda fora da Lei, materializado na posse da carta. Se a estática da estrutura simbólica se define como um sistema regrado por suas leis internas, sua dinâmica supõe a existência de algo no interior da estrutura que suas regras não alcançam, e que a coloca em movimento. É preciso – se me permitem ser repetitivo – que algo da estrutura escape às regras da estrutura para que a experiência da estrutura possa se realizar. Isso quer simplesmente dizer que não haveria conto da carta roubada se a carta voadora não viesse justamente encarnar esse ponto de fuga do feminino que afeta o sujeito ao mobilizar a estrutura, desestabilizando as significações codificadas de sua apresentação estática. Interessante, então, notar que todo aquele que se vê afetado por esse ponto de fuga que mobiliza a estrutura necessita permanecer imóvel para escapar de suas leis, fazendo crer que tudo continua parado em seu lugar, como se ilustra na situação da rainha que, ao se encontrar de posse da carta diante da chegada do rei, fica paralisada, sem esboçar nenhum movimento. Ela permanece estática, na simulação do controle que o olhar do ministro alcança, ao perceber o ponto de geração do movimento fora do movimento gerado, na forma paralisante da inação. O destino da carta móvel, assim, se revela por seus efeitos paralisantes sobre seu detentor. É por esse motivo que agora, ao cair em posse da carta, desse signo do feminino que escapa à vigília da ordem fálica, não por acaso, o ministro – observa Lacan –, por sua vez, se feminiza, mantendo-se imóvel à sua sombra. No lugar de ocultar ativamente a carta, ele a esconde deixando-a a descoberto aos olhos da polícia, como a rainha o fizera aos olhos do rei. Mas a posse da carta o entorpece, numa espécie de negligência blasée, fazendo-o também se expor, agora aos olhos do detetive Dupin, na atitude reveladora de sua inação.

A sequência é de todos conhecida. Ocultando o olhar sob óculos verdes, Dupin, em pouco tempo, divisa, em visita ao ministro, no seu apartamento, a carta desdenhosamente abandonada no consolo da lareira, dando a impressão de que se tratava de um documento sem valor. Havendo esquecido propositalmente sua tabaqueira no apartamento, ele ali retorna a pretexto de recuperá-la para, sigilosamente, se apropriar da carta e substitui-la por uma outra, após ter preparado um incidente na rua visando distrair a atenção do ministro. E, para se retirar, finalmente, do circuito simbólico da carta, nota ainda Lacan, Dupin se neutraliza fazendo-se remunerar, ou seja, trocando a carta pelo seu valor equivalente em dinheiro, significante cujo efeito é justamente o de produzir a aniquilação de toda significação. Mas sejam quais forem os desvios da carta, ela ainda assim segue, no dizer de Lacan, o trajeto significante que a conduz a seu destinatário, que é o lugar antes ocupado pelo rei, ou seja, o lugar da significação fálica que a rainha necessita preservar para não permanecer como pura deslocalização, mesmo dela escapando.

Para retomarmos, então, a crítica de Derrida a Lacan, necessitamos considerar justamente o fato de que, para o filósofo, diferentemente do psicanalista, a linguagem não comporta, por necessidade própria, nenhum endereçamento determinado. A linguagem, no entender de Derrida, seria um puro jogo dispersivo, em que só contam relações de diferença e efeitos de disseminação que a carta voadora materializa. Nesse sentido, qualquer destinação que se busca extrair da linguagem será sempre uma destinação forçada, pois é somente na medida em que um poder exterior se impõe à linguagem que ela passa a comportar uma destinação.

O sintoma desse forçamento ideológico da linguagem, aos olhos de Derrida, se verificaria nos efeitos de neutralização do narrador do conto que ele aponta na leitura de Lacan. Ao isolar as duas cenas dos três olhares que comentamos anteriormente, Lacan teria desconsiderado a figura do narrador como quarto termo, com vistas a emoldurar triangularmente a cena do Édipo na qual se inscreve o destino da carta. A exclusão do quarto termo, longe de ser um dado acidental, implicaria, no seu ponto de vista, uma decisão semântica a serviço do esquema da interpretação psicanalítica: Lacan teria colocado de lado o jogo dispersivo da narrativa, concebendo o enredo ficcional sem dar lugar ao ficcionista, como se a ficção estivesse naturalmente destinada a ser o depositário da verdade edipiana em sua prescrição falocêntrica. Somente assim, ele conclui, o seminário conseguiria mostrar que existe um único trajeto da carta, que sempre chega a seu destinatário.

Ora, existe, como todo lacaniano bem sabe, na visão de Derrida, uma concepção que ancora a linguagem no campo da escritura, por ele tomada como lugar em que a articulação dos elementos significantes não se encontram submetidos à autoridade prescritiva da fala. Sua ideia, interessante em vários aspectos, é que, em nossa tradição logocêntrica, fundada por Platão, a potência do discurso se encontra determinada por sua referência à fala do rei-pai, sem a qual o logos perderia sua unidade e se dispersaria nos jogos textuais. Por oposição ao logos fonocêntrico ordenado pela assistência do pai, o apelo à escritura rejeitada pelo rei, na mitologia de Fedro, responde a um desejo de orfandade e subversão parricida que visa restaurar seus efeitos de disseminação. Na medida em que aquilo que nos chega através de um documento escrito não depende da presença de quem o profere, Derrida entende que a escritura nos permitiria emancipar da autoridade da enunciação, dando livre curso aos efeitos dispersivos da narrativa textual. Motivado por esse desejo parricida, a Derrida interessa a desconstrução da tradição fonocêntrica para abrir espaço ao pensamento da escritura que dela foi excluído. Onde dominava o rei-pai do discurso, ele nos propõe substituir o deus Toth, da escritura egípcia, que ali funciona não como uma autoridade prescritiva do sentido, mas ao modo de um Joker, ou carta neutra, que dá jogo ao jogo na partida de baralho. Flutuante e cambiante de valor, conforme a sequência em que está inserido, “sujando”, como diz Sérgio Laia, “os conjuntos de naipes com sua imparidade”, o deus Toth da escritura nunca está presente na ordenação do texto. Sua propriedade, prossegue Derrida, é sua impropriedade, sua indeterminação que permite a substituição e a expansão contínua dos jogos de narrativas num espaço aberto.

Em sentido contrário, portanto, ao projeto anunciado por Lacan de inscrever a psicanálise no campo ordenado da fala e da linguagem, Derrida propõe pensar o inconsciente freudiano na cena da escritura. O que permitiu a Freud, no seu entender, desalojar o sujeito do eu e da consciência, para concebê-lo como efeito de processos inconscientes, seria justamente o gesto que separou o pensamento da fala e de seu registro co-extensivo da presença. Dissociado da intenção que preside a fala, esse inconsciente estruturado como uma escritura diria respeito não a uma significação que inesperadamente se encerra em um significante à parte de frase, como Lacan propõe com a operação de capitonage, mas a uma rede de traços diferenciais gerados por excitações psíquicas que, por sua vez, se abrem para novos traços excitatórios. Os múltiplos sentidos seriam produzidos pelas diferenças que, na experiência psicanalítica, se produzem por meio da prática de associação livre, cuja função seria justamente a de relançar a cena psíquica da escritura em seu processo de diferir. No lugar, portanto, do ponto de estofo de Lacan, temos o espaçamento de Derrida, em que os traços geradores de sentido se dispõem num campo sucessivamente expandido pelo seu próprio diferir, sem que nenhuma destinação nos autorize a conter os efeitos subjetivos de sua disseminação. Qualquer esforço de se restabelecer um centramento da linguagem, do qual um dos nomes seria a concepção lacaniana do endereçamento fálico da carta, não mais seria, no entender de Derrida, do que uma tentativa de reabilitar a velha tradição metafísica da presença e do logos fonocêntrico que ele tanto se empenha em desconstruir.

E de fato podemos dizer que Lacan não abre mão da ideia de destinação da carta, em referência ao lugar da lei ocupado pelo rei no conto da carta roubada. Mas em vez de exaltar o falocentrismo dessa determinação régia, na forma, digamos, de uma significação eminente, Lacan, em todo momento, nos conduz a ver que essa função, longe de corresponder a uma significação ideal, comporta, conforme dizíamos no início, estruturalmente uma cegueira, sendo antes própria “para se tornar símbolo da mais enorme imbecilidade”. Lacan em nenhum momento idealiza a representação da lei, ainda que a tome como ponto de destinação. Ele nos mostra que, embora o significante fálico coloque como significante a parte que representa o sujeito para os demais significantes, gerando os efeitos de significação, o que dá eficácia a esse significante em posição de exceção não tem nada a ver com um suposto valor elevado, no sentido de uma plenipotência imaginária que certa deriva durkheimiana da psicanálise atribui à função paterna. O que Lacan descobre, em seu retorno a Freud, é que a função de exceção do significante fálico se deve antes ao fato de ele ser, como o pobre rei do conto da carta roubada, um significante vazio, insignificante, o significante do que resta do significante quando já não comporta mais nenhuma significação.

Ao desconstruir, portanto, o logocentrismo referido à exceção do pai, sem perceber seu vazio no estatuto de puro semblante do significante fálico, Derrida termina, como nota Sérgio Laia, por exaltar o anti-pai, representado pelo Joker na apologia da transgressão que se expande na fuga de sentido do texto. No fundo, Derrida só faz permutar uma eminência por outra contrária, talvez tão estúpida e banal quanto a primeira: ao se irromper contra a ordenação da unidade da fala pelo significante fálico, sua apologia da disseminação textual parece destinada a finalmente idealizar como regra o regime contemporâneo do que hoje chamamos de pós-verdade, referido por Lacan, em La chose freudienne, ao ‘mercado mundial da mentira’. E, ao que tudo indica, o espectro do Joker parece hoje se encarnar nas figuras de Trump e – liberanos domine – Jair Bolsonaro, curingas ególatras e gozadores forjados nos jogos publicitários dos spin doctors, tanto mais terríveis quanto carentes de pontos de basta, incapazes de encadear em sua fala própria, sem o suporte de texto do teleprompter, qualquer significação minimamente coerente.

 

Almanaque: Quais consequências podemos extrair da querela Lacan e Derrida em torno do conto “A carta roubada” de Edgar Allan Poe?

Antônio Teixeira: As consequências são múltiplas, mas essa pluralidade não se pulveriza. Ela se localiza no fato de que, no nível de nossa prática clínica, não se pode conceber a psicanálise como uma experiência de pura dispersão, coisa que se lê, por exemplo, na tese, contestada com veemência por Lacan, no Seminário 11, de que a interpretação esteja aberta a todos os sentidos. Embora o sujeito não seja mestre do sentido que enuncia, nem por isso deixa de haver uma lei que ordena e localiza os efeitos da estrutura simbólica a partir justamente da instância significante, que escapa ao sentido. Mas eu gostaria particularmente de abordar, a respeito dessa função de localização e endereçamento aqui discutida, a importância que Lacan dá a posição inaugural ocupada por seu texto sobre “A carta roubada” na sequência do conjunto de seus Escritos. Existe ali uma decisão topográfica, um esforço de localização relacionado ao endereçamento dirigido ao leitor que ele visa constituir, através de seus Escritos, ao se colocar tardiamente como autor de uma obra.

Para não me delongar demais, eu irei resumir dizendo que o projeto de se constituir como obra, através da publicação da coletânea de seus Escritos, desde o início, se colocou, para Lacan, como efeito do cálculo de uma decisão. Quero, com isso, salientar que fazer-se obra não deriva, para Lacan, de um voluntarismo particular. Se ele a obra consente, é, antes, contrariado, em razão de uma escolha forçada, de uma decisão determinada pela força de um cálculo circunstancial.

O que estava em questão por ocasião da publicação dos Escritos, no final de 1966, eram os efeitos da ainda recente fundação da Escola Francesa de Psicanálise, criada em 1964, da qual Lacan assumiria explicitamente o encaminhamento tanto institucional quanto ético, político e epistêmico. Lacan estava em vias de estabelecer a unidade dessa orientação quando consentiu em publicar a coletânea selecionada de suas intervenções escritas. Sua escolha forçada pela obra se ligava, naquele momento, ao imperativo ético de restituir o sistema de pensamento em que o texto freudiano, deturpado em sua apropriação instrumental pelo contexto da ego-psychology, voltasse a revelar sua necessidade própria. A refundação da doutrina freudiana como um sistema dotado de necessidade interna implica, antes de tudo, separar a unidade da doutrina de sua disseminação circunstancial, apartando o campo das proposições necessárias da teoria dos enunciados sem necessidade das opiniões.

Nessa perspectiva, assumir a dimensão de obra, em seu sentido propriamente moderno, significa instaurar, em meio à disseminação geral da cultura, a unicidade do uma doutrina autônoma que desse múltiplo se diferencia, ali introduzindo uma superfície de refração. A obra tem por função separar, em seu endereçamento doutrinal, o corpo dos enunciados teóricos do contexto cultural que dissipa o pensamento na pluralidade inconsistente das opiniões. Centrada num sistema de nomeações que confere ao conjunto dos enunciados uma forma reconhecível, a obra realiza essa unicidade mediante a associação do nome do autor com o título materializado na publicação. O conceito gestado no interior de uma obra afirma-se, assim, como um conceito de autor, via de regra definido por um nome próprio, embora tal autoria possa também ser referida a uma coletividade reunida em torno de determinado paradigma. É nesse sentido que falamos do inconsciente freudiano, do engajamento de Sartre, do habitus de Bourdieu, da mais valia de Marx; como também podemos nos referir à lógica de Port Royal, à álgebra comutativa de Bourbaki, e assim por diante.

Importa, porém, lembrar que nem toda produção autoral se determina como obra, se dermos a esse termo seu sentido específico. É possível ser autor de artigos ou mesmo de livros sem ser necessariamente autor de uma obra, como de fato acontece na grande maioria dos trabalhos a que chamamos de monografias. Distintamente do autor de obra, o autor de monografia geralmente publica seus textos em periódicos destinados à difusão do saber já articulado a um determinado campo doutrinal. Embora Jean-Claude Milner reserve o termo “monografia” aos artigos relacionados à atividade científica, como aqueles que se publicam nos periódicos de física ou de biologia, a mim parece mais exato aplicar essa denominação a todo saber produzido no campo de uma prática discursiva previamente constituída. É nesse sentido que podemos chamar de monografias os artigos divulgados, por exemplo, numa revista de arte ou de crítica literária, sem que seu conteúdo resulte necessariamente de algum tipo de atividade científica. A monografia é a produção que se realiza no endereço já constituído por um paradigma ou sistema de pensamento.

A esse respeito, vale salientar que Lacan soube consentir com a monografia no período em que o contexto o permitia. Ele não somente publicou diversos escritos monográficos, ao longo de sua vida, como também dirigiu uma importante revista – La psychanalyse – destinada a esse tipo de divulgação. Se Lacan aceitou tardiamente adotar o desvio pela obra com a publicação dos Escritos, em 1966, foi por considerar que o contexto absorvera a psicanálise, transformando-a numa prática de gerenciamento de almas que terminou por dissipar o endereçamento específico da doutrina freudiana.

Durante certo tempo, eu acreditava ver uma singularidade no fazer-se obra de Lacan. Lacan não construiu um escrito destinado a realizar-se como obra, como foi o caso da Traumdeutung freudiana, a qual seguia canonicamente as normas de revisão bibliográfica, recolocação do problema, estabelecimento de hipóteses e, finalmente, fundação de uma nova perspectiva para tratar o objeto assim constituído. Agradava-me, nesse sentido, pensar que a obra de Lacan teria algo que se aproxima do ready-made de Marcel Duchamp. Assim como uma roda de bicicleta se converte em obra de arte pelo gesto calculado de deslocamento de sua posição na percepção social da mercadoria, transportando-a para a sala de exposição de um museu, o conjunto das monografias de Lacan parecia ter-se convertido em obra pelo simples gesto que as encadernar num volume intitulado Escritos. Uma inconfidência de Derrida, aliás, parecia confirmar minha hipótese. Ele nos relata que Lacan lhe havia confessado, logo após publicar seus Escritos, que seu temor não era de que o conteúdo de seu livro fosse criticado ou mal compreendido. Ele, na verdade, temia que os Escritos se desencadernassem, que a costura da encadernação não suportasse o volume de artigos; ele receava enfim que a obra perdesse sua unidade material e se espalhasse. Encantava-me interrogar esse fenômeno, para pensar a ideia desse objeto-livro como uma obra constituída pelo gesto de encadernação de textos monográficos.

Mas minha hipótese não era correta. Por indicação de Gilson Iannini, estudei a pesquisa historiográfica de Jorge Baños Orellana, El escritorio de Lacan Orellana, 1999, em que ele nos demonstra que os Escritos nada tinham de um ready-made. Para preparar sua obra, Lacan não se contentou em transportar seus escritos monográficos para o interior de um volume encadernado. Ele, na verdade, se fechou num hotel de Paris, onde permaneceu de março a outubro de 1966, relendo seus textos, reescrevendo-os e reexaminando as provas a serem enviadas para a edição final. Conforme os procedimentos de análise genética evidenciam, houve ali, durante esse período, um grande trabalho de transformação, destinado, sobretudo, a reelaborar o estilo texto final. Caberia então, finalmente, se perguntar por que motivo o trabalho sobre estilo se coloca, para Lacan, na transição da monografia para a obra fundadora de um endereçamento doutrinal.

Como já disse em outro momento, não me compete dissertar aqui sobre o vasto problema do estilo em Jacques Lacan, sobretudo porque já existe, a esse respeito, uma referência inultrapassável: o livro de Gilson Iannini, que hoje circula em sua segunda edição. A questão da estilística interessa-me tão somente como ponto sobre o qual se apreende a função unificante relativa ao endereçamento do autor, pois é dessa função que depende a unicidade da obra que diferencia a doutrina da disseminação geral da cultura, conferindo sua autonomia própria. Por longo tempo se supôs que o autor da obra só seria apreensível no que ele tem de único, ou seja, naquilo que somente ele poderia dizer através do estilo. Por isso, o estilo foi considerado, pela crítica literária representada sobretudo por Sainte-Beuve, como a ponte que nos conduz à unicidade do autor.

Havia, por conseguinte, uma espécie de devoção religiosa ao estilo, como se nele estivesse depositado o selo de garantia da obra. Sendo a obra a expressão da unidade da doutrina, o autor seria sua função unificante, a função do Um que só poderia ser captada a partir do estilo como marca do íntimo do autor em primeira pessoa na obra, cabendo à crítica literária o trabalho de seu desvelamento. Porém, Lacan já desconfiava dessa solução que consiste em buscar na relação do autor com o estilo o princípio de unificação da obra. Seu programa de retorno a Freud é contemporâneo de um movimento crítico destinado a desconstruir precisamente, em sentido contrário, o culto ao autor como princípio de ordenação do texto. Atento a tudo o que se passava a sua volta, Lacan não desconhecia o surgimento, a partir dos anos 60, de uma corrente crítica representada tanto por M. Foucault e R. Barthes quanto, mais tarde, por Derrida, que associava a importância conferida à figura do autor a uma visão individualista da obra nos termos burgueses da mercadoria e do patrimônio intelectual. Para Barthes e para Foucault, essa primazia dada ao personagem autoral seria apenas uma ficção historicamente datada do homem moderno, determinada tanto pela produção do prestígio pessoal do indivíduo com a ideologia da Reforma quanto pela necessidade capitalista de se unificar o produto do pensamento na forma-mercadoria. Para Barthes, o autor deveria deixar de ordenar a unidade da obra, dando espaço à dispersão de uma verdade impessoal do leitor, não comandada pela figura do eu. O que conta é o que o leitor entende e não o que o autor quis dizer.

Por sua vez, Foucault, ao meditar sobre a ideia do autor como princípio de ordenação da obra, revela-nos seu constrangimento em se constituir ele próprio como autor ao ser convocado a escrever o prefácio da 2ª edição de seu livro História da loucura. Foucault se sentia particularmente incomodado por entender que, no prefácio, o autor é chamado a prescrever o sentido do que foi escrito. Por isso, ele nos conclama a tomar suas palavras não como proposições unificadas pela função autoritária do autor, mas acolhidas na fragmentação dispersa que tanto interessa a Derrida: “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e ser levado para além de todo começo possível […]. Em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, o ponto de seu desaparecimento possível” e blá-blá-blá…

A bem da verdade, por mais irresistível que seja a modéstia de Foucault, não podemos ceder a esse devaneio no campo da psicanálise. Estamos cientes do que ocorre quando se entrega o texto à apropriação irresponsável do leitor anônimo, conforme se viu na deturpação sofrida pela doutrina freudiana em sua recepção pelo contexto americano. Seja qual for a derrisão contemporânea do autor, não podemos deixar de interrogar sobre o que queriam dizer seus fundadores. Por isso, interessa-nos meditar sobre o que o próprio Lacan tinha a dizer sobre a obra que ele nos endereçava, em 1966, e aqui retomamos finalmente o tema da carta roubada.

Ora, o prefácio, como dizia constrangidamente Foucault, é o lugar em que o autor vem dizer como se organizam seus enunciados. O prefácio é o que, na obra, mais se assemelha a uma carta em que o autor tenta explicar ao leitor como ele gostaria de ser lido. Vale, então, salientar que, para nossa felicidade, Lacan nos endereçou, em seus Escritos, esse primeiro prefácio, curtíssimo e luminoso, que se coloca na porta de entrada de sua obra, intitulado “Abertura desta coletânea”.

Lacan o inicia a partir, precisamente, de um comentário sobre a questão do estilo, evocando a célebre fórmula endereçada por Buffon à Academia Francesa de Letras, por ocasião de seu laureado: o estilo é o próprio homem. É importante ali notar que, no lugar em que o culto do estilo reverencia o personagem do autor, na figura eminente do grande homem que ordena sua obra, Lacan nos convida a meditar sobre o que há de jocoso nessa figura do grande homem, aqui representada por Buffon em seus trajes burlescos. Ao se colocar como autor de uma obra, Lacan, diz-nos Jacques-Alain Miller, não se deixa enredar pela fantasia falocêntrica do grande homem que Derrida tanto critica. O ridículo dessa fantasia estilística do grande homem, aos olhos de Lacan, é não entender que o estilo depende não da eminência do autor, mas do laço que o constitui em seu endereçamento ao Outro, na forma da mensagem que lhe retorna invertida. Nesse sentido, Lacan concebe o estilo não como uma entrega autoral da obra pronta a um leitor admirativo já presente, mas como meio de construção da obra através do leitor não dado, porém criado pelo seu endereçamento. A questão do estilo diz, portanto, respeito a quem vem a ser o leitor que ele faz existir.

Pode-se ver que a questão do ‘quem’ é aqui particularmente sensível, uma vez que o estilo tradicionalmente se abordava, conforme vimos anteriormente, como marca do íntimo do autor em sua obra, na primeira pessoa. Mais importante, porém, do que a crítica de Foucault e de Barthes ao culto ao autor, a grande subversão que interessa a Lacan vem não do pós-estruturalismo, mas do escritor Marcel Proust, grande herege que abalaria as fundações da Igreja do estilo ao denunciar como impostura o trabalho de Sainte-Beuve. É indispensável ler, a esse respeito, O escritor sem Igreja, de J.-C. Milner, do qual eu retomo aqui os argumentos. Para demonstrar a impostura de Sainte-Beuve, Proust escreveria, em 1919, os Pastiches et mélanges, conjunto hilário de versões pseudoautorais de um mesmo assunto, em que se evidencia que a figura do estilo, supostamente advindo do íntimo na primeira pessoa do singular, na verdade não comporta indexação pronominal.

Os pastiches têm por tema comum o affaire Lemoine, notícia que circulou nos jornais nos anos de 1908 e 1909, a propósito de um escroque chamado Henri Lemoine, que, ao pretender haver descoberto o segredo da fabricação do diamante, recebeu uma soma considerável do senhor Julius Werher, enganando-o com experimentos falseados. Os pastiches de Proust relatam o caso Lemoine no estilo de Balzac, Flaubert, Sainte-Beuve, Michelet, entre outros, seguindo uma narrativa indistinguível dos autores referidos. Mas os pastiches não são apenas um anedotário destinado a nos fazer rir. O que Proust ali questiona é justamente o quem referido ao estilo, mostrando que ele não comporta vínculo natural com a primeira pessoa ao ser realocado na prosa romanesca de maneira indistinta. Mas o que acontecia quando Proust escrevia, sem que ele soubesse, provoca J.-C. Milner, é que, no mesmo período em que ele redigia seus pastiches, a psicanálise já havia modificado a estrutura do íntimo, desfazendo sua indexação pronominal na primeira pessoa do singular. O Inconsciente freudiano se encontra precisamente referido ao íntimo que desconhece a repartição pronominal entre o Ich, o Du e o Er, permanecendo indeterminado no pronome neutro como Das Es.

Ciente dessa indeterminação pronominal do íntimo, a questão do estilo que interessa a Lacan não se coloca como marca inconfundível do íntimo do autor na primeira pessoa, conforme pretendia a tradição da crítica literária, mas, como diz Gilson Iannini, enquanto objeto indeterminado que afeta o leitor, transformando-o em sua intimidade. Tal indeterminação, aliás, vem a ser o que confere a eficácia ao significante-letra que circula no conto de Edgar Alan Poe: a carta, cujo conteúdo não é jamais explicitado pelo discurso que a cerca, afeta intimamente a todos que caem em sua possessão. Cabe ao leitor, profere Lacan, dar à carta sua destinação, estando esconjurada toda eminência do “maître à penser” na obtenção do efeito escolhido. Pois o que se revela como verdade precária da ordem fálica, ilustrada na paródia do “roubo da mecha”, com a qual ele finaliza seu prefácio-abertura, é o objeto que divide intimamente o sujeito no apagamento justamente de toda referência ao ideal. Sem glamourização do mestre ou exaltação do Joker, o objeto a, que Lacan ainda não havia formalizado por ocasião de seu escrito sobre “A carta roubada”, aparece nesse prefácio-carta como algo que se destina a seu leitor, convocando-o a se haver com a verdade de uma satisfação íntima que dele cobra uma transformação. É nesse sentido que seis escritos conduzem o leitor “a uma consequência em que precisa colocar algo de si”.

E de fato é impossível, eu dizia em outro momento, ler diletantemente os Escritos, na farsa do erudito movido pelo ideal que dele se serve para aumentar seu cabedal de cultura. Em meu caso, para acessá-los, foi-me necessário conservar, por longo tempo na estante, o objeto-livro inacessível, fascinante e estranho, até que suas páginas se abrissem vagarosamente, no ritmo de minha própria modificação íntima.

 


 

ANTÔNIO TEIXEIRA

Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (AMP) amrteixeira@uol.com.br




Biblio – A Queda Do Falocentrismo

ALINE

Catálogo de textos: Sobre “A queda do falocentrismo”

 

Almanaque

 

BRIOLE, Guy. La feminización del mundo. Córdoba: Babel Editorial, 2013.

 

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O Saber Absoluto E O Declínio Do Viril

MÔNICA CAMPOS SILVA

ROSE-PAULE – MICHEL TRPAK

Em 27 de junho de 1994, Miller apresenta, em seu seminário Lacan e o saber do século, uma aula sob o título “Kojève, a sabedoria do século”. A ideia de Miller era combinar o anseio de falar de Kojève e de seu artigo “O último mundo novo”, articulando-o ao Seminário IV de Lacan, “A relação de objeto”.

 

Nessa lição, Miller parte de um problema apreendido por Kojève, ou seja, o mundo novo é, com e pós Napoleão, um mundo do saber absoluto, chamado por ele de “verdadeiro mundo novo”. Kojève vê, nas novelas de Françoise Sagan[1], entre elas Bom dia, tristeza, o que são as consequências do saber absoluto na relação sexual.

 

Assim, Miller inicia sua articulação apontando que, em “O último novo mundo”, Kojève inscreve três nomes do pai, estando, na origem desses, Napoleão na batalha de Jena[2]. O primeiro nome seria Hegel, o filósofo. O segundo seria Sade, que, segundo Kojève, tem esse lugar pois é a partir de sua libertação que se compreendeu que, no novo mundo livre, tudo deveria acontecer no privado. Sade é, então, o herói do privado, um dos faróis deste novo mundo. Sob o terceiro, Miller deixa, naquele momento, em aberto.

 

O leitor acompanhará, nessa lição, o percurso de Miller quando retoma essa discussão para destacar o contraponto que Lacan estabelece, no Seminário 4[3], ao final de sua análise sobre o pequeno Hans, entre legalidade e legitimidade, esclarecendo que Hans está na legalidade por se interessar pelas meninas, mas que isso acontece de uma forma passiva, não tendo nada de viril em sua posição. Segundo Miller, Lacan faz do pequeno Hans um paradigma da relação sexual da geração de 1945. Segundo Lacan, esses jovens esperam que a iniciativa venha do outro lado, que venha das damas, colocando como exceção Dom Juan, como o que não deixava para o outro sexo tomar a iniciativa. Entretanto, para Lacan, esse personagem, ao buscar o falo feminino – e sem encontrá-lo –, se depara, ao final, com o pai.

 

Miller nos mostra como as novelas de Françoise Sagan situam para Kojève a figura contemporânea das relações sexuais, ou seja, a época do saber absoluto como correlata do declínio do viril ou, como ele diz, “encontramo-nos em um mundo sem homens”, restando apenas um “certo sorriso”.

 

Em “Bonjour, sagesse”, a tese de Miller em que o declínio e o desaparecimento do viril não são possíveis de serem pensados sem o declínio do pai é problematizada com a pergunta sobre o que é a desaparição do viril. Para o autor, é o que fica da fórmula da sexuação masculina ao anularmos a parte esquerda da fórmula, restando simplesmente o “todos juntos”, fórmula da igualdade, o todo da democracia. Como consequência, o dano causado à função paterna e, portanto, o declínio do pai, explica o sentimento de desaparição do viril. Miller lembra Lacan em 1938, em Os complexos familiares, quando este sinaliza o declínio da imago paterna como provocador de uma crise psicológica que faz surgir a psicanálise.

 

Diante das questões levantadas, Miller nos anuncia o terceiro nome do pai pós-Napoleão. Seria Brumell[4], que se junta a Hegel e Sade no nascimento do novo mundo. O que dá esse lugar a Brumell? Para Miller, o que se admira em Brumell é a aventura de um homem só, capaz de produzir um império com sua opinião, fazendo-se único. Como figura excepcional, Brumell teria sido a inspiração para a construção do personagem de Dom Juan, sendo comparado a Napoleão principalmente no fascínio que provocava, pelas maneiras e elegância e pelo domínio da compostura.

 

Miller propõe verificar a relação entre Brumell e o aparecimento do dandismo. Segundo ele, antes havia o belo e, com Brumell, surge o dandismo, apontando que a diferença entre eles é que, no belo há a intenção de agradar; no dandismo, a finalidade reside mais em assombrar, surpreender, do que em agradar, ou seja, desagradando, se fascina ainda mais. Por essa via, Miller utiliza-se de Baudelaire em sua descrição do dandismo como o último flash de heroísmo em decadência, para marcar a resistência heroica do dândi diante do discurso moderno, como uma forma de sabedoria moderna para resistir ao mal-estar na civilização.

 

A partir da literatura francesa da época, Miller revela a presença de uma recusa do heroísmo, ou seja, sob a continuidade aparente do gênero trágico, observa-se uma verdadeira revolução dos costumes, uma revolução cultural. Miller constata que a desvirilização está aí desde o século XVI, antes de Napoleão.

 

Ao estabelecer uma sequência – o cavaleiro, o cortês e o dândi -, Miller inclui a figura do analista, assinalando que este tem algo a ver com o dândi, pois, em seu discurso, ocupa o lugar de causa. O analista seria o semblante que faz tremer os semblantes.

 


 

Referências
BAUDELAIRE, C. O pintor da vida Moderna. Brasil: Autêntica Editora, 1 ª Edição, 2010.
KOJÈVE, A. (1984) Le dernier monde nouveau Françoise Sagan. Disponível em: www.association-freudienne.be/pdf/bulletins/7-BF1_BIBLIOTHEQUE.pdf?phpMyAdmin=0k39wA0M-rYtTueZFUi-nHQMKb1.
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LACAN, J. (1956). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
MILLER, J.-A. “Buenos días, sabiduría”. Colofón, 14 jul. 1996.
SAGAN, F. Bom dia, tristeza. Brasil: Livraria Cultura, 2007.
[1] Françoise Sagan (1934–2004), escritora francesa.
[2] As batalhas de Jena (ou Iena) e Auerstedt ocorreram em 14 de outubro de 1806 pelo controle dessas cidades localizadas no interior da Prússia e, na época, sob o governo dos Hohenzollern, oponentes aos exércitos de Napoleão Bonaparte.
[3] “O pequeno Hans se situa numa certa posição apassivada, e, qualquer que seja a legalidade heterossexual de seu objeto, não podemos considerar que ela esgote a legitimidade de sua posição. Ele alcança aí um tipo que não vai lhes parecer estranho em nossa época, o da geração de um certo estilo que conhecemos, o estilo do ano de 1945, daqueles encantadores rapazes que esperam que as iniciativas venham do outro lado – que esperam, para dizer tudo, que se lhes tirem as calças” (LACAN, 1956/1995, p. X).
[4] George Bryan “Beau” Brummell (1778–1840), figura icônica na Regência da Inglaterra e, por muitos anos, o árbitro da moda masculina. Era amigo íntimo do Príncipe Regente. Brummell é lembrado como exemplo preeminente do dândi e possui toda uma literatura fundada em seu estilo.



Vacilações Salutares: Travelling Pela Virilidade No Século XX

CAMILO RAMIREZ

 

LOUISE BOURGEOIS, HANGING (TO LIFE) ON A THREAD 2002.

“(…) o sujeito só pode de fato centrar seu desejo se opondoao que chamaremos de uma virilidade absoluta (…)”JACQUES LACAN, O Seminário, livro V: as formações do inconsciente.

 

As encarnações da virilidade, desde o começo do século XX até os dias de hoje, conheceram variações surpreendentes e particularmente instrutivas para a psicanálise, sobre as diversas maneiras de representar os semblantes da exibição masculina. Desde o imponente Rudolph Valentino em O filho do sheik até o magricela Adrien Brody como herói improvável em Viagem a Darjeeling, de Wes Anderson, estende-se uma robusta galeria adotando, tal como um camaleão, as cores com as quais cada época erige a figura que supostamente um homem deve ser. Embora ambos sejam generosamente providos de espessas sobrancelhas que vêm recobrir um olhar melancólico, o que cada um consegue arrancar como suspiros femininos no início dos últimos dois séculos revela as transformações em relação às representações da virilidade, desde a entrada na modernidade industrial até o panorama atual, de um mundo que tenta, tanto quanto possível, não negar mais sua feminização triunfante, buscando, ao mesmo tempo, fazer o luto da suposta consistência dos ‘verdadeiros homens’.

 

Não existem mais homens… desde sempre!

 

Tanto para o sociólogo quanto para o historiador, a virilidade se conjuga no plural, pois ela corresponde a várias “construções sociais dos atributos masculinos”, como afirma Jean-Jacques Courtine em História da virilidade (2011), formidável percurso em três volumes que ele dirigiu com Alain Corbin e Georges Vigarello. Essa obra é atravessada por um fio condutor: os semblantes da virilidade são sempre erigidos num contexto de angústia de impotência e de recusa da feminilidade[1].

 

Um primeiro fato de estrutura surpreendente emerge de nossa leitura: trata-se da constatação segundo a qual o sintagma contemporâneo, conhecido pelo nome de ‘declínio da virilidade’, já teve o privilégio de ser o diagnóstico de civilização mais atual por vários períodos da História. Uma inquietação que data do início dos tempos parece impelir os falasseres a lançar um grito de alarme, de modo recorrente, para denunciar que os homens não se moldam mais pelos significantes-mestres que comandam sua época. Assim, numerosas são as épocas em que sopram ares de pânico ao ver os homens se distanciarem das insígnias imputadas à virilidade, oscilando entre um ‘demasiado’ e um ‘não o suficiente’ assim que são avaliados à luz daquilo que os ideais ditam sobre como um homem digno desse nome deve se comportar na existência.

 

Tão numerosas quanto apaixonantes, as escalas do percurso detalhadas por J.-J. Courtine (2011) são instrutivas em vários sentidos, e poderemos abordar, aqui, apenas algumas delas. O declínio do Império Romano viu seus cidadãos serem invadidos pela nostalgia da austeridade dos homens da Primeira República. A passagem do século XVI ao século XVII não se produziu sem despertar alguns pavores no momento em que o refinamento do duelo do homem da corte e suas maneiras artificiais substituíram a armadura do impetuoso cavaleiro. O operário robusto de ombros largos, do couro endurecido pelo sol da segunda metade do século XIX, foi substituído nas tarefas mais árduas por pesadas máquinas. Esse progresso não deixa de provocar uma deflagração a partir da qual ele teme, tal como o vapor invadindo os céus da revolução industrial, que seu estofo vigoroso desapareça como fumaça. Enfim, foi no século XX que a “prova de fogo” deixou de ser o alto forno no qual se forja a virilidade (COURTINE, 2001, p. 9). No lugar da velha equação entre virilidade e heroísmo guerreiro oriundo do ‘todos iguais’ diante do pavor da Primeira Grande Guerra, virá responder o fascismo com sua versão delirante do viril, aquela dos corpos exaltados da raça dos mestres, avançando como um só homem (CHAPOUTOT, 2001).

 

Para J.-J. Courtine, se existiram sempre discursos sobre o viril, o peculiar do século XX, é que ele conhece “movimentos conscientes e combinados para desconstruir o mito da virilidade” (2001).

 

Dessa longa cadeia de substituições, em que os floretes delicados substituíram as pesadas lanças dos torneios, J.-J Courtine (2001) extrai uma tese que nos interessa: “Cada grande transformação histórica produz esse sentimento de desperdício viril”. Aqui, escoa um temor que profetiza ciclicamente a iminente extinção da espécie. Difícil não apreender aqui o indicador de um real – aquele da presença do menos phi (-φ) constituinte de toda virilidade – se desnudando no momento em que os semblantes que recobrem a falta constitutiva vacilam com a chegada de significantes novos. Aqui está, portanto, um ponto impressionante que ilustra de maneira surpreendente uma outra tese, de Jacques-Alain Miller (2011): “A virilidade repousa sobre essa obturação da castração fundamental de todo ser falante marcado menos phi (-φ) por um pequeno a[2].

 

Retratos de homens na tela do cinema

 

Desse caleidoscópio proposto pela História da virilidade, vou desenvolver um só tópico, o das metamorfoses de figuras de homens mostradas nas telas da história do cinema. Essas representam um rica fonte de ensinamentos, principalmente sobre as diversas amarrações que dão à virilidade sua armadura segundo as épocas. A captura exercida pela sétima arte faz ressaltar a tensão própria da estrutura da virilidade: o que se edifica como poder de sedução do imaginário vela e desvela, ao mesmo tempo, uma série de variações surpreendentes; esse ponto real preliminar a toda vestimenta fálica que é a castração, fazendo surgir, do lado simbólico, nomeações, sempre ilusórias ou mesmo efêmeras, do ser masculino. Se a primeira metade do último século é a da virilidade que se confunde com o uniforme, seja ele legionário, aventureiro ou forzuto[3] (DE BAECQUE, 2011, p. 225) bigodudo, instalando-se invariavelmente sob o signo do irrepreensível e de uma coragem que não recua diante de nada, a segunda metade é bem mais interessante, pois ela consente em deixar emergir, pouco a pouco, uma outra representação da virilidade, daí para frente marcada pela incompletude e não temendo mais mostrar seus laços mais íntimos com a falta e com a verdade mentirosa. Os trabalhos do historiador Antoine de Baecque (2008) sobre a virilidade no cinema, principalmente a respeito da Nouvelle Vague, desenvolvem um trajeto apaixonante sobre a questão e constituem nosso ponto de apoio para delimitar, de um modo singular, uma temática cara à psicanálise.

 

A partir da Segunda Guerra Mundial, os heróis masculinos do cinema se mostram cada vez mais marcados por algo que rompe com uma harmonia, mantendo relações pouco nítidas com a lei: eles são meio heróis, meio bandidos. Erguendo-se diante da vida sobre muletas que mancam, são solitários melancólicos, rabugentos mal-barbeados e mal-lambidos que exercem um poder de fascinação intimamente ligado a esse modo de deixar aparecer o peso que arrastam pela existência. Se Anthony Quinn não encarna totalmente uma figura da sedução em A estrada da vida, de Federico Fellini, nos lembraremos principalmente do homem, por trás do bruto estúpido, que chora sua angústia diante do mar Mediterrâneo.

 

Esse movimento já havia acontecido com Humphrey Bogart em Casablanca. Seu fraseado é seco; sua voz, rouca e, embora esta última não trema na pista no momento em que ele deixa partir sua amada, a emoção causada por essa cena mítica reside inteiramente no surgimento do objeto que se desprende, esse pequeno a levemente velado que desponta na luz sombreada do olhar, “here’s looking at you, kid”, objeto de uma insondável extração que se lê na firmeza do ato. É um consentimento com a perda que leva em conta um real a ser alcançado e que dá ao ato seu aspecto límpido. Assim, o cinema ultrapassa um limiar em que virilidade e assunção de um ponto de castração não são mais incompatíveis.

 

Depois da guerra, a vacilação da figura do grande Outro e dos ideais que o sustentavam como alicerces se reflete na representação do viril, diminuindo-o, por sua vez. A figura do belo homem dá lugar a uma mistura de despreocupação e de rebelião, em que os heróis não aparecem mais em um dia triunfante, tampouco seu destino é particularmente feliz. Marlon Brando e James Jean, com um palito ou cigarro na ponta dos lábios, casaco de couro nas highways e camisetas justas sobre corpos musculosos (DE BEACQUE, 2001) – todos esses atrativos que despertam os olhares e que os constroem como fetiches nas telas do cinema não conseguem ocultar, sob a fúria, a dor de viver. Assim, a captura exercida pela animalidade decidida de M. Brando como Stanley Kowalski em Um bonde chamado desejo é solidária porque nos faz testemunhas de seu destino impiedoso. E o fenômeno que faz de James Dean um mito, quando ele dá vida a Jim Stark, em Rebelde sem causa, deve muito a essa encarnação de uma virilidade que deixa aparecer uma fragilidade, ou mesmo um desespero, através do qual toda uma geração de homens pode, enfim, se reconhecer.

 

Marlon Brando, filmado por Elia Kazan em Sindicato de ladrões, permanecerá como a própria presentificação de uma nova versão da masculinidade, em que o herói, sem arestas, é substituído pelo homem atormentado, torturado internamente. A réplica francesa do duo americano mítico ficará a cargo da Nouvelle Vague, nas mãos de Jean-Paul Belmondo e Jean-Louis Trintignant, entre outros que, representando uma ‘hipermasculinidade’, permitem o reconhecimento de uma “virilidade do desespero” (DE BAECQUE, 2001, p. 460).

 

Virilidades da luz, virilidades da sombra

 

Apaixonado desde a infância pelos westerns de qualidade, a leitura de A. De Baecque (2001, p. 453) sobre as declinações viris do cowboy, essa “virilidade monolítica e solitária”, me impactou a ponto de querer desempoeirar esses encontros cinéfilos que me marcaram. Para ir diretamente ao ponto, digamos que há também, nesse registro, uma virada em que esse ícone tão caricatural do viril, mesmo conservando suas insígnias, começa a se despojar dessa resistente retidão masculina, que fazia com que esse homem empurrasse, sem medo, as portas vai-e-vem dos piores saloons do velho Oeste. Fazemos, assim, subir ao palco homens crepusculares cuja bravura não oculta mais o estreito fio que os une à vida. De Baecque mostra essa transformação por meio de uma bela fórmula, dizendo que são estes “os primeiros heróis desses desdobramentos do positivo em negativo, do puro em impuro, de uma virilidade da luz em uma virilidade da sombra (2001, p. 455)”.

 

Nessa antecâmara da pós modernidade, o estatuto do Outro conhece suas primeiras fissuras; a segurança de John Wayne, Gregory Peck e Burt Lancaster desaparece progressivamente por trás da silhueta frágil e emocionante de James Stewart, um pequeno charmoso nesse mundo de brutos, enquanto Gary Cooper, em Matar ou morrer, atravessa a cidade constatando que sua autoridade e sua imponente imagem falham em inspirar coragem aos outros homens. Nas cidades dos covardes, Cooper é essa exceção que perambula pelas ruas vazias, segurando seus Colts, engolindo a saliva, medindo a amplitude de sua solidão, enquanto os ponteiros do relógio avançam em direção a um inevitável encontro.

 

A vulnerabilidade viril ganhará corpo principalmente com os grandes mestres que são John Ford e Anthony Mann. Nem o olhar penetrante de Yul Brynner, nem a indolência rude de Steve MacQueen, não mais do que a resposta de James Coburn – “Não, ninguém me manda ir aonde eu não quero” –, serão suficientes para deter esse movimento de civilização, nos quais em Sete homens e um destino serão cada vez mais atraídos pela perspectiva de não mais se esforçarem para ocultar suas falhas para se reconciliarem, por menos que seja, com seu destino de magníficos perdedores.

 

No final do século XX, contra todas as expectativas, no momento em que se dá a passagem da pós modernidade para a hipermodernidade, Clint Eastwood (DE BAECQUE, 2001, p. 457) dá uma volta a mais nesse processo, através de dois relatos que acabam por fazer desconsistir os semblantes dessa rude virilidade à moda antiga, que ele mesmo já havia trazido para as telas de modo paroxístico, na vertente dirty, desde O bom, o mau e o feio. Diferentemente dos cavaleiros sem piedade de Sam Peckinpah, os de Clint Eastwood, apesar de se manterem no limbo, não perderam a humanidade.

 

Os heróis de O cavaleiro solitário (1985) e Os imperdoáveis (1992) estão envelhecidos e cansados. Eretos em seus cavalos, com seus casacos desbotados, eles atravessam planícies glaciais, um pouco como El Cid em seu cavalo, mais mortos do que vivos, já que, em um nowhere land, um último combate os espera. Moldados por lutos, eles têm sempre a coragem como fiel companheira, mas não em todos os campos; eles desistiram, há muito tempo, de se meter com o terror do desejo feminino. Eles têm a palavra direta daqueles que conhecem um pouco sobre o real que está no centro de toda vida, mas, contrariamente ao analisante, que reconhece essa zona sem garantia e sem lei, nenhum entusiasmo conduz seus passos. E, no entanto, esses riders mumificados nos fascinam; essa virilidade seca feita de silêncios e de mistérios, para sempre indecifráveis, exerce um poder de sedução evidente. Muito cedo, ao amanhecer, sem nenhum Outro como testemunha, eles enfrentam, sozinhos, um real recalcitrante de rosto cruel, antes de desaparecerem bem devagar no nevoeiro. Essas últimas tomadas de horizontes desabitados, antes dos créditos finais, evocam a que ponto os destinos da deflagração fálica, no rider e no analisante, bifurcam. Penso na vontade decidida de Lacan de encontrar uma saída para o impasse freudiano do rochedo da castração, concebendo um final de análise no qual a elevação fantasmática do falo (Cf. MILLER, 2011) cessa de tamponar o furo da castração, tanto para os homens quanto para as mulheres. A experiência psicanalítica propõe uma outra saída, diferente da melancolia do cowboy pós-moderno, pois a assunção do ‘é assim’ diante da falta no Outro, longe de mumificar o corpo do falasser, o irriga com um desejo firme, que vem realçar o gosto de viver.

 

Esse movimento do western sombrio ganha também a literatura contemporânea até atingir um ápice de escuridão e de refinamento na “Trilogia da fronteira”, de Cormac MacCarthy. No cinema, a virilidade do westerner crepuscular se manifesta ainda hoje, oferecendo, às vezes, encarnações de exceção, a exemplo de Jeff Bridges, no remake de Bravura indômita, pelos irmãos Coen, herói que se inscreve na longa série dos cowboys mutilados, aqueles que devem continuar a viver com um pedaço do corpo literalmente arrancado. Velho, alcoólatra e cego de um olho, esse xerife se ergue no meio de moribundos para dar prova de coragem pela última vez, e seu ato é ainda mais tocante porque o homem quase não consegue se manter de pé e seu fuzil mira o lado em vez do alvo. Na grandiosa sequência final, podemos vê-lo atravessar o deserto, a galope, em uma noite estrelada, para salvar a jovem heroína de uma agonia certa, até fazer explodir o coração de seu cavalo e continuar a corrida, a pé, perdendo o fôlego, encontrando forças, não se sabe onde, para colocar um pé diante do outro. A câmera se distancia progressivamente do cavalo, antes fogoso, agora morto no chão. E é então que sabemos que a verdadeira coragem no masculino não acontece sem perda: ele é aquele que, para avançar, se apoia mais na falta, de onde seu desejo se origina, do que em seus atributos.

 

Destinos de uma aspiração obstinada

 

O futuro da virilidade no cinema e seus destinos em um trajeto analítico não deveriam se confundir, e, no entanto, um ponto de intersecção pode ser fixado. J.-A. Miller abordou esse ponto em sua aula “O Ser e o Um”, insistindo na invenção do passe, por Lacan, como uma saída para superar esse obstáculo que é a aspiração viril nos dois sexos, tal como Freud o formalizou em “Análise finita e análise infinita”. Christiane Alberti retomou essa problemática recentemente, apresentando, a respeito do destino da função fálica depois do final da análise, que esse falo

 

enquanto significante que falta ao Outro, é intransponível. Ele não designa nenhuma singularidade triunfante. A esse respeito, o psicanalista fica à parte, não a partir de uma identificação, nem de um traço de exceção, mas da destituição de sua virilidade (ALBERTI, 2016, s/p.).

 

Estamos interessados, aqui, em alguns retratos de homens no cinema que revelam o quanto a virilidade depende de uma construção fantasmática, deixando advir versões modernas nas quais o que prevalece não é a elevação fálica, mas uma certa separação do objeto que vem tamponar a castração. Desde então, não nos surpreende que as figuras de homens que se destacam, aquelas que nos tocam e permanecem, sejam aquelas nas quais percebemos um modo de compor com o menos phi (-φ).

 

Nas telas do século XXI, a grande noite do cinema continua com uma nova galeria de homens advertidos sobre a falta: Vincent Gallo, em Tetro, não encontrará a firmeza de sua escrita sem antes ter enfrentado perdas sem nome; Joaquim Phoenix, em Amantes, vacilando, decide viver deixando cair uma aliança nas areias de Coney Island enquanto, em algumas tomadas sublimes, a virilidade retraída de Gaspar Ulliel basta para eclipsar a virilidade caricata do personagem interpretado por Vincent Cassel em É apenas o fim do mundo. Diante dessa infinidade de maneiras de reconhecer sua própria vulnerabilidade, ficamos, como nunca, perturbados.

 

 


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BRAVURA INDÔMITA (True Grit). Direção: Ethan e Joel Coen. EUA. Dist. Paramount Pictures, 2010, cor, 110 min.
CASABLANCA. Direção: Michael Curtiz. EUA. Dist. Warner Bros. 1942, P&B, 102 min.
CHAPOUTOT, J. “Virilité fasciste”. In: COURTINE J.-J. Histoire de la virilité, t. III, Paris, Seuil, 2001, p. 285-307.
COURTINE J.-J. “C’est quoi être um homme viril?”, Les inRocks.fr, 17 de outubro de 2011, disponível em: www.lesinrocks.com/2011/10/17/actualite/cest-quoi-etre-un-homme-viril-118324.
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DE BAECQUE, A. “Projections: la virilité à l’écran”. In : COURTINE J.-J., Histoire de la virilité, ______.
DE BAECQUE, A. La Nouvelle Vague: Portrait d’une jeunesse. Paris, Flammarion, 2008.
É APENAS O FIM DO MUNDO (Juste la Fin du Monde). Direção: Xavier Dolán. CAN/FRA. Dist. Entertainment One, 2016, cor, 97 min.
MATAR OU MORRER (High Noon). Direção: Fred Zinnemann. EUA. Dist. United Artists, 1952, P&B, 85 min.
MILLER J.-A. “A orientação lacaniana. O Ser e o Um” (2010-2011). Op. cit., aula de 9 de fevereiro 2011, inédita.
O BOM, O MAU E O FEIO (The Good, the Bad and the Ugly). Direção: Sergio Leone. EUA/ITA/ESP/ALEM. OC. Dist. United Artists, 1966/1967, cor, 177 min.
O CAVALEIRO SOLITÁRIO (Pale Rider). Direção: Clint Eastwood. EUA. Dist. Warner Bros., 1985, cor, 116 min.
O FILHO DO SHEIK (The Son of the Sheik). Direção: George Melford. EUA. Dist. Paramount Pictures, 1921, P&B, 80 min.
OS IMPERDOÁVEIS (Unforgiven). Direção: Clint Eastwood. EUA. Dst. Warner Bros. 1992, cor, 131 min.
REBELDE SEM CAUSA (Rebel Without a Cause). Direção: Nicholas Ray. EUA. Dist. Warner Bros., 1955, cor, 111 min.
SETE HOMENS E UM DESTINO (The Magnificent Seven). Direção: John Sturges. EUA. Dist. United Artists, 1960, cor, 128 min.
SINDICATO DE LADRÕES (On the Waterfront). Direção: Elia Kazan. EUA. Dist. Columbia Pictures Corporation, 1954, P&B, 108 min.
TETRO. Direção: Francis Ford Coppola. EUA/ARG/ESP. Dist. American Zoetrope, 2009, cor, 126 min.
UM BONDE CHAMADO DESEJO (A Streetcar Named Desire). Direção: Elia Kazan. EUA. Dist. Warner Bros., 1951, P&B, 125 min.
VIAGEM A DARJEELING (The Darjeeling Limited). Direção: Wes Anderson. EUA. Dist. Fox Home Entertainment, 2007, cor, 91 min.
[1] Cf. MILLER, J.-A. A orientação lacaniana: o Ser e o Um (2010-2011), ensino pronunciado no contexto do departamento de psicanálise da universidade Paris VIII, aula de 17 de outubro de 2011, inédita.
[2] MILLER, J.-A. Op. cit., aula de 9 de fevereiro 2011, inédita.
[3] Robusto.

CAMILO RAMIREZ
Psicanalista, membro da École de la Cause Freudienne camilo.ramirez@9online.fr



Adeus Ao Pai Morto Ou Clínica Da Pai-Versão

JÉSUS SANTIAGO

HELENA ALMEIDA, PINTURA HABITADA, 1975

 

Uma das questões clínicas com a qual a psicanálise atual se debate é saber até que ponto a doutrina do pai, no primeiro classicismo clínico de Jacques Lacan, está aquém do que se considera como a figura do pai na vida contemporânea. No fundo, o que se apresenta como um problema clínico se traduz pela questão de uma política do sintoma, do sintoma do que é ser pai nos dias de hoje. A crítica que se faz é que a concepção do pai, decorrente da concepção lacaniana do Nome-do-Pai como fator estruturante do inconsciente, está em franca defasagem com a insurreição de estilos de vida que, de uma maneira ou de outra, veiculam modos de gozo que, em si, já constituem uma contestação contundente à família tradicional patriarcal. Desde os anos 70 que o conservadorismo da psicanálise, nessa matéria, valeu-lhe uma acusação de “familialismo”. São Gilles Deleuze e Félix Guattari, com o Anti-édipo, que deploravam o atraso da psicanálise com relação à “esquizofrenização” geral do fluxo da libido. O processo instaurado por eles aparentemente visava apenas o Édipo freudiano, porém, na verdade, o seu intuito era atingir a própria contribuição de Lacan sobre o pai confundido com a lei do desejo. Em outras palavras, esse processo procura atingir a equação entre o pai e a lei, considerada como mais uma tentativa de fazer sobreviver o chamado “dogma paterno” na psicanálise[1].

 

A psicanálise não é a guardiã da ordem paterna

 

Não se pode negar que, em muitos momentos, o que se tornou um lugar comum – a tese lacaniana do “declínio do pai” – é apresentado com certo sentimento de nostalgia com relação à dissolução da família. Não faltam psicanalistas, mesmo lacanianos, que sonham com a ideia de recolocar a ordem simbólica e, evidentemente, o Nome-do-Pai no seu devido lugar, para poderem ainda ser subversivos. Jacques-Alain Miller propõe esse questionamento quando conjectura que, talvez, amanhã, ter-se-á uma psicanálise que terá como objetivo reconstituir o inconsciente do papai. Em um futuro bastante próximo, não vão faltar psicanalistas que procurarão reconstituir o inconsciente do papai ou o inconsciente de ontem. É a esse respeito que se compreende a diretiva irônica que Miller teve ocasião de assinalar, no IV Congresso da AMP, em agosto de 2004, na cidade de Comandatuba, a todos psicanalistas ali presentes: “(…) mais um esforço para ser reacionários, senão vocês não serão mais revolucionários…!” (MILLER, 2005, p. 10).

 

Nada mais avesso à orientação lacaniana do que tomar a psicanálise como uma guardiã da ordem paterna. Para o analista que se orienta pelo real, o cotidiano da clínica é um convite para dar provas de que as manifestações do inconsciente se mostram dissociadas do Nome-do-Pai. Em uma época em que o psicanalista lida com sintomas que se articulam com as mais novas expressões do mal-estar contemporâneo, torna-se uma tarefa vã recorrer ao pai enquanto uma lei necessária, universal e, portanto, capaz de dar consistência à realidade psíquica. Por outro lado, ao considerar os alicerces sobre os quais se constituíram o edifício da psicanálise, é fato de que não é nada fácil, para o analista, operar com o inconsciente que se apresenta desembaraçado do Nome-do-Pai.

 

Basta dar uma repassada no modo com que Lacan formula a questão preliminar a todo tratamento das psicoses para se perceber o quanto a estruturação do inconsciente se funda na simbolização primordial do Nome-do-Pai. Essa estruturação supõe admitir que o inconsciente é o discurso do Outro, ou seja, é o lugar da memória, concebida como palco de uma questão que permanece em aberto, tendo em vista que se mostra condicionada pela indestrutibilidade do desejo. A possibilidade de resposta a essa questão é dada, no tratamento analítico, pela própria instalação da cadeia significante, cadeia que se inaugura com a simbolização primordial, referida antes, e é considerada como o fator que torna possível captar as ligações lógicas entre o que há por significar e os efeitos do significante no sujeito, descritos como metáfora e metonímia. É o acidente nesse registro da simbolização, a saber, a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, que se aponta como a falha que confere especificidade à própria a estrutura do inconsciente na psicose, especifidade que a separa da neurose (LACAN, 1998, pp. 581-582).

 

A propósito dessa lei simbólica do pai como fundamento último da ordem inconsciente, é o caso, inclusive, de se levar em conta as referências de Freud que atestam o quanto o monoteísmo judaico-cristão é um passo decisivo na história da civilização. Se o próprio Freud elegeu o mito da lei do pai como a fonte do recalque, é evidente a dificuldade em desfazer-se de uma leitura da produção inconsciente que não se deixe contaminar por interpretações de cunho paterno e fálico. Sugerir que o inconsciente é incuravelmente fálico e dependente do amor ao pai é, no fundo, admitir que ele é surdo, por exemplo, ao ideal contemporâneo da igualdade entre os sexos. O analista surdo à reivindicação feminista da igualdade entre os sexos seria aquele que se inclui na chamada reação psicanalítica, visto que os ares dos tempos sopram no sentido de fazer vacilar os semblantes que davam sustentação às diferenças sexuais, sobretudo àquelas que se alimentavam do valor universal da dimensão paterna.

 

Como se vê, há uma sombra que permanece presente nessa paisagem, pois dificilmente se pode, nos dias de hoje, escutar o inconsciente pela orelha do amor ao pai. Nesse ponto preciso, retoma-se a discussão não apenas sobre o elemento subversivo da psicanálise, mas, sobretudo, sobre a eficácia de sua prática na civilização do gozo. No meu ponto de vista, parece-me inútil propor ao psicanalista que permaneça a reboque da sociologia feminista e da racionalidade relativista pós-moderna, com o argumento de que essas diferenças – sexuais – se restringem aos semblantes produzidos por essa civilização, visto que são ficcionais, transitórios e instáveis. É insuficiente, para ele, restringir-se a proposições de que uma orientação clínica para o sintoma e para o gozo deveria levar em conta o fato óbvio de que a família nuclear patriarcal está a ponto de ser extinta.

 

A crença no Um-inteiramente-só

 

Para contrapor-se ao ideal feminista de ‘igualdade entre os sexos’, é preciso levar em conta que o seu pano de fundo é a crença no “Um-inteiramente-só” (Un-tout-seul), que, como se sabe, tornou-se um significante-mestre da modernidade, uma espécie de standard do “pós-humano”. Como afirma o feminismo pós-identitário, não há nada que assegure a estabilidade das desordens da família moderna, considerada a família recomposta, senão a crença na igualdade entre os sexos. Em outras termos, para esses supostos representantes das mutações que se processam na época atual, resta-lhes o culto do “Um-inteiramente-só” (COTTET, 2005, p. 130).

 

No entanto, o último ensino de Lacan adverte ao psicanalista que se pode lançar um outro olhar sobre a presença dessa tendência civilizatória, expressa nesse signficante-mestre do “Um-inteiramente-só”. É a própria definição do inconsciente que se interpõe nessa contraposição, pois, ainda que seja acéfalo, o sujeito do inconsciente só faz o que ele quer, só faz o que lhe dá na cabeça (l’inconscient n’en fait qu’à sa tête)[2]. Utiliza-se essa definição, l’inconscient n’en fait qu’à sa tête, para dar substância ao autismo do gozo que é inerente a cada tomada de posição do sujeito do inconsciente. Esse autismo quer dizer que o inconsciente decidirá, por ele próprio, crer ou não crer, em função dos significantes-mestres que ele encontra em seu caminho e que lhe é possível, a partir daí, gozar. É nisso que o inconsciente é a política (MILLER, 2011). Ao encarnar a política, ele deve ser lido a partir da pulsão e do objeto perdido, e não mais a partir da identificação ao pai e à lei do amor.

 

Com isso quero dizer que, diante da inexistência do Outro, o inconsciente busca se compatibilizar com a exigência subjetiva de invenção, exigência característica do discurso do mestre pós-moderno. Ou seja, não há mais significantes-mestres únicos que tecem, de modo estável e prevalente, os ideais que comandam os rumos da existência humana. Se, no primeiro tempo, o inconsciente isola um significante-mestre, no momento seguinte, esse significante que se destacou se pluraliza e se multiplica, segundo um processo que, na língua francesa, se traduz pela homofonia entre “S1” e “enxame” (“essaim”). Isso quer dizer que não há apenas Um, há vários, há muitos significantes. Na época atual, há, portanto, sempre uma pulverização dos significantes-mestres (S1). Nada nos assegura que essa pluralização seja algo distinto de um conjunto caótico, mesmo sabendo que o enxame se desloca de modo agrupado. Em suma, afirmar a inexistência do Outro é admitir que a unicidade do significante-mestre deu lugar a uma constelação de significantes (Ibid. p. 20).

 

Para-além da unicidade do significante paterno

 

Ir além da unicidade do significante-mestre do pai é colocar à prova a clínica do Nome-do-Pai, concebido como um constructo necessário à apreensão das diversas posições do sujeito personificadas pelas modalidades do desejo: desejo insatisfeito, impossível, prevenido e outros. A própria história recente dos homens propaga a idéia de que o pai deixou de ser uma lei universal e necessária para se tornar um semblante que vem sendo, gradativamente, desvelado, desnudado. É o que também nos permite dizer, por outras vias, que a função do pai é a função do sintoma. Mais do que nunca, o psicanalista se vê habilitado a utilizar-se da hipótese clínica de que a questão paterna se mostra inserida no horizonte do que faz sintoma no âmbito do gozo. É, certamente, quando, no curso do tratamento, a posição de um pai inscreve-se, para o sujeito, nos moldes de um sintoma em que se criam as condições para ir além dele. É quando se pode cifrar o gozo do pai como sintoma que se tem uma chance de dispensá-lo por meio de um uso possível. Apenas pode-se dispensá-lo com a condição de saber usar essa letra de gozo, ou seja, colocá-la a serviço de uma outra forma de satisfação pulsional, forma, certamente, mais compatível com o vivo.

 

Colocar em prática um tal princípio clínico exigiu abandonar a ideia de que apenas o simbólico tem o poder de nomear o que é real e o que é imaginário. Não é somente a triplicidade do real, do simbólico e do imaginário que Lacan insere, na obra de Freud, mas também uma concepção de que esses três registros se mantêm atados pelo significante do Nome-do-Pai. Enfim, cabe colocar a questão: os elementos desse ternário podem estar amarrados de um modo distinto? É, certamente, isso que constitui toda a elaboração de Lacan a partir dos anos 70. Se os três registros podem ser enlaçados de uma outra maneira, ou seja, por uma via distinta da nomeação que tem como fonte o simbólico, torna-se necessário proceder a uma releitura do Nome-do-Pai. Em primeiro lugar, essa releitura do Nome-do-Pai o conduziu a estabelecer uma disjunção entre uma teoria do nome e uma teoria do pai. É a separação entre os problemas canibalísticos, ligados ao pai – os problemas da incorporação de um traço, que remontam a uma forma primária da identificação –, e a questão da nomeação.

 

A consequência última desse questionamento é afirmar que a nomeação pode ser tomada não apenas como simbólica, mas também como imaginária e real. Se Lacan enfrenta a questão da nomeação, é porque, no primeiro tempo de seu ensino, a nomeação aparece, quase que espontaneamente, sob o encargo do simbólico. Nesse primeiro tempo, a questão da nomeação se coloca da seguinte maneira: a chamada simbolização primordial é, antes de tudo, uma forma de nomeação que incide sobre o real concernido pelo desejo da mãe, cujo agente essencial é o Nome-do-Pai, que equivale ao pai esvaziado de gozo – enfim, ao pai morto. Em suma, antes, a nomeação simbólica, promovida pelo pai morto, cumpria um papel de ordenação da estrutura do inconsciente e, portanto, de transmissão da função fálica. Ao contrário, o último ensino passa, assim, a ser receptivo ao tomar tanto o imaginário quanto o real como fatores de nomeação. É evidente que essa mudança com relação ao problema da nomeação repercute diretamente naquele da transmissão do pai necessária à constituição do sujeito.

 

Adeus ao pai morto!

 

Quero sublinhar em que a questão paterna, para a clínica psicanalítica, se institui, por sua radical irredutibilidade, a uma determinada função universal dada pelo Nome-do-Pai. Desde o momento em que Lacan inventa o objeto (a), a face singular do exercício da paternidade define-se pelo fato de que o pai é sempre o “vetor de uma encarnação da lei no desejo”, na medida em que é capaz de deixar vazio o lugar que ocupa no seio da família. O pai que se toma por um pai, um pai sem falhas, um pai ideal, a exemplo do pai do Presidente Schreber, mostra-se um tirano na vida doméstica, quer colocar ordem na casa impondo uma solução e um regulamento para tudo. Sob essa perspectiva, a impostura paterna define-se pelo modo como o pai se confunde com uma lei universal, tornando-se, assim, a própria causa do filho.

 

A expressão “encarnação da lei no desejo” quer dizer, também, encarnação da lei naquilo que não pode ser, de forma alguma, um ideal. Não se desconhece, portanto, o fato de que as leis são feitas em nome de ideais e, nesse sentido, é preciso considerar que o discurso religioso, bem como o discurso jurídico, apenas funciona com o apoio desses ideais, buscando fazer acreditar que, sem eles, nada na vida tem êxito. Afirmar que a encarnação da lei se efetua no plano do desejo ─ e não no plano do ideal ─ é dizer que o pai pode humanizar o desejo pela via de um tratamento efetivo da satisfação pulsional que lhe concerne. É essa satisfação pulsional que assume, no ensino de Lacan, o nome de “modo de gozo”. Assim, a lei paterna não se alimenta das mais diversas virtudes morais, mas da questão de um pai, diante de seus filhos, saber, ou não, ser responsável pelo seu “modo de gozo”.

 

Isso significa que não há regras universais que configurem um manual de instruções concernentes ao que é ser pai. Há sempre pais, no plural ─ isto é, pais singulares ─, pois estes se caracterizam sempre em função dos seus modos próprios de gozo. Se é preciso vislumbrar a questão paterna para além de uma lei universal, é porque ser pai é tornar lei o particular – o particular do gozo que resiste a se deixar absorver pelos ideais, pelas identificações disponíveis ao longo do percurso de vida de um sujeito. Se essa responsabilização não acontece, não quer dizer que não haja transmissão do pai, exatamente, no ponto em que o pai se afirma com relação à montagem particular de seu modo de gozo.

 

Há algo no pai que extrapola a suposta função pacificadora do pai morto, pois é sabido que a metáfora do pai fracassa sempre em barrar o gozo. Muitas vezes, é-se forçado a admitir, no trabalho clínico, que o elemento transmissível da metáfora do pai corresponde muito mais à metonímia do gozo. Se há, no mito freudiano, morte do pai, e se há, no delírio schereberiano, morte da alma, morte do sujeito, não há, contudo, morte do gozo. A obra do Marquês de Sade é o maior exemplo desse caráter indestrutível do gozo, obra que coincide com a dimensão constante da pulsão. Conhece-se o gesto do Marquês, lavrado em testamento, que ordenava o apagamento de qualquer indício do nome próprio em seu monumento fúnebre. Apenas se compreende essa recusa da inscrição de seu nome quando se leva em conta o seu interesse supremo pela dimensão do gozo. Portanto, ele sempre postulou o gozo como o que o eternizaria enquanto ser, pois sempre concebeu o gozo como infinito e indestrutível. É essa dimensão do gozo infinito e inesgotável que eternizaria o seu ser e não como o significante do nome-próprio inscrito na sua obra escrita (SANTIAGO, 1996, p. 22).

 

Se, do ponto de vista da metáfora paterna, esse gozo infinito e indestrutível se mostra impossível, do ponto de vista da metonímia, ele é real – o que não o torna mais permitido. Para que o gozo se faça permitido, é necessário não tanto matar o pai – via sem saída –, mas reconhecê-lo como semblante. O semblante do pai é o signo de que houve transmissão do pai, naquilo que o divide, a saber, o real de seu modo de gozo. A apreensão do semblante paterno, no curso do tratamento, constitui o índice de que o sujeito pôde tocar no real do gozo tal como ele se explicita pelo modo como se instaurou a pai-versão. Fica evidente que é essa aproximação do pai ao gozo que levou Lacan a calcar sua nova concepção do função paterna na assonância entre a versão do pai (père-version) e a perversão (perversion). Ao contrário do pai morto, concebe-se a noção de pai-versão como uma contrapartida do caráter indestrutível do gozo trans-estrutural e trans-categorial e, nesse sentido, ela se constitui enquanto um pilar do que se designa como a vertente continuísta da clínica lacaniana, visto que convive bem com a transmissão do pai tanto em casos de neurose quanto em casos de psicose.

 

Fazer do pai um semblante

 

É claro que o pai singular que pude apresentar, no início desta exposição, está aquém de saber se responsabilizar pelo seu próprio modo de gozo. Em poucas palavras, tornar particular o gozo equivale a poder viver a pulsão. Nesse particular, o desejo do analista faz a diferença. Enquanto a transferência conduz a demanda à identificação, separando-a da pulsão, ao contrário, o desejo do analista, operando sobre essa curto-circuito da imagem, abre caminho para a pulsão. O que é que se produz quando a demanda do sujeito, dirigida ao analista, alcança a pulsão? É uma pergunta que Lacan faz e, a meu ver, possui um alcance clínico inestimável. Ele diz algo, a esse propósito, bastante curioso. Algo que, no fundo, envolve alguma obscuridade em sua formulação. Ele diz, simplesmente, que, nesse momento, a fantasia se torna pulsão. É muito estranho dizer que a fantasia, uma vez que se tenha franqueado o plano das identificações, se transforma na pulsão.

 

A formulação dessa questão apenas é possível porque tanto a pulsão como a fantasia se articulam em função do traço comum que reúnem, uma e outra, que é a relação ao gozo. Isso comporta a ideia de que o sujeito mais aquém do plano da identificação, ou mesmo instalado no plano da identificação, deixa a pulsão confinada pela satisfação da fantasia. Cabe colocar a questão sobre o que é o gozo sob o crivo da fantasia e o que se faz com ele para-além do dispositivo fantasia. É preciso, assim, criar as condições para que o sujeito possa localizar-se com relação ao objeto (a) para que a fantasia cesse de mascarar a pulsão. De outro modo, o chamado franqueamento do plano da identificação apenas é possível por meio da separação do sujeito, na experiência analítica, do ponto em que ele se confunde com o objeto (a).

 

Essa separação entre o sujeito e o objeto (a), no desenrolar do tratamento analítico, equivale à separação entre os significantes-mestres e o mais-gozar, de forma que este último vai, pouco-a-pouco, adquirindo consistência. Captar a pai-versão é fazer do pai um semblante, é resgatar o “como” do gozo que contrasta, frontalmente, com as virtudes e os ideais que esse pai encarnava enquanto um religioso devoto e abnegado à causa do cristianismo. Eu diria que o eixo essencial da orientação clínica, do último ensino, sobre a questão paterna, exige levar às últimas consequências a separação entre os significantes-mestres e o mais-gozar. A pai-versão é a apreensão do pai no ponto preciso do seu laço com uma mulher particular, e não com um universal, tampouco da mãe enquanto sempre proibida e, nesse sentido, sempre universal – é o laço com algo particular do feminino que presentifica, para um pai, a causa de desejo.

 

 


Referências
COTTET, Serge. “Feu sur l’ordre symbolique”, In: La Cause Freudienne. Nouvelle revue de psychanalyse, Paris, jun. 2005, p. 130.
LACAN, Jacques. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
MILLER, Jacques-Alain. “Intuições milanesas I e II”, Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero5/ e www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero6/, jun. e nov. 2011.
MILLER, Jacques-Alain. “Uma fantasia”. Opção Lacaniana, Revista internacional de psicanálise. São Paulo, fev. 2005, p. 10.
SANTIAGO, Jésus. “O nome-próprio não nomeia a causa do desejo”. Opção Lacaniana, Revista internacional de psicanálise. São Paulo, fev. 1996, p. 22.
TORT, Michel. Fin du dogme paternal. Paris: Flammarion, 2005
[1]TORT, Michel. Fin du dogme paternal. Paris: Flammarion, 2005. O livro busca lançar as bases de uma história positiva da paternidade, procurando contrapor-se às análises nostálgicas sobre o relato de um declínio permanente. Intenciona apreender as principais causas da decomposição da “solução paterna” e das tentativas de restauração pelo bricolage de uma “ordem simbólica”, encarregada de resistir à liquidação da ordem antiga, mas também discernir a invenção dos novos modos de paternidade, ligados às novas relações de gêneros e de sexo. Apesar da crítica mordaz do uso dogmático da questão paterna, na psicanálise, não me parece, no entanto, que o autor tenha levado em conta aspectos essenciais da questão do pai, presentes no primeiro momento quanto no período final do ensino de Jacques Lacan.
[2]COTTET, Serge. Ibid.

JÉSUS SANTIAGO
AE, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (AMP) santiago.bhe@terra.com.br