GRACIANA GUIMARÃES
Neste trabalho pretendo investigar a posição em que a histérica se coloca frente a sua busca por saber. Na tentativa de localizar o saber no Outro, a histérica esquiva-se do seu próprio saber sobre seu gozo, como tentaremos averiguar a seguir.
O saber em psicanálise
A palavra ‘saber’ deriva do latim sapere, que se refere a “ter conhecimento, ciência, informação ou notícia” e “ter sabor, agradar ao paladar” (CUNHA, 1982, p. 695). No decorrer do ensino de Lacan, essa palavra adquire um sentido diferente, se afastando dos termos ‘conhecimento’, ‘ciência’ e ‘informação’ para, então, o saber flertar com o ‘sabor’ da verdade.
O saber em psicanálise difere do conhecimento, e é isso o que Lacan explicita em “o que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação”. O saber está relacionado a um encadeamento significante, “trata-se precisamente de algo que se liga, em uma relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2”, e não ao acúmulo de conhecimento, informações acerca de uma realidade (LACAN, 1969-70/1992, p. 30).
Lacan, no seminário 17, explica que “saber é coisa que se diz, que é dita… o saber fala por conta própria – eis o inconsciente” (LACAN, 1969-70/1992, p. 73). Nesse sentido, saber e inconsciente se parelham, podendo sugerir que o saber é inconsciente, um saber que não se sabe. É pela surpresa, quando o sujeito se sente ultrapassado, pelo que Freud denominou fenômenos do inconsciente, que esse saber aparece. Nesse tropeço, nessa hiância, produz-se um achado, que, para o sujeito, tem um valor único, de verdade (LACAN, 1964/2008).
Também nesse seminário 17, Lacan estabelece os quatro discursos, importantes para a compreensão do que pretendemos neste trabalho, sendo eles o discurso do mestre, o discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso do analista. Luiz Henrique Vidigal, em Ensaios sobre os discursos em Lacan (sd), lança luz sobre como esses discursos são constituídos. Em cada um desses discursos observa-se que se delimitam quatro lugares ocupados por quatro letras diferentes. Essas letras circulam na mesma orientação e ocupam lugares de acordo com o discurso a que se referem, como pode ser visto abaixo:
O S1 corresponde ao significante mestre; S2, ao saber; $, ao sujeito; e a letra a corresponde ao mais-de-gozo. Os lugares são de agente, de Outro, de produção e de verdade, que se posicionam da seguinte forma:
O lado esquerdo, onde estão os lugares de agente e verdade, pode ser entendido como sendo o campo do próprio, do íntimo, daquele que sustenta o discurso. O lado direito sendo o campo da alteridade, onde estão os lugares do Outro e da produção (VIDIGAL, sd).
No seminário “O avesso da psicanálise”, como explicita Vidigal, “Lacan substitui o campo do Outro pela bateria de significantes (S2) que forma um campo não disperso, já estruturado de um saber” (VIDIGAL, sd, p. 16). Um significante externo (S1) intervém no campo já constituído de outros significantes (S2), e a articulação desses significantes faz surgir $, denominado sujeito dividido. Desse trajeto de S1 a S2 aparece algo definido como uma perda, designado pela letra a como objeto a, mais-de-gozo (LACAN, 1969-70/1992).
Essa articulação de significantes importa para compreender as nuances do saber. O saber deriva do traço unário, em que um significante S1 faz uma primeira marca e, a partir daí, se liga a um outro significante S2. Essa ligação S1-S2, de uma articulação significante, de um saber em trabalho, instaura a dimensão do gozo. O saber trabalhando produz uma entropia, uma perda introduzida pela repetição, em que se estabelece um mais-de-gozar a recuperar. O gozo seria um movimento de recuperação dessa perda, de algo que se perdeu por esse trabalho do saber instaurado na articulação significante. Como tentativa de preencher essa perda, surgem então objetos (objeto oral, anal, escópico e vocal) denominados objetos a. É a partir do saber como meio de gozo que se busca um sentido, mencionado por Lacan como um sentido obscuro, que é o da verdade (LACAN, 1969-70/1992).
Lacan, em Radiofonia, nos diz “É que, da verdade, não temos que saber tudo. Basta um bocado…”, e ainda, “o real não é antes de mais nada para ser sabido” e “a verdade situa-se por supor o que do real faz função no saber” (Lacan, 1970/2003, p. 442 e 443). Uma verdade que só é acessível por um semidizer, alerta Lacan no seminário 17, que não pode ser dita por inteiro, porque, para além de sua metade, é indizível (LACAN, 1969-70/1992).
Também em Radiofonia, Lacan ironiza que com a verdade não se pode estabelecer relação amorosa possível, a não ser a qual ele garante ser segura, com a castração (LACAN, 1970/2003). “O amor à verdade é o amor a essa fragilidade cujo véu nós levantamos, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração”. Então, a verdade se liga à impotência. O amor à fraqueza, à impotência, isso é a essência do amor, é dar o que não se tem a fim de reparar essa fraqueza original (LACAN, 1969-70/1992, p. 54).
A histérica e o saber
Nos quatro discursos elaborados por Lacan, o saber, S2, ocupa diferentes lugares em cada um deles, e neste trabalho deterei principalmente nos discursos do mestre e da histérica, os quais nos ajudarão a compreender, de certa forma, a relação da histérica com o saber.
No discurso do mestre, o saber está essencialmente no lugar do Outro, o do escravo, que possui um saber-fazer referente à produção de gozo. E o mestre, por sua vez, busca extorquir o escravo a fim de recuperar o resto de um gozo perdido (NAVAEAU, 2017).
No discurso histérico, o saber está colocado no lugar de gozo, e o mestre é quem trabalha para produzi-lo. A histérica se embaraça, interroga o mestre, S1, sobre sua relação com o saber, S2, como visto no seu discurso essa relação sugerida, S1/S2. Esse questionamento remete-se ao valor de a, sobre o que ela mesma seria, uma pergunta lançada no campo do Outro sobre algo que está no seu próprio campo, $/a, e o que escapa ao saber (NAVAEAU, 2017).
Ela quer que o Outro seja um mestre, daí S1 situado à direita acima, no discurso da histérica, e que esse mestre saiba de muitas coisas, mas não tantas a ponto de acreditar ser ela o prêmio máximo de todo o seu saber. Ela quer um mestre sobre o qual ela reine e ele não governe (LACAN, 1969-70/1992).
No discurso histérico está instituída a pergunta sobre o que vem a ser a relação sexual, de como um sujeito pode sustentar ou não essa relação. Colocando o Outro como lugar desse saber, o sujeito histérico mostra-se estranho ao que de fato está em jogo no saber sexual, permanecendo, assim, um saber recalcado (LACAN, 1969-70/1992).
O sujeito histérico se aliena do significante-mestre o qual efetua a divisão do sujeito e se recusa a dar-lhe corpo, explicitado por Helenice de Castro (2018) como “uma recusa do corpo ao efeito de castração determinada pela incidência do S1”. Na recusa do corpo, o sujeito não se coloca como escravo frente ao significante-mestre. A histérica faz a seu modo, então, uma espécie de greve, como disse Lacan no seminário 17, e não entrega o seu saber. Ela desmascara a função do mestre, mas permanece solidária valorizando o que há de mestre no que é o Um, esquivando-se, assim, de ser objeto de desejo (LACAN, 1969-70/1992).
Para a histérica, o não saber ser a mulher a coloca em uma posição de enunciação, na qual o gozo do homem é posto como um saber da mulher. E que ela, por sua vez, acredita não saber como proceder nem o que é preciso fazer para o gozo do homem. E, ainda, acredita existir a mulher detentora desse saber. O problema para a histérica não é o gozo feminino, mas sim o gozo masculino. “É saber se o homem é um homem, se ele sustenta o Um”, se ele não tem medo da castração, se ele consegue ser um mestre e se é capaz de colocar em jogo o Um da vida. Então se direciona à outra que ela julga ter esse saber, do gozo do homem, e a faz seu objeto de admiração e adoração (NAVAEAU, 2017, p. 165).
A hiância entre a histérica e a mulher, a que sabe, instaura um conflito em que mesmo a histérica não alcançando o gozo todo da mulher, que é impossível, não se cansa de desejar esse todo, permanecendo o seu desejo sempre insatisfeito e recusando os gozos relativos.
Nesse sentido, a histérica se vê dividida entre o gozo e o desejo, caracterizado pela relação que ela estabelece com a mulher. A histérica não é nem a mulher, a que sabe, nem uma mulher, a única de um homem (NAVAEAU, 2017).
O saber de Dora: o que ela nos ensina?
O caso Dora, publicado por Freud em 1905, exemplifica a relação da histérica com o saber, e é relembrado por Lacan em diversos momentos em que aborda a temática da histeria. Dora chega a Freud levada pelo pai. A perda da consciência após uma breve discussão com esse pai foi o acontecimento último que, mesmo relutante, a fez aceitar o tratamento. As intrigas em que Dora se envolveu na relação que se estabeleceu entre ela, o Sr. K., a Sra. K. e seu pai diz da forma como ela conseguiu lidar com cenas nomeadas por Freud como traumáticas – a cena do lago, em que o Sr. K. faz uma investida amorosa a Dora, e uma cena anterior, quando esta tinha quatorze anos, em que o Sr. K. a imprensa num vão de janela e a beija. Associado a isso, o pai, que mantém um caso amoroso com a Sra. K. e é visto basicamente pela filha, enquanto a mãe pouco aparece, envolvida apenas com as tarefas domésticas (FREUD, 1905/1996).
A relação estabelecida entre a Sra. K. e seu pai faz sustentar para Dora o desejo do pai idealizado. Lacan, no seminário 17, relembra a situação delicada de saúde do pai de Dora, que escancara o homem castrado, e isso inclusive em relação a sua potência sexual. O pai, em sua destinação simbólica, como um ex-combatente, ex-genitor, está sempre em potência de criação. Esse papel-mestre que o pai ocupa no discurso da histérica, sob a perspectiva de potência de criação, é o que faz sustentar sua posição em relação à mulher, mesmo esse pai estando fora de forma, como disse Lacan (LACAN, 1969-70/1992). Como aquele que já não possui e, ao mesmo tempo, possui o órgão, faz com que o pai não possa ser castrado, pois já o é desde sempre. A histérica mantém o pai nessa posição idealizada, tirando-o do combate, o que faz sustentar a crença de acesso a um gozo absoluto. Com o vislumbre ao gozo absoluto, a histérica recusa o gozo sexual, já que, neste, ela se depara com o gozo relativo que surge do embaraço da relação com o outro, dos entraves da questão da potência e impotência do órgão masculino (CASTRO, 2018).
Não é o órgão de Sr. K. que Dora disputa com a Sra. K., mas sim a joia que seu pai, impotente, dá a sua amante. No caso de Dora, a Sra. K. ocupa a posição de suposto saber, em que ela dirige sua admiração e adoração. A Sra. K. é a mulher que sabe o que fazer para o gozo do homem, nesse caso, o de seu pai, e é a ela em que Dora se interroga sobre o que é o gozo. Dora demonstra como a transferência na histérica é orientada em direção à mulher e como esse amor se endereça ao saber (NAVEAU, 2017).
Na cena do lago, algo que se sustentava na relação entre o quarteto Sr. e Sra. K., Dora e seu pai, se desmorona. Quando Dora questiona o Sr. K. sobre sua mulher, e este diz “minha mulher não é nada para mim”, ela se depara com duas situações. Tem-se, então, a queda da mulher, quem ela julgava ter o saber sobre o gozo e quem sustentava o desejo do pai idealizado. E também, nesse momento, o gozo do Outro é ofertado diretamente a ela, o que ela rapidamente recusa, esbofeteando o Sr. K., porque, na verdade, o que ela quer é o saber como meio de gozo (LACAN, 1969-70/1992).
No segundo sonho de Dora, seu pai está morto, e ela é convidada a comparecer ao enterro. Ela até tenta ir, mas se vê em sua casa vazia, folheando um grande livro, um dicionário. Nesse sonho, observa-se a passagem pelo pai idealizado: o pai está morto, e evidencia-se a manobra histérica de instalar o saber como meio de gozo quando Dora escolhe folhear o dicionário. Dora encontra um substituto para esse pai em um livro, um livro em que se ensina o que diz respeito ao sexo, como salienta Lacan. E isso demonstra que o que de fato importa a Dora, para além inclusive da morte de seu pai, é o que ele produz de saber, de um saber sobre a verdade (LACAN, 1969-70/1992). Dora, ao fazer confusões com as intrigas envolvendo seus familiares, é levada a Freud como mentirosa, e é no percurso da análise que ela pôde fazer valer a sua verdade (LAURENT, 2007 apud CASTRO, 2018). “Isto é o que lhe bastará da experiência analítica. Essa verdade em que, preciosamente, Freud a ajuda” (LACAN, 1969-70/1992, p.102).
Esse momento, como salienta Helenice de Castro (2018), teria sido uma virada na análise de Dora que, caso tivesse continuado, poderia ter construído um saber que a aproximasse de seu modo particular de gozo, desvinculado daquele ligado à privação em que ela se encontrava.
Conclusão
A partir da escrita deste trabalho foi possível verificar que esse questionamento da histérica ao Outro, de buscar o saber no campo do Outro, só a faz distanciar mais do seu próprio saber sobre o seu gozo. A histérica, então, não quer saber nada sobre o seu próprio gozo, e isso, de certa forma, seria uma defesa. Ao sustentar um mestre potente, detentor de um saber total, a histérica esquiva-se de deparar com a impotência, com a castração. Com a possibilidade de um trabalho em análise, como visto no caso Dora, essa figura de mestre pode se esvair aos poucos. Com isso, é possível dar lugar à construção de um saber sobre a própria verdade, sobre o que há de particular no gozo de cada histérica.