Editorial Almanaque nº22

MICHELLE SENA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE BELO HORIZONTE

Está no ar o Almanaque 22!

Em consonância com o tema do próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana – IX ENAPOL, esta edição conta com textos que abordam três paixões: ódio, cólera e indignação. Nossa intenção é alavancar essa pesquisa e iniciar os debates sobre essas paixões, sempre presentes na vida psíquica e tão em pauta na contemporaneidade.

Em Trilhamentos contamos com textos precisos sobre duas dessas paixões: o ódio e a cólera. No trabalho de Gil Caroz, o ódio será abordado a partir das perspectivas fálica e não-toda fálica, em sua relação com o ideal de amor universal proposto pela religião e também pela via de sua (des)localização do ilimitado do gozo feminino. Por Jean-Daniel Matet, a cólera será discutida em torno de suas diversas cores e nuances. Partindo desse afeto que toca o corpo, a reflexão sobre essa paixão irá percorrer o seu tratamento na vertente filosófica, a sua importância na vida psíquica infantil e em casos clínicos.

Na rubrica Entrevistas, conversamos com Juliana Flores sobre o CURA – Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte, festival que promove a pintura de laterais de edifícios no centro de Belo Horizonte. Nessa entrevista, para além da relação da arte com a cidade, Juliana nos sinaliza a forma com que as reivindicações artísticas tomam forma durante o festival e nos apresenta uma reflexão sobre o ‘pixo’ como uma das formas da indignação. Em seguida, temos a entrevista realizada com Damasia Amadeo Freda sobre as novas configurações da relação dos jovens com o desejo de saber e os efeitos das tentativas de normatização, sendo um desses um certo bloqueio ao acesso das saídas inovadoras que a arte poderia proporcionar.

Em Incursões, temos textos resultantes das discussões realizadas nos espaços de investigação do IPSM-MG e do CIEN no último semestre. Orientados pela queda do Nome-do-Pai, pela ascensão ao zênite do objeto a[1] e também reverberando sobre o ódio e a indignação, os trabalhos abordam como o que é ineliminável da dimensão pulsional se apresenta nas toxicomanias; em conversações com professores; em um dos episódios da série Black Mirror e também em uma leitura da pulsão de morte pela via da violência na civilização.

Na rubrica Encontros, o tema da cólera será apresentado via um trecho de estudo de Jean-Pierre Vernant sobre uma ficção grega clássica. E, por fim, em De uma nova geração, contamos com dois trabalhos, produzidos por Giselle Mattos e Graciana Guimarães, alunas do IPSM-MG.

Desejamos aos leitores que desfrutem esses preciosos trabalhos como uma preparação para o IX ENAPOL e que pontos de interesse surjam e possibilitem debates necessários sobre esse tema tão atual. Acompanhando os textos apresentados, vocês encontrarão as belíssimas fotografias dos murais pintados durante as edições do CURA[2], equipe à qual agradecemos por enfeitar nossa cidade e nosso Almanaque 22.

Boa leitura!


 

[1] Miller, J.-A. “Uma Fantasia”. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. nº 42, fevereiro 2005.
[2] Crédito das imagens: Área de Serviço.



O Que A Histérica Quer Saber?

GRACIANA GUIMARÃES

 

 

Neste trabalho pretendo investigar a posição em que a histérica se coloca frente a sua busca por saber. Na tentativa de localizar o saber no Outro, a histérica esquiva-se do seu próprio saber sobre seu gozo, como tentaremos averiguar a seguir.

 

O saber em psicanálise

 

A palavra ‘saber’ deriva do latim sapere, que se refere a “ter conhecimento, ciência, informação ou notícia” e “ter sabor, agradar ao paladar” (CUNHA, 1982, p. 695). No decorrer do ensino de Lacan, essa palavra adquire um sentido diferente, se afastando dos termos ‘conhecimento’, ‘ciência’ e ‘informação’ para, então, o saber flertar com o ‘sabor’ da verdade.

 

O saber em psicanálise difere do conhecimento, e é isso o que Lacan explicita em “o que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação”. O saber está relacionado a um encadeamento significante, “trata-se precisamente de algo que se liga, em uma relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2”, e não ao acúmulo de conhecimento, informações acerca de uma realidade (LACAN, 1969-70/1992, p. 30).

 

Lacan, no seminário 17, explica que “saber é coisa que se diz, que é dita… o saber fala por conta própria – eis o inconsciente” (LACAN, 1969-70/1992, p. 73). Nesse sentido, saber e inconsciente se parelham, podendo sugerir que o saber é inconsciente, um saber que não se sabe. É pela surpresa, quando o sujeito se sente ultrapassado, pelo que Freud denominou fenômenos do inconsciente, que esse saber aparece. Nesse tropeço, nessa hiância, produz-se um achado, que, para o sujeito, tem um valor único, de verdade (LACAN, 1964/2008).

 

Também nesse seminário 17, Lacan estabelece os quatro discursos, importantes para a compreensão do que pretendemos neste trabalho, sendo eles o discurso do mestre, o discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso do analista. Luiz Henrique Vidigal, em Ensaios sobre os discursos em Lacan (sd), lança luz sobre como esses discursos são constituídos. Em cada um desses discursos observa-se que se delimitam quatro lugares ocupados por quatro letras diferentes. Essas letras circulam na mesma orientação e ocupam lugares de acordo com o discurso a que se referem, como pode ser visto abaixo:

 

 

O S1 corresponde ao significante mestre; S2, ao saber; $, ao sujeito; e a letra a corresponde ao mais-de-gozo. Os lugares são de agente, de Outro, de produção e de verdade, que se posicionam da seguinte forma:

 

 

O lado esquerdo, onde estão os lugares de agente e verdade, pode ser entendido como sendo o campo do próprio, do íntimo, daquele que sustenta o discurso. O lado direito sendo o campo da alteridade, onde estão os lugares do Outro e da produção (VIDIGAL, sd).

 

No seminário “O avesso da psicanálise”, como explicita Vidigal, “Lacan substitui o campo do Outro pela bateria de significantes (S2) que forma um campo não disperso, já estruturado de um saber” (VIDIGAL, sd, p. 16). Um significante externo (S1) intervém no campo já constituído de outros significantes (S2), e a articulação desses significantes faz surgir $, denominado sujeito dividido. Desse trajeto de S1 a S2 aparece algo definido como uma perda, designado pela letra a como objeto a, mais-de-gozo (LACAN, 1969-70/1992).

 

Essa articulação de significantes importa para compreender as nuances do saber. O saber deriva do traço unário, em que um significante S1 faz uma primeira marca e, a partir daí, se liga a um outro significante S2. Essa ligação S1-S2, de uma articulação significante, de um saber em trabalho, instaura a dimensão do gozo. O saber trabalhando produz uma entropia, uma perda introduzida pela repetição, em que se estabelece um mais-de-gozar a recuperar. O gozo seria um movimento de recuperação dessa perda, de algo que se perdeu por esse trabalho do saber instaurado na articulação significante. Como tentativa de preencher essa perda, surgem então objetos (objeto oral, anal, escópico e vocal) denominados objetos a. É a partir do saber como meio de gozo que se busca um sentido, mencionado por Lacan como um sentido obscuro, que é o da verdade (LACAN, 1969-70/1992).

 

Lacan, em Radiofonia, nos diz “É que, da verdade, não temos que saber tudo. Basta um bocado…”, e ainda, “o real não é antes de mais nada para ser sabido” e “a verdade situa-se por supor o que do real faz função no saber” (Lacan, 1970/2003, p. 442 e 443). Uma verdade que só é acessível por um semidizer, alerta Lacan no seminário 17, que não pode ser dita por inteiro, porque, para além de sua metade, é indizível (LACAN, 1969-70/1992).

 

Também em Radiofonia, Lacan ironiza que com a verdade não se pode estabelecer relação amorosa possível, a não ser a qual ele garante ser segura, com a castração (LACAN, 1970/2003). “O amor à verdade é o amor a essa fragilidade cujo véu nós levantamos, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração”. Então, a verdade se liga à impotência. O amor à fraqueza, à impotência, isso é a essência do amor, é dar o que não se tem a fim de reparar essa fraqueza original (LACAN, 1969-70/1992, p. 54).

 

A histérica e o saber

 

Nos quatro discursos elaborados por Lacan, o saber, S2, ocupa diferentes lugares em cada um deles, e neste trabalho deterei principalmente nos discursos do mestre e da histérica, os quais nos ajudarão a compreender, de certa forma, a relação da histérica com o saber.

 

No discurso do mestre, o saber está essencialmente no lugar do Outro, o do escravo, que possui um saber-fazer referente à produção de gozo. E o mestre, por sua vez, busca extorquir o escravo a fim de recuperar o resto de um gozo perdido (NAVAEAU, 2017).

 

No discurso histérico, o saber está colocado no lugar de gozo, e o mestre é quem trabalha para produzi-lo. A histérica se embaraça, interroga o mestre, S1, sobre sua relação com o saber, S2, como visto no seu discurso essa relação sugerida, S1/S2. Esse questionamento remete-se ao valor de a, sobre o que ela mesma seria, uma pergunta lançada no campo do Outro sobre algo que está no seu próprio campo, $/a, e o que escapa ao saber (NAVAEAU, 2017).

 

Ela quer que o Outro seja um mestre, daí S1 situado à direita acima, no discurso da histérica, e que esse mestre saiba de muitas coisas, mas não tantas a ponto de acreditar ser ela o prêmio máximo de todo o seu saber. Ela quer um mestre sobre o qual ela reine e ele não governe (LACAN, 1969-70/1992).

 

No discurso histérico está instituída a pergunta sobre o que vem a ser a relação sexual, de como um sujeito pode sustentar ou não essa relação. Colocando o Outro como lugar desse saber, o sujeito histérico mostra-se estranho ao que de fato está em jogo no saber sexual, permanecendo, assim, um saber recalcado (LACAN, 1969-70/1992).

 

O sujeito histérico se aliena do significante-mestre o qual efetua a divisão do sujeito e se recusa a dar-lhe corpo, explicitado por Helenice de Castro (2018) como “uma recusa do corpo ao efeito de castração determinada pela incidência do S1”. Na recusa do corpo, o sujeito não se coloca como escravo frente ao significante-mestre. A histérica faz a seu modo, então, uma espécie de greve, como disse Lacan no seminário 17, e não entrega o seu saber. Ela desmascara a função do mestre, mas permanece solidária valorizando o que há de mestre no que é o Um, esquivando-se, assim, de ser objeto de desejo (LACAN, 1969-70/1992).

 

Para a histérica, o não saber ser a mulher a coloca em uma posição de enunciação, na qual o gozo do homem é posto como um saber da mulher. E que ela, por sua vez, acredita não saber como proceder nem o que é preciso fazer para o gozo do homem. E, ainda, acredita existir a mulher detentora desse saber. O problema para a histérica não é o gozo feminino, mas sim o gozo masculino. “É saber se o homem é um homem, se ele sustenta o Um”, se ele não tem medo da castração, se ele consegue ser um mestre e se é capaz de colocar em jogo o Um da vida. Então se direciona à outra que ela julga ter esse saber, do gozo do homem, e a faz seu objeto de admiração e adoração (NAVAEAU, 2017, p. 165).

 

A hiância entre a histérica e a mulher, a que sabe, instaura um conflito em que mesmo a histérica não alcançando o gozo todo da mulher, que é impossível, não se cansa de desejar esse todo, permanecendo o seu desejo sempre insatisfeito e recusando os gozos relativos.

 

Nesse sentido, a histérica se vê dividida entre o gozo e o desejo, caracterizado pela relação que ela estabelece com a mulher. A histérica não é nem a mulher, a que sabe, nem uma mulher, a única de um homem (NAVAEAU, 2017).

 

O saber de Dora: o que ela nos ensina?

 

O caso Dora, publicado por Freud em 1905, exemplifica a relação da histérica com o saber, e é relembrado por Lacan em diversos momentos em que aborda a temática da histeria. Dora chega a Freud levada pelo pai. A perda da consciência após uma breve discussão com esse pai foi o acontecimento último que, mesmo relutante, a fez aceitar o tratamento. As intrigas em que Dora se envolveu na relação que se estabeleceu entre ela, o Sr. K., a Sra. K. e seu pai diz da forma como ela conseguiu lidar com cenas nomeadas por Freud como traumáticas – a cena do lago, em que o Sr. K. faz uma investida amorosa a Dora, e uma cena anterior, quando esta tinha quatorze anos, em que o Sr. K. a imprensa num vão de janela e a beija. Associado a isso, o pai, que mantém um caso amoroso com a Sra. K. e é visto basicamente pela filha, enquanto a mãe pouco aparece, envolvida apenas com as tarefas domésticas (FREUD, 1905/1996).

 

A relação estabelecida entre a Sra. K. e seu pai faz sustentar para Dora o desejo do pai idealizado. Lacan, no seminário 17, relembra a situação delicada de saúde do pai de Dora, que escancara o homem castrado, e isso inclusive em relação a sua potência sexual. O pai, em sua destinação simbólica, como um ex-combatente, ex-genitor, está sempre em potência de criação. Esse papel-mestre que o pai ocupa no discurso da histérica, sob a perspectiva de potência de criação, é o que faz sustentar sua posição em relação à mulher, mesmo esse pai estando fora de forma, como disse Lacan (LACAN, 1969-70/1992). Como aquele que já não possui e, ao mesmo tempo, possui o órgão, faz com que o pai não possa ser castrado, pois já o é desde sempre. A histérica mantém o pai nessa posição idealizada, tirando-o do combate, o que faz sustentar a crença de acesso a um gozo absoluto. Com o vislumbre ao gozo absoluto, a histérica recusa o gozo sexual, já que, neste, ela se depara com o gozo relativo que surge do embaraço da relação com o outro, dos entraves da questão da potência e impotência do órgão masculino (CASTRO, 2018).

 

Não é o órgão de Sr. K. que Dora disputa com a Sra. K., mas sim a joia que seu pai, impotente, dá a sua amante. No caso de Dora, a Sra. K. ocupa a posição de suposto saber, em que ela dirige sua admiração e adoração. A Sra. K. é a mulher que sabe o que fazer para o gozo do homem, nesse caso, o de seu pai, e é a ela em que Dora se interroga sobre o que é o gozo. Dora demonstra como a transferência na histérica é orientada em direção à mulher e como esse amor se endereça ao saber (NAVEAU, 2017).

 

Na cena do lago, algo que se sustentava na relação entre o quarteto Sr. e Sra. K., Dora e seu pai, se desmorona. Quando Dora questiona o Sr. K. sobre sua mulher, e este diz “minha mulher não é nada para mim”, ela se depara com duas situações. Tem-se, então, a queda da mulher, quem ela julgava ter o saber sobre o gozo e quem sustentava o desejo do pai idealizado. E também, nesse momento, o gozo do Outro é ofertado diretamente a ela, o que ela rapidamente recusa, esbofeteando o Sr. K., porque, na verdade, o que ela quer é o saber como meio de gozo (LACAN, 1969-70/1992).

 

No segundo sonho de Dora, seu pai está morto, e ela é convidada a comparecer ao enterro. Ela até tenta ir, mas se vê em sua casa vazia, folheando um grande livro, um dicionário. Nesse sonho, observa-se a passagem pelo pai idealizado: o pai está morto, e evidencia-se a manobra histérica de instalar o saber como meio de gozo quando Dora escolhe folhear o dicionário. Dora encontra um substituto para esse pai em um livro, um livro em que se ensina o que diz respeito ao sexo, como salienta Lacan. E isso demonstra que o que de fato importa a Dora, para além inclusive da morte de seu pai, é o que ele produz de saber, de um saber sobre a verdade (LACAN, 1969-70/1992). Dora, ao fazer confusões com as intrigas envolvendo seus familiares, é levada a Freud como mentirosa, e é no percurso da análise que ela pôde fazer valer a sua verdade (LAURENT, 2007 apud CASTRO, 2018). “Isto é o que lhe bastará da experiência analítica. Essa verdade em que, preciosamente, Freud a ajuda” (LACAN, 1969-70/1992, p.102).

 

Esse momento, como salienta Helenice de Castro (2018), teria sido uma virada na análise de Dora que, caso tivesse continuado, poderia ter construído um saber que a aproximasse de seu modo particular de gozo, desvinculado daquele ligado à privação em que ela se encontrava.

 

Conclusão

 

A partir da escrita deste trabalho foi possível verificar que esse questionamento da histérica ao Outro, de buscar o saber no campo do Outro, só a faz distanciar mais do seu próprio saber sobre o seu gozo. A histérica, então, não quer saber nada sobre o seu próprio gozo, e isso, de certa forma, seria uma defesa. Ao sustentar um mestre potente, detentor de um saber total, a histérica esquiva-se de deparar com a impotência, com a castração. Com a possibilidade de um trabalho em análise, como visto no caso Dora, essa figura de mestre pode se esvair aos poucos. Com isso, é possível dar lugar à construção de um saber sobre a própria verdade, sobre o que há de particular no gozo de cada histérica.

 


Referências
CASTRO, H. de. (2018) Neurose sem Édipo: Enxame#1. Disponível em: <http://jornadaebpmg.blogspot.com/2018/05/enxame-2-2-pingos-nos-is.html> Acesso em: 13 jun. 2018.
CUNHA A. G. da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1882.
FREUD, S. (1905) ”Fragmento da análise de um caso de histeria”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
______ (1964) O Seminário, Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
______ (1970) “Radiofonia”, In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 403-447.
NAVEAU, P. O que do encontro se escreve. Estudos Lacanianos. Belo Horizonte: EBP, 2017.
VIDIGAL, L. H. Ensaios sobre os discursos em Lacan. Belo Horizonte: Editora Tahl, sd.

GRACIANA GUIMARÃES
GRACIANA GUIMARÃES Aluna do curso de psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental – MG



Primeau, Joyce, Wolfson E As Falas Impostas

GISELLE GONÇALVES MATTOS MOREIRA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Lacan, em O seminário, livro 23: o sinthoma, afirma que o doente vai mais longe que o homem saudável no que concerne ao testemunho da incidência do parasitismo da fala e se indaga: “Como é que todos nós não sentimos que as falas das quais dependemos são, de algum modo, impostas?” (LACAN, 1975-76, p. 92). Essa questão surge em seu seminário logo após uma apresentação de paciente conduzida pelo próprio Lacan no hospital Sainte-Anne, cujo paciente em questão ficou conhecido por Gerard Primeau. Ao fim da entrevista, Lacan diz aos ouvintes que eles acabavam de testemunhar uma “psicose lacaniana” e chama a atenção para a experiência que o próprio paciente nomeou “falas impostas”. Entretanto, o agravante – que deixa Lacan pessimista em relação ao caso – é o destino dado a essa imposição da fala: Primeau, em um segundo tempo, formula frases reflexivas a partir das falas impostas, mas essas reflexões escapavam de seu controle e podiam ser registradas por outras pessoas. Primeau não podia ajustar sua própria mente, e seus mais íntimos pensamentos estavam a descoberto; ele se diz um “telepata emissor”, e essa construção o leva ao pior.

 

O automatismo mental

 

Gaëtan Gatian de Clérambault, psiquiatra francês designado por Lacan como seu único mestre em psiquiatria, em seu conhecido artigo “Automatismo mental e cisão do Eu” (1920), desenvolve a noção de ‘automatismo mental’, a partir do relato de três casos de sua clínica. Na sua concepção, esse fenômeno teria uma primazia em relação à formação do delírio, ou seja, a construção delirante seria uma reação (interpretativa ou imaginativa) do paciente ao movimento automático das palavras. Portanto, para Clérambault, seria fundamental fazer uma distinção entre “o fato primordial, isto é, o automatismo mental” e “a construção intelectual secundária, a única a merecer o nome de delírio de perseguição” (CLÉRAMBAULT, 1920, p. 166). Nesse sentido, diferentes elaborações ou concatenações podem surgir como tentativas de explicação desse mesmo “material imposto pelo inconsciente” (idem, p. 167), a depender da constituição de cada sujeito.

 

Nota-se que essa concepção da primazia do automatismo mental trabalhada por Clérambault parece cara a Lacan em sua forma de conceber as repercussões das falas impostas presentes no caso de Gerard Primeau, como em suas elaborações sobre a dimensão da linguagem advindas dessa apresentação de paciente e desenvolvidas em O seminário, livro 23: o sinthoma: “A questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é uma forma de câncer pela qual o ser humano é atingido.” (LACAN, 1975-76, p. 92). Lacan insiste em ressaltar o caráter de parasitismo da fala, colocando ênfase nessa relação da imposição das palavras que, vindas do campo do Outro, “atingem” o ser. Portanto, nessa concepção da fala como parasita, o “falasser” seria, “em seu corpo, hospedeiro do uso da palavra” (LAIA, 2001, p. 120).

 

Gerard Primeau testemunha sua experiência com as falas impostas e, a pedido de Lacan, dá exemplos de frases que emergem na sua cabeça desvinculadas de um significado imediato. Nas palavras de Primeau: “Ele vai me matar o pássaro azul. É um sistema anárquico. É um assassinato político (…) um ‘assastinato’ político, que é a contração das palavras ‘assassinato’ e ‘assistência’, que evoca a noção de assassinato” (LACAN, 1976, p. 6). Durante a entrevista, Lacan retorna a esse ponto – a essa mistura sonora que se dá por um deslizamento entre assassinato e assistência –, ao que Primeau esclarece que essas palavras “emergem” “espontaneamente”, como “explosões”. Ao evocar essa fala de Primeau em seu seminário, Lacan dirá que vemos muito bem que “o significante se reduz aí ao que ele é, ao equívoco, a uma torção de voz” (LACAN, 1975-76, p. 92). Mais adiante Primeau recorre a outro exemplo: “’Eles querem governar meu intelecto’ é uma emergência. ‘Mas a realeza está derrotada’ é uma reflexão” (LACAN, 1976, p. 12). Desse modo, a partir de uma frase imposta, Primeau acrescenta um “mas” que introduz sua reflexão, numa tentativa de neutralizar a frase anterior.

 

Essas reflexões poderiam ser uma defesa contra a experiência perturbadora com as falas impostas, entretanto, Primeau não conseguia mais ajustar sua própria mente, e seus mais íntimos pensamentos estavam a descoberto: ele se diz um “telepata emissor”. Essa construção o expunha, causando grande “ansiedade”, a ponto de provocar uma tentativa de suicídio.

 

Uma reflexão escrita

 

A partir da experiência de Gerard Primeau com as falas impostas, Lacan evoca o escritor James Joyce ao perceber que a relação do escritor com as palavras também refletia um caráter de imposição: “é difícil não ver que uma certa relação com a fala lhe é cada vez mais imposta (…), a ponto de ele acabar por dissolver a própria linguagem” (LACAN, 1975-76, p. 93). Se, por um lado, a defesa reflexiva de Primeau fracassa, por outro, Lacan localiza que Joyce, no progresso da sua obra, opera uma reflexão ao nível da escrita:

 

Sem dúvida, há aí uma reflexão ao nível da escrita. É por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é o caso de se livrar do parasita falador (…) ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala.(LACAN, 1975-76, p.93)

 

Banhado pelos murmúrios da língua, o ato de Joyce é – por intermédio da escrita – o de quebrar, desfigurar as palavras que lhe são impostas, e, no próprio ato de decomposição, reatar o nó, produzindo uma amarração sintomática. Como lê Ram Mandil, há “uma dupla dimensão do sinthoma através desse procedimento da escrita: de uma defesa frente ao ‘parasita falador’, mas, ao mesmo tempo, fonte de uma nova satisfação, de ‘deixar-se invadir… pela polifonia das palavras’” (MANDIL, 2018).

 

Deixar-se atravessar por essa língua desmantelada, gozar da desfiguração das palavras e, por fim, fazer uma tessitura com os pedaços quebrados. Mas essa trama vai além da linearidade da história, se aproximando mais de um encadeamento borromeano, ou, como quer Lacan, de um “trançamento de terra e de ar” (LACAN, 1975-76, p. 163). Cada elemento é tomado em sua cardinalidade: cada palavra é escrita de forma “particularíssima”, ainda que o sentido comum se perca.

 

Podemos notar essa dissolução da linguagem por intermédio da escrita (em que a sonoridade e o ritmo ganham uma prevalência em detrimento do sentido), na seguinte epifania de Joyce:

 

Sr. Vance – (chega com uma vara)… Oh, a senhora entende, ele tem que pedir desculpas, Sra. Joyce.

Sra. Joyce – Oh sim… Ouviu isso, Jim?

Sr. Vance – Senão – se ele não se desculpar – as águias vêm tirar os olhos dele fora.

Sra. Joyce – Oh, mas tenho certeza de que ele vai se desculpar.

Joyce – (embaixo da mesa, para si mesmo)

– Os olhos dele fora

Agora

Agora

Os olhos dele fora.

 

Agora

Os olhos dele fora

Os olhos dele fora

Agora.

(JOYCE, 2018, p. 9)

 

O Schizo e as línguas

 

Depois de recolher algumas pistas sobre a experiência com a imposição da fala em Primeau e Joyce, passemos a Louis Wolfson, escritor norte-americano, autor do livro Le Schizo et les langues (1970). Wolfson se nomeia sempre no impessoal: “o jovem homem esquizofrênico”, “o doente mental” ou, ainda, “o estudante de línguas esquizofrênico”. Trata-se, para o autor, de escrever em livro exatamente o procedimento no qual ele submete a língua, sendo este quase um empreendimento científico.

 

Wolfson opta por escrever em francês pelo fato de o inglês, sua língua materna, lhe causar as maiores perturbações. Deleuze, no prefácio que escreve ao livro Le Schizo et les langues, descreve bem o “procedimento linguístico de Wolfson”, que vai além de uma simples tradução do inglês para o francês:

 

O que o estudante faz é o seguinte: dada uma palavra da língua materna, encontrar uma palavra estrangeira com sentido similar, mas que tenha sons ou fonemas comuns (de preferência em francês, alemão, russo ou hebraico, as quatro línguas principais estudadas pelo autor) (DELEUZE, 1970, p. 17).

 

Como localiza Deleuze, o procedimento de Wolfson consiste em fazer uma tradução que não privilegia apenas o sentido das palavras, mas que busca encontrar, em outras línguas, sons semelhantes, fazendo uma combinação fonética. Para não precisar de se servir do inglês, Wolfson diz preferir fazer uma língua “original dele mesmo” (WOLFSON, 1970, p. 221).

 

Do livro Le Schizo et les langues, retiro a descrição de uma situação em que determinadas palavras são de algum modo impostas ao estudante de línguas. Trata-se de grandes caracteres vermelhos escritos em inglês: “sore throat”. Esse enunciado, que acompanha a propaganda de um remédio, se encontrava espalhado por toda a cidade e atraia involuntariamente os olhos de Wolfson, causando um estado de estupor. Imediatamente uma antiga lembrança infantil era despertada: o prelúdio de uma amigdalectomia, em que sua mãe se dirige a uma enfermeira elogiando sua “baguette mágica”. A obsessão por esse pensamento paralelo fazia com que seu cérebro se tonasse um órgão oco. Desse modo, o termo “sore throat” deixava sua mente dominada. Wolfson encontra uma possível saída para essa perturbação através de seu procedimento linguístico. Ele diz:

 

Mas finalmente – como por quase todas as outras palavras inglesas que o chateava ou o angustiava – o estudante de línguas esquizofrênico encontra os vocábulos estrangeiros, ou ele se lembra deles, nos quais ele poderia pensar por obter o grande alívio quando se aborrece pela expressão sore throat (WOLFSON, 1970, p. 118).

 

Aplicando seu procedimento, Wolfson converte sore (dor) nas palavras alemãs: schmerzhaft, schmerzlich, schmervoll, substituindo o s da palavra inglesa pelo sch alemão, de forma que o sentido e o som fossem considerados. Ele desliza essa substituição até encontrar souffrant na língua francesa, passando ainda por palavras do hebraico, do russo, etc. Desse modo, Wolfson tenta barrar o que ele mesmo nomeia “pensamentos parasitas”, recorrendo aos vocábulos estrangeiros e deformando – a seu modo irônico – a língua inglesa (WOLFSON, 1970, p. 121).

 

Como localiza Deleuze, o estudante de línguas vive com distanciamento a conversão da palavra de origem no novo vocábulo estrangeiro, sustentando sempre um tom protocolar e impessoal, intensificado pela escrita em terceira pessoa: “O procedimento linguístico gira em falso e não reagrega um processo vital capaz de produzir uma visão (…). Em Wolfson o procedimento é ele mesmo seu próprio acontecimento” (DELEUZE, 1970, p. 21). Portanto, o “procedimento linguístico” seria um fazer, ou mesmo uma ajuda contra a construção delirante e contra a voz da mãe, “empurrada” sobre sua cabeça através de palavras injuriosas. Podemos pensar nessa função, mesmo que ele ainda esteja preso, como ressalta Deleuze, às semelhanças de som e sentido entre as palavras de origem e às palavras transformadas pelas línguas estrangeiras, faltando-lhe uma sintaxe criadora.

 

Wolfson diz encontrar um grande prazer no estudo das línguas, assim como na escrita detalhada de seu procedimento: “Mas, mesmo a sua maneira louca, senão imbecil, era agradável estudar as línguas!” (WOLFSON, 1970, p. 70). Ou, ainda, quando questionado por tamanho trabalho, ele reconhece não receber nenhum dinheiro por isso, e diz: “Mas eu existo!” (p. 192). Por fim, Wolfson localiza que seu procedimento linguístico – ou nas suas palavras “o saber ativo, em ato, em operação” (p. 249) – lhe retirava da paralisia que a experiência com as falas impostas lhe causava. Por meio de seus estudos, ele diz se deparar com o belo e, mais ainda, com a possibilidade de ‘gozar da vida’.

 

Três loucuras absolutamente distintas?

 

A partir das diferentes experiências com o parasitismo da fala em Primeau, Joyce e Wolfson, fica evidente como cada um encontra uma solução diferente e absolutamente própria para esse fato primordial que é o automatismo mental, descrito desde Clérambault.

 

Sobre Primeau, temos o registro da entrevista conduzida por Lacan no hospital Sainte-Anne, diante de um público de analistas e psiquiatras. Durante a entrevista, Lacan aposta na habilidade do paciente em operar com a ambiguidade significante, dizendo que ele seria “incontestavelmente um poeta”. Entretanto, essa tentativa de nomeação (um poeta) parece não se sustentar, e Lacan não localiza um saber apontado por Primeau, a partir do qual pudesse regular a perturbadora experiência com as falas impostas. A tentativa de construir uma defesa reflexiva frente ao gozo da língua parece fracassar.

 

Em Joyce, é a partir de sua obra, como de sua biografia, que Lacan percebe que a relação do escritor com as palavras também apontava para esse caráter de imposição. Se, a partir das falas impostas, Primeau faz uma reflexão ao nível do pensamento, de outra forma, a reflexão de Joyce se dá ao nível da escrita. Se Joyce encontra um ponto de amarração sintomática – no caso sua obra, essa “coisa tão particular” –, Lacan não diz o mesmo de Primeau. Ainda em O seminário, livro 23: o sinthoma, Lacan retoma a relação de Joyce com as epifanias, que é também uma técnica da escrita joyceana: “É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem” (LACAN, 1975-76, p. 151). Para Lacan, a epifania é uma consequência do erro do nó, falha que solta o Imaginário. Desse modo, através de sua obra, Joyce faz um laço estreito entre simbólico e real, ou uma “tessitura das palavras impostas”, como quer Sérgio Laia (2001).

 

Por fim, Wolfson. Como destaca Deleuze, seu livro não é nem uma obra de arte nem um experimento cientifico legítimo; seu aspecto original está no fato de ser um “protocolo de experimentação”. Se Joyce se deixa invadir pela polifonia da fala, Wolfson, por intermédio de seu “procedimento linguístico”, tenta destruir a língua materna. Por vezes, Wolfson se culpa por gozar através de suas investigações linguísticas, duvidando da moralidade de suas façanhas intelectuais. De uma oposição radical entre vida e saber, Wolfson, por fim, toma seu procedimento como condição de sair da paralisia e consente com a possibilidade do saber se tornar meio de vida.

 

Seriam três loucuras absolutamente distintas? Primeau, Joyce e Wolfson encontram diferentes soluções diante da experiência com as palavras impostas, seja através de uma defesa reflexiva ao nível do pensamento no caso Primeau, da obra como reflexão escrita em Joyce, seja de um protocolo de experimentação, como faz Wolfson. Entre amarrações e desamarrações, Wolfson, Joyce e Primeau, cada um a seu modo, lançam mão de recursos que tratam, compensam ou mesmo fracassam em fazer uma defensa frente ao gozo da língua.

 


Referências
CLÉRAMBAULT, Gaëtan. (1920) “Automatismo mental e cisão do Eu (Apresentação de pacientes)”, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo: vol.2 n.1, 1999, p. 160-168.
DELEUZE, Gilles. (1970) “Louis Wolfson, ou o procedimento”, In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
JOYCE, James. Epifanias. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
LACAN, Jacques. (1975-1976) O seminário, livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.
LACAN, Jacques. (1976) “Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques Lacan”. In: Opção Lacaniana. São Paulo, abril/2000, p. 5-16.
LAIA, Sérgio. Os escritos fora de si – Joyce, Lacan e a loucura. Belo Horizonte: Autêntica/FUMEC, 2001.
MANDIL, Ram. “Los signos discretos de la locura en James Joyce”, Revista Mediodicho, Córdoba. No prelo.
WOLFSON, Louis. (1970) Le Schizo et les Langues ou la Phonétique chez le psychotique. Paris: Gallimard, 1970.

GISELLE GONÇALVES MATTOS MOREIRA
Mestranda em Letras (Estudos Literários) pela UFMG. Aluna do Curso de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental – MG. Rua Manaus, 341/103 giselegmm@gmail.com



Sobre A Cólera De Aquiles

JEAN-PIERRE VERNANT

 

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida,
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueuse
tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.[1] 

 

Logo no primeiro canto da Ilíada, Aquiles, em sua cólera, se afirma como o homem da solidão, do heroísmo individual. Para preservar a ideia elevada de que ele tem do ideal heroico, postulado como absoluto de honra, ele se separa de seu grupo. Ao fazê-lo, retira-se da guerra que era sua razão de ser. Situação sem saída da qual sairá por motivos estritamente pessoais, para saciar sua sede de vingança contra aquele que, ao vencer Pátroclo, fez morrer um outro de si mesmo. Ao contrário de Heitor, Aquiles se afasta dos outros gregos associados a ele no combate para preservar até o fim sua identidade de herói singular, quase estranho à condição humana pela elevação de sua coragem e pela superioridade de sua força, para não falar em seu nascimento semidivino. Quando volta para a batalha, não aparece como um campeão do lado aqueu; é uma potência de destruição sem rédeas que guerreia como respira, naturalmente e sem esforço. Só sabe matar, matar sempre, até sua própria morte, não só prevista e aceita, como também assumida como a face secreta, o reverso de seu personagem heroico – essa visão lúcida do mundo da morte ao qual o herói se dedica ao escolher a glória e priva o jogo guerreiro de seu prestígio falacioso. A consciência desabusada de não passar de uma criatura perecível como as outras, até na façanha, torna fútil e derrisória a oposição entre vencido e vencedor, reunidos por destinos semelhantes. Ao contrário de Heitor, Aquiles não é um herói trágico em si: não sucumbe sob o peso de seus próprios erros, de suas ações. Porta-voz do ideal heroico, é mais uma voz que o relato empresta para dar a ouvir sua mensagem trágica, para sugerir, no fim da narração, como uma constatação final, a incompreensibilidade, a vaidade da existência humana mesmo quando, iluminada pelos fogos de artifício da glória, brilha com um esplendor que parece igualar aos deuses.

Entretanto, por ser expressa em uma obra que, devido a sua organização formal, constitui um mundo fechado e harmonioso, um cosmos, essa insignificância da vida humana, ao se ofertar à inteligência estética, é, ao mesmo tempo, deslocada e superada. Deslocada: doravante olhamos para ela de outro ponto de vista, como se estivéssemos ao mesmo tempo dentro e fora da vida, próximos e engajados como um homem, distantes e afastados como um deus. Superada: a insignificância do vivido sofre, na experiência imaginária da arte, uma transmutação, torna-se significação trágica. A desordem, a confusão, o disforme que toda cultura se esforça em rejeitar para fora dela na natureza, sem nunca conseguir plenamente, fornece aos homens a matéria para uma criação original em que tudo é ordem, forma, beleza, porque tudo está organizado no plano da ficção.

O relato da Ilíada, em sua progressão, ilustra o duplo movimento de desorganização e de reorganização, o ir e vir entre a ordem aparente da vida e a desordem que nela se dissimula e entre a desordem assim revelada e uma ordem nova, de um tipo muito diferente. No decorrer da intriga, assistimos a uma espécie de decomposição do mundo heroico. Seguindo a inclinação natural da violência, a guerra, primeiro nobre e cavalheiresca, com seu ideal elevado, suas regras, seus interditos, abre-se para o desencadeamento progressivo da selvageria. Quando a bestialidade a invadiu por inteiro, os heróis dos dois campos se transformam em animais selvagens, em aves de rapina predadoras que, em sua fúria guerreira, não tratam mais o inimigo como um parceiro em um confronto leal, como um homem diferente, mas como uma coisa, uma presa cuja carne crua se quer devorar. A carnificina que a guerra dissimula aflora, de certa forma, nas falas e nas condutas dos heróis que não se contentam em triunfar no combate, mas que maltratam o vencido, mutilam-no, despedaçam-no, dispersam seu corpo, privam-no de sepultura, entregam-no aos cães e às aves por não poder devorá-lo eles mesmos, como se, na guerra, a questão fosse menos vencer, ou até mesmo matar, e sim destruir no inimigo até o último rastro de seu aspecto humano, acabar com seu ser social e pessoal lançando-o para sempre para fora da cultura a que pertence, em um não-ser de caos.

 

[1] Homero, “Canto I”. In: Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 4ª. ed., 2010.



Para Além Do Encanto Pelas Palavras, A Indisciplina Dos Professores

VIRGÍNIA CARVALHO / BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE / ANA LYDIA SANTIAGO

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

A “VI Manhã de Trabalhos do CIEN Brasil” propõe pensarmos sobre “o que colocamos em jogo quando falamos”. Tal convite encontra eco na indicação de Laurent, de que cabe aos Laboratórios do CIEN testemunhar o corte que produzem ao buscar reintroduzir a dimensão psíquica nos lugares em que foi eliminada. Ele lembra que, se em um primeiro momento de seu ensino, em 1953, Lacan privilegia o “dom da palavra”, posteriormente, em 1973, evidencia o “gozo do blá-blá-blá”. Nesse deslocamento, fica evidente que “não há necessidade de dar a palavra, porque o ser falante tagarela como a aranha tece seu fio e goza disso, sem necessidade de ninguém e sem poder parar” (LAURENT, 2017, p. 40). A ideia de abrir espaço para a palavra – muito em voga na contemporaneidade – pode servir como mais uma oferta de gozo, reforçada pelo apoio nas “palavras especializadas”.

A psicanálise se separa dessa “psicoterapia de massa” quando faz uma aposta na Conversação, também uma prática da palavra que serve para tratar o que não vai bem e que é formulado por meio das queixas (SANTIAGO, 2011). A Conversação é uma metodologia de orientação psicanalítica que se refere a uma aposta: não há sucesso garantido. Laurent destaca que a primeira aposta que se faz nessa prática é a de “saber que, quando falamos, deixamos de ficar aliviados” (2017, p. 42). Uma Conversação ocorre quando há um corte que promove um desajustamento das identificações nas quais os sujeitos se encontram alojados. Nesse sentido, a associação livre coletivizada que se propõe no dispositivo não equivale a uma roda livre para “dar um suplemento de alma ao mundo técnico” (LAURENT, 2017, p. 47).

 

Uma despatologização através da Conversação

 

“Docentes doentes: deixe-os falar!” foi o nome dado ao Laboratório do CIEN que surgiu a partir da observação de um professor, em uma Conversação, de que os docentes estão todos doentes e que ninguém os deixa falar sobre suas questões. É uma contradição em termos, já que costumam se queixar muito sobre sua atividade docente. Trata-se, portanto, de uma aposta para que um corte nesse gozo do blá-blá-blá seja produzido, promovendo uma posição diferente da vitimização.

Nesse blá-blá-blá, escutamos que os docentes adoecem pela indisciplina dos alunos. Assim, o Laboratório tomou o tema da indisciplina, trazido por um grupo de educadores como ponto de partida para uma Conversação. Traziam muitas queixas, com vozes alteradas, rostos enrubescidos e pernas inquietas. Levaram casos de alunos indisciplinados e deixaram claro como essas crianças e jovens afetavam seus corpos. O corte que se buscou nessa falação adveio da pergunta proposta pela animadora: “alguém aqui já foi indisciplinado?”

Tal corte se constituiu como abertura para um segundo tempo nessa Conversação, o de uma implicação subjetiva no problema coletivo. Começaram a se lembrar de momentos em que foram indisciplinados e experimentaram um certo “gosto por fazer algo errado”. A revelação da professora de que, na infância, fora encaminhada à direção para “aquietar a periquita” surpreendeu. Ao mesmo tempo, revelou o quanto a indisciplina tem a ver com esse “fogo” que cada um tem no corpo. Abriram-se para a dimensão pulsional, chegaram à constatação de que “nem sempre a indisciplina é para chamar a atenção” e concluíram que “é preciso ler a indisciplina como algo que não está bem enquadrado” e “é impossível ter o controle de tudo”. Olharam para a indisciplina incluindo-se nela, o que fez uma diferença em sua maneira de lidar com isso que escapa ao controle disciplinar dos corpos. Ficaram interessados em ouvir seus alunos no que é indisciplinável: o desejo. Após a Conversação, duas das professoras que haviam levado casos de seus alunos nos procuraram. Uma delas disse que o aluno melhorou sensivelmente. A outra afirmou que seu aluno ainda deixava seu corpo atormentado e nos pediu auxílio para que ela pudesse dar um tratamento às suas questões subjetivas.

 

O “professor tarado”: não varrer o resto para debaixo do tapete[1]

 

Em uma outra experiência de Conversação, a produção desse corte somente foi possível a partir do momento em que os animadores se propuseram a ir mais além do encanto pelo “dom da palavra”. Trata-se de uma intervenção realizada com uma turma tida como o “resto” da escola, em que se encontravam os piores e mais indisciplinados alunos do 7º ano. Eram alunos que desrespeitavam os professores, gritavam o tempo todo e mantinham a sala imunda: “nossa sala é um lixo”, diziam. Esses jovens queixavam-se de serem desrespeitados e não escutados por seus professores, que, sem medir as palavras, entravam na sala “dando bronca”. Eles “descontam problemas pessoais nos alunos, não ouvem e falam xingando”.

As primeiras sessões de Conversação produziram efeitos visíveis: alunos que, no discurso dos professores, eram “analfabetos”, passaram a escrever; “futuros bandidos” demonstraram interesse por línguas estrangeiras e elencaram desejos por profissões. Os alunos que, antes, expressavam com seus corpos o que era dito a respeito deles pela direção – “essa sala é o resto que não coube, juntou só o pior” –, ao tomar a palavra, puderam se separar disso, deixar de responder e atuar como restos. A partir de um deslocamento inicial em relação a essa identificação, se puseram, literalmente, a limpar a sala diante dos animadores. Usando vassouras e pás, varreram o lixo, encenando uma evidente mudança de posição. Um encanto! O ambiente ficou lindo, agradável aos olhos de todos e favorável ao processo escolar.

No entanto, esse lixo tinha sido varrido, sim, mas para debaixo do tapete! Foi o que se evidenciou no momento da supervisão dessa Conversação. A equipe de animadores acreditou, por um momento, que tudo estava resolvido: os alunos trataram a sujeira com a limpeza, usando da maquiagem estética, lançando mão da ordem para a captação da beleza sensível, que é um semblante importante da civilização. Porém, esse tratamento tinha sido apenas uma encenação que interpretava e questionava, ao mesmo tempo, a forma como os adultos daquela instituição tratavam o “lixo”. Eles o escondiam, não queriam saber do que não devia aparecer; dissimulavam o que não davam conta de falar; ignoravam as denúncias dos alunos, dizendo que iam ver, mas não faziam nada a respeito. Assim, a limpeza da sala realizada no final de uma sessão de Conversação podia ser tomada tanto como um passo dado pelos alunos na direção de preparar o terreno para falar como uma forma de interrogar os animadores da Conversação sobre a relação deles com a palavra. Um aluno afirma: “Desde que vocês estão vindo, a sala está bem melhor, mais quieta”. Outra aluna complementa: “Depois que vocês forem embora, vai acabar o respeito e continuar tudo a mesma bosta de sempre”. Assim, explicita-se a necessidade de ir além da faxina.

Os animadores da Conversação tiveram que dar um passo a mais, a despeito da sublimidade da organização da sala de aula. Além do encanto, retomaram a conversa propondo novamente aos alunos o tema do “lixo”, do resto que insistia e que se mostrava evidente nos palavrões falados por eles. Apenas nesse momento puderam escutar e abordar o que os alunos já haviam dito na primeira Conversação: a existência de um “professor tarado”, que encostava com desrespeito nas meninas. Uma aluna relata: “O cabelo da menina é grande, foi passando a mão no cabelo dela e chegou no peito dela, passou a mão no peito dela”. Pela primeira vez, explicita-se o motivo da tanta gritaria: “Com os outros professores, a gente chega na mesa deles, conversa. Com ele não: a gente fica gritando do nosso lugar, a gente prefere gritar do que chegar perto dele; tomamos nojo da cara dele”. As alunas ficam gritando do fundo da sala para se protegerem, para ele não se aproximar. Uma vez que a escola não as escuta sobre esse ponto, restava-lhes o grito!

A última supervisão foi crucial para os animadores não adotarem a mesma estratégia dos docentes da instituição. Temiam ser denunciados ao falar do problema, expulsos da escola ou sofrer a ação da polícia. “Proibir o fazer, permitir o falar”. Tal orientação, dada pela supervisora, já era conhecida, mas, naquela circunstância, parecia impraticável. Na “entrevista devolutiva”, contudo, ao mencionarem o problema dos alunos do 7º ano, produziu-se, de imediato, um corte temporal: todos já sabiam, insistiam em deixar escondido debaixo do tapete, e o professor, naquele momento, responsabilizando-se, assume sua fraqueza e pede indicação para se tratar.

As duas experiências ensinam que falar numa Conversação, para além do blá-blá-blá, é um esforço de dizer algo sobre o ineducável da pulsão, sobre o ponto em que a sexualidade faz furo no real. Incluir o intraduzível do gozo, o “fogo do corpo” que se mostra por meio da indisciplina e da falta de respeito, permitiu, em cada uma das experiências, reintroduzir a dimensão psíquica em jogo nessa fronteira entre o anímico e o somático. Dimensão esta que o campo da educação tenta eliminar calando – ainda que pelo falatório. A Conversação se mostra, assim, uma operação de palavra capaz de criar um espaço radical, em que o irreconciliável pode ganhar lugar e em que se pode tocar naquilo que é da ordem do impossível de tudo dizer.

 


REFERÊNCIAS
LAURENT, E. (2017). “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. Brown, N.; Macedo, L.; Lyra, R. In: Trauma, Solidão e Laço na Infância e na adolescência. BH: EBP.
SANTIAGO, A. L. (2011). “Entre a saúde mental e a educação: abordagem clínica e pedagógica de sintomas na escola nomeados por dificuldades de aprendizagem e distúrbios de comportamento” In: Santiago, A. L; Campos, R. H. de F (org). Educação de crianças e jovens na contemporaneidade: pesquisa sobre sintomas na escola e subjetividade. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas.
[1] As Conversações com a turma em questão foram animadas por Libéria Neves, Ana Carolina Ribeiro e Bruna Albuquerque, com supervisão de Ana Lydia Santiago.

VIRGÍNIA CARVALHO / BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE / ANA LYDIA SANTIAGO
VIRGÍNIA CARVALHO Psicanalista, mestre e doutoranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG), professora substituta da UFMG e pesquisadora do NIPSE da FaE-UFMG. Responsável pelo Laboratório “Docentes doentes: deixe-os falar!”, do CIEN. vivscarvalho@yahoo.com.br BRUNA SIMÕES DE ALBUQUERQUE Psicanalista, mestre em Psicopatologia e Estudos Psicanalíticos (Université de Strasbourg), doutoranda em Conhecimento e Inclusão Social em Educação (FaE-UFMG), pesquisadora do NIPSE. bruquerque@gmail.com ANA LYDIA SANTIAGO Psicanalista, AME da EBP e da AMP. DEA do Campo Freudiano/Universidade de Paris VIII. Doutora em Psicologia Clínica/USP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: conhecimento e inclusão social da FaE-UFMG. Coordenadora do NIPSE. analydia.ebp@gmail.com As Conversações com a turma em questão foram animadas por Libéria Neves, Ana Carolina Ribeiro e Bruna Albuquerque, com supervisão de Ana Lydia Santiago.



Desmontagem Da Pulsão Na Toxicomania: A Prevalência Do Objeto

LUÍS FERNANDO DUARTE COUTO

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Introdução

 

A psicanálise acompanha o mundo, suas modificações e seus efeitos na subjetividade. Nas últimas décadas, passamos de uma civilização em que os ideais da cultura traziam alguma ordem para um novo mundo, em que o que prevalece é o objeto mais-de-gozar. Essa mudança trará uma nova maneira de se pensar a toxicomania, a partir das consequências advindas da prevalência do objeto na cultura. A oferta incessante de objetos, fruto da aliança do discurso da ciência e do discurso capitalista, incluirá todos na lógica do consumo, obedientes ao imperativo que ordena consumir, gozar. Podemos pensar, assim, em uma lógica toxicômana para o mundo atual (BENETI, 2014).

É a partir das considerações acerca da prevalência do objeto que propomos, neste trabalho, a retomada do conceito de pulsão em sua montagem e desmontagem, que terá agora, na imensa oferta de objetos, a promessa da garantia de sua satisfação.

 

A montagem da pulsão em Freud e Lacan

 

As investigações freudianas acerca da pulsão aparecem com maior riqueza de descrições e elaborações em “As pulsões e suas vicissitudes” (FREUD, 1915/2006). Nesse texto, Freud afirma que se trata de um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático e irá diferenciá-lo dos estímulos externos. Descreve, assim, os quatro componentes da pulsão.

A pressão (Drang) é definida como o motor da montagem pulsional, sua própria essência. É um conceito importante que nos ajuda a pensar o circuito pulsional na toxicomania, uma vez que não há possibilidade de anular a pressão pulsional – a não ser com a morte. O segundo elemento da pulsão é o alvo (Ziel), ou a sua finalidade, que diz respeito à satisfação. Uma terceira parte dessa montagem é a fonte (Quelle), que, para Freud, corresponderia à parte somática, processo que ocorreria em uma parte do corpo (FREUD, 1915/2006). Podemos pensar, com Lacan, que a fonte da pulsão está nos buracos do corpo, regiões que se diferenciam por sua estrutura de borda (LACAN, 1964/2008). Por fim, o último elemento da pulsão é o objeto (Objekt) que será alguma coisa, por meio da qual a pulsão atingirá sua satisfação. Para Freud, esse será o elemento mais variável da pulsão (FREUD, 1915/2006).

Lacan, ao retomar o conceito de pulsão em Freud, afirma que toda sua elaboração vai contra a ideia de que esta estaria no registro orgânico e nos apresenta uma constatação lógica da teoria freudiana: a pulsão é impossível de ser satisfeita. Freud traz as bases para essa afirmação, uma vez que a pressão é uma força constante e que exigirá sempre satisfação. Lacan afirma que nenhum objeto, de nenhuma necessidade, irá satisfazer a pulsão. Nesse sentido, o circuito pulsional não atinge o objeto, mas passa por ele, contorna-o. “Contorno” ganha aí um duplo sentido, na medida em que a pulsão dá borda ao objeto e o escamoteia (LACAN, 1964/2008).

 

O circuito da pulsão na toxicomania

 

Na medida em que o objeto não satisfaz a pulsão, Lacan destaca o impossível em relação ao princípio do prazer. Retomamos em Freud que o desprazer corresponde a um aumento na quantidade de excitação e, o prazer, a uma diminuição. De acordo com sua teoria, o aparelho mental se esforça para manter a excitação nele presente tão baixa quanto possível (FREUD, 1920/2006).

Mais uma vez, Freud dará as bases para a constatação lacaniana. A partir dessas duas ideias apresentadas em “Além do princípio do prazer”, Freud desenvolverá sua investigação buscando lidar com a contradição presente em suas duas premissas: afinal, se o prazer é decorrente dos baixos níveis de excitação, e o nível de menor excitação é o estado inorgânico – ou seja, a morte –, conclui que todo o caminho do homem visará a esse retorno ao inorgânico. Aparece então, pela primeira vez em sua obra, o conceito de pulsão de morte, sendo que identifica que a energia das pulsões de vida e morte tem a mesma natureza, a saber, sexual. Afasta, então, o conceito de sexualidade – ou de pulsão sexual – de uma função exclusivamente reprodutora.

Nesse sentido, podemos pensar a pulsão como uma montagem por meio da qual a sexualidade participa da vida psíquica (LACAN, 1964/2008, p. 173) ou, de outro modo, será uma montagem que serve para contornar um vazio. O vazio a ser contornado pode, às vezes, surgir como intervalo. Essa frase está em Lacan, ao abordar a pulsão parcial e seu circuito: “No intervalo, a sexualidade” (LACAN, 1964/2008, p. 173). Há uma economia libidinal em jogo no intervalo, o que pode torná-lo insuportável para o toxicômano diante da exigência de satisfação da pulsão. Há que se pensar o funcionamento do circuito pulsional no intervalo. Afinal, a pulsão insiste entre uma pedra e outra, e talvez se possa apostar em uma abertura para a fala, naquilo que ela comporta a dimensão do gozo. Nesse sentido, o intervalo na toxicomania pode ser sustentado pela possibilidade do gozo de falar com o Outro (ALVARENGA, 2014).

As tentativas de intervenção do Outro ganham um acento na prática com toxicômanos por poderem provocar alguma mudança no circuito pulsional. Lacan nos adverte que não há relação de ligação ou de maturação entre as pulsões parciais. Não se passaria, por exemplo, da pulsão oral à anal por um processo de maturação. A retificação possível está no nível da satisfação (LACAN, 1964/2008) e pode ter sua chance com a entrada do Outro. Para Lacan, “o sujeito se aperceberá de que seu desejo é apenas vão contorno da pesca, do fisgamento do gozo do outro – tanto que, o outro intervindo, ele se aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer” (LACAN, 1964/2008, p. 180).

Para Miller (1989), a droga permite obter um gozo sem passar pelo Outro. Assim, não se pode fazer dela um objeto causa de desejo, mas causa de gozo. A droga se apresenta em sua positividade, ao contrário do objeto a, que, em sua negatividade, pode mobilizar o desejo. A produção de excedente de gozo que não passa pelo Outro e não é mediado pelo falo se apresenta como solução para o toxicômano, na medida em que permite não colocar o problema sexual. A transferência pode surgir aí, para intervir nesse circuito autoerótico. De acordo com Miller, “no fundo, o analista deveria ser um dealer da droga da palavra” (MILLER, 1989, p. 29).

 

Circuito pulsional e laço social

 

É interessante pensar o circuito pulsional no uso de drogas em sua relação com o Outro; em que medida o sujeito mobilizará a pulsão no sentido do laço social ou, por outro lado, em que medida se satisfará autisticamente. Podemos assim diferenciar um circuito pulsional que irá contornar o objeto, tentando buscá-lo no campo do Outro, ou, uma segunda possibilidade, um circuito que lançará mão da droga e do corpo próprio para a sua satisfação. Podemos discutir a pertinência de uma aproximação entre o circuito pulsional e o laço social a partir das elaborações sobre a teoria da pulsão e a teoria do discurso.

Assim, uma hipótese de aproximação diz respeito a como podemos localizar os elementos da pulsão em relação aos elementos do discurso. O discurso, segundo Lacan, será formado a partir de quatro elementos que se dispõem em quatro lugares e farão a articulação do sujeito ao Outro, possibilitando, assim, algum laço social (LACAN, 1969-1970/1992). O lugar da verdade provoca o agente a se dirigir ao Outro, e este irá produzir algo.

Uma questão que merece ser investigada é se podemos localizar o circuito pulsional, em sua vertente de laço com o Outro, dentro da montagem do discurso. Essa hipótese, que deve ser verificada, conferiria à pulsão uma estrutura discursiva ou, de outro modo, a inscrição da pulsão no laço social.

Nesse sentido, a fonte, enquanto buraco do corpo, seria o que mobiliza a força motriz (pressão) em direção a um objeto, supostamente no campo do Outro, produzindo satisfação (alvo). É interessante notar que a satisfação, nesse caso, está também no campo do sujeito, e não no campo do Outro. Lacan exemplifica esse ponto ao afirmar que “o alvo não é ave que vocês abatem, é ter acertado o tiro e, assim, atingido o alvo de vocês” (LACAN, 1964/2008, p. 176). O paradoxo na toxicomania é que se acredita no logro do objeto, mas não no Outro, de forma que todo o circuito pulsional passa pela tentativa de contornar o objeto no próprio corpo, sem se lançar ao Outro. Freud afirma que, no autoerotismo, tratar-se-ia de uma só boca que beija si mesma. Lacan questiona se não seria ela uma boca fechada, costurada, “em que vemos na análise, apontar ao máximo em certos silêncios, a instância pura da pulsão oral, fechando-se sobre sua satisfação” (LACAN, 1964/2008, p. 176).

 

Caminhos para a satisfação da pulsão

 

procurou o CMT[1] há alguns anos, em um quadro de excitação maníaca. Estava usando crack em grande quantidade, vendendo tudo o que tinha em casa. Os familiares “fugiram” dele indo para o interior, tendo ele ficado um curto período de tempo na rua. Nos atendimentos, exalta suas qualidades dizendo ser um dos melhores jogadores de futebol, poeta, líder comunitário, um exemplo para a comunidade – mesmo com o uso da droga. Afirma que o prazer do crack é sexual e rejeita medicações, por lhe suprimirem a libido.
Em atendimentos seguintes, diz ser bombeiro, eletricista, pedreiro, sempre ressaltando suas habilidades. Considera-se um “dependente cínico”, e não um dependente químico, por se considerar um “malandro”. “Sou dependente cínico sem ser hipócrita”: sabe que “as drogas estão aí em qualquer lugar” e que as usa por malandragem.

Em alguns momentos, a malandragem lhe traz incômodo, por ter perdido muito com o uso da droga. Durantes os atendimentos, surge uma construção, fruto de uma intervenção, da qual ele se apropria e traz consigo ainda hoje, passados mais de cinco anos: malandragem é um outro nome para inteligência. Apostando em sua inteligência, passa a escrever seus poemas e identifica-se ao “poeta”. Leva seus escritos para os atendimentos e abandona suas outras qualidades: “Já fui jogador, soldado do exército, hoje sou poeta”. Interessa-se pela escrita cada vez mais e passa a produzir incessantemente. Seus textos abordam com frequência os temas referentes a sexo, amor, mulheres e drogas – principalmente as mulheres. Publica um primeiro livro com a ajuda do Centro de Convivência e permanece, nos últimos anos, às voltas com seus textos, que têm como marca a presença do gozo na escrita.

Podemos pensar, a partir desse caso, as respostas singulares que cada sujeito encontra e, no caso de R., como a pulsão toma outro caminho, passando de um circuito restrito ao próprio corpo para um outro circuito, que inclui o gozo na escrita, e que pode ser, de alguma forma, socializado. O objeto, dessa vez, está no campo do Outro, na medida em que a produção dos livros possibilita o laço social. R. coloca suas obras para venda em bancas de revista, oferta seu produto em uma praça da cidade, convida os trabalhadores para lançamentos e é convidado para saraus e divulgação de seus livros. Há um outro circuito pulsional, que não desconsidera o gozo, e que pode fazer algum laço. É interessante que R. tenha sustentado seu lugar de poeta há mais de cinco anos.

Freud afirma que “todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico pode ser salvo” (FREUD, 1930/2006, p. 91). Miller nos indica um caminho da salvação pelos dejetos em contraposição a uma salvação pelos ideais. Ele toma o termo “salvação pelos dejetos’’ de Paul Valéry, que assim define o surrealismo (MILLER, 2011). É curioso notar que Lacan irá definir a pulsão como uma colagem surrealista, em que as partes não estão naturalmente articuladas (LACAN, 1964/2008).

Sendo o surrealismo uma arte, Miller a define como a estetização do dejeto. Essa é a operação de sublimação da pulsão: dar estética ao dejeto, para que ele possa se entrelaçar ao discurso do Outro. Assim, o gozo do Um, sempre autista, pode se inscrever no laço social, sendo que, por outro lado, algo do gozo resta insocializável. Penso que Miller nos apresenta, nesse texto, uma orientação importante para a condução do tratamento com os toxicômanos, na medida em que precisamos considerar o gozo no tratamento que o sujeito inventa para si. O gozo deve estar contemplado em sua resposta, sendo esta a operação de sublimação da pulsão.

O toxicômano monta um aparelho pulsional que dispensa o Outro, o que conhecemos como o gozo cínico (SANTIAGO, 2017) – como bem explica nosso paciente R. Lacan afirma que, na medida em que a pulsão obtém alguma satisfação, com ela, os sujeitos se contentam. Questiona, então, por que nós nos metemos com isso. A partir de nossas considerações sobre a desmontagem da pulsão, percebemos que há outras vias para a satisfação, que podem ser menos mortíferas.

 


 

Referências
ALVARENGA, E. “As mulheres e suas drogas”. In: MEZÊNCIO, M. et al (Orgs.) Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
BENETI, A. “A toxicomania não é mais o que era”. In: MEZÊNCIO, M. et al (Orgs.) Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREUD, S. (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol.VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. P.59-60.
FREUD, S. (1911) “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, S. (1915) “Os instintos e suas vicissitudes”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, S. (1920) “Além do princípio do prazer”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, S. (1930) “O mal-estar na civilização”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. (1969-1970) Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MILLER, J.A. (1989) “Para uma investigação sobre o gozo autoerótico”. Pharmakon digital. V.02. p.29.
MILLER, J.-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre o desejo e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
SANTIAGO, J. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. 2.ed. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017.
[1] CMT: Centro Mineiro de Toxicomania, instituição da FHEMIG na cidade de Belo Horizonte/MG.



Parque De Justiça – Urso Branco: Um Campo De Distorção Da Realidade

JOSÉ HONÓRIO DE REZENDE / GIULIANA ALVES FERREIRA DE REZENDE

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

O termo ‘campo de distorção da realidade’ foi usado em 1981 por Bud Tribble, da velha guarda da Apple, para se referir ao poder pessoal de Steve Jobs de encantar as pessoas pelos seus projetos (ISAACSON, 2011, p. 135 e ss.). A ideia que passa é a de criação de uma nova realidade a partir de elementos de razão cuidadosamente apresentados. Identifica uma lógica que se impõe naturalmente. Define comportamentos, gostos, sentimentos e desejos. Significa a criação de uma nova realidade, em determinado contexto de tempo e espaço. Mas é uma realidade planejada, controlada. Daí a ideia de distorção.

A teoria pode ser aplicada a todos os campos em que a argumentação se apresenta como ferramenta necessária. Todos os campos que exigem convencimento para determinar atitudes constituem espaço para a sua aplicação. Pode-se dizer que mistura lógica com sentimentos. Por isso o enorme potencial de alcance que projeta. É o convencimento pela sedução.

A sua aplicação ganha terreno farto nas ciências argumentativas. E o Direito é campo natural para sua aplicação. De natureza dialética e marcado por grau de indeterminação que possibilita a apreciação de qualquer argumento, o direito pode se dizer livre para construção (BUSTAMANTE, 2013, p. 275-276).

Cada tempo, cada povo estabelece as suas regras segundo o que melhor lhe convém. Essa é a Humanidade indispensável ao estudo do Direito (GROSSI, 2006, p. 7). Por isso não se pode estudá-lo sem que se lance mão do recurso da história, da filosofia, da sociologia, da antropologia, da psicologia social e da psicanálise.

Cada uma dessas ciências, na verdade, investiga o ser humano, o seu fazer, individual ou coletivo, criando, contudo, campos de realidade. Como não são ciências de fenômenos naturais, repetidos sempre do mesmo modo, a princípio, o poder de criação é total. Estará sempre em contínuo movimento, fazendo-se e desfazendo-se o tempo todo.

A interpretação das ciências mencionadas vai sempre exigir contextualidade, a fim de se aproximar com mais precisão de seu objeto, e isso também se projeta para arranjos futuros, isto é, em projeções de como poderiam se organizar. Esse esforço criativo, contrastado com a realidade, garante a sua perpétua modificação. O limite passa a ser a própria mente humana. Pode-se dizer, então, que não há limites.

Interessa-nos aqui tecer algumas considerações no campo do Direito. Num rápido movimento histórico, encontramos, aos nossos olhos de hoje, as mais absurdas barbaridades perpetradas sob o beneplácito da ordem jurídica. Matanças, escravidões e violências sexuais já foram compreendidas como comportamento natural e legitimadas pelo Direito. Tudo faz parte de um tempo que acreditamos não voltar, mas não há remédio que garanta isso. O Direito será sempre uma ordem criada pelo próprio povo.

A propósito de projeções de construções do Direito, o episódio da série Black Mirror “Urso Branco” nos faz pensar muito. Nesse episódio, o castigo psicológico não é apenas admitido. É, na verdade, um entretenimento público para toda a família, ao estilo showbiz.

Melhor compreensão do episódio não percebi do que a de ‘campo de distorção da realidade’. Para se chegar ao estágio de naturalidade com que se castiga o outro, um longo caminho de convencimento se faz necessário. Somos, por natureza, dialéticos. Pelas diferenças que exibimos, vivemos e projetamos o tempo todo. A formação de consensos sempre é um caminho árduo (ALMEIDA, 2013, p. 166). Fixado o consenso – a reprogramação de comportamento –, a adesão é impressionante. Lembro, a propósito, do filme A onda. A realidade é um campo que pode ser distorcido, e podemos não perceber essa assimetria, a depender de como tudo vem apresentado e formalizado.

No episódio “Urso Branco”, a protagonista acorda em suplício, que é renovado o tempo todo, sem descanso. A plateia também se renova. Ávidos pelo gozo, pelo prazer de assistir o sofrimento real, sem distorção.

A protagonista é acusada de coautoria de um homicídio. Ela e o namorado matam uma criança. Ela filma a cena. É presa. O namorado se suicida. Ela é punida. No sistema de punição, também passa a ser filmada num local chamado “Parque da Justiça”.

A punição adota a técnica de desconstituição do sujeito. Propositalmente, e com a ciência ao lado, retiram-lhe a memória: não sabe quem é. Não sabe onde está. Não sabe o que se passa nem por que se passa. Resta-lhe um único instinto: o da sobrevivência.

Quando a protagonista acorda, já se desespera por não saber nada de si, nada do que acontece. Movimenta-se para buscar algo e é confrontada pelo comportamento estranho de seus pares. Ninguém a toca, ninguém com ela conversa ou interage, todos somente a filmam. Os que se aproximam para interação vestem-se em caricatos trajes e a perseguem com intento de morte. Começa a fugir. Recebe uma ajuda, que indica solidariedade. Agarra a essa ajuda. Mas é uma fuga alucinada. Não sabe de nada. Não sabe o que deve fazer. Não sabe para onde vai. Segue qualquer sinal que lhe indique possível salvação. E os horrores se multiplicam. No final, a surpresa: para todos que participavam do ritual, era um espetáculo de entretenimento. Menos para a protagonista. E menos para quem assistia ao episódio.

Quando tudo é revelado, fica o choque. Começa-se então a juntar as partes do episódio, de modo a criar um ambiente de segurança lógica que permita o conforto de entender tudo. A montagem de todas essas partes vai revelando um aspecto cada vez mais sombrio do que o episódio revelava. O desconforto gerado no momento em que o episódio vai se desenvolvendo é substituído por nova tensão: descobre-se o que de fato acontecia. E aí surge então todo um espaço de reflexão. O episódio desafia a essa reflexão.

Temos então uma forma de intervenção em quem comete um crime livre. Pareceu-me que o sistema de punição daquela sociedade depende de consensos. Vamos punir, mas de que modo? Pode-se punir de qualquer forma. No caso do episódio, foi a exibição pública do sofrimento mental da condenada. Temos um parque da justiça criado para isso. E as pessoas que ali comparecem tomam parte do ritual de punição. E tudo indica que estamos diante de uma situação natural, construída por consensos.

Há no episódio um momento em que a protagonista é ajudada. Cria-se um campo de humanização, mas logo é desfeito. Há uma espécie de recondução à condição humanitária da protagonista quando é ajudada. Mas essa ajuda só revela a perversão do modelo punitivo. Humaniza-se para que se possa sentir a força da punição, e todo o sistema reverbera esse propósito.

Pouco parece importar que a protagonista tenha história além do crime cometido, tanto que, ao final, lhe dizem “vamos te levar de volta para onde você veio”: o quarto onde o show recomeça. Menos ainda que ela possa vir a ter um futuro posteriormente, já que é privada de qualquer hipótese de presente real, em que esse futuro poderia se construir. Destituída de três direcionadores da vida humana, torna-se objeto, preservado, exclusivamente, para o gozo alheio.

Pouco importa também que ela signifique aquele momento como punição por seus atos e que possa, com base nisso, reabilitar-se, uma vez que passa grande parte do episódio sem compreender por que aqueles males lhe acometem. Sua súplica pela morte, ao final, não surte efeito, e nem poderia. O sistema já não é somente sobre ela e sua punição, é também sobre o prazer coletivo em vê-la sofrer. Fosse presa, sofreria pouco. Fosse morta, sofreria até o momento final e não mais. Elaborou-se então um modelo no qual se mantém o corpo pela potencialidade quase infinita de sofrimento, não pelo indivíduo que nele existe.

A grande distorção de realidade no episódio, por fim, é engenhada pelo showbiz que se desenvolveu ao redor do “Parque do Urso Branco”. De suas pequenas telas de celular, ou no ambiente controlado do parque, quem assiste não racionaliza o que vê. A indústria manipula e anestesia os sentidos, e a única reação possível é aplaudir.

Ao final, a pergunta de dois gumes: como tudo aquilo pode acontecer?

Historicamente, essa é a pergunta que nunca cessou em todas as sociedades que um dia tentaram entender seus criminosos. Em geral, entende-se que o criminoso é o “Outro”, aquele diferente de si, que tem e age por motivos escusos e que, por isso, não merece o status de cidadão (JAKOBS, 2007, p. 35-36). Ao final do episódio, a dupla tensão: a criminosa era a protagonista, embora, para quem assista, acompanhar suas agruras torne difícil tê-la como inimiga; os cidadãos eram os demais personagens, ainda que, pela maior parte do episódio, eles tenham sido o inimigo, perseguindo e aterrorizando sem motivo compreensível. Como a protagonista pôde? Como os demais puderam? Dissolve-se, por um instante, a distinção entre vítima e criminoso, entre o cidadão e o Outro, e essa ausência de certeza causa enorme desconforto.

Algumas lições podemos apresentar a respeito do episódio:

A construção de consensos numa sociedade não pode perder a premissa de que há direitos os quais não se pode subtrair dos sujeitos, sob pena de desconstituí-los. O direito à vida digna, entendida como aquela que tem valor em si mesmo, e que tem prerrogativa de determinação de si e de suas potencialidades (DWORKIN, 2003, p.99 e ss.), é um deles. Essa é a certeza para resolver o desconforto apresentado. Era preciso dar uma resposta à conduta da protagonista, mas a resposta subtraiu-lhe a humanidade, a potencialidade e a capacidade de autodeterminação. Essa resposta, então, não pode servir em uma sociedade que se pretenda civilizada.

As bases do direito foram erguidas quando fomos capazes de perceber que, independentemente da conduta, não se cria o sujeito sem direitos. Esse processo foi uma longa evolução na história humana, e estamos em um tempo em que o sujeito de direitos se universalizou. É o espírito do nosso tempo. Quando permitimos a criação de sujeitos sem direitos, por qualquer motivo que seja, retrocedemos no tempo. Perdemos a dimensão do direito como natural e de todos. Isso significa que precisamos de limites que se formam pela condição humana.

Tudo isso já estava muito claro para os gregos. Na tragédia de Sófocles, em que Antígona enfrenta as leis da cidade e seus juízes para enterrar o irmão traidor da pátria, temos a manifestação de que os erros não podem criar o “não sujeito de direito”, o homo sacer. O direito então se apresenta como de todos e se manifesta em todas as situações. É a busca pela sua universalização uma necessidade permanente para a nossa humanidade.

A necessidade de dar uma resposta diante de condutas que se entendam como crimes é uma exigência da própria condição humana. As sociedades, de qualquer tempo, sempre vão exigir algum tipo de resposta. O limite dessa resposta, contudo, é que definirá o nível de civilidade de cada tempo. A pura retribuição do mal pelo mal, a anulação do sujeito e sua objetificação para fins sociais, sejam quais forem eles, não civiliza, mas aproxima ainda mais da barbárie, nem satisfaz, pois o castigo não encontrará limites.

Não se pode esquecer de que as leis são para todos. O sentido das leis será sempre de fortalecer a nossa humanidade. Quando caminha em sentido contrário, estará errada.

É preciso ter todo o cuidado para não se deixar seduzir pelos campos de distorção da realidade. As leis guardam potencial natural para ser esse lugar. Não nos deixemos ser levados pelo gozo pela dor do outro.

 

Post scriptum

Ao leitor especial: qual é o nome da protagonista? De propósito, não mencionamos o nome de Victoria em momento algum do texto. Esse, senhoras e senhores, é um campo de distorção da realidade, no qual não importa o sujeito, somente o objeto de análise. Vitória foi, novamente, o não sujeito de direitos. Indignado?

 


REFERÊNCIAS
A ONDA. Produção de Dennis Gansel. Berlim: Constantin Film e Highlight Film, 2008. 1 DVD.
ALMEIDA, Marco Antônio Bettine de; GUTIERREZ, Gustavo Luis. Teoria da ação comunicativa (Habermas): estrutura, fundamentos e implicações do modelo. Revista Veritas, v. 68, n.1, 2013.
BLACK MIRROR. Urso Branco. Produção de Carl Tibbetts. 2º epsódio da 2ª temporada. Londres: Netflix, 2013.
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Sobre o caráter argumentativo do direito: uma defesa do pós-positivismo de MacCormick. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 106, 2013.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução:
Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre Direito. Tradução: Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
ISAACSON, Walter. Steve Jobs: A biografia. Tradução: Berilo Vargas, Denise Bottmann e Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
JACKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas.
Organização e Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2.ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007.
SÓFOCLES. Antígone. Tradução de J.B. de Mello e Souza. Online: EbookBrasil, 2005.

José Honório De Rezende / Giuliana Alves Ferreira De Rezende
Juiz de Direito jose-honorio@uol.com.br (31) 3285-3577 Graduanda em Direito pela UFMG. Estagiária da Divisão de Assistência Judiciária da UFMG giulianaafrezende@hotmail.com (31) 3285-3577



A Violência Na Civilização

SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Em O mal-estar na civilização, Freud anuncia que a civilização abriga em si seu obstáculo mais poderoso: a inclinação para a agressão como ineliminável à natureza humana e principal derivado e representante da pulsão de morte. Freud afirma a impossibilidade de erradicar essa “maldade constituinte do humano” e descreve a evolução da civilização como uma luta entre Eros e a Morte.

 

A violência, como uma manifestação atual desse mal-estar humano, assume formas extremas e invade a totalidade da vida social. Seu incremento não anula seu caráter atemporal e inerente à civilização. Freud fez do assassinato do pai primevo o fundamento da sociedade dos irmãos e da lei da proibição do incesto, e suas análises sobre a guerra ensinam que “a violência é a civilização” (BROUSSE, 2017, p. 10).

 

Freud e a guerra

 

Os horrores da Primeira Guerra Mundial levaram Freud a interpretar a cultura, seu mal-estar, o futuro de suas ilusões e a psicologia de suas massas. Em Reflexões sobre os tempos de guerra e morte, ele destaca como o progresso científico não moderara a violência, dotando-a, pelo contrário, de armas que ampliavam seu alcance. Mais tarde, em Por que a Guerra?, ele afirma que uma comunidade se mantém unida pela força coercitiva da violência e pelas identificações que ligam seus membros entre si. Freud propõe uma evolução da civilização que vai da violência ao direito. A lei, que, originalmente, era a dominação pela força bruta de um único indivíduo, passa a representar a união do grupo, sem deixar de ser violência pronta a se voltar contra quem a ela se opor. Sua teoria das pulsões estabelece que as ações humanas “surgem da ação confluente ou mutuamente contrária” de Eros e Thanatos, reafirmando que “de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens” (FREUD, 1932, 254).

 

Da psicologia dos grupos ao mal-estar na civilização

 

Segundo Miller, Psicologia dos grupos é uma teoria política que introduz o Outro sob a forma do Ideal do eu e mostra o poder apaziguador do significante mestre na coesão amorosa da humanidade. O mal-estar na civilização, por sua vez, corrige essa teoria ao testemunhar o fracasso da identificação simbólica e do amor fundado nessa identificação para resolver o problema do gozo e ao fazer surgir, nesse lugar, a figura do supereu (MILLER, 2010, p. 15-17).

 

Nesse percurso “do amor à morte” (MILLER, 2010b), trata-se do destino do gozo pulsional na ordem social. É pela via do amor que Freud constrói, em dois tempos, o conceito de supereu: no primeiro, não há supereu, mas dependência do amor do Outro e, no segundo, o supereu é a introjeção do Outro que sabe e do qual nada pode ser escondido, resultando na culpa universal.

 

Para Miller, essa gênese do supereu a partir da introjeção simbólica do Outro é retomada por Freud do lado do gozo, em um confronto direto entre as pulsões e o supereu, quando afirma que este se nutre da satisfação pulsional à qual se renunciou por amor. Quanto mais se renuncia ao gozo, mais se goza dessa renúncia e mais culpado é o sujeito, sendo o gozo a face cruel das exigências do supereu. Não há renúncia no nível do gozo, pode-se experimentá-lo diretamente ou através de sua renuncia. Formula-se a crueldade sádica do supereu e conclui-se que as exigências da consciência moral se sustentam de exigências pulsionais. Toda moral, ao tentar eliminar o mal, só faz revelá-lo. Freud se detém, então, diante da mais elevada exigência moral da civilização, o mandamento “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, e enuncia que é “porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo” (FREUD, 1929, p. 132-133).

 

Para Lacan, o que detém Freud é a presença dessa maldade profunda que habita em cada um: “E o que é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o do meu gozo, do que não posso me aproximar?” (LACAN, 1988, p. 227).

 

A violência do significante e a lógica lacaniana do laço social

 

Em sua origem, a psicanálise é confrontada com uma violência que Freud interpretou como crime a partir da lei, fundando a família e a sociedade nos crimes do parricídio e do incesto, com os mitos de Édipo de Totem e tabu, ambos regidos pela interdição paterna. Lacan, por sua vez, formalizou o Édipo a partir das leis da linguagem com o conceito de metáfora paterna. Ele fez do Nome-do-Pai o operador simbólico, que ordena as relações do sujeito com a linguagem, e do objeto a, um conceito que permite deslocar a castração e o recalque do interdito paterno para a própria linguagem. Com Lacan, a castração é deduzida da linguagem como uma violência inerente ao significante, expressa no axioma da fantasia “bate-se numa criança”. Bater “é o modo de funcionamento do significante sobre o corpo, o que bate no corpo é o significante” (BROUSSE, 2017, p. 24).

 

Suporte da língua e de suas formas de satisfação pulsional, o significante é a primeira violência exercida sobre o corpo (BASSOLS, 2018). O gozo proveniente do encontro contingente entre as palavras e o corpo faz irrupção no campo do simbólico como um gozo que lhe escapa. Lacan assinala esse ponto onde reina a violência: “Acaso não sabemos que nos confins onde a fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali mesmo sem que a provoquemos?” (LACAN, 1998, p. 376). O domínio da violência começa onde se rompe o pacto simbólico da palavra, e a pulsão aparece como pura pulsão de morte.

 

No campo do significante, Lacan diferenciou o efeito de sentido, resultante da articulação significante, do efeito de gozo, correlato da ex-sistência do S1 sozinho, fora do sentido, fora da lei, que opera onde não há representação. O S1 sozinho não é um significante do discurso universal nem do discurso do inconsciente, mas um significante impossível de negativizar, que tem valor de real, que não é do Outro, mas do Um (MILLER, 2003, p. 11). O gozo se inscreve a partir do Um sozinho como uma satisfação singular, surgida do que não se partilha, do gozo do corpo próprio, gozo autoerótico que dispensa o Outro. “O corpo ‘se goza’ sozinho e [por isso] o encontro com o sexual faz furo, troumatisme” (SOLANO-SUAREZ, 2018, p. 16) constituinte de uma forclusão generalizada.

 

No fim do seu ensino, Lacan inverte sua perspectiva inicial, a do Outro, para centrar-se no mais singular a cada um. O essencial passa a ser o Um do gozo, que não tem contrário, segundo a máxima lacaniana de que, no nível da pulsão, “o sujeito é sempre feliz”. Para Miller, passa a haver “apenas percursos, arranjos e regimes de gozo” (MILLER, 2011, p. 11).

 

A lógica do laço social será construída a partir desse troumatisme, dessa primeira rejeição pulsional decorrente da entrada no universo simbólico, rejeição estrutural do gozo, presente como uma alteridade radical interna ao Outro e suporte das singularidades de gozo que não são universais nem universalizáveis, mas inclassificáveis. “Todo conjunto humano comporta (…) um gozo deslocado, um não saber sobre o gozo” e, nessa lógica, “o crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de aniquilar aquele que encarna o gozo que eu rejeito” (LAURENT, 2014).

 

Lacan propõe um regime de laço social que não passa pela identificação a um traço comum, mas funciona como um “corpo que faz laço com outros corpos, para além das identificações, por uma experiência de gozo comum” (LAURENT, 2017, p. 39). Freud parte da ‘interdição’ paterna, e Lacan constata que é ‘impossível’ gozar do corpo do Outro, o comum sendo a discórdia entre o corpo e o Outro, que não existe. O que existe é o corpo afetado pela linguagem, na medida em que a palavra condiciona seu gozo. Nesse nível, o Outro é o corpo. Nenhum discurso é capaz de capturar esse gozo opaco às tentativas de significação do Outro, pois a supremacia do Um provém da própria linguagem e configura um núcleo de solidão ineliminável. Não há universal que elimine o trauma implicado no gozo ou apazigue a discórdia entre o corpo e o Outro.

 

Esse furo no fundamento de todo laço social, constituído pela ‘extimidade’ do gozo, implica um impossível que se traduz como ódio ao gozo do Outro suposto subtraí-lo do sujeito. Se o Outro é Outro dentro de mim mesmo, em posição de ‘extimidade’, esse ódio ao gozo do Outro é o ódio ao meu próprio gozo (MILLER, 2010c, p. 43). “Nada concentra mais ódio do que esse dizer onde se situa a ex-sistência” (LACAN, 1985, p. 164), cujo suporte é o Um da diferença absoluta. A essência da violência é essa rejeição primordial do gozo, que designa o real do Outro. As violências são tentativas, sempre falidas, de recuperar o que foi expulso e perdido, de alcançar esse Outro gozo (HOLGUIN, 2016, p. 60).

 

A violência e a época

 

Com o modelo edipiano de regulação do gozo, referido ao interdito paterno, Freud interpretou a sociedade disciplinar de sua época e fez da neurose uma norma. Lacan reconheceu essa função do Pai freudiano na estrutura da sexuação masculina como a matriz de uma relação hierárquica constituída como um todo incompleto. Segundo Miller, a sociedade da globalização deixou de viver sob esse regime paterno e cedeu à inconsistência do não-todo feminino, em que nada existe em posição de interdito e um ’enxame’ de possibilidades é introduzido, “uma constelação de significantes, mais do que uma unicidade do significante-mestre” (MILLER, 2011b, p. 15). Um S1 passa a valer tanto quanto qualquer outro, e esse enxame de S1s sozinhos, correlatos da inexistência da relação sexual, faz da norma edípica um regime de gozo entre outros.

 

Na clínica do Um sozinho, o sintoma torna-se o regime próprio do gozo que não pode ser negativizado, “o sujeito experimentando-o necessariamente” como uma satisfação substitutiva no lugar de uma satisfação não interditada, mas impossível de ser alcançada: a da relação sexual, que não existe. Essa metaforização do gozo na língua permite soluções que prescindem da função paterna e se dão com os recursos do sintoma numa articulação direta entre gozo e significante, ligada ao corpo (DRUMMOND, 2018). O sinthoma torna-se o equivalente da função do pai: “um operador de consistência que mantém juntos o corpo, a palavra e o real” (SOLANO-SUAREZ, 2018, p. 16). O Outro que não existe tem um corpo como lugar do gozo e ponto de inserção do aparelho significante de onde o discurso se origina como laço social, não havendo discurso que não seja do gozo.

 

Lacan dá conta do modo singular do funcionamento do significante sobre o corpo pela presença de um gozo infiltrado em toda comunicação humana e confirma a tese de que não há comunicação, mas mal-entendido. A prática analítica passa a depender do real tal como ele advém em cada época (LACAN, 2011, p. 19).

 

Para M-H Brousse, a violência é um significante mestre da civilização atual, quando a articulação entre castração e NP deixou de funcionar em termos de sentido. Para ela, essa ascensão da violência à posição de S1 deve-se à ascensão atual da categoria do real. A violência não é mais capturada pelos significantes que lhe davam o sentido do sacrifício, da culpa, do castigo, mas surge sem a lei e constitui um sentido mínimo dado a esse real (BROUSSE, 2017, p. 18-19).

 

Brousse observa que, na fantasia “bate-se numa criança”, a atribuição do gozo ao pai, que dá sentido de amor ao bater, permite que seja por amor que o gozo condescenda ao desejo. Hoje, quando esse Outro responsável pelo gozo desfalece e o gozo deixa de ser-lhe atribuído, passamos da heterossexualidade ao autoerotismo generalizado. Verifica-se uma dissociação entre o gozo do corpo e o amor pelo Outro e, como consequência, uma impossibilidade de localizar esse real.

 

Brousse isola dois novos tratamentos dessa marca do gozo no corpo, que não passam pelo pai: o tratamento pelo ego e o tratamento pela crença na fantasia. No tratamento pelo ego, recorre-se à imagem mais que ao significante para fazer-se um corpo à medida. São práticas de corte com o gozo que implicam a passagem da violência ao imaginário do corpo sem recurso ao Outro: o corpo tatuado, o corpo cortado ou escarificado, o corpo customizado. Quanto à crença na fantasia, fortalece-se seu uso público. A fantasia passa de simbólico-imaginário a real. Apaga-se seu uso como marco da realidade, e esta é invadida pela fantasia. O sujeito identifica-se com o objeto de gozo em uma posição masoquista e, a propósito da violência, transforma-se em vítima (BROUSSE, 2017b, p. 27-28).

 

Vivemos a contradição de uma época na qual o respeito às diferenças convive com um processo de homogeneização cuja magnitude faz desaparecer a categoria do Outro e dá lugar a uma subjetividade embotada pelo gozo, de narcisismo crescente e desejo minguante, surgida na passagem do direito ao gozo à obrigação de gozar (BARROS, 2016, p. 97).

 

Essa era pós-patriarcal nasce com o capitalismo que, ao operar pela destituição da autoridade, se torna paradoxalmente um poder totalitário sem precedentes, abrigado no interior das democracias mais liberais. Com a ajuda da ciência, o Um tirânico do capitalismo não se limita a tirar a vida, mas a produz, administra e controla. Nunca o poder teve tanto poder como agora, sendo tanto mais poderoso quanto mais prescinde da autoridade, isto é, quanto mais acéfalo ele for. A obediência sem autoridade está implícita na fórmula do discurso capitalista que faz pensar que o objeto de gozo cura a divisão subjetiva. O supereu é a verdade desse sujeito consumidor que não necessita obedecer a uma autoridade, pois sua exploração é uma autoexploração. Ele obedece aos imperativos do supereu, purificado e aperfeiçoado pela destituição da autoridade paterna (BARROS, 2016, p. 102).

 

A permissão de gozar não muda nada quanto à estrutura do gozo, da mesma forma que não faz falta o pai que interdita para explicar seus excessos. Interessa-nos o que Miller destaca no texto Crianças violentas sobre a violência como pura irrupção da pulsão de morte, quando esses Erzats do gozo, que são a fantasia e o sintoma, não operam e, mais além do ódio e do amor, a maldade do Outro se realiza.

 

A essa desordem no real, característica da época, a psicanálise faz valer o real sem lei e fora do sentido como o lugar no qual cada Um pode alojar seu sintoma, sua solidão e seu exílio próprio à linguagem. Nessa desordem do mundo, a psicanálise lê o não-todo e separa o real sem lei de toda tentativa de retificação subjetiva de massa. Ela opera a partir do “há Um” como o que jamais constituirá um conjunto unificado. Ela vai contra o universal e a dominação, preferindo sempre o Outro ao Um. Seu uso do simbólico é antissegregativo e se opõe à homogeneização promovida pela união da ciência com o mercado, permitindo que cada um encontre a solução para o traumatismo do significante e fazendo valer a verdadeira autoridade, a do significante mestre, que transcreve no simbólico a divisão do sujeito face à pulsão. É, ainda, orientando-se por esse real que ela resiste às tentativas que visam segregá-la ou reduzi-la a uma terapêutica, indo contra a diferença absoluta e a dignidade do sujeito que ela promove.

 

 


REFERÊNCIAS
BARROS, M. Obediencia sin autoridad: o sadismo nuestro de cada día. Violencia y radicalización, Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016, p.95-102.
BASSOL, M. “Acto de violencia”. Rayuela, n. 4, agosto 2018.
Disponível em :
http://www.revistarayuela.com/es/004/template.php?file=Notas/Acto-de-violencia.html
BOUSSE, M-H. “Violencia en la cultura”. Bitácora lacaniana, Buenos Aires, Grama Ediciones, número extraordinário, p. 9-20, abril 2017.
BOUSSE, M-H. “Violencia en las famílias” In: Bitácora lacaniana, Buenos Aires, Grama Ediciones, número extraordinário, p.21-36, abril 2017b.
DRUMMOND, C. “Que nomeação advém da queda do falocentrismo” In: Polifonias #4, Boletim do XXII Encontro da EBCF, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em:
encontrobrasileiro2018.com.br/16908-2/
FREUD, S. Reflexões para o tempo de guerra e morte (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIV), p. 310-341.
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1929). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI), p. 75-171.
FREUD, S. Por que a guerra? (1932). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXII), p. 237-259.
HOLGUIN, C. M. “Por que nos odiamos? La brutalidad opaca de la vida” In: Violencia y radicalización, Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016, p.55-62.
LACAN, J. (1954) Introdução ao comentário de Jean Hypolite In: Escritos, rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 370-382.
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MILLER, J-A. “Crianças violentas” In: Opção lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 77, p.23-31, agosto 2017.
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SOUTO, S. “Descontinuidade do Édipo, continuidade do gozo” In: Curinga, Belo Horizonte, n. 44, p. 145-149, jul./dez. 2017b.
VERAS, M. “En la multitud estamos siempre solos”. IX Jornadas da Nel, outubro 2016, Guayaquil, Equador. Disponível em:
http://ix.jornadasnel.com/template.php?file=Textos-Videos-y-Entrevistas/Textos/16-08-29_En-la-multitud-estamos-siempre-solos.html

Sandra Maria Espinha Oliveira
SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA Analista praticante (AP) EBP/AMP Rua Santa Rita Durão, 321 / 407 (31) 3227-7527 (31) 99973-2680 sandra_espinha@uol.com.br



Entrevista Damasia Amadeo De Freda

DAMASIA AMADEO DE FREDA

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE
NOVEMBRO/2018

DAMASIA

CIEN MINAS: O CIEN, em sua especificidade, consiste em apreender, via conversação, o ponto de real ao qual se está confrontado nas diversas disciplinas diante do esforço de normatização. Você salienta em vários textos que os jovens, atualmente, apresentam um “não sabe por quê” que não é proveniente de uma verdade oculta no sintoma. Esse “não sabe por quê” parece se referir a uma desorientação pela ausência de coordenadas identificatórias sólidas. Qual é o desafio que os adolescentes colocam para a prática do CIEN atualmente?

 

DAMASIA FREDA: O que é possível extrair da clínica com adolescentes e crianças para o CIEN, a partir da particularidade que encontrei – o “não saber o que se passa” –, é acompanhado de uma grande preocupação por parte das escolas e de instituições sociais. Há uma imensa preocupação por parte dos agentes sociais em relação a certos sintomas que crianças e adolescentes apresentam. Essa preocupação por parte dos agentes, por não saberem o que fazer, leva à proposição de uma normatização via protocolos dentro das escolas. Isso é uma tendência da sociedade, é uma tendência dos governos também: a normatização de incluí-los, crianças e adolescentes, dentro de protocolos de comportamentos, devido a essa desorientação que há também entre os adultos, por não saberem, por não entenderem determinadas condutas nas crianças nos adolescentes. E, atualmente, em minha prática institucional, na universidade, onde temos centros de atenção às crianças e adolescentes, o que mais me chama a atenção é a quantidade de demandas das escolas pelo que se chama de hiperatividade ou síndrome de déficit de atenção nas crianças, por lhes atribuírem uma falta de atenção, uma falta de concentração associada a uma hiperatividade. Ou que essa hiperatividade faz com que não possam se concentrar nas tarefas que se acredita serem as centrais. É importante notar que crianças vistas com base nessa catalogação não apresentam essa hiperatividade no consultório nem distração às perguntas que são feitas. Há uma normatização. Colocam-se nomes em mudanças que se apresentam na cultura, mudanças de gerações, mudanças que ocorrem com a entrada no novo milênio. Crianças que chegam a partir do ano 2000 são hoje os adolescentes tardios. Para os que nascem em 2010, 2011, por exemplo, temos que pensar que as configurações são muito distintas. Já são nascidas no mundo virtual, nas novas tecnologias; têm uma facilidade e destreza para manejar os aparatos eletrônicos que a maioria dos adultos não tem. Isso faz com que tenham uma relação distinta com o conhecimento, muito diferente da imagem que tínhamos. Há muitas informações que podem buscar simultaneamente. Apresentam, assim, uma capacidade de atenção muito distinta daquela que se pretende, de que prestem atenção ao professor ou ao educador, a essa figura do saber. Esse problema faz com que o professor ou o educador, como agente do saber, como sujeito suposto saber, como chamamos nós, psicanalistas, já não funcione mais. A instituição escolar é primitiva para essas crianças e adolescentes.

Há que se considerar que há uma mudança de paradigma no século XXI e que as crianças são os protagonistas que encarnam esse novo paradigma, e, nesse sentido, estão mais adiantadas que nós, adultos, que pertencemos a uma geração anterior. Nesse sentido, creio que os adultos estão mais desorientados que as crianças.

 

CIEN MINAS: Então a desorientação está mais do lado dos adultos, dos educadores?

 

DAMASIA FREDA: Em relação a isso, sim. Além disso, creio que – isso é uma hipótese – se há uma desorientação ou se há condutas que manifestam alguns adolescentes que respondem a uma desorientação, os adultos não estão mais orientados que eles. Essa desorientação está localizada numa ruptura que existe entre a cultura e a sociedade no século XIX e no século XX, sede dessa transição até uma nova configuração social. Antes havia o que era chamado de instituições sólidas, a ideia de Pai ou de qualquer figura de autoridade para, de alguma maneira, representar essa figura patriarcal, como chamam algumas correntes. Desde a psicanálise – não só a psicanálise, mas a sociologia, a história, a antropologia –, classificaram o século XX como o século em que essa figura da autoridade foi desaparecendo, abrandando, se dessolidificando para que passássemos ao que chamamos de uma sociedade líquida. Essa é uma hipótese e continua sendo, de alguma maneira. Essa noção que nós, na psicanálise, chamamos de Pai. Freud chamou de Pai essa ideia central, o núcleo central do Complexo de Édipo, que podia ser descoberto a partir do sintoma, desarticulando-o e descobrindo as condições edípicas de cada um, cujo fator principal era o Pai. Lacan, cujas ideias seguimos, traz o significante Nome do Pai. Tudo isso é o que foi desarticulado durante o século XX, chegando a sua forma mais contundente no século XXI. Minha ideia, minha hipótese, é a de que a desorientação, ou, dizendo de forma afirmativa, a orientação dada pelo Pai, foi perdida. A perda dessa bússola deu lugar a uma desorientação. Observamos mais essa desorientação nos adolescentes, mais que nos adultos e mais que nas crianças. Por que mais na adolescência que em outras faixas etárias? Porque, como Freud dizia, seguramente com razão, na infância, recorria-se ao Pai como elemento, sobretudo, de identificação. Para Freud, o Pai era a primeira figura de identificação; a primeira forma de identificação era com a figura paterna, ou com o Pai como noção. Por outro lado, Freud destacava em seus outros textos que o adolescente se separava do Pai para eleger outro – os professores, tutores, enfim, os orientadores de seu futuro –, para concluir a etapa da adolescência e passar à vida adulta. Se essa noção de Pai está afetada desde o início, na adolescência, por haver essa passagem de uma figura a outra, se a figura orientadora está afetada, nos deixa nessa desorientação. Essa era minha ideia. Essa desorientação manifestada no “não sei o que me passa, não sei o que faço aqui… o que se passa comigo não tem nenhum sentido digno de ser tratado pela palavra…” se faz presente também nos agentes envolvidos com os adolescentes, porque não sabem o que fazer com eles. Então estamos todos desorientados, devido a essa crise. O orientador, essa noção de Pai, não é mais regulador das famílias, dos governos. Não encontramos mais isso.

 

CIEN MINAS: Recentemente, no CIEN Minas, em uma conversação com professores, educadores e familiares, ficou evidente o recurso à medicalização de crianças e adolescentes como saída para impasses enfrentados no campo da educação: os professores dizem que não sabem mais o que fazer com problemas que são da família, e os familiares, por sua vez, dizem que estão solitários, sem apoio. Em outra conversação com profissionais do campo do Direito, é marcada a situação na qual, primordialmente, pré-adolescentes e adolescentes, quando adotados, são devolvidos, como mercadorias, porque não “agradam” as famílias adotivas. Uma pré-adolescente considerada insuportável faz uma peregrinação por algumas famílias. Como trabalhar com esses impasses na conversação?

 

DAMASIA FREDA: Primeiro, a medicalização de crianças e adolescentes e, depois, a adoção de adolescentes que são devolvidos como objetos de mercadoria. O que chama mais atenção é como é natural para as famílias medicar as crianças, por exemplo, dar um sedativo para que não incomodem à noite; como as famílias consideram normal medicar uma criança ou adolescente porque um neurologista indica por considerar que haja um déficit de atenção. É consequência do progresso da ciência a forma quase planetária que assumiu o sistema capitalista, no qual o que se ambiciona como objetivo a ser alcançado é a mercadoria. Se há algo que designa um valor humano, algo que designa uma pessoa, já não é o que se sabe, a autoridade que se impõe, mas sim os objetos que tem. Daí as pessoas passam a ser mercadorias. Isso se vê muito claramente nas adoções. Os pais, quando vão adotar, querem uma criança com determinadas características, como objetos. As tecnologias já permitem manipular os genes não para evitar doenças, mas porque pessoas querem ter filhos com determinadas características, como objetos. Isso faz com que eu possa devolver uma criança, como um produto num supermercado, porque não me satisfaz, porque não funciona.

 

CIEN MINAS: Em seu livro El adolescente actual você comenta sobre a conversação no subtítulo “La conversación y lá lengua desarticula”. Você diria que, na atualidade, os adolescentes continuam falando entre si, mas numa falação sem se dirigir ao Outro, de forma desarticulada em relação ao Outro?

A conversação poderia propiciar ao adolescente fazer uma nova articulação com algum Outro?

 

DAMASIA FREDA: Sim. Não digo que não. Os adolescentes conversam entre eles ou não, na medida em que conversam com os aparatos eletrônicos, conectados com muitos outros adolescentes. Teríamos que ver essas conversações também, já que hoje em dia predominam as conversações virtuais, e não a conversação com grupos de amigos.

 

CIEN MINAS: Teria um efeito distinto quando um analista convida para um espaço de conversação?

 

DAMASIA FREDA: O que creio é uma ideia, porque também sou docente, na universidade, de alunos que também são adolescentes, de uma adolescência prolongada, porque são jovens. Creio que há uma crise de desejo de saber como a academia o propõe, tal como Freud considerava. O bom encontro com um professor era determinante para Freud. O desejo de saber, nesse sentido, está muito modificado. Os adolescentes atuais têm uma relação distinta com o saber. Eles sabem. Não é que eles não saibam, mas têm uma relação diferente. Necessitam do Google para saber as disciplinas, para saber história, geografia. O problema não é que não saibam; é que há uma ruptura com o Outro encarnado como figura de saber, como tesouro de saber. Se nós procurarmos a conversação para rearticular isso, não me parece ser recomendável, porque o paradigma está mudado. Me parece que é mais positivo entender como os adolescentes interpretam a sociedade contemporânea do que como os interpretarmos.

 

CIEN MINAS: Nossa última pergunta é sobre o projeto que vimos ali da rua Sapucaí, que é o CURA, sobre os grafites. O modo como o adolescente se apresenta no mundo muitas vezes passa por algo marginal, fora da Lei. A pichação, diferentemente do grafite, é vista como algo marginal, fora da Lei. O que você poderia nos dizer sobre a manifestação dos adolescentes em relação a esses dois modos de agir na cidade, tanto a pichação quanto o grafite?

 

DAMASIA FREDA: A pichação, diferentemente do grafite, sempre foi uma manifestação política dos jovens e adolescentes com um compromisso social que os adolescentes atuais não mostram. As pichações estavam sempre relacionadas a manifestações políticas de oposição, reivindicação… já o grafite é uma arte. Não posso dizer muito dos murais da cidade de BH, que são charmosos e me encanta que se cubram enormes paredes de edifícios. São grafites. Recordo-me do caso de um adolescente que fazia grafites. É claro que os grafites têm essa característica de utilizar os muros, as paredes. Quando entra o município, o governo, perdem o encanto (risos). Recordo que o adolescente me relatava que saía de noite com amigos para procurar espaços diferentes, entre eles, vagões de metrô. Havia trechos com leis muito específicas, que diziam que não poderia, que proibia grafitar os monumentos históricos e os patrimônios da humanidade. Respeitavam determinados espaços. A arte é sempre transgressora; não é possível fazer arte quando sou incapaz de inovar, fazer algo novo. A transgressão – e a arte é isso também – é instalar uma Lei nova, uma nova regra dentro desse movimento artístico. Quando está muito normatizado, é difícil que a criatividade surja. A arte é, sobretudo, liberdade de expressão.

Na ditadura militar argentina, os comandantes decidiram pintar de branco os troncos das árvores até um metro e meio de sua altura. Então, eram todas iguais.

Aqui se passa o contrário. Na paisagem da cidade há essas figuras enormes, diferentes… esse vestido, por exemplo. Creio que é um tema interessante que o Brasil perceba se os grafites e as pichações continuarão existindo. Seria bom tirar fotografias. Os grafites nos dizem se a cidade transpira arte ou não. Pessoalmente, me encantam os grafites e as pichações de jovens e adolescentes no Brasil e, sinceramente, espero que não as pintem de branco.




Pixo É Protesto, É Indignação

JULIANA FLORES

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

ENTREVISTA SOBRE O CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE DE BELO HORIZONTE – COM JULIANA FLORES

POR LUDMILLA FÉRES FARIA E MICHELLE SENA

 

JULIANA FLORES

 

ALMANAQUE: O que é o CURA?

JULIANA FLORES: O CURA – Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte – é um festival de arte urbana, esta que é inserida dentro da arte pública. Na arte pública, todas as linguagens são possíveis – esculturas, instalações, pinturas, murais, grafites. Porém, o CURA tem o foco, até o momento, na pintura.

ALMANAQUE: De onde partiu essa iniciativa?

JULIANA FLORES: O CURA surgiu de um desejo de duas produtoras culturais (Janaína Macruz e eu) e uma pintora (Priscila Amoni) de criar um festival de pintura de empenas, que são essas laterais cegas dos edifícios. É raro uma cidade que tenha tantas grandes empenas como Belo Horizonte. Essas laterais podem ser vistas como inúteis, um legado cinza, mas, para nós, são grandes telas à espera de uma obra. Com isso, também queríamos colocar Belo Horizonte no circuito mundial de street art, fomentar a cena e promover a cidade, que tem excelentes artistas, como uma cidade potente dentro da arte urbana.

Depois veio a ideia de um ponto único de contemplação: primeiro, porque Belo Horizonte tem vários mirantes, pela sua geografia. E, segundo, porque convivemos com arte urbana, com grafite, com ‘pixo’ no dia a dia e muitas vezes vemos, mas não paramos para contemplar. Então, para nós, fez sentido criar um espaço, assim, de fruição artística, de contemplação, de respiro: para você parar, olhar, observar e apreciar. Foi daí que surgiu a ideia de fazer esse mirante de arte urbana na Rua Sapucaí. E, pelas nossas pesquisas, é o primeiro mirante de arte urbana do mundo. Iniciamos o trabalho do festival em julho de 2015; a primeira edição aconteceu em julho de 2017; houve uma edição especial também em dezembro desse ano e, a última edição, em novembro de 2018.

 

ALMANAQUE: Por que o nome CURA?

JULIANA FLORES: O CURA é o nome do festival: Circuito Urbano de Arte. É uma brincadeira com a palavra ‘cura’. Eu, por exemplo, não acredito que a arte cure a cidade, acho que o que cura a cidade é a justiça social, a educação, outras coisas.

O que nós queríamos era criar um circuito pelo qual as pessoas pudessem andar a pé pelos murais, ou de bicicleta; fazer esse passeio no Centro para apreciar os murais, que hoje são dez. Ou seja, a ideia era a de incluir as pessoas. Embora depois tenhamos percebido que é um festival que também exclui muito. Se BH tem, pelo menos, cinquenta artistas ótimos, que poderiam pintar no CURA, até hoje só cinco pintaram. Salvo a Empena de Letras[1], em que foi possível inserir um número maior: foram 21 artistas.

Essa exclusão deu início às reivindicações. A Empena de Letras, por exemplo, foi da galera do grafite raiz, artistas que fazem letra, que fazem vandal. Aqueles que muitas vezes são artistas de periferia, que pintam a periferia de Belo Horizonte, mas que também têm um espaço no festival. Junto com essa, tivemos outras reivindicações. Uma reinvindicação muito legítima foi a das mulheres negras, das artistas, que perguntavam: Por que a mulher negra está sendo representada, mas não é autora?

 

ALMANAQUE: E de que forma vocês abordaram essas reivindicações?

JULIANA FLORES: Nossa resposta foi discutir essas reivindicações no festival. Então, assim como temos a curadoria do festival, da pintura das empenas, temos a curadoria da programação[2], que é onde vamos discutir esses temas.

Nesse sentido, convidamos vários artistas para debater sobre a ausência de negrxs nas artes e sobre a participação das mulheres nas artes visuais para falar da história do grafite. Achamos muito relevante discutir sobre a Empena de Letras, pois a letra não é um grafite menor nem se confunde com o ‘pixo’, e, para nós, é importante valorizar os grafite-writers, que fazem a arte fundadora do grafite. É uma postura política e estética colocar letra no festival.

Também percebemos a importância de fazer uma galeria de arte urbana para fomentar o mercado, porque BH tem ótimos artistas, mas alguns deles, que até então só tinham pintado no muro, puderam vender pela primeira vez as suas obras. Foi quando surgiu a Fluxo Galeria de Arte Urbana, que acontece junto à programação do festival.

 

ALMANAQUE: Como foi a escolha das pinturas?

JULIANA FLORES: A ideia foi fazer uma coleção que tivesse diversidade, que representasse vários estilos que estão na cena. Nessa edição tivemos a Empena de Letras, pintada por 21 artistas; a empena pintada por Criola[3], que tem seu trabalho marcado pelas cores vibrantes e pela pesquisa de matrizes africanas; a empena pintada pela artista argentina Hyuro[4], um dos principais nomes do muralismo contemporâneo, que abordou a questão da liberdade feminina; e também uma empena feita pelo Comum[5], com stencil[6], em que temos o chamado “jeguerê”, que é a imagem de quatro pichadores fazendo uma escada humana para pichar no alto.

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE BELO HORIZONTE

 

ALMANAQUE: Duas empenas foram pichadas durante o festival. Quais os efeitos disso para o CURA?

JULIANA FLORES: O fato de termos duas empenas pichadas trouxe o ‘pixo’ para o centro das nossas discussões.

A primeira pichação feita na Empena de Letras foi muito simbólica, porque foi feita na faixa vermelha, acima de toda a obra. Dentro do universo do ‘pixo’, é como se ele tivesse quebrado a empena, no sentido de que “eu fui maior do que esses vinte artistas que estão embaixo de mim. Eu que fui no vandal, quebrei esses vinte artistas que foram convidados pelo festival”. Em menos de 24 horas nós apagamos o ‘pixo’ da Empena de Letras e isso deu uma repercussão. Essa empena tinha curadoria de dois artistas e também o artista que estava esperando sua vez, e pintaria no lugar onde foi feito o ‘pixo’. Se os três decidiram que queriam continuar com o plano e apagar, a gente respeitou. Pela primeira vez eu percebi que a cidade ficou do lado do pichador. Porque, quando um festival grande apaga o ‘pixo’, e é um festival de arte, as pessoas começam a refletir: “Uai, mas ele está reivindicando o espaço dele”, “mas por que vocês estão apagando, se vocês valorizam as intervenções urbanas?”.

Após esse primeiro ‘pixo’ ter sido apagado, o mesmo pichador foi para a empena ao lado. Também foi muito simbólico, pois o que está representado nessa empena é o chamado “jeguerê” e uma gaivota. A gaivota é o símbolo do ‘pixo’: significa que se chegou muito alto, como um “salve”, dizendo que se está lá em cima. Novamente, o pichador, no vandal, pichou acima, mostrando que chegou mais alto, acima da gaivota. Esse ‘pixo’ não foi apagado.

 

ALMANAQUE: O que é o ‘pixo’?

JULIANA FLORES: Para mim é um grito de “eu existo”, um grito de “eu estou aqui”, um grito de “eu estou reivindicando um lugar que não me foi dado, mas eu vou ocupar esse lugar”. E o CURA não deu espaço nessa edição para o ‘pixo’, e não sei também se temos que dar, se interessa para um pichador pintar com balancinho, seguro de vida e autorização.

 

ALMANAQUE: O ‘pixo’ é vandal?

JULIANA FLORES: O ‘pixo’ é pichar onde você não pode pichar. É protesto, é indignação… é uma mensagem, é um grito! Então será que faz sentido fazer empena de ‘pixo’? Como seria uma empena de ‘pixo’? Simbolicamente é muito mais forte o pichador ganhar a parede dele, ou seja, ir lá e pintar sem autorização nenhuma, garantir o seu “lugar”, do que ser convidado pelo festival. Se ele estivesse na Empena de Letras como convidado, saiba que não teria a mesma repercussão que ele ter ido lá e pichado o topo. Não teria mesmo.

O ‘pixo’ também é aparecer, porque são pessoas que estão invisíveis na sociedade e picham grande, picham alto, picham uma empena maravilhosa: eles estão sendo vistos. Pra eles é muito importante serem vistos, isso que é o ‘pixo’. Então, no CURA inteiro, o pichador que mais chamou atenção foi o que fez o vandal, e não os que participaram com cinto de segurança, com balancinho, com seguro de vida.

É uma guerra que não é de armas, mas existe uma disputa na cidade, disputa por território.

 

ALMANAQUE: De que forma a questão do ‘pixo’ foi abordada nas edições anteriores do festival?

JULIANA FLORES: Na edição de aniversário da cidade, duas das empenas escolhidas tinham ‘pixos’ icônicos. Quando mostramos na internet, começaram os comentários contra. Eram ‘pixos’ difíceis, em que as pessoas arriscaram a sua vida, e isso, dentro do ‘pixo’ é valorizado: o risco. Isso gerou um debate e a participação de todos os artistas[7] e pichadores das empenas[8].

Em uma delas, a ideia foi fazer uma textura inteira. Eram quase 2.000 m2 de empena, a maior empena do CURA, só com ‘pixo’. Então são duas mulheres nuas dançando (representa uma homenagem às bruxas de antigamente, que tinham o poder e o conhecimento sobre o próprio corpo, que seriam as feministas de antigamente) em uma textura inteira de ‘pixo’. Eu acho que ficou uma empena maravilhosa. É uma das minhas preferidas. Mas, quando essa estética do ‘pixo’ é absorvida por um mercado – querendo ou não, o CURA representa mercado, um lugar institucional, por mais que seja um festival de arte de rua –, é ‘pixo’ ou é um trabalho de arte com a estética do ‘pixo’? Não sei dar essa resposta.

 

ALMANAQUE: O que representa o vestido pintado no mural da Hyuro?

JULIANA FLORES: É um voal e é muito delicado. A Hyuro tem uma arte muito feminista, mas muito sutil. Não é todo mundo que lê o feminismo dos murais dela. Essa obra se chama O que fica e fala sobre as mulheres que fizeram aborto ilegal. Na Europa, o cabide tem a mesma conotação, o mesmo símbolo das agulhas de crochê na América Latina: as mulheres na América Latina abortavam com agulha de crochê. Na Europa elas abortavam com um cabide; abriam um cabide e se fazia um instrumento de aborto. Ela, ao pendurar um vestido num cabide, tá falando disso… ela tá falando de aborto.

 

ALMANAQUE: Como podemos pensar a política no festival?

JULIANA FLORES: Este ano achamos importante levantar bandeiras. O que foi feito no material produzido pela nossa equipe de comunicação, que abordava a diversidade religiosa, a questão LGBT, a criminalização das drogas, a questão feminista.

É um trabalho político. A gente viu que não dava pra fingir que não tem que pensar em política. Ao contrário, num momento como este que a gente vive, a gente precisa marcar a posição sim, assumir posições… Eu acho que quem se excluir das discussões, ficar em cima do muro, não quiser criar desconforto, vai se arrepender no futuro. Não dá pra fingir que não tem nada acontecendo, então a gente quis ser político sim.

 

 


https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/11/08/interna_gerais,1004227/confira-as-atividades-gratuitas-do-cura-para-esse-fim-de-semana.shtml
[3] Edifício Chiquito Lopes – Rua São Paulo, 351. 30m de largura X 45,50m de altura.
[4] O que fica. Amazonas Palace Hotel – Avenida Amazonas, 120. 26,50m de largura X 40m de altura.
[5] Edifício Satélite – Rua da Bahia, 478. 8,65m de largura X 65,70m de altura.
[6] Stencil é uma técnica que usa máscaras de recortes de papel aplicadas no vazado. Na empena foram usadas mais de 500 máscaras.
[7] Milu Correch e DMS.
[8] Edifício Príncipe de Gales – Rua Tupinambás, 179, Centro. Artista: Davi Melo Santos; e Garagem São José – Rua dos Tupis, 70, Centro. Artista: Milu Correch

JULIANA FLORES
LUDMILLA FÉRES FARIA MICHELLE SENA