As Cores Da Cólera

JEAN-DANIEL MATET

 

Encolerizado

 

 

Ficar vermelho, branco ou preto de raiva; cólera quente ou fria. Adjetivos não faltam para dar conta dos signos dessa emoção particular que é a cólera. Eles tentam descrever uma fenomenologia do que afeta o corpo tomado por aquilo que o domina. Paroxística ou permanente, rara ou frequente, a crise de cólera recobre realidades clínicas muito diversas. Alguns homens ou algumas mulheres dizem que apenas a experimentam raramente, enquanto ela se apresenta como sintoma ou traço de caráter em outros.

Manifestações de angústia, uma impulsividade ou uma passagem ao ato podem ser tomadas por cólera, o que, às vezes, são. Todavia, a propensão de alguns criminologistas em interpretar toda passagem ao ato, até o crime (BORTEYROU X., BRUCHON-SCHWEIRZER M., SPIELBERGER C. D., s/d), como a expressão de uma cólera da qual eles fazem uma hipótese que constantemente aparece forçada, em detrimento de uma clínica mais refinada.

A inibição ou sua ausência pode dar conta dessas diferentes modalidades, de desencadeamentos violentos, e se declina de maneiras diferentes no neurótico, no psicótico ou no perverso. O interpretativo, exposto a fenômenos discretos de parasitação linguageira, pode responder, aqui, por aquilo que aparece como uma cólera permanente, na qual seus próximos são as vítimas. A hostilidade persecutória do ambiente, as redes sociais, as informações de rádio e televisão do mundo podem alimentar uma cólera permanentemente envernizada por passagens ao ato. As notícias locais diárias de bebês fustigados ou violências domésticas testemunham isso.

 

A revolta

 

Cólera na primeira página! A imprensa nacional faz, com gosto, manchetes sobre a cólera de tal grupo social, tal categoria profissional, tal lobby. Os pesquisadores; os profissionais de saúde, do petróleo; os pais de crianças autistas e até os psiquiatras ou os psicanalistas podem protestar, se manifestar, gritar contra a injustiça ou o assassinato, e é o significante “cólera”, entre desespero, tristeza e revolta, que vai se impor. A cólera está na moda, ao ponto do que se designa não ser necessariamente a experiência autêntica do que a cólera experimentada faz sentir.

Desde sempre, esse afeto é objeto de comentários, de tentativas de precisar seu sentido, de condená-lo ou defendê-lo em nome da moral, da religião ou da ética. É necessário deixar que ela se exprima como liberação salvadora da inibição ou, pelo contrário, refreá-la contra o desastre que ela pode provocar ao redor do “encolerizado”?

Da cólera dos deuses ou do Deus que dominava os homens, a cólera passou ao registro do afeto; aqui ladeiam a tristeza, o ciúme, a alegria, e tentativas de precisá-la e defini-la não faltam. Descartes (1990) fez dela uma paixão entre o ódio e a indignação. Sêneca denunciou sua inutilidade e reclamou seu banimento, de tanto que ela oprime o gênero humano (vício nocivo à alma), opondo-se a Aristóteles (os peripatéticos), que a considerava necessária, aguçando a coragem e dando-lhe fôlego. São Tomás distingue em toda paixão um elemento formal; é o movimento do apetite sensitivo e um elemento material, é a mudança que se opera no corpo decorrente do movimento do apetite. Na cólera, o movimento do apetite sensitivo é de vingança.

Para Spinoza, a cólera é a consequência imediata do ódio, ele mesmo causado por diferentes sentimentos negativos, como a sensação de ser ameaçado, uma ofensa, uma humilhação, etc. E enquanto desejo de causar um mal àquele que, antes, nos fez dele padecer, ela é, por sua vez, causa de violência, de conflito, logo, retornando como ódio e cólera. Ele opõe à cólera a animositas, não a animosidade no sentido de cólera ou da hostilidade durável contra uma pessoa, mas de um “ardor, firmeza, coragem”. Com a generosidade, ele faz da animositas uma das virtudes fundamentais, ou forças da alma (SPINOZA, 1993). Para lutar contra tudo o que pode nos destruir, Spinoza opõe à cólera cega a coragem da animositas, “desejo que leva cada um de nós a fazer um esforço para conservar seu ser na virtude dos mandamentos únicos da razão” (SPINOZA, 1993a).

Michaux (1963, p. 131) e Artaud (1976, p. 47-46) a quiseram poética – Podemos escrever em estado de cólera? –, debruçando-se sobre as relações entre a cólera e a literatura. Mas é possível ser um artista missionário da cólera coletiva? Uma versão romanesca da cólera é levada à incandescência por Musil e Nizan (BOYER-WEINMANN, s/d).

Erguendo-se contra uma neurofisiopatologia nascente da cólera, que inscreve hoje as emoções em um sistema límbico e demonstra que a estimulação hipotalâmica desencadeia a cólera, Jean-Paul Sartre dota a cólera de uma eficácia pragmática, e mesmo criadora, ao fazer dela uma emoção mutante relacionada com o medo (SARTRE, 2000). Roland Barthes, que se dizia pouco sujeito à cólera, descreveu em seu Seminário sobre o Neutro – “o Neutro definido como aquilo que contraria o paradigma… O paradigma sendo a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido” (BARTHES, 1977-1978, p. 31) – a cólera como o antineutro. Ele nos dá três versões: a cólera como fuga (recusa de uma situação de espera, de uma situação transferencial – médicos, dentistas, bancos, aeroportos); a cólera como higiene ou como utilidade (teatralizar sua cólera para controlar o não-controle); e a cólera como fogo (que remete a um ardor, a um desejo, como a cólera do ciumento, ou a uma ira, como a cólera de Deus).

 

A cólera justa

 

Algumas cóleras parecem justas, como as de Freud, ao enfrentar fisicamente os antissemitas que insultaram sua família (LÉVY, 2008, p. 135-154). A cena é relatada por Martin Freud. Depois de um primeiro aviso, que permitiu a Freud dizer a seus filhos que aquela situação ameaçadora se repetiria, o grupo antissemita foi para cima deles, e Freud se lançou, bengala em punho, para os dispersar, o que conseguiu fazer. Como não evocar aqui a lembrança do pequeno Sigmund, vendo seu pai humilhado por um ato antissemita? A cólera que se apossa dele é equivalente à passagem ao ato daquele que não se deixa aviltar e coloca a covardia do lado do agressor. A cólera reclama um castigo que parece muito frequentemente como justo, e, por essa mecânica, cultivada até a ambiguidade, a cólera social se exprime por colocar a justiça e a legitimidade do seu lado.

Uma exposição recente no Instituto Húngaro em Paris sobre O tempo dos asilos me lembrou a reação de Freud, interpretando o atraso para responder a Istvan Hollos, que lhe enviara um exemplar do seu Recordações da Casa Amarela. O antissemitismo o havia expulsado desse lugar original de responsabilidade pela loucura, em que a produção sintomática, artística dos psicóticos, era valorizada. A cólera de Freud na carta a I. Hollos (FREUD, 1984, p. 23-28), apresentada na Ornicar? em 1985 e retomada por Jacques-Alain Miller em seu curso em 2008[1], é objeto de uma sessão de autoanálise:

 

Mesmo apreciando seu tom caloroso (…), encontrei-me, contudo, numa espécie de oposição que não era fácil de compreender. Tive finalmente de confessar que a razão era que eu não gostava desses doentes; de fato, eles me deixam encolerizado, eu me irrito por senti-los tão distantes de mim e de tudo o que é humano. Uma intolerância surpreendente, que faz de mim um mau psiquiatra.

 

J-A. Miller nota que, por meio dessa carta de Freud, é o recalque que é visado nele, seu não-quero-saber-nada-disso acerca da psicose. Freud é surpreendido por um afeto, cuja mola não compreende. A confidência de J.-A. Miller, nessa ocasião, sobre a função dos encontros semanais do curso, sobre seu combate a sua resistência em admitir – a cólera, por vezes –, faz parte desse não-quero-saber-nada-disso.

 

A cólera-sintoma

 

As crises de cólera das crianças pequenas aparecem como manifestações de afirmação, de oposição à frustração, daquilo que exige delas sua perda de autonomia em relação aos pais. Elas podem tomar configurações diversas, endereçar-se à voz grossa paterna, ao corpo a corpo materno ou, ao contrário, ter força de apelo dessa voz ou dessa proximidade perdida ou jamais encontrada. A cólera pode aparecer como uma passagem inevitável num processo de individuação e de separação ou para arrancar-se da Hilfslosigkeit freudiana, da imbecillitas descrita por Santo Agostinho e retomada por Lacan várias vezes. O fort-da é uma resposta a essa cólera da impotência da criança pequena que mostra, assim, sua capacidade de mobilizar o simbólico para fazer face a ela.

As crises de cólera podem se sistematizar em função do peso que têm na economia familiar, e reencontramos aqui a conjuntura descrita por Lacan na sua “Nota sobre a criança” (LACAN, 2001, p. 373). A dimensão agressiva ou passiva da pulsão é colocada em jogo no exercício da cólera infantil e modela sua expressão sádica ou masoquista na fantasia em germe. Passaremos ao largo de uma parte nada negligenciável da questão ao não evocar as consequências das cóleras parentais, da sua ausência ou seu excesso. Indicação de um limite transposto pela exigência todo-poderosa da criança ou confissão de impotência parental que a cólera pode tentar apagar.

 

Hans

 

O jovem Hans sabia algo sobre isso e o testemunhou junto a Freud, por intermédio de seu pai, pela manobra para provocá-lo e para tentar ativar o agente da castração. Hans diz a seu pai que ele fica encolerizado, o que este refuta. Hans insiste. Hans, longe de seguir as afirmações, quer de Freud, quer de seu pai, traça sua via. O próprio Freud sublinha: “Hans segue seu próprio caminho e não chega a lugar nenhum quando queremos desviá-lo”. Trata-se de “deixar o garotinho exprimir seus próprios pensamentos”. A sequência da análise mostrará que Hans, longe de ter medo do pai, o chama, ao contrário, para estar presente e o convoca em sua cólera: “Por que você fica encolerizado?” pergunta ele a seu pai, ao que este responde: “Mas não é verdade”, e Hans lhe lança este apelo: “Sim, é verdade, tu ficas encolerizado, eu sei disso. Isso deve ser verdade” (FREUD, 2003, p. 351). Como nota Lacan, “é a chave da observação […]. Trata-se de que o pequeno Hans encontra uma suplência para este pai que se obstina em não querer castrá-lo” (LACAN, 1994, p. 365). Se, num primeiro tempo, a suplência é a fobia, Hans, na sequência da sessão de 30 de março, graças a Freud, mas também apesar de Freud, prossegue na sua elucidação da fobia e procura diferentes soluções para suprir a carência do pai e fazer entrar a mãe no sistema significante, para fazer dela um elemento equivalente aos outros, suscetível ele também de entrar na dialética significante.

 

Élise

 

Desde sempre, Élise se dizia sujeita a arrebatamentos passionais. Encontrar um analista foi para ela a tentativa de limitar sua aspiração a essa forma de vida que a fazia sofrer. Ela oscilava entre uma vida de razão, sem paixão, que era sem sabor, e as paixões, que a torturavam. A visão de uma satisfação autoerótica de seu parceiro tinha exacerbado a sua divisão sob o golpe de cólera que ela não sabia como apaziguar. O fio de suas associações a conduziu a evocar os berros que acompanhavam seu furor de vencer os combates esportivos que encarava e dos quais fizera sua profissão. Era como uma segunda natureza, que mal se distinguia de seu desejo de lutar com um parceiro que ela procurava sem parar. A trama de um cenário fantasmático veio à luz por meio de um sonho, repetido da infância, de castração das zonas erógenas de um parceiro que a fazia evocar um irmão. A visão do pênis ereto a colocara numa cólera que alimentava, reconstituía seu cenário fantasmático.

Essa cólera de menina indicava sua reação completamente freudiana ao constar o pênis no menino. Penisneid sem dúvida, mas também questionamento sobre essa emoção específica que as qualidades características do pai não puderam apaziguar. O nascimento dos filhos também não havia estabilizado a oscilação, e a cólera se transmutara em traço de caráter que obscurecia seu cotidiano familiar.

Mais do que uma emoção ou um afeto diante da impotência de sustentar um desejo, a cólera, em seu caráter repetitivo, à flor da pele, pode se tornar um estilo, um modo de reação à confrontação do Outro e, nessa medida, um sintoma.

Do mesmo modo que o afeto depressivo assume aspectos diferentes em relação à estrutura do sujeito – melancolia – ansiedade-depressão – fadiga – desmoronamento – abandonar-se –, a cólera se manifesta de diferentes maneiras: não está presente num bom número de passagens ao ato? O crime das irmãs Papin dá um exemplo disso. É uma forma de mau humor, cólera permanente a mínima, que toca no real, nos diz Lacan, enquanto aquilo que não convém (LACAN, 2001a, p. 527).

 

Melancolia

 

Em alguns casos clínicos, Freud constata que a autodepreciação não tem nenhuma relação com a situação real, e resulta disso que a autocrítica do melancólico não é marcada pela vergonha; o sujeito busca cobrir-se de vergonha, mas não a sente. Além do mais, ele não esconde sua desestima, exprime-a para todas as pessoas a seu redor – e às vezes numa ladainha incessante.

Suas autocríticas são, na verdade, destinadas a outrem, quer dizer, a um objeto perdido, mas por um mecanismo de identificação de queixas que caem sobre o eu do sujeito. Eis porque quando o sujeito busca rebelar-se contra o objeto, gritando-lhe sua cólera quando o insulta, ele se insulta e se desvaloriza a si mesmo. “A sombra do objeto tombou assim sobre o Eu” (FREUD, 1968, p. 156). Essas pessoas estão em rebelião e é por isso que quebram as pernas daqueles a seu redor.

 

Cavilhas e furos

 

As definições da cólera dadas por Lacan pertencem à primeira parte de seu ensino. Em outras palavras, a cólera testemunha aquilo que do real se coloca em oposição aos empreendimentos do desejo. Recentemente, uma colega me liga para mencionar que está dando continuidade a uma atividade que começamos juntos, mas que, sendo ela a responsável, mudou tudo para chegar à situação em que precederá de minha intervenção. Um afeto de cólera me submergiu, ocasionando algumas dificuldades para manter a calma que geralmente acompanha nossas relações de trabalho. Reconheci nela o caráter das raras cóleras que me afetam. A tradução física desse afeto o distingue radicalmente daquilo que dá irritação, da reação revoltada ou da indignação frente a uma situação que parece injusta ou contrária à sua opinião.

Uma primeira definição é dada por Lacan no Seminário VI, O desejo e sua interpretação (LACAN, 2013, p. 172): um afeto fundamental como a cólera não é nada além disso; o real que chega no momento em que fizemos uma belíssima trama simbólica, em que tudo vai muitíssimo bem, a ordem, a lei, nosso mérito e nosso bem querer. Percebemos de repente que as cavilhas não entram nos furinhos. É esse o reino do afeto da cólera, retomado em A ética da psicanálise: “como uma reação do sujeito a uma decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real. Em outras palavras (…) – é quando as pequenas cavilhas não cabem nos furinhos” (LACAN, 1986, p. 123).

Que o afeto seja do corpo, Lacan o retoma de Freud, corpo como lugar do Outro. O corpo é o “lugar do Outro” (LACAN, 2001b, p. 409), é o lugar onde o simbólico toma corpo para ali se incorporar, mas esse lugar tem por propriedade o gozo. A estrutura é o efeito de linguagem sobre o gozo. E o efeito primeiro é de perda: “de afeto, há apenas um, e é o objeto a” (LACAN, 2001a). Único afeto que não engana, a angústia: “Na angústia, (…) o sujeito é afetado pelo desejo do Outro. Ele é afetado por isso de uma maneira que devemos chamar de imediata, não dialetizável. É aí que a angústia está, no afeto do sujeito, o que não engana” (LACAN, 2005, p. 70).

Os diferentes exemplos expostos, pela diversidade de sua ocorrência e de seu desencadeamento, mostram que a cólera, no caso do semblante, se desdobra sobre um fundo de eu-não-quero-saber-nada-disso e não evita o logro, a menos que encontre a angústia no “encolerizado” ou no seu parceiro, dando-lhe, assim, sua bússola.

Se o mistério do falasser é que ele fala sem saber o que diz, como foi recordado quando do último congresso da AMP, fazendo do inconsciente freudiano o mistério desse corpo falante, é bem o nó da linguagem, do corpo e do inconsciente que a cólera sublinha ao lhe dar suas diferentes cores.

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Letícia Soares

 


Referências
ARTAUD, A. “L’ombilic des limbres” (1925) In: Œuvres complètes, Paris: Gallimard, 1976, p.46-47.
BARTHES, R. Le Neutre: notes de cours au Collège de France (1977-1978), Paris: Seiul, p.31.
BORTEYROU, X. BRUCHON-SCHWEIRZER M., SPIELBERGER C. D., “Une adaptation française du STAXI-2, inventairede colère-trait et de colère-était de C. D. Spielberger” In: L’encéphale, disponible sur internet.
BOYER-WEINMANN, M. “Thymotique d’une ordinaire: em quoi la colère est-elle littérairement féconde?” In: Fabula, Les colloques.
DESCARTES, R. Les Passions de l’âme. Paris: Le Livre de poche, 1990.
FREUD, S. Deuil et mélancolie. Paris: Gallimard, 1968, p. 156.
FREUD, S. “Lettre à Istvan Hollos” In: Ornicar?. n 32, 1984, p. 23-28.
FREUD, S. “Analyse d’une phobie d’un petit garçon de cinq ans” In: Cinq psychanalyses. Paris: PUF, 2003, p. 351.
LACAN, J. Le Séminaire, livre VII: l’éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 123.
LACAN, J. Le Seminaire, livre IV: La relation d’objet. Paris: Seuil, 1994, p. 365.
LACAN, J. “Note sur l’enfant” In: Autres Écrits. Paris: Seiul, 2001, p. 373.
LACAN, J. “Télévision” In: Autres Écrits. Paris: Seiul, 2001a, p. 527.
LACAN, J. “Radiophonie” In: Autres Écrits. Paris: Seiul, 2001b, p. 409.
LACAN, J. Des Noms-du-père. Paris: Seiul, 2005, p. 70.
LACAN, J. Le Séminaire livre VI: Le désir et son interprétation. Paris: La Martinière / Le Champ freudien, 2013, p. 172.
LÉVY, D. “La canne de Freud at autres moments de colère” In: Che vuoi?, n 29, 2008, p. 135-154.
MICHAUX, H. “Mouvements de l’être intérieur”, “Difficultés” (1930) In: Plume, précédé de Lointain intérieur. Paris: Gallimard, 1963, p.131.
SARTRE, J-P. Esquisse d’une théorie des émotions. Paris: Le livre de poche, 2000.
SPINOZA B. Éthique III. Paris: Garnier-Flammarion, 1993.
SPINOZA B. Éthique IV. Paris: Garnier-Flammarion, 1993a.
[1] MILLER, J.-A., “L’orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse”, enseignement prononcé dans le cadre du Departement de psychanalyse de l’université Paris VIII, cours du 26 novembre 2008, inédit.

JEAN-DANIEL MATET
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana. MILLER, J.-A., “L’orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse”, enseignement prononcé dans le cadre du Departement de psychanalyse de l’université Paris VIII, cours du 26 novembre 2008, inédit.



Conhecer Seu Ódio

GIL CAROZ

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Lucidez

 

O ódio é lúcido. Ele está ligado a um saber. Os cristãos transformaram o não-ódio de seu Deus, sinal de sua ignorância, em uma forma de amor (LACAN, 1982, p. 122). Esse Deus é um ser “como sendo aquilo pelo que os seres menos seres participam do mais elevado dos seres” (LACAN, 1982, p. 134). É, então, um ser ideal, unificador, que reúne nele os seres imperfeitos e, nesse sentido, ele é relacionado a um puro amor. No entanto, Lacan recorda “que não se conhece nenhum amor sem ódio” (LACAN, 1982, p. 122). É justamente esse sonho de um amor universal que faz ignorar a irredutibilidade do ódio e, em primeiro lugar, do seu próprio ódio. O amor é apenas uma construção secundária, um semblante que permite uma circunscrição da pulsão de morte. Mas ele não encobre jamais o ódio como dado primário. Freud demonstra bem essa irredutibilidade na sua crítica detalhada do imperativo “Amarás o próximo como a ti mesmo”, que ele designa como sendo “reinvindicação mais gloriosa” do cristianismo (FREUD, 2010, p. 73). Ele salienta: “Depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-se uma consequência inevitável” (FREUD, 2010, p. 81). Assim, o ódio jamais se reduz a zero, ele consegue simplesmente localizar-se de outro modo. O amor entre os membros de uma comunidade reunidos em torno de um ideal se paga sempre com um ódio dirigido ao exterior.

 

Ódio cordial

De todas as paixões, o ódio é, sem dúvida, o mais difícil de se reconhecer e admitir. Pensemos no sorriso do Homem dos Ratos testemunhando um gozo desconhecido de si mesmo quando ele relata o suplício infligido aos soldados no exército do Império. Nós lemos em marca-d’água na resposta de Freud ao “Por que a guerra?”, de Albert Einstein, que a questão mesma camufla uma posição de bela alma, ignorando a pulsão de morte, componente irredutível em todos os seres humanos. Assim, ignorado e negado, o ódio se manifesta ocasionalmente pelo seu contrário, a saber, por um amor ao mesmo tempo excessivo e suspeito. Um sujeito em análise fala de bom grado de suas tendências altruístas e caritativas, que ele apresenta, na oportunidade, como um traço que ele gostaria de se livrar, enquanto ele deixa suas hostilidades escondidas, especialmente quando estas são sentidas em relação aos seres mais queridos. Ele irá timidamente pronunciar seu ódio apenas quando tiver acesso à sua maldade fundamental.

O que chamamos de “fazer amor” é um oximoro. Sabemos que o que acontece sob essa designação tem muito pouco a ver com o respeito e o amor. Esses, pelo contrário, são muitas vezes um fator de inibição da vida sexual. Por outro lado, a fantasia, condição de todas as relações sexuais, é uma encenação na qual o ódio prevalece sobre o amor. Dessa forma, o ódio não exclui o desejo. O ser a quem o ódio é endereçado inclui o objeto a (LACAN, 1982, p. 135). O ódio, nesse caso, é uma manifestação consciente de um desejo situando-se entre o ser e o ter. Esse é o caso do ódio ciumento que Santo Agostinho testemunha quando ele observa o homenzinho empalidecendo ao ver seu irmão de leite pendurado no peito de sua mãe. É porque ele tem o objeto de desejo que o irmão é odiado. Essa cena com três posições nos lembra a fórmula fantasmática bate-se numa criança, e eu assisto. É um ódio cordial causado por uma rivalidade fálica e inscrita na lógica edipiana.

 

 

Nosso objeto a

Há um outro ódio, um ódio que rejeita. Esse não decorre do Édipo. Ele é necessário para a constituição do eu (moi). O gozo é evacuado como mal para ser localizado no exterior. É o ódio que Lacan descreve como sendo a raiz do racismo. A ignorância do fundamental do eu (moi) faz com que esse ódio não esteja nos detalhes. Ele coloca de bom grado seu kakon em um outro coletivo. É um ódio puro. Ele não tem nada do amódio (hainamoration) lacaniano, como o ódio que anda de mãos dadas com o amor. Atribuir um gozo a uma “massa de corpos” é uma forma de racismo. Esse é o caso do antissemitismo e da misoginia, a se distinguir das críticas que podem ser feitas em relação aos fundamentos de uma cultura. A crítica do texto do Alcorão não é equivalente ao insulto dirigido à suposta avidez do judeu pelo dinheiro ou à falta de fidelidade da mulher como tal.

 

O Judeu

O Judeu ocupa o lugar de “nosso objeto a” (REGNAULT, 2003) porque, pela sua posição no mundo, ele perturba qualquer forma de instalação em comunidade na medida em que isso responde à lógica do todo. “’O que tenho em comum com os Judeus?’, escreve Franz Kafka, é apenas se eu tenho algo em comum comigo mesmo” (REGNAULT, 2003, p. 23). Falando do ódio na medida em que este é dirigido ao ser, Lacan indica que, se o cristão se refere a um ser ideal e amoroso, que reúne nele os seres imperfeitos, não há ser perfeito que possa alojar o judeu. Tudo na tradição judaica vai contra isso, diz ele. De acordo com a tradição, “o menos perfeito é muito simplesmente o que ele é, quer dizer, radicalmente imperfeito, e não há estritamente nada a fazer senão obedecer ao dedo e ao olho […], àquele que tem o nome de Javé” (LACAN, 1982, p. 134). E acrescentar que esse Deus, os judeus só poderiam fazê-lo um ser-de-ódio, isto é, ”traí-lo” (LACAN, 1982, p. 134), porque ele os escolheu para obedecê-lo sem fornecer-lhes um ideal ao qual eles pudessem se identificar. Assim, o destino do Judeu, do qual ele faz sua ética, é dedicar-se a uma prática que se dá sem uma garantia do Outro.

Lá onde a mulher não existe, o Judeu é um Nome inatingível. Os judeus constituem um conjunto “de imperfeitos”, série aberta de sujeitos, cada um sendo singular na sua imperfeição. Os elementos desse conjunto aberto não são, mas ex-sistem ao sentido que Jacques-Alain Miller desenvolve sobre a existência no seu curso “O Ser e o Um”. Como tal, eles não são coletivizáveis. É por isso que é proibido na tradição judaica listar os membros de um grupo. O uso dos números naturais para contar os sujeitos é contrário à prevalência do um por um sobre a coletividade. O que não significa, claro, que, na “realidade”, os judeus não se organizem como comunidade.

 

Resistência ao para-todos

A partir daí, entendemos o uso do termo ‘nome judeu’, porque dizer simplesmente ‘o judeu’, como dizer a mulher, o difama. Quando tentamos coletivizar o incoletivizável, fazemos-lhe necessariamente uma violência. É uma forma de abuso que a lógica do todo inflige à lógica do não-todo. Antissemitismo e misoginia são dois nomes desse ódio irredutível que se produz no encontro entre as duas lógicas. O agente da lógica do todo quer colocar em ordem os sujeitos que respondem à lógica do não-todo. Assim, o antissemitismo irá censurar os judeus, com mais ou menos violência, por não se assimilarem, por se colocarem em um lugar de exceção, por não se alinharem de uma vez por todas e serem ‘como todo mundo’. A misoginia irá censurar as mulheres por suas práticas singulares que se opõem à lei do para-todos.

Um judeu, como vimos, só pode trair o seu Deus, isto é, trair sua posição de Judeu com um grande J. Ele sempre está aquém dessa posição insustentável. À exceção de alguns grupos que são mais ou menos bem-sucedidos em assumir a posição de ser-judeu, de que Benny Lévy fala, a saber, uma posição de recusa a se inserir em alguma forma de discurso universal, os judeus, de uma maneira ou de outra, aspiram a uma forma de assimilação. Isso não os torna antissemitas, pois, seja o que for que façam, eles permanecem judeus, nem que seja unicamente por negação. Se é um ódio, é um ódio do Judeu que eles carregam dentro deles, mas não um ódio do outro.

 

Ódio ao feminino

A caprichosa

Se a lógica do todo faz violência à lógica do não-todo, não há nenhum ódio veiculado pelo gozo feminino em direção à lei do pai. Aqui o caminho do Judeu e da mulher se separam. Se o judeu, em sua prática, está fora de uma lei universal, se ele pode tolerar certa falta de garantia no Outro, ele permanece fiel a uma versão da lei do pai. Por outro lado, o gozo feminino stricto sensu implica uma série de singularidades que rompem com essa lei como portadora de interditos. Ela coloca a vontade pulsional antes da lei. É o que Jacques-Alain Miller chamou de “capricho”, ou seja, uma vontade acéfala, que vai além dos limites da razão e às vezes é mortífera (MILLER, 2001). As manifestações de ódio desse gozo não têm causa localizável e não encontram limites na razão. Então, Lady Macbeth, a fim de incitar seu homem para o crime, assim formula a loucura do horror que ela seria capaz de cometer a partir de seu ódio:

 

Já amamentei e conheço como é agradável amar o terno ser que em mim mama. Pois bem, no momento em que estivesse sorrindo para o meu rosto, teria eu arrancado o bico de meu peito de suas gengivas sem dentes e ter-lhe-ia feito saltar o crânio, se o tivesse jurado como assim juraste… (Ato I, cena 7) (SHAKESPEARE, 1995, p. 489).

 

Aí, nós vacilamos. Essa manifestação de ódio ao modo de Medéia, que ameaça tocar o mais sagrado, excede o que podemos incorporar como humano. J.-A. Miller faz uma forte observação sobre a indignação que essa afirmação pode provocar em nós, porque significa que, se somos escandalizados, é porque Medéia somos nós: “Porque cada um de nós, diz ele, aturdido de compaixão que esteja, também é solicitado em sua parte irredutível de desumanidade, sem a qual não há humanidade se sustente” (MILLER, 2012).

Assim, através dos limites da “justa medida” da posição masculina[1], a ilimitação do gozo feminino pode parecer completamente fora de proporção, vontade feroz, sem limite. Por outro lado, da mesma forma que um judeu pode odiar o judeu nele, uma mulher pode odiar sua feminilidade, sem que isso a torne misógina. O caso de uma mulher que, durante muitos anos, não consegue mais estabelecer um relacionamento com um homem demonstra isso. À primeira vista, podemos pensar que é o amor que ela dedica ao pai, a quem ela está identificada, que aqui faz obstáculo. De fato, esse amor ao pai atravessa todo o seu ser. Mas, escavando um pouco mais, aparece o que lhe é realmente insuportável. Essa mulher bem organizada, que não deixa passar nada do inconsciente, encontrou em si mesma a conduta “louca” de sua mãe toda vez que tentou estabelecer um relacionamento com um homem. Isso a levou a um relacionamento com o homem marcado por um isso nunca mais, cujo preço é a solidão que ela inflige a si mesma. Ela odeia os homens, poderíamos dizer, não por causa do Penisneid, mas porque “o homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele” (LACAN, 1962/1998, p. 741).

 

Curar da misoginia

Para o homem freudiano, como sabemos, o final da análise se apresentará quando do encontro com o rochedo da castração, no momento em que ele poderá assumir o fato de que outro homem possa ser mais forte que ele. Essa renúncia à rivalidade fálica é uma forma de pacifismo. O homem entrega as armas, o que lhe permite renunciar à luta imaginária e fálica. No entanto, isso não garante um alívio com relação à questão feminina. É o homem lacaniano que enfrentará essa questão, porque, inicialmente, ele é “fundamentalmente medroso e, se for à guerra, é para fugir das mulheres, fugir do buraco” (MILLER, 1997, p. 11). Esse homem será capaz de se curar desse medo que o faz odiar desde que ele reconheça não só o seu ódio, mas também a sua própria feminilidade, seja qual for sua qualidade de guerreiro. Porque temos que esperar que os homens não estejam totalmente sob a lógica do todo, da mesma maneira que as mulheres podem se relacionar com o falo.

 

Inspiração

Não tire os sapatos, diz a psicanálise ao homem. Você não está na mesquita. Coloque, ao contrário, o seu par de sapatos femininos, de cor vermelha, e entre no consultório do analista. O analista vai tolerar isso, ele é formado para isso. Ele mesmo é um pouco mulher. Lá, no consultório do analista, você descobrirá que nem todo mal está nela. Que você a conhece intimamente, “de dentro”, que você é, você mesmo, ocasionalmente, um pouco mulher. Você tem o seu humor, seu amor louco; você pode ser generoso e mau ao mesmo tempo, pragmático e sonhador, caprichoso e racional. Você descobrirá que também pode ocasionalmente cometer o irreparável. É assim!

Você então se moverá em direção à fronteira do império fálico que é sua prisão e você levará seu olhar para o outro lado da fronteira, para o continente negro da feminilidade. Então você dirá a si mesmo que se ela se tornou a encarnação do próprio diabo; quem poderia não a amar enquanto a odeia? Ela é autêntica. Ela não se incomoda. Ela é generosa. Ela tem humor. Ela sorri. Ela diz: “Vá em frente, viva a sua vida, não tenha medo. Não se deixe desencorajar pelos moralistas que dizem a você para não se mover, para submeter-se à razão, a razão deles, ideais deles”. Ela não tem as angústias do proprietário nem a preocupação com o que vão dizer. O Outro está lá, mas ninguém é obrigado, diz ela, a obedecer à risca às suas exigências. Ele também pode ser louco de vez em quando. Ela é pragmática. Existem as regras e a lei, ela diz, mas ela procura a pessoa que as incorpora para fazer acordos com ela, porque ela é bastante “conciliadora”. Louca, mas não “louca-de-todo” (LACAN, 1974/2003, p. 538). Ela fala, ela negocia, ela recebe. Ela atravessa todas as recusas, porque para ela “não” não é uma resposta aceitável.

 

 

 

Tradução: Michelle Santos Sena de Oliveira
Revisão: Márcia Mezêncio

 

 


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1930) “O mal-estar na civilização” In: Obras completas, vol. 18, São Paulo: Companhia das Letras, 2010 p. 13-122.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Brasil: Jorge Zahar, 1982.
LACAN, J. (1962) “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 734-745.
LACAN, J. (1974) “Televisão” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 508-543.
MILLER, J.-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes” In: La Cause freudienne, nº36, mai 1997, p. 7-16.
MILLER, J-. “A teoria do capricho” In: Opção Lacaniana, nº 30, São Paulo, 2001, p. 79-86.
MILLER, J.-A. “Uma partilha sexual” In: Clique, nº2, Belo Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, 2003. p. 13-29.
MILLER, J.-A. “Le théâtre secret de la pulsion” In: Le Point, nº 2062, 22 mars 2012.
REGNAULT, F. Notre objet a. Paris: Verdier, 2003.
SHAKESPEARE, W. “Macbeth” In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. Vol. I, p.475-528.
[1] Cf. Miller, 2003, p. 16: “A ética da justa medida é por excelência uma ética masculina”.