Expediente Almanaque On-line Março/2020

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Psicanálise nas instituições: relato de experiência Pai-PJ do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – Kelen Cristina Silva

Resumo
O presente trabalho apresenta o relato de experiência no Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, programa de orientação lacaniana e de atenção integral para acompanhamento dos pacientes judiciários. O objetivo desta escrita é mostrar, através do fragmento de um caso acompanhado pelo Programa, a importância da prática da psicanálise nas Instituições, bem como os princípios que norteiam nosso trabalho.
Palavras-chave: Psicanálise Aplicada, Instituição.
Abstract
This paper presents the report of an experience in the Judicial Patient Comprehensive Care Program (PAI-PJ) of the Minas Gerais Court of Justice, a Lacanian orientation and comprehensive care program to assist judicial patients. The purpose of this writing is to show through fragments of two cases accompanied by the Program, the importance of the practice of psychoanalysis in the institutions; its guiding principles that guide our work.
Keywords: Applied Psychoanalysis, Institution.

 

Foto do Museu Mineiro
KELEN CRISTINA SILVA
Aluna do IPSM-MG (2017/2019) 

 

O PAI-PJ é pioneiro no Brasil e no exterior no atendimento aos infratores portadores de sofrimento mental e tem como objetivo conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social. Segundo Fernanda Otoni de Barros-Brisset, coordenadora e idealizadora do Programa,

“O PAI-PJ é um lugar de interface, afetado por diversos campos, é um lugar mediador quando realiza a mediação entre a clínica, o ato jurídico e o social, caracterizado como um programa pioneiro no campo da Justiça, na medida em que se diferencia radicalmente das práticas tradicionalmente instituídas para com os ‘loucos infratores’. Tem sido possível um outro olhar a estes casos”. (BARROS-BRISSET, p. 10, 2010).

Implantado em março de 2000 e transformado em Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator em dezembro de 2001, através da Portaria Conjunta nº 25/2001, o trabalho pode ser definido como a assistência jurisdicional aos loucos infratores que cometem algum tipo de crime. A intervenção é determinada pelos juízes das Varas Criminais de Belo Horizonte, que, auxiliados pela equipe interdisciplinar do PAI-PJ, definem a melhor medida judicial a ser aplicada e promovem a articulação do tratamento na rede pública ou particular em saúde mental, bem como a responsabilização pelo ato cometido e a reintegração social do louco. O Programa se orienta pelos princípios da Reforma Psiquiátrica, instituída pela Lei 10.216/2001.

No ano de 2006, ingresso no PAI-PJ e, hoje, finalizando o curso de formação em psicanálise, a partir da temática estudada na unidade IV, “Ação Lacaniana nas Instituições”, trago aqui um relato da minha experiência de trabalho nesse programa de orientação lacaniana e de atenção integral para acompanhamento dos pacientes judiciários. A metodologia de atenção integral visa a garantir, a cada cidadão em situação de sofrimento psíquico — independentemente do crime, delito ou ato infracional cometido —, responder pelo justo processo legal em condições de acessibilidade aos recursos necessários para o tratamento de seu sofrimento, sem perder de vista o aspecto singular e individual de cada caso e sem prejuízo de seus direitos e deveres estabelecidos por Lei.

Essa metodologia de atenção integral tem alcançado o que está indicado em seu próprio nome, por meio do trabalho de equipes interdisciplinares empenhadas na execução de diversas ações de atenção continuada ao processo desenvolvido pelo paciente judiciário. Vários servidores — equipe de referência de cada caso — estudam a situação particular daquele indivíduo, em seu aspecto jurídico, clínico e social, e promovem sua inserção na rede pública de saúde mental e em sua comunidade de convívio social, acompanhando seu percurso e suas respostas ao tratamento ao lado dos profissionais da rede municipal de saúde, bem como de seus familiares.

Desta forma, estabelecemos uma conversação permanente com os diversos atores sociais e assistenciais do poder executivo sobre as respostas do paciente ao tratamento em saúde mental e seu processo de inserção social e recolhemos o que o paciente diz sobre seus impasses e saídas possíveis nesse percurso.

A equipe responsável pelo acompanhamento do caso, no PAI-PJ, por meio dessas conversações intersetoriais, faz a leitura do detalhe singular em jogo para cada caso, transmitindo à autoridade judicial os relatórios que registram tal acompanhamento, fazendo, assim, a mediação necessária entre o sistema de justiça no qual o paciente cumpre uma medida judicial e os outros setores da sociedade em geral, sem os quais a medida jurídica não conseguiria alcançar a sua finalidade última, a saber, a integração do indivíduo à sua realidade social.

Para alcançar esse objetivo, o acompanhamento do processo judicial não se faz apenas a partir de ofícios e documentos a serem enviados, via impressa ou virtual, aos demais setores da sociedade. Nesse detalhe reside o diferencial do PAI-PJ, que se serve da ação humana para realizar a complexa interação entre o paciente judiciário e os diversos setores e variáveis que se enodam à situação de cada caso em particular.

A metodologia de atenção integral exige que a equipe de acompanhamento do paciente judiciário esteja em contato permanente e em constante discussão, tanto com o indivíduo e sua família como com outros atores da rede social, educacional, de saúde e de justiça (promotores, defensores, juízes e demais operadores do direito) envolvidos em cada caso.

A experiência do PAI-PJ ensina que, sem essa costura cotidiana, de formação e construção de redes de cuidado e atenção, a vinculação do paciente a seus processos terapêutico e judicial pode se desamarrar. Quando isso acontece, pode se instalar uma crise: a engrenagem jurídica se interrompe, as relações familiares e sociais se esgarçam e o paciente pode entrar em intenso sofrimento e desordem pela ausência de laço social que o acolha. Nesses casos, a probabilidade de o paciente judiciário, devido à crise por seu sofrimento psíquico, se envolver em atos que coloquem seu corpo em risco, bem como o corpo social, ou mesmo a tentativa reiterada de buscar anestesiar sua dor com o uso de substâncias entorpecentes, via de regra, pode ser a resposta mais usual à falta de seu engendramento aos recursos da sociedade em que vive e que, para tanto, necessitam da articulação da rede jurídica, clínica e social na atenção desses casos.

A história comprova que encerrá-los no manicômio judiciário por tempo indeterminado — solução francamente inconstitucional — foi, nos últimos anos, a resposta mais cômoda das instituições a situações de crise.

Miller, no texto “Rumo ao Pipol 4”, publicado no Correio da EBP, traz o conceito de “Lugar Alfa” e indaga: há, na Instituição, um lugar analítico possível? Um lugar que seja muito mais que apenas um lugar de escuta, mas também um lugar de respostas?

“Um Lugar Alfa não é um local de escuta. Hoje, chama-se de lugar de escuta o local em que o sujeito é convidado a falar o que quiser, à vontade. Diz-se que o pôr em palavras alivia. Um lugar Alfa é um lugar de respostas, um lugar em que falar à toa assume a forma de questão e a própria questão, a forma da resposta. Não há Lugar Alfa se, pela mediação do analista, o falar à toa não revelar um tesouro, o do outro sentido que vale como resposta, ou seja, na condição de saber inconsciente. Essa mutação do falar livremente resulta no que chamamos de transferência, a qual permite a ocorrência do ato interpretativo, que, por sua vez, divide-se em um antes e um depois, como dizemos classicamente. Para haver um Lugar Alfa, faz-se necessário — e é suficiente — instalar-se o laço pelo qual “o emissor recebe do receptor sua própria mensagem numa forma invertida”, encontra-se o sujeito, a partir daí, conectado com o saber suposto de que ele próprio ignorava ser a sede” (MILLER, p. 9).

A partir da acolhida de cada caso que nos é encaminhado pelo PAI-PJ, tentamos construir, junto com o paciente, um “Lugar Alfa”, capaz de acolhê-lo em sua singularidade. Há aqueles que chegam resistentes (“estou aqui porque o juiz mandou”), outros, de maneira mais silenciosa, sem expressar se existe ou não desejo de estar ali. O certo é que, em todos estes anos de existência, temos colhido experiências que demonstram que a aposta na transferência, na escuta e na disposição de estar ao lado tem nos surpreendido e nos aponta que é possível, sim, a psicanálise nas instituições.

Cabe aqui ressaltar que, para além da relação com os pacientes, respondemos e somos interpelados pelo Outro Social (sociedade, sistema de justiça), que quer resultados, dados, eficácia. É nosso desafio cotidiano apresentar respostas, mas sem perder de vista que o nosso norte é o sujeito. O Discurso do Mestre vai perpassar todo o tempo, mas é preciso saber-fazer com ele.

Trago agora um fragmento de caso para ilustrar a nossa prática, e, como diz Zenoni, “É a psicose que nos ensina sobre a estrutura e que nos ensina sobre as soluções que ela mesma encontra para fazer face a uma falta central do próprio simbólico. É na escola da psicose que nós nos colocamos para aprender como praticar” (2000, p. 19). O caso mostra a importância da transferência que o sujeito faz com a instituição, e sendo a instituição um lugar que tem a psicanálise e o laço social como princípios orientadores, a acolhida aos que chegam deve ser orientada pelo que o sujeito traz, e não pelos critérios institucionais que definem burocraticamente o acesso aos serviços.

Jorge, 51 anos, amasiado, 2 filhos e um enteado é aposentado por invalidez, residia com a companheira e filhos na cidade de Juatuba, região metropolitana de Belo Horizonte, havia pouco mais de dois anos. Foi acompanhado pelo PAI-PJ no período de 2002 a 2016 e respondia pelo crime de porte ilegal de arma. Sentenciado pela Medida de Segurança Ambulatorial, estava submetido ao tratamento psiquiátrico na Rede de Saúde/Centro de Saúde da área de abrangência de sua residência e frequentava o Centro de Convivência e o PAI-PJ. Em fevereiro de 2016, seu processo foi extinto após a Perícia de Cessação de Periculosidade ter emitido laudo favorável. Durante o período de acompanhamento, Jorge respondia à sanção que lhe foi imposta de forma satisfatória: fazia uso regular da medicação e comparecia aos atendimentos no PAI-PJ e às consultas psiquiátricas.

Tinha um bom relacionamento com os familiares. Apesar de aposentado por invalidez, mantinha atividades laborais no mercado informal, tais como vigia noturno e catador de material reciclável. Falava com orgulho das conquistas materiais (moto, carro) e da satisfação em ser o provedor da casa, apesar de contar com ajuda financeira da companheira. Sofreu alguns outros processos criminais (CNH falsa e roubo de um cavalo), pelos quais foi apenado: o primeiro, por PSC (Prestação de Serviços à Comunidade) e, o segundo, por pagamento de Pena Pecuniária.

Jorge é diagnosticado esquizofrênico e possui histórico de tratamento há mais de vinte anos, bem como passagem por duas internações no hospital Galba Veloso — ambas por um curto período. Relata de uso de drogas na adolescência (maconha) e, esporadicamente, na vida adulta, associando esse uso a momentos de dificuldade em relação ao convívio com as pessoas: “o ser humano é muito complicado, por isso que eu prefiro conversar com os bichos”. Por gostar de cavalos, comprava e vendia os animais e se entristecia quando presenciava um animal sendo maltratado. Ao relatar esses episódios, se emocionava e, muitas vezes, comprava o cavalo apenas para cuidar de seus ferimentos. Na região onde residia, havia acesso a uma área de mata, aonde gostava de ir quando se sentia triste ou se desentendia com familiares, amigos ou vizinhança: “Fico lá tranquilo, às vezes sozinho, às vezes com meu cavalo, prefiro os animais aos homens”.

Assim foi sua passagem pelo Programa. Ao término do processo, informamos ao paciente sobre seu encerramento, bem como o do acompanhamento, porém lhe é dito que o PAI-PJ estaria à disposição de suas necessidades; sempre que desejasse, poderia telefonar ou comparecer pessoalmente, que seria acolhido.

Em outubro de 2018, cerca de três anos do desligamento, Jorge procura o PAI-PJ. Chega ansioso, aflito, solicita ajuda junto ao INSS e informa que está desde abril daquele ano sem receber sua aposentadoria. O benefício havia sido bloqueado por não ter se submetido à perícia de revisão da aposentadoria e por seu endereço cadastrado na agência do INSS não ter sido atualizado, o que levou a carta do órgão a ser encaminhada ao domicílio antigo. Com posse dessas informações, Jorge agendou a perícia, mas, por engano, foi agendada uma perícia de concessão de novo benefício. Foi quando chegou à agência que se constatou o erro, e nova perícia para revisão da aposentadoria agendada, após a qual foi orientado a telefonar para se informar do resultado. Passado o prazo estabelecido, Jorge telefona para o INSS e lhe informam que consta seu não comparecimento à perícia. Diante desse impasse, Jorge resolve procurar ajuda no PAI-PJ e, após relatar toda a situação, chora e diz: “Por causa disso que está acontecendo, eu fiquei pensando em me matar. Se eu não encontrasse vocês, se não pudessem me ajudar, eu ia me matar. Briguei com minha companheira porque ela está jogando na minha cara que não aguenta mais; que está tudo por conta dela; que eu não ajudo pagar uma conta”.

Oriento a ficar tranquilo e digo que iremos ajudá-lo. Explico que todas as aposentadorias por invalidez com mais de dez anos de concessão estão sendo revisadas, e que, caso o INSS decidisse por encerrá-la, ele poderia entrar com processo na Justiça Federal contra o órgão. E, para isso, poderia contar com nosso auxílio.

Diante da angústia de Jorge e sabendo que a probabilidade de seu benefício ser suspenso era grande, iniciamos, no dia seguinte, uma verdadeira maratona: agendamento de atendimento, consultas na agência onde o benefício era cadastrado, horas de espera, apresentação de documentação, comprovação de comparecimento à perícia, relatórios médicos, etc.

Passada essa fase, o resultado da perícia é que Jorge tem condições de voltar ao trabalho: um sujeito afastado do mercado por mais de vinte anos, com 51 anos de idade e capacidade laborativa visivelmente comprometida. A situação era caótica, mas, após pesquisa, me informei que, pelo fato de estar aposentado há mais de dez anos, na hipótese de ter o benefício cessado, ele teria de ser incluído no programa do INSS chamado Mensalidade de Recuperação, que é um pagamento de forma regressiva, por seis meses, até a cessação definitiva: nos dois primeiros meses, salário integral; nos terceiro e quarto meses, 75%; e, nos dois últimos meses, 50%.

Pergunto ao funcionário que nos atendia se Jorge teria direito a esse benefício, ao que me responde que sim e verifica a razão pela qual nosso paciente não havia sido incluído no programa, pois, desde que os pagamentos lhe foram suspensos, já deveria estar recebendo a Mensalidade de Recuperação. Ficam, então, as perguntas: se não houvesse nosso questionamento, seria Jorge incluído no Programa? Quantos cidadãos não recebem os direitos que lhes são garantidos?

Apesar da notícia do cancelamento da aposentadoria, Jorge se sentiu aliviado, pois teria como pagar algumas dívidas, já que ficou sem recebê-la por cinco meses. Mostra várias cartas de cobrança do banco onde tinha um empréstimo, que era descontado do benefício, e fala das contas atrasadas — água, luz, padaria, etc. Relembro Jorge sobre a possibilidade de entrar na Justiça Federal contra o INSS, e ele aceita. Pergunta se poderemos ajudá-lo, e digo que sim. Com o auxílio de uma estagiária, o acompanhamos, desde o momento da entrada com os papéis, em novembro de 2018, e na perícia médica, com o perito nomeado pela justiça, até a assinatura da homologação da sentença, em junho 2019, quando o INSS teve de reativar sua aposentadoria, acertar todos os meses não pagos e considerar sua incapacidade laborativa como permanente.

Acho importante trazer esse caso, pois relata o acolhimento a um ex-paciente que tem o Programa como um lugar aonde pode se endereçar em momentos de embaraço, de angústia, em vez de tentar outras saídas — que poderiam lhe custar a vida ou resultar em risco para si ou para terceiros. No momento de sua chegada, foi possível escutar esse pedido de socorro diante de uma situação com a qual ele não dava conta de lidar, apesar de suas tentativas. O fato de o caso não estar dentro dos critérios para atendimento pelo Programa, já que seu processo de Medida de Segurança já se encerrara, não interferiu em seu acolhimento. O que o determina são os princípios orientadores de nossa prática e a vida de cada um — isso sim importa.

Parafraseando Freud, podemos dizer que, em quase vinte anos de trabalho acompanhando pacientes, aprendemos que, quanto mais se ampliam os recursos da civilização, mais se caminha contra a guerra [1]. Em outras palavras, ao ampliar a rede socioassistencial; ao dar voz a esses sujeitos, antes impedidos de falar sobre seus atos, novas possibilidades de resposta ao sofrimento, ao embaraço, vão surgindo, muitas vezes em substituição a um ato de violência. “Não estamos entre os que acreditam na periculosidade intrínseca, na domesticação do programa pulsional que movimenta a humanidade. De tal sorte que propomos uma subversão: no lugar da presunção de periculosidade, elevar a presunção de sociabilidade” (BARROS-BRISSET, 2011, p. 17). Fica aí o convite.

 

 

[1] “Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”. Carta de Freud a Einstein, 1933.

 

 


Referências
ALVARENGA, Elisa. Ação lacaniana nas instituições. In: Almanaque Onlinehttp://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/ElisaAlvarenga.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.
BARROS-BRISSET, F. O. Por uma política de atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte: TJMG, 2010.
BARROS-BRISSET, F. O. Responsabilidades. Responsabilidades – Revista interdisciplinar do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ. Belo Horizonte: TJMG, 2011.
BRODSKY, Graciela. A solução do sintoma. In: Os usos da psicanálise: Primeiro Encontro Americano do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. p. 19-32.
FREUD, S. (1918) “Linhas de progresso na terapia analítica”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVII, p. 199-211.
FREUD, S. (1933[1932]). “Por que a guerra?” (Einstein e Freud).
In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XXII. p. 208.
LACAN. J. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2003. p.251.
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LAIA, S. “A psicanálise aplicada à terapêutica e a política da psicanálise hoje”. Disponível em: http://www.isepol.com/asephallus/numero_10/artigo_08_revista10.html
LAURENT, É. Ato e instituição. In: ALMANAQUE ONLINE. http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Laurent.pdf. Acesso em 17.03.19.
MILLER, J-A. “Acción lacaniana”. In: Un esfuerzo de poesia: los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller (2002-2003). Buenos Aires: Paidós, 2016, p. 159-171.
MILLER, J-A. “Psicanálise pura, psicanálise aplicada e psicoterapia”. In: Opção Lacaniana online, nova série. Ano 8. 22, 2017.
MILLER, J-A. “Rumo ao Pipol 4”, In: Correio da EBP, 60, p. 7-14.
ESCOLA DA CAUSA FREUDIANA. Pertinências da Psicanálise Aplicada: trabalhos da reunidos pela Associação do Campo Freudiano. (trad. Vera Avellar Ribeiro). Disponível em: http://lacanemp HYPERLINK “http://lacanempdf.blogspot.com/2016/11/pertinencias-da-psicanalise-aplicada.html” HYPERLINK “http://lacanempdf.blogspot.com/2016/11/pertinencias-da-psicanalise-aplicada.html”
ZENONI, Alfredo. “Psicanálise e Instituição – a Segunda Clínica de Lacan”. In: Abrecampos Revista de Saúde Mental do IRS, vol. 1. Belo Horizonte, 2000.



A solidão e o isolamento nas psicoses – Fernanda do Valle

Resumo
A partir das noções de isolamento, estabelecidas por La Sagna (2017), e de desordem mais íntima no sentimento de vida do sujeito, trazida por Lacan (1958), este trabalho discute o estado de solidão como possível índice de desencadeamento nas psicoses. Também estabelece a diferenciação entre a solidão como fenômeno e como ponto de estrutura do ser na linguagem, indicando-a como uma forma de segregação do ser do sujeito e, nas psicoses, como índice de ruptura com o campo do Outro. Encontra como resultados a correlação da solidão nas psicoses à melancolia, bem como ponto de estabilização em alguns casos de psicose.
Palavras-chave: psicoses, solidão, melancolia, segregação.
Abstract
From the notion of isolation established by La Sagna (2017) and of a more intimate disorder in the subject’s feeling of life brought by Lacan (1958), this paper discusses the states of isolation and loneliness as possible indexes of triggering in psychoses. It also establishes the differentiation between loneliness as a phenomenon and as a point of structure of being in language, indicating it as a kind of segregation of the subject’s being and, in psychoses, as an index of rupture with the Other’s field. It finds as a result the correlation of loneliness in psychosis to melancholy, as well as stabilization point in some cases of psychosis.
Keywords: psychoses, loneliness, melancholy, segregation.

 

Foto do Museu Mineiro
FERNANDA DO VALLE
Aluna do IPSM-MG (2017/19)

 

 

Solidão e isolamento são significantes que recolhemos da experiência clínica cotidiana. Pacientes relatam sentimentos de estarem sozinhos, vivendo vidas infelizes em função de serem deixados de fora dos laços sociais ou submetidos a um exílio do qual não conseguem escapar.

Contudo, para a psicanálise, não é propriamente das pessoas que o sujeito se isola e nem é por isolar-se que se torna solitário. Para Philippe La Sagna (2017), por exemplo, isolamento e solidão indicam formas com que o simbólico se coloca para cada sujeito e como cada um se enlaça a ele. Ele propõe o isolamento como correlato a um mais-de-gozar contemporâneo, indicativo do que denomina “suave segregação” (p. 74), uma forma individualista e consentida de nos mantermos separados de todos. Ao fazer ver que o isolamento implica exclusão do Outro, sua proposição nos permite ler que, para além da estrutura clínica, “isolar-se é evitar a solidão”. Em uma solução precária frente ao muro da linguagem, que dificulta o estabelecimento dos laços sociais, o sujeito busca o isolamento recorrendo a um objeto que o estimule — uma droga, uma fantasia ou um delírio —, “sem que se tenha a mínima realização da solidão”. A seu turno, a solidão seria o testemunho de que somos seres de fala e de linguagem e uma tentativa de dar sentido ao ser de falta.

Sendo assim, no sentido de um afastamento ou mesmo de uma ruptura com o laço e o convívio sociais, podemos recorrer à proposição de existência de uma ordem fenomênica para o isolamento e para a solidão. Sobre esta, podemos também recorrer à proposição de uma ordem estrutural. Tal ordem se torna índice de inserção e desinserção do sujeito no Outro da linguagem. Trata-se de uma questão válida tanto para a neurose quanto para a psicose, estrutura que se tornou um paradigma clínico para Lacan, uma vez privilegiada a relação do sujeito com o real e com o gozo no decorrer de seu ensino.

Em tempos do Outro que não existe e partindo da premissa que o psicótico está inserido na linguagem, porém está fora do discurso, nos interrogamos: a partir de quais balizas conceituais podemos pensar a solidão, face à frágil relação do sujeito psicótico com o simbólico? Se a solidão em Schreber nos indica o tempo de seu desencadeamento, como pensá-la em casos em que ela se torna um aparente resquício desse processo?

 

Solidão estrutural

 

A solidão não é um conceito estabelecido ou investigado por Lacan dentro de sua doutrina. Contudo, em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, tempo da primeira clínica, vemos Lacan abordá-la a partir dos heróis trágicos de Sófocles, trazendo a história de Antígona como um paradigma. Antígona se lança a uma ruptura social radical em que a solidão se apresenta como “uma morte em vida”. Para Lacan, os heróis sofoclianos sempre participam do seu isolamento, havendo uma espécie de fora dos limites que os mantém “arrancados por algum lado da estrutura” (1960/1997, p. 328), bem como confrontados com uma fixidez que “indica a posição do sujeito numa zona em que a morte invade a vida” (LACAN, 1960/1988, p. 344). Nessa morte em vida, tal como indica Lacan, o ser está só, está “na-finda-linha” de uma ausência de representação da cadeia significante, numa suspensão da relação do seu de sujeito à linguagem.

A nosso ver, se estabelece uma suspensão do ser do sujeito que o coloca em um deslizamento metonímico em relação ao Outro. O que se recolhe é uma busca incessante pelo sentido do ser, numa relação iminente do sujeito com a vertente simbólica da linguagem. Trata-se de uma falha a ser recoberta pelo sentido.

No Seminário 20, tempo da segunda clínica e de estabelecimento do estatuto do gozo e da verdade inconsciente, Lacan situa a solidão como algo inerente àquilo que fala, àquilo que não pode se escrever. Ao afirmar que o eu não é um ser, mas apenas suposto a quem fala [1], Lacan afirma que a solidão se coloca do lado do ser em relação ao saber inconsciente. Como índice da relação do sujeito com o significante, ela é aquilo que “não pode se escrever”, de um furo no real que o simbólico não recobre de todo. A solidão é estabelecida como um traço de gozo daquilo que, referido ao saber inconsciente, não se escreve. Lacan indica, nessas formulações, que o sujeito está sempre isolado e exilado de si mesmo. Na relação entre o sujeito e o Outro, há sempre um objeto estabelecido como resto, como traço de gozo — exílio do sujeito do significante e interrupção da relação do eu ao seu ser e, portanto, em relação ao Outro. O UM, segundo Lacan, indica o gozo extraído da linguagem, sendo, ao mesmo tempo, o representante da solidão do ser do sujeito.

Seguindo Lacan no Seminário 20, Marcelo Veras afirma que é na condição de falasser que se “experimenta a linguagem em seu limite último, exilada de toda e qualquer significação” (VERAS, 2017, p. 91) e que tal experiência se refere a um núcleo de solidão e incomunicabilidade sobre o qual se funda o ser a partir dos restos pulsionais que incidem sobre seu corpo.

De acordo com Heloísa Prado Teles (2019), a experiência da solidão somente se constitui a partir da articulação de uma presença ou ausência do Outro simbólico, indicando a existência de uma questão bascular do sujeito em relação à separação do desejo do Outro. Dessa forma, para a autora, em relação às psicoses, a solidão se constitui como uma “dor de existir”, ao passo que nas neuroses ela seria o indicativo das paixões do ser. Seguindo as indicações de Miquel Bassols (2009), Teles (2009 s/p) afirma que “na psicose a solidão está mais referida ao silêncio das pulsões ou à experiência de uma solidão extrema” e nos remete à experiência de abandono por Deus, relatada por Schreber.

 

Solidão, forclusão e disjunção nas psicoses

 

A propósito do desencadeamento da psicose de Schreber, Lacan (1958) indica, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que o momento do anúncio do assassinato de sua alma corresponde a uma ordem simbólica cuja afirmação primordial é percebida de forma original a partir da inscrição de um signo. A Verwerfung desse signo resulta na não inscrição do significante fálico. Lacan nos esclarece que a marca da forclusão é um furo feito no lugar da significação fálica, o qual se estabelece em razão de uma carência de um efeito metafórico. Nas psicoses, seu efeito é uma espécie de ritornelo no que toca às tentativas de significação, em função da exclusão do sujeito para fora do campo do Outro.

No início do adoecimento de Schreber, diante da solidão do impossível de significar o furo da forclusão, é possível verificar um ponto de recuo dos laços sociais e de isolamento do sujeito nos fenômenos elementares que o desencadeamento produz. Sérgio Laia (2000), a partir dos pressupostos estabelecidos por Lacan no escrito de 1958, elucida que, nas psicoses, cujas irrupções se fazem através de uma ruptura do simbólico, provém um desastre crescente do imaginário. Trata-se, nos dizeres de Laia, de uma desamarração, ou desalinhavo, no ponto denominado por Lacan como ponto de capitonê. A retroação do eixo metafórico se mostra incapaz de dar ou de manter a estabilidade de sentido ao conjunto de significantes. Logo, o enigma do sentido produzido pela forclusão pontual de um significante ordenador é obturado pela produção de fenômenos que organizam a realidade do sujeito de forma particular.

Exilado de um significante que faça ancoragem na junção significante e reordene seu sentimento de vida, Schreber está só. Restam-lhe os fenômenos elementares, a partir dos quais ele tentará ordenar o sentido que lhe escapa por meio da captura de um deslizamento metonímico particular, e a perturbação em seu ser, denominada por Lacan de “desordem na junção mais íntima no sentimento de vida”. Tal sentimento é o que exprime o ser do sujeito. Como ponto de exílio do ser do sujeito em relação ao Outro, a solidão na psicose diz respeito à disjunção que afeta o sentimento de vida do sujeito.

Em 1998, em A convenção de Antibes, Jacques Alain-Miller retorna a essa noção da “junção mais íntima ao sentimento de vida” para dizer de quadros de psicose em que tal desordem, apesar de presente, não chega a produzir fenômenos elementares. Miller indica que a noção de sentimento de vida não somente está colocada para todos os sujeitos em todas as estruturas, como também todos são passíveis de experimentar alguma desordem nesse sentimento, de forma mais ou menos intensa, com ou sem a presença de fenômenos elementares.

 

Solidão e melancolia

 

“Minha solidão é não ter uma linguagem com a qual eu posso dizer quem eu sou”. “Eu sou um nada! Sou um lixo! Sou como Sísifo, condenado a rolar a mesma pedra”. “Acho que nunca fui normal. Eu gosto de falar com as pessoas. Prefiro ficar sozinha”.

Essas passagens, escutadas cotidianamente em nossa prática clínica, revelam que a questão da melancolia se apresenta para alguns pacientes, seja em sua versão de estado melancólico, seja como uma posição melancólica do ser, como indicativos, segundo Sophie Marret-Maleval, da presença de uma desordem na junção mais íntima no sentimento de vida. Em sua investigação em torno dessa noção, Marret-Maleval a considera um ponto de forclusão que faz do humor “a base contínua da existência subjetiva” (2017, s/p). Portanto, a autora propõe certa associação entre tal desordem, a melancolia e a solidão, e, para reforçar sua tese, aponta que, ao aproximar a forclusão das variações de humor, Miller faz dessas variações um ponto de referência fundamental da desordem na junção mais íntima do sentimento de vida. Em consequência, ele as direciona à concepção de um fundo melancólico nas psicoses.

Tal posicionamento de Marret-Maleval pode ser entendido também a partir do que Teles (2019) postula a respeito da solidão nas psicoses como uma dor de existir. Nas psicoses, essa dor pertinente à desordem do sentimento de vida adquire os tons da melancolia, muitas vezes impeditivos do engajamento do sujeito ao laço social e de difícil manejo clínico. Em situações assim, o sujeito não só se retira do convívio social como também presentifica a exclusão de seu ser do Outro em uma suave segregação (La Sagna, 2017), manifestada sob a forma do silêncio, do isolamento ou de uma reinvindicação melancólica. Aqui, a solidão aparece como um ponto da linguagem exilado de significação, que empurra o sujeito a uma espécie de ritornelo no que toca às tentativas de significação, lá onde o simbólico não se inscreve e o real se apresenta como um furo. Verifica-se o empuxo do ser a uma morte em vida, a um estar “na-finda-linha”, tal como nos indica Lacan em relação a algo que marca uma ausência de representação ou, nos termos de Laia, um vazio correlato à ausência de ligação entre um significante e seu referente, própria à forclusão e à forclusão generalizada. Se, para Schreber, a solidão aparece como índice do desencadeamento, para alguns pacientes, ela se mostra como um possível ponto de ancoragem, apesar dos embaraços que lhes causam tal exílio. Acreditamos que as psicoses (desencadeada ou ordinária) nos apresentam essa experiência de forma radical.

Sendo assim, a solidão pode ser considerada a partir tanto da desordem que atinge a junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito, no momento de um desencadeamento, quanto como seu aparente ponto de ancoragem, caso o analista consinta com a construção de uma forma do ser que inclua, na experiência analítica do paciente, o estar a sós com seu furo e com um bordejamento que lhe seja possível.

 

 

 

[1] Referência também encontrada na aula de 20 de maio de 1959, do Seminário 6: o Desejo e sua interpretação (1959), em que Lacan afirma que o ser só pode ser encontrado em intervalos, a partir do corte que a linguagem opera no real. A partir dessa referência, Marcos André Vieira (1998) recorta três ideias mais ampliadas a respeito da noção do ser em Lacan, quer sejam: o ser só existe na linguagem; o ser é resultado da operação da linguagem no real; o ser é o simbólico no real.

 

 

 


REFERÊNCIAS
BASSOLS, M. “Soledades I e II”. Disponível em: http://miquelbassols.blogspot.com/search?q=soledades+II. Acesso em 20 set. 2019.
LACAN, J. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958). In:____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 537-590.
LA SAGNA, P. “Do isolamento à solidão, pela via da ironia”. In: Curinga. Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 44, jul./dez. 2017, p. 73-78.
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1997.
LAIA, S. “Psicose unplugged: os desligamentos do Outro”. In: Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 14. abr. 2000. p. 100-109.
MARRET-MALEVAL, S. “A junção mais íntima do sentimento de vida”. In: Opção Lacaniana online – nova série. Ano 8, nº 23, jul. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/A_juncao_intima_do_sentimento_de_vida.pdf. Acesso em 16 set. 2019.
MILLER, J. “Efeito retorno sobre a psicose ordinária”. In: BATISTA, M.C.D; LAIA, S. (org.) A psicose ordinária: a convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012. p. 339-428.
TELES, H. P. “Quem fala só tem a ver com a solidão”. In: https://ebp.org.br/sp/jornadas/ix-jornadas/perspectivas-do-tema-ix-jornadas/. Acesso em 16 set. 2019.
VERAS, M. “O avesso da segregação”. In: Curinga. Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, nº. 44, jul/dez. 2017. p. 87-93
VIEIRA, M. A. “O ser das paixões”. In: LUTTERBACK-HÖLCK, A.L.; SOARES, C.E.L.V. (orgs.). As paixões do ser: amor, ódio e ignorância/KALIMEROS. Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998. p. 80.



A temporalidade do inconsciente na clínica das toxicomanias – Cláudia Generoso

Resumo

Elegendo o eixo de investigação a temporalidade do inconsciente (ICS) e sua incidência nas toxicomanias, o artigo propõe interrogar alguns fenômenos que surgem na clínica com toxicômanos, tais como a temporalidade do ICS no ato de se drogar e na fissura, bem como suas correlações com a passagem ao ato, o acting-out e a iteração do Um sozinho.

Palavras-chave: temporalidade do inconsciente (ICS), passagem ao ato, acting-out, fissura, toxicomania.

Abstract
ICS temporality in a drug addiction clinic
Choosing as a research axis the temporality of the ICS and its incidence in drug addictions, the article proposes the questioning of some phenomena that arise in the clinic with drug addicts, such as the temporality of the ICS in act of drugging and drug craving and its correlations with the passage to the act, the acting out, the iteration of the One alone.

Keywords: ICS temporality, passage to act, acting out, drug craving, drug addiction.

 

 

Foto de Nelson de Almeida

 

CLÁUDIA MARIA GENEROSO
Coordenadora do Núcleo de Toxicomania IPSM-MG (2018-2019),
doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos (UFMG),
psicóloga no CAPS-AD Betim e professora da PUC-Minas.
claudia.generoso@yahoo.com.br


No Núcleo de Toxicomania do 2º Semestre de 2019, orientamos nossas investigações em torno do tema dos afetos e da temporalidade do inconsciente (ICS) na clínica das toxicomanias. Interrogamos como é a temporalidade do ICS na fissura e no ato de se drogar, assim como suas correlações com a passagem ao ato, o acting-out, a iteração do Um sozinho e as soluções possíveis encontradas por cada sujeito para lidar com o mal-estar da vida.

Sendo assim, como pensar a temporalidade do ICS na clínica das toxicomanias? Antes, vamos destacar alguns pontos da relação do ICS com o tempo. No artigo “O inconsciente”, Freud (1915) o conceitua a partir da relação com o material psíquico recalcado, sustentando que nem tudo que é psíquico é consciente. O ICS tem suas próprias características, entre elas o desconhecimento da negação, dos contrários e do tempo. Por ser atemporal, o ICS desconhece a passagem do tempo referente à cronologia, à sucessão dos acontecimentos. Dessa forma, os processos inconscientes não são modificados pelo tempo: “A passagem do tempo não modifica o desejo e isso se revela nas manifestações do inconsciente” (SALUM, 2019).

Em Lacan, podemos delimitar duas formas de pensar o ICS: pela via do sentido, do simbólico; e pela via do real, do gozo. Nessas duas concepções, o tempo também se apresenta de forma diferente. Na via do simbólico, o ICS é estruturado como uma linguagem, uma articulação significante e suas leis da linguagem — metáfora e metonímia. O tempo será concebido a partir do Nachträglich freudiano, o só depois (efeitos retroativos), uma reversão temporal. Uma temporalidade pulsátil que Lacan nomeia de “pulsação de borda”, referente à abertura e fechamento da hiância do ICS, que tem a função estruturante de uma falta, instaurando o tropeço, “a descontinuidade na qual alguma coisa se manifesta como vacilação” (LACAN, 1964, p. 30-31). No ordenamento temporal da cadeia significante, no intervalo entre S1 e S2, há o surgimento do desejo, do sujeito do ICS através de suas formações, tais como os atos falhos, os sonhos e os sintomas passíveis de decifração de um sentido.

A outra via relaciona o ICS ao real, e será pensado não apenas como uma articulação significante, mas como um enxame de S1, situando-o fora do sentido e conectado à lalíngua e ao falasser. Ao status de sujeito como operação significante que surge fugazmente, Lacan acrescentou o corpo como falante, o falasser, instituindo o corpo como o lugar de um sujeito e também sua consistência de gozo. Trata-se do ICS como escrita que cifra o gozo fora do sentido, tendo uma relação com a temporalidade diferente.

Entre as formações do ICS, o sintoma difere das outras pelo seu caráter de constância. É devido a essa característica que Miller (2016) dirá que “o sintoma é o que de mais real a psicanálise nos dá”, carregando a conjunção de duas faces: sentido e real. Ou seja, o que é interpretável e um resto que resiste. Algo decifrável e restos sintomáticos referentes ao núcleo real do sintoma que precisam ser confrontados, e não interpretados, fazendo importante outras formas de intervenção. Mahjoub nos indica que o tempo de fazer vacilar o gozo remete a uma pulsação de borda concernente aos orifícios corporais, possibilitando outras saídas, pois, “se deixarmos o sujeito entregue ao seu gozo, não há nenhuma chance de tocar um real sob as formas do objeto a, essa redução do gozo que não é de forma alguma dócil ao tempo” (2014, p. 347). Há, assim, uma dimensão do objeto a, do gozo, para se pensar a temporalidade, ao contrário da temporalidade fugaz referente às manifestações do sujeito do ICS decifrável.

Nessa perspectiva, Miller (2000, p. 64) evidenciará uma outra modalidade do tempo do discurso, que Lacan nomeará “presente espesso” e que se refere à libido. Se, por um lado, temos o sujeito dividido ($), pontual e fugaz, por outro, temos o objeto a relacionado à libido, à inércia, à consistência que indica “o lastro de uma retirada de uma parte do corpo: objeto anal, vocal (…)”, apontando para a vertente do gozar (MILLER, 2000, p. 66). Considerando essa via é que Lacan acrescentou o corpo ao status do sujeito, instituindo o falasser — que não é o sujeito, mas o corpo falante —, que tem sua consistência e duração próprias (MILLER, 2000, p. 67). Ele nos indica que há certa necessidade de o objeto a ser depositado, absorvido, exemplificando que isso pode acontecer pela arte, como a pintura e a música, como possibilidade de absorção ou depósito do objeto a, insinuando outra forma de manejo clínico, que vai além da interpretação. Desse modo, verificamos a necessidade de ir além da escuta, incluindo saber ler o sintoma que condiz mais com a clínica dos modos gozos (MILLER, 2016).

A partir desses elementos, interrogamos como pensar a temporalidade do ICS nas toxicomanias. Muito já foi debatido sobre a relação dos toxicômanos com o ICS se referir a uma tentativa de obturar a falta, a hiância estrutural do sujeito que remete à castração. Como vimos, é nessa hiância que o ICS se manifesta, instaurando um desencontro e a impossibilidade de satisfação plena da pulsão. Mas, como indica Freud, apesar dessa impossibilidade, haverá sempre uma exigência para a descarga da pulsão que busca insistentemente uma satisfação.

Hugo Freda (2010) destaca algumas referências de Lacan à toxicomania ao longo de sua obra e faz uma aproximação de Freud e Lacan na concepção de que a droga é uma solução, e não um sintoma (Freud, com “Mal-Estar na Cultura”, e Lacan sobre a droga, em 1975). Mas Freda, junto com Bernard Lecoeur, afirma que a toxicomania é uma nova forma de sintoma mais congruente ao mundo contemporâneo, sendo um protótipo desse momento na civilização. O autor ressalta que, nas primeiras observações de Lacan, até 1960 (“Subversão do sujeito e dialética do desejo do sujeito no inconsciente freudiano”), na perspectiva da prevalência do simbólico, “a intoxicação seria uma resposta não sintomática que tenta anular a divisão, a marca de uma posição subjetiva caracterizada por um não querer saber nada do ICS. (…) um tipo de resposta do sujeito ante o reconhecimento da existência do ICS”, visando apagá-lo (FREDA, 2010, p. 305).

Já nas observações posteriores de seu ensino (“Psicanálise e Medicina” [1966], “Os não tolos erram”/”Os nomes do pai” [1973/74] e “Discurso de fechamento das jornadas de carteis da EFP” [1975)], Lacan aponta para uma mudança de concepção a partir da clínica borromeana, estando mais afinado com a ideia de ICS na perspectiva do real, do gozo implicado no sintoma. Nessa via, a toxicomania será pensada no embaraço que surge da relação da angústia com a castração, sendo a droga uma resposta eficaz para romper essa relação (“a droga é o que permite romper com o pequeno pipi”), um rompimento com a função fálica, com o gozo do corpo. Freda (2010) evidencia também que, no toxicômano, mais do que romper com essa relação, há nele uma identificação com a nomeação de ser toxicômano cerceando a possibilidade de o ICS fazer um sintoma.

Diante da dificuldade que se coloca frente ao sintoma como uma formação do ICS decifrável, como pensar as formações do ICS nas toxicomanias? Formações tais que podem causar uma surpresa, uma questão, e não apenas a prática reiterada de se drogar? Como diz Freda (2010), essa nomeação rígida — sou um toxicômano — dá outra dimensão ao uso da droga, como referência a uma prática (toxicomania) e à pessoa que consome como um personagem, e não como um sujeito. Afirma ainda que “a toxicomania é uma nova forma do sintoma na medida em que define o sujeito por uma prática, mas não por seu sintoma” (FREDA, 2010, p. 307). Nesse sentido, o toxicômano é um personagem da modernidade que, a partir de sua prática, quer provar que o ICS não existe. Não por acaso, podemos observar o aumento do uso de medicações psicotrópicas que também entram nesse movimento de aniquilar o mal-estar na cultura, a falta do ser falante — que é estrutural.

Podemos pensar a prática, o ato incessante de se drogar dos toxicômanos e sua relação com o ICS a partir do que Jésus Santiago (2017) diz, que, nos toxicômanos, há uma perturbação do ato diferenciando-o do ato falho, que revela uma manifestação do ICS. Dessa forma, “os tropeços e equívocos que cometem não fazem enigma, mas são remetidos à ordem de um não saber maciço” (p. 222). É comum observamos, na clínica, que esses pacientes não conseguem fazer uma associação do ato de se drogar com algum acontecimento de sua vida, uma localização de uma experiência perturbadora em seu percurso, sendo difícil a criação de uma questão e a instauração do SSS que possa levar a uma demanda de tratamento, ou, como diz Santiago, a um “equívoco do pensamento”. O autor diz que a prática metódica não se confunde com a manifestação da mensagem do sintoma endereçada ao Sujeito Suposto Saber do ICS, pois o que se testemunha na clínica é a presença massiva de acting-outs e passagens ao ato. Há mais o ato do que o pensamento.

Miller (2014), em seu artigo “Jacques Lacan: observações sobre o conceito de passagem ao ato”, nos ajuda a entender as especificidades da passagem ao ato e do acting-out. Segundo o autor, Lacan faz a diferença entre dois atos: o bem-sucedido e o falho. E Miller indaga: “O que é o ato falho, senão o pensamento inconsciente que emerge no pensamento consciente, na fala, no corpo, e desloca o ato, faz com que diga outra coisa?”. Na experiência analítica, Lacan toma o ato verdadeiro a partir do paradigma da passagem ao ato suicida, havendo um “suicídio do sujeito”. O autor diz que a passagem ao ato desvela a estrutura do ato analítico, uma vez que o sujeito pode renascer de forma diferente a partir desse ato. Nessa perspectiva, “todo ato que marca, que conta, é transgressão. (…) uma ultrapassagem de um código, de uma lei, de um conjunto simbólico que ele infringe, e é a infração que permite que esse ato tenha a oportunidade de remanejar essa codificação”. Faz uma diferença entre ato e ação, agitação motora, pois “é preciso que haja também um dizer que enquadre e fixe esse ato. (…) para que haja ato, é preciso que o sujeito nele seja modificado por esse franqueamento significante” (MILLER, 2014, s/p.).

Já o ato suicida alcança o gozo em curto-circuito e, ao mesmo tempo, exclui o mundo subjetivo, o franqueamento significante. Nesse ponto, o ato visa o cerne do ser, que é o gozo. O suicídio atinge o mal encarnado pelo gozo, “essa coisa que o habita, que o corrói, e nesse momento o destrói”. E é por isso que o ato visa ao gozo. O sintoma traz esse gozo que faz mal ao sujeito, mas também o sustenta. Um gozo tal que “(…) quando se autonomiza, é até a morte” (ibid.).

Nesse viés, o ato suicida referente a uma passagem ao ato leva ao movimento curto-circuitado do gozo e é uma resposta ao embaraço em que se encontra o sujeito, que sai da cena. “O sujeito se subtrai, digamos, aos equívocos da fala como a toda dialética do reconhecimento; ele coloca o Outro em um impasse, e é por aí que o propósito do ato propriamente dito não é cifrável” (ibid.). Nesse sentido, o ato é o que separa do Outro e “o sujeito está eventualmente morto”. E, diversamente, no acting-out, há um enquadramento em um apelo, uma demanda endereçada ao Outro, uma cena “que é a fala, e o sujeito se põe a agir diante do Outro nessa cena. É preciso o Outro, é preciso o espectador”. Miller nos dirá que “a clínica da passagem ao ato nos lembra a inscrição temporal inevitável do ato — especialmente sob a forma da urgência” (ibid.), assim como “é no tempo precipitado que esconde a incidência do gozo” (MILLER, 2000, p. 69).

É com esses elementos que nos perguntamos qual é a temporalidade que concerne mais ao funcionamento dos toxicômanos com suas formas de agir e seus fenômenos, tais como a fissura e o ato de se drogar compulsivamente. Quando o ato de se drogar é uma passagem ao ato ou uma atuação? Quando o ato de se drogar é uma separação do Outro, apagando o sujeito? Quando o ato de se drogar pode ser um suicídio não violento, conforme diz Lacan (1938) sobre a toxicomania? Observamos que esses sujeitos estão sempre numa urgência configurada pela satisfação imediata, não se importando nem mesmo por preservar suas vidas, tal como na fissura. Ou, então, encontram-se na monotonia tanto do seu ato quanto da fala sobre a droga. O gozo do sintoma mais congruente com a toxicomania, que remete a sua iteração, pode ser um operador clínico para trabalharmos situações que surgem, tal como a fissura, ao pensá-la como um imperativo de gozo do supereu em que o sujeito é identificado ao seu ser de gozo (ALVARENGA, 2006). A angústia também é um operador clínico nessas situações na medida em que surge sem um gozo circunscrito.

Algumas situações em nossa prática nos chamam a atenção quanto ao agir dos pacientes. Entre elas, é comum, nas instituições que acolhem toxicômanos, aqueles que usam drogas dentro desses espaços, levando-nos a perguntar sobre a natureza desse agir: seria uma atuação? Nesse caso, qual endereçamento está sendo feito à equipe e o que não está sendo escutado? Seria todo uso de drogas dentro das instituições da ordem de uma atuação? Sendo assim, entender as situações a partir do caso a caso é imprescindível.

Enfim, as experiências vivenciadas pelos toxicômanos nos colocam diante do tempo a partir da urgência do gozo, da satisfação imediata, encontrando-se em um movimento de iteração incessante com um objeto artificial, que é a droga. Como fazer vacilar o tempo de urgência da satisfação do gozo na toxicomania e abrir um intervalo no tempo curto-circuitado do gozo? Nessa relação interceptada dos toxicômanos com o ICS na via do simbólico e suas formações, seria mais apropriado nos valer mais da concepção do ICS real para o manejo no tratamento com esses sujeitos?

 

 

 

[1] Abertura do Núcleo de Toxicomania, 2º semestre de 2019.

 

 

 


Referências
ALVARENGA, E. Fissura e crise. Álcool e outras drogas: escolhas, impasses e saídas possíveis. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 87-92
FREDA, H. (MILLER, J-A). La secta y la globalisación. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 303-324.
FREUD, S. O inconsciente (1915), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1987, Imago, vol. XIV, p. 183‑233.
LACAN, Jacques. O inconsciente e a repetição [1964]. O Seminário, Livro XI: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979b. p.23-65.LACAN, Jacques. Complexos familiares [1938]. Outros escritos
MAHJOUB, L. Sessão curta. Um real para o século XXI. Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p. 347.
MILLER, J-A. A erótica do tempo. Latusa. EBP. Rio de Janeiro, 2000, 79p.
 MILLER, J-A (2011). Ler um sintoma. http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br>. Acesso em: 28/07/2019.
MILLER, J-A. Jacques Lacan: observações sobre o conceito de passagem ao ato: Opção Lacaniana online (13), março de 2014. <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_13/Passagem_ao_ato.pdf.> Acesso em: 28/07/2019.
SALUM, M. J. G. O manejo do tempo da sessão analítica. 2019, Lapso 01. Disponível em: <http://www.jornadaebpmg.com.br/index.php/2-uncategorised/46-manejot.> Acesso em: 29/07/2019.
SANTIAGO, J. Vontade de ser infiel ao gozo fálico e conclusão. A droga do toxicômano – uma parceria cínica na era da ciência. Belo Horizonte, Relicário, 2017, p. 189-229.



O tempo e o inconsciente – Guilherme Ribeiro

Resumo
Este trabalho aborda o manejo do tempo no tratamento psicanalítico, as orientações de Freud sobre a duração das sessões e as elaborações de Lacan sobre o tempo lógico. Também pretende estudar como as modulações do tempo das sessões analíticas permitem entender o inconsciente como efeito de discurso.

Palavras-chave: tempo, lógica, inconsciente, escansão.

Abstract
Time and the unconcious
This paper delas with time management in psychoanalytic treatment, Freud’s orientations on session’s time, and Lacan’s elaborations on logical time. It also intends to study how the time modulations of the analytic sessions allow us to understand the unconscious as a discourse effect.

Keywords: Time, logic, unconscious, scansion.

 

Foto do Museu Mineiro

 

GUILHERME CUNHA RIBEIRO
Psiquiatra e psicanalista, membro da EBP e da AMP 

Para começar a falar sobre o tempo e a psicanálise, é importante dizer que não há como definir um standard, um padrão para o tempo no tratamento, seja para o tempo das sessões, seja para a duração do tratamento. As orientações nesse sentido — aquelas ditadas por Freud ou as que partiram do ensino de Lacan — são recomendações para que a direção do tratamento se dê caso a caso. Quando Freud trouxe contribuições a respeito do tempo em psicanálise, o fez como recomendações que não foram tratadas por ele como princípios fundamentais da psicanálise. Lacan aportou suas contribuições ao incluir o tempo dentro de uma lógica do tratamento. Éric Laurent (2007) nos mostrou de maneira muito clara que o único standard da psicanálise é o do caso a caso, o da singularidade. Portanto, o ensino e a prática da psicanálise nos mostram que o manejo do tempo é essencial para seguir em direção do que é singular.

A ausência de standard no tratamento ganha um estatuto de princípio do ato analítico, e uma das justificativas para tanto, em especial no que concerne ao tempo das sessões ou à duração do tratamento, é que a psicanálise reconhece a incidência do tempo nas manifestações do inconsciente. A consequência dessa incidência é que o manejo do tempo é indissociável da política da psicanálise.

É preciso considerar que a psicanálise mudou com o tempo. Miller (2002) faz um percurso da psicanálise no tempo e indica que Freud inventou a psicanálise nos tempos da sociedade disciplinar, que interditava a sexualidade. O que escapava ao interdito e às regras da sociedade foram objeto do trabalho de Freud. Na releitura de Freud feita por Lacan, temos o uso do Nome-do-Pai, do recalque, da castração e dos conceitos de metáfora e metonímia para formalizar o inconsciente. Lacan, mais além dessa releitura da obra de Freud, aponta que é a própria linguagem que opera a interdição: pluraliza o Nome-do-Pai e revela um novo operador, o objeto a, que obtura a falta. Mais ainda, Lacan aponta a inexistência do Outro e indica que o gozo não faz mais oposição ao desejo e passa a ser o operador que indica que, no nível da pulsão, “o sujeito é sempre feliz”. Miller assinala que é esse o campo do inconsciente em nosso tempo, recuperando a máxima lacaniana “o inconsciente é a política”.

Portanto, o inconsciente orienta o tempo no tratamento, seja em suas manifestações sintomáticas, seja nos sonhos, lapsos ou chistes, assim como aponta para o real, como podemos apreender a partir dos avanços que Lacan trouxe no seu último ensino.

Em sua teorização sobre o inconsciente, Freud (1915) propõe que “os processos do sistema Ics são atemporais”, ou seja, não se alteram nem fazem referência ao tempo. Essa referência ao tempo só ocorre no sistema consciente. Os mecanismos de manifestação do inconsciente se dão pela condensação e pelo deslocamento, com ligação aos materiais ideativos no nível consciente. Esse material se manifesta por meio de sintomas, sonhos, chistes e atos falhos, revelando o infantil. Portanto, para Freud, a passagem do tempo não interfere no material inconsciente, que pode estar disponível com a suspensão do recalque.

Ao falar sobre o início do tratamento, Freud (1913) propõe como recomendação um princípio pessoal: que o tratamento tenha um início considerado provisório, “por um período de uma ou duas semanas”, para que se possa avaliar as condições e a pertinência de tratar ou não o paciente. Esse tempo seria aquele necessário para uma avaliação diagnóstica da possibilidade do tratamento. Lacan nomeou como preliminar o momento do tratamento que visa a estabelecer se há um sofrimento articulado a uma posição de gozo, sendo a localização desse gozo o trabalho nesse tempo. Cabe ao analista saber transmitir ao candidato à análise uma questão sobre esse gozo, o que dá ao tratamento a direção para o inconsciente. Essa localização de gozo indica que o tratamento deixou o tempo preliminar para abrir-se à possibilidade do que é atemporal, o material inconsciente, e passar a ser contado no tempo.

Sobre a prática da psicanálise propriamente dita, Freud (1913) revelou como manejava o tempo no tratamento. Ele dedicava, a cada um de seus pacientes, uma hora de sessão, abrindo espaço para uma variação do tempo quando alguns pacientes “gastam a maior parte dessa hora para se extroverter e tornar-se comunicativos”. Ele considerou que o tempo que o psicanalista dispõe para cada paciente é de responsabilidade do paciente, que deve estar presente e pagar por sua presença ou ausência, não importando a razão de sua falta. Freud não vacila mesmo com doenças que possam ocorrer. Ele abre exceções quando a doença impede a presença, mas, nesse caso, o tratamento só é retomado com a total disponibilidade do paciente. Freud atendia, diariamente, de seis a oito pacientes, seis vezes por semana, permitindo uma redução para três atendimentos semanais em “casos leves ou continuações de tratamentos bastante avançados”.

Quanto à provável duração do tratamento, Freud expressou que essa questão “praticamente não pode ser respondida”, mas o que ele assevera é que, na psicanálise, “trata-se sempre de longos períodos, semestres ou anos inteiros”. Como vemos, desde o início, a duração do tratamento sempre foi prolongada. Freud costumava limitar os tratamentos em meses ou poucos anos. Hoje em dia, a duração é ainda maior, podendo ser contada em décadas. As experiências relatadas pelos analistas que puderam testemunhar sobre o término de sua análise nos revelam que é sempre assim. De qualquer forma, tanto a entrada quanto a saída estão a cargo do paciente; ele é o senhor da decisão de terminar uma análise, assim como foi dele a decisão de entrar. Cabe ao analista se posicionar em relação ao final, de acordo com cada um.

Em certa ocasião, Freud encontrou uma razão para modificar suas orientações em relação ao tempo de tratamento. No caso do Homem dos Lobos, ao constatar que o paciente se mantinha em uma apatia, sem avançar, sem conseguir abordar seus sintomas, Freud fixou um momento para encerrar a análise. Ele informou ao paciente que a análise terminaria em uma determinada data, não importando o quanto houvesse progredido. Essa proposta executada por Freud foi a forma encontrada para que o sujeito pudesse achar uma saída para o que parecia ser infinito, o gozo pulsional experimentado pelo paciente. Essa experiência vai ser repetida e sistematizada por Lacan ao teorizar sobre o tempo lógico nas sessões de análise.

A elaboração de Lacan (1945) sobre o tempo lógico orientou sua teoria sobre a duração das sessões no tratamento analítico. Destaco que, além dos tempos lógicos — instante de olhar, tempo de elaborar e momento de concluir —, Lacan expressa a presença de acontecimentos que fazem parte dessa lógica. A lógica que orienta o tempo das sessões é extraída a partir da análise de um sofisma que já é bem conhecido: três prisioneiros são informados pelo diretor da prisão que um deles poderá ser liberado diante da apresentação da solução de uma questão. Os três presos em uma sala receberão um disco cada um, branco ou preto, de um total de cinco discos, sendo três brancos e dois pretos. Cada um deles poderá ver os discos dos outros e poderá sair da prisão quando concluir e explicar logicamente qual é a cor do seu disco. No desenvolvimento do sofisma, todos os três detentos recebem discos brancos e, após algumas escansões temporais, todos saem ao mesmo tempo.

A solução para esse sofisma é a seguinte: toma-se o prisioneiro A como o sujeito real e os prisioneiros B e C como sujeitos refletidos, pois todos eles estão com discos brancos. Quando A vê o disco branco em B e em C, ele pensa que tem duas soluções possíveis, dois brancos e um preto ou três brancos. No momento inicial, a única solução que traria uma resposta imediata é “diante de dois pretos, sabe-se que se é branco”. Fora disso, o problema é insolúvel se não se considerar uma modulação do tempo, abrindo-se um tempo para compreender. Aqui tem que se levar em conta a inércia do outro, quando B e C não saem assim que veem os discos dos semelhantes, o que um deles faria se estivesse diante de dois pretos. A inércia do outro, ou seja, uma modulação do tempo, é um acontecimento que se traduz na forma de escansões temporais atreladas à procrastinação. Após as escansões temporais, o sujeito A se apressa em sair para se afirmar branco. Junto com ele saem os sujeitos refletidos B e C.

O primeiro acontecimento é a escansão do tempo quando, no instante do olhar, se conclui que o problema é inicialmente insolúvel, pois a proposição necessária para a conclusão imediata está ausente. Essa escansão fornece um fato contingente: o de ser preciso compreender como cada um dos sujeitos refletidos irão agir; o tempo para compreender. O segundo acontecimento é a dúvida apresentada pelos três sujeitos quando caminham em direção à saída para dizer qual é a sua cor, no momento de concluir, não sem antes verificar que os outros dois também pararam.

Os acontecimentos do sofisma indicam o manejo do tempo na sessão analítica. Temos a escansão no tempo e o corte. Na escansão do tempo, a elaboração significante remete o sujeito a um sentido, S2, que interpreta o discurso do inconsciente, S1. Já o corte da sessão pelo analista produz uma interrupção na elaboração significante, tomada como procrastinação do saber, com o corte indicando para a posição de objeto. A função do corte visa a apressar essa elaboração de saber.

O sofisma apresentado nos mostra que, para a compreensão do tempo pela psicanálise, é preciso levar em conta que se trata de uma questão de lógica. Mas, além disso, ele contribui para Lacan progredir na definição de inconsciente em seu último ensino. Em “Televisão” (LACAN, 1973), Miller indaga Lacan sobre o inconsciente ao dizer: “Inconsciente — que palavra esquisita!”. A resposta de Lacan é que Freud não encontrou outra melhor. Mas, se no inconsciente freudiano trata-se de suspender o recalque para retirar o sujeito da atemporalidade, o inconsciente lacaniano se revela na escansão do tempo. No entanto, Lacan (1976) continua a avançar e diz que “quando o esp de um laps — ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso — já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos a certeza de estar no inconsciente”.

Lacan ultrapassa o inconsciente freudiano, sustentado pelo recalque instituído pelo Nome-do-Pai, para falar de um inconsciente como sua razão no “espaço de um lapso”. Aqui, o inconsciente não mais se sustenta na atemporalidade, numa eternização que só é suspensa quando o recalque é desvelado pela interpretação. O inconsciente surge no lapso de tempo, no intervalo do discurso, entre os significantes, fora do sentido e fora da interpretação. O inconsciente só se verifica por estar em um discurso, e a modulação do tempo decorre do efeito da estrutura significante.

À guisa de conclusão, volto à estrutura do tempo lógico, que está enlaçada com o conceito de inconsciente. Além dos tempos lógicos, nomeados como instante de olhar, tempo para compreender e momento de concluir, o sofisma apresenta a modulação do tempo em dois momentos: na espera pela elaboração significante e na urgência em concluir. Essas modulações são efeitos de linguagem, são efeitos da estrutura significante. Jésus Santiago (2004) aponta que é a estrutura significante que determina a posição subjetiva da espera, essencial na erótica da sessão analítica. Além disso, do lado do analista, a estrutura significante exige a modulação temporal da urgência. Essa exigência se impõe para que o analisante não se mantenha eternamente em uma elaboração, para que ele não se mantenha na procrastinação, na evitação, na demora em saber sobre sua posição de gozo. A urgência em concluir trabalha contra essa procrastinação e aponta para o objeto a, abrindo a possibilidade de um saber sobre sua posição de objeto. Santiago reforça que “para um analista lacaniano importa mais a suspensão do que a duração da sessão”. Portanto, se, no momento em que Miller o indaga sobre o nome “inconsciente”, Lacan vacila em encontrar um novo nome, posteriormente, o lapso é um significante que ele encontra para dizer de um inconsciente que não leva em conta a significação, um inconsciente articulado com o real.

 

 

 


Referências
FREUD, S. (1915). “O inconsciente”. In: Obras completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, escritos sobre a metapsicologia e outros trabalhos – 1914–1916. Rio de Janeiro: Imago, vol. 14, 1969.
FREUD, S. (1913). “Sobre o início do tratamento”. In: Fundamentos da clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.
LACAN, J. (1945). “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1973). “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1976). “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, E. “Princípios diretores do ato analítico”. In: A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007.
MILLER, JA. Intuições Milanesas 1. 2011. Disponível em:
<http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero6/texto1.html>. Acesso em 30/11/2019.
SANTIAGO, J. “A sessão lógica: extrair o tempo de sua duração”. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n1/textob.asp>. Acesso em 31/11/2019.



O tempo faz sintoma no inconsciente à céu aberto – Fernando Casula

Resumo
A partir das premissas freudianas, o texto recupera e descreve o conceito lacaniano de “inconsciente a céu aberto” como modo de funcionamento do inconsciente psicótico. Disserta sobre a noção de tempo em psicanálise e busca delimitar a incidência do tempo nesse inconsciente que está descoberto da metáfora paterna.
Palavras-chaves: Inconsciente a céu aberto, psicose, metáfora paterna, tempo.

Abstract
From Freud’s premises, the text recovers and describes the Lacanian concept of “unconscious in the open sky” as a way of functioning of the psychotic unconscious. It discusses the notion of time in psychoanalysis and seeks to delimit the incidence of time in this unconscious that is uncovered from the paternal metaphor.

Keywords: Unconscious in the open sky, psychosis, paternal metaphor, time.

 

Foto de Antônio Augusto Gomes Batista

 

 

FERNANDO CASULA
Psiquiatra, mestre em Psicologia (FAFCH-UFMG),
psicanalista membro da EBP e da AMP | fernando.casula@hotmail.com

O momento histórico que vivemos é marcado pela máxima capitalista que equivale o tempo ao dinheiro. A voz do coelhinho de Alice não cessa de nos atormentar: “é tarde, é tarde”… Estamos sempre em atraso. Ao mesmo tempo, somos confrontados com os efeitos do tempo em nosso corpo biológico e convocados a responder ao apelo social da supervalorização de uma eterna juventude. A quantidade e a velocidade frenética com que circulam as informações não deixam de impactar as subjetividades de nossa época. Se esses fatores são vistos por alguns como motivos suficientes para provocar a angústia existencial, para a psicanálise, a angústia provocada pelo tempo é de outra ordem.

Éric Laurent (2017), no editorial da Revue de la Cause freudienne, número 26, dedicada à temática do tempo, diz que a psicanálise captura seu objeto na incidência (do tempo) sobre a diferença dos sexos, no ponto onde esse faz sintoma. Ou seja, antes de considerar o tempo em sua relação direta com a angústia, a psicanálise considera o ponto onde se inscreve como linguagem e o modo como se dá essa inscrição.

Então, podemos dizer que o impacto clínico do tempo para a psicanálise se solidifica no ponto onde esse faz sintoma. Se revela, por vezes, na forma mais peculiar da inscrição significante e seus paradigmas recorrentes de acordo com as estruturas clínicas.

Se a medida do tempo é verificada de forma objetiva — da mesma maneira que se dá a medida do espaço, por uma norma que dita o número de instantes dentro de uma duração finita —, tal convenção não é reconhecida pelo inconsciente: “O inconsciente não conhece o tempo”. Essa assertiva de Freud está escrita no texto “A interpretação dos sonhos” e é retomada e desenvolvida com requintes em seus textos metapsicológicos de 1915, “O inconsciente” e “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”. Nestes, o conceito de regressão temporal é substituído e faz contraponto ao conceito de regressão topográfica. Temos, então, o inconsciente, o pré-consciente e a consciência, cada um regido por regras próprias. Enquanto o tempo inscreve suas marcas junto com a linguagem e com a representação das palavras no pré-consciente, no inconsciente o tempo é eterno, compatível com o tempo imemorial do mito. Assim, ele recebe a descrição topográfica não como uma medida cronológica de dados de memória, e sim como espaço deformado em torno de buracos e substituições de traços desordenados de memória.

A tese freudiana sobre o tempo e o inconsciente permitiu que Lacan desenvolvesse o estatuto lógico dessas cadeias de memória e estabelecesse como a única medida conhecida pelo inconsciente: o falo. Este não determina a identidade sexual, mas permite o cálculo de uma identificação.

Dessa forma, o ensino de Lacan apresentará as modalidades de articulação da memória inconsciente e o aparecimento temporal do sujeito: buracos de memória, defeitos de medida temporal, persistência inquietante, esquecimentos marcantes, esquecimentos de esquecimentos. Todas essas lacunas e tropeços são materiais que denotam uma lógica do tempo em psicanálise.

Encontramos essa lógica formulada em três momentos distintos do ensino de Lacan. A primeira vez, em seu sofisma “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. Mais tarde, em suas fórmulas na lógica da alienação e separação, no fechamento e abertura do inconsciente (Seminário 11), e, finalmente, em sua topologia com o título de um seminário que reúne as duas dimensões do espaço e do tempo: “A topologia e o tempo”, o último proferido por Lacan, ainda não estabelecido. Retomaremos esses momentos mais adiante, ao articulá-los ao inconsciente, porém não antes de fazer uma certa digressão, na qual tentarei precisar o termo “inconsciente a céu aberto”.

Habitualmente, os analistas utilizam o termo “inconsciente a céu aberto” quando se referem ao inconsciente psicótico. Face à adjetivação do inconsciente freudiano, ao lado do inconsciente transferencial e inconsciente real, mais do que nunca, é tempo de empenharmos em um programa de pesquisa para delimitá-los. Pois Freud, ao descobri-lo, não o fez, embora deixasse pegadas a serem rastreadas e sistematizadas.

O termo “inconsciente a céu aberto” surge em meados dos anos 50, em seu Seminário 3: as psicoses. Na lição de 14 de dezembro de 55, ao se referir a uma apresentação de paciente, Lacan diz que aquele caso clínico “fazia o inconsciente funcionar a descoberto” (1985, p. 73). Cabe pontuar que o texto original francês diz “jouer à ciel ouvert” (ibid., p. 71), equivalente a jogar, representar, funcionar a céu aberto. É interessante notar que Lacan se serve de um caso de neurose para apresentar o tema. Esse paciente, em sua dificuldade de entrar no discurso psicanalítico, fazia o inconsciente funcionar a céu aberto, porque “tudo o que em outro sujeito haveria entrado no recalque, encontrava-se nele suportado por uma outra linguagem” (ibid., p. 73). O motivo desse funcionamento é que ele fora criado em Paris por pais que falavam entre si um dialeto corso. O paciente acabou aprendendo duas línguas e, com isso, criou para si dois mundos: um familiar e outro compartilhado com o mundo externo. Esse dialeto acabou se tornando seu mundo familiar, um dialeto em que se depositavam todas questões relacionadas a sua infância. Para esse paciente, Lacan equivale o dialeto corso ao sintoma como expressão do recalcado, no caso do neurótico. Logo adiante, na mesma lição do seminário, recorre ao texto de Schreber e diz este “faz o mesmo sem necessitar de um dialeto”. Ele escreve claramente o que se passa em seu sistema delirante usando palavras do idioma que é conhecido por todos. Aqui, sim, podemos falar do inconsciente a céu aberto enquanto uma forma específica de estruturação do discurso, no qual o sujeito se localiza fora dele e é invadido, habitado e tagarelado pelo Outro.

Interessante notar que Freud tomou o modo de funcionamento do esquizofrênico para avaliar e validar as teorias do inconsciente e o suplemento metapsicológico à teoria do sonho, ambas de 1914. Segundo Freud, há uma peculiaridade de funcionamento do esquizofrênico: tratar as palavras como coisas. Não há uma comunicação entre as representações das coisas e das palavras. A leitura de Freud por Lacan, pela sua teoria do significante, permitiu dizer que há algo na constituição subjetiva do psicótico que não foi simbolizado: “o que fora rejeitado (do interior) do simbólico retorna no (exterior) no real” (1985, p. 158). A alucinação é o exemplo mais claro disso. “No real” não deve ser entendido como localização, e sim como modalização, ou seja, maneira como algo se apresenta: com um caráter de intrusão e de “céu aberto”. Não se trata, no caso da psicose, de o inconsciente ser mais primitivo, mais original ou infantil. É porque, nessa estrutura, o que o neurótico peleja para velar apresenta-se ali com mais clareza.

Na entrevista[1] sobre o tema das psicoses ordinárias, concedida a Jacques Munier, Éric Laurent (2017) responde:

Jacques Munier: Interpretar a psicose é ter um olhar sobre o inconsciente a céu aberto…
Éric Laurent: Sim, é um inconsciente cujo céu não está coberto pelo que Freud chamou de o complexo de Édipo. O essencial já não é a tragédia de Sófocles, onde o menino quer matar seu pai para ter sua mãe pra ele sozinho e dormir com ela… É, além disso.
M.:O Nome-do-Pai?
É. L.: Sim, este Nome-do-Pai faz um ponto de amarração, um ponto de capitón, diz Lacan. Mas é precisamente esse ponto que não existe na psicose. Então, como é que isso para? Como funciona a certeza que existe na psicose? É assim que se faz a passagem da psicose extraordinária para a psicose ordinária”
(Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2017/10/22/a-psicose-ordinaria-1/?lang=pt-br).

Importante notar que Éric Laurent correlaciona o inconsciente a céu aberto à ausência do Nome-do-Pai, sintetizando todo o esforço empreendido por Lacan ao longo do Seminário 3 e no escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Lembremos que o significante Nome-do-pai é a leitura lacaniana do Édipo freudiano. Um significante capaz de instituir a linguagem como discurso para o sujeito (entrada do sujeito no simbólico) e possibilitar a função fálica. Podemos considerá-lo um divisor de águas entre as estruturas neurose e psicose. É o que Lacan (1957/1998, p. 582) formula em “De uma questão preliminar…”:

“[…] é num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere a psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose”.

Ao definir o mecanismo da Verwefung (foraclusão), Lacan destaca uma temporalidade peculiar à estruturação psicótica. O termo jurídico foraclusão implica, precisamente, a impossibilidade de fazer uso de um direito quando não exercido no prazo prescrito.

O modo de negação colocado em jogo na Verwefung destrói a coisa no momento mesmo em que a faz existir: “Não só exclui as possibilidades vindouras e fere o futuro, mas também expressa um desejo que lesa o passado” (RABINOVITCH, 2001, p. 19).

Ao se defrontar com a não-inscrição da metáfora paterna como ponto de basta, o psicótico estaria submerso em um abismo temporal, desprovido de balizas simbólicas, pois não ocorre uma ordenação possível no nível da cadeia significante. Nas psicoses, estaríamos confrontados com tal infinitização, estando o tempo do significante eternizado.

Diante dessa dimensão temporal fundante, na qual encerra a possibilidade de que, entre o campo do sujeito e do Outro, possa se estabelecer um intervalo pulsátil, um ritmo capaz de colocar em cena certa duração no tempo, encontramos na psicose a impossibilidade de escansão da voz materna, do Outro primordial, pois não houve a simbolização da ausência da mãe.

Lacan formula a noção de inconsciente enquanto instância pulsátil, intrinsecamente subjugada à dimensão temporal, no Seminário 11, em que podemos ler: “Vocês compreendem que, se lhes falei do inconsciente como do que se abre e se fecha, é que sua essência é de marcar esse tempo pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido” (LACAN, 1964/1988, p. 188). Nota-se uma temporalidade atrelada ao movimento no circuito pulsional. Segundo Lacan, “a transferência é o meio pelo qual se interrompe a comunicação do inconsciente, pelo qual o inconsciente torna a se fechar” (p. 125). Assim, a transferência atualizaria o ponto de fechamento do inconsciente, onde a interpretação do analista incide no ponto onde o inconsciente já fizera a interpretação. O movimento pulsátil do inconsciente — abrir e fechar — permite a criação das suas formações pelo neurótico: sintomas, atos falhos, sonhos e chistes, além das resistências durante a análise. No psicótico, a falta da barra proporcionada pela foraclusão do Nome-do-pai impede esse fechamento. Daí a articulação com a proposta de Lacan de um inconsciente a céu aberto, na perspectiva de um tempo eternizado.

No Seminário 3, Lacan indicará uma maneira do psicótico já desencadeado colocar a barra, por uma via diferente daquela do neurótico, e recobrir o inconsciente. Na falta da metáfora paterna (foraclusão do Nome-do-pai no simbólico), resta a construção de uma metáfora delirante, que cumpriria essa função. É o que nos mostra Schreber em seu texto retomado por Lacan. A metáfora delirante “A-Mulher-de-Deus” é construída como uma solução elegante que dará sentido a uma série de fenômenos alucinatórios invasivos e delirantes. Essa solução também fará uma escanção no tempo infinito do delírio e organizará o campo da realidade para o sujeito. Com essa feita, o tempo, para Schreber, pôde ser demarcado: tempo para escrever o livro; cuidar de seus afazeres sociais e familiares; entregar-se aos caprichos divinos etc. Cabe ressaltar que esse trabalho de Schreber não foi favorecido por um laço transferencial com um analista. A transferência nas psicoses é complicada, dado que não é instaurada no tempo do fechamento do inconsciente e, dessa forma, não se estabelece a posição do sujeito suposto saber. Há que se conduzir o tratamento por parte do analista com bastante cautela, pois, no cerne da relação do sujeito, encontra-se a certeza do Outro gozador. A relação de Schreber com seu psiquiatra ilustra bem isso. Flechsig é tomado como perseguidor e acusado por várias atrocidades expostas pelo seu sistema delirante alucinatório. Mesmo assim, Lacan orienta os analistas a não recuar diante da psicose e localiza a posição que deverão assumir ao conduzir um caso dessa estrutura: o de secretário do alienado. Nessa época de seu ensino, Seminário 3, cabe à função de secretário, além de testemunhar as soluções delirantes, orientar o tratamento rumo à construção possível de uma metáfora delirante. Estamos aí no tempo do ensino de Lacan no qual ele prioriza o tratamento do real pelo simbólico.

O inconsciente psicótico sempre fora um ponto de estudo para Lacan, de Schreber a Joyce. No decorrer de seu ensino, a questão da loucura passou a ser abordada não mais como um déficit, mas a partir da forma original de linguagem.

Nos últimos anos de seu ensino, a ênfase dada por Lacan não mais será da partição entre as categorias de psicose extraordinária e neurose clássica. Será em um continuum que a questão será colocada. Lacan manterá o inconsciente e seus modos de distribuição nas categorias do real, do simbólico e do imaginário. Podemos resumir da seguinte maneira: o imaginário é o corpo; o simbólico são as palavras que se diz; e o real são os efeitos que tem o gozo no corpo e os acontecimentos que atravessam esse corpo tomado pela substância gozante. Não haverá mais a primazia do simbólico. Isso é o que nos aponta Laurent quando estende a função do Nome-do-Pai ao sentido topológico, como ponto de amarração, de capiton, para além das psicoses extraordinárias às psicoses ordinárias. Esse dado me parece muito importante, pois, assim sendo, nos permite estender características abarcadas pela noção de inconsciente a céu aberto incluindo, aí, o impacto específico do tempo aos sujeitos que constroem soluções de amarração para além — ou apesar — de estarem na condição de impossibilidade de acessá-lo (Nome-do-Pai enquanto significante). Laurent responde ainda sobre uma variante do “inconsciente a céu aberto” nas psicoses ordinárias ao se referir à relação com a linguagem de forma nua.

“É uma variante do ‘a céu aberto’ que Freud instalou. Não há mais proteção. Não há mais cobertura, não há mais garantias de que as palavras querem dizer alguma uma coisa, porque, em última análise, foi dito pelo pai, com a declinação do Nome-do-Pai e da tradição. Há uma conversação que não deve encerrar-se no fechamento delirante, mas sim permitir uma abertura, um percurso sobre o significado da experiência” (LAURENT, 2017, s/p.).

A partir desses referenciais, caberá ao analista atuar para além de ser o secretário do alienado, isto é, não mais conduzir o tratamento rumo à construção de uma metáfora delirante, e sim um saber fazer mais generalizado com as disrupções de gozo. Nesse sentido, espera-se do ato analítico a instituição, de maneira contingencial, de escanções temporais moderadoras de gozo em um inconsciente desprovido das amarras temporais condicionadas pela ausência do Nome-do-pai enquanto ponto de capiton.

 

 

 


Referências
ROBERT. Dictionnaire du français primordial. Paris. Dictionnaires Le Robert, 1986. Apresenta a expressão “a céu aberto” como uma das significações do verbete Ouvert: “disposto de maneira a deixar comunicar com o exterior. […] A céu aberto”. Em Francês, “Disposé de manière à laisser communiquer avec l’extérieur. […]. À ciel ouvert. p. 1751.
FREUD, S. (1915). “O inconsciente”. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIV, 1976.
FREUD, S. (1915). “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIV, 1976.
LACAN. J. (1957-1958) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Escritos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1955-1956) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1964-1965) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1988.
LAURENT, E. (2017). Entrevista. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2017/10/22/a-psicose-ordinaria-1/?lang=pt-br. Acesso em: 5 dez. 2019.
LAURENT, E. “Le savoir inconscient et le temps”. In: Revue La Cause freudienne, nº 26. Paris: fev. 1994. CD-ROM.
RABINOVITCH, S. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[1] Transcrita em português e estabelecida no jornal da FAPOL Lacan XXI, 22 out. 2017.



Crença e Nome-do-Pai – Alessandra Rocha

Resumo
O texto trata da relação entre os conceitos de crença e Nome-do-Pai buscando elucidar a proximidade e a intimidade entre eles. Evidencia de que maneira ambos tocam na questão do saber e da autoridade, bem como, na questão da verdade e da ficção e como se diferenciam.

Palavras-chaves: Crença, Nome-do-Pai, saber, verdade, ficção

Abstract
The text delas with the relationship between the concepts of bilef and Name-of-the-Father seeking to elucidate the proximity and intimacy between them. It shows how both touch the questiono f knowledge and authority, as well as the question of truth and fiction and how they differ from each other.

Keywords: Belief, Name-of-the-Father, knowledge, truth, fiction

 

Foto de Ric Rodrigues

 

 

ALESSANDRA THOMAZ ROCHA

Psicanalista, doutora em Psicanálise pela UFMG, membro da EBP/AMP 

 

A noção de crença está intimamente relacionada à questão da paternidade. Primeiramente, porque ela é uma invenção da sociedade, nos diz Margaret Mead (1971). Porém, é Jacques Dupuis (1989) quem nos conta a história dessa descoberta. A máxima do Direito romano Mater semper certa est, pater semper incertus est é algo que atesta tal fato. Nos dias de hoje, com a ajuda dos exames de DNA, as coisas ficaram mais óbvias, mas nem por isso mais fáceis: se a paternidade não fosse um problema, não haveria toda essa parafernália para lhe conferir uma certeza, ou uma garantia de verdade.

Mas qual é a relação entre os conceitos de crença, de ficção e de Nome-do-Pai? E a questão da mentira, o que ela carrega de relação com a verdade?

Parte-se do pressuposto que a crença, em suas várias acepções, é o que necessariamente permite o acesso a um saber, mesmo que ele se erga sobre um fundo fictício; que seja sobre uma verdade, ou mesmo sobre uma mentira. O que implica que, “não há saber algum que não se erga sobre um fundo de ignorância” (LACAN, 1997, p. 210).

Sabemos que a ficção pressupõe um lugar imaginário, que é um recurso do pensamento que suporta a contradição e que, por isso mesmo, não pode ser verificada. Já a crença é o que sustenta uma ficção. É o que permite que algo funcione; é o que funda uma autoridade. Assim, a crença numa autoridade, que pode ser representada pela figura do pai, por exemplo, é o que assegura uma ordem. Logo, trata-se de fazer crer para se obter um poder, uma autoridade. A crença faz existir aquilo em que se crê. Esse é o seu segredo, seu poder.

Quanto à função do pai na psicanálise, sabe-se, desde Freud, que ela tem um caráter fundamental, que se constitui como ponto de central sob o qual a psicanálise se apoiou. Seu lugar na teoria psicanalítica é o de um fundamento, é o alicerce sobre o qual foi construída. É aquilo sobre o qual se apoia, seja sob um dado no domínio do ser (nesse caso, o fundamento é garantia ou razão de ser), seja sob uma teoria ou um conjunto de conhecimentos (logo, o fundamento é o conjunto de proposições de onde esses conhecimentos se deduzem)[2]. Tal como o fundamento de uma lei, um fundamento é uma ficção ordenadora que pressupõe uma crença para operar. Essa crença pode estar presente de forma positiva ou negativa, o que importa é sua presença. Na religião católica, por exemplo, o fundamento é uma revelação. Por conseguinte, toda a doutrina cristã se ergue a partir desse ponto. Desta forma, a revelação é a condição sine qua non da religião cristã.

No caso da psicanálise, o pai desempenha essa função. Ele tem valor de norma fundamental, de condição sine qua non da psicanálise, ponto de convergência que não deixa de ser uma ficção, já que não pode ser verificado. Freud, com o mito do pai primevo, assenta a pedra fundamental da psicanálise, construindo, a partir dele, um fundamento para a ideia do inconsciente. Portanto, não importa que esse fundamento seja um mito, uma revelação, um fato ou uma hipótese. O que importa é a crença nesse fundamento. Contudo, sabemos que o pai, na psicanálise, não se constitui como uma hipótese, mas como uma ficção. A ficção não tem uma relação necessária com a realidade, ela funciona “como se”, ou seja, não necessita de verificação. É diferente de uma hipótese, que pede verificação, pois pretende-se uma expressão do que é verdadeiro e real. A ficção é um desvio contingente da realidade que tem a função de pensar a origem do fundamento, de justificá-lo. Então, podemos dizer que o mito do pai é a origem do fundamento da psicanálise. O pai é a figura que sustenta o lugar de uma autoridade, e essa autoridade é o que assegura a ordem diante do desamparo e do sofrimento humano.

Não é por acaso que a antropóloga Margareth Mead, em seu livro Macho e fêmea, nos diz que “A paternidade é uma invenção da sociedade” (1971). E Jacques Dupuis, em seu livro Em nome do pai: uma história da paternidade (1989), vai justificar, por meio de dados históricos, alegando que é somente a partir do período neolítico que começa a se propagar a ideia da paternidade. Foi no quinto milênio, de acordo com sua própria datação, que os egípcios e os indo-europeus tomaram consciência do papel do pai na procriação. Antes desse período, as civilizações só conheciam as estruturas protofamiliares, centradas nas mães, com uma vida religiosa inspirada no tema da fecundidade feminina e numa vida sexual caracterizada pela livre satisfação do desejo. Só depois que as civilizações começam a se sedentarizar é que se começa a estabelecer a correlação entre a procriação e o ato sexual e, assim, tomar consciência da paternidade. Antes disso, ela era ignorada, pois os homens eram caçadores nômades. Foi a partir do momento em que as mulheres começaram a se fixar na terra por causa da agricultura, atividade criada e cultivada inicialmente por elas, que começaram a se organizar, aos poucos, o que chamamos de família. Assim, a história do pai, enquanto ficção ordenadora, tem uma origem a partir desse momento.

No que diz respeito às relações entre fé e crença, Freud nos dá sua versão. Distingue a crença da ilusão afirmando que podemos chamar uma crença de ilusão quando ela é motivada por uma realização de desejo e, portanto, não precisa ser confirmada pela realidade, quando não dá valor à verificação (FREUD, 1990, p. 44). Quando, em “O futuro de uma ilusão”, Freud discorre sobre a significação psicológica das ideias religiosas, sustenta que estas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa ou interna que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos, e por isso reivindicam nossa crença. Para ele, todo ensinamento exige uma crença em seu conteúdo, mas não sem produzir fundamentos que o justifiquem. Para Freud, os ensinamentos são apresentados como o resultado resumido de um processo mais extenso de pensamento baseado em observações e inferências.

Mas, com relação aos ensinamentos da religião, quando se indaga sobre seus fundamentos, deparamo-nos com três respostas que se complementam. A primeira é que devemos crer porque nossos antepassados primitivos já acreditavam nesses ensinamentos, entretanto, nossos antepassados eram muito mais ignorantes do que nós. A segunda, porque possuímos provas escritas que nos foram transmitidas desde os tempos primitivos — mas Freud justifica que, nas provas que nos deixaram, estão registrados escritos cheios de contradições, revisões e falsificações, que são os livros sagrados, e, além disso, as palavras escritas nesses registros se originam de revelações divinas. A terceira seria sobre a proibição de questionamento de sua autenticidade. Com relação a esse terceiro ponto, Freud nos diz que o próprio fato de não se poder questionar já desperta fortes suspeitas, afinal, uma proibição como essas só pode ter uma razão: a insegurança que essas reivindicações geram em relação às doutrinas religiosas. Caso contrário, poderiam ser colocadas à prova de quem quer que deseje chegar a tais convicções.

Por conseguinte, não há como provar a verdade das doutrinas religiosas. E é por isso que ela necessita da fé. Talvez possamos dizer que esse seja mais um dos equívocos de Freud, o de pensar que o fundamento precise ser verificado para ser válido. E é por isso que ele deprecia a religião com relação à ciência. Mas nós, mais de cem anos depois dele, sabemos que o problema não está aí, e ele, apesar desse equívoco, segue adiante.

Freud menciona duas tentativas que foram feitas para se fugir ao problema da prova diante da tentativa de verificação da crença: “uma, de natureza violenta, é antiga; a outra, é sutil e moderna” (1990, p. 40). A primeira é o “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo), de Tertuliano[3], aquele que foi o primeiro e mais importante escritor eclesiástico da língua latina, também padre da igreja católica. Essa tentativa sustenta que

[…] as doutrinas religiosas estão fora da jurisdição da razão — isto é, acima dela. Sua verdade deve ser sentida interiormente e não precisam ser compreendidas. Logo, esse credo só tem interesse como autoconfissão. Como declaração autorizada, não possui força obrigatória. […] Acima da razão não há tribunal ao qual apelar (FREUD, 1990. p. 40).

A segunda tentativa para fugir do problema da prova é efetuada pela filosofia do como se, que assegurava que “nosso pensamento inclui várias hipóteses cuja falta de fundamentos, e até mesmo absurdidade, compreendemos perfeitamente. São chamadas de ficções, mas por várias razões práticas, temos que nos comportar como se nelas acreditássemos” (FREUD, 1990. p. 41). Freud admite que as doutrinas religiosas, apesar de serem ilusões, são de grande importância para a sociedade. Mas o que ele se pergunta é: de onde surge a força dessas doutrinas? E a que se deve sua eficácia, já que elas não dependem do conhecimento pela razão?

Verifica que as ideias religiosas são transmitidas como ensinamentos, entretanto, não passam de ilusões que permitem a realização dos mais fortes e antigos desejos da humanidade. Ele deduz que o segredo de sua força, sua eficácia, reside na força desses desejos humanos. Ao chamar as ideias religiosas de ilusões, esclarece que ilusão não é a mesma coisa que um erro. O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. As ilusões também se diferem dos delírios, uma vez que estes últimos se encontram necessariamente em contradição com a realidade. As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Uma crença pode ser chamada de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator decisivo em sua motivação e quando suas relações com a realidade são desprezadas. Ou quando, tal como a própria ilusão, não dá valor à verificação. Assim, Freud conclui que as doutrinas religiosas são crenças que se constituem como ilusões, que, por sua vez, não são suscetíveis de prova. Para ele, a via do conhecimento científico é a única que pode levar ao conhecimento da realidade externa a nós mesmos. Acredita ser uma ilusão apostar na intuição ou na introspecção, já que elas são apenas detalhes da nossa vida mental e difíceis de interpretar. Então, afirma que a essência da atitude religiosa se constitui na busca de um remédio para a impotência e a insignificância do homem diante do Universo. Por isso, a crença nas doutrinas religiosas é necessária à civilização, para apaziguar o sofrimento das pessoas já que a ciência, sozinha, não basta ao homem. Reconhece que as necessidades imperiosas do homem jamais poderiam ser satisfeitas pela “frígida ciência”, pois “a razão pouco pode fazer contra os impulsos apaixonados” (FREUD, 1990. p. 56). Percebe-se, assim, como Freud não pôde ir mais além do pai e como Lacan foi necessário para manter a atualidade da psicanálise diante dos impasses da clínica e para fazer entender por que a psicanálise pressupõe uma crença.

Na clínica, verifica-se que, normalmente, quando um paciente procura por um analista, ele já tem algum tipo de crença, pois a transferência pressupõe uma crença. Se não há crença no analista, enquanto Sujeito-Suposto-Saber, o paciente encontra dificuldades de chegar até ele. Sabe-se também, pelos ensinamentos de Lacan, elucidados por Jacques-Alain Miller, que há a transferência negativa, que pode ser uma outra via de acesso ao analista, e se dá quando este está sob suspeita. Nessa situação, o paciente hesita, tem dúvidas, desconfia do analista, tenta verificar se sua crença pode ser confirmada. A suspeita se situa num nível intermediário entre o saber e a crença (MILLER, 1999, p. 15–16). Miller (1999) ressalta que a suspeita se manifesta quando não se está seguro de alguma coisa ou de alguém; quando há algo que não se sabe, mas que se antecipa como mal, como negativo. É um grau inferior de saber, não demonstrável, que, por isso mesmo, é insistente. É uma crença sustentada na desconfiança. O que há em comum entre a desconfiança e a confiança é a antecipação, pois ambas vão além do que se sabe e do que se pode provar.

De acordo com Lacan, que toma esse conceito a partir de sua origem grega, pode-se perceber como a diferença entre fé e crença é uma questão de nuance. E, assim, pode-se também dizer que a filosofia inglesa, com Hume — na qual a crença passa a ser impressão, hábito, sentimento, a partir do momento em que adquire uma unidade, e não mais se apresenta em termos de nuances — constrói as bases para o triunfo do discurso da ciência, que é o que se presencia nos dias de hoje e que faz da probabilidade a garantia de uma verdade. Logo, o desenvolvimento do discurso da ciência coincide com a queda do Nome-do-pai, com a morte de Deus ou fim da crença, enquanto possibilidade de acesso a um saber sobre uma verdade.

Para Lacan, a verdade tem estrutura de ficção, tomando como referência os estudos de Jeremy Bentham (1997, apud, LAIA, 2005), para quem uma entidade fictícia não é uma entidade imaginária enganosa pelo fato de a linguagem fazer existir a ficção — o que faz com que a ficção não dependa de uma realidade, mas da linguagem. Logo, se o inconsciente, para Lacan, tem a estrutura de uma linguagem, pode-se dizer que ele também tem um caráter de ficção.

Finalmente, pode-se perceber como e por que é preciso crer no Nome-do-Pai, ou no sinthoma, mesmo que essa crença não seja uma certeza, uma convicção, ou algo tomado como verdadeiro. A partir do momento em que constatamos que há vários níveis de crença, podemos perceber que, entre o sim e o não, entre uma verdade e uma mentira, há uma crença, que, de acordo com seu grau, pode nos levar de um ponto a seu oposto — o que permite entrever como a crença se relaciona com o Real e com o semblante. E, por conseguinte, porque é preciso, segundo Miller, acreditar no Nome-do-Pai para poder prescindir-se dele. É preciso de uma fantasia, de um mito, mesmo que delirante, para que um sujeito do inconsciente possa ex-sistir enquanto sinthoma. Sabemos que, para Lacan, a diferença entre crença e fé é sutil. Por isso, vai examinar o funcionamento da fé na experiência religiosa, tal como Freud o fez.

Numa análise, o analisante deposita sua confiança no analista — não na pessoa dele, e sim no Sujeito-Suposto-Saber, que opera enquanto objeto a. É essa crença que instaura a transferência e permite a produção do inconsciente do analisante. Para Lacan, a fé é algo verdadeiro que não tem nada a ver com o Real. Por isso faz equivaler a psicanálise com uma forma moderna da fé. A religião, para Lacan, é marcada pelo esquecimento. Daí a existência dos sacramentos, que têm a função de renovar um pacto esquecido, através dos rituais, da repetição. “A verdade pelo decreto dos deuses se esquece” (LACAN, 1964, p. 239). Uma análise é marcada por um esquecimento semelhante, porém opera a partir dele, do recalque, levando em consideração o dizer que se encontra mais além da fala. O esquecimento está relacionado ao “dizer que ultrapassa o dito” (LACAN, 2003, p. 483), pois “que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve” (LACAN, 2003. p. 448)

Lacan interroga Freud para tentar saber o que faz um pai. Qual é a função do pai em Freud? O que é um pai?

Responde que é um nome que implica a fé, é um sinthoma. A hipótese do inconsciente supõe um Nome-do-Pai, que significa supor Deus. Porém, essa hipótese da existência de um grande Outro, da existência de Deus, serviu não somente para promulgar a lei, mas para garantir o sentido. Contudo, como estamos impossibilitados de dizer o verdadeiro sobre o real, que é sem-sentido, que faz barra sobre o dizer, para que seja pensado um saber no real, Lacan precisou buscar, na topologia, uma maneira de tentar formalizar o inconsciente e sua lógica; foi mais além do sentido, buscando elucidar a lógica do real. Ele encontra, assim, no nó borromeano, uma resposta para suas dificuldades de formalização, que não poderia ser bem transmitida apenas pela letra ou pela linguagem. Ele formula o nó borromeano de três termos — simbólico, imaginário e real. Mas esse nó não responde ao enigma sobre a foraclusão, pois foi construído sob as bases referenciais do complexo de Édipo. Por isso, mais tarde vai chegar ao nó borromeano de quatro termos, no qual o Nome-do-Pai vem a se somar ao simbólico, ao imaginário e ao real. Nesse quarto nó, o do pai, o sujeito precisa crer para que funcione, isto é, o Nome-do-Pai, ou o Sinthoma, é um utensílio que funciona como operador lógico, que permite que o sujeito acredite num sentido, em algo que faça função de ordenador, concedendo o funcionamento do semblante. Permite que se torne possível o acesso a uma verdade, a um saber inconsciente, que não deixa de ser um golpe de sentido, um semblante, ou um sens-blant (FONTENEAU, 2005, p. 34).

Portanto, a crença está no âmago da experiência analítica, mesmo que muitas vezes enquanto fé, pois o que está em jogo é a implicação do sujeito na cura. Ela está presente em todo sujeito no sentido de tomar-como-verdadeiro, associada tanto ao saber quanto ao não saber; associada ao ato psicanalítico tanto no neurótico quanto no psicótico, com a única diferença de que, neste último, ela aparece de forma invertida, isto é, enquanto descrença (Ibid.).

Por fim, é importante salientar que a descrença para Lacan é o Unglaben, que não é a supressão da crença nem a negação da fenomenologia do Galuben, da crença, que foi a obsessão de Freud até o final. “É um modo próprio da relação do homem com seu mundo e, na verdade, aquele no qual ele subsiste” (LACAN, 1959-60, p. 163). Para Lacan, a crença pressupõe a divisão do sujeito, pressupõe uma Verdrangung, um recalque da coisa. Logo, quando não há crença — e o exemplo que ele dá aqui é o do discurso da ciência —, e sim descrença, o que está em questão é a rejeição da coisa no sentido próprio da Verwerfung (Idem, p. 164). Segundo Lacan, o discurso da ciência rejeita a presença da coisa, pois pressupõe o ideal do saber absoluto, de algo que estabelece, apesar de tudo, a coisa, mas não a leva em conta. Ressalta que o discurso da ciência é determinado por essa Verwerfung. Assim, entendemos a aproximação entre Unglauben e Verwerfung, de acordo com o uso que Lacan faz deles, no sentido de que a descrença seria um repúdio da crença e, portanto, correlativo da rejeição. Podemos constatar isso pela seguinte citação:

No fundo da própria paranoia, que nos parece no entanto toda animada de crença, reina esse fenômeno de Unglauben. Não é o não crer nisso, mas a ausência de um dos termos da crença, do termo em que se designa a divisão do sujeito. Se não há, de fato, crença que seja plena, e inteira, é que não há crença que não suponha, em seu fundo, que a dimensão última que ela tem que revelar é estritamente correlativa do momento em que seu sentido irá desvanecer-se (LACAN, 1964, p. 225).

 

 

 

 


Referências
BENTHAM, J. De l’ontologie et autrestextessurlesfictionsParis: Seuil, 1997.
DUPUIS, J. Em nome do pai: uma história da paternidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1989.
ENCYCLOPEIE UNIVERSALIS. Versão eletrônica, 2005.
FREUD, S. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: ESB, v.21. 1990.
FONTENEAU, F. “Crença”. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai. AMP. Textos preparatórios para o congresso de Roma, 2005.
LACAN, J. (1959-1960) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
LACAN. (1973) “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAIA, S. “A mentira e o Nome-do-Pai”. In: Scilicet dos Nomes-do-PaiOp. Cit.
MEAD, M. (1949). Macho e fêmea. Petrópolis: Editora Vozes, 1971.
MILLER, J-A. “La transferencia negativa”. Seminário sobre a política da transferência. Escuela del Campo Freudiano de Barcelona. 1ª edición, Barcelona, 1999.
[1] Texto inédito apresentado na “Sessão Literária” da Biblioteca da EBP-MG, no dia 13/3/2006, que teve como tema de debate “crença e nomes-do-pai”. Uma versão modificada deste texto compõe parte do subitem “A crença no Pai: a construção do conceito de Nome do Pai e seu uso”, de minha dissertação de mestrado “A lógica do Sacrifício e suas consequências”. UFMG, 2006.

[2] Conforme definição do dicionário Aurélio. Séc.XXI. versão eletrônica.

[3] Tertuliano nasceu em Cartago, no ano 155 d.C., e lá exercia sua profissão de advogado, quando, em 193, converteu-se ao Cristianismo, passando a exercer também a atividade de catequista junto à Igreja. Sua inteligência e sólida formação jurídica foram claramente demonstradas em Contra Práxeas, sua obra mais importante, escrita no ano 197 e dirigida aos governantes do Império Romano. Ali, ele defende os cristãos, apelando por seu direito de liberdade religiosa perante o Império Romano cruel e perseguidor. Seus argumentos são expostos de forma lógica e polêmica, visando ao convencimento das autoridades a quem é dirigida, questionando a “justiça” aplicada contra os cristãos, transportando a apologética do terreno filosófico para o jurídico.




A religião e a verdade – Frei Betto

ALMANAQUE ENTREVISTA FREI BETTO*

 

 

Foto do Museu Mineiro

 

 

ALMANAQUEO que levou o Brasil — que, até a década de 80 do século passado, era considerado o maior país católico do mundo — ao momento atual, no qual há um crescente aumento da filiação evangélica? De acordo com um estudo do IBGE sobre transição religiosa, em 2030, a população católica será menor do que a evangélica.

FREI BETTO: Em 1950, os católicos representavam 93,5% da população; os evangélicos, apenas 3,4%. Nos últimos 70 anos, a percentagem de pessoas que se declaram católicas caiu rapidamente e chegou a 64,6% em 2010. No mesmo período, os protestantes (históricos, pentecostais e neopentecostais) cresceram e atingiram 22,2% (2010). Houve também crescimento de outras religiões (como espíritas, etc.) e do percentual de pessoas que se declaram sem religião. Em fins de 2018, os evangélicos aglutinavam 34% da população.

Vários fatores explicam essa mudança: o clericalismo, que, na Igreja Católica, dificulta o protagonismo dos leigos (para formar um padre, são necessários quatro anos de filosofia, quatro de teologia e a heroica virtude do celibato, enquanto, para formar um pastor, bastam oitos meses — e ele pode ter família); a desvalorização das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), sob os pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, ao longo de 34 anos; a rede de proteção social que os evangélicos promovem junto às famílias mais pobres etc. As igrejas evangélicas tendem a crescer onde o Estado se faz ausente, em especial quanto aos serviços de saúde.

A: Em uma entrevista concedida em 2016, o filósofo francês Jean Rancière disse que “a política não tem nada a ver com a política dos políticos, das intrigas palacianas, das negociações de gabinete e disputas de poder”. Segundo Rancière, ela é “uma forma de ação de subjetivação coletiva para construir um mundo em comum”, que inclui aqueles que têm posições político-ideológicas diferentes, visando a criar um “nós aberto e includente, que fala de igual para igual com o adversário”. Assim, ele propõe que, ao contrário de nos determos no antagonismo de populistas versus democratas, “o melhor remédio é a ação política autônoma em relação aos lugares, ao tempo e a agenda estatal […] como antídoto ao mal-estar na civilização”, ou seja, contra a onda atual de ódio e segregação. Diante do avanço do que você chamou de “confessionalização da política” e de seus desdobramentos nocivos para a democracia, que ações, nesse sentido, a Igreja Católica poderia tomar?

FB: O papa Francisco se empenha em reformar a Igreja Católica, essa entidade milenar que, hoje, tem uma cabeça progressista e um corpo conservador. Penso que nenhuma Igreja deva apoiar ou rejeitar um governo. O papel da Igreja é estar ao lado do povo, da maioria, sobretudo dos desamparados. Se o governo serve a eles, serão positivas as relações Igreja-Estado. Se não serve, serão conflituosas.

Rancière faz eco ao que já disseram Platão e, sobretudo, Aristóteles, sobre a função da política. Ocorre que a política, após a queda da monarquia medieval, foi apropriada pela burguesia industrial e financeira e, hoje, serve aos interesses dela, exceto em um país como Cuba. O papel da Igreja Católica e de todas as instituições da sociedade civil é reforçar isso que Rancière chama de “ação política autônoma”, que defino como empoderamento popular, objetivo que se alcança reforçando os movimentos sociais que lutam por conquista e defesa dos direitos humanos e da Terra.

A: Em seu artigo “A ciência e a verdade”, Lacan afirma que o religioso é aquele “que entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto de sacrifício”. Em outros termos, o que o sujeito demanda é tomado como o desejo suposto de um Deus. Numa época em que várias lideranças cristãs se valem da prática de propagar notícias falsas entre seus fiéis, como pensar essa relação entre a Religião e a Verdade? De que verdade aí se trata, quando o que está em jogo passa, como você declarou, por uma servidão voluntaria à determinada doutrina ou a líderes religiosos?

FB: Penso que Lacan faça eco a Freud, que, por sua vez, não ficou totalmente imune ao positivismo que exerceu tanta influência na cultura da esquina dos séculos XIX e XX. E, no entanto, o avanço do conhecimento científico não fez retroceder o fenômeno religioso, pelo contrário.

Quem tem acesso à verdade? O ateu mais do que o crente? Como disse um chinês da década de 1910, após ouvir um padre pregar “a verdade”, existem três verdades: a sua, a minha, e a verdade verdadeira. E nós dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira.

Embora nem tudo seja política, a politica está em tudo. Ela é um jogo de interesses. E em uma sociedade tão desigual, um jogo de interesses antagônicos. Os fiéis que pregam notícias falsas, em sua maioria, não sabem que elas são falsas. Como cordeiros a serem tosquiados, acreditam piamente na palavra do pastor ou do padre e, assim, convictos de que ele nunca mente, divulgam o que ele afirma.

Enquanto a Ciência é o reino da dúvida, a Religião é o da certeza. E verdade e autoridade se confundem. Por isso, nós cristãos ou religiosos de qualquer confissão devemos ter como referência não uma verdade abstrata, mas o ídolo de Deus: o ser humano. Pilatos perguntou a Jesus, ao interrogá-lo: “o que é a verdade?”. E Jesus se manteve calado, possivelmente por considerar que não valia a pena “atirar pérolas aos porcos” (expressão do próprio Jesus). Treze séculos depois, meu confrade, Santo Tomás de Aquino, deu uma brilhante e irretocável resposta: “A verdade é a adequação da inteligência ao real”. E o real, acrescento eu, é o que vemos em volta: o ser humano reduzido a mera mercadoria descartável. Tudo o que Jesus propõe no Evangelho e nos engajarmos no resgate da dignidade humana.

 

Por Giselle Moreira, Ludmilla Féres Faria e Patrícia Ribeiro

 

 

 


 

* Carlos Alberto Libânio Christo, ou Frei Betto, nasceu em Belo Horizonte. Ë frade dominicano, jornalista e escritortendo publicado diversos livros. Em 1983 recebeu o prêmio Jabuti por seu livro Batismo de Sangue, posteriormente transformado em filme dirigido por Helvécio Ratton. Frei Betto recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Assessorou vários governos socialistas, em especial Cuba, nas relações Igreja Católica-Estado.




As religiões vêm no lugar das adições – Marie Hélène Brousse

ALMANAQUE ENTREVISTA MARIE-HÉLÈNE BROUSSE

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Foto de Nelson de Almeida

 

 

ALMANAQUE: Temos hoje uma diminuição da crença e um aumento da fé. O que você poderia nos dizer sobre o crescimento das religiões, das seitas ultraconservadoras e do fundamentalismo?

MARIE-HÉLÈNE BROUSSE: O que a psicanálise pode dizer? Eu me lembrava de um pequeno texto de Lacan, o “Triunfo da religião” (LACAN, 2005).

Então, o que as religiões têm de novo? Elas são cada vez mais fundamentalistas. Não todas! Mas aquela que chama maior atenção sobre si neste momento, a religião muçulmana, é fundamentalista.

Quanto maior o saber científico — esse saber ligado à combinatória da escrita matemática, privada de sentido —, maior a aspiração a encontrar o sentido e, sobretudo, o sentido religioso. Há uma grande aspiração a encontrar o sentido e, mesmo que as religiões mudem, há sempre o sentido religioso. Agora, o que as religiões têm de novo?

Eu faço uma distinção nítida entre Deus, de um lado, e as religiões, de outro. As religiões são discursos de dominação: dos corpos, dos atos e do pensamento. A crença em Deus, a fé, é outra coisa. Deus é outra coisa, Deus é muito mais um enigma. Não há um crescimento de Deus, há um crescimento das religiões.

Vivemos em um período no qual isso que chamamos de modo de gozar, ou seja, todas as novas formas de satisfação, é aquele do Um sozinho. É como se fosse uma espécie de sede de marcas. As tatuagens, os piercings, as maneiras de customizar. Tudo isso são tentativas de fazer entrar os Uns sozinhos sobre a cena. Diante disso, as religiões tentam colocar uma ordem. As religiões vêm no lugar das adições. Aliás, há muitas assim! Os renascidos (born again), os arrependidos… Eles são todos ex-aditos do sexo, da droga, etc.

Então, a religião é uma solução que se propõe sob a mesma versão que as adições. É um vício legal.

A: Você disse isso em seu texto, “O temor a Deus libera de todos os outros” (2019, p. 135).

M-HB: Sim!

A: Como enfrentar o crescimento das políticas do medo, ou seja, o medo como instrumento para gerir os seres humanos, os estados religiosos?

M-HB: Como a psicanálise não é um discurso da dominação, não há nada a dizer sobre o fato de as pessoas serem religiosas ou não. É a escolha delas…

Eu vejo essa escolha como uma solução sintomática. A psicanálise não é antirreligião. Ela é fora da religião. Não é a mesma coisa, porque o sentido religioso é sempre o sentido sexual, e a psicanálise tem por objetivo fazer cair o sentido — o sentido sexual, evidentemente! E a metáfora e a metonímia e tudo isso…

Não há um cenário de combate ateísta na psicanálise. Trata-se de interpretar o grande A barrado como tentativa de vislumbrar um Outro, mais além do Outro da linguagem — o que as religiões fazem. Ou quer dizer o inverso, isto é, um tipo de vazio… nas nem todo mundo tem acesso a ele nem ao porquê. Há toda uma orientação na psicanálise antes de Lacan e depois de Lacan. Nós vimos isso no nosso país, a França, na ocasião do “Casamento para todos”, em que há toda uma orientação na psicanálise — que é uma orientação paternalista — que vai decididamente contra a modernidade e que combina perfeitamente com a ascensão das religiões. Acontece que a orientação lacaniana não vai nesse sentido. Se nós estamos mais-além do Pai, se vislumbramos ir mais-além do Pai em uma análise, forçosamente deixamos cair o Deus eterno. Mas não sob a versão do não ser tolo dele.

Enfim, é preciso suportar que as pessoas tenham necessidade disso para viver, por que não? Poder-se-ia transformar a religião em sinthoma. E a psicanálise é um outro sinthoma, diz Lacan.

A: A religião é o universal, quer dizer o “para todos”. É absolutamente uma criação da linguagem. Mas sob a versão do misticismo, do êxtase, é outra coisa! Temos, atualmente, além do crescimento de religiões, o interesse pelas filosofias orientalistas e espiritualistas… Como você percebe esse fenômeno?

M-HB: Como Freud de O futuro de uma ilusão: uma ilusão sempre do futuro! A religião é o futuro, mesmo que, como Freud o diz, ela seja uma ilusão. Mas é difícil fazer a diferenciação entre um semblante, de um lado, e uma ilusão, de outro. Enfim, a perspectiva freudiana é extremamente ateia. A posição de Lacan é mais complexa, puxa Deus mais em direção ao conceito de gozo do que em direção ao conceito de Lei.

 

 

Por Alessandra Thomaz Rocha
Novembro de 2019, São Paulo

Referências
LACAN, J. “O triunfo da religião”. Discurso aos católicos. RJ: JZE, 2005. (pp.55-83)
BROUSSE, M.-H. “To exorcise that Good Old God”. InMulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, Coleção Opção Lacaniana, v.15, 2019. pp. 129-144.
Transcrição e tradução: Alessandra Thomaz Rocha
Revisão : Lúcia Grosssi
 [Vídeo e áudio com a entrevista:  https://www.youtube.com/watch?v=Fj8En7amUCA&t=39s]



Glosa Sobre uma bússola – Antônio de Ciaccia

Resumo
Nas religiões monoteístas, há diferença entre crença e fé. A crença é uma opinião considerada verdadeira e a fé o efeito de um encontro entre um sujeito ou um povo com um Outro que lhe fala. No entanto, na psicanálise Lacan opera um deslocamento em relação ao pivô que organiza a fé. Esse ponto será a palavra enquanto tal e a única relação em jogo será a do sujeito com a palavra.

Palavras-chaves: crença, fé, palavra, psicanálise, religião

Abstract
In monotheistic religions, there is a difference between belief and faith. Belief is an opinion considered true and faith is the effect of an encounter between a subject or a people with an Other who speaks to them. However, in psychoanalysis Lacan operates a shift in relation to the pivot that organizes the faith. This point will be the word as such and the only relationship at stake will be that of the subject with the word.

Keywords: Belief, faith, Psychoanalysis, religion

 

 


Foto de Nelson de Almeida

 

 ANTONIO DI CIACCIA
Psicanalista, membro da ECF.

 

Entre todas as bússolas humanas (cf. MILLER, 2015), há uma que denota o homo religiosus: a fé. A palavra adquire uma conotação precisa no âmbito das três religiões monoteístas, a saber, de todos aqueles que seguem os passos de Abraão, que é “o pai de todos os que aderem” (Rm., 4,11).

As palavras para dizê-lo

No monoteísmo, se desdobram o sentido e a significação de uma verdadeira constelação que gira em torno do termo “fé”, e entram em jogo dois polos que nomearemos, para simplificar, o sujeito e o Outro.

Em geral, os termos “fé” e “crença” são usados como sinônimos, mas, enquanto a fé diz respeito a esses dois polos, a crença diz respeito a apenas um, o sujeito. De fato, a crença, encontrada em todo homem e em toda comunidade, implica uma opinião considerada verdadeira e segura. Ela diz respeito tanto ao indivíduo quanto à coletividade e se refere a noções ou conceitos cuja demonstração não pode ser produzida. Trata-se, em suma, de uma convicção de um sujeito ou de uma comunidade inteira em relação à existência de algo ou de alguém. Na maioria das vezes, no que diz respeito a assuntos religiosos, a crença está presente em toda teoria. A crença, definitivamente, está ligada ao pensamento.

A fé, ao contrário, é uma questão de palavra. É o efeito de um encontro de um sujeito ou de um povo com um Outro que lhe fala. Para permanecer na tradição judaico-cristã, é pela palavra que Yahvé se anuncia a Moisés (Ex., 3, 1-15), o qual irá lhe responder através de uma fé sólida (Hb., 11, 23-29), e, no Novo Testamento, em sua “Epístola aos Romanos”, São Paulo insiste na fé como efeito da palavra (Rm, 10, 17). Desde então, se toda fé comporta a crença, nem toda crença comporta a fé.

Partamos do texto bíblico. No Antigo Testamento há uma variedade de vocábulos que refletem a complexidade da atitude do crente e que, fundamentalmente, estão correlacionados a duas raízes: aman, que remete à firmeza e à certeza, e batah, que remete à confiança.

No século III antes de Cristo, os tradutores judeus da Bíblia para a versão grega, a Septante, tiveram que inventar os termos, pois os gregos acreditavam em deuses e não tinham palavras apropriadas para expressar a crença em um só Deus. Eles então traduziram a raiz –batah pelos termos elpis, elpizo, pèpoitha, que São Jerônimo fez, na versão latina, a Vulgate, por spes, sperare, confido, que foi traduzida em francês por “espoir”, “espérer”, “avoir confiance”, “se fier en[1]. A raiz –aman, ainda presente em nosso amém, foi traduzida em grego pelos termos pistispisteuoaletheia, em latim, na Vulgate, por fides, credere, veritas, e enfim, em francês, por “foi”, “croire”, “verité[2].

O estudo dos termos bíblicos apresenta, portanto, a fé segundo estas duas vertentes: por um lado, a confiança, colocada pelo sujeito, dirigida a esse Outro que lhe fala e que é fiel à sua palavra, e, por outro lado, um certo passo do sujeito que lhe permite aceitar essa palavra vinda do Outro, uma palavra que lhe dá acesso ao que São Paulo chama de “a prova das realidades que não se vê” (Hb., 11:1). Nas línguas romanas, o termo em latim fides está na origem do termo “fiel”, empregado em geral como sinônimo de crente. No texto bíblico, entretanto, esse termo é inicialmente uma prerrogativa de Yahvé, definido quando de sua revelação a Moisés como “rico em graça e em fidelidade” (Ex., 34, 6). A fidelidade (emet) quer dizer que a palavra de Yahvé não mente e não se retrata (Nm., 23, 19), embora não houvesse meios de discutir com ele, como o diz Jó em sua aflição (, 9,32). De fato, entre a palavra de Yahvé e a do homem, existe uma profunda imparidade, se quisermos utilizar um termo caro a Lacan. Se Yahvé é fiel, seu povo, ao contrário, oscila entre uma irredutível infidelidade, que o deixa surdo e cego (Is., 42, 18ss). Essa é a origem da cólera divina, pois a fidelidade que Yahvé exige de seu povo é que tenham um pacto de aliança (Jó, 24, 14). Finalmente, é pela contiguidade com a fidelidade divina que o homem pode se dizer fiel. No cristianismo, essa fidelidade é encarnada, por antonomásia, por Cristo.

No entanto, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o crente não pode ser fiel sem receber essa fides, essa fé, como um dom que lhe chega por parte de Deus, dom gratuito que provém de Yahvé, o Fiel, mas também aquele que é rico em graça (ben), uma outra das prerrogativas divinas. Esse termo, que se diz em árabe, no islã, pela palavra “misericordioso”, se tornou, em grego, Karis e foi traduzido em latim por gratia. É pela graça de Deus que o fiel recebe o dom da fé em Deus.

Vamos compartilhar esses termos de acordo com os dois polos da experiência religiosa. A graça é uma prerrogativa de Deus. A fé é um dom que a graça de Deus faz ao homem, que lhe permite aceitar a palavra de Deus, a saber, a revelação. De sua parte, o homem pode ser um homem de fé, ou seja, capaz de confiar na palavra de Deus, de ter confiança nele, como o profeta sugere (Jr., 17, 5-7), mas também de ser fiel a sua própria palavra: “Que vossa linguagem seja: Sim? Sim. Não? Não.” (Mt., 5, 37). Ora, essa confiança na palavra do Outro, a própria possibilidade de receber essa palavra, não deixa de ter uma prerrogativa, dessa vez, tipicamente humana, a humildade, cujo paradigma é dado por Moisés, “o homem mais humilde que a terra tenha criado” (Nm., 12, 3). Somente a humildade permite ao homem ouvir a palavra de Yahvé, “devorá-la em êxtase e alegria”, usando as palavras de Jeremias (Jr., 15, 16). “Confiança e humildade são de fato inseparáveis”[3], lembra o monge Marc-François Lacan.

E a psicanálise? Não há conexão…entre o sujeito e o Outro

Lacan, Jacques, desta vez, não sem conhecer essas indicações, vai operar um deslocamento essencial em relação ao ponto pivô que organiza a fé. Esse ponto deixa de ser a relação entre o sujeito e o Outro. Será a palavra enquanto tal, e a única relação em jogo consistirá, de agora em diante, essa do sujeito à palavra, “que se revela na questão do que falar quer dizer” (LACAN, 1998, p. 332–333). Todavia, é por uma “verdadeira” humildade (Ibid.) que cada um poderá acolher um discurso. No entanto, acolher o que o sujeito “quer dizer” já deixa claro que ele não o diz. Mas o que quer dizer esse “quer dizer” é uma dupla escuta que compete ao ouvinte: escutar o que o falante quer lhe dizer pelo discurso que lhe dirige ou o que esse discurso lhe ensina sobre a condição do falante.

Assim, não somente o sentido desse discurso reside naquele que o escuta, como é também de sua acolhida que depende quem o diz, ou seja, ou é o sujeito a quem ele dá sua confiança e autorização, ou é esse outro que lhe é dado por seu discurso como constituído. […] Ora, o analista apodera-se desse poder discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma segunda potência (Ibid. p. 331).

É, pois, a palavra que tem o poder de distribuir as cartas, embora os atores em jogo permaneçam os mesmos: o locutor e o ouvinte. Não é mais o poder de Deus, mas o poder da palavra enquanto tal que exige a humildade da acolhida, a confiança e a fé nela. E é em nome da palavra que o analista toma esse poder até o ponto que “ele impõe ao sujeito, no dito de seu discurso, a abertura própria da regra que lhe atribui como fundamental” (Ibid. p. 333).

O céu esvaziou-se do poder da palavra. Ela está esvaída e seu poder se reduz à relação que o homem mantém com ela. Da mesma maneira, Lacan desloca a constelação em torno da fé tal como declina a tradição religiosa no que chamamos virtudes teológicas: a fé, a esperança e a caridade. Da esperança, Lacan fala, em “Televisão”, respondendo pessoalmente a seu interlocutor, Jacques- Alain Miller, que lhe havia proposto as três questões retomadas por Kant do dominicano Agostinho de Dácia para a formação dos irmãos pregadores. Uma das quais foi formulada nestes termos: “O que me é lícito esperar?”. Sua resposta é: “Espere o que lhe aprouver” (LACAN, 2003, p. 540).

Ainda em “Televisão”, Lacan trata também da caridade. Falando do psicanalista e nomeando-o segundo o termo de “santo”, emprestado da tradição religiosa, ele diz que, como este último, o psicanalista “não faz caridade. Antes, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade” (Ibid, p. 518). Lacan joga com o equívoco e com os deslizamentos entre as línguas. Se a palavra “caridade” provém do latim, significa amor ao próximo que nos é carus e pode se abrir para uma reciprocidade que São Tomás de Aquino chama de amizade, retomando a philia aristotélica. O termo charitas também ressoa do termo grego Karis, que significa graça. O analista não se situa em relação a seu analisante do lado de quem faz caridade, que esbanja ao próximo um amor que seria um efeito do dom da graça. Tampouco precisa se situar como alguém que expande a graça feita ou não ao sujeito, salvo se for louco. Mas ele deve se ater ao que a estrutura da linguagem impõe, ou seja, “permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, tomá-lo como causa de seu desejo” (Ibid, p. 518).

Enfim, a fé. Lacan dirá que o analista não tem que tomar posição sobre a conveniência ou não de uma crença. Neste breve artigo, eu me referirei a uma passagem de Lacan na qual é esclarecida a utilização do verbo crer, limitando-me às significações de “croire à” e “croire en[4]. Esse verbo, assim utilizado, se situa, de fato, no cruzamento dos dois termos de fé e de crença, e pode se aplicar tanto a um quanto a outro. Essa possibilidade de mal-entendido inclusa na língua resultou em grandes disputas entre Roma, Lutero e Calvino no que concerne notadamente à exegese dos textos de São Paulo. Não é o mesmo dizer, por exemplo, que acreditamos “nos deuses” e de dizer que acreditamos “em Deus”. A expressão “croire à” quer dizer que o sujeito está convencido da conveniência de uma proposição, de uma descoberta ou de uma hipótese, enquanto que a expressão “croire en” quer dizer “ter confiança em”, “se fiar a”, portanto, ter a fé, entendida aqui como uma virtude teológica.

No seminário Mais ainda, Lacan, após ter falado da existência de Deus e de ter sido zombado pelos teólogos, pouco inclinados a crer nisso, exclama: “vocês vão ficar todos convencidos de que eu creio em Deus. Eu creio no gozo da mulher no que ele é a mais, com a condição de que esse a mais, vocês coloquem um anteparo antes que eu o tenha explicado bem” (LACAN, 1985, p. 103).

O céu esvaziou-se. Para o falasser, resta a função e o poder da palavra, sem outra garantia senão sua ocorrência, seja sua imanência.

 

Tradução: Maria de Fátima Ferreira
Revisão: Luciana Silviano Brandão

 

 


Referências

 

LACAN, J. “Variantes do tratamento-padrão”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
LACAN, J. “Televisão”. Outros escritos. In: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. O Seminário, livro XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
MILLER J-A. “Uma fantasia”. In: Mental, n. 15. fev. 2015.
[1] Em português, respectivamente, “esperança”, “esperar”, “ter confiança”, “confiar em”.
[2] Em português, respectivamente, “fé”, “crer”, “verdade”.
[3] Cf. deste autor os artigos “Confiança”, “Fidelidade”, “Alegria”, “Humildade”, Vocabulário de Teologia bíblica, Paris.
[4] Em francês, o verbo croire (crer) prevê as preposições “à” e “en”, cujo uso se adequa a variações semânticas. Em português, no entanto, utilizamos o verbo “crer”, como TI, apenas sob a regência da preposição “em”.