Crença e Nome-do-Pai – Alessandra Rocha

Resumo
O texto trata da relação entre os conceitos de crença e Nome-do-Pai buscando elucidar a proximidade e a intimidade entre eles. Evidencia de que maneira ambos tocam na questão do saber e da autoridade, bem como, na questão da verdade e da ficção e como se diferenciam.

Palavras-chaves: Crença, Nome-do-Pai, saber, verdade, ficção

Abstract
The text delas with the relationship between the concepts of bilef and Name-of-the-Father seeking to elucidate the proximity and intimacy between them. It shows how both touch the questiono f knowledge and authority, as well as the question of truth and fiction and how they differ from each other.

Keywords: Belief, Name-of-the-Father, knowledge, truth, fiction

 

Foto de Ric Rodrigues

 

 

ALESSANDRA THOMAZ ROCHA

Psicanalista, doutora em Psicanálise pela UFMG, membro da EBP/AMP 

 

A noção de crença está intimamente relacionada à questão da paternidade. Primeiramente, porque ela é uma invenção da sociedade, nos diz Margaret Mead (1971). Porém, é Jacques Dupuis (1989) quem nos conta a história dessa descoberta. A máxima do Direito romano Mater semper certa est, pater semper incertus est é algo que atesta tal fato. Nos dias de hoje, com a ajuda dos exames de DNA, as coisas ficaram mais óbvias, mas nem por isso mais fáceis: se a paternidade não fosse um problema, não haveria toda essa parafernália para lhe conferir uma certeza, ou uma garantia de verdade.

Mas qual é a relação entre os conceitos de crença, de ficção e de Nome-do-Pai? E a questão da mentira, o que ela carrega de relação com a verdade?

Parte-se do pressuposto que a crença, em suas várias acepções, é o que necessariamente permite o acesso a um saber, mesmo que ele se erga sobre um fundo fictício; que seja sobre uma verdade, ou mesmo sobre uma mentira. O que implica que, “não há saber algum que não se erga sobre um fundo de ignorância” (LACAN, 1997, p. 210).

Sabemos que a ficção pressupõe um lugar imaginário, que é um recurso do pensamento que suporta a contradição e que, por isso mesmo, não pode ser verificada. Já a crença é o que sustenta uma ficção. É o que permite que algo funcione; é o que funda uma autoridade. Assim, a crença numa autoridade, que pode ser representada pela figura do pai, por exemplo, é o que assegura uma ordem. Logo, trata-se de fazer crer para se obter um poder, uma autoridade. A crença faz existir aquilo em que se crê. Esse é o seu segredo, seu poder.

Quanto à função do pai na psicanálise, sabe-se, desde Freud, que ela tem um caráter fundamental, que se constitui como ponto de central sob o qual a psicanálise se apoiou. Seu lugar na teoria psicanalítica é o de um fundamento, é o alicerce sobre o qual foi construída. É aquilo sobre o qual se apoia, seja sob um dado no domínio do ser (nesse caso, o fundamento é garantia ou razão de ser), seja sob uma teoria ou um conjunto de conhecimentos (logo, o fundamento é o conjunto de proposições de onde esses conhecimentos se deduzem)[2]. Tal como o fundamento de uma lei, um fundamento é uma ficção ordenadora que pressupõe uma crença para operar. Essa crença pode estar presente de forma positiva ou negativa, o que importa é sua presença. Na religião católica, por exemplo, o fundamento é uma revelação. Por conseguinte, toda a doutrina cristã se ergue a partir desse ponto. Desta forma, a revelação é a condição sine qua non da religião cristã.

No caso da psicanálise, o pai desempenha essa função. Ele tem valor de norma fundamental, de condição sine qua non da psicanálise, ponto de convergência que não deixa de ser uma ficção, já que não pode ser verificado. Freud, com o mito do pai primevo, assenta a pedra fundamental da psicanálise, construindo, a partir dele, um fundamento para a ideia do inconsciente. Portanto, não importa que esse fundamento seja um mito, uma revelação, um fato ou uma hipótese. O que importa é a crença nesse fundamento. Contudo, sabemos que o pai, na psicanálise, não se constitui como uma hipótese, mas como uma ficção. A ficção não tem uma relação necessária com a realidade, ela funciona “como se”, ou seja, não necessita de verificação. É diferente de uma hipótese, que pede verificação, pois pretende-se uma expressão do que é verdadeiro e real. A ficção é um desvio contingente da realidade que tem a função de pensar a origem do fundamento, de justificá-lo. Então, podemos dizer que o mito do pai é a origem do fundamento da psicanálise. O pai é a figura que sustenta o lugar de uma autoridade, e essa autoridade é o que assegura a ordem diante do desamparo e do sofrimento humano.

Não é por acaso que a antropóloga Margareth Mead, em seu livro Macho e fêmea, nos diz que “A paternidade é uma invenção da sociedade” (1971). E Jacques Dupuis, em seu livro Em nome do pai: uma história da paternidade (1989), vai justificar, por meio de dados históricos, alegando que é somente a partir do período neolítico que começa a se propagar a ideia da paternidade. Foi no quinto milênio, de acordo com sua própria datação, que os egípcios e os indo-europeus tomaram consciência do papel do pai na procriação. Antes desse período, as civilizações só conheciam as estruturas protofamiliares, centradas nas mães, com uma vida religiosa inspirada no tema da fecundidade feminina e numa vida sexual caracterizada pela livre satisfação do desejo. Só depois que as civilizações começam a se sedentarizar é que se começa a estabelecer a correlação entre a procriação e o ato sexual e, assim, tomar consciência da paternidade. Antes disso, ela era ignorada, pois os homens eram caçadores nômades. Foi a partir do momento em que as mulheres começaram a se fixar na terra por causa da agricultura, atividade criada e cultivada inicialmente por elas, que começaram a se organizar, aos poucos, o que chamamos de família. Assim, a história do pai, enquanto ficção ordenadora, tem uma origem a partir desse momento.

No que diz respeito às relações entre fé e crença, Freud nos dá sua versão. Distingue a crença da ilusão afirmando que podemos chamar uma crença de ilusão quando ela é motivada por uma realização de desejo e, portanto, não precisa ser confirmada pela realidade, quando não dá valor à verificação (FREUD, 1990, p. 44). Quando, em “O futuro de uma ilusão”, Freud discorre sobre a significação psicológica das ideias religiosas, sustenta que estas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa ou interna que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos, e por isso reivindicam nossa crença. Para ele, todo ensinamento exige uma crença em seu conteúdo, mas não sem produzir fundamentos que o justifiquem. Para Freud, os ensinamentos são apresentados como o resultado resumido de um processo mais extenso de pensamento baseado em observações e inferências.

Mas, com relação aos ensinamentos da religião, quando se indaga sobre seus fundamentos, deparamo-nos com três respostas que se complementam. A primeira é que devemos crer porque nossos antepassados primitivos já acreditavam nesses ensinamentos, entretanto, nossos antepassados eram muito mais ignorantes do que nós. A segunda, porque possuímos provas escritas que nos foram transmitidas desde os tempos primitivos — mas Freud justifica que, nas provas que nos deixaram, estão registrados escritos cheios de contradições, revisões e falsificações, que são os livros sagrados, e, além disso, as palavras escritas nesses registros se originam de revelações divinas. A terceira seria sobre a proibição de questionamento de sua autenticidade. Com relação a esse terceiro ponto, Freud nos diz que o próprio fato de não se poder questionar já desperta fortes suspeitas, afinal, uma proibição como essas só pode ter uma razão: a insegurança que essas reivindicações geram em relação às doutrinas religiosas. Caso contrário, poderiam ser colocadas à prova de quem quer que deseje chegar a tais convicções.

Por conseguinte, não há como provar a verdade das doutrinas religiosas. E é por isso que ela necessita da fé. Talvez possamos dizer que esse seja mais um dos equívocos de Freud, o de pensar que o fundamento precise ser verificado para ser válido. E é por isso que ele deprecia a religião com relação à ciência. Mas nós, mais de cem anos depois dele, sabemos que o problema não está aí, e ele, apesar desse equívoco, segue adiante.

Freud menciona duas tentativas que foram feitas para se fugir ao problema da prova diante da tentativa de verificação da crença: “uma, de natureza violenta, é antiga; a outra, é sutil e moderna” (1990, p. 40). A primeira é o “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo), de Tertuliano[3], aquele que foi o primeiro e mais importante escritor eclesiástico da língua latina, também padre da igreja católica. Essa tentativa sustenta que

[…] as doutrinas religiosas estão fora da jurisdição da razão — isto é, acima dela. Sua verdade deve ser sentida interiormente e não precisam ser compreendidas. Logo, esse credo só tem interesse como autoconfissão. Como declaração autorizada, não possui força obrigatória. […] Acima da razão não há tribunal ao qual apelar (FREUD, 1990. p. 40).

A segunda tentativa para fugir do problema da prova é efetuada pela filosofia do como se, que assegurava que “nosso pensamento inclui várias hipóteses cuja falta de fundamentos, e até mesmo absurdidade, compreendemos perfeitamente. São chamadas de ficções, mas por várias razões práticas, temos que nos comportar como se nelas acreditássemos” (FREUD, 1990. p. 41). Freud admite que as doutrinas religiosas, apesar de serem ilusões, são de grande importância para a sociedade. Mas o que ele se pergunta é: de onde surge a força dessas doutrinas? E a que se deve sua eficácia, já que elas não dependem do conhecimento pela razão?

Verifica que as ideias religiosas são transmitidas como ensinamentos, entretanto, não passam de ilusões que permitem a realização dos mais fortes e antigos desejos da humanidade. Ele deduz que o segredo de sua força, sua eficácia, reside na força desses desejos humanos. Ao chamar as ideias religiosas de ilusões, esclarece que ilusão não é a mesma coisa que um erro. O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. As ilusões também se diferem dos delírios, uma vez que estes últimos se encontram necessariamente em contradição com a realidade. As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Uma crença pode ser chamada de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator decisivo em sua motivação e quando suas relações com a realidade são desprezadas. Ou quando, tal como a própria ilusão, não dá valor à verificação. Assim, Freud conclui que as doutrinas religiosas são crenças que se constituem como ilusões, que, por sua vez, não são suscetíveis de prova. Para ele, a via do conhecimento científico é a única que pode levar ao conhecimento da realidade externa a nós mesmos. Acredita ser uma ilusão apostar na intuição ou na introspecção, já que elas são apenas detalhes da nossa vida mental e difíceis de interpretar. Então, afirma que a essência da atitude religiosa se constitui na busca de um remédio para a impotência e a insignificância do homem diante do Universo. Por isso, a crença nas doutrinas religiosas é necessária à civilização, para apaziguar o sofrimento das pessoas já que a ciência, sozinha, não basta ao homem. Reconhece que as necessidades imperiosas do homem jamais poderiam ser satisfeitas pela “frígida ciência”, pois “a razão pouco pode fazer contra os impulsos apaixonados” (FREUD, 1990. p. 56). Percebe-se, assim, como Freud não pôde ir mais além do pai e como Lacan foi necessário para manter a atualidade da psicanálise diante dos impasses da clínica e para fazer entender por que a psicanálise pressupõe uma crença.

Na clínica, verifica-se que, normalmente, quando um paciente procura por um analista, ele já tem algum tipo de crença, pois a transferência pressupõe uma crença. Se não há crença no analista, enquanto Sujeito-Suposto-Saber, o paciente encontra dificuldades de chegar até ele. Sabe-se também, pelos ensinamentos de Lacan, elucidados por Jacques-Alain Miller, que há a transferência negativa, que pode ser uma outra via de acesso ao analista, e se dá quando este está sob suspeita. Nessa situação, o paciente hesita, tem dúvidas, desconfia do analista, tenta verificar se sua crença pode ser confirmada. A suspeita se situa num nível intermediário entre o saber e a crença (MILLER, 1999, p. 15–16). Miller (1999) ressalta que a suspeita se manifesta quando não se está seguro de alguma coisa ou de alguém; quando há algo que não se sabe, mas que se antecipa como mal, como negativo. É um grau inferior de saber, não demonstrável, que, por isso mesmo, é insistente. É uma crença sustentada na desconfiança. O que há em comum entre a desconfiança e a confiança é a antecipação, pois ambas vão além do que se sabe e do que se pode provar.

De acordo com Lacan, que toma esse conceito a partir de sua origem grega, pode-se perceber como a diferença entre fé e crença é uma questão de nuance. E, assim, pode-se também dizer que a filosofia inglesa, com Hume — na qual a crença passa a ser impressão, hábito, sentimento, a partir do momento em que adquire uma unidade, e não mais se apresenta em termos de nuances — constrói as bases para o triunfo do discurso da ciência, que é o que se presencia nos dias de hoje e que faz da probabilidade a garantia de uma verdade. Logo, o desenvolvimento do discurso da ciência coincide com a queda do Nome-do-pai, com a morte de Deus ou fim da crença, enquanto possibilidade de acesso a um saber sobre uma verdade.

Para Lacan, a verdade tem estrutura de ficção, tomando como referência os estudos de Jeremy Bentham (1997, apud, LAIA, 2005), para quem uma entidade fictícia não é uma entidade imaginária enganosa pelo fato de a linguagem fazer existir a ficção — o que faz com que a ficção não dependa de uma realidade, mas da linguagem. Logo, se o inconsciente, para Lacan, tem a estrutura de uma linguagem, pode-se dizer que ele também tem um caráter de ficção.

Finalmente, pode-se perceber como e por que é preciso crer no Nome-do-Pai, ou no sinthoma, mesmo que essa crença não seja uma certeza, uma convicção, ou algo tomado como verdadeiro. A partir do momento em que constatamos que há vários níveis de crença, podemos perceber que, entre o sim e o não, entre uma verdade e uma mentira, há uma crença, que, de acordo com seu grau, pode nos levar de um ponto a seu oposto — o que permite entrever como a crença se relaciona com o Real e com o semblante. E, por conseguinte, porque é preciso, segundo Miller, acreditar no Nome-do-Pai para poder prescindir-se dele. É preciso de uma fantasia, de um mito, mesmo que delirante, para que um sujeito do inconsciente possa ex-sistir enquanto sinthoma. Sabemos que, para Lacan, a diferença entre crença e fé é sutil. Por isso, vai examinar o funcionamento da fé na experiência religiosa, tal como Freud o fez.

Numa análise, o analisante deposita sua confiança no analista — não na pessoa dele, e sim no Sujeito-Suposto-Saber, que opera enquanto objeto a. É essa crença que instaura a transferência e permite a produção do inconsciente do analisante. Para Lacan, a fé é algo verdadeiro que não tem nada a ver com o Real. Por isso faz equivaler a psicanálise com uma forma moderna da fé. A religião, para Lacan, é marcada pelo esquecimento. Daí a existência dos sacramentos, que têm a função de renovar um pacto esquecido, através dos rituais, da repetição. “A verdade pelo decreto dos deuses se esquece” (LACAN, 1964, p. 239). Uma análise é marcada por um esquecimento semelhante, porém opera a partir dele, do recalque, levando em consideração o dizer que se encontra mais além da fala. O esquecimento está relacionado ao “dizer que ultrapassa o dito” (LACAN, 2003, p. 483), pois “que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve” (LACAN, 2003. p. 448)

Lacan interroga Freud para tentar saber o que faz um pai. Qual é a função do pai em Freud? O que é um pai?

Responde que é um nome que implica a fé, é um sinthoma. A hipótese do inconsciente supõe um Nome-do-Pai, que significa supor Deus. Porém, essa hipótese da existência de um grande Outro, da existência de Deus, serviu não somente para promulgar a lei, mas para garantir o sentido. Contudo, como estamos impossibilitados de dizer o verdadeiro sobre o real, que é sem-sentido, que faz barra sobre o dizer, para que seja pensado um saber no real, Lacan precisou buscar, na topologia, uma maneira de tentar formalizar o inconsciente e sua lógica; foi mais além do sentido, buscando elucidar a lógica do real. Ele encontra, assim, no nó borromeano, uma resposta para suas dificuldades de formalização, que não poderia ser bem transmitida apenas pela letra ou pela linguagem. Ele formula o nó borromeano de três termos — simbólico, imaginário e real. Mas esse nó não responde ao enigma sobre a foraclusão, pois foi construído sob as bases referenciais do complexo de Édipo. Por isso, mais tarde vai chegar ao nó borromeano de quatro termos, no qual o Nome-do-Pai vem a se somar ao simbólico, ao imaginário e ao real. Nesse quarto nó, o do pai, o sujeito precisa crer para que funcione, isto é, o Nome-do-Pai, ou o Sinthoma, é um utensílio que funciona como operador lógico, que permite que o sujeito acredite num sentido, em algo que faça função de ordenador, concedendo o funcionamento do semblante. Permite que se torne possível o acesso a uma verdade, a um saber inconsciente, que não deixa de ser um golpe de sentido, um semblante, ou um sens-blant (FONTENEAU, 2005, p. 34).

Portanto, a crença está no âmago da experiência analítica, mesmo que muitas vezes enquanto fé, pois o que está em jogo é a implicação do sujeito na cura. Ela está presente em todo sujeito no sentido de tomar-como-verdadeiro, associada tanto ao saber quanto ao não saber; associada ao ato psicanalítico tanto no neurótico quanto no psicótico, com a única diferença de que, neste último, ela aparece de forma invertida, isto é, enquanto descrença (Ibid.).

Por fim, é importante salientar que a descrença para Lacan é o Unglaben, que não é a supressão da crença nem a negação da fenomenologia do Galuben, da crença, que foi a obsessão de Freud até o final. “É um modo próprio da relação do homem com seu mundo e, na verdade, aquele no qual ele subsiste” (LACAN, 1959-60, p. 163). Para Lacan, a crença pressupõe a divisão do sujeito, pressupõe uma Verdrangung, um recalque da coisa. Logo, quando não há crença — e o exemplo que ele dá aqui é o do discurso da ciência —, e sim descrença, o que está em questão é a rejeição da coisa no sentido próprio da Verwerfung (Idem, p. 164). Segundo Lacan, o discurso da ciência rejeita a presença da coisa, pois pressupõe o ideal do saber absoluto, de algo que estabelece, apesar de tudo, a coisa, mas não a leva em conta. Ressalta que o discurso da ciência é determinado por essa Verwerfung. Assim, entendemos a aproximação entre Unglauben e Verwerfung, de acordo com o uso que Lacan faz deles, no sentido de que a descrença seria um repúdio da crença e, portanto, correlativo da rejeição. Podemos constatar isso pela seguinte citação:

No fundo da própria paranoia, que nos parece no entanto toda animada de crença, reina esse fenômeno de Unglauben. Não é o não crer nisso, mas a ausência de um dos termos da crença, do termo em que se designa a divisão do sujeito. Se não há, de fato, crença que seja plena, e inteira, é que não há crença que não suponha, em seu fundo, que a dimensão última que ela tem que revelar é estritamente correlativa do momento em que seu sentido irá desvanecer-se (LACAN, 1964, p. 225).

 

 

 

 


Referências
BENTHAM, J. De l’ontologie et autrestextessurlesfictionsParis: Seuil, 1997.
DUPUIS, J. Em nome do pai: uma história da paternidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1989.
ENCYCLOPEIE UNIVERSALIS. Versão eletrônica, 2005.
FREUD, S. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: ESB, v.21. 1990.
FONTENEAU, F. “Crença”. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai. AMP. Textos preparatórios para o congresso de Roma, 2005.
LACAN, J. (1959-1960) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
LACAN. (1973) “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAIA, S. “A mentira e o Nome-do-Pai”. In: Scilicet dos Nomes-do-PaiOp. Cit.
MEAD, M. (1949). Macho e fêmea. Petrópolis: Editora Vozes, 1971.
MILLER, J-A. “La transferencia negativa”. Seminário sobre a política da transferência. Escuela del Campo Freudiano de Barcelona. 1ª edición, Barcelona, 1999.
[1] Texto inédito apresentado na “Sessão Literária” da Biblioteca da EBP-MG, no dia 13/3/2006, que teve como tema de debate “crença e nomes-do-pai”. Uma versão modificada deste texto compõe parte do subitem “A crença no Pai: a construção do conceito de Nome do Pai e seu uso”, de minha dissertação de mestrado “A lógica do Sacrifício e suas consequências”. UFMG, 2006.

[2] Conforme definição do dicionário Aurélio. Séc.XXI. versão eletrônica.

[3] Tertuliano nasceu em Cartago, no ano 155 d.C., e lá exercia sua profissão de advogado, quando, em 193, converteu-se ao Cristianismo, passando a exercer também a atividade de catequista junto à Igreja. Sua inteligência e sólida formação jurídica foram claramente demonstradas em Contra Práxeas, sua obra mais importante, escrita no ano 197 e dirigida aos governantes do Império Romano. Ali, ele defende os cristãos, apelando por seu direito de liberdade religiosa perante o Império Romano cruel e perseguidor. Seus argumentos são expostos de forma lógica e polêmica, visando ao convencimento das autoridades a quem é dirigida, questionando a “justiça” aplicada contra os cristãos, transportando a apologética do terreno filosófico para o jurídico.




A religião e a verdade – Frei Betto

ALMANAQUE ENTREVISTA FREI BETTO*

 

 

Foto do Museu Mineiro

 

 

ALMANAQUEO que levou o Brasil — que, até a década de 80 do século passado, era considerado o maior país católico do mundo — ao momento atual, no qual há um crescente aumento da filiação evangélica? De acordo com um estudo do IBGE sobre transição religiosa, em 2030, a população católica será menor do que a evangélica.

FREI BETTO: Em 1950, os católicos representavam 93,5% da população; os evangélicos, apenas 3,4%. Nos últimos 70 anos, a percentagem de pessoas que se declaram católicas caiu rapidamente e chegou a 64,6% em 2010. No mesmo período, os protestantes (históricos, pentecostais e neopentecostais) cresceram e atingiram 22,2% (2010). Houve também crescimento de outras religiões (como espíritas, etc.) e do percentual de pessoas que se declaram sem religião. Em fins de 2018, os evangélicos aglutinavam 34% da população.

Vários fatores explicam essa mudança: o clericalismo, que, na Igreja Católica, dificulta o protagonismo dos leigos (para formar um padre, são necessários quatro anos de filosofia, quatro de teologia e a heroica virtude do celibato, enquanto, para formar um pastor, bastam oitos meses — e ele pode ter família); a desvalorização das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), sob os pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, ao longo de 34 anos; a rede de proteção social que os evangélicos promovem junto às famílias mais pobres etc. As igrejas evangélicas tendem a crescer onde o Estado se faz ausente, em especial quanto aos serviços de saúde.

A: Em uma entrevista concedida em 2016, o filósofo francês Jean Rancière disse que “a política não tem nada a ver com a política dos políticos, das intrigas palacianas, das negociações de gabinete e disputas de poder”. Segundo Rancière, ela é “uma forma de ação de subjetivação coletiva para construir um mundo em comum”, que inclui aqueles que têm posições político-ideológicas diferentes, visando a criar um “nós aberto e includente, que fala de igual para igual com o adversário”. Assim, ele propõe que, ao contrário de nos determos no antagonismo de populistas versus democratas, “o melhor remédio é a ação política autônoma em relação aos lugares, ao tempo e a agenda estatal […] como antídoto ao mal-estar na civilização”, ou seja, contra a onda atual de ódio e segregação. Diante do avanço do que você chamou de “confessionalização da política” e de seus desdobramentos nocivos para a democracia, que ações, nesse sentido, a Igreja Católica poderia tomar?

FB: O papa Francisco se empenha em reformar a Igreja Católica, essa entidade milenar que, hoje, tem uma cabeça progressista e um corpo conservador. Penso que nenhuma Igreja deva apoiar ou rejeitar um governo. O papel da Igreja é estar ao lado do povo, da maioria, sobretudo dos desamparados. Se o governo serve a eles, serão positivas as relações Igreja-Estado. Se não serve, serão conflituosas.

Rancière faz eco ao que já disseram Platão e, sobretudo, Aristóteles, sobre a função da política. Ocorre que a política, após a queda da monarquia medieval, foi apropriada pela burguesia industrial e financeira e, hoje, serve aos interesses dela, exceto em um país como Cuba. O papel da Igreja Católica e de todas as instituições da sociedade civil é reforçar isso que Rancière chama de “ação política autônoma”, que defino como empoderamento popular, objetivo que se alcança reforçando os movimentos sociais que lutam por conquista e defesa dos direitos humanos e da Terra.

A: Em seu artigo “A ciência e a verdade”, Lacan afirma que o religioso é aquele “que entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto de sacrifício”. Em outros termos, o que o sujeito demanda é tomado como o desejo suposto de um Deus. Numa época em que várias lideranças cristãs se valem da prática de propagar notícias falsas entre seus fiéis, como pensar essa relação entre a Religião e a Verdade? De que verdade aí se trata, quando o que está em jogo passa, como você declarou, por uma servidão voluntaria à determinada doutrina ou a líderes religiosos?

FB: Penso que Lacan faça eco a Freud, que, por sua vez, não ficou totalmente imune ao positivismo que exerceu tanta influência na cultura da esquina dos séculos XIX e XX. E, no entanto, o avanço do conhecimento científico não fez retroceder o fenômeno religioso, pelo contrário.

Quem tem acesso à verdade? O ateu mais do que o crente? Como disse um chinês da década de 1910, após ouvir um padre pregar “a verdade”, existem três verdades: a sua, a minha, e a verdade verdadeira. E nós dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira.

Embora nem tudo seja política, a politica está em tudo. Ela é um jogo de interesses. E em uma sociedade tão desigual, um jogo de interesses antagônicos. Os fiéis que pregam notícias falsas, em sua maioria, não sabem que elas são falsas. Como cordeiros a serem tosquiados, acreditam piamente na palavra do pastor ou do padre e, assim, convictos de que ele nunca mente, divulgam o que ele afirma.

Enquanto a Ciência é o reino da dúvida, a Religião é o da certeza. E verdade e autoridade se confundem. Por isso, nós cristãos ou religiosos de qualquer confissão devemos ter como referência não uma verdade abstrata, mas o ídolo de Deus: o ser humano. Pilatos perguntou a Jesus, ao interrogá-lo: “o que é a verdade?”. E Jesus se manteve calado, possivelmente por considerar que não valia a pena “atirar pérolas aos porcos” (expressão do próprio Jesus). Treze séculos depois, meu confrade, Santo Tomás de Aquino, deu uma brilhante e irretocável resposta: “A verdade é a adequação da inteligência ao real”. E o real, acrescento eu, é o que vemos em volta: o ser humano reduzido a mera mercadoria descartável. Tudo o que Jesus propõe no Evangelho e nos engajarmos no resgate da dignidade humana.

 

Por Giselle Moreira, Ludmilla Féres Faria e Patrícia Ribeiro

 

 

 


 

* Carlos Alberto Libânio Christo, ou Frei Betto, nasceu em Belo Horizonte. Ë frade dominicano, jornalista e escritortendo publicado diversos livros. Em 1983 recebeu o prêmio Jabuti por seu livro Batismo de Sangue, posteriormente transformado em filme dirigido por Helvécio Ratton. Frei Betto recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Assessorou vários governos socialistas, em especial Cuba, nas relações Igreja Católica-Estado.