Expediente Almanaque – Nº 25

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UM MÍSTICO PARA A NOÇÃO DE GOZO FEMININO

RODRIGO SANTOS DA MATTA MACHADO
rsmattamachado@gmail.com
Psicólogo, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, diretor de clínica credenciada ao Detran, psicólogo clínico e aluno do módulo III do curso do IPSM–MG

Resumo: São João da Cruz apareceu em meio à psicanálise lacaniana como um instrumento de auxílio na transmissão do saber psicanalítico. Surge, portanto, nesse contexto, como um exemplo de místico prestigiado por Lacan, que o tinha como uma pessoa dotada. Investigaram-se a obra e biografias de São João da Cruz, buscando conhecer algumas importantes facetas da sua vida para melhor aplicação desse exemplo nas elaborações da tábua da sexuação. As facetas poética e mística de São João da Cruz foram úteis em importantes transmissões do psicanalista.

Palavras-chave: mística, gozo não-todo, poesia, Lacan, São João da Cruz.

A mystic for the notion of feminine enjoyment

Abstract: Saint John of the Cross has appeared within Lacanian psychoanalysis as a helpful resource in the transmission of the psychoanalytic knowledge. Saint John of the Cross emerges in such context as an example of a mystic esteemed by Lacan, who considered him to be a gifted person. The work of Saint John of the Cross, as well as a number of biographies written on him were examined, in an attempt to comprehend some of the most relevant facets of his life, and in the hopes of attaining a better application of such example in the elaborations of the sexuation table. The poetic and the mystical facets of Saint John of the Cross were useful in important teachings of the psychoanalyst.

Keywords: mysticism, not-all jouissance, poetry, Lacan, Saint John of the Cross.

 

Maltratado e abandonado, portando apenas papel e tinta no cárcere do mosteiro Carmelita Calçado, em Toledo, Espanha, São João da Cruz (doravante SJC) dá voz a sua mística e a sua poética. Esse importante santo da Igreja Católica, amplamente conhecido no contexto religioso, suscitou o interesse de Jaques Lacan em meio às suas elaborações psicanalíticas.

Em O Seminário, livro 20: mais, ainda, no decorrer das formulações sobre o gozo não-todo fálico e sobre o lado feminino na tábua da sexuação, Lacan (1972-73/2008) menciona SJC explicitamente. O santo foi tomado, pelo psicanalista, como um representante da mística que teria algo importante a nos informar. No entanto, justamente por SJC se tratar de um homem, essa colocação teve o caráter de exceção, pois as mais comuns representantes da mística eram as mulheres, mas, como o próprio psicanalista francês indicou, SJC só ocupou esse lugar por estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha)[1].

Em decorrência da importância dada por Lacan ao místico, recorri à biografia e à obra de SJC em busca do motivo pelo qual este se tornou um exemplo precioso, principalmente na exploração da noção de gozo não-todo.

 

Breve biografia de SJC

João de Yepes nasceu em 1542, na cidade de Fontiveros, Espanha. Em sua primeira infância, viveu em extrema dificuldade devido à pobreza familiar e ao falecimento do pai e de um irmão mais velho. Aos dez anos de idade, ingressou em um colégio de ofícios e, depois, tornou-se coroinha em um mosteiro. Aos quatorze, entrou em um hospital como enfermeiro e recolhedor de esmolas e, em consequência, pôde frequentar aulas de Filosofia e Gramática. Aos 21 anos, ingressou para a ordem dos Carmelitas.

No momento em que estava insatisfeito com o pouco rigor das diretrizes espirituais de sua ordem, o frei teve um encontro com a carmelita Madre Teresa de Jesus (mais tarde, canonizada Santa Teresa de Ávila), que lhe apresentou um projeto de reforma do Carmelo que propunha maior rigor nas diretrizes espirituais, como ele desejava. Assim, em 1568, nasceu um novo braço da ordem, os Carmelitas Descalços masculino, e também João da Cruz — nome adotado por ele.

Poucos anos após o início da reforma, Frei João se tornou alvo de perseguição pelos Carmelitas Calçados contrários ao movimento, sendo sequestrado e encarcerado por duas vezes. A primeira, em 1575, foi curta, porém violenta, gerando sequelas físicas permanentes. A segunda, em 1577, durou oito meses e foi marcada por torturas corporais e mentais. Embora as condições do cárcere tivessem sido as piores possíveis, foi nesse período que surgiram as facetas mais importantes desse homem: a mística e a poética. Em agosto de 1578, ele conseguiu fugir e retomou sua função como reformador. SJC faleceu em 1591, aos 49 anos.

Em uma vida de superação, SJC alcançou destaque como religioso e místico, o que provavelmente contribuiu para o interesse de Lacan. Além desse destaque, a faceta de escritor do santo certamente fomentou a valorização desse homem por Lacan. O psicanalista, em uma comparação de SJC com Schreber, demonstrou um reconhecimento à poesia do místico:

 

“Schreber não nos introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa. A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, nem da de Proust ou da de Gérard de Nerval. A poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber.” (LACAN, 1955-56/1988, p. 96).

 

A poesia, por proporcionar uma entrada do leitor em uma “dimensão nova da experiência”, ganhou a função de avalista de autenticidade. O processo de criação da poesia pelo “sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica como o mundo”, presente em SJC, foi, para Lacan, o ponto marcante de distinção entre a escrita do místico e a de Schreber, que não teria o mesmo alcance. Assim, me lançarei a conhecer melhor a faceta poética de SJC.

 

A arte poética de São João da Cruz

 

O poeta SJC parece ter surgido, expressivamente, dentro do cárcere, em Toledo. Sua arte poética pareceu socorrer o frei das angústias, do sofrimento e do abandono vivenciados nessa ocasião. Ele “não aspirava criar uma obra que perdurasse ou que tivesse ecos mais amplos. Em resumo, não vivia para a arte, valia-se dela” (JIMÉNEZ, 1991, p. 16).

Nas poesias de SJC, é possível encontrar alguns temas e ideias recorrentes. A relação amorosa (amante-amado), a experiência de êxtase, a abnegação, o abandono, o gozo e a dor são frequentemente abordados, estando SJC, em inúmeras passagens, como sujeito da oração em uma posição feminina. Essa posição pode ser observada na seguinte estrofe:

 

“Ali me deu peito

e me ensinou ciência saborosa;

e dei-me de tal jeito,

a mim todo, ditosa:

ali lhe prometi ser sua esposa.”

(CRUZ, 1577-1585/1991, p. 43)

 

Os escritos poéticos ganham ainda mais ênfase ao seguirmos a tese apresentada por Jean Baruzi (1924/2001), que indicou que o melhor meio de aproximação da mística de SJC seria a sua poesia. Ele afirmou que o que há de mais original na experiência mística do santo se traduziu em seus primeiros cantos. Inclusive, Baruzi defendeu que SJC, por influência doutrinal, alterou seus escritos e poemas em um segundo momento, como se quisesse ocultar algo que, na experiência original, estaria fora de alguns preceitos religiosos que seguia. As expressões místicas contidas na sua poética seriam perturbadoras para a ordem Carmelita.

A intimidade da experiência mística de SJC com sua criação poética em um eu lírico feminino provavelmente sustentou o uso que Lacan fez de seu exemplo. Assim, vi também a necessidade de explorar as singularidades da mística SJC, para que tivesse maior compreensão sobre a noção pela qual estou transitando aqui.

 

A mística de São João da Cruz

 

Um místico aspira a uma relação outra, além da comum relação entre os seres falantes. Levando em consideração as concepções mais usuais, o místico é aquele que leva sua vida centrado na experiência de procura por um caminho para o Absoluto. SJC afirmava que “uma alma começa a servir a Deus até chegar ao último estado de perfeição[2], que é o matrimônio espiritual” (CRUZ, 1577-91/2002, p. 592).

A mística abarcaria toda uma maneira singular de viver para o alcance da união com Deus. Lacan, ao afirmar que “os místicos tentaram, por seu caminho, chegar à relação do gozo com o Um” (1968-69/2008, pp. 133-134), pareceu resumir teoricamente aquilo que ele entendeu sobre a experiência mística. A noção do Um, nesse contexto, ocupou o lugar que o Absoluto ou a Divindade ocupam para o místico na sua tentativa de união.

SJC é também conhecido como Doutor do tudo e nada[3], nome que indica a centralidade do seu ensinamento sobre o caminho que deve ser percorrido por aqueles que desejam o encontro com o divino. De modo sintético, Deus seria o tudo, o ser completo, aquele que sustenta toda a existência, e o ser humano seria a criatura que, para ter acesso ao tudo, deveria se colocar como nada, sendo a radicalidade do ato de abnegação o caminho principal para o encontro divino.

No mesmo sentido, Lacan indicou “que a porta de entrada da experiência mística seja muito precisamente a extinção completa, radical até suas últimas raízes, de todas as paixões do amor próprio” (1954/2008, p. 69). Essa abnegação possibilitaria a união do místico com a divindade e, consequentemente, permitiria a experiência de êxtase. Sobre o tema, afirmou SJC: “Em verdade, chegando ao estado da união divina, a alma goza de grande sossego em suas potências naturais e tem adormecido os seus ímpetos e ânsias sensíveis na parte espiritual” (1577-91/2002, p. 186).

Os momentos de êxtase são narrados de forma impactante, e o deleite vivido durante o contato com o transcendente é bastante intenso. Apesar do esforço em descrever esses encontros, pouco pode ser falado sobre eles: “Não nos é permitido conhecer as formas mais elevadas de experiência porque são muito inefáveis para poderem ser compreendidas pela inteligência humana” (BORRIELLO et al., 1998/2003, p. 407).

O êxtase parece guardar um mistério acessível apenas para aqueles que procuraram o caminho místico e alcançaram essa experiência de maneira plena. Muitas vezes os místicos lançam mão do recurso poético para tentar transmitir a experiência. SJC apresentou canções em íntima ligação com a união divina e afirmou que elas não poderiam ser totalmente desvendadas, pois seriam uma inspiração direta de Deus durante seus momentos de intimidade com Ele:

 

“Seria, ao contrário, ignorância supor que as expressões amorosas de inteligência mística, como são as Canções, possam ser explicadas com clareza por meio de palavras…

Essas Canções, tendo sido compostas em amor de abundante inteligência mística, não poderão ser explicadas completamente”. (CRUZ, 1577-91/2002, pp. 575-576).

 

Lacan também pareceu perceber a dificuldade no relato do êxtase ao afirmar que “o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele” (LACAN, 1972-73/2008, p. 82).

 

A mística e o gozo feminino

 

No Seminário 20, a noção de gozo da mulher entrelaça-se de forma relevante aos exemplos dos místicos em suas manifestações de êxtase. As narrativas desses efeitos levaram Lacan a entendê-los como um tipo de gozo gozo da mulher ou gozo não-todo.

Importa esclarecer sinteticamente que o gozo não-todo, no meu entendimento, é aquele que escapa/nega a ordem fálica. Já o gozo fálico pode ser entendido como “atributo essencial da posição masculina —, concebido como um regime libidinal normatizado e, portanto, submetido aos limites estritos do significante” (SANTIAGO, 2013, p. 90).

Lacan descreveu explicitamente que o místico, em seu êxtase, experimenta um modo próprio de gozo: “Para a Hadewijch em questão, é como para santa Tereza — basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida” (1972-73/2008, p. 82). A utilização dos exemplos místicos em meio às elaborações sobre a noção de gozo não-todo cumpre um papel elucidativo e de visualização. O psicanalista diferenciou esse gozo de outras possíveis interpretações e assim expôs, de modo sintético, todo seu entendimento sobre essa vivência da mística: “Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele o que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como suportada pelo gozo feminino?” (1972-1973/2008, p. 82). A mística, naquilo que ela tem de indizível e naquilo que a aproxima de uma vivência de um gozo feminino, articula-se definitivamente com noções concernentes ao plano do real. A utilização explícita do exemplo de SJC nas elaborações sobre a tábua da sexuação acrescenta ainda mais conteúdo para avançar na compreensão dessas articulações.

 

São João da Cruz e a tábua da sexuação

 

Na referência a SJC no Seminário 20, Lacan o colocou em lugar de destaque por ser um exemplo precioso para a argumentação teórica que vinha desenvolvendo. Referindo-se à mística, Lacan afirmou:

 

“É algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e mais freqüentemente mulheres, ou bem gente dotada como são João da Cruz – porque não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do lado do xФx. Pode-se também colocar-se do lado do não-todo. Há homens que lá estão tanto quanto as mulheres. Isto acontece. E que, ao mesmo tempo, se sentem lá muito bem. Apesar, não digo de seu Falo, apesar daquilo que os atrapalha quanto a isso, eles entrevêem, eles experimentam a idéia de que deve haver um gozo que esteja mais além. É isto que chamamos os místicos”. (1972-73/2008, p. 81-82).

 

SJC era, para Lacan, um autêntico místico. Além disso, para esse psicanalista, a mística estava intimamente ligada ao gozo não-todo. Por isso, SJC, inevitavelmente, ocuparia o lado da mulher na tábua da sexuação. Essa tábua, tendo uma divisão descritiva entre o lado do homem e o da mulher, foi uma maneira de exibir o modo como os sujeitos se colocam em sua relação com o Outro e também com o gozo envolvido nos dois lugares. A fiança da vivência mística estaria no gozo feminino, mas o referido místico foi o exemplo maior de que não se trata de ser uma mulher, mas de uma posição de gozo em sua relação com o Outro. Embora essa ocupação no lado da mulher não seja para qualquer um, ela foi condicionada ao fato de SJC estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha).

É possível concluir que o uso de SJC por Lacan, na elaboração sobre o lado da mulher na tábua da sexuação, ganha relevância, em especial, em razão da possibilidade de acesso à experiência de êxtase do santo por meio de sua poesia. Verifico, ainda, que a proximidade existente entre essa experiência e o entendimento lacaniano sobre o gozo não-todo é notada no uso espontâneo e constante pelo místico do eu lírico na posição feminina.

 


 

Referências
BARUZI, J. (1924) San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística. Junta de Castilla y León: Consejería de Educación y Cultura, 2001.
BORRIELLO, L.; CARUANA, E.; DEL GENIO, M.; SUFFI, N. (Dirs) (1998). Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003.
CRUZ, J. (1577-85) São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
CRUZ, J. (1577-91). São João da Cruz: obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002.
JIMÉNEZ, F. Prefácio. CRUZ, J. São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
LACAN, J. (1954/2008) “Do símbolo e de sua função religiosa”. O mito individual do neurótico, ou, A poesia e a verdade na neurose. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1955-56) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1968-69) O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LACAN, J. (1972-73) Le séminaire de Jaques Lacan, livre XX: encore. Paris: Éditions du Seuil, 1975.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
SANTIAGO, J. (2013) “A plasticidade da sexuação feminina”. Opção lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, n. 65, 2013, p. 89-92.

[1] No original: “gens dou és” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70). Optei por utilizar a versão em francês e traduzi-la à minha maneira, pois a tradução “bem gente dotada” (LACAN, 1972-73/2008, p. 81) não é uma expressão usual de nossa língua.
[2] O estado de perfeição refere-se ao estado de união divina.
[3] Essa nomeação de SJC é o subtítulo de uma das biografias consultadas neste trabalho.



O HOMEM E UMA MULHER E O IMAGINÁRIO

LÍVIA SERRETTI AZZI FUCCIO
Psicanalista em formação (Aluna do IPSM-MG), técnica em assuntos educacionais (IFMG).
Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI).
Especialista em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais  (UFMG). Pedagoga (UniBH).  livsazzi@gmail.com

 

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Resumo

Este trabalho busca localizar as disjunções da histeria e da feminilidade no diário de Anaïs Nin (1931–1932/1986). Para tanto, serão demarcados três posicionamentos: (I) a posição de Anaïs diante de June, ao elegê-la como A mulher; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs, como o semblante do homem ideal; e (III) o diário como sintoma da elaboração do que fazer diante da não relação sexual.

Palavras-chave: Histeria, feminilidade, semblantes do feminino.

Abstract: This paper seeks to locate the disjunctions of hysteria and femininity in Anaïs Nin’s diary (1931–1932/1986). To this end, three positions will be demarcated: (I) Anaïs position towards June, by electing her as The Woman; (II) Henry Miller’s role for Anaïs as the ideal man’s semblance; (III) the diary as a symptom of the elaboration of what to do in the face of non-sexual relations. 

Keywords: Hysteria, femininity, feminine semblance.7

 

Sobre o peso do meu corpo – Barbara Schall

 

Começo servindo-me da frase “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, que Lacan (2009) utilizou para intitular um dos capítulos do Seminário 18. Ao parafraseá-lo no título do presente artigo, substituo “um homem” por “o homem” e “a psicanálise” por “o imaginário”. A escolha desse título se deu não apenas pela inspiração que me tirou da inércia para iniciar este texto, mas, sobretudo, por parecer-me adequada ao enquadramento que proponho aqui: analisar as construções de Anaïs Nin (1931–1932/1986) acerca do feminino em Henry, June e eu: diários não expurgados 1931-1932, no qual a autora utiliza a escrita como forma de elaborar o seu processo de tornar-se mulher.

Cabe salientar que, em “De um discurso que não fosse semblante”, Lacan (2009) irá situar o leitor em três capítulos diferentes, nos quais ele destaca os seguintes enunciados: “O homem e a mulher”, “O homem e a mulher e a lógica” e “Um homem e uma mulher e a psicanálise”. Dando atenção a isso, busquei compreender qual dessas nomeações seria mais apropriada para demarcar essas diferenças, e, ainda, em que medida essas noções ajudam a localizar, nas descrições feitas no diário íntimo de Anaïs, o modo como ela tentará resolver o enigma do feminino, partindo da hipótese de que o seu interesse por Henry e por June se desenvolve numa construção especular de homem e mulher. Posto isso, questiono: qual homem e qual mulher ela irá buscar nesses personagens?

Em “O homem e a mulher”, Lacan (2009) vai dizer que a mulher é precisamente a hora da verdade para o homem, quer seja, diferentemente dos termos “homem” e “mulher”, que demarcam a identidade de gênero, o que define o homem é a sua relação com a mulher, e vice-versa. Se essa relação existe, existe pela via de suporte de um semblante. No capítulo intitulado “O homem e a mulher e a lógica”, Lacan (2009) aconselha estudar a carta/letra, destacando a estrutura de ficção da verdade no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, na medida em que testemunha o ponto em que a ficção tropeça e se articula com a linguagem: a acentuada deficiência de certa promoção da relação sexual. Ele diz que a relação sexual fracassa ao ser inscritível na linguagem, precisamente porque a inscrição efetiva do que seria a relação sexual teria que relacionar os dois polos “homem” e “mulher”, termos estes que, em função da lógica, marcam o impasse sexual. Já no capítulo “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, faço os seguintes destaques: é num discurso que, sendo homens e mulheres, têm que se valer como tais; só há discurso de semblante, e este só se anuncia a partir da verdade, que, como tal, só pode dizer o semblante sobre o gozo.

Neste último capítulo aqui referenciado — que, na verdade, é o capítulo IX do Livro 18 — para designar um homem e uma mulher, juntamente com a psicanálise, Lacan enuncia a histérica como aquela que conjuga a verdade de seu gozo com “o seu saber implacável de que o Outro apropriado para o causar é o falo, ou seja, um semblante” (2009, p. 143). Em sequência, Lacan enfatiza que a histérica se atribui daqueles que ela finge serem detentores desse semblante, ao menos um — o qual Lacan teve necessidade de reescrever como ahomenozum. Todavia, há um problema, visto que, como Lacan pontua, “a histérica não é uma mulher” (2009, p. 145). Desse ponto, buscará saber se a psicanálise dá acesso a uma mulher.

Não proponho, aqui, psicanalisar os diários de Anaïs Nin, mas sim investigá-los, partindo dessa definição negativa de histeria, já que a histérica não é uma mulher, tal como aponta Márcia Rosa (2019, p. 76): “tornar-se mulher implica ter atravessado a histeria”, e acrescenta: “Há, portanto, uma disjunção entre os dois campos: da histeria e da feminilidade”.

Considerando tal distinção, desenvolverei este trabalho buscando localizar as disjunções da histeria e da feminidade nas descrições dos personagens Henry e June no diário de Anaïs Nin, correspondente aos anos de 1931-1932. O enredo, embora não seja o motivo da análise, permite a organização de três posicionamentos. Estes, sim, motivam a presente investigação, quais sejam: (I) a posição de Anaïs diante de June ao elegê-la, em suas palavras, “a única mulher que já correspondeu às exigências de minha imaginação”; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs quando ela diz sobre o casal: “Eles dois fazem parte de mim: a mulher que age como Henry e a mulher que sonha em agir como June” (1986, p. 91); e (III) o diário personificado como o seu fiel confidente, o sintoma de Anaïs: “O diário é produto de minha doença, talvez uma acentuação e um exagero dela” (p. 136) — é nele que Anaïs elabora suas descobertas e desordens em relação à sexualidade, é por meio dele que vai se dando conta do impossível da linguagem e do que fazer diante da não relação.

Quanto ao primeiro posicionamento, recorro ao clássico caso de Freud: “Quando Dora falava sobre a Sra. K, costumava elogiar seu ‘adorável corpo alvo’ num tom mais apropriado a um amante do que uma rival derrotada” (2006, p. 65, grifos do autor). Em paralelo, cito Anaïs ao referir-se a June: “Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, a esposa de Henry” (1986, p. 18). Em “Intervenção sobre a transferência”, Lacan (1998) vai constatar, como o próprio Freud reconheceu, que, durante muito tempo, não pôde deparar com essa tendência homossexual, tão constante nas histéricas, justamente pelo preconceito em considerar a primazia do personagem paterno.

Marie-Hélène Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro”, explica que a homossexualidade é claramente indicada por Freud como um elemento-chave do caso Dora e da histeria em geral, sob a forma de tendência inconsciente não culminada num ato sexual. O texto de Brousse contribui para a localização desse elemento-chave do caso Dora: “O interesse homossexual de Dora pela Senhora K. decorre de sua própria questão sobre o que é a mulher, saber sobre o feminino que ela considera não ter e que ela atribui a essa Outra mulher” (2015, p. 3).

Esse elemento também pode ser destacado no interesse de Anaïs por June e em suas tentativas de vincular os semblantes a algum significante de difícil apreensão. Por não ter o falo, ela busca vincular-se àquilo que ela crê que o possua, a posição masculina: “No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por seu corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros” (NIN, 1986, p. 17).

Anaïs percebia que “o eu de June criado nos outros” nem sempre correspondia a sua June imaginária. Por exemplo, ao avistar June caminhando em sua direção, ela indaga em seu diário: “O homem no American Express não vê a maravilha que ela é?” (NIN, 1986, p. 20). Fatos como esse suscitaram-na a escrever: “Tinha medo de ficar ali exatamente como ficara em outros lugares, observando a multidão e sabendo que nenhuma June apareceria porque June era um produto de minha imaginação” (Ibid., p. 20).

Em “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”, Lacan (1998) vai dizer que, tal como o amor cortês, que se gaba de ser quem dá aquilo que não tem, “é exatamente isso que a homossexual se esmera em fazer no tocante àquilo que lhe falta”. A escolha homossexual na mulher não é uma escolha que elege um objeto incestuoso às custas do seu sexo, mas sim um impasse diante do inaceitável de que “esse objeto só assuma seu sexo às custas da castração”. Ele prossegue: “Em todas as formas, mesmo inconscientes, é sobre a feminilidade que recai o interesse supremo” (LACAN, 1998, p. 744).

Esse interesse supremo pela feminilidade na histeria é sintetizado por Brousse (2015), no caso Dora, pelo processo de identificação estabelecido por Dora ao Sr. K ou ao seu pai:

“A ligação com os homens, com o Senhor K. ou com seu pai resulta, portanto, de uma identificação ao amor e ao desejo deles por uma mulher, que permite concluir que esta, contrariamente a ela mesma, é uma verdadeira mulher e detém a chave de um saber que ela não tem. Lacan qualifica essa posição dos homens na estrutura histérica: são os “testas de ferro” do sujeito histérico, testas de ferro de seu desejo pelo feminino. Ela deve passar por eles, pelo amor e pelo desejo deles por outra para ter acesso a uma feminilidade idealizada. O benefício é duplo: evitar ser ela mesma submetida às regras que organizam a posição feminina no discurso do Mestre e elevar o feminino à dignidade de um ideal possível de ser universalizado. Em suma, evitar ser, por ela mesma e para ela mesma, “a mulher de sua vida” e, portanto, inventar uma solução feminina que não valeria senão para ela mesma” (Brousse, 2015, p. 3, grifos meus).

Embasada nas inversões dialéticas expostas por Freud (2006) no caso Dora, destacadas e desenvolvidas em “Intervenção sobre a transferência”, em Escritos, por Lacan (1998), bem como nas contribuições de Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina…”, e de Rosa (2019), sobre “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”, posso afirmar, a partir do diário de Anaïs Nin, que há, no registro escrito da diarista, o enredo de uma escolha amorosa homossexual orientada para além do Édipo, quer seja, orientada pelo modo enigmático que a feminilidade se encarna para uma outra.

Tanto Dora quanto Anaïs colocam, respectivamente, o Sr. K e Henry como testas de ferro do desejo feminino. Assim como Dora, de acordo com Freud, “invejava o pai pelo amor da Sra. K e que não perdoava à mulher amada a desilusão que esta lhe causara” (2016, p. 66), Anaïs indaga em seus diários: “Será que amo Henry porque me identifico com ele e com o seu amor e posse de June?” (1986, p. 90). No entanto, ao que toca a identificação, diferentemente de Dora, que posicionava K apenas como um intermediário, e não como o homem com o qual ela vai sustentar um relacionamento como amante, Anaïs elege Henry o semblante do homem ideal e interessa-se por investigar como ser mulher para esse homem. Para isso, tenta assumir especularmente a posição masculina e, como um homem, investigar aquilo que aquela mulher tem e que interessaria a esse homem: “a amaria por sua beleza enquanto ela poderia me amar como se ama um homem, por seu talento, seu desempenho, seu caráter” (NIN, 1986, p. 90-91). Trata-se, aqui, de localizar o segundo posicionamento entre a histeria e a feminilidade de Nin.

Por fim, o último posicionamento de Anaïs. Ainda servindo das aproximações e diferenças com o caso Dora, esta, enquanto paciente de Freud, apresenta uma complexidade de sintomas no corpo que o próprio médico vai correlacionar como causados pelas desordens da vida psicossocial e “expressão dos seus mais secretos desejos recalcados” (FREUD, 2016, p. 19). Não pude localizar tais sintomas relacionados ao corpo nessa parte do diário sobre Henry e June, correspondente aos anos de 1931-1932. Ao que parece, os sintomas de Anaïs são seus próprios escritos. É no diário que Anaïs Nin elabora suas questões sobre a sexualidade e sobre o que fazer com essa June, sua June, pela qual ela nutria, em vão, a esperança de ver desmascarada. O que há é apenas uma June, uma June pelo que ela é, por si mesma, e, consequentemente, vê instaurada a falta em Henry e em si própria:

“Ontem à noite eu chorei. Chorei porque o processo pelo qual me tornei mulher foi doloroso. Chorei porque não era mais uma criança com a fé cega de uma criança. Chorei porque meus olhos estavam abertos para a realidade — para o egoísmo de Henry, para o amor de June pelo poder, para minha criatividade insaciável que deve preocupar-se com outras pessoas e não consegue ser suficiente a si mesma” (NIN, 1986, p. 177).

Paralelamente a essas descobertas, Anaïs vai arranjando, pela escrita, não apenas sua impotência diante de si mesma, decorrente da castração, mas, principalmente, vai tentando fazer com as palavras, intuitivamente, alguma amarração para o seu gozo.


Referências 
BROUSSE. M-H.“A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro” 2015. Trad. Márcia Bandeira. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/08/brousse.pdf Acesso em: 18, set. 2019.
Freud, S. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2016.
LACAN, J.  (1951). “Intervenção sobre a transferência”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1971). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
NIN, A. Henry, June e eu. Diários não expurgados 1931-1932. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1986.
ROSA, M. “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”. Por onde andarão as histéricas de outrora. Belo Horizonte: Edição da autora, 2019.

 




O INFAMILIAR E O OUTRO MAU

 

 

IVAN VITOVA JUNQUEIRA
Psiquiatra e psicanalista praticante, coordenador da Reunião Clínica no Complexo Penitenciário da Parceria Público Privada em Ribeirão das Neves
ivanvitova@hotmail.com

 

Resumo

O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada com uma populacão encarcerada, que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico há mais de seis anos, e no qual se tenta articular os sentimentos de angústia e terror que surgem nos atendimentos ao conceito freudiano de infamilar, assim como ao conceito de dejeto, proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”. A partir desses conceitos, é possível pensar se esses sujeitos podem estar identificados ao objeto “a” enquanto dejeto Real.

Palavras-chave: horror; ser falante; dejeto; infamiliar; Outro mau.

Abstract: This article is based on a research done with an incarcerated population that receives psychological and psychiatric treatment for more than six years in wich is made an attempt to articulate the feelings of anguish and terror that emerge in their stories to Freud’s concept of the uncanny, as well as the concept of psychic litter proposed by Miller in his text “Salvation through the litter” Through theses concepts it is also possible to think if those subjets could be identified to object “a” as a waste of the Real.

Keywords: horror; speaking being; waste; uncanny; Other bad.

 

 

Coletoras – Barbara Schall

 

“O horror, o horror”[1]

 

Em “O infamiliar” (1919), Freud coloca que o psicanalista, em uma investigação estética — que se ocupa, de preferência, dos sentimentos belos e grandiosos —, pode se interessar aí por um domínio específico, por algo comumente deixado de lado, negligenciado pela literatura especializada: os sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos. Freud coloca também que algo desse domínio é o “infamiliar”, que diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, seguro de que essa palavra coincide com aquilo que angustia e na espera de que exista um determinado núcleo que justifique a utilização desse conceito. Passa, então, a investigar o que seria esse núcleo comum que permitiria diferenciar, no interior do angustiante, algo “infamiliar”. Observa diversos fatores a partir dos quais o angustiante se torna assim infamiliar — como o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração — e conclui que este é o familiar doméstico que sofreu um recalcamento e dele retorna. O prefixo de negação “in-”, nessa palavra, é a marca do recalcamento, ou seja, o infamiliar designaria algo correlato ao retorno do recalcado, fonte de angústia para o ser falante.

Miller, digamos, retornando à investigação estética pela via dos “sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos” (FREUD, 1919, p. 31), em “A salvação pelos dejetos” (2010), retoma o mito de Hércules, que, como a humanidade, teria se situado diante de uma escolha entre duas vias: “E, como por uma escolha forçada, se poderia dizer que a humanidade tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita, a da salvação pelos dejetos” (MILLER, 2010, p. 1).

(…) o que é o dejeto? É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é informe. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa (MILLER, 2010, p. 1).

Ou seja, a descoberta freudiana primeiramente foi, como se sabe, a desses dejetos da vida psíquica, do mental − que são o sonho, o lapso, o ato falho e, mais além, o sintoma, enquanto decifrável. Poderíamos dizer então que o mecanismo de recalcamento, nesse caso, marca comum, enlaça o infamiliar aos dejetos da vida psíquica.

Retornando a Hércules e à escolha da humanidade, falemos de uma parcela desta que, ao que parece, escolheu a via do vício, ou seja, a do dejeto. Mais especificamente, trata-se de uma população encarcerada (CPPP Ribeirão das Neves, MG), com a qual trabalhamos há mais de seis anos. Trata-se de parte dos cerca de três mil detentos, encaminhada para atendimento psicológico e psiquiátrico e como casos para supervisão e construção na reunião clínica devido ao intenso sofrimento mental decorrente do encarceramento. Nessa população, as características mais marcantes são a precariedade simbólica e uma história que se repete: desamparo familiar, abandono precoce da escola e início também precoce do uso de drogas e envolvimento com tráfico, roubo e homicídio. Nessa clínica, em geral, o sofrimento emerge sob a forma do horror quando o ser falante vislumbra a possibilidade de abandono, de ruptura da relação com a companheira, percebida como uma maldade proposital. Emerge também quando o ser falante crê que o Outro da instituição de uma “ordem rija” (LACAN, 1950, p. 131) o persegue e o prejudica intencionalmente, de algum modo. Nesses casos, na impossibilidade de matar esse Outro, o ser falante evolui com ideias de autoextermínio ou passa ao ato na tentativa de enforcamento. Nesses momentos, a direção do tratamento, construída pela equipe clínica em conjunto com a segurança, tem como base operar como o Outro mínimo na construção da relação transferencial com o ser falante em sofrimento, ou seja, construir um Outro que não abandona, que faz barra à pulsão de morte e lhe abre espaço para colocar em palavras o que o aterroriza. Para isso, muitas vezes é necessário colocá-lo em cela especial no setor de saúde, sob vigilância ostensiva para evitar um suicídio, o que, às vezes, não ocorre por um triz. Em geral, vão acontecendo os atendimentos quando é possível ir construindo, na relação transferencial, um Outro menos persecutório, o que abre para a possibilidade de outros modos de amarração para o ser falante além da identificação ao criminoso.

Nesse trabalho clínico, um a um, quando da emergência do aterrorizante, do que suscita angústia e horror, perguntamo-nos se podemos identificar, aí, o infamiliar enquanto dejeto marcado pelo mecanismo de recalcamento. Para tentar responder a essa questão, é necessário nos aprofundarmos no estudo de características comuns dessa clínica precária do simbólico, que são a passagem ao ato, a desconfiança em relação ao Outro, a vontade de gozo e a ausência de sentimentos de culpa ou responsabilidade pelos atos que motivaram a prisão.

Diferentemente do texto de Lacan de 1950, “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, onde este percebe o ser falante encarcerado como “sujeito culpado” e com “esperança de se integrar num sentido vivido” (p. 131), Miller (2011), em “La experiência de lo real em la cura psicoanalítica”, enlaçando o último ensino de Lacan a Freud, desenvolve a articulação entre os termos caráter e resistência, no qual o primeiro está designando elementos de personalidade do ser falante, que, apesar de patológicos, se expressam de modo consciente, sem culpa e como modo de gozo.

No capítulo “A patologia da conduta”, Miller (2011) constrói a articulação entre sintoma e caráter, desde suas origens. Cita, como os pós-freudianos, que,

(…) a partir da noção de sintoma localizado, necessitaram introduzir o caráter, que é o conceito que serviu, quando a patologia se apresentou de alguma maneira assintomática, mas afetando o comportamento, a conduta do sujeito, o conjunto de sua vida… O conceito de caráter foi o instrumento conceitual para estender a neurose para mais além do sintoma. Para Alexander, Glover, Jones e outros, o sintoma freudiano é um enclave na personalidade do sujeito que sofre. Com respeito ao caráter, sem dúvida, a questão é convencê-lo de que está doente, na medida em que sua conduta caracterial lhe dá satisfação (MILLER, 2011, p. 138).

Em relação à satisfação, Miller, citando os três tipos de caráter de Freud, presentes em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), mais especificamente no capítulo “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”, coloca que

(…) a origem comum é a relação do sujeito com o lust, com o prazer ou o gozo. Então no caráter está em primeiro plano a satisfação, a befriedigung. E Freud nomeia caráter ao que no sujeito não se satisfaz com o sintoma, o faz parecer como um modo de satisfação da pulsão, que não mobiliza o sintoma como mensagem ao Outro (MILLER, 2011, p. 119).

Continua, em relação a outra característica dessa clínica, citada anteriormente, a passagem ao ato, que

(…) o caráter se caracteriza pelo fato de que no lugar dos sintomas se tem ações, atos afora na vida… Com o caráter apontaram para algo mais arcaico que o sintoma, anterior ao estágio de sua formação, onde a pulsão se satisfaz na ação, que o substitui. Por isso o caráter se apresenta como patologia da conduta (MILLER, 2011, p. 140).

Miller continua apontando que o caráter é, então,

(…) um.a instância, uma formação, um objeto, algo com que se cruza no trabalho analítico e que precisamente o obstaculiza de uma maneira que lhe é própria. E porque, se seguirmos Freud, se inscreve no trabalho analítico como obstáculo, penso que é legítimo inscrever o caráter como experiência do real na cura analítica. Simplesmente e conforme as indicações freudianas, localizaria o termo caráter como diferente do sintoma. O sintoma é decifrável e o caráter se apresenta como o que não se deixa ler, onde não há intencionalidade inconsciente (MILLER, 2011, p. 112-113)

A partir daí, Miller desenvolve como Lacan, apoiando-se em artigos de Jones e Abraham sobre a ideia da base pulsional do caráter, caminha para a questão do caráter como defesa e de como isso afeta o trabalho psicanalítico como interpretação: se o caráter representa uma resistência ao trabalho psicanalítico como interpretação, é porque “interessa ao que Freud denominou no Eu e o Isso de defesa” (Miller, 2011, p. 135), referindo-se ao inconsciente não recalcado. Defesa que difere do sintoma, por este estar diretamente conectado ao Real, à pulsão e ao gozo.

Após essas observações, podemos retornar à questão sobre o que suscita a angústia, o horror e o aterrorizante nessa clínica específica do ser falante encarcerado. Tratar-se-ia do infamiliar enquanto dejeto marcado pelo recalcamento, a saber, um dejeto enlaçado à ordem simbólica?

Na nossa experiência, o horror parece emergir no ser falante quando este se aproxima de uma experiência singular, descrita por Miller em “Efeito do retorno à psicose ordinária” como uma das externalidades índices de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida (2010, p. 18). Seria a experiência da identificação ao objeto “a” enquanto dejeto real, na qual o ser falante “vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo” (MILLER, 2010, p. 18), podendo chegar ao suicídio. Em outras palavras, poderíamos dizer que o que causa horror é a aproximação da possibilidade de o ser falante ocupar o lugar de objeto de gozo do Outro. Mais especificamente, de um Outro que Miller nomeou “Outro Mau”: “trata de um Outro que quer meu mal e também de um Outro que goza do mal que faz” (2011, p. 74). Situação essa que emerge quando o ser falante perde suas defesas — no caso, o enlaçamento à imagem e ao modo de gozo do bandido, que pode se defender do Outro que quer gozar dele — ou, em outras palavras, quando tem perturbado o seu caráter enquanto defesa e modo de gozo explícito do ser falante.

Poderíamos concluir questionando se, nessa população específica de nossa pesquisa, que escolheu a “via do vício”, o mais comum seria a emergência do horror — não como índice de retorno do infamiliar, enquanto dejeto articulado ao recalcado, mas como índice de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida — quando o ser falante se aproxima da identificação ao objeto enquanto dejeto real e, ainda: não seria também essa a situação de boa parte dos seres falantes fora do sistema prisional, na nossa civilização atual?


Referências
FREUD, Sigmund (1916). “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 325.
FREUD, Sigmund (1919). O Infamiliar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Autêntica, 2019, p. 29-115.
LACAN, Jacques (1950). “Premissas a Todo Desenvolvimento Possível da Criminologia”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.131.
MILLER, Jacques-Alain (2011). La experiência de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, p. 109-145.
MILLER, Jacques-Alain (2011). Quando el Otro es malo. Buenos Aires: Paidós, p. 74.
MILLER, Jacques-Alain (2010). “Efeito do Retorno à Psicose Ordinária”. Opção Lacaniana Online ano 1 – número 3 – Novembro de 2010.
[1] Coronel Walter E. Kurtz, personagem interpretado por Marlon Brando no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla, 1979, baseado em Heart of Darkness, de Joseph Conrad.



O ESTRANHO FAMILIAR: UMA LEITURA A PARTIR DE FREUD

JEANNINE NARCISO
Psicóloga e psicanalista, especialista em Saúde Mental. Membro da EBP-MG/ AMP. jannarciso31@gmail.com

Resumo

Este texto apresenta um ensaio de Freud, no qual aparece um novo significante, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia e aponta o esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro. Retoma-se a questão com Miller ao dizer que, para Lacan, o “infamiliar” resulta na noção da extimidade. Aborda-se a relação do sujeito com a linguagem como o que faz furo no real.

Palavras-chave: infamiliar, familiar, angústia, linguagem, extimidade.

The familiar stranger: a reading from Freud

Abstract: This text presents the essay by Freud in which a new signifier appears, which concerns the terrifying, causes anguish and points to the fading of the domains between the familiar and the foreign. This text resumes the question raised by Miller once more, when he states that for Lacan, the “Unheimliche”, results in the notion of “extimité”. The work addresses the subject’s relationship with language as being what makes a hole in reality.

Keywords: Uncanny, familiar, anguish, language, ex-timate.

Coletoras – Barbara Schall

 

O Estranho em Freud

O encontro com o texto de Freud se deu em três diferentes traduções, a saber, “O estranho”, “O inquietante” e “O infamiliar” — tradução esta de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares —, cujas particularidades aparecem em cada percurso de tradução. No ensaio, entre outras obras, Freud cita Hamlet, texto de Shakespeare sobre o qual a tradutora comenta: “traduzir Hamlet se mostra uma tarefa para sempre inacabada, infinita, aberta a novas interpretações, compreensões, traduções, como é praxe de sua leitura, da fruição elíptica de nosso solilóquio mais insuspeito ao longo da vida: amor e morte, amor e morte” (BEBER, 2019, p. 6).

Freud e o infamiliar

Segundo Iannini, em Freud (2019), Das unheimliche é uma palavra e um conceito; a palavra-conceito é o título do escrito de Freud. E mais: é o nome de um sentimento aterrorizante, um domínio desprezado pela pesquisa estética e o efeito da leitura de certos contos fantásticos. Para Iannini, o que Freud pretendia era convocar o psicanalista a não perder de vista o real que a palavra unheimliche recorta. Assim, entrega um significante novo e intraduzível, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia. A equipe tradutora optou por traduzir unheimliche, do alemão, por um aparente neologismo, “infamiliar”, e mostra que essa tradução causa problema. “’O infamiliar’ mostra que o muro entre as línguas não é intransponível, mas que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (FREUD, 2019, p. 40). “É uma marca visível da impossibilidade da tradução perfeita” (FREUD, 2019, p. 42).

A palavra unheimliche, usada por Freud, é formada pelo prefixo de negação un, um índice de castração, e o adjetivo heimliche, que exprime aquilo que é “familiar e íntimomas que pode evocar o que é secreto e desconhecido” (FREUD, 2019, p. 205) e deriva do substantivo Heim (lar, morada).

Em Freud (2019), Iannini aponta como fundamental, no ensaio freudiano, o movimento de descentramento subjetivo, de esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro:

como respondemos àquilo que um estrangeiro nos aporta, especialmente quando este algo é absolutamente familiar e doméstico para ele, mas claramente exótico e ameaçador, pelo menos da perspectiva de nossa suposta integridade identitária, que resiste a assimilar o estrangeiro. Os nexos profundos entre tradução e política não tardam a aparecer (FREUD, 2019, p. 102).

O infamiliar

Para Freud (2019), o termo é peculiar. Relaciona-se com o que é assustador, com o que provoca medo e horror; é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho e, há muito, familiar. Mas, ao mesmo tempo, o infamiliar seria algo do qual nada se sabe. Freud consulta vários dicionários para buscar encontrar algum novo significado para além da equivalência infamiliar (não conhecido).

O efeito infamiliar pode ser criado, na literatura, nos contos que colocam o leitor diante da incerteza “se ele tem diante de si, uma determinada figura, uma pessoa ou um autômato” (FREUD, 2019, p. 1012). Dessa maneira, o leitor fica com uma incerteza intelectual diante de algo que não sabe como abordar de fato. No conto “O homem da Areia”, E.T.A. Hoffmann estabeleceu essa manobra psicológica. O tema “O homem da Areia”, aquele que arranca os olhos das crianças, foi considerado por Freud como central no conto. Portanto, não é Olímpia, a boneca aparentemente viva, que causa o efeito infamiliar do conto nem as elucubrações fantasísticas do jovem estudante Natanael.

O sentimento do infamiliar será provocado pela figura do Homem da Areia, que deve roubar os olhos e substitui o temido pai, de quem se espera a castração. Na experiência psicanalítica, aparece a angústia da criança de se machucar ou de perder os olhos — que aparece também nos adultos. Tanto que existe o dizer sobre aquilo que se protege como a “menina dos olhos”. O medo de ficar cego é correlativo à angústia de castração, assim como, no mito de Édipo, há o ato punitivo de cegar a si mesmo.

Freud investiga vários fatores que provocam o efeito infamiliar, e alguns desses provêm de fontes infantis e de fases específicas do desenvolvimento do Eu. No tema do duplo, o Eu se forma e instâncias singulares aparecem: a “consciência moral” — contrapondo ao restante do Eu, que serve de censura psíquica — e, nos casos patológicos, o delírio de se ser observado.

O fator da repetição do mesmo, outra fonte do sentimento do infamiliar, aparece nos sonhos e nas situações de desamparo. Freud conta algo que aconteceu com ele em uma quente tarde de verão, enquanto caminhava pelas ruelas de uma cidadezinha italiana, acabou voltando, por três vezes, a um mesmo trecho, onde haviam mulheres maquiadas debruçadas nas janelas das pequenas casas. Nesse momento, ele diz ter experimentado o sentimento do infamiliar e ficou feliz por ter renunciado a fazer outras descobertas. A repetição involuntária pode derivar da vida anímica infantil e exprime a compulsão à repetição, ligada à natureza das pulsões.

Freud propõe a aproximação de casos que validariam a hipótese do infamiliar apresentando a história clínica de um neurótico obsessivo que quer ocupar um quarto em uma clínica, mas este está ocupado por outro paciente, e então diz: “que ele morra de infarto” (FREUD, 2019, p. 1200). Dias depois, isso ocorre. Para o paciente, foi uma vivência “infamiliar”.

Nesse ensaio, Freud ainda cita outros fatores a partir dos quais o angustiante se torna infamiliar. Na sequência, faz duas observações consideradas essenciais. Em primeiro lugar, que “todo afeto de uma moção de sentimento — de qualquer espécie, transforma-se em angústia por meio de recalques — este angustiante é algo recalcado que retorna” (FREUD, 2019, p. 1230).

Em segundo lugar, aponta que “o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliaruma vez que esse infamiliar nada tem de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento” (FREUD, 2019, p. 1230).

O infamiliar no mundo em que a gente vive

Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/2010) diz que, se os avanços tecnológicos não tivessem acontecido, o filho não deixaria a cidade natal, o amigo não viajaria para longe e não precisaríamos dos meios de comunicação para acalmar a nossa inquietude. Na atualidade, a aviação comercial possibilitou cruzar os oceanos. Mas, ainda hoje, ser um estrangeiro, ser um imigrante, traz algo do infamiliar. Para Bassols, “É o estrangeiro (…) que encarna, para cada um, um gozo estranho, segregado, alheio (…) que nós, psicanalistas, designamos às vezes como ‘o real’, sempre inquietante” (FREUD, 1930/2010, p. 6).

Afinal, como o infamiliar se apresenta no mundo em que a gente vive? A família moderna apresenta um estatuto extremamente reduzido; a redução das solidariedades familiares deixa o sujeito desatado da sabedoria tradicional. Nos casos atendidos na clínica, aparecem a família da época da ciência e também a da época da psicanálise, em um mundo onde o discurso da ciência dessubjetiva o significante e introduz a universalização, desatando o sujeito da sabedoria tradicional. E o real do trauma, por sua vez, irrompe na modalidade temporal das urgências. É o tempo do inconsciente real, um inconsciente sem recalque, ou com pontos em que o Nome-do-pai (NP) não incidiu, de onde advêm os fenômenos que não obedecem às leis da linguagem e cujo conteúdo que retorna não poderá ser historiado pelo sujeito.

Desde Freud, os psicanalistas não deixam de pensar o sujeito na sua relação com a linguagem. Lacan chama de falasser a relação do falar com o ser: “a linguagem está ligada a alguma coisa que faz furo no real. Aliás, a linguagem come o real” (LACAN, 2007, p. 31). Portanto, uma pergunta é formulada: como se dá o encontro de uma criança que imigra com o infamiliar da linguagem? Brousse (2007) considera que o bebê não nasce falando, mas é exposto à alteridade da linguagem e será um sujeito falante quando souber as palavras e puder devolvê-las ao Outro. Para o psicanalista, o encontro com a história de vida de uma criança se dá a partir da entrevista inicial com os pais e será no a posteriori que se verá como cada criança ressignificará o vivido.

Vejamos como esse encontro ocorre atualmente: quando imigra, no primeiro ano de vida, a criança tem seu nome próprio — Tainá[1]. Lacan (2007) diz que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer mais que um S1. Se dirige rumo S2, onde se “acumula o que concerne ao saber” (LACAN, 2007, p. 86). A pronúncia do nome da criança, de origem indígena, causa a preocupação dos pais. No entanto, o que provoca a angústia é a irrupção do real, que advém com o seu primeiro adoecimento, quando começa a ir à creche. Ou seja, quando o infamiliar emerge, o encontro com aquilo que é invasivo convoca, no pai, a tentativa de dar um sentido, lançando mão do simbólico, para lastimar contra os malditos microrganismos — vírus e afins — e ao custo de uma vida social[2].

Quando outra criança se muda de país enquanto está aprendendo a falar, normalmente rompe com as rotinas com as quais tinha intimidade. Após algum tempo, quando convocada, a criança não consegue falar com desenvoltura sua língua materna nem a segunda língua, mas, ao seu modo, diz do medo de ficar sozinha. Miller (2011, p. 15) vai dizer que “intimidad es estar calentito” [3] e que, do lado íntimo, está o interior mais pessoal.

Ao imigrar, uma criança tem que aprender uma terceira língua, que possui certa dificuldade, mas pode não mostrar interesse em participar das aulas nem progredir na seriação escolar. Tal dificuldade pode impedir o acesso à universidade, despertando a angústia dos pais.

O infamiliar faz surgir a angústia mobilizando o sujeito quando o gozo invasivo emerge e deixa aparecer o que é da ordem do real. O infamiliar, para Freud, toca o limite entre o interno e o externo. Para Lacan, resulta na noção da extimidade, isso que é o mais interior sem deixar de ser exterior (MILLER, 2011). Segundo Miller (2011), a extimidade, o falar “do Outro de dentro”, aponta para a questão da imigração, termo considerado relativamente novo, contemporâneo da revolução industrial. O sujeito, ao vivenciar a perturbação de estabelecer-se em um país estrangeiro, faz cálculos “para saber se deverá abandonar sua língua, suas crenças, suas vestimentas, sua forma de falar, se trata do fato de saber em que abandonará o Outro gozo” (MILLER, 2011, p. 55). Em psicanálise, ser um imigrante é o estatuto do sujeito. “O sujeito como tal definido por seu lugar no Outro, é um imigrante… O problema do sujeito precisamente é que este país estrangeiro é seu próprio país” (MILLER, 2011, p. 43).

Na modernidade, com o objeto a que “es tan êxtimo al sujeito como al Otro” (MILLER, 2011, p. 22), no zênite, com o declínio do NP, temos duas vias para pensar a angústia trazida pelo infamiliar. Segundo Sérgio de Castro (2020), na via da angústia de castração, temos um unheimliche passível de ser interpretado e que traz a marca do NP, apreensível pela linguagem. O sujeito sustentado pelo NP poderá decodificar, compreender um certo mal-estar, lançando mão do simbólico. Na via da angústia lacaniana, quando o objeto se presentifica, quando falta a falta, aparece um unheimliche, um real que remete ao campo do gozo, que tem algo de invasivo. O sujeito, sem a sustentação fálica e sem a mediação simbólica, pode se ver sem a possibilidade de dar um sentido àquilo.


REFERÊNCIAS
BASSOLS, M. O bárbaro: Transtornos de linguagem e segregação. Opção Lacaniana online, São Paulo, n. 25/26, 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/texto2.html. Acesso em 30 out. 2019.
BEBER, Bruna. (2019), Hamlet. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
BROUSSE, Marie-Hélène. (2007) Objets ètranges, objets immatériels: pourquoi Lacan inclut la voix et le regard dans la série des objets freudiens? Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 59, n. 2, p. 287-293, dez. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672007000200017. Acesso em 8 abr. 2020.
CASTRO, Sérgio de. Seminário ministrado em Montes Claros – MG em 13 fev. 2020.
FREUD, Sigmund. (1919). O Estranho. In: Obras completas, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990.
FREUD, Sigmund. (1919) O Infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019): Seguido de “O homem da areia” de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte, MG: Editora Autêntica, 2019.
FREUD, Sigmund. “O Inquietante”, In: Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. (1930) “O Mal-estar na civilização”, In: Obras completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HOFFMANN, E.T.A. ”O homem de areia”, In: Contos Fantásticos do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O sinthomaRio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ,2007.
MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011.

[1] Nome fictício.
[2] Este texto foi escrito antes de a OMS declarar a pandemia do coronavírus, em 11 mar. 2020.
[3] “Intimidade é estar quentinho” (tradução nossa).



O FEMININO INFAMILIAR: DIZER O INDIZÍVEL

 

 

ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA
Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFMG. Membro da EBP/AMP. andrea.eulalio@hotmail.com

Resumo

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que não pode ser interpretado. Um fragmento clínico elucida como que, no mais íntimo de cada língua familiar, existe uma língua estranha, estrangeira, cujo encontro retorna, segundo Freud, como “inquietante estranheza”.

Palavras-chave: Infamiliar, inconsciente, língua familiar, gozo.

Abstract:

Both the word and the Unheimlich experience refer to an enigmatic point that is of the order of the unspeakable and the unspeakable, to something irreducible and not mediated by the symbolic and that cannot be interpreted. A clinical fragment that elucidates as if in the most intimate of each familiar language, there is a strange, foreign language whose encounter returns, according to Freud, as “disturbing strangeness”.

Keywords: Uncanny, unconscious, familiar language, jouissance.

 

Coletoras – Barbara Schall

 

Logo de início, em seu famoso texto “Das Unheimliche”, publicado em 1919 e traduzido para o português como “O estranho”, Freud adverte o leitor acerca das circunstâncias sob as quais é possível que o familiar se converta no lugar do mais estranho, do mais estrangeiro, do mais alheio e ignorado para cada ser falante.

Na primeira parte desse texto, Freud (1919, p. 277) apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o uso semântico do termo heimlich (doméstico, íntimo, conhecido, amistoso) e de seu antônimo unheimlich (misterioso, oculto, secreto, estranho, inquietante, sinistro).

A pesquisa sobre o uso linguístico do termo heimlich revela que essa palavra não deixa de ser ambígua, pertencendo a dois conjuntos de ideias, as quais, mesmo não sendo contraditórias, são muito diferentes e significam, por um lado, aquilo que é familiar e agradável e, por outro, o que está “oculto da vista” (FREUD, 1919, p. 280). Freud aponta que, entre os diversos significados da palavra heimlich, há um que coincide com o seu oposto, unheimlich, e que, de um modo ou de outro, representa uma subespécie de heimlich.

Segundo Bassols (2017, p. 39), se tivéssemos que transpor literalmente a expressão Das Unheimliche para nossa língua, seria melhor falarmos “o infamiliar”, como se encontra agora traduzido pela Editora Autêntica (2019), “sendo que o ‘in’ pode ser tanto a negação do familiar como também o mais interior a ela” (BASSOLS, 2017, p. 39).

A indicação bastante precisa de Freud, segundo a qual o exterior está presente no interior, vai ao encontro ao termo “êxtimo”, cunhado por Lacan. A estrutura da extimidade relaciona-se à constante vacilação da identidade do sujeito consigo mesmo revelando o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Esse “in” que se transforma em “ex” indica que quanto maior a proximidade do familiar, mais ele se transforma em estranho. Indica que ele é, ao mesmo tempo, interior e estranho.

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem-nos a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que, por isso mesmo, não pode ser interpretado. Mesmo no encontro originário com a língua, Freud ressalta a dimensão paradoxal da experiência do Unheimlich, na qual o encontro com o mais íntimo retorna enquanto “inquietante estranheza”.

Reencontraremos a partícula “Un”, que designa o inconsciente, presente em Das Unbewusste e em  Das Unheimliche, em Lacan, (1971-1972, p.132) no “Um” sem Outro, sem alteridade possível, no “Um” sozinho do gozo, que faz do seio familiar a sua morada e que vem transformando a estrutura familiar clássica (BASSOLS, 2017, p. 39).

A família é a possibilidade de cada ser falante dar uma resposta, uma versão sintomática, nos melhores casos, a esse gozo do Um sozinho que aparece como Outro estranho e se encarna ali onde não há relação sexual entre um homem e uma mulher.

Como encontramos a incidência desse gozo bárbaro, demoníaco, do Um sozinho nas novas configurações familiares e diversidades sexuais?

As transformações e remodelações em torno da estrutura familiar, com implicações para o parentesco e para a filiação, atestam que a criança se tornou o fundamento da família, e não mais o seu efeito, restando a ela escolher o seu lugar em uma diferença sexual que se pluralizou. Os pais se redefiniram em termos dos cuidados com a criança, e não mais em termos da diferença sexual, e a incidência da função fálica que possibilita o ser falante nomear-se como ser sexuado encontra-se submetida às novas versões de nomeação e a autonomeações. Devemos considerar também a impossibilidade de habitar um corpo e fixar uma imagem. Enfim, uma série de transformações que têm deixado a criança muito mais exposta ao Um sozinho, esse Um do Unheimlich desenlaçado do Outro, e a uma “infância desregulada e disruptiva” [1].

A dificuldade que aparece ao tratarmos do assunto “família”, independentemente do discurso da qual ela se depreende, já se encontra explicitada numa passagem de O semináriolivro 23, sobre “o sinthoma”, na qual Lacan afirma: “Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto. Somos falados e, por cauda disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado” (LACAN, 1975-1976, p. 158-159).

Segundo Bassols (2017, p. 46), cada sujeito é servo do discurso familiar, no sentido de que é a língua familiar que nos fala sobre aquilo que nos determina como sujeitos. Ou seja, é a língua dos significantes mestres fundamentais na história de cada um de nós, os quais servem para nos identificarmos com os outros e entre os outros. Contudo, a transmissão simbólica está marcada por um furo, que passa não só pelos significantes já articulados na linguagem mas, sobretudo, pela lalíngua própria a cada um.

Devemos identificar, então, a língua do Outro, a família do Outro, como o lugar que encarna o Outro de cada sujeito e também da criança. É o estrangeiro, o bárbaro enquanto signo daquilo que rechaçamos como radicalmente diferente e que está, ao mesmo tempo, no lugar mais familiar, mais íntimo e próximo de nossa realidade e da nossa forma de vivê-la.

Em qual língua a família nos fala? Qual é essa língua familiar para cada um? Em qual língua somos realmente falados pela família?

Penso que, nesse sentido, a conferência A língua familiar, de Miquel Bassols, nos orienta quando diz que cada um é um bárbaro em sua própria língua familiar. O termo bárbaro, tal como o termo heimlich, comporta dois sentidos ambivalentes. Pode tanto designar o mais estranho e intrusivo para a língua familiar quanto algo que experimentamos como um grande prazer, de acordo com nossa forma de gozar. E o analista também deve ser um bárbaro da língua para escutar o sujeito, ou seja, deve escutar aquilo da família que o fala quando o sujeito quer falar dela.

Para Bassols, a criança sempre chega à família como um verdadeiro bárbaro inesperado, como um intruso para o casal parental. Esse dizer de Bassols pode ser elucidado em Freud quando este trata a existência da sexualidade infantil como um gozo perverso e polimorfo, descentrado, o qual nunca será unificado, introdutor de uma dificuldade particular: não há código que permita ao sujeito decifrar o que lhe ocorre, e nem mesmo a mãe ou o pai sabe muito bem o que fazer com esse gozo. Sendo assim, a criança encarna esse lugar do bárbaro tanto para o adulto como para ela própria.

A criança surge como um bárbaro na língua familiar porque sua tagarelice é, com efeito, o tagarelar de um bárbaro que ninguém entende. Lacan, ao abordar esse real do gozo da língua, nomeou esse “tagarelar bárbaro” lalangue. A mãe e o pai costumam ser os encarregados de interpretar a língua do bárbaro — inventada a partir das particularidades “linguageiras” de cada um e desprendida do compromisso com a comunicação —, dando-lhe um sentido e supostamente civilizando a língua familiar. “O problema é que esta língua familiar supostamente civilizadora é ela mesma um dialeto da língua bárbara do gozo perverso e polimorfo da própria infância dos pais, que também foram bárbaros em seu momento” (BASSOLS, 2017, p. 46). Há, portanto, um mal-entendido inaugural e permanente que não cessa de se escrever entre a língua amorosa e terna dos adultos e a língua do gozo infantil, esse gozo opaco, indizível e enraizado no corpo.

Geralmente, o melhor que pode ocorrer aí é a criança fazer o seu sintoma ao se fazer representante da verdade do casal parental como “a verdade do bárbaro que está na origem da sua língua familiar”, tal como Lacan (1969) observou em “Nota sobre a criança” (LACAN, 1969, p. 369). Podemos tratar a noção de verdade no contexto familiar como aquela que implica o encontro sexual que concerne ao gozo e ao desejo do casal parental. A outra possibilidade, muito mais sinistra, é a criança encarnar o objeto do fantasma materno, “e não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto” (LACAN, 1969, p. 369).

Outro momento decisivo que envolve o Outro familiar e a língua do Outro se dá quando o bárbaro se depara com o real da puberdade. Ao representar-se como ser sexuado, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava sua identificação e seu sentimento de vida. As modificações do corpo causam um sentimento de estranheza que o adolescente enfrenta como algo intraduzível na língua do Outro. Quando esse ponto de apoio vacila, o sujeito se confronta com algo que faz “furo no real”, reenviando-o a um vazio de significação. Essa delicada passagem se converte, novamente, em um momento de mal-entendidos absolutos, incertezas e inquietudes e de uma grande confusão de línguas no seio familiar.

“Tudo isso que foi dito nos indica que não é nada fácil discernir o que e qual é a língua familiar do sujeito. Sobre que linguagem, como aparato simbólico, o ser falante elucubra para situar o real em jogo de cada língua?” (BASSOLS, p. 46).

A seguir, apresento um fragmento de caso no qual o encontro com o real da puberdade traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem e com a língua, deixando-o exilado em seu próprio gozo.

Esse estranho que me habita

“Ele é o único em nossa família a ter problemas”. Foi desse lugar do estranho que um adolescente me foi apresentado por sua mãe em nosso primeiro encontro. A família paterna do garoto é estrangeira e os poucos contatos que ele tem com esses familiares são permeados pelos mal-entendidos. Ele não sabe dizer o porquê de ser tratado com tamanha rispidez e intolerância por seus familiares.

Quando Lacan diz que somos filhos do mal-entendido e que somos atravessados pelos mal-entendidos que proliferam na confusão dos laços e das línguas faladas entre nossos ascendentes, ele indica que, por não haver “revelação ou dissolução possível, resta-nos incorporar esse mal-entendido” (GROISMAN, 2016, p. 47). É isso que esse adolescente vem tratando em sua análise: desse gozo estranho que o acomete no corpo e que é vivido com muita estranheza. Afinal, nada é mais familiar e mais estranho que a experiência do próprio corpo.

A cada discussão familiar que se vê envolvido, o garoto é tomado por uma sensação de estranheza, por um afeto que o ultrapassa, e a sua forma de responder a isso é uma cisão entre o eu e o corpo real de seu ser. Ele se vê vendo, como se estivesse enquadrado na cena de um filme. O mundo fica estranho — lugares e situações familiares ficam diferentes —, dando-lhe a sensação de que ele “já não é o mesmo”; sua voz também lhe soa estranha, irreconhecível, tudo fica no automático, como se ele “não mais fizesse parte da vida”.

Sabemos que o “eu” se sustenta em determinações simbólicas e pela extração do objeto a no real. A vacilação das identificações simbólicas do sujeito consigo mesmo e a consequente perda dos pontos de referência imaginários revelam o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Sendo assim, o lugar que o sujeito havia encontrado para si no Outro, seu lar, seu Heim, se torna então Unheim, estranho. Com relação a esse ponto do estranhamento, Lacan afirmará, em O seminário, livro 23, que “A inquietante estranheza, incontestavelmente, provém do imaginário” (LACAN, 1975-1976, p. 47).

Em uma análise, tentar dissolver o mal-entendido só o alimenta, diz Lacan. Será preciso que o sujeito possa reencontrar, em sua própria fala, as fontes desses mal-entendidos não como o que escutou ou entendeu mal, mas como aquilo que encerra em si a opacidade do desejo que lhe deu origem, deixando, assim, uma via para invenção (REGO, BARROS, 2016, p. 41).


Referências
BASSOLS, M. O bárbaro: transtornos da linguagem e segregação. Opção Lacaniana onlineano 9, n. 25 e 26, mar.-jul. 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_Barbaro_Transtornos_de_linguagem_e_segregacao.pdf. Acesso em: 8 mar. 2020.
BASSOLS, M. A língua familiar. Opção lacaniana, n. 79. Conferência apresentada no VIII Enapol, em Buenos Aires, em setembro de 2017.
FREUD, S. “O estranho” (1919). In: Freud, S. Obras completas, volume 14, São Paulo: Cia das Letras, 2010.
FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche]. – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019). Obras Incompletas de Freud, Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
GROISMAN, A.T. O mal-entendido que entre pelos Ouvidos. Opção Lacaniana, n. 72, p. 47, mar. 2016.
La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n. 2. Lettre d’information de L’institut psychanalytique de l’enfant.
LACAN, J. Nota sobre a criança. (1969). In: Lacan, J.Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975/1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior.1971-1972. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
RÊGO BARROS, M. R. O mal-entendido e a não relação sexual. Opção Lacaniana, n. 72, p. 41, mar. 2016.

[1]La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n.2. Lettre d’information de L’Institut psychanalytique de l’enfant.



A PSICOSE, O INFAMILIAR E O INTRADUZÍVEL

 

 

FREDERICO FEU DE CARVALHO
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
Resumo

O infamiliar é trabalhado por Freud como a emergência no campo da realidade de algo íntimo e secreto, que deveria permanecer oculto, e que é experimentado em seu oposto, ou seja, como algo estranho — infamiliar. O surgimento de alguma coisa que produz essa inquietante estranheza modifica, por um momento, nossa percepção da realidade. É possível se perguntar, por meio dessa palavra-conceito expressa por Freud, quais relações aproximativas podem ser feitas entre o infamiliar, o sentimento de estranheza e a “perda da realidade” na psicose.

Palavras-chave: Infamiliar; inconsciente; intraduzível; psicose

Abstract: The uncanny is a a word chosen by Freud to designate the emergency of something intimate and secret that should have remained hidden in the field of reality and that is experienced by the subject in its opposite form, that is, like something odd or uncanny. The emergency of something that produces this unsettling strangeness modifies, for an instant, our perception of reality. Through this word-concept proposed by Freud, one might ask what the possible relations between the uncanny and the loss of reality in psychoses are.

Keywords: Uncanny; unconscious; untranslatable; psychoses

 

Coletoras - Barbara Schall

Coletoras – Barbara Schall

 

No início de seu artigo “O infamiliar”, de 1919[1], Freud evoca o tratamento diferenciado que a disciplina da Estética dedica àquelas percepções que não pertencem ao campo do belo e do sublime e que, ao contrário, despertam a angústia e o horror. Entre essas percepções, Freud se dedica a investigar como aquilo que nos é íntimo ou familiar pode surgir, em determinadas ocasiões, como o seu oposto, ou seja, como estranho a nós, como algo que nos é infamiliar, provocando a angústia. No âmbito desse artigo, gostaria de examinar o estatuto teórico dessa palavra-conceito (Begriffswortes), como se expressa Freud, e como a emergência do infamiliar afeta a nossa apreensão da realidade e os laços sociais por ela circunscritos, na medida em que definimos a realidade como um compartilhamento de semblantes sociais. Nesse sentido, cabe perguntar que relações aproximativas podemos conjecturar entre o infamiliar e o sentimento de estranheza que caracteriza a relação com a realidade em algumas formas da psicose, por efeito do que Freud denomina “perda da realidade”, e que se reflete em falas como “eu não me reconheço neste mundo” ou “eu não consigo habitar este mundo”.

O ensaio “O infamiliar” é contemporâneo de “Além do princípio do prazer” e de “Psicologia das massas e análise do eu” e retoma um tema que Freud teria deixado na gaveta desde seu outro ensaio, “Totem e tabu”, de 1913, isto é, a sobrevivência da visão animista do homem primitivo na época da razão e da ciência. O ano de redação de “O infamiliar” é marcado pelo fim da Primeira Guerra Mundial e pela epidemia da gripe espanhola. A Europa estava, então, assombrada por uma sucessão de mortes, ora provocadas pelas pulsões destrutivas e pela intolerância de regimes totalitários fundados no amor ao pai, ora pela intrusão de um ser biológico invisível que ameaçava a espécie humana.

A angústia provocada pelo infamiliar, no entanto, não remete diretamente a uma angústia real diante da iminência da morte derivada de uma causa externa, como a guerra ou a epidemia. O infamiliar designa, antes, uma forma de manifestação da angústia, em geral transitória, associada a alguma coisa que nos é íntima e secreta, mas que, como a outra face de uma mesma moeda, surge inesperadamente no campo da realidade, quando deveria permanecer oculta. A longa meditação linguística desenvolvida por Freud no segundo capítulo desse artigo tem como objetivo mostrar o sentido antitético do termo alemão Das Unheimliche, ou seja, o fato de “infamiliar” derivar de “há muito familiar”, daquilo que se tornou íntimo e que, por meio de um deslocamento, passa a designar o que é oculto ou escondido. É essa derivação que o leva a associar a angústia do infamiliar ao retorno do recalcado inconsciente e, de uma forma genérica, à sobrevivência de crenças primitivas e complexos infantis em nossa apreensão da realidade.

Tal como ocorre no conto de Franz Kafka, “A preocupação do pai de família”, em que somos obrigados a conviver com o estranho ser chamado Odradek em nossa casa sem que possamos saber muito a seu respeito, sem que possamos capturá-lo. E, quando pensamos que ele se foi, Odradrek reaparece como que do nada, nas ocasiões mais insólitas, para nos lembrar de que não somos senhores em nossa própria casa; que somos habitados pelo estrangeiro em nós mesmos, apesar de nosso narcisismo original querer afirmar sempre o contrário, isto é, que, em nossa casa, somos soberanos.

Do ponto de vista fenomenológico, o sentimento do infamiliar pode ser comparado a outras formas de desencadeamento da angústia, como o susto, o medo e o pânico[2], levando-se em conta, por exemplo, a sua dimensão temporal, a sua intensidade ou as condições de sua irrupção. Freud busca discernir, nesse ensaio, o traço diferencial do infamiliar reivindicando uma leitura psicanalítica desse fenômeno, o que culmina na aproximação entre o infamiliar e o recalcado.

O que distingue o sentimento do infamiliar da angústia, em geral, no campo de nossas percepções, é a emergência de alguma coisa que produz uma inquietante estranheza, que “desrealiza”, por um momento, por assim dizer, nossa percepção da realidade. Segundo Freud, a relação com a realidade depende de uma operação psíquica: a substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade, obtida graças à moeda de troca da fantasia. A fim de que a realidade possa ser adequadamente enquadrada e funcionar como um semblante, é preciso que o objeto de gozo seja localizado na fantasia, e não no campo da realidade. Lacan nomeia essa operação “extração do objeto”. Em termos freudianos, a extração do objeto do campo da realidade equivale, portanto, à elaboração da fantasia inconsciente, ou seja, à configuração de uma Outra cena, graças ao investimento de objeto na fantasia, como condição para que a cena do mundo, sustentada pelo princípio de realidade, possa operar adequadamente.

O artigo “A negação”, de 1925[3], nos permite esclarecer em que consiste essa extração do objeto do campo da realidade. A tese de Freud, depois retomada por Lacan, sustenta que a realidade deve ser enquadrada pelo sujeito, não sendo, portanto, uma simples extensão de nossos sentidos. Freud sugere que as nossas primeiras cisões psíquicas, influenciadas pelo “Eu prazer”, modelam o campo da realidade incorporando ao Eu as representações agradáveis, ao passo que as representações desagradáveis são excluídas do Eu e se tornam, então, hostis a ele. Tal distorção será depois corrigida pela evolução psíquica do princípio de realidade, que impõe uma visão mais ajustada e menos vinculada ao princípio do prazer em nossa apreensão da realidade. Mas o princípio de realidade incide sobre um real já modelado, segundo a disposição inicial do “Eu prazer”, ou seja, por uma exclusão primária que recorta determinada região do real como inassimilável, fora do campo da representação.

Nesse artigo de 1925, Freud distingue a negação que caracteriza o recalque (Verdrägung) — que afeta as representações psíquicas inconscientes — daquela que resulta em exclusão do Eu — operação à qual ele deu o nome de Ausstossung —, que se refere a um núcleo real que permanece estranho a ele pelo fato de não se vincular a nenhuma representação psíquica, mesmo que recalcada. Para tratarmos das relações entre o infamiliar e a psicose, teríamos que nos reportar a essa primeira diferenciação. De fato, se, na neurose, podemos remeter o infamiliar ao recalcado inconsciente, àquilo do qual o neurótico nada quer saber, mas que surge no campo da realidade como uma intromissão da Outra cena na cena do mundo, na psicose, por sua vez, o infamiliar parece habitar o próprio campo da realidade pelo fato desta não estar enquadrada pela fantasia.

No entanto, apesar de Freud associar, na terceira parte de seu ensaio, o infamiliar e o recalcado, o infamiliar não é tratado ali como uma formação do inconsciente típica, vinculada à estrutura da linguagem e condensadora de sentidos (Sinn). O infamiliar evoca, ao contrário, uma forma inabitual do retorno do recalcado, sendo mais próximo do retorno no real que caracteriza a psicose. De fato, o tipo de fenômeno que interessa a Freud investigar em “O infamiliar” não se estrutura a partir do retorno da cadeia significante, mas da presença de um objeto que se comporta como um signo de gozo, como índice de um real, ou seja, que não se estrutura a partir da cadeia significante do sintoma como uma formação de compromisso, mas como algo intrusivo, como uma emergência de um real que retorna desde fora.

Esse índice do real, se tomamos como paradigma a neurose, tem como referente (Bedeutung) o objeto da fantasia, ou seja, o núcleo real que a fantasia encapsula com sua vestimenta significante e cuja presença no campo da realidade suscita angústia, borrando a fronteira entre a cena do mundo e a Outra cena. Trata-se aqui da emergência real de um objeto que havia sido extraído do campo da realidade, que volta a se apresentar onde deveria faltar para que então pudesse causar o desejo na neurose, no lugar da falta que condicionou a construção da cena do mundo e o enquadre da realidade devido à extração do objeto e do seu investimento na fantasia inconsciente.

É essa presença no real de um signo de gozo que satura o campo da realidade na psicose, conferindo-lhe uma aura de estranheza. A “perda da realidade” na psicose, evocada por Freud em 1924, na esteira das reformulações de sua segunda tópica, é uma consequência dessa saturação, se definimos o enquadramento da realidade a partir da extração do objeto da fantasia. A percepção da realidade, assim como o laço social, pressupõe o esvaziamento do gozo e sua redução ao objeto a, ou seja, ao objeto da fantasia que condensa, condiciona e particulariza esse gozo, que passa, assim, ao inconsciente. Quando o psicótico se queixa de estar ouvindo vozes ou de estar sendo olhado, perseguido ou vigiado, ele testemunha, justamente, a presença excessiva do objeto voz e do objeto olhar, que perturbam a relação com a realidade. A perplexidade da “vivência delirante primária”, descrita pela psiquiatria clássica, poderia ser, nesse sentido, comparada ao infamiliar generalizado e radicalizado que aponta para a presença de um signo de gozo no campo perceptivo que desencadeia a angústia e provoca o desmoronamento do sentido que suportava, para o sujeito em questão, a construção da realidade.

Podemos sustentar que a angústia suscitada por um filme de suspense ou de terror depende, igualmente, da expectativa de intromissão do infamiliar na realidade. Mas essa intromissão do infamiliar na realidade está resguardada pela ficção cinematográfica. Os efeitos assustadores de um filme de terror ou de suspense dependem da evocação de formas típicas do estranho que povoam o nosso imaginário, como os fenômenos de duplicação, de animação de seres inanimados, de ressuscitação de mortos ou, ainda, de emergência desmedida do gozo do Outro, que deveria permanecer aplacado pelas exigências da civilização que garantem a manutenção dos semblantes discursivos. A angústia em um filme de terror ou suspense se nutre, portanto, da expectativa do surgimento de um objeto na cena ficcional cuja falta permanece resguardada no campo da realidade graças à estrutura discursiva do laço social.

Essa estrutura discursiva se impõe a todo ser falante e tem como condição a renúncia ao gozo e o recalcamento daquelas representações que se vinculam ao gozo interdito. Como efeito dessa renúncia, o gozo interdito prolifera no inconsciente. Devido à estrutura de linguagem que caracteriza o inconsciente, a angústia pode, por exemplo, ser condensada em um objeto fóbico, com a conhecida proliferação de sentidos dessa formação do inconsciente e com a ajuda da qual se torna possível delimitar, no campo da realidade, aquilo que se deve evitar ou aquilo de que se deve defender. A fobia é, nesse sentido, uma forma suplementar de extração do objeto do campo da realidade que visa compensar as fragilidades do Nome-do-pai para levar a bom termo a interdição do gozo e sua redução inconsciente à fantasia.

Em uma vertente paralela, teríamos o objeto fetiche da fantasia perversa, que localiza a vontade de gozo do sujeito tamponando, ao mesmo tempo, o furo da castração. Uma das diferenças evidentes entre o objeto fóbico e o objeto fetiche pode ser assim formulada: na fobia, observamos a transmutação característica da angústia em medo a partir do trabalho metafórico e metonímico do inconsciente sobre o gozo, que leva à eleição do objeto fóbico; no fetichismo, ao contrário, o trabalho do inconsciente, como uma espécie de metáfora estancada, se detém diante de um objeto que desmente a castração e que captura a vontade de gozo do sujeito.

O objeto que podemos qualificar como infamiliar se distingue, por sua vez, tanto do objeto fetiche, que captura a vontade de gozo de um sujeito, quanto do objeto fóbico, ao qual podemos atribuir o “querer dizer” que caracteriza as formações do inconsciente. O infamiliar designa um objeto intraduzível, não recoberto pela vestimenta da cadeia significante, embora possamos referi-lo ao modo singular de gozo de um falasser. Nada se pode dizer do olhar vivificado da boneca Olympia, no conto de E.T.A. Hoffmann, comentado por Freud em seu artigo, a não ser que esse olhar obseda o personagem Nathanael. Olympia nada diz a Nathanael a não ser um balbucio, um rudimento de linguagem em tom de assentimento, sem que se possa atribuir a esse rudimento um valor metafórico ou metonímico. O objeto infamiliar poderia ser tomado, nesse sentido, como fora do simbólico — embora ele possa ser associado, eventualmente, ao recalcado —, na medida em que ele retorna no real sem a moldura da fantasia. Esse retorno no real, tão característico da psicose, acontece aqui sem se vincular a uma estrutura definida. O que é uma regra na psicose pode, assim, ser observado como uma contingência na neurose. Em outros termos, o valor conceitual do infamiliar consiste em demonstrar uma forma transestrutural do retorno no real que transtorna, mesmo que de maneira contingente, nossa apreensão da realidade e os semblantes sociais a ela referidos.

Em suma, na psicose, o infamiliar parece potencialmente associado ao desencadeamento da angústia em função do encontro no real de um signo de gozo que não se ligou a uma representação inconsciente. Por essa razão, o campo da realidade se mostra, nas psicoses, envolto em uma aura de estranheza generalizada, mais difícil de enquadrar, mais ameaçado pela onipresença do signo de gozo não desdobrado na cadeia significante da fantasia. O mundo na psicose é um mundo infamiliar, por assim dizer, na medida em que aquilo que foi uma vez excluído do Eu não encontrou seu retorno pela via da fantasia inconsciente e permaneceu inassimilável. Na neurose, teríamos que associar o infamiliar à possibilidade de o objeto da fantasia se apresentar inesperadamente onde deveria faltar, ou seja, de forma desvinculada da ficção da fantasia, sem o suporte da cadeia significante, na modalidade da disjunção que articula, entre outras possibilidades — conforme o matema lacaniano da fantasia $ <> a —, o sujeito barrado e o objeto.

Visto a partir da perspectiva do infamiliar, o tratamento das psicoses vai ao encontro daquilo que as soluções psicóticas evidenciam, ou seja, que esse objeto pode ser, por vezes, encapsulado ou, conforme a analogia lacaniana, posto no bolso. Isso não corresponde a uma “externalidade-interna” do objeto, como poderíamos esperar do investimento na fantasia inconsciente que faz desse objeto a causa do desejo na neurose. O objeto no bolso designa, na terminologia lacaniana, o objeto do qual o psicótico não se separa, ao qual ele permanece aderido, e que retorna no real como o signo da presença desse gozo inassimilável e para sempre intraduzível. Mas a possibilidade de colocá-lo no bolso pode ser pensada, no tratamento da psicose, como uma maneira de circunscrever esse objeto, seja através de uma construção delirante, ou de um objeto de arte, seja através de alguma outra invenção que possa operar como uma forma de suplência para a não extração do objeto e que lhe permita minimamente enquadrar a realidade, ou seja, proteger a realidade da presença insidiosa do gozo intraduzível, que torna o mundo tão infamiliar.


Referências
FREUD, S. “O infamiliar” In: Obras Incompletas de S. Freud, v. 8. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2019. p. 27-115.
FREUD, S. “A perda da realidade na neurose e na psicose”. In: Obras Incompletas de S. Freud. v. 5. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016. p. 279-284.
KAFKA, Franz. “A Preocupção do Pai de Família”. In: Um Médico Rural – pequenas narrativas. Trad. Modesco Carone. São Paulo: Companhia das letras, 1999

[1] Tradução proposta para Das Unheimliche pelo editor e tradutores das Obras Incompletas de Sigmund Freud da Editora Autêntica.
[2] O susto evoca a irrupção de uma angústia súbita diante de um perigo tomado como real, mesmo que depois ele se mostre imaginário; o medo remete a uma expectativa angustiante diante de um perigo, real ou imaginário, que poderá emergir a qualquer momento no campo perceptivo, associado a um determinado acontecimento ou objeto, que tanto podem ser verdadeiros como imaginários; o pânico evoca uma angústia desencadeada como um perigo iminente, sem que o acontecimento ou o seu objeto possam ser claramente circunscritos no campo da realidade.
[3] FREUD, S. “A negação”. In: Obras Incompletas de S. Freud, v. 5. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016, p. 305-310.



CONFINAMENTO FAMILIAR: FAMÍLIAS, QUESTÕES CRUCIAIS[1]

 

 

HÉLÈNE BONNAUD
Psicanalista. Membro da Escola da Causa Freudiana  ECF/AMP

Resumo
A crônica de Hélène Bonnaud explora a relação entre a pandemia do coronavírus e o confinamento dos sujeitos em casa. Consequentemente, a angústia diante da incerteza que acomete a todos irrompe diante desse real. As novas rotinas domésticas e laborais, a convivência aumentada com a família, a aposta midiática na prática de meditação e o aumento de divórcios são alguns efeitos deste momento que são ressaltados e examinados pela autora. Pela evidente amplificação do sentimento de solidão, a autora propõe um paralelo entre isolamento e solidão, levando em conta, contudo, as diferenças entre os dois.

Palavras-chave: coronavírus, família, angústia, solidão, isolamento.

Abstract: Hélène Bonnaud’s chronicle explores the relationship between the coronavirus pandemic and subjects’ confinement at home. Consequently, the anguish at the uncertainty that affects everyone breaks out in the face of this reality. The new domestic and work routines, the increased coexistence with the family, the media focus on meditation practice and the increase in divorces are some effects of this moment that are highlighted and examined by the author. Due to the evident amplification of the feeling of loneliness, the author proposes a parallel between isolation and loneliness, taking into account, however, the differences between the two.

Keywords: coronavirus, family, anguish, loneliness, isolation.

 

Posso me ver nos teus olhos – Barbara Schall

 

 

Se houvesse apenas uma coisa para comemorar neste período de pandemia e, portanto, de angústia de morte, é que as crianças não sucumbem ao coronavírus. Mesmo sendo portadores, o vírus não causa o dano causado em adultos, especialmente em idosos. Se acreditarmos nos números, o coronavírus mata mais idosos do que jovens. A escala de idade encontra seus direitos. Há uma enorme diferença entre as gerações. Esse é um lembrete útil? Sim e não, já que muitos jovens se sentiram invulneráveis ​​no início do confinamento e o recusaram, pensando que isso não os afetaria.

A juventude sempre esteve inconsciente, dizem. Esse é o seu ponto fraco, ou o seu ponto forte, dependendo do objeto com o qual ela não se importa. No que diz respeito à doença, ela sempre parece distante, e o sentimento de ter um corpo perfeitamente saudável engana a própria ideia de mortalidade. Mas, atualmente, o coronavírus tem mostrado que pode ser bastante virulento com certos jovens e que é necessário proteger-se dele, definitivamente, independentemente da idade. O caso da jovem Julie, 16 anos, infelizmente tornou minha previsão real; ela morreu após a escrita deste texto[3].

A injustiça, que atinge cegamente, é o signo do real sem lei com o qual estamos lidando. Ela se manifesta nessa lógica implacável de que ser jovem não é uma certeza nestes momentos em que a vida e a morte colapsam, e menos ainda uma garantia, mas, isso, já sabíamos. Sem dúvida, poderíamos ler ali o efeito do caput mortuum do significante de que Lacan (1966/1998, p. 55) fala em “Seminário sobre ‘A carta roubada’” e que constitui um furo no simbólico[4].

As restrições do confinamento

Estamos entrando na segunda semana de confinamento na França. A mídia nos inunda com seus conselhos sobre a melhor maneira de o suportar, seja em família, seja em casal, seja sozinhos. De fato, a família deve suportar a convivência a longo prazo; gerenciar as angústias de todos; encontrar soluções para garantir que o horário de trabalho de pais e filhos seja respeitado, sem mencionar a organização necessária para preparar refeições e resolver problemas de espaço compartilhado, etc. Casais com filhos pequenos estão reinventando a “guarda compartilhada” diariamente, cada um se revezando no cuidado com os filhos enquanto o outro trabalha. A vida profissional em casa obriga a redobrar sua concentração, e a vida familiar sem sair de casa pode se transformar em um pesadelo. A perspectiva de uma duração indeterminada do confinamento também causará picos de angústia ou raiva, medo e exaustão.

A sublimação é, sem dúvida, o processo de maior contenção. Muitos o utilizam: cozinhar, pintar, bricolagem, poesia, cantar, dançar, escrever, arrumar a casa e, mais prosaicamente, praticar esportes, “o grande protetor de nossa saúde física e mental”.

E os conselhos da mídia

A mídia nos explica, através de seus especialistas psiquiatras ou psicoterapeutas mais reconhecidos, que estamos diante de uma situação sem precedentes, em que a angústia de contrair a doença se manifesta como um trauma cujo principal sintoma, o atordoamento, penetra a capacidade de pensar, cristalizando o medo, que surge de um evento fora de sentido, fazendo vacilar as certezas sobre as quais cada um constrói seu mundo.

De fato, diante desse real, cuja natureza inesperada e invasiva muda a rotina de nossas vidas, cada sujeito deve encontrar uma solução para lidar com esse novo elemento, objeto invisível e ainda intrusivo, circulando sem o nosso conhecimento, verdadeira figura do contágio em larga escala, infiltrando-se principalmente através dos orifícios respiratórios nariz e boca. O isolamento necessário nos afasta uns do outros e dá consistência aos uns-sozinhos que somos.

A família, nesse sentido, é uma entidade particularmente sensível a essa catástrofe sanitária, porque os pais têm o dever de proteger seus filhos que devem, portanto, suportar as novas regras que lhes são impostas, tanto em termos de higiene quanto de convivência. Mas crianças pequenas e adolescentes não apresentam os mesmos problemas. Os primeiros estão sujeitos às ordens dos pais e podem apenas levar em consideração suas novas medidas. Para os adolescentes, a restrição do confinamento é mais difícil de suportar. “Como explicar essas restrições aos adolescentes?”, perguntou Léa Salamé a Serge Hefez[5] durante uma entrevista matinal. E isso para evocar a noção de “sacrifício” que os adolescentes devem consentir para proteger os mais velhos ​​como sendo uma resposta que os ajudará a aceitar seu confinamento. Sacrificar-se pelo Outro, de certa forma.

Salientamos que essa ideia é encontrada em Freud, que associou o sacrifício à renúncia pulsional e, por conseguinte, tornou o sacrifício quase equivalente a uma restrição necessária do princípio do prazer em favor do princípio da realidade. Para estarmos juntos, devemos admitir que todos devem sacrificar algo de seu gozo. Esse princípio permite que a comunidade se organize para transformar sua produção habitual em novos objetos dedicados a salvar os doentes, apoiar os cuidadores e ajudar os mais frágeis. Diante do real, o desejo se coloca a serviço da causa comum pela sobrevivência do grupo. É justo!

A meditação revelada a si mesma

O mediático Christophe André[6] também apoiou a população confinada, defendendo os benefícios da meditação. Certamente, esta tem o mérito de ser uma terapia para esvaziar os pensamentos e oferece um tratamento que se parece muito uma “pausa” da mente. Mas, quando há superexposição, como é o caso atualmente, às angústias da doença e da morte pode-se perguntar como alcançar seu rumo em direção ao zen. E, se nossos pensamentos podem ser suspensos pela meditação, resta, porém, a questão de se saber como fazer quando eles retornarem.

De fato, como bem sabemos enquanto analistas, a compulsão de pensar é uma defesa contra o real e, como todo delírio, permite contornar o buraco do vazio que poderia sugar alguns. É assim que a análise, cuja prática consiste em ir duas ou três vezes por semana ao seu psicanalista, permite um esvaziamento de pensamentos, mas um esvaziamento de sentido orientado pelo desejo de saber, um esvaziamento operando em direção a uma historicização de sua vida psíquica. Essa experiência de palavras produz sua ordenação e elaboração simbólica e, de modo mais profundo, atinge o gozo ao encontrar maneiras de canalizá-lo e de tratar o excesso.

Trata-se de um trabalho que aprendemos com Freud, um esforço para dizer o mais próximo possível o que se passa. Os pensamentos, portanto, não se intrometem mais como fenômenos perturbadores que carregam muita angústia, mas servem para nomear a coisa. Um paciente, que vivia já confinado devido a um luto patológico, pôde me dizer que a frase que teve o efeito de chamá-lo para uma solução fatídica: “Gostaria que a Terra parasse para cair”[7] — extraída de uma canção escrita por Serge Gainsbourg e cantada por Jane Birkin, agora faz limite à sua tristeza porque, de fato, o mundo parou. Ele próprio se encontra aliviado porque não está mais sozinho em confinamento. O mundo do qual ele se defendeu excluindo-se não o ameaça mais. Os uns-sozinhos que são seus amigos juntaram-se a ele. O confinamento não o exclui mais. Ele se juntou ao Outro na privação da liberdade obrigatória.

E previsão de divórcios

Outros nos contam sobre a epidemia de divórcios que se segue ao confinamento na China e prevêem que esse confinamento a dois terá repercussões nesse aspecto. Certamente, estar sujeito à tensão de compartilhar a vida cotidiana 24 horas por dia pode ser a ocasião para fixações no comportamento de um ou de outro. Críticas furiosas, acessos de raiva ultrajantes e insultos guardados do “que estava no coração e o que não foi dito”, a situação pode se tornar explosiva. Os conflitos conjugais — traições passadas ​​ou atuais, discórdia permanente, ameaças de separação, alcoolismo e adições diversas para falar apenas dos sintomas mais visíveis de um ou de outro — reaparecem nestes momentos de questionamento da vida, pois o confinamento leva a atualizar seu passado para pensar em seu futuro. O tempo presente suspenso assume um significado diferente dia após dia.

Há uma desregulação da temporalidade ligada à interrupção da vida “normal”. A própria noção de casal pode aparecer como uma entidade ilusória, pois cada um defende seu território, seu lugar adquirido à custa do outro, seus interesses de gênero e gozo pessoal. Enfim, o casal é um microcosmo a dois que pode ser explosivo, e, a saída pelo divórcio, a solução mais confiável.

Resta a solidão

A solidão está em primeiro plano. A sensação de estar sozinho pode ser acompanhada de uma angústia de abandono ou, pelo contrário, de isolamento forçado pela vontade de um Outro mau. Pensa-se especialmente nos idosos que vivem sozinhos, privados de visitas de seus filhos e netos. Mas existem todas as outras formas de solidão.

O confinamento convoca cada um a encontrar a distância certa de seu sentimento de solidão. Como Philippe La Sagna (2007) diz em seu notável texto “Da solidão ao isolamento”, no qual muitas frases fazem eco ao que estamos passando, a solidão e o isolamento não são do mesmo registro: “Para estar separado, é necessário ter uma fronteira comum. Temos uma fronteira comum com o Outro quando estamos em solidão, enquanto que, no isolamento, não há fronteira. O isolamento é um muro. E estamos na era da construção de isolados, já que cada um não sabe mais onde começam e onde terminam as fronteiras”.

Não sabemos onde começam nem onde terminam as fronteiras. O coronavírus pode mudar esse modelo de globalização. Mas, entre o isolamento e a solidão, há um muro.

 

Tradução: Michelle Santos Sena de Oliveira
Revisão: Luciana Silviano Brandão Lopes

Referências
LACAN, J. (1966). “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. In: Escritos.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LA SAGNA, P. “De l’isolement à la solitude”. In: La Cause freudienne, n° 66, p. 43-49, 2007.

[1] Texto originalmente publicado em Lacan Quotidien, n. 877, publicado em 30 de março de 2020 . Disponível em: https://www.lacanquotidien.fr/blog/2020/03/lacan-quotidien-n-877/
[2] https://www.lepoint.fr/societe/on-n-aura-jamais-de-reponse-julie-a-16-ans-morte-du-coronavirus-en-france-27-03-2020-2368993_23.php#
[3] Cf. MILLER J.-A., « L’orientation lacanienne. Des réponses du réel », cours du 16 novembre 1983, inédit : « C’est ce que Lacan appelle un trou – un trou au niveau du symbole : “un trou s’ouvre que constitue un certain caput mortuum du signifiant” » (citation de Lacan J., « La lettre volée », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 50).
[4] https://www.franceinter.fr/emissions/l-invite-de-7h50/l-invite-de-7h50-19-mars-2020
[5] https://www.bfmtv.com/mediaplayer/video/le-medecin-psychiatre-christophe-andre-donne-ses-conseils-pour-gerer-la-peur-du-coronavirus-1232606.html
[6] http://www.frmusique.ru/texts/g/gainsbourg_serge/quoi.htm



OS DIAS DO UNHEIMLICH  FAMILIAR[1]

 

 

MARIANA SCHWARTZMAN
Psicanalista. Membro da Escola de Orientação Lacaniana EOL/AMP

Resumo
Esta crônica relaciona a epidemia do coronavírus e suas consequências na vida cotidiana ao conceito freudiano de infamiliar [Unheimlich] e ao conceito de extimidade, proposto por Jacques-Alain Miller. Esses conceitos são abordados enquanto uma chave de leitura possível do momento atual e de seus efeitos infamiliares em cada sujeito, na sua relação com o que lhe seria mais familiar: sua casa.Palavras-chave: estranho; familiar; infamiliar; extimidade; coronavírus.

Abstract: This chronicle refers to the coronavirus epidemic and its consequences in everyday life as a freudian concept of Unheimlich and as a concept proposed by Jacques-Alain Miller of ex-timete. These concepts are approached as a possible reading key for the current moment and its effects, uncanny, on each subject in their relationship with what would be most familiar to them: their home.

Keywords: strange, familiar, uncanny; ex-timate; coronavirus.

 

Posso me ver nos teus olhos- Barbara Schall

Posso me ver nos teus olhos- Barbara Schall

 

Como, desde que nasci, falo alemão, sempre senti esse conceito bastante “familiar”. Mas isso tem o problema de, às vezes, acreditarmos compreendê-lo demais. Até que algo “exterior” irrompe e se faz necessário revisá-lo um pouco. Foi a partir da irrupção do coronavírus e da quarentena que voltei a ler o texto de Freud (1919/2019) “O infamiliar”, para tentar articulá-lo de algum modo com o que acontece no momento atual.

Freud escreve esse artigo em 1919. Com o Unheimlich, refere-se ao familiar que se torna aterrorizante, sinistro. Ao realizar uma investigação linguística sobre esse vocábulo em diferentes dicionários, descobre-se que Heimlich (que, em alemão, representa o doméstico, o familiar, o íntimo, o lar, a casa em sentido amplo) e Unheimlich (o alheio, lúgubre, sinistro ou incômodo de um lar) coincidem em várias das definições. É a definição de Schelling que chama a atenção de Freud principalmente. Ali, a palavra Heimlich assume ambas dimensões: algo relacionado ao familiar, ao lar, mas também ao contrário: “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona” (FREUD, 1919/2019, p. 45). Referindo-se a essa definição, Freud assinala que o familiar coincide “com seu oposto, o infamiliar” (FREUD, 1919/2019, p. 47-48).

Há uma melhor definição que a freudiana para explicar o que se sente nestes dias?

O familiar, o caseiro, o lar, tornou-se estranho: encarnamos a voz dos professores de nossos filhos transmitindo (inclusive traduzindo, corrigindo) o dever de casa; nossos parceiros trabalham e fazem conference calls de nossa sala de estar (muito perto de nós); instalamos o consultório no nosso quarto[2]; vemos nossos rostos ao fazer sessões por Skype (rostos que, ao escutar o paciente deitado no divã, permaneciam ocultos, velados ao nosso próprio olhar); recebemos a toda hora “chamadas em grupo” de amigos estrangeiros que, por causa do vírus e dessa causa em comum, desejam estar mais próximos, penetrando em nosso dia a dia familiar, o tempo todo… Outras coisas habituais e rotineiras se tornaram ameaçadoras, sinistras: sair à rua, as compras de supermercado, nas quais borrifamos álcool e água, respirar quando estamos fora — com medo de inalar o vírus —, etc., etc., etc., etc.

O íntimo tem se tornado um estranho. O estranho penetra em nossa intimidade.

O que a psicanálise pode oferecer? Além da brilhante e lúcida escrita de Freud, que nos serve para pensar o que estamos vivendo, gostaria de ressaltar outro conceito e articulá-lo com a escuta que um psicanalista poderia oferecer. Diz respeito ao conceito lacaniano de extimidade. É um neologismo de Lacan que Jacques-Alain Miller, em seu curso do mesmo nome, explora ao longo de várias páginas. “Extimidade”, diz-nos Miller, baseia-se na palavra intimidade. Ele usa a descrição do termo segundo o Robert[3], que qualifica a intimidade desta maneira: “encanto de um lugar onde se sente em casa, livre do mundo exterior” (MILLER, 2010, p. 15, tradução nossa). Miller localiza: “(…) a extimidade é, para nós, uma fratura constitutiva da intimidade. Colocamos o êxtimo no lugar onde se espera, se aguarda, onde se acredita reconhecer o mais íntimo. (…) Em seu foro mais íntimo, o sujeito descobre outra coisa. (…) o mais próximo, o mais interior sem deixar de ser exterior” (2010, p. 17, tradução nossa).

O interessante desse conceito lacaniano é que ele não deixa de expor como o interior é exterior e vice-versa. Algo interior que aparece no exterior, mas que, por sua vez, não deixa de sê-lo.

Será o momento de escutar como cada sujeito (que vinha falar no consultório, ou, talvez, novas vozes que nos demandem escutá-las) dará conta do que de seu interior irrompeu no exterior… de suas próprias casas.

 

Tradução: Ernesto Anzalone
Revisão: Michelle Santos Sena de Oliveira

Referências
FREUD, S. (1919). ”O Infamiliar / Das Unheimliche”. In: O infamiliar / Das Unheimliche / Sigmund Freud; seguido de O Homem da Areia / E. T. A. Hoffman (Obras incompletas de Sigmund Freud; 8). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010.

[1] Texto originalmente publicado em Crónicas XXI, n. 12, Grama Ediciones, em abril de 2020. Disponível em: https://vo.mydplr.com/a69434b74753925c46ebf32d01f9655e-ce69bbe059e210a75023e795d3e2594b
[2] Alguns colegas o fizeram na sua varanda. Outros têm, como único lugar “íntimo”, seu carro.
[3] Dicionário Sper Editorial.



Entrevista com Santuza Teixeira

 

 

A cor da romã I. Bárbara Schall

 

Almanaque entrevista Santuza Teixeira, mineira de Belo Horizonte. Graduada e mestre em bioquímica na Universidade de Brasília, fez doutorado na Universidade de Lausanne, na Suíça, e pós-doutorado na Universidade de Iowa, nos EUA. Professora e pesquisadora do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, atua no departamento de Bioquímica e Imunologia coordenando pesquisas em genômica e parasitologia e no desenvolvimento de vacinas. Em dezembro de 2019, foi eleita membro titular da Academia Brasileira de Ciências.

 

ALMANAQUE: Gostaria que você nos falasse um pouco sobre seu trabalho e de sua equipe no Centro Tecnológico de Vacinas da UFMG no que diz respeito à pandemia do coronavírus.

SANTUZA RIBEIRO TEIXEIRA: Somos uma equipe de aproximadamente 30 pessoas, entre professores, pesquisadores, técnicos, alunos de graduação e de pós-graduação, todos bolsistas com diferentes níveis de treinamento em várias áreas das Ciências Biológicas. Temos experiência no desenvolvimento de testes de diagnóstico e vacinas, pois, ao longo de mais de 10 anos, vínhamos desenvolvendo projetos voltados para o controle de doenças como leishmaniose, malária e doença de Chagas e viroses como dengue e chikungunya. Com a chegada da Covid-19, todos os nossos esforços passaram a ser voltados para três frentes de trabalho que acreditamos poder contribuir para o controle desta pandemia: (i) a testagem por PCR a partir de amostras colhidas em hospitais de Belo Horizonte, para fins de diagnóstico e também para detectar pessoas assintomáticas que têm a infecção ativa e que podem disseminar o vírus; (ii) o desenvolvimento e a aplicação de um teste de diagnóstico sorológico a partir de amostras de sangue de pessoas que tiveram contato com o vírus e que podem ter desenvolvido imunidade e, (iii) o desenvolvimento de uma vacina baseada na modificação genética do vírus influenza atenuado, que seria capaz de proteger ao mesmo tempo contra a gripe comum e contra a Covid-19.

 

A.: Esse vírus irrompeu inesperadamente e se impôs em nossas vidas, surpreendendo e atemorizando a humanidade. Nesse contexto, a pressão por soluções urgentes para pôr fim à pandemia, igualmente, se impôs em todo o mundo, convocando, especialmente, os cientistas que trabalham no campo de pesquisas em biotecnologia. Vimos como o anseio por uma resposta rápida levou a precipitações, como bem demonstrou a recente polêmica em torno do uso da cloroquina, ressaltando o impasse entre a urgência e prudência. Sabemos que a produção de conhecimento científico requer tempo — além do aporte contínuo de recursos orçamentários —, tornando inviável atender a essa expectativa de uma solução a curto prazo, como a oferta de uma vacina. Como tem sido para você trabalhar sob essa pressão?

S.R.T.: Na nossa carreira, estamos acostumados a trabalhar sob pressão, mas, obviamente, essa pressão está mais evidente agora. Entretanto, essa sensação de trabalhar sob pressão é aliviada por outros sentimentos que surgiram em função da urgência e da relevância do desafio que se impõe. Parece que o sentimento preponderante — e penso que posso falar não somente por mim, mas pela equipe toda — está mais associado ao fato de termos pela frente uma tarefa importante, para a qual nós fomos preparados ao longo de muitos anos de estudo e trabalho. Esse sentimento é muito positivo e estimulante. Desde que comecei a estudar biologia na Universidade de Brasília, minhas pesquisas sempre foram voltadas para estudos sobre patógenos humanos. No entanto, o foco foi sempre no conhecimento básico, ou seja, buscando entender a biologia desses patógenos. Esse tipo de estudo é extremamente importante, mas é pouco reconhecido pela sociedade, que muitas vezes tem a impressão de que se trata de dinheiro e esforços jogados fora. Na realidade, esse tipo de pesquisa básica é a força motriz da Ciência e sabemos que os países que têm uma “ciência avançada” são aqueles que investiram em pesquisa básica, obviamente preocupando-se com a qualidade dos projetos que são financiados. Somente após ter sido formada uma base científica sólida, que inclui não somente o conhecimento, mas a existência de uma rede de pesquisadores muito bem treinados, é que se pode pensar em propor um projeto de uma nova vacina, como a de Covid-19, por exemplo. Temos, portanto, hoje, na UFMG, uma equipe capaz de propor um projeto como esse acreditando que temos chances de alcançar bons resultados em um tempo relativamente curto, como o que se impõe agora, tanto quanto os grupos que trabalham nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Ou seja, graças aos investimentos em pesquisa que foram feitos ao longo dos últimos 30 anos no Brasil (eu mesma recebi, em 1986, uma bolsa do governo brasileiro para fazer meu doutorado no exterior), nós somos capazes de desenvolver nossos próprios kits de diagnóstico e — tomara! —, capazes de produzir a nossa própria vacina anti-Covid19. Voltando à pergunta, portanto, a sensação de trabalhar sem ter o reconhecimento da importância do seu trabalho é muito mais dolorosa. Isso estava acontecendo até três meses atrás, quando os cientistas brasileiros pareciam ter que implorar para continuar desenvolvendo suas pesquisas. Esse sentimento de descaso trouxe graves consequências, especialmente para pesquisadores jovens, alunos de pós-graduação e bolsistas em início de carreira, que se viram totalmente desestimulados. É muito gratificante ver essas mesmas pessoas chegando ao laboratório todas as manhãs, vestindo seus jalecos e indo trabalhar com uma dedicação, entusiasmo e compromisso admiráveis.

 

A.: Nós, psicanalistas, temos lidado, em nossa clínica, com os desdobramentos subjetivos da pandemia, tais como aqueles provocados pelo confinamento e os modos singulares como as pessoas a ele reagem, sejam elas adultas, sejam crianças, sejam adolescentes. Nesse sentido, você poderia nos dizer como tem percebido esses efeitos no seu trabalho junto à sua equipe?

S.R.T.: Como disse antes, fiquei bastante surpreendida com a atitude dos alunos e jovens pesquisadores que se ofereceram para trabalhar nesses três projetos do laboratório, mesmo sabendo não somente do enorme desafio e do volume de trabalho, mas também dos riscos que qualquer um está correndo por não estar em isolamento nas suas casas. Lembrando que o laboratório recebe uma grande quantidade de amostras de pacientes, o que requer um cuidado e uma concentração muito grande durante todas as etapas de manipulação, para se eliminar o risco de contaminação. Mesmo assim, eles estão lá todos os dias e, quando nos demandam os resultados de testes no final de semana — pois os hospitais não podem esperar chegar segunda-feira —, nunca tenho qualquer dificuldade em encontrar pessoas para irem comigo fazer os testes no sábado ou no domingo. São essas as mesmas pessoas que estavam pensando em deixar a carreira científica porque viviam sob uma enorme sombra de dúvida com relação às suas perspectivas de trabalho no Brasil. De fato, nunca tivemos uma discussão envolvendo essas questões subjetivas relacionadas ao momento que cada um está vivendo, mas creio que a ideia de um desafio comum, aliada à sensação de participar de um esforço tão urgente, pode estar tendo um efeito muito positivo sobre essas pessoas.

 

A.: A pandemia do coronavírus está produzindo uma série de consequências que extrapolam o campo da ciência e da saúde, tocando em questões psíquicas, políticas e éticas! Em algum momento você pensou que um vírus nos convocaria para um debate tão extenso? Caso afirmativo, que novos contornos esse acontecimento tem apontado no seu campo de atuação? E que mundo você imagina pós-pandemia?

S.R.T.: Nós todos pensamos sobre isso todos os dias, cada vez que saímos e vemos as ruas vazias em plena quarta-feira ou ficamos trancados em casa sem poder ir ao cinema na sexta. De fato, pensar que um vírus é capaz de transformar a vida no planeta e nos convocar para um debate tão intenso, tão inesperado e tão sui generis confere ainda mais poder a essa partícula impressionantemente simples, formada por uma única molécula de RNA, 29 proteínas e uma fina camada de gordura! Ou, se olharmos para o outro lado, pensar como que o Homo sapiens vai à Lua, descobre água em Marte, investiga, um a um, todos os seus 20 mil genes e cura inúmeros tipos de câncer, mas não consegue evitar as mortes de 400 mil indivíduos em pouco mais de 4 meses por causa de um vírus! Novamente, o principal elemento que essa partícula tem nos apontado é a ideia de que a Ciência não pode ser vista como um passatempo divertido a que algumas pessoas se dedicam, muitas delas com uma tenacidade e comprometimento impressionantes. Todos, independentemente das tendências políticas, religiosas ou time de futebol do coração, estão voltados para as páginas dos jornais, TV e outras mídias que falam de novos tratamentos e vacinas para a Covid-19. Ao mesmo tempo em que expõe nossa fragilidade, a pandemia revela a confiança no conhecimento científico como nossa única arma. Que mundo eu imagino pós-pandemia? Um mundo certamente melhor, que deverá surgir como consequência de um esforço obrigatoriamente capaz de superar divergências para que possamos concentrar nas soluções necessárias para viabilizar nossa sobrevivência no planeta.

Entrevista feita por: Giselle Moreira, Letícia Mello, Renata Mendonça e Thiago Bellato.