O FEMININO INFAMILIAR: DIZER O INDIZÍVEL
ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA
Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFMG. Membro da EBP/AMP. andrea.eulalio@hotmail.com
Resumo
Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que não pode ser interpretado. Um fragmento clínico elucida como que, no mais íntimo de cada língua familiar, existe uma língua estranha, estrangeira, cujo encontro retorna, segundo Freud, como “inquietante estranheza”.
Palavras-chave: Infamiliar, inconsciente, língua familiar, gozo.
Abstract:
Both the word and the Unheimlich experience refer to an enigmatic point that is of the order of the unspeakable and the unspeakable, to something irreducible and not mediated by the symbolic and that cannot be interpreted. A clinical fragment that elucidates as if in the most intimate of each familiar language, there is a strange, foreign language whose encounter returns, according to Freud, as “disturbing strangeness”.
Keywords: Uncanny, unconscious, familiar language, jouissance.
Coletoras – Barbara Schall
Logo de início, em seu famoso texto “Das Unheimliche”, publicado em 1919 e traduzido para o português como “O estranho”, Freud adverte o leitor acerca das circunstâncias sob as quais é possível que o familiar se converta no lugar do mais estranho, do mais estrangeiro, do mais alheio e ignorado para cada ser falante.
Na primeira parte desse texto, Freud (1919, p. 277) apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o uso semântico do termo heimlich (doméstico, íntimo, conhecido, amistoso) e de seu antônimo unheimlich (misterioso, oculto, secreto, estranho, inquietante, sinistro).
A pesquisa sobre o uso linguístico do termo heimlich revela que essa palavra não deixa de ser ambígua, pertencendo a dois conjuntos de ideias, as quais, mesmo não sendo contraditórias, são muito diferentes e significam, por um lado, aquilo que é familiar e agradável e, por outro, o que está “oculto da vista” (FREUD, 1919, p. 280). Freud aponta que, entre os diversos significados da palavra heimlich, há um que coincide com o seu oposto, unheimlich, e que, de um modo ou de outro, representa uma subespécie de heimlich.
Segundo Bassols (2017, p. 39), se tivéssemos que transpor literalmente a expressão Das Unheimliche para nossa língua, seria melhor falarmos “o infamiliar”, como se encontra agora traduzido pela Editora Autêntica (2019), “sendo que o ‘in’ pode ser tanto a negação do familiar como também o mais interior a ela” (BASSOLS, 2017, p. 39).
A indicação bastante precisa de Freud, segundo a qual o exterior está presente no interior, vai ao encontro ao termo “êxtimo”, cunhado por Lacan. A estrutura da extimidade relaciona-se à constante vacilação da identidade do sujeito consigo mesmo revelando o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Esse “in” que se transforma em “ex” indica que quanto maior a proximidade do familiar, mais ele se transforma em estranho. Indica que ele é, ao mesmo tempo, interior e estranho.
Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem-nos a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que, por isso mesmo, não pode ser interpretado. Mesmo no encontro originário com a língua, Freud ressalta a dimensão paradoxal da experiência do Unheimlich, na qual o encontro com o mais íntimo retorna enquanto “inquietante estranheza”.
Reencontraremos a partícula “Un”, que designa o inconsciente, presente em Das Unbewusste e em Das Unheimliche, em Lacan, (1971-1972, p.132) no “Um” sem Outro, sem alteridade possível, no “Um” sozinho do gozo, que faz do seio familiar a sua morada e que vem transformando a estrutura familiar clássica (BASSOLS, 2017, p. 39).
A família é a possibilidade de cada ser falante dar uma resposta, uma versão sintomática, nos melhores casos, a esse gozo do Um sozinho que aparece como Outro estranho e se encarna ali onde não há relação sexual entre um homem e uma mulher.
Como encontramos a incidência desse gozo bárbaro, demoníaco, do Um sozinho nas novas configurações familiares e diversidades sexuais?
As transformações e remodelações em torno da estrutura familiar, com implicações para o parentesco e para a filiação, atestam que a criança se tornou o fundamento da família, e não mais o seu efeito, restando a ela escolher o seu lugar em uma diferença sexual que se pluralizou. Os pais se redefiniram em termos dos cuidados com a criança, e não mais em termos da diferença sexual, e a incidência da função fálica que possibilita o ser falante nomear-se como ser sexuado encontra-se submetida às novas versões de nomeação e a autonomeações. Devemos considerar também a impossibilidade de habitar um corpo e fixar uma imagem. Enfim, uma série de transformações que têm deixado a criança muito mais exposta ao Um sozinho, esse Um do Unheimlich desenlaçado do Outro, e a uma “infância desregulada e disruptiva” [1].
A dificuldade que aparece ao tratarmos do assunto “família”, independentemente do discurso da qual ela se depreende, já se encontra explicitada numa passagem de O seminário, livro 23, sobre “o sinthoma”, na qual Lacan afirma: “Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto. Somos falados e, por cauda disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado” (LACAN, 1975-1976, p. 158-159).
Segundo Bassols (2017, p. 46), cada sujeito é servo do discurso familiar, no sentido de que é a língua familiar que nos fala sobre aquilo que nos determina como sujeitos. Ou seja, é a língua dos significantes mestres fundamentais na história de cada um de nós, os quais servem para nos identificarmos com os outros e entre os outros. Contudo, a transmissão simbólica está marcada por um furo, que passa não só pelos significantes já articulados na linguagem mas, sobretudo, pela lalíngua própria a cada um.
Devemos identificar, então, a língua do Outro, a família do Outro, como o lugar que encarna o Outro de cada sujeito e também da criança. É o estrangeiro, o bárbaro enquanto signo daquilo que rechaçamos como radicalmente diferente e que está, ao mesmo tempo, no lugar mais familiar, mais íntimo e próximo de nossa realidade e da nossa forma de vivê-la.
Em qual língua a família nos fala? Qual é essa língua familiar para cada um? Em qual língua somos realmente falados pela família?
Penso que, nesse sentido, a conferência A língua familiar, de Miquel Bassols, nos orienta quando diz que cada um é um bárbaro em sua própria língua familiar. O termo bárbaro, tal como o termo heimlich, comporta dois sentidos ambivalentes. Pode tanto designar o mais estranho e intrusivo para a língua familiar quanto algo que experimentamos como um grande prazer, de acordo com nossa forma de gozar. E o analista também deve ser um bárbaro da língua para escutar o sujeito, ou seja, deve escutar aquilo da família que o fala quando o sujeito quer falar dela.
Para Bassols, a criança sempre chega à família como um verdadeiro bárbaro inesperado, como um intruso para o casal parental. Esse dizer de Bassols pode ser elucidado em Freud quando este trata a existência da sexualidade infantil como um gozo perverso e polimorfo, descentrado, o qual nunca será unificado, introdutor de uma dificuldade particular: não há código que permita ao sujeito decifrar o que lhe ocorre, e nem mesmo a mãe ou o pai sabe muito bem o que fazer com esse gozo. Sendo assim, a criança encarna esse lugar do bárbaro tanto para o adulto como para ela própria.
A criança surge como um bárbaro na língua familiar porque sua tagarelice é, com efeito, o tagarelar de um bárbaro que ninguém entende. Lacan, ao abordar esse real do gozo da língua, nomeou esse “tagarelar bárbaro” lalangue. A mãe e o pai costumam ser os encarregados de interpretar a língua do bárbaro — inventada a partir das particularidades “linguageiras” de cada um e desprendida do compromisso com a comunicação —, dando-lhe um sentido e supostamente civilizando a língua familiar. “O problema é que esta língua familiar supostamente civilizadora é ela mesma um dialeto da língua bárbara do gozo perverso e polimorfo da própria infância dos pais, que também foram bárbaros em seu momento” (BASSOLS, 2017, p. 46). Há, portanto, um mal-entendido inaugural e permanente que não cessa de se escrever entre a língua amorosa e terna dos adultos e a língua do gozo infantil, esse gozo opaco, indizível e enraizado no corpo.
Geralmente, o melhor que pode ocorrer aí é a criança fazer o seu sintoma ao se fazer representante da verdade do casal parental como “a verdade do bárbaro que está na origem da sua língua familiar”, tal como Lacan (1969) observou em “Nota sobre a criança” (LACAN, 1969, p. 369). Podemos tratar a noção de verdade no contexto familiar como aquela que implica o encontro sexual que concerne ao gozo e ao desejo do casal parental. A outra possibilidade, muito mais sinistra, é a criança encarnar o objeto do fantasma materno, “e não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto” (LACAN, 1969, p. 369).
Outro momento decisivo que envolve o Outro familiar e a língua do Outro se dá quando o bárbaro se depara com o real da puberdade. Ao representar-se como ser sexuado, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava sua identificação e seu sentimento de vida. As modificações do corpo causam um sentimento de estranheza que o adolescente enfrenta como algo intraduzível na língua do Outro. Quando esse ponto de apoio vacila, o sujeito se confronta com algo que faz “furo no real”, reenviando-o a um vazio de significação. Essa delicada passagem se converte, novamente, em um momento de mal-entendidos absolutos, incertezas e inquietudes e de uma grande confusão de línguas no seio familiar.
“Tudo isso que foi dito nos indica que não é nada fácil discernir o que e qual é a língua familiar do sujeito. Sobre que linguagem, como aparato simbólico, o ser falante elucubra para situar o real em jogo de cada língua?” (BASSOLS, p. 46).
A seguir, apresento um fragmento de caso no qual o encontro com o real da puberdade traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem e com a língua, deixando-o exilado em seu próprio gozo.
Esse estranho que me habita
“Ele é o único em nossa família a ter problemas”. Foi desse lugar do estranho que um adolescente me foi apresentado por sua mãe em nosso primeiro encontro. A família paterna do garoto é estrangeira e os poucos contatos que ele tem com esses familiares são permeados pelos mal-entendidos. Ele não sabe dizer o porquê de ser tratado com tamanha rispidez e intolerância por seus familiares.
Quando Lacan diz que somos filhos do mal-entendido e que somos atravessados pelos mal-entendidos que proliferam na confusão dos laços e das línguas faladas entre nossos ascendentes, ele indica que, por não haver “revelação ou dissolução possível, resta-nos incorporar esse mal-entendido” (GROISMAN, 2016, p. 47). É isso que esse adolescente vem tratando em sua análise: desse gozo estranho que o acomete no corpo e que é vivido com muita estranheza. Afinal, nada é mais familiar e mais estranho que a experiência do próprio corpo.
A cada discussão familiar que se vê envolvido, o garoto é tomado por uma sensação de estranheza, por um afeto que o ultrapassa, e a sua forma de responder a isso é uma cisão entre o eu e o corpo real de seu ser. Ele se vê vendo, como se estivesse enquadrado na cena de um filme. O mundo fica estranho — lugares e situações familiares ficam diferentes —, dando-lhe a sensação de que ele “já não é o mesmo”; sua voz também lhe soa estranha, irreconhecível, tudo fica no automático, como se ele “não mais fizesse parte da vida”.
Sabemos que o “eu” se sustenta em determinações simbólicas e pela extração do objeto a no real. A vacilação das identificações simbólicas do sujeito consigo mesmo e a consequente perda dos pontos de referência imaginários revelam o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Sendo assim, o lugar que o sujeito havia encontrado para si no Outro, seu lar, seu Heim, se torna então Unheim, estranho. Com relação a esse ponto do estranhamento, Lacan afirmará, em O seminário, livro 23, que “A inquietante estranheza, incontestavelmente, provém do imaginário” (LACAN, 1975-1976, p. 47).
Em uma análise, tentar dissolver o mal-entendido só o alimenta, diz Lacan. Será preciso que o sujeito possa reencontrar, em sua própria fala, as fontes desses mal-entendidos não como o que escutou ou entendeu mal, mas como aquilo que encerra em si a opacidade do desejo que lhe deu origem, deixando, assim, uma via para invenção (REGO, BARROS, 2016, p. 41).