O FEMININO INFAMILIAR: DIZER O INDIZÍVEL

 

 

ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA
Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFMG. Membro da EBP/AMP. andrea.eulalio@hotmail.com

Resumo

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que não pode ser interpretado. Um fragmento clínico elucida como que, no mais íntimo de cada língua familiar, existe uma língua estranha, estrangeira, cujo encontro retorna, segundo Freud, como “inquietante estranheza”.

Palavras-chave: Infamiliar, inconsciente, língua familiar, gozo.

Abstract:

Both the word and the Unheimlich experience refer to an enigmatic point that is of the order of the unspeakable and the unspeakable, to something irreducible and not mediated by the symbolic and that cannot be interpreted. A clinical fragment that elucidates as if in the most intimate of each familiar language, there is a strange, foreign language whose encounter returns, according to Freud, as “disturbing strangeness”.

Keywords: Uncanny, unconscious, familiar language, jouissance.

 

Coletoras – Barbara Schall

 

Logo de início, em seu famoso texto “Das Unheimliche”, publicado em 1919 e traduzido para o português como “O estranho”, Freud adverte o leitor acerca das circunstâncias sob as quais é possível que o familiar se converta no lugar do mais estranho, do mais estrangeiro, do mais alheio e ignorado para cada ser falante.

Na primeira parte desse texto, Freud (1919, p. 277) apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o uso semântico do termo heimlich (doméstico, íntimo, conhecido, amistoso) e de seu antônimo unheimlich (misterioso, oculto, secreto, estranho, inquietante, sinistro).

A pesquisa sobre o uso linguístico do termo heimlich revela que essa palavra não deixa de ser ambígua, pertencendo a dois conjuntos de ideias, as quais, mesmo não sendo contraditórias, são muito diferentes e significam, por um lado, aquilo que é familiar e agradável e, por outro, o que está “oculto da vista” (FREUD, 1919, p. 280). Freud aponta que, entre os diversos significados da palavra heimlich, há um que coincide com o seu oposto, unheimlich, e que, de um modo ou de outro, representa uma subespécie de heimlich.

Segundo Bassols (2017, p. 39), se tivéssemos que transpor literalmente a expressão Das Unheimliche para nossa língua, seria melhor falarmos “o infamiliar”, como se encontra agora traduzido pela Editora Autêntica (2019), “sendo que o ‘in’ pode ser tanto a negação do familiar como também o mais interior a ela” (BASSOLS, 2017, p. 39).

A indicação bastante precisa de Freud, segundo a qual o exterior está presente no interior, vai ao encontro ao termo “êxtimo”, cunhado por Lacan. A estrutura da extimidade relaciona-se à constante vacilação da identidade do sujeito consigo mesmo revelando o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Esse “in” que se transforma em “ex” indica que quanto maior a proximidade do familiar, mais ele se transforma em estranho. Indica que ele é, ao mesmo tempo, interior e estranho.

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem-nos a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que, por isso mesmo, não pode ser interpretado. Mesmo no encontro originário com a língua, Freud ressalta a dimensão paradoxal da experiência do Unheimlich, na qual o encontro com o mais íntimo retorna enquanto “inquietante estranheza”.

Reencontraremos a partícula “Un”, que designa o inconsciente, presente em Das Unbewusste e em  Das Unheimliche, em Lacan, (1971-1972, p.132) no “Um” sem Outro, sem alteridade possível, no “Um” sozinho do gozo, que faz do seio familiar a sua morada e que vem transformando a estrutura familiar clássica (BASSOLS, 2017, p. 39).

A família é a possibilidade de cada ser falante dar uma resposta, uma versão sintomática, nos melhores casos, a esse gozo do Um sozinho que aparece como Outro estranho e se encarna ali onde não há relação sexual entre um homem e uma mulher.

Como encontramos a incidência desse gozo bárbaro, demoníaco, do Um sozinho nas novas configurações familiares e diversidades sexuais?

As transformações e remodelações em torno da estrutura familiar, com implicações para o parentesco e para a filiação, atestam que a criança se tornou o fundamento da família, e não mais o seu efeito, restando a ela escolher o seu lugar em uma diferença sexual que se pluralizou. Os pais se redefiniram em termos dos cuidados com a criança, e não mais em termos da diferença sexual, e a incidência da função fálica que possibilita o ser falante nomear-se como ser sexuado encontra-se submetida às novas versões de nomeação e a autonomeações. Devemos considerar também a impossibilidade de habitar um corpo e fixar uma imagem. Enfim, uma série de transformações que têm deixado a criança muito mais exposta ao Um sozinho, esse Um do Unheimlich desenlaçado do Outro, e a uma “infância desregulada e disruptiva” [1].

A dificuldade que aparece ao tratarmos do assunto “família”, independentemente do discurso da qual ela se depreende, já se encontra explicitada numa passagem de O semináriolivro 23, sobre “o sinthoma”, na qual Lacan afirma: “Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto. Somos falados e, por cauda disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado” (LACAN, 1975-1976, p. 158-159).

Segundo Bassols (2017, p. 46), cada sujeito é servo do discurso familiar, no sentido de que é a língua familiar que nos fala sobre aquilo que nos determina como sujeitos. Ou seja, é a língua dos significantes mestres fundamentais na história de cada um de nós, os quais servem para nos identificarmos com os outros e entre os outros. Contudo, a transmissão simbólica está marcada por um furo, que passa não só pelos significantes já articulados na linguagem mas, sobretudo, pela lalíngua própria a cada um.

Devemos identificar, então, a língua do Outro, a família do Outro, como o lugar que encarna o Outro de cada sujeito e também da criança. É o estrangeiro, o bárbaro enquanto signo daquilo que rechaçamos como radicalmente diferente e que está, ao mesmo tempo, no lugar mais familiar, mais íntimo e próximo de nossa realidade e da nossa forma de vivê-la.

Em qual língua a família nos fala? Qual é essa língua familiar para cada um? Em qual língua somos realmente falados pela família?

Penso que, nesse sentido, a conferência A língua familiar, de Miquel Bassols, nos orienta quando diz que cada um é um bárbaro em sua própria língua familiar. O termo bárbaro, tal como o termo heimlich, comporta dois sentidos ambivalentes. Pode tanto designar o mais estranho e intrusivo para a língua familiar quanto algo que experimentamos como um grande prazer, de acordo com nossa forma de gozar. E o analista também deve ser um bárbaro da língua para escutar o sujeito, ou seja, deve escutar aquilo da família que o fala quando o sujeito quer falar dela.

Para Bassols, a criança sempre chega à família como um verdadeiro bárbaro inesperado, como um intruso para o casal parental. Esse dizer de Bassols pode ser elucidado em Freud quando este trata a existência da sexualidade infantil como um gozo perverso e polimorfo, descentrado, o qual nunca será unificado, introdutor de uma dificuldade particular: não há código que permita ao sujeito decifrar o que lhe ocorre, e nem mesmo a mãe ou o pai sabe muito bem o que fazer com esse gozo. Sendo assim, a criança encarna esse lugar do bárbaro tanto para o adulto como para ela própria.

A criança surge como um bárbaro na língua familiar porque sua tagarelice é, com efeito, o tagarelar de um bárbaro que ninguém entende. Lacan, ao abordar esse real do gozo da língua, nomeou esse “tagarelar bárbaro” lalangue. A mãe e o pai costumam ser os encarregados de interpretar a língua do bárbaro — inventada a partir das particularidades “linguageiras” de cada um e desprendida do compromisso com a comunicação —, dando-lhe um sentido e supostamente civilizando a língua familiar. “O problema é que esta língua familiar supostamente civilizadora é ela mesma um dialeto da língua bárbara do gozo perverso e polimorfo da própria infância dos pais, que também foram bárbaros em seu momento” (BASSOLS, 2017, p. 46). Há, portanto, um mal-entendido inaugural e permanente que não cessa de se escrever entre a língua amorosa e terna dos adultos e a língua do gozo infantil, esse gozo opaco, indizível e enraizado no corpo.

Geralmente, o melhor que pode ocorrer aí é a criança fazer o seu sintoma ao se fazer representante da verdade do casal parental como “a verdade do bárbaro que está na origem da sua língua familiar”, tal como Lacan (1969) observou em “Nota sobre a criança” (LACAN, 1969, p. 369). Podemos tratar a noção de verdade no contexto familiar como aquela que implica o encontro sexual que concerne ao gozo e ao desejo do casal parental. A outra possibilidade, muito mais sinistra, é a criança encarnar o objeto do fantasma materno, “e não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto” (LACAN, 1969, p. 369).

Outro momento decisivo que envolve o Outro familiar e a língua do Outro se dá quando o bárbaro se depara com o real da puberdade. Ao representar-se como ser sexuado, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava sua identificação e seu sentimento de vida. As modificações do corpo causam um sentimento de estranheza que o adolescente enfrenta como algo intraduzível na língua do Outro. Quando esse ponto de apoio vacila, o sujeito se confronta com algo que faz “furo no real”, reenviando-o a um vazio de significação. Essa delicada passagem se converte, novamente, em um momento de mal-entendidos absolutos, incertezas e inquietudes e de uma grande confusão de línguas no seio familiar.

“Tudo isso que foi dito nos indica que não é nada fácil discernir o que e qual é a língua familiar do sujeito. Sobre que linguagem, como aparato simbólico, o ser falante elucubra para situar o real em jogo de cada língua?” (BASSOLS, p. 46).

A seguir, apresento um fragmento de caso no qual o encontro com o real da puberdade traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem e com a língua, deixando-o exilado em seu próprio gozo.

Esse estranho que me habita

“Ele é o único em nossa família a ter problemas”. Foi desse lugar do estranho que um adolescente me foi apresentado por sua mãe em nosso primeiro encontro. A família paterna do garoto é estrangeira e os poucos contatos que ele tem com esses familiares são permeados pelos mal-entendidos. Ele não sabe dizer o porquê de ser tratado com tamanha rispidez e intolerância por seus familiares.

Quando Lacan diz que somos filhos do mal-entendido e que somos atravessados pelos mal-entendidos que proliferam na confusão dos laços e das línguas faladas entre nossos ascendentes, ele indica que, por não haver “revelação ou dissolução possível, resta-nos incorporar esse mal-entendido” (GROISMAN, 2016, p. 47). É isso que esse adolescente vem tratando em sua análise: desse gozo estranho que o acomete no corpo e que é vivido com muita estranheza. Afinal, nada é mais familiar e mais estranho que a experiência do próprio corpo.

A cada discussão familiar que se vê envolvido, o garoto é tomado por uma sensação de estranheza, por um afeto que o ultrapassa, e a sua forma de responder a isso é uma cisão entre o eu e o corpo real de seu ser. Ele se vê vendo, como se estivesse enquadrado na cena de um filme. O mundo fica estranho — lugares e situações familiares ficam diferentes —, dando-lhe a sensação de que ele “já não é o mesmo”; sua voz também lhe soa estranha, irreconhecível, tudo fica no automático, como se ele “não mais fizesse parte da vida”.

Sabemos que o “eu” se sustenta em determinações simbólicas e pela extração do objeto a no real. A vacilação das identificações simbólicas do sujeito consigo mesmo e a consequente perda dos pontos de referência imaginários revelam o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Sendo assim, o lugar que o sujeito havia encontrado para si no Outro, seu lar, seu Heim, se torna então Unheim, estranho. Com relação a esse ponto do estranhamento, Lacan afirmará, em O seminário, livro 23, que “A inquietante estranheza, incontestavelmente, provém do imaginário” (LACAN, 1975-1976, p. 47).

Em uma análise, tentar dissolver o mal-entendido só o alimenta, diz Lacan. Será preciso que o sujeito possa reencontrar, em sua própria fala, as fontes desses mal-entendidos não como o que escutou ou entendeu mal, mas como aquilo que encerra em si a opacidade do desejo que lhe deu origem, deixando, assim, uma via para invenção (REGO, BARROS, 2016, p. 41).


Referências
BASSOLS, M. O bárbaro: transtornos da linguagem e segregação. Opção Lacaniana onlineano 9, n. 25 e 26, mar.-jul. 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_Barbaro_Transtornos_de_linguagem_e_segregacao.pdf. Acesso em: 8 mar. 2020.
BASSOLS, M. A língua familiar. Opção lacaniana, n. 79. Conferência apresentada no VIII Enapol, em Buenos Aires, em setembro de 2017.
FREUD, S. “O estranho” (1919). In: Freud, S. Obras completas, volume 14, São Paulo: Cia das Letras, 2010.
FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche]. – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019). Obras Incompletas de Freud, Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
GROISMAN, A.T. O mal-entendido que entre pelos Ouvidos. Opção Lacaniana, n. 72, p. 47, mar. 2016.
La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n. 2. Lettre d’information de L’institut psychanalytique de l’enfant.
LACAN, J. Nota sobre a criança. (1969). In: Lacan, J.Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975/1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior.1971-1972. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
RÊGO BARROS, M. R. O mal-entendido e a não relação sexual. Opção Lacaniana, n. 72, p. 41, mar. 2016.

[1]La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n.2. Lettre d’information de L’Institut psychanalytique de l’enfant.



A PSICOSE, O INFAMILIAR E O INTRADUZÍVEL

 

 

FREDERICO FEU DE CARVALHO
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
Resumo

O infamiliar é trabalhado por Freud como a emergência no campo da realidade de algo íntimo e secreto, que deveria permanecer oculto, e que é experimentado em seu oposto, ou seja, como algo estranho — infamiliar. O surgimento de alguma coisa que produz essa inquietante estranheza modifica, por um momento, nossa percepção da realidade. É possível se perguntar, por meio dessa palavra-conceito expressa por Freud, quais relações aproximativas podem ser feitas entre o infamiliar, o sentimento de estranheza e a “perda da realidade” na psicose.

Palavras-chave: Infamiliar; inconsciente; intraduzível; psicose

Abstract: The uncanny is a a word chosen by Freud to designate the emergency of something intimate and secret that should have remained hidden in the field of reality and that is experienced by the subject in its opposite form, that is, like something odd or uncanny. The emergency of something that produces this unsettling strangeness modifies, for an instant, our perception of reality. Through this word-concept proposed by Freud, one might ask what the possible relations between the uncanny and the loss of reality in psychoses are.

Keywords: Uncanny; unconscious; untranslatable; psychoses

 

Coletoras - Barbara Schall

Coletoras – Barbara Schall

 

No início de seu artigo “O infamiliar”, de 1919[1], Freud evoca o tratamento diferenciado que a disciplina da Estética dedica àquelas percepções que não pertencem ao campo do belo e do sublime e que, ao contrário, despertam a angústia e o horror. Entre essas percepções, Freud se dedica a investigar como aquilo que nos é íntimo ou familiar pode surgir, em determinadas ocasiões, como o seu oposto, ou seja, como estranho a nós, como algo que nos é infamiliar, provocando a angústia. No âmbito desse artigo, gostaria de examinar o estatuto teórico dessa palavra-conceito (Begriffswortes), como se expressa Freud, e como a emergência do infamiliar afeta a nossa apreensão da realidade e os laços sociais por ela circunscritos, na medida em que definimos a realidade como um compartilhamento de semblantes sociais. Nesse sentido, cabe perguntar que relações aproximativas podemos conjecturar entre o infamiliar e o sentimento de estranheza que caracteriza a relação com a realidade em algumas formas da psicose, por efeito do que Freud denomina “perda da realidade”, e que se reflete em falas como “eu não me reconheço neste mundo” ou “eu não consigo habitar este mundo”.

O ensaio “O infamiliar” é contemporâneo de “Além do princípio do prazer” e de “Psicologia das massas e análise do eu” e retoma um tema que Freud teria deixado na gaveta desde seu outro ensaio, “Totem e tabu”, de 1913, isto é, a sobrevivência da visão animista do homem primitivo na época da razão e da ciência. O ano de redação de “O infamiliar” é marcado pelo fim da Primeira Guerra Mundial e pela epidemia da gripe espanhola. A Europa estava, então, assombrada por uma sucessão de mortes, ora provocadas pelas pulsões destrutivas e pela intolerância de regimes totalitários fundados no amor ao pai, ora pela intrusão de um ser biológico invisível que ameaçava a espécie humana.

A angústia provocada pelo infamiliar, no entanto, não remete diretamente a uma angústia real diante da iminência da morte derivada de uma causa externa, como a guerra ou a epidemia. O infamiliar designa, antes, uma forma de manifestação da angústia, em geral transitória, associada a alguma coisa que nos é íntima e secreta, mas que, como a outra face de uma mesma moeda, surge inesperadamente no campo da realidade, quando deveria permanecer oculta. A longa meditação linguística desenvolvida por Freud no segundo capítulo desse artigo tem como objetivo mostrar o sentido antitético do termo alemão Das Unheimliche, ou seja, o fato de “infamiliar” derivar de “há muito familiar”, daquilo que se tornou íntimo e que, por meio de um deslocamento, passa a designar o que é oculto ou escondido. É essa derivação que o leva a associar a angústia do infamiliar ao retorno do recalcado inconsciente e, de uma forma genérica, à sobrevivência de crenças primitivas e complexos infantis em nossa apreensão da realidade.

Tal como ocorre no conto de Franz Kafka, “A preocupação do pai de família”, em que somos obrigados a conviver com o estranho ser chamado Odradek em nossa casa sem que possamos saber muito a seu respeito, sem que possamos capturá-lo. E, quando pensamos que ele se foi, Odradrek reaparece como que do nada, nas ocasiões mais insólitas, para nos lembrar de que não somos senhores em nossa própria casa; que somos habitados pelo estrangeiro em nós mesmos, apesar de nosso narcisismo original querer afirmar sempre o contrário, isto é, que, em nossa casa, somos soberanos.

Do ponto de vista fenomenológico, o sentimento do infamiliar pode ser comparado a outras formas de desencadeamento da angústia, como o susto, o medo e o pânico[2], levando-se em conta, por exemplo, a sua dimensão temporal, a sua intensidade ou as condições de sua irrupção. Freud busca discernir, nesse ensaio, o traço diferencial do infamiliar reivindicando uma leitura psicanalítica desse fenômeno, o que culmina na aproximação entre o infamiliar e o recalcado.

O que distingue o sentimento do infamiliar da angústia, em geral, no campo de nossas percepções, é a emergência de alguma coisa que produz uma inquietante estranheza, que “desrealiza”, por um momento, por assim dizer, nossa percepção da realidade. Segundo Freud, a relação com a realidade depende de uma operação psíquica: a substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade, obtida graças à moeda de troca da fantasia. A fim de que a realidade possa ser adequadamente enquadrada e funcionar como um semblante, é preciso que o objeto de gozo seja localizado na fantasia, e não no campo da realidade. Lacan nomeia essa operação “extração do objeto”. Em termos freudianos, a extração do objeto do campo da realidade equivale, portanto, à elaboração da fantasia inconsciente, ou seja, à configuração de uma Outra cena, graças ao investimento de objeto na fantasia, como condição para que a cena do mundo, sustentada pelo princípio de realidade, possa operar adequadamente.

O artigo “A negação”, de 1925[3], nos permite esclarecer em que consiste essa extração do objeto do campo da realidade. A tese de Freud, depois retomada por Lacan, sustenta que a realidade deve ser enquadrada pelo sujeito, não sendo, portanto, uma simples extensão de nossos sentidos. Freud sugere que as nossas primeiras cisões psíquicas, influenciadas pelo “Eu prazer”, modelam o campo da realidade incorporando ao Eu as representações agradáveis, ao passo que as representações desagradáveis são excluídas do Eu e se tornam, então, hostis a ele. Tal distorção será depois corrigida pela evolução psíquica do princípio de realidade, que impõe uma visão mais ajustada e menos vinculada ao princípio do prazer em nossa apreensão da realidade. Mas o princípio de realidade incide sobre um real já modelado, segundo a disposição inicial do “Eu prazer”, ou seja, por uma exclusão primária que recorta determinada região do real como inassimilável, fora do campo da representação.

Nesse artigo de 1925, Freud distingue a negação que caracteriza o recalque (Verdrägung) — que afeta as representações psíquicas inconscientes — daquela que resulta em exclusão do Eu — operação à qual ele deu o nome de Ausstossung —, que se refere a um núcleo real que permanece estranho a ele pelo fato de não se vincular a nenhuma representação psíquica, mesmo que recalcada. Para tratarmos das relações entre o infamiliar e a psicose, teríamos que nos reportar a essa primeira diferenciação. De fato, se, na neurose, podemos remeter o infamiliar ao recalcado inconsciente, àquilo do qual o neurótico nada quer saber, mas que surge no campo da realidade como uma intromissão da Outra cena na cena do mundo, na psicose, por sua vez, o infamiliar parece habitar o próprio campo da realidade pelo fato desta não estar enquadrada pela fantasia.

No entanto, apesar de Freud associar, na terceira parte de seu ensaio, o infamiliar e o recalcado, o infamiliar não é tratado ali como uma formação do inconsciente típica, vinculada à estrutura da linguagem e condensadora de sentidos (Sinn). O infamiliar evoca, ao contrário, uma forma inabitual do retorno do recalcado, sendo mais próximo do retorno no real que caracteriza a psicose. De fato, o tipo de fenômeno que interessa a Freud investigar em “O infamiliar” não se estrutura a partir do retorno da cadeia significante, mas da presença de um objeto que se comporta como um signo de gozo, como índice de um real, ou seja, que não se estrutura a partir da cadeia significante do sintoma como uma formação de compromisso, mas como algo intrusivo, como uma emergência de um real que retorna desde fora.

Esse índice do real, se tomamos como paradigma a neurose, tem como referente (Bedeutung) o objeto da fantasia, ou seja, o núcleo real que a fantasia encapsula com sua vestimenta significante e cuja presença no campo da realidade suscita angústia, borrando a fronteira entre a cena do mundo e a Outra cena. Trata-se aqui da emergência real de um objeto que havia sido extraído do campo da realidade, que volta a se apresentar onde deveria faltar para que então pudesse causar o desejo na neurose, no lugar da falta que condicionou a construção da cena do mundo e o enquadre da realidade devido à extração do objeto e do seu investimento na fantasia inconsciente.

É essa presença no real de um signo de gozo que satura o campo da realidade na psicose, conferindo-lhe uma aura de estranheza. A “perda da realidade” na psicose, evocada por Freud em 1924, na esteira das reformulações de sua segunda tópica, é uma consequência dessa saturação, se definimos o enquadramento da realidade a partir da extração do objeto da fantasia. A percepção da realidade, assim como o laço social, pressupõe o esvaziamento do gozo e sua redução ao objeto a, ou seja, ao objeto da fantasia que condensa, condiciona e particulariza esse gozo, que passa, assim, ao inconsciente. Quando o psicótico se queixa de estar ouvindo vozes ou de estar sendo olhado, perseguido ou vigiado, ele testemunha, justamente, a presença excessiva do objeto voz e do objeto olhar, que perturbam a relação com a realidade. A perplexidade da “vivência delirante primária”, descrita pela psiquiatria clássica, poderia ser, nesse sentido, comparada ao infamiliar generalizado e radicalizado que aponta para a presença de um signo de gozo no campo perceptivo que desencadeia a angústia e provoca o desmoronamento do sentido que suportava, para o sujeito em questão, a construção da realidade.

Podemos sustentar que a angústia suscitada por um filme de suspense ou de terror depende, igualmente, da expectativa de intromissão do infamiliar na realidade. Mas essa intromissão do infamiliar na realidade está resguardada pela ficção cinematográfica. Os efeitos assustadores de um filme de terror ou de suspense dependem da evocação de formas típicas do estranho que povoam o nosso imaginário, como os fenômenos de duplicação, de animação de seres inanimados, de ressuscitação de mortos ou, ainda, de emergência desmedida do gozo do Outro, que deveria permanecer aplacado pelas exigências da civilização que garantem a manutenção dos semblantes discursivos. A angústia em um filme de terror ou suspense se nutre, portanto, da expectativa do surgimento de um objeto na cena ficcional cuja falta permanece resguardada no campo da realidade graças à estrutura discursiva do laço social.

Essa estrutura discursiva se impõe a todo ser falante e tem como condição a renúncia ao gozo e o recalcamento daquelas representações que se vinculam ao gozo interdito. Como efeito dessa renúncia, o gozo interdito prolifera no inconsciente. Devido à estrutura de linguagem que caracteriza o inconsciente, a angústia pode, por exemplo, ser condensada em um objeto fóbico, com a conhecida proliferação de sentidos dessa formação do inconsciente e com a ajuda da qual se torna possível delimitar, no campo da realidade, aquilo que se deve evitar ou aquilo de que se deve defender. A fobia é, nesse sentido, uma forma suplementar de extração do objeto do campo da realidade que visa compensar as fragilidades do Nome-do-pai para levar a bom termo a interdição do gozo e sua redução inconsciente à fantasia.

Em uma vertente paralela, teríamos o objeto fetiche da fantasia perversa, que localiza a vontade de gozo do sujeito tamponando, ao mesmo tempo, o furo da castração. Uma das diferenças evidentes entre o objeto fóbico e o objeto fetiche pode ser assim formulada: na fobia, observamos a transmutação característica da angústia em medo a partir do trabalho metafórico e metonímico do inconsciente sobre o gozo, que leva à eleição do objeto fóbico; no fetichismo, ao contrário, o trabalho do inconsciente, como uma espécie de metáfora estancada, se detém diante de um objeto que desmente a castração e que captura a vontade de gozo do sujeito.

O objeto que podemos qualificar como infamiliar se distingue, por sua vez, tanto do objeto fetiche, que captura a vontade de gozo de um sujeito, quanto do objeto fóbico, ao qual podemos atribuir o “querer dizer” que caracteriza as formações do inconsciente. O infamiliar designa um objeto intraduzível, não recoberto pela vestimenta da cadeia significante, embora possamos referi-lo ao modo singular de gozo de um falasser. Nada se pode dizer do olhar vivificado da boneca Olympia, no conto de E.T.A. Hoffmann, comentado por Freud em seu artigo, a não ser que esse olhar obseda o personagem Nathanael. Olympia nada diz a Nathanael a não ser um balbucio, um rudimento de linguagem em tom de assentimento, sem que se possa atribuir a esse rudimento um valor metafórico ou metonímico. O objeto infamiliar poderia ser tomado, nesse sentido, como fora do simbólico — embora ele possa ser associado, eventualmente, ao recalcado —, na medida em que ele retorna no real sem a moldura da fantasia. Esse retorno no real, tão característico da psicose, acontece aqui sem se vincular a uma estrutura definida. O que é uma regra na psicose pode, assim, ser observado como uma contingência na neurose. Em outros termos, o valor conceitual do infamiliar consiste em demonstrar uma forma transestrutural do retorno no real que transtorna, mesmo que de maneira contingente, nossa apreensão da realidade e os semblantes sociais a ela referidos.

Em suma, na psicose, o infamiliar parece potencialmente associado ao desencadeamento da angústia em função do encontro no real de um signo de gozo que não se ligou a uma representação inconsciente. Por essa razão, o campo da realidade se mostra, nas psicoses, envolto em uma aura de estranheza generalizada, mais difícil de enquadrar, mais ameaçado pela onipresença do signo de gozo não desdobrado na cadeia significante da fantasia. O mundo na psicose é um mundo infamiliar, por assim dizer, na medida em que aquilo que foi uma vez excluído do Eu não encontrou seu retorno pela via da fantasia inconsciente e permaneceu inassimilável. Na neurose, teríamos que associar o infamiliar à possibilidade de o objeto da fantasia se apresentar inesperadamente onde deveria faltar, ou seja, de forma desvinculada da ficção da fantasia, sem o suporte da cadeia significante, na modalidade da disjunção que articula, entre outras possibilidades — conforme o matema lacaniano da fantasia $ <> a —, o sujeito barrado e o objeto.

Visto a partir da perspectiva do infamiliar, o tratamento das psicoses vai ao encontro daquilo que as soluções psicóticas evidenciam, ou seja, que esse objeto pode ser, por vezes, encapsulado ou, conforme a analogia lacaniana, posto no bolso. Isso não corresponde a uma “externalidade-interna” do objeto, como poderíamos esperar do investimento na fantasia inconsciente que faz desse objeto a causa do desejo na neurose. O objeto no bolso designa, na terminologia lacaniana, o objeto do qual o psicótico não se separa, ao qual ele permanece aderido, e que retorna no real como o signo da presença desse gozo inassimilável e para sempre intraduzível. Mas a possibilidade de colocá-lo no bolso pode ser pensada, no tratamento da psicose, como uma maneira de circunscrever esse objeto, seja através de uma construção delirante, ou de um objeto de arte, seja através de alguma outra invenção que possa operar como uma forma de suplência para a não extração do objeto e que lhe permita minimamente enquadrar a realidade, ou seja, proteger a realidade da presença insidiosa do gozo intraduzível, que torna o mundo tão infamiliar.


Referências
FREUD, S. “O infamiliar” In: Obras Incompletas de S. Freud, v. 8. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2019. p. 27-115.
FREUD, S. “A perda da realidade na neurose e na psicose”. In: Obras Incompletas de S. Freud. v. 5. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016. p. 279-284.
KAFKA, Franz. “A Preocupção do Pai de Família”. In: Um Médico Rural – pequenas narrativas. Trad. Modesco Carone. São Paulo: Companhia das letras, 1999

[1] Tradução proposta para Das Unheimliche pelo editor e tradutores das Obras Incompletas de Sigmund Freud da Editora Autêntica.
[2] O susto evoca a irrupção de uma angústia súbita diante de um perigo tomado como real, mesmo que depois ele se mostre imaginário; o medo remete a uma expectativa angustiante diante de um perigo, real ou imaginário, que poderá emergir a qualquer momento no campo perceptivo, associado a um determinado acontecimento ou objeto, que tanto podem ser verdadeiros como imaginários; o pânico evoca uma angústia desencadeada como um perigo iminente, sem que o acontecimento ou o seu objeto possam ser claramente circunscritos no campo da realidade.
[3] FREUD, S. “A negação”. In: Obras Incompletas de S. Freud, v. 5. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016, p. 305-310.



CONFINAMENTO FAMILIAR: FAMÍLIAS, QUESTÕES CRUCIAIS[1]

 

 

HÉLÈNE BONNAUD
Psicanalista. Membro da Escola da Causa Freudiana  ECF/AMP

Resumo
A crônica de Hélène Bonnaud explora a relação entre a pandemia do coronavírus e o confinamento dos sujeitos em casa. Consequentemente, a angústia diante da incerteza que acomete a todos irrompe diante desse real. As novas rotinas domésticas e laborais, a convivência aumentada com a família, a aposta midiática na prática de meditação e o aumento de divórcios são alguns efeitos deste momento que são ressaltados e examinados pela autora. Pela evidente amplificação do sentimento de solidão, a autora propõe um paralelo entre isolamento e solidão, levando em conta, contudo, as diferenças entre os dois.

Palavras-chave: coronavírus, família, angústia, solidão, isolamento.

Abstract: Hélène Bonnaud’s chronicle explores the relationship between the coronavirus pandemic and subjects’ confinement at home. Consequently, the anguish at the uncertainty that affects everyone breaks out in the face of this reality. The new domestic and work routines, the increased coexistence with the family, the media focus on meditation practice and the increase in divorces are some effects of this moment that are highlighted and examined by the author. Due to the evident amplification of the feeling of loneliness, the author proposes a parallel between isolation and loneliness, taking into account, however, the differences between the two.

Keywords: coronavirus, family, anguish, loneliness, isolation.

 

Posso me ver nos teus olhos – Barbara Schall

 

 

Se houvesse apenas uma coisa para comemorar neste período de pandemia e, portanto, de angústia de morte, é que as crianças não sucumbem ao coronavírus. Mesmo sendo portadores, o vírus não causa o dano causado em adultos, especialmente em idosos. Se acreditarmos nos números, o coronavírus mata mais idosos do que jovens. A escala de idade encontra seus direitos. Há uma enorme diferença entre as gerações. Esse é um lembrete útil? Sim e não, já que muitos jovens se sentiram invulneráveis ​​no início do confinamento e o recusaram, pensando que isso não os afetaria.

A juventude sempre esteve inconsciente, dizem. Esse é o seu ponto fraco, ou o seu ponto forte, dependendo do objeto com o qual ela não se importa. No que diz respeito à doença, ela sempre parece distante, e o sentimento de ter um corpo perfeitamente saudável engana a própria ideia de mortalidade. Mas, atualmente, o coronavírus tem mostrado que pode ser bastante virulento com certos jovens e que é necessário proteger-se dele, definitivamente, independentemente da idade. O caso da jovem Julie, 16 anos, infelizmente tornou minha previsão real; ela morreu após a escrita deste texto[3].

A injustiça, que atinge cegamente, é o signo do real sem lei com o qual estamos lidando. Ela se manifesta nessa lógica implacável de que ser jovem não é uma certeza nestes momentos em que a vida e a morte colapsam, e menos ainda uma garantia, mas, isso, já sabíamos. Sem dúvida, poderíamos ler ali o efeito do caput mortuum do significante de que Lacan (1966/1998, p. 55) fala em “Seminário sobre ‘A carta roubada’” e que constitui um furo no simbólico[4].

As restrições do confinamento

Estamos entrando na segunda semana de confinamento na França. A mídia nos inunda com seus conselhos sobre a melhor maneira de o suportar, seja em família, seja em casal, seja sozinhos. De fato, a família deve suportar a convivência a longo prazo; gerenciar as angústias de todos; encontrar soluções para garantir que o horário de trabalho de pais e filhos seja respeitado, sem mencionar a organização necessária para preparar refeições e resolver problemas de espaço compartilhado, etc. Casais com filhos pequenos estão reinventando a “guarda compartilhada” diariamente, cada um se revezando no cuidado com os filhos enquanto o outro trabalha. A vida profissional em casa obriga a redobrar sua concentração, e a vida familiar sem sair de casa pode se transformar em um pesadelo. A perspectiva de uma duração indeterminada do confinamento também causará picos de angústia ou raiva, medo e exaustão.

A sublimação é, sem dúvida, o processo de maior contenção. Muitos o utilizam: cozinhar, pintar, bricolagem, poesia, cantar, dançar, escrever, arrumar a casa e, mais prosaicamente, praticar esportes, “o grande protetor de nossa saúde física e mental”.

E os conselhos da mídia

A mídia nos explica, através de seus especialistas psiquiatras ou psicoterapeutas mais reconhecidos, que estamos diante de uma situação sem precedentes, em que a angústia de contrair a doença se manifesta como um trauma cujo principal sintoma, o atordoamento, penetra a capacidade de pensar, cristalizando o medo, que surge de um evento fora de sentido, fazendo vacilar as certezas sobre as quais cada um constrói seu mundo.

De fato, diante desse real, cuja natureza inesperada e invasiva muda a rotina de nossas vidas, cada sujeito deve encontrar uma solução para lidar com esse novo elemento, objeto invisível e ainda intrusivo, circulando sem o nosso conhecimento, verdadeira figura do contágio em larga escala, infiltrando-se principalmente através dos orifícios respiratórios nariz e boca. O isolamento necessário nos afasta uns do outros e dá consistência aos uns-sozinhos que somos.

A família, nesse sentido, é uma entidade particularmente sensível a essa catástrofe sanitária, porque os pais têm o dever de proteger seus filhos que devem, portanto, suportar as novas regras que lhes são impostas, tanto em termos de higiene quanto de convivência. Mas crianças pequenas e adolescentes não apresentam os mesmos problemas. Os primeiros estão sujeitos às ordens dos pais e podem apenas levar em consideração suas novas medidas. Para os adolescentes, a restrição do confinamento é mais difícil de suportar. “Como explicar essas restrições aos adolescentes?”, perguntou Léa Salamé a Serge Hefez[5] durante uma entrevista matinal. E isso para evocar a noção de “sacrifício” que os adolescentes devem consentir para proteger os mais velhos ​​como sendo uma resposta que os ajudará a aceitar seu confinamento. Sacrificar-se pelo Outro, de certa forma.

Salientamos que essa ideia é encontrada em Freud, que associou o sacrifício à renúncia pulsional e, por conseguinte, tornou o sacrifício quase equivalente a uma restrição necessária do princípio do prazer em favor do princípio da realidade. Para estarmos juntos, devemos admitir que todos devem sacrificar algo de seu gozo. Esse princípio permite que a comunidade se organize para transformar sua produção habitual em novos objetos dedicados a salvar os doentes, apoiar os cuidadores e ajudar os mais frágeis. Diante do real, o desejo se coloca a serviço da causa comum pela sobrevivência do grupo. É justo!

A meditação revelada a si mesma

O mediático Christophe André[6] também apoiou a população confinada, defendendo os benefícios da meditação. Certamente, esta tem o mérito de ser uma terapia para esvaziar os pensamentos e oferece um tratamento que se parece muito uma “pausa” da mente. Mas, quando há superexposição, como é o caso atualmente, às angústias da doença e da morte pode-se perguntar como alcançar seu rumo em direção ao zen. E, se nossos pensamentos podem ser suspensos pela meditação, resta, porém, a questão de se saber como fazer quando eles retornarem.

De fato, como bem sabemos enquanto analistas, a compulsão de pensar é uma defesa contra o real e, como todo delírio, permite contornar o buraco do vazio que poderia sugar alguns. É assim que a análise, cuja prática consiste em ir duas ou três vezes por semana ao seu psicanalista, permite um esvaziamento de pensamentos, mas um esvaziamento de sentido orientado pelo desejo de saber, um esvaziamento operando em direção a uma historicização de sua vida psíquica. Essa experiência de palavras produz sua ordenação e elaboração simbólica e, de modo mais profundo, atinge o gozo ao encontrar maneiras de canalizá-lo e de tratar o excesso.

Trata-se de um trabalho que aprendemos com Freud, um esforço para dizer o mais próximo possível o que se passa. Os pensamentos, portanto, não se intrometem mais como fenômenos perturbadores que carregam muita angústia, mas servem para nomear a coisa. Um paciente, que vivia já confinado devido a um luto patológico, pôde me dizer que a frase que teve o efeito de chamá-lo para uma solução fatídica: “Gostaria que a Terra parasse para cair”[7] — extraída de uma canção escrita por Serge Gainsbourg e cantada por Jane Birkin, agora faz limite à sua tristeza porque, de fato, o mundo parou. Ele próprio se encontra aliviado porque não está mais sozinho em confinamento. O mundo do qual ele se defendeu excluindo-se não o ameaça mais. Os uns-sozinhos que são seus amigos juntaram-se a ele. O confinamento não o exclui mais. Ele se juntou ao Outro na privação da liberdade obrigatória.

E previsão de divórcios

Outros nos contam sobre a epidemia de divórcios que se segue ao confinamento na China e prevêem que esse confinamento a dois terá repercussões nesse aspecto. Certamente, estar sujeito à tensão de compartilhar a vida cotidiana 24 horas por dia pode ser a ocasião para fixações no comportamento de um ou de outro. Críticas furiosas, acessos de raiva ultrajantes e insultos guardados do “que estava no coração e o que não foi dito”, a situação pode se tornar explosiva. Os conflitos conjugais — traições passadas ​​ou atuais, discórdia permanente, ameaças de separação, alcoolismo e adições diversas para falar apenas dos sintomas mais visíveis de um ou de outro — reaparecem nestes momentos de questionamento da vida, pois o confinamento leva a atualizar seu passado para pensar em seu futuro. O tempo presente suspenso assume um significado diferente dia após dia.

Há uma desregulação da temporalidade ligada à interrupção da vida “normal”. A própria noção de casal pode aparecer como uma entidade ilusória, pois cada um defende seu território, seu lugar adquirido à custa do outro, seus interesses de gênero e gozo pessoal. Enfim, o casal é um microcosmo a dois que pode ser explosivo, e, a saída pelo divórcio, a solução mais confiável.

Resta a solidão

A solidão está em primeiro plano. A sensação de estar sozinho pode ser acompanhada de uma angústia de abandono ou, pelo contrário, de isolamento forçado pela vontade de um Outro mau. Pensa-se especialmente nos idosos que vivem sozinhos, privados de visitas de seus filhos e netos. Mas existem todas as outras formas de solidão.

O confinamento convoca cada um a encontrar a distância certa de seu sentimento de solidão. Como Philippe La Sagna (2007) diz em seu notável texto “Da solidão ao isolamento”, no qual muitas frases fazem eco ao que estamos passando, a solidão e o isolamento não são do mesmo registro: “Para estar separado, é necessário ter uma fronteira comum. Temos uma fronteira comum com o Outro quando estamos em solidão, enquanto que, no isolamento, não há fronteira. O isolamento é um muro. E estamos na era da construção de isolados, já que cada um não sabe mais onde começam e onde terminam as fronteiras”.

Não sabemos onde começam nem onde terminam as fronteiras. O coronavírus pode mudar esse modelo de globalização. Mas, entre o isolamento e a solidão, há um muro.

 

Tradução: Michelle Santos Sena de Oliveira
Revisão: Luciana Silviano Brandão Lopes

Referências
LACAN, J. (1966). “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. In: Escritos.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LA SAGNA, P. “De l’isolement à la solitude”. In: La Cause freudienne, n° 66, p. 43-49, 2007.

[1] Texto originalmente publicado em Lacan Quotidien, n. 877, publicado em 30 de março de 2020 . Disponível em: https://www.lacanquotidien.fr/blog/2020/03/lacan-quotidien-n-877/
[2] https://www.lepoint.fr/societe/on-n-aura-jamais-de-reponse-julie-a-16-ans-morte-du-coronavirus-en-france-27-03-2020-2368993_23.php#
[3] Cf. MILLER J.-A., « L’orientation lacanienne. Des réponses du réel », cours du 16 novembre 1983, inédit : « C’est ce que Lacan appelle un trou – un trou au niveau du symbole : “un trou s’ouvre que constitue un certain caput mortuum du signifiant” » (citation de Lacan J., « La lettre volée », Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 50).
[4] https://www.franceinter.fr/emissions/l-invite-de-7h50/l-invite-de-7h50-19-mars-2020
[5] https://www.bfmtv.com/mediaplayer/video/le-medecin-psychiatre-christophe-andre-donne-ses-conseils-pour-gerer-la-peur-du-coronavirus-1232606.html
[6] http://www.frmusique.ru/texts/g/gainsbourg_serge/quoi.htm