A PRESENÇA REAL E A FUGACIDADE DO CORPO[1] 

CATHERINE LACAZE-PAULE
Psicanalista. Membro da ECF/AMP | lacazepaule@gmail.com

Resumo:  Catherine Lacaze-Paule aborda a atual experiência de confinamento para refletir sobre suas repercussões na clínica psicanalítica praticada virtualmente. Nesse contexto, ela indaga quais seriam “as condições para que um encontro seja real, para que uma presença se faça sentir, para que ela se experimente”. A autora se serve da expressão lacaniana “presença real” enodada ao desejo do analista e, dessa forma, dá um passo além dos termos — presencial, a distância — que o discurso corrente faz uso.

Palavras-chave: confinamento, presença real, objeto a

Abstract: Catherine Lacaze-Paule addresses the current experience of confinement to reflect on its repercussions in the psychoanalytic clinic practiced virtually. In this context, she asks what would be “the conditions for a meeting to be real, for a presence to be felt, for it to be experienced”. The author makes use of the Lacanian expression “real presence” that is rooted in the analyst’s desire and, in this way, takes a step beyond the neologisms — in person, at a distance — that current discourse makes use of.

Keywords: confinement, real presence, object a

Imagem: Jayme Reis

 

 

Durante o confinamento, experimentamos os corpos ausentes, a distância. Percebemos que as noções de proximidade, de distância, de fronteira entre si mesmo e do outro eram insuficientes para dar conta da presença. O próximo, o distante, a distância social, o blurring — neologismo inglês para designar a ausência de fronteira entre o privado e o profissional — , o FOMO (fear of missing out[2]) — medo de perder algo nas redes sociais — ou o FOGO (fear of going out) — medo de sair de casa, que parece ser uma nuance da agorafobia — são os novos sintagmas que testemunham novas doenças ligadas à presença e aos efeitos das relações com o outro, com o exterior, com o vizinho próximo, com o íntimo e com o êxtimo.

Para atenuar a ausência, o digital se impôs nas vidas inserindo-se profundamente. Dois termos passaram para a linguagem comum para circunscrever esse efeito, o “presencial”[3] e o “a distância”. Com a tecnologia digital, tivemos acesso à possibilidade de “nos ver” sem estar de forma presencial, “nos ouvindo” ao nos conectarmos, nos aproximarmos, mas a distância. Toda vez que o objeto a é tocado, o ver se impõe em detrimento do olhar, e a imagem especular torna-se o reflexo de si mesmo. A ausência do corpo que não se enlaça, sem lastro, sem fazer mais uso da palavra, perde-se, esvazia-se de sentido e gozo. Consequentemente, efeitos de “fadiga”, de “corpo cansado” e mesmo de “lassitude”, por vezes se fazem sentir. Nossos encontros se digitalizam. Nossos encontros se virtualizam. Nós tocamos a presença?

Sem a presença dos corpos, sem a confrontação dos corpos, a presença se faz mais enigmática, mas necessária. Será sempre assim? Quais são as condições para que um encontro seja real, que uma presença se faça sentir, que ela se experimente? Como se produz o sentimento da presença?

As sessões analíticas não escaparam desse problema e atestam em que a análise é indissociável de uma certa relação aos corpos presentes. O que a ausência dos corpos revelou é que o corpo escapa. Lacan evoca a fugacidade (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 229) do corpo em O seminário 8: a transferência. Introduzamos o equívoco da fuga, dos corpos ausentes e dos corpos que escapam para interrogar o que é a presença real. Esta é aquela que se faz “em carne e osso”?

A expressão presença real (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 240) aparece pela primeira vez no seminário sobre a transferência, em diversas ocasiões e, também, como título de capítulo. É através de sua negatividade, sua negação, que frequentemente essa noção é apreendida. Nesse seminário, é sob a forma do insulto. O insulto à presença real que Lacan localiza na clínica de uma neurose obsessiva feminina. Seu sintoma consiste em ver, sem que se trate de uma alucinação, no lugar da hóstia, os órgãos genitais masculinos. Esse insulto à dimensão sagrada do dogma religioso católico é como um insulto feito à Eucaristia. Lacan se baseia nele para evocar a noção de presença real. Segundo São Tomás de Aquino, a presença real é substância. Ela não serve para designar uma coisa visível pelo “olho corporal”, mas sim a realidade inteligível de um ser. A presença real nomeia o corpo de Cristo. Ela não é perceptível através de nenhum dos sentidos nem pela imaginação, mesmo quando o vinho e o pão (a hóstia) dão forma imaginária para recobrir essa substância. Lacan se serve desse termo para dar conta da função do grande Phi, a função do falo, o que simboliza a ausência e a presença que ele designa como presença real. O grande Phi simboliza, ao mesmo tempo, a significação e seu além, o intervalo entre dois significantes, como presença vazia, como não relação entre dois significantes (S1//S2). “Pois ao signo que há para dar [pelo psicanalista], falta significante” (LACAN, 1960 – 1961 / 1999, p. 232).

Em cada intervalo se abre para o sujeito a questão do desejo do Outro, e algo do desejo se manifesta, mas nada que seja significável. É por isso que o obsessivo se dedica a conjurar o intervalo entre dois significantes toda vez que este se apresenta diante de si. Assim, no tratamento, a função que o falo simbólico ocupa em seu lugar “é que não é simplesmente signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960 – 1961/ 1992, p. 244).

O falo, além de sua representação de órgão, além de toda representação ou possível significação, tem um status de signo. Mas esse signo é presença real que o analista, em seu desejo e seu corpo, pode encarnar em carne e osso.

Os objetos a são alojados no analista, ele os encarna. Distingamos com o ensino de Jacques-Alain Miller: o começo do tratamento, momento em que a idealização é apenas a máscara do objeto a, é a etapa da revelação. Esta é seguida pela repetição: a análise que perdura. Enfim, o terceiro tempo, aquele da estagnação, o da gaiola do sintoma, sua inércia. Aquele do gozo bem real. De acordo com os momentos, os objetos da demanda e do desejo são sublinhados, acentuados, marcados ou, ao contrário, reduzidos a zero, subtraídos pelo analista. O manuseio do objeto é o que funda o buraco real na linguagem e, ao mesmo tempo, o que o simboliza e o que cobre a falta sob seus vários disfarces. Quer o olhar seja firme, quer seja fugidio, aqui, o corpo do sujeito é, acima de tudo, o do narcisismo, reduzido à imagem. Seja na idealização da verdade, seja do discurso e do significado, o analista encarna o Outro como lugar dos significantes e da verdade. Por outro lado, através de seu silêncio, ele indica a presença do gozo. O seu silêncio, ou sonoridade, é o que convoca o objeto voz. A voz que não é sonora, que não é aquela da vocalização, mas a que surge cada vez que o significante cai sobre o que não pode ser dito, sobre o que é indizível. É a voz que se assemelha ao que despenca, ao que cai do corpo quando o significado se perde e foge. A palavra, sem o eco produzido pelo silêncio do analista, esvazia-se de significado e de gozo.

Da mesma forma, o corpo do sujeito, como sustentação do brilho fálico ou depositado no divã como uma casca, se confronta com o corpo vivo do analista, para além do que é, com o que existe. A presença real do corpo do analista como suporte é também aquela que convoca o presente do dizer. “Trata-se da oposição do que chamarei de dizer do presente ao presente do dizer” (LACAN, 1957 – 1958/ 1999, p. 65), distingue Lacan em O seminário 5as formações do inconsciente. Ele especifica que não é simplesmente um jogo de palavras, mas que a atualidade do presente permite localizar a atualidade do falante no nível da mensagem, enquanto o presente do dizer abre o espaço à metonímia ou ao que se ouve. Acrescentamos: o que é lido a partir do que é dito, o que se goza de dizer. Quando o psicanalista é presença, ele é, ao mesmo tempo, apoio velado de um desejo — Che vuoi? — e suporte, através do objeto a em presença, do gozo.

Pois, quando o desejo do analista se faz suporte de uma presença real como impossível, ele pode também encarnar, fazer interpretação de um evento de gozo singular. Se o significante não é tudo, a presença real enodada ao desejo do analista é o index do real do gozo do corpo. Com a presença real, Lacan nos coloca na via da sessão analítica como objeto topológico, um real que não é produzido pelo impossível, mas pelo nó, pelo manuseio do nó.

Tradução: Luciana Silviano Brandão
Revisão: Giselle Moreira

Referências:
LACAN, J. (1957–1958) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1960–1961) O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

[1]
 Publicado originalmente em: lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2020/09/ironik-42-Habeas-corpus.pdf
[2] Cf. “Le confinement et le fomo, fear of missing out sur les réseaux sociaux”, disponível em www.nova.fr.
[3] Esse adjetivo qualifica uma maneira de funcionar em situação real, no tempo presente, sem intermediário nem mídia interposta. Se opõe ao “virtual” ao “a distância”. Geralmente utilizado no contexto profissional. Disponível em www.linternaute.fr.



PSICANÁLISE E ESQUECIMENTO: PONTUAÇÕES SOBRE ESTES TEMPOS ESTRANHOS

HENRI KAUFMANNER
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP |
kaufmanner@gmail.com

Resumo: Partindo da pergunta lançada por Lacan ao final do seminário XI, sobre uma possível impostura da psicanálise, pergunta-se o que o conduziu a traçar uma distinção entre a religião, a ciência e a psicanálise sob a perspectiva da ideia de esquecimento. Sublinhando como o avanço do discurso da ciência em nosso tempo, com sua oferta indiscriminada de objetos de consumo, provocou o tamponamento da falta do sujeito barrado e afetou “gravemente essa distinção entre esses campos em sua relação com o esquecimento”, faz-se recordar que, nesse mesmo seminário, Lacan já alertava quanto aos efeitos da chamada mass media, algo que hoje podemos traduzir como a era das tecnociências, aí implicada a virtualidade das nossas relaçõesDiante desse cenário, o que nos é exigido é a audácia da invenção.

Palavras-chave: psicanálise, religião, ciência, esquecimento, mundo virtual

Abstract: Starting from the question raised by Lacan at the end of seminar XI about psychoanalysis possible imposture, we ask what led him to make a distinction between religion, science and psychoanalysis through the idea of “forgetfulness”. Underlining how the advancement of the science discourse in our time, with its indiscriminate offer of objects of consumption, has caused the tamponing of the lack of the barred subject, and has “greatly affected this distinction between these fields and their relation to forgetfulness”. In the same seminar, Lacan had already warned us about the effects of the so called mass media, that today we can translate as the era of the technosciences implicating in the virtuality of our relations. In this scenario, the audacity of the invention is what is required of us.

Keywords: psychoanalysis, religion, science, forgetfulness, virtual world.

 

Imagem: Jayme Reis

 

Proponho pensar os desafios que se impõem à psicanalise nestes tempos estranhos tomando como eixo alguns pontos que me parecem centrais, desenvolvidos por Lacan (1985) ao longo do seminário XI. Nesse seminário, realizado após sua excomunhão, Lacan intenta constituir um viés científico para a psicanálise. Após a formulação do objeto a, no seminário sobre a angústia, ele se esforça por ir além de Freud, além do pai, deslocando-se da transcendência do simbólico ao acontecimento de corpo.

Vale ainda ressaltar que tal desenvolvimento se faz em torno da lógica da alienação e separação, que repercute as relações do sujeito com o objeto nesse momento do ensino de Lacan.

Religião, ciência e psicanálise

Ao concluir o seminário, em sua última lição, Lacan interroga: como nos garantir que não estamos numa impostura?

Na sequência, destaca a religião como impostura, pelo menos se tomada a partir das referências suscitadas no século XVIII, século do homem do prazer, do homem das luzes. Lacan acentua que não basta sair do registro da crença para se temperarem seus efeitos de alienação, a simples descrença diz, não é suficiente para superar os efeitos sobre o ser do sujeito (LACAN, 1985, p. 256). O descrente, portanto, não experimenta necessariamente essa queda na representação significante, esse vazio do saber da operação de separação.

A ciência, por sua vez, seria indiferente a essa questão. De maneira distinta da religião, não se situa no campo da alienação. É num ponto preciso no campo da separação que se sustenta o lugar do cientista. Sendo assim, “o corpo da ciência, só conceberemos seu porte ao reconhecermos que ele é, na relação subjetiva, equivalente ao que chamei aqui de a minúsculo” (LACAN, 1985, p. 257).

Já a psicanálise vai além da ciência, embora tenha como esta o ponto de partida cartesiano. Como consequência desse mais além, ela é, por mais das vezes, aproximada e, por que não dizer, confundida com a religião.

A única maneira de abordar esse problema, diz Lacan, é que a religião, como modo de “subsistência do sujeito que se interroga, se distingue por uma dimensão que lhe é própria e que é marcada por um esquecimento” (LACAN, 1985, p. 257). A religião teria como recurso resgatar esse mais além como operatório e mágico através do sacramento, na medida em que este tem como função encobrir a operação de separação pelo esquecimento.

Em contraposição, é justamente nesse esquecimento que a psicanálise opera. Diferentemente da religião e tributária das mesmas origens da ciência, a psicanálise se ocupa desse furo, dessa hiância presente nas relações do sujeito com o Outro[1]. Não há nada para a psicanálise esquecer, pois, para ela, não está implicado nenhum reconhecimento, nem mesmo da sexualidade, já afirmava Lacan.

Podemos abordar essa questão por um outro viés, apoiando-nos em Miller em seu texto “Triângulo dos saberes” (2017, p. 261). Miller situa a psicanálise na falha que se apresenta entre a retórica e a ciência. Com o avanço da lógica do consumo, não parece demasiado pensar que o discurso do capitalismo oblitera a falha, o que repercute como dificuldade para a psicanálise se assentar, na medida em que se exclui o encontro com o furo. A prática com os adictos é pródiga em exemplos dessa dificuldade.

Podemos assim diferenciar estes três campos: a religião no campo da alienação; a ciência, indiferente e que subsiste no campo do objeto, tomado aqui enquanto materialidade; e a psicanálise ocupando o furo. Lembremos que o objeto é uma consistência lógica que apenas eventualmente ganha materialidade, o que nos permite perceber a distinção entre o real da ciência, que retorna sempre ao mesmo lugar, e o real da psicanálise, que é contingente.

Quais seriam as consequências do avanço do discurso do capitalismo sobre a distinção entre esses campos?

A oferta abusiva e indiscriminada de objetos de consumo, de uma materialidade insistentemente renovada dos gadgets, cristaliza-se numa espécie de curto-circuito, representado por Lacan na relação direta do objeto tamponando a falta do sujeito. Isso afeta gravemente essa dintinção entre esses campos em sua relação com o esquecimento. Esse curto-circuito produz como que uma diluição deles mesmos. Assim, o esquecimento da religião, a indiferença da ciência e o furo, objeto da psicanálise, se apresentam não mais tão facilmente dissociados.

A profusão imaginária de objetos em nossos tempos, sobretudo com o advento do mundo virtual da internet e redes sociais, invade os campos de existência do ser recobrindo a falha, onde a singular experiência do falasser incidiria.

Vimos acompanhando, ao longo da pandemia, como que religião e ciência se imiscuem; testemunhamos os fenômenos que vão do negacionismo ao misticismo mais fanático. Não deixa de causar perplexidade acompanhar, por exemplo, a resposta da medicina e sua desorientação neste momento particular do mundo, em que não encontra mais suporte na ciência. Impressiona também a forma como os fármacos passaram a ocupar o lugar de objetos devoção, de utilização política ou mística.

Transferência e sacrifício

É bem conhecida a afirmação que, para operar com a transferência, cabe ao analista fazer valer o semblante do objeto, que, no seminário XI, Lacan articula como causa do desejo. Por essa via, acontece a captura amorosa na medida em que o sujeito se oferece ao Outro na busca do encontro do desejo. Mas, na medida em que o objeto é um semblante, um encobrimento do furo, o que o sujeito acaba encontrando na análise é a falta do Outro, que o remete à sua própria falta.

Ilumina-se, assim, a afirmação de Lacan, inspirada na obra de Appolinaire, de que não basta ao analista se fazer de Tirésias, é preciso que ele tenha mamas. Não basta a mera presença do analista, a presença de seu corpo, é preciso que ele faça reinar o semblante do objeto para que a pulsão seja assim capturada em seu percurso. O semblante não é sem o furo, ele toca algo desse real que captura a pulsão. Cito Lacan (1985, p. 261):

Quero dizer que a operação e a manobra da transferência devem ser regradas de maneira que se mantenha a distância entre o ponto desde onde o sujeito se vê amável — e esse outro ponto em que o sujeito se vê causado como falta por a, onde esse vem arrolhar a hiância que constitui a divisa inaugural do sujeito.

Inspirado nas elaborações freudianas, Lacan sempre indicou como importante para o surgimento da psicanálise esse distanciamento que Freud fez da hipnose, na qual o Ideal do eu e a imagem ideal se sobrepõem. Descolada da hipnose a transferência analítica, constituiu-se um novo estatuto para a dimensão amorosa presente na relação do sujeito com o Outro.

Não seria então uma mera coincidência que, na última lição do seminário XI, Lacan tenha feito um rápido comentário sobre os efeitos, já por ele observados, da chamada mass media. Ali, muito antes do advento do mundo virtual, a produção excessiva e oclusiva do objeto a partir dos recursos tecnológicos da época já era motivo de alerta, por Lacan, da presença planetária invasiva da voz e do olhar. Como também não é de causar estranheza que, logo em seguida, ele se ocupe do tema do sacrifício.

Lacan faz uma crítica contundente à precariedade das leituras dominantes que tentam explicar o nazismo e o holocausto. Ressalta a ressurgência da oferenda a deuses obscuros de um objeto de sacrifício, situação sob a qual poucos sujeitos poderiam deixar de sucumbir, tratando-se de uma “captura monstruosa”.

Denuncia que a crítica histórica a esses fenômenos é tomada por certo fascínio pelo sacrifício[2]. Diz, contudo, que um olhar corajoso para esse mistério revelará que “o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro”, que é então chamado por Lacan de “Deus obscuro” (LACAN, 1985, p. 266).

Discorrendo sobre esse tema, Zaloszyc (1994) retoma a passagem bíblica do Êxodo, de quando Deus fala a Moisés: “Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; porém a minha face não se verá” (XXXIII/23).

Segundo Zaloszyc, da forma como Deus fala a Moisés, pode-se depreender que este somente teria acesso ao que Deus lhe depusesse: seus mandamentos, seu texto, suas prescrições. Moisés jamais alcançaria os fins em jogo naquilo que Deus lhe apresentava. Ele poderia apenas supor o sentido em jogo no texto divino, supor o saber desse que se apresenta a ele com seus mandamentos (ZALOSZYC, 1994, p. 10). Constata-se, assim, que houve um encontro de Moisés com uma dupla face de Deus. Não lhe é possível alcançar as razões de Deus. Depreende-se assim que, mais além do saber, encontra-se o impossível de alcançar do desejo do Outro. Aí se encontra sua dimensão obscura. Essa obscuridade não há como ser reduzida pelo saber. Por mais que possamos constituir um Outro do saber, por detrás deste, inevitavelmente, encontraremos uma obscuridade. Por mais explícita e concreta que seja a fala do Outro, o desejo em jogo nos escapa. O desejo do Outro é sempre uma opacidade.

Uma novidade se apresenta então para a psicanálise. Ela se encontra diante de uma nova modalidade de apresentação do gozo. O avanço do discurso do capitalismo nos enreda à experiência de uma captura monstruosa, o sacrifício à dimensão obscura do desejo do Outro.

As neo-divindades

Ao comentar o ultimíssimo Lacan, Miller (2010, p. 126) discorre sobre a mudança de rumos por ele efetuada deslocando-se da noção de simbólico, e, portanto, de sentido, na medida em que este se articula na cadeia significante para valorizar o que seria da materialidade da palavra e sua relação com o corpo — que Lacan busca expressar no conceito de lalangue. Tal moterialité pode, a princípio, parecer estranha, pois, ao afastar o sentido, Lacan parece aproximar o real da psicanalise do real da ciência ao nos apresentar algo que retorna sempre no mesmo lugar, um contraponto à contingência com a qual lidamos em nossa prática.

No esforço de exemplificar essa materialidade da palavra, Miller recorre à experiência que, naquele momento, já era bem comum — recorrer ao Google (MILLER, 2007). Quando fazemos uma busca, assinala, esta não é feita por intermédio de uma frase, tampouco uma prece. Trata-se apenas de um sinal, uma letra, uma cifra, e vamos de encontro a esse “deus virtual”.

Na busca do saber, encontramos essa neodivindade incapaz de qualquer deciframento e que opera somente com a materialidade das palavras.

Com o Presidente Schreber, avant la lettre, aprendemos que esse Deus, esse Outro caprichoso não entende nada dos homens, somente os conhecendo em sua superficialidade, e que seu afastamento resultava numa humanidade de homens feitos às pressas. O Deus Google, contudo, apesar da materialidade superficial que nos oferece, contrariamente ao Deus de Schreber, fala muito, responde muito, é logorreico. “Ele alinha ainda mais a velocidade e a quantidade… no lugar do infinito, ele coloca a totalidade” (MILLER, 2010, p. 127).

O Google, lembra Miller, é, antes de mais nada, um avatar. Trata-se de uma empresa bilionária que busca a totalidade das cifras sem poder decifrá-las. Mas, nessa busca, produz uma demanda de saber insaciável, e assim recolhe globalmente as demandas de cada um que utiliza seus mecanismos de busca para seu próprios ganhos econômicos.

O GAFAM, acrônimo que representa as gigantes da tecnologia digital (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), povoou o mundo virtual e, com isso, nossas vidas, por meio de seus múltiplos avatares que, diferentemente das mamas de Tirésias, da ordem do semblante, são criações imaginárias que nos remetem ao simulacro. O sacrifício para encontrar o desejo do Outro reduz todos a objetos de consumo. A obscuridade do Outro assumiu novas formas nas redes sociais. Não se trata de uma captura amorosa, mas de uma captura monstruosa. Do amor ao sacrifício, a psicanálise se vê diante de um circuito aditivo, no qual o semblante é substituído pelo simulacro.

Partimos da materialidade das palavras com o Google e hoje chegamos também à materialidade das imagens, estáticas ou em vídeos, provocadas pela disseminação meteórica das redes sociais. A dimensão do sacrifício se explicita quando nos deparamos com os relatos de mortes em decorrência da busca da selfie mais original ou exótica. Desalojadas da vergonha, as imagens proliferam e se multiplicam em dimensões planetárias na busca pelo encontro do like, simulacro do desejo do Outro. Se nos atentarmos para a própria estrutura da selfie, perceberemos que é uma imagem que tem como função sua simples exibição. São imagens que, de forma circular, se fecham sobre si mesmas. Não precisam do Outro nem mesmo para sua produção. São imagens que, por sua padronização, não representam aquele que saca as fotos; elas se fazem descoladas do corpo. Distribuídas a partir de uma tensão exibicionista, acabam por serem esquecidas. No novo mundo virtual, os falasseres sacrificam sua própria representação, sua diferença, abrindo mão de sua singularidade através das oferendas que prometem encontrar esse desejo obscuro. Os simulacros assim produzidos se oferecem ao esquecimento. O mundo virtual e as redes sociais, mais além do Google, transformaram-se em portais de busca em que se busca sempre a mesma coisa — mesma coisa que não há como encontrar.

A pandemia

Esta realidade aumenta a importância de esclarecer, no último ensino de Lacan, esse desvio em direção a uma dimensão material da palavra. Tal desvio aparentemente deslocaria a psicanálise do encontro com o real da contingência. Essa aparência se desfaz na medida em que o que está em jogo nesse “mesmo”, designado por Lacan como lalangue, incide sobre Um corpo. Essa incidência produz ressonâncias, acontecimentos contingentes de corpo.

A experiência religiosa, com seus dogmas e sacramentos, exalta, por intermédio da crença, um único caminho para o tratamento desses acontecimentos de corpo. Convoca todos os seus seguidores ao esquecimento. Como vimos, a ciência, em seu lugar de indiferença, sempre se ocupou da materialidade da experiência. Indiferente ao gozo, foraclui o sujeito, que cai no esquecimento. No mundo virtual, presenciamos a oferta infinitizada ao desvario do gozo de forma aditiva. Neste mundo de avatares e realidade ampliada, reina também o esquecimento. A experiência singular do falasser, a afetação de seu corpo não interessa à voracidade capitalista de GAFAM. Vivemos a chamada cultura do cancelamento.

A pandemia do coronavírus afetou diretamente a experiência de corpo de cada indivíduo em nosso mundo. Sua disseminação globalizada afetou o adormecimento provocado pela cultura do cancelamento. A ameaça de morte trazida pelo vírus levantou o véu do esquecimento produzindo, num primeiro momento, angústia e perplexidade. O infamiliar do encontro com o vírus trouxe o furo novamente à cena. O não saber como experiência dominante a partir da eclosão da pandemia, seguido das diversas medidas de contenção social para evitar a propagação do vírus, num primeiro momento, desalojou o saber indiferente da ciência e convocou cada falasser a ter que se haver com o fazer com seu corpo. Presenciamos, com esse anúncio da morte, a proliferação das lives, um significante bem apropriado ao momento, um esforço momentâneo diante do despertar do próprio esquecimento.

Foi diante dessa realidade que nós psicanalistas passamos a realizar atendimentos via remota, on-line. Trata-se de um momento preciso, uma janela de oportunidade para a presença do analista diante do desamparo provocado pelo retorno dos corpos àqueles que “viviam” ultimamente de seus avatares. Foi um momento, um lapso de tempo no qual a angústia precipitou a busca de sentido. Com o avanço dos recursos científicos para lidarmos com o vírus e do negacionismo místico político religioso, vemos um esvaziamento dessa solução: as lives também começam a cair no esquecimento.

A aposta da psicanálise

Ainda no seminário XI, Lacan esclarece a dissimetria entre Freud e Descartes. Ela não se dá pelo fato de que haveria uma certeza fundada no sujeito. A diferença é que, no que diz respeito ao inconsciente, diz Lacan, o sujeito está em casa.

Na elaboração de Descartes, é preciso um Deus não enganador para que esse encontro com o real possa se assegurar da verdade. A verdade colocada assim, nas mãos do Outro, abriu o campo para o avanço da ciência e suas fórmulas.

O que Descartes não sabia, afirma Lacan, e que nós sabemos, é que o inconsciente pensa antes de entrar na certeza.

O que se trata para os psicanalistas não diz respeito a um Outro enganador, mas a um Outro enganado. Lacan distingue o sujeito da certeza, fundamental ao pensamento cartesiano, daquilo que, naquele momento, ele situava como procura da verdade. Descartes apreende seu “eu penso” a partir da enunciação do “eu duvido”. Não de seu enunciado, que carrega tudo desse saber a pôr em dúvida. Já Freud, segundo Lacan, dá um passo a mais quando integra, ao texto do sonho, o “colofão da dúvida”. Em Freud, a dúvida faz parte do texto. Isso faz com que Freud nos mostre, coloque sua certeza apenas na existência da cadeia significante, ressalta Lacan.

Ele retorna a essa questão ao falar dos deuses obscuros e da grande dificuldade de se recusar ao sacrifício. Afirma que, diante do sacrifício eterno, ninguém pode resistir, a não ser que se sustente em uma fé muito difícil. Diz que, nesse campo da fé, somente Spinoza teria conseguido formular de uma maneira plausível do que se trata. Para ele, Spinoza, acusado de panteísta, na verdade defendia que a universalidade de Deus somente poderia ser pensável através da função significante. Só assim se alcançaria um distanciamento sereno.

Como vimos, a psicanálise opera no esquecimento, no furo, a partir de como ele aparece nas enunciações do sujeito. Convocar a fala favorece o surgimento dos tropeços, dos equívocos, das ressonâncias e, consequentemente, da significação singular para cada  falasser, desse efeito absolutamente singular de lalangue sobre o corpo, reverberações da pulsão que não se deixam capturar e que insistem em não se fazerem esquecer.

Sustentar nossa prática neste mundo que advém exigirá a audácia da invenção. O mundo virtual veio para ficar. É inquestionável que nossos atendimentos on-line produzem efeitos, mas é inquestionável também que essa nova realidade interroga nossos dispositivos. Como faremos neste futuro que se avizinha é uma pergunta já presente e que temos tido a chance de exercitar durante a pandemia. Abrir espaço para que o falasser possa se haver com um pouco de sentido em sua existência, suportar a contingência num mundo onde reina a obscuridade totalitária do saber, fazer valer o semblante onde domina o simulacro são questões com as quais estaremos envolvidos nos próximos anos, mais intensamente do que já estamos. Enfim, creio que nossos problemas apenas começaram. Mas é animador saber, por exemplo, que o Pix, dispositivo bancário recém criado no Brasil, que tem como intenção a unificação digital de todas as trocas financeiras no país, já vem sendo utilizado como meio de flerte por seus usuários. É bom comprovar que, de fato, a pulsão insiste em não se deixar esquecer.


Referências
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MILLER, J-A. “O triângulo dos saberes”. In: Opção Lacaniana Online. Ano 8, nº 24. Nov. 2017. Disponível em <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_24/O_triangulo_dos_saberes.pdf> Acesso em: Janeiro de 2021.
ZALOSZYC, A. Le Sacrifice au Dieu ObscurNice: Z’éditions. 1994.
MILLER, J-A. Perspectivas do seminário 23 de LacanRio de Janeiro: Zahar. 2010.

[1] Era como Lacan se referia na época.
[2] O que se mostra presente na própria discussão em torno da denominação Holocausto, que carrega em si a ideia do sacrifício, em contraposição com a denominação Shoáh, que traz consigo a noção de extermínio. Não podemos deixar também de assinalar a importância de não se deixar esquecer como uma palavra de ordem repetida insistentemente quando se trata das lembranças do nazismo e da Shoáh.



EDITORIAL – ALMANAQUE Nº26

Tereza Facury

 

Imagem: Jayme Reis

 

 

Bem-vindos à 26ª edição da revista Almanaque Online, do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.

Esta edição foi preparada em meio a um cenário mundial de devastação, causada pela pandemia da covid-19, seja do ponto de vista econômico, seja do social, o que afetou sobremaneira os laços sociais das mais variadas formas. As relações entre as pessoas passaram a ser norteadas pelo significante “cuidado” no tocante aos seus corpos, uma vez que o outro se tornou um potencial e arriscado hospedeiro do vírus.

Diante de tal contexto, a saída apresentada foi a realização de atendimentos on-line utilizando os dispositivos que nos são ofertados pela tecnologia. As expressões “atendimento presencial” e “atendimento a distância” se incorporaram ao nosso cotidiano.

Desse modo, variados dispositivos tecnológicos hoje oferecidos tornaram-se cada vez mais importantes e, até mesmo, imprescindíveis em determinados momentos para garantir a continuidade do nosso trabalho.

Frente a tal situação, fomos instigados a pensar sobre essa importante mudança em nossa prática, e o resultado aqui se apresenta nos artigos de colegas que nos trazem seus questionamentos e reflexões — alguns amparados em vinhetas clínicas —, aos quais muito agradecemos pela generosidade e pelo que podem nos orientar em um tempo no qual resta ainda tanta coisa por compreender.

Na rubrica Trilhamentos, Henri Kaufmanner, em seu texto “Psicanálise e esquecimento”, propõe pensar os desafios que a psicanálise nos impõe nestes tempos estranhos. Seu ponto de partida é a pergunta, lançada por Lacan ao final do seminário XI, sobre uma possível impostura da psicanálise e seus desdobramentos, tal como a  leitura lacaniana  que distingue a religião, a ciência e a psicanálise sob a perspectiva da ideia de esquecimento e as consequências do avanço do discurso da ciência sobre essa distinção.

O texto “Analista essencial”, de Irene Accarini, destaca a importância da voz nos atendimentos on-line, uma voz substancial, cheia de substância gozante, que, mesmo à distância, encontra seu lugar. Dando continuidade a alguns trabalhos já existentes, sua reflexão se detém no vínculo particular que existe entre a voz e a presença do analista com o inconsciente na experiência analítica.

Em “A presença real e a fugacidade do corpo”, Catherine Lacaze-Paule aborda o confinamento dos corpos imposto pela pandemia e seus efeitos nos atendimentos virtuais nos quais eles se encontram ausentes. Sua reflexão levou-a a discorrer sobre a “presença real do analista”, um tema crucial para a teoria lacaniana.

“Transferência e presença do analista” é o título do artigo que nos indica os eixos que Frank Rollier tematiza em seu texto de forma clara e precisa para abordar o uso dos dispositivos eletrônicos pela psicanálise como um recurso em tempos de pandemia. Uma pergunta orienta o seu trabalho articulada aos modos distintos pelos quais se orientam as práticas psicoterápicas e a psicanálise ao se valerem do atendimento remoto.

Em Encontros temos dois textos que tratam do atendimento on-line com crianças. Prerna Kapur, em seu texto “Não é uma brincadeira de criança”, aborda os impactos do confinamento sobre seu trabalho clínico a partir de uma vinheta na qual relata seu “estranho encontro” com o lugar que lhe foi dado por uma criança durante uma sessão por meio de videochamada.

A psicanalista Renata Teixeira escreve sobre como seu trabalho com crianças foi afetado neste tempo de pandemia, levando-a a recorrer, de forma inédita para ela, ao mundo digital, principalmente aos jogos, como uma ferramenta possível para a continuidade do tratamento.

Gustavo Dessal nos traz, em Entrevista, suas percepções e elaborações sobre o que tem extraído de sua experiência e de suas pesquisas sobre o uso dos dispositivos on-line nos atendimentos. Entende ser este um momento de grande desafio para a psicanálise por estarmos diante de uma inflexão no modo de acolhermos as demandas de tratamento no que se refere ao chamado setting de atendimento.

Em Incursões, Suzana Faleiro e Lilany Pacheco nos apresentam os pontos abordados na XXIV Conversação Clínica do IPSM-MG, em novembro de 2020, discutindo o uso dos dispositivos virtuais para sustentar a prática analítica com crianças e adolescentes durante a quarentena. A direção do tratamento, o manejo da transferência e o desejo e a presença do analista são os aspectos privilegiados nessa discussão.

Na rubrica De uma nova Geração, Nayara Paulina Rosa discorre, em “Racismo, corpo e trauma na clínica psicanalítica”, sobre a incidência dos efeitos psíquicos do racismo contra pessoas negras no âmbito da identificação imaginária valendo-se da teoria do estágio do espelho.

Derick Teixeira introduz o tema a ser explorado pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental neste semestre e, por meio de uma leitura cuidadosa, nos conduz a percorrer alguns pontos de mudança na teoria lacaniana decorrentes de uma promoção do corpo e da escrita no interior da clínica psicanalítica, tornando possível elucidar os efeitos de uma interpretação que não se pauta apenas no sentido, mas também no furo, no vazio semântico, no efeito de sentido real.

Queremos, por fim, agradecer a todos que colaboraram com esta nova edição, autores, equipe editorial e, em especial, ao artista plástico Jayme Reis, que, generosamente, permitiu que nos valêssemos de suas belas imagens para enriquecer nossas páginas. Jayme Reis é mineiro de Itabira, artista plástico autodidata premiado em diversos salões no Brasil e no exterior, que também possui obras em coleções de várias galerias de dentro e fora do país.