EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 27

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ALMANAQUE ENTREVISTA JACYNTHO LINS BRANDÃO

 


Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, Jacyntho Lins Brandão lecionou língua e literatura grega de 1977 a 2018, foi diretor da Faculdade de Letras por duas vezes e vice-reitor da Universidade. Foi também professor visitante na Universidade de Aveiro, em Portugal, na Universidad Nacional del Sur, na Argentina e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. Atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Ouro Preto e membro da Academia Mineira de Letras.

Almanaque: Para todos nós que amamos textos, letras, escritos, seu trabalho é uma referência. De certa maneira, nós psicanalistas também trabalhamos com textos antigos, de certa forma bastante arcaicos: precisamos ler — ou mesmo decifrar —, no texto que escutamos do que nossos analisantes nos dizem, camadas de texto recobertas por outras camadas. Precisamos interpretar. Mas que diabos é isso? No Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, temos estudado o tema da interpretação ou as diferentes modalidades de intepretação: entre o sentido (ou uma determinada concepção de sentido) e o fora-de-sentido (idem). Assim, para começo de conversa e de maneira bem geral, dizendo a primeira coisa que lhe ocorrer, o que os textos antigos nos ensinam sobre a ciência e a arte da interpretação? E o que as poéticas e as retóricas antigas nos ensinam hoje sobre o vasto domínio da interpretação? 

JACYNTHO BRANDÃO: O que me ocorre logo, a partir de sua provocação, é que o que os textos antigos nos ensinam sobre a “ciência e arte da interpretação” é a dificuldade. Pelo simples fato de serem antigos, mas de um modo mais agudo ainda quando se trata de nossos antigos, como são os gregos. Sempre lembro para meus alunos que, tendo-nos acostumado já com a ideia de alteridade, costumamos pensá-la só numa dimensão espacial, sincrônica, esquecendo-nos de que os antigos são também nossos outros. Se o outro sempre representa uma dificuldade, o outro que é nosso impõe dificuldades maiores.

Vou dar um exemplo prático: quando estive como professor visitante em Portugal (na Universidade de Aveiro), a primeira coisa que perguntei a um colega, logo que cheguei, foi como é que o professor se dirigia aos alunos, com qual pronome, uma dúvida que eu não teria caso estivesse num país de língua estrangeira. Fiquei logo sabendo que o tratamento normal era “você”, mas não por algum tipo de igualitarismo, como no Brasil, mas porque essa é a forma de alguém mais importante dirigir-se a alguém menos importante, o que significa que um aluno jamais diria “você” a um professor — aliás, o torneio para eles é “o professor-doutor”. Entre o reles você e as formas de tratamento solenes, há outras gradações: se formos colegas, mas não tão íntimos para usar “tu”, um modo intermediário é usar o nome daquele com quem se fala — como numa vez em que cheguei a Coimbra e minha colega de lá perguntou-me: “o Jacyntho fez boa viagem”?. Então, é a mesma língua, mas não inteiramente própria, algo como minha língua outra. Manusear essa língua sem impropriedade ou ridículo acaba sendo mais difícil do que falar uma língua estrangeira, que sempre se fala como outro, tanto que minha solução foi dizer a meus alunos, no primeiro dia de aula, “vou falar brasileiro”, o que, reconheço, era um modo de me resguardar de minha falência em falar “português” assumindo minha alteridade mesmo no espaço de minha língua materna, restando então perguntar sobre o que seria “materno” no âmbito da língua (de um modo meramente lúdico, me ocorre que talvez o “português” seja meu idioma paterno, ao “brasileiro” cabendo a parte materna, a relação entre os dois sendo como disse Caetano Veloso: “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões” etc.).

Acho que são esses afastamentos que as diferenças entre outro e outro provocam que geram as dificuldades que geram a necessidade ou o desejo de interpretação. Eu não quero dizer diferença entre eu e o outro, porque, dependendo das ideologias, um dos dois seria tomado como referência, mas sublinhar esse “outro e outro” que deixa as coisas um tanto mais complicadas — “outro e outro” sendo como se diz em grego o que nós dizemos em português “um e outro”: állos kaì állos ou, como mais ênfase na diferença, héteros kaì héteros. Acho que não seria absurdo pensar que todo texto é uma alologia, enquanto é do outro, ou uma heterologia, porque do diferente. E por isso que todo texto é sempre difícil.

Chegando à última parte de sua pergunta: eu gosto do esforço de discernimento sobre os modos de ler um texto feito por Tzvetan Todorov no capítulo “Ler”, do livro Poética da prosa. Na ordem em que ele os apresenta (vou deixar de lado o último), o primeiro modo é constituído pela “leitura regressiva”, que se interessa pelo que há antes do texto, o autor, sua época etc., acreditando que nisso estaria uma chave para a compreensão. O segundo modo é o “comentário”, que se volta inteiramente para os elementos do próprio texto, com escrúpulo de introduzir nele algo estranho, até o limite das leituras parafrásticas. O terceiro modo é a “leitura poética”, que busca a compreensão do texto tendo em vista as categorias a que ele pertence, como os gêneros e modos, tecendo, portanto, uma leitura entre texto e teoria. O quarto modo é a “interpretação”, que produz um outro texto como resultado do encontro entre texto e leitor (ou ouvinte, pois uso “leitor” no sentido de recebedor, “texto” abrangendo tanto textos orais quanto escritos). Mesmo que Todorov chame de interpretação apenas um dos modos que apresenta, eu acredito que todos devem ser mobilizados na interpretação em sentido amplo, ou seja, estou querendo dizer que ler é sempre interpretar, porque ler implica sempre a relação texto-leitor que produz um novo texto. Os outros níveis, contudo, são importantes para controlar essa produção, que não pode se entregar ao aleatório, gerando interpretações equivocadas.

Maria Luiza Ramos contava um caso curioso a propósito do poema de Manuel Bandeira que começa assim “Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável)/ talvez eu tenha medo. / Talvez sorria, ou diga: / – Alô iniludível!”, dando o poema em aula e pedindo que os alunos interpretassem, um deles afirmou que a “Indesejada das gentes” era a sogra! É claro que, tendo em vista o poema, se trata de uma interpretação equivocada, que leva de “morte” a “sogra”, embora essa própria interpretação possa ser interpretada justamente no que tem de desviante — e estaria perfeita, por exemplo, num contexto cômico ou satírico, mas, na situação em que se deu a professora que ensina como interpretar, auxiliada pela teoria, apontaria um desvio de gênero, porque não se trata de comédia, etc.

Nós poderíamos pensar que o que pretendem as poéticas e retóricas antigas é tentar entender a produção do texto não propriamente para codificá-la, mas para exercer algum tipo de controle sobre sua recepção. Nesse sentido, a definição de tragédia por Aristóteles é modelar: depois de falar sobre com que ela se realiza (com palavras, música e espetáculo), o que encena (histórias elevadas) e como (através de atores), a definição atinge o ponto mais importante ao declarar que o efeito da tragédia, pela produção de medo e piedade, é a purificação (catarse) dessas emoções. Não basta, portanto, identificar os elementos próprios do gênero, seu efeito sendo o que faz com que seja isso ou aquilo. Esse modelo de definição poderia ser aplicado a outros gêneros — e o ponto de chegada, interessante para exercícios de elucubração de nossa parte, seria relativo aos efeitos: qual o da comédia? qual o da épica? qual o do romance? qual o das novelas da Globo? qual o das séries de detetive da Netflix? A codificação de que a tragédia deve produzir a catarse de medo e piedade tem um efeito explicativo, sem dúvida, mas também um efeito prescritivo em termos da recepção ao afirmar que o efeito da tragédia não pode ser o riso, ou a catarse de emoções através do riso, talvez porque medo e piedade implicam empatia, enquanto, para rir, é preciso distanciamento. São os efeitos descontrolados que atormentavam Platão a ponto de, mesmo admitindo que os poemas são belos e os poetas homens admiráveis, em especial Homero, não admitir sua presença na sua República.

A retórica também se elabora da perspectiva da produção-recepção, com um agravante com relação à poética: ainda conforme Aristóteles, nas suas duas modalidades políticas, a retórica da assembleia e a do tribunal, o efeito visado é o voto, decidido pelos membros da assembleia ou do júri a partir dos discursos que ouvem, ou seja, da interpretação do que lhes parece mais verossímil. Esse é um exercício de interpretação bastante radical, em vista do pouco tempo para firmá-la e de seu caráter irrevogável, ainda conforme Aristóteles, sendo por isso que ele afirma que os juízes erram muito (na Atenas democrática, os juízes eram os membros do júri, não havendo juiz profissional).

Então, modalizando esse conceito de “erro” de interpretação a que estamos sujeitos o tempo todo, é bom lembrar que errar é vagar e que erro é também errância, essa errância parecendo ser algo inerente aos discursos, na distância entre quem fala e quem ouve ou entre quem escreve e quem lê. É por errar sobre as novelas de cavalaria que D. Quixote se torna cavaleiro errante: e que erro genial! Todo leitor/recebedor é um tanto errante, talvez porque todo texto induza a isso. Por isso toda interpretação é difícil. Talvez isso decorra de uma pretensão de controlar os erros.

A.: Em seu percurso, você foi da Grécia à Mesopotâmia. O que esses deslocamentos, cada vez mais ao leste, cada vez mais para fora da Europa, nos ensinam?

J.L.B. Acho que essa pergunta me permite emendar a resposta com o que eu dizia antes sobre a errância. Eu já falei de quando estudei hebraico (e fui colega de seu pai). Meu interesse era muito linguístico — ter contato com uma língua que não fosse indo-europeia, o curso sendo de hebraico moderno — mas havia também um interesse cultural, que era menos chegar na Bíblia hebraica e mais nos comentários rabínicos, que praticam uma forma de texto diferente, em que a errância funciona como um elemento estruturante. Vou dar um exemplo tomado do tratado Bereshit Rabah: sobre a árvore do paraíso, a partir da pergunta “qual foi essa árvore da qual Adão e Eva comeram?”, segue a sucessão de pareceres: Rabi Meir disse: era trigo…; Rabi Samuel ben Isaac compareceu diante de Rabi Zeira e perguntou: é possível que ela seja trigo?… pois está escrito ‘árvore’; Rabi Zeira explicou: plantas de trigo cresciam algo como cedros do Líbano…; Rabi Judah ben Ilai disse: eram uvas…; Rabi Aba de Acco disse: era cidra…; Rabi José disse: eram figos…; mas de qual espécie de figueira? Rabi Abin disse: era a berath sheva…; Rabi Josua de Siknin disse em nome de Rabi Levi: era a berath ali…; Rabi Azariah e Rabi Judah ben Simon disseram, em nome de Rabi Joshua ben Levi: Deus nos livre, o Único-Santo-Abençoado-Seja-Ele não expôs ao homem a natureza dessa árvore e não a exporá no futuro. E assim termina a passagem. Para cada uma das interpretações há uma explicação (que deixei de lado), todas usando o método hermenêutico de confrontar o texto com o próprio texto, isto é, explicar uma passagem com outra da própria Bíblia. Mas o que quero ilustrar é como o acúmulo de opiniões configura uma sintaxe errante, nesse caso chegando ao gran finale de que Deus não revelou a natureza da árvore nem a revelará no futuro, o que faz parecer que toda elucubração anterior era vã, mas a prova de que não era está em que se conserva como um conjunto de interpretações tão valiosas quanto a última.

Eu diria que meu caminho para o Oriente, que é uma errância, foi preparado pelos gregos, que, da Antiguidade até hoje, sempre foram e são muito orientais, as descobertas dos textos cuneiformes do Oriente Médio escancarando isso e derrubando aquela ideia do “milagre grego” brotado do nada. O que me atrai na história das culturas são a contaminações, os processos de troca mútua e seus resultados, então, para mim, é muito mais atraente uma visão dos gregos não como uma espécie de princípio inaugural (e puro) de algo (o Ocidente), mas como parte de todo tipo de contatos e confluções no espaço do Mediterrâneo oriental. Mais interessante isso se torna porque, ainda que redescobertas no século 20, os próprios gregos nunca se furtaram a referir suas relações com o Oriente: conforme Heródoto, foram os fenícios que inventaram o alfabeto, Tales aprendeu geometria no Egito, onde também Pitágoras foi iniciado nos mistérios etc. — ao que se pode acrescentar que, segundo Luciano, o próprio Homero não seria grego, mas babilônio, não se chamando Homero, mas Tigranes, e tendo recebido aquele nome só depois de ter sido tomado como refém pelos gregos, pois em grego ‘refém’ se diz hómeros. Mesmo que essa explicação, dada pelo próprio Homero, esteja num texto ficcional (mais exatamente um texto de autoficção), não deixa de ser sugestiva enquanto faz do fundamento da Grécia (de seu educador, como afirmava Platão) nada menos que um bárbaro e, mais ainda, conhecido não por seu nome próprio, mas por um apelido que, na verdade, era só um nome comum. Veja-se quanta errância!

O trato mais íntimo com a literatura babilônica só iniciei há pouco tempo, faz uns dez anos, implicando estudar a língua acádia, que é da mesma família que o hebraico (e o aramaico e o árabe), para traduzir o poema de Gilgámesh, fazer traduções sendo também um investimento a que eu tinha me dedicado pouco até então. Fazer essa tradução foi uma experiência de alteridade muito intensa, pois eu não queria domesticar a diferença que um texto assim apresenta, enquanto antigo e enquanto “oriental”. Quando o cuneiforme foi decifrado e se começou a conhecer a produção em acádio, a tendência foi classificar os textos em categorias reconhecidas na nossa experiência. Assim, Gilgámesh foi identificado com Nemrod, personagem referido do Gênesis bíblico, e o poema sobre ele foi classificado como epopeia, que é um gênero grego. Gregos e hebreus serviram de critério para a recepção dessa literatura muito mais antiga que ambos, nesse processo de classificação por retrospectiva, que constitui ao fim e ao cabo uma tentativa de controle da recepção. O poema intitulado Enuma elish, para falar de um outro exemplo, recebeu o título de Relato caldeu de Gênesis, que já de início o relaciona com o livro bíblico, embora seja, em sua maior parte, uma teogonia, mais próxima de Hesíodo que da Bíblia.

Não quero dizer que essas aproximações não sejam legítimas e se façam até naturalmente, só desejo sublinhar que uma recepção que se pretende mais cuidada deve ter consciência delas ao aproximar-se do diferente, para não reduzir tudo à mesmice do mesmo. Como a tradução implica fazer justamente a passagem de uma língua outra à língua própria, a cada passo impõe a questão de como não domesticar inteiramente o outro. Vou dar um exemplo: há no poema de Gilgámesh uma expressão difícil de verter, ana dūr dār, porque dūru significa ‘para sempre’ e dāru ‘eternidade’, havendo aí um jogo iterativo, algo como ‘pela eternidade de para sempre’, sublinhado também pela aliteração sonora (ana é a preposição). A solução dos tradutores vai de “for all eternity” (Andrew George), que dá conta do sentido, mas perde o estilo, a “por los siglos de los siglos” (Joaquín Sanmartín), que preserva o estilo, mas lança mão de um lugar comum excessivamente marcado (a alguém que diz ‘pelos séculos dos séculos’ só falta acrescentar ‘amém’!). Demorei um tanto a achar minha solução, que no final me agradou bastante em sua simplicidade: “de era em era”, tanto porque mantém o estilo quanto porque usa termos neutros e respeita uma concepção diferente de organização do tempo, uma organização por eras, como usavam os babilônios, as principais sendo a era antediluviana e a pós-diluviana.

Eu gostaria de que o acesso a essa produção médio-oriental, sobre a qual o fato de ser mais antiga que a de hebreus e gregos lança naturalmente um ar de respeitabilidade, representasse uma experiência forte para o leitor, experiência de contato com a diferença provocando mudanças de percepção do mundo. Basta lembrar que essa produção admirável esteve por séculos enterrada nos desertos do Iraque, que é lá que ela foi escrita, naquele lugar que o Ocidente olha com desprezo. Há um poeta iraquiano contemporâneo, Khalid Al-Maaly, que põe em xeque essa mentalidade ao intitular seu livro Eu sou da terra de Gilgámesh (o livro foi traduzido do árabe para o português por Mamede Jarouche). Isso é importante para evitar que se idealize esse Oriente descolando-o de onde ele se encontra e continua, como em geral aquela Grécia fundadora do Ocidente terminou por ser algo fortemente idealizado, saqueado dos próprios gregos, como se eles não se encontrassem e continuassem lá.

A.: Recentemente, em 2018, você escreveu um belíssimo artigo sobre uma citação e um lugar comum de Lacan (agalma e sicut palea). Mas tenho aqui, diante de mim, um livro que você organizou em 1984, intitulado O enigma em Édipo Rei, que foi o tema do I Congresso Nacional de Estudos Clássicos. Você lembra que Édipo Rei continua sendo “inspiração e ponto de partida para a arte e a ciência” e lembra a equivalência freudiana entre o Oedipouskomplex (complexo de Édipo) e o Kernkomplex (complexo nuclear) afirmando, com Freud, que o “Édipo é o nosso cerne”. Não sem nos lembrar de nosso dilaceramento, da dimensão do enigma e, um pouco depois, da polifonia… Fala-se muito, desde algumas décadas, da necessidade de ir além do Édipo. Em que ponto estamos? Fomos além? Se você me permite lembrar uma expressão que aprendi em um de seus cursos, somos, realmente, “pós-antigos”? Por outro lado, que papel a psicanálise tem ou teve, se é que teve, no seu percurso?

J.L.B.: Essa pergunta tem tantos aspectos que nem sei se consigo respondê-la. Então vou tomar o que me parece o fio que os amarra, que é essa perspectiva da temporalidade e da transmissão da cultura. Acho que isso está inscrito tanto no uso de “ágalma” e “sicut palea”, por Lacan, quanto no uso de Édipo por Freud, algo que se retoma e se ressignifica, a cultura sendo esse procedimento constante de ressignificação. Enquanto está viva isso acontece, de modo que cada etapa tem seu pré e seu pós. Nesse sentido, torcendo um pouco sua pergunta, poderíamos dizer que a psicanálise é muito pós-antiga. Estou querendo dizer com isso que é claro que a descoberta do inconsciente é um salto espetacular, que muda nossa percepção de mundo, mas também que ela resulta de uma acumulação de experiências e conhecimentos, que é o antigo desse pós.

Eu conheço pouco de psicanálise, embora ser professor de grego me tenha permitido conviver com psicanalistas, e eu gosto especialmente de tratar de assuntos encomendados, pois sempre comportam um desafio, mas sempre tive o cuidado de ficar na esfera de minha competência. Nisso, aprendi como é diferente falar das coisas em lugares diferentes, pois os diálogos que isso gera são diferenciados. É claro que há textos de Freud que são obrigatórios para um helenista, como o primeiro, sobre a interpretação de sonhos, em que Édipo aparece, de par com Hamlet. Gosto muito de “O tema dos três escrínios”, da análise da Gradiva de Jensen, para lembrar de alguns textos. Mas não me aventuro nos trabalhos mais especializados, interessando-me mais pelo “Freud pensador da cultura”, como no título do livro do Renato Mezan.

A.: Finalmente, o que Jacyntho leitor (filólogo, helenista, paleógrafo) ensinou a Jacyntho escritor (ficcional) sobre a verdade e a ficção? 

J.L.B.: Essa é uma questão de longa duração que nos vem dos gregos. As Musas, que são deusas e que, segundo uma concepção ingênua, deviam falar sempre a verdade, começam o poema que ensinaram a Hesíodo sobre a origem dos deuses (a Teogonia) com a afirmativa de que “sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autênticas/ e sabemos, quando queremos, proferir verdades”. Esse é um ponto de partida perturbador: deusas que sabem mentir e só em alguns momentos dizem verdades — mas os deuses gregos sabem fazer isso. Acho que isso mostra como a verdade sempre se apresentou, entre os gregos, como problema, o único indício a respeito dela sendo a verossimilhança, que é o que as Musas dizem que fazem normalmente, porque não está na esfera delas a simples mentira, mas essa mentira semelhante a coisas autênticas (pseúdea etymoisin homoîa). É por isso que é preciso sempre testar os discursos, porque não se conta com algo externo — um deus ou um rei — que avalize a verdade do discurso. Na filosofia, na história, na retórica esse foi um motor constante: testar o lógos para problematizar as verdades aparentes, muitas vezes jogando lógos contra lógos, como na assembleia e no tribunal.

Esses discursos sobre discursos (filosofia, história, retórica) têm como horizonte a poesia, que era o que havia antes de todos, distinguindo-se dela porque postulam certos modos de verdade. Luciano de Samósata, que é o autor que foi assunto de meu doutorado, tem uma perspectiva interessante. Segundo ele, antes de tudo, um escritor (se quisermos, um intelectual) deve ser amigo da verdade, autônomo, sem pátria, sem rei, pois de outro modo não gozaria de liberdade intelectual; mas quem goza de “liberdade pura” é só poeta, pois a liberdade do historiador tem seu limite nos acontecimentos que ele narra, a liberdade do retórico tem seu limite nas situações em que ele profere seus discursos, e a liberdade do filósofo tem seu limite na concordância do que ele diz e do que ele faz. Então, só poetas, pintores e sonhos gozam de liberdade pura, essa expressão remetendo ao vinho que os bárbaros tomavam puro, mas os gregos costumavam tomar misturado (ou temperado) com água. Filósofos, historiadores e rétores tem, portanto, uma liberdade temperada; poetas, como pintores e sonhos, a pura liberdade, a qual, por ser pura, faz supor que seu discurso seja mais inebriante que os outros.

O ficcionista faz isso. Convida o leitor (ou ouvinte) para mergulhar num lógos que ele conduz baseado no que chamamos de verossímil, mas os gregos chamavam de eikós, semelhante, adequado, conveniente — o que faz com que a “verossimilhança” (para usar o nosso termo) dependa não exatamente de um verdadeiro a que ela se assemelhe mais ou menos, mas à cena discursiva com que ela convém. O princípio que orienta a ficção seria então um princípio de consequência (akolouthía). Como exemplifica Luciano, se um poeta afirma existir um homem com dez braços e dez pernas, então ele será consequente se mostrar como esse homem pode lutar com dez inimigos ao mesmo tempo, brandindo dez lanças etc. É interessante que é justamente por isso que Aristóteles afirma que a poesia é mais filosófica que a história, pois esta, a história, se ocupa do particular, o que aconteceu, enquanto o poesia se ocupa do que poderia acontecer, ou seja, do universal, de acordo com regras de necessidade e semelhança. Mas Luciano, em Das narrativas verdadeiras, diz que escreve não sobre o que aconteceu nem sobre o que poderia acontecer, mas sobre o que não poderia acontecer, ou seja, ele avança mais uma etapa enveredando pelo inverossímil. Isso depende do pacto que ele celebra explicitamente com o leitor logo de saída: o confessar que tudo o que dirá é mentira, só numa coisa sendo verdadeiro, ao confessar que mente.

Para não me alongar mais, explorar as formas de ficção talvez nos ensine mais sobre o verdadeiro que muitos tratados, considerando que, conforme o Sócrates de Platão (portanto, uma personagem), a busca da verdade se assemelha a crianças perseguindo andorinhas: quando estão a ponto de pegá-las, elas escapam. Não quer isso dizer que não haja nada de verdadeiro, pois o mundo está aí lançado sob nossos olhos, em sua verdade crua, e somos seres no mundo que não nos fornece de antemão a razão das coisas, mas significa que alcançar essa verdade mundana é difícil, o que nos leva de volta ao tema da dificuldade. São desafios que a linguagem nos permite encarar. E, de novo com Platão, vale a pena lembrar que “as coisas belas são difíceis”. Falar de dificuldade leva a isto: a falar de beleza.

Entrevista feita por Gilson Iannini.




NÃO SEM OS CORPOS[1] 

BERNARD SEYNHAEVE
Psicanalista. Membro da ECF e da NLS (AMP) |
seynhaeve.bernard@gmail.com

Resumo: O autor sustenta o lugar determinante que Lacan dá à presença dos corpos em uma análise: o do analista e do analisante. Em seu ultimíssimo ensino, compreende-se que a interpretação segue o rastro do falasser considerando que a função do inconsciente se completa pelo corpo — não pelo corpo simbolizado nem pelo corpo imaginário, mas pelo corpo que tem em si algo de real. Portanto, para além da decifração, o que uma interpretação visa é perturbar a defesa, fazer ressoar o corpo afetado por lalangue. Para tanto, não basta se ver ou se falar; a presença física também faz parte da interpretação.

Palavras-chave: Interpretação, corpo; gozo, sinthoma, lalangue.

NOT WITHOUT BODIES

Abstract: The author sustains the determining place that Lacan gives to the presence of bodies in an analysis: that of the analyst and the analysand. In his last teaching, it is understood that interpretation follows the trail of the speaking being, considering that the function of the unconscious is completed by the body, not by the symbolized body, nor by the imaginary body, but by the body that has something real in it. Therefore, beyond deciphering, what an interpretation aims at is to disturb the defense, to make the body affected by lalangue resonate. Therefore, it is not enough to see or speak, the physical presence is also part of the interpretation.

Keywords: Interpretation, body, sinthome, jouissance, sinthome, lalangue..

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

Tento avançar com as questões que me tocam.

Gostaria de tentar precisar por que uma psicanálise lacaniana necessita, exige a presença dos corpos: o do analisante e o do analista.

Isso pode parecer evidente à primeira vista, mas não é. Dessa forma, uma questão que eu não esperava surgiu num grupo da New Lacanian School (NLS). Um colega disse: “Você verá, senhor, que um dia haverá AEs que terão feito suas análises por Skype”. Essa questão, que é política, coloca-se em nossa Escola, a NLS. Aqueles que estiveram em Tel-Aviv na Assembleia Geral de 2019 se lembram de nosso debate acerca do uso da internet (Skype) na cura.

Uma outra questão se coloca para mim na perspectiva de nosso próximo Congresso, que acontecerá em Gante, em junho de 2020[2], sobre a interpretação nos tempos do falasser, e não mais nos tempos do sujeito. Essa questão leva em consideração o ultimíssimo ensino de Lacan, que visa perturbar a defesa.

A defesa é esse “dispositivo psíquico” que Freud, desde o começo de sua obra, postula como sendo uma “defesa primária”, que bloqueia aquilo que chamou de  “ameaças de desprazer” (FREUD, 1895/1980, p. 486) e que chamamos, com Lacan, de “o real do gozo”, o impacto da língua sobre o corpo. Para o último Lacan, a interpretação visa perturbar a defesa na medida em que cuida de não desfazer o nó de lalangue e do corpo, mas de fazê-lo ressoar.

O que seria, portanto, um corpo impactado pela língua?

 

Da necessidade da presença dos corpos

Freud, no fim de sua vida, estava com esta constante: a análise é interminável. Para o ultimíssimo Lacan, uma análise pode se concluir na medida em que o falasser encontra um saber-fazer com seu sinthoma, isto é, com o impacto da língua sobre o seu corpo. Se a interpretação visa perturbar a defesa, é na medida em que tenta tocar esse real do corpo que se goza.

Mas pergunto: para tocar esse real, a presença dos corpos, do analista e do analisante, é necessária?

Salientamos, a respeito disso, duas intervenções de Jacques-Alain Miller. A primeira é retirada de sua entrevista ao jornal Libération, em 1999.

“A tecnologia desenvolve modos de presença inéditos. O contato a distância em tempo real se tornou comum ao longo do século. Quer seja por telefone, agora celular, internet, videoconferência. Isso vai continuar, multiplicar-se, será onipresente. Mas será que a presença virtual terá, afinal, um impacto fundamental sobre a sessão analítica? Não. Ver-se e falar-se, isso não faz uma sessão analítica. Na sessão dois estão ali juntos, sincronizados, mas eles não estão ali para se verem, como demonstra o uso do divã. A co-presença em carne e osso é necessária, nem que seja para fazer surgir a não-relação sexual. Se sabotamos o real, o paradoxo desaparece. Todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, tropeçarão aí” (MILLER, 1999, tradução nossa).

A segunda é extraída de sua intervenção no texto publicado “Uma fantasia”, no Congresso da AMP em Comandatuba, em 2004. “O inconsciente é corporal?” (MILLER, 2005, p. 17). O efeito de interpretação se deve ao uso das palavras ou a sua jaculação? Além do mais, é preciso colocar o tom. Aqueles que tiveram a oportunidade de relatar as interpretações de Lacan sempre as repetem com o tom de Lacan. “A poética da interpretação (…) é um materialismo da interpretação. (…) É preciso pôr o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma” (Ibid.).

 

O que é um corpo?

Visto que se trata de delimitar o que constitui a junção do corpo e da língua, o que é, portanto, um corpo? O que é um corpo falante, o corpo dos seres falantes, o falasser?

Na apresentação do tema do X Congresso da AMP, em 2014, Miller apontou que se pode, sem dúvida, apreender o corpo como imaginário: “(…) encontramos a seguinte equivalência formulada por Lacan: o imaginário é o corpo. E (…) seu ensino, em seu conjunto, testemunha a favor dessa equivalência” (MILLER, 2014). Mas ele acrescenta que Lacan, ao final de seu ensino, enuncia outra coisa: o corpo “é um mistério” (Ibid.). Ele diz isso no Seminário: livro 20: mais, ainda: “o real (…), é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente” (LACAN, 1985, p. 178).

Tentemos especificar esse mistério. J.-A. Miller nos convida para fazer uma distinção entre o que chamamos um corpo e uma massa, um saco de órgãos, ou seja, entre o corpo e a carne.

“Na distinção entre o corpo e a carne, o corpo se mostra apto para figurar, como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante. (…) O que faz mistério, mas permanece indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para dizê-lo em termos cartesianos: o mistério é sobretudo o da união da fala com o corpo. Por esse fato de experiência, pode-se dizer que ele é do registro do real” (MILLER, 2014).

O ser falante tem, portanto, um corpo e o utiliza como um instrumento para falar. O que faz mistério é a própria amarração da língua e do corpo, é que UOM (LOM) (LACAN, 1975/2003) possa fazer uso de seu corpo para falar. E isso não se explica, é um mistério, isso faz furo no saber e, consequentemente, dá relevância ao registro do real.

Por outro lado, o falasser goza desse uso. O ser falante se goza de fazer uso de seu corpo enquanto falante. Portanto, não há somente o corpo que se imagina, há também o corpo que se goza. E esse gozo, o gozo do se gozar, é autoerótico, autístico, como precisa Lacan. A percussão da língua e do corpo faz furo (trou), ele diz mais, faz troumatisme (LACAN [1973-74], aula de 19/2/1974).

A esse “corpo marcado por acontecimentos de gozo, por traumas de lalíngua, virão, em seguida, efeitos inconscientes de sentido, assimilados por Lacan a efeitos de saber” (LAURENT, 2016, p. 57), especifica Laurent. “O gozo se experimenta: ‘isso se sente’. E é após essa prova pelo gozo que se produzem os efeitos de saber próprios aos efeitos significantes sobre o corpo” (Ibid.), “é preciso, de início, ter um corpo, condição para que o gozo (…) venha se inscrever nele” (Ibid.).

No começo de seu ensino, Lacan desenvolveu as consequências de sua tese da primazia do simbólico. O sintoma era então considerado um retorno do recalcado inconsciente velando a verdade do sujeito, e a interpretação analítica consistia em tentar revelar a verdade oculta dos sintomas e do desejo inconsciente do sujeito.

Nesse contexto, Lacan revisitou os conceitos freudianos — o inconsciente, a transferência, o sintoma e também a interpretação — à luz do simbólico enfatizando a palavra, a linguagem e a letra. Essa tese de Lacan implica que existe um Outro, com O maiúsculo, que é correlativo ao conceito de fala. Isso implica também que a linguagem seja estruturada, ou seja, que “os significantes estão em relação entre si sob duas espécies, a da combinação e da substituição, o sentido aparece como um efeito dessa combinação e dessa substituição” (MILLER [1995-96], aula de 31/1/1996, tradução nossa). A interpretação, nesse caso, não é um problema. Ela se ocupa dos significantes. Ela responde à questão do Che vuoi?, Que queres?, e mesmo que seja sobre o desejo, ela continua a ser uma questão de sentido. Mas se, ao início de seu ensino, Lacan relia Freud definindo o inconsciente como sendo estruturado como uma linguagem, à medida que seu ensino progride, ele extrairá as consequências desse arranjo do corpo com a linguagem, isto é, do corpo que se goza. Portanto, as coisas mudam, observa J.-A. Miller.

Para que a amarração da linguagem e do corpo aconteça, é preciso que UOM (LOM) faça de seu corpo um instrumento de fala, UOM (LOM) fala através de seu corpo; para falar, é preciso ter um corpo do qual se servir; UOM (LOM) deve consentir em ter um corpo para que a amarração se produza. E é esse nó entre linguagem e corpo que constitui seu sinthoma. Esse nó é sólido. A principal consequência dessa tese será orientar a cura analítica em direção a esse nó, em direção ao real do gozo produzido por essa amarração para fazê-la ressoar.

Lacan muda, então, o vocabulário, como observa J.-A. Miller. Ele não utiliza mais os conceitos freudianos de inconsciente, sintoma e recalque, mas fala de falasser, sinthoma e verdade mentirosa. Passa-se da linguagem à lalangue, da palavra à aparola (apparole), ou seja, ao aparelho de gozo, do sujeito do inconsciente ao falasser.

Para ilustrar essa mudança, J.-A. Miller toma de Michel Leiris um pequeno exemplo através do qual ele inicia sua “Regra do jogo”, três pequenas páginas que narram uma experiência de criança.

“Então, Michel Leiris é uma criancinha que ainda não sabia ler nem escrever, ele brinca com seus soldadinhos. Um soldadinho cai. Ele deveria ter se quebrado, mas não se quebrou. E Leiris diz: ‘foi tamanha minha alegria que me expressei dizendo: ‘flismente’ (reusement)!’. Mas é felizmente (heuresement) que ele deveria ter dito, sua mãe disse a ele. O pequeno Michel, quando estava indo tudo bem, acreditava que se dizia ‘flismente’ (reusement). Ele então descreve minuciosamente o quanto ficou surpreso: para ele, reusement era muito mais expressivo que heureusementReusement é, sem dúvida, uma pura jaculação (…), uma jaculação de gozo que encontra seu significante adequado. Mas agora se produz (…), como diz Leiris, ‘um rasgo no véu, uma explosão de verdade’. Ele descobre que há um sentido da palavra, um sentido na língua e que ele deve dizer felizmente (heureusement), como todo mundo. Sente-se que isso é único, que ele será capaz de escrever interminavelmente sua própria ‘Regra do jogo’. A regra do jogo é, justamente, que é preciso dizer como todo mundo (que nos endereçamos ao Outro com O maiúsculo) e que, nesse momento, a palavra se encontra inserida em uma sequência de significações precisas (numa estrutura gramatical, lexical, sintática) e que aquilo que era antes, era realmente uma ‘coisa minha’ — ele diz. Esse pequeno exemplo impressionante, Leiris o desenvolve um pouco mais adiante. Há um segundo fragmento de ‘A Regra do jogo’ que começa com estas palavras: ‘Quando ainda não sabemos ler’. Ele tenta capturar o que seria a linguagem antes de começarmos a escrever e a ler. Ele se pergunta o que são as palavras quando as apreendemos apenas pela audição” (MILLER, 1995-1996, aula de 17/1/1996, tradução nossa).

 

Lalangue não é uma estrutura, ela é sem Outro, ela não obedece às regras gramaticais e sintáticas. Ela não se endereça ao Outro, ela é para si mesma “o que se sabe, consigo”, como diz Lacan em seu último escrito (LACAN, 1976/2003, p. 567). Ela não é um querer dizer ao Outro, “ela não é o sentido, mas o gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996, tradução nossa).

 

O que é uma interpretação no sentido do ultimíssimo Lacan?

No seminário O objeto da psicanálise, Lacan retoma, como observa Laurent (2020), as primeiras frases de seu primeiro seminário ([1953-54], 2009, p. 9) sobre a ação do mestre zen:

“todos sabem que o exercício Zen tem alguma relação, mesmo que não saibamos bem o que isso quer dizer, com a realização subjetiva de um vazio. (…) o vazio mental que se trata de obter e que seria obtido nesse momento singular, brusquidão que sucede à espera que se realiza às vezes por uma palavra, uma frase, uma jaculação, até mesmo uma grosseria, uma zombaria, um pé na bunda” (LACAN, 1965-66, aula de 15/12/1965).

O mestre zen coloca, portanto, seu corpo aí.

O analista também coloca seu corpo em jogo, a interpretação analítica é, ela mesma, um arranjo de lalangue e do corpo do analista. J.-A, Miller esclarece:

“Tudo está ligado ao acontecimento, um acontecimento que deve ser encarnado, que é um acontecimento de corpo — definição de sinthoma dada por Lacan. O resto, digamo-lo, é uma roupagem — uma roupagem necessária, na maioria dos casos. Mas o núcleo (da análise) (…), é esse instante, o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p. 76,  tradução nossa).

Mais adiante, com relação ao sinthoma, J.-A. Miller assinala também:

“Há um nível de defesa que é mais tortuoso, mais paradoxal (…). Do ponto de vista do singular, do ponto de vista do sinthoma, como o que há de singular em cada um, não vejo como evitar dizer — bem que eu gostaria —, não vejo como evitar ao menos passar por essa proposição a fim de aferi-la: o inconsciente (transferencial), ele mesmo, é uma defesa — sim —, o inconsciente é uma defesa contra o gozo em seu status mais profundo, que é seu status fora de sentido” (MILLER, 2009, p. 77, tradução nossa).

“A orientação para o singular”, ele continua, “não quer dizer que não decifremos o inconsciente. Ela quer dizer que essa exploração encontra necessariamente um obstáculo, que a decifração se interrompe no fora de sentido do gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).

Mas, “do lado do inconsciente”, ele avança,

“há o singular do sinthoma, onde isso não fala a ninguém (o monólogo do falasser/parlêtre, o autismo do sintoma). Razão pela qual Lacan o qualifica de acontecimento de corpo. Não se trata de um acontecimento de pensamento (…). É um acontecimento de corpo substancial, aquele que tem consistência de gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).

E, uma coisa importante a se lembrar, é que a interpretação que produz sentido, saber sobre o sintoma, não se relaciona com o acontecimento de corpo, com o sinthoma.

J.-A Miller assinala, então, o lugar determinante que Lacan dá à presença e, mais especificamente, ao corpo do analista no segundo tempo da análise:

“o ponto de vista do sinthoma consiste em pensar o inconsciente a partir do gozo. Pois bem, isso tem consequências para a prática, especialmente para a prática da interpretação. A interpretação não é apenas a decifração de um saber, é fazer ver, é elucidar a natureza de defesa do inconsciente. Sem dúvida ali onde isso fala, isso goza, mas a orientação para o sinthoma enfatiza o seguinte: isso goza ali onde isso não fala, isso goza ali onde isso não faz sentido. Como Lacan pôde convidar o analista a ocupar (anteriormente) o lugar do objeto pequeno a, em seu Seminário O Sinthoma, ele formula: O analista é um sinthoma. Ele é suportado pelo não-sentido, então perdoamos-lhe suas motivações, ele não se explicará. Preferirá, antes, dar-se ares de acontecimento de corpo, de semblante de traumatismo. E terá muito a sacrificar para fazer jus a ser, ou a ser considerado um pedaço (bout) de real” (MILLER, 2009. p. 79, tradução nossa).

J.-A. Miller nos dá aqui uma indicação precisa sobre o que seria a interpretação em uma cura orientada para o sinthoma.

Prosseguirei com dois exemplos clínicos em que a intervenção do analista toca o mais íntimo, o mais singular do ser do analisante, a saber, o sinthoma que orientou e decidiu seu destino. Recorrerei a excertos de dois testemunhos, os de Monique Kusnierek e de Bernard Porcheret, que me tocaram profundamente, me marcaram pessoalmente e que, no que concerne a essa articulação do corpo e de lalangue, são claros e precisos.

Aqui está o que Kusnierek diz:

“A sessão acabara de terminar. Ela saía do consultório de seu analista, estava no corredor, ele fazia sombra e, de repente, ela ouve atrás dela um barulho de um bicho feroz. Ela não acredita em seus ouvidos. Ela se vira para verificar com seus olhos o que havia ouvido. É quando vê seu analista que gesticula como um bicho feroz pronto para se lançar sobre sua presa. Ela fica surpresa e ri.

Que essa pantomima barulhenta fez interpretação, suas consequências o provam. A analisante entendeu, antes de tudo, que, na relação transferencial, não havia apenas uma demanda de amor e um abandono, mas também uma pulsão oral, que fazia sentir a sua presença.

Ela, então, começa a buscar como pensar isso em termos de transferência, como integrar essa pulsão, devorante, à única coisa que ela vinha fazer em análise, que era falar, isto é: colocar em jogo a relação que ela tinha com o saber, expor-se, cair sobre o que ela não sabia.

Ela encontrou, então, uma fórmula que lhe pareceu ideal e que estava no limite do que ela poderia elaborar sobre o que era, para si, o fato de falar. Foi a seguinte fórmula: ‘Se não estou à altura, então me morda!’.

Esse ‘me morda!’ era, sem dúvida, a fórmula de um imperativo pulsional. Ela entendeu, então, que essa era a motivação louca que a levava a cada semana à análise e que esse imperativo estava articulado nela à divisão gerada pelo próprio fato de falar (…).

Essa interpretação é sem palavras. Consiste apenas em um som e um gesto. Comporta um som, um barulho de bicho feroz, um ‘grr’, como uma espécie de núcleo da fala que, de repente, se faz ouvir. E, ao mesmo tempo, um gesto igualmente intempestivo se faz ver, o do bicho feroz pronto para lançar-se sobre sua presa.

A interpretação (…) (produz) uma montagem cênica que se inspira muito diretamente no pesadelo. Essa montagem é usada para trazer à cena da transferência a devoração. A devoração torna-se um semblante, uma peça com a qual se joga.

Essa interpretação do analista diz respeito ao próprio analista como parceiro do sujeito. O analista se faz surgir na cena como um bicho-papão, como o Outro convocado pela montagem pulsional do sujeito. E, de repente, essa montagem na qual se fabricou um Outro fantástico acaba se revelando ser apenas uma farsa burlesca. É o que, depois de ter a surpresa, fez essa analisante rir.

Isso a levou, posteriormente, a tirar uma série de conclusões.

O analista, ao se fazer de bicho feroz, ou seja, reduzindo o Outro da fantasia ao seu semblante, realizou, de fato, o que o terceiro sonho anunciava: a castração do grande Outro” (KUSNIEREK, 2002, p. 23-36, tradução nossa).

Eis aqui um curto trecho de testemunho de Bernard Porcheret que, em seu relato, evidencia seu fascínio pela morte, o que se inscreve em toda a sua história. Aqui está, como ele a chama, “a interpretação decisiva”:

“No caminho em direção à porta de saída, eu tiro meu casaco do cabide. Silêncio, nenhum barulho de maçaneta para ir chamar o analisante seguinte. Viro-me, o analista, contingência da interpretação, neste dia, está vestido com um terno escuro, daqueles que vestimos para momentos solenes. Na penumbra do corredor, atrás da porta da sala de espera, ele fica de frente para a parede, congelado, imitando o agente funerário. Siderado (…).

Na rua, a alguns metros de distância, leve, eu rio. Um dizer surgiu: fôlego. Algumas palavras, como se saídas de um buraco, se escrevem. Um salto aconteceu na saída do tobogã. A interpretação fez cair o significante mestre agente funerário, sob o qual eu estava esmagado. Imitando-o, em silêncio e sem olhar, o analista me separa dele. Eu era aquele olhar se olhando, aquela voz que se invocava. Quebra. Eu era aquela boca à qual eu me oferecia como alimento para domesticá-la. A pulsão enoda a sexualidade no inconsciente e a morte” (PORCHERET, 2012, p. 63, tradução nossa).

 

Para pontuar minha intervenção

Cito novamente J.-A. Miller.

“E correlativamente à noção de interpretação como perturbação, algo como o falasser (parlêtre) deve ser introduzido, uma noção da ordem do que Lacan denomina que vai mais além do inconsciente. (…) e (o) que se inscreve nesse lugar: ele o chamou de falasser, no qual a função do inconsciente se completa com o corpo, mas não pelo corpo simbolizado, o corpo imaginário, senão com o que o corpo tem de real.

Assim, a interpretação como perturbação mobiliza algo do corpo, exige ser investida pelo analista e, por exemplo, que ele forneça (…) o tom, a voz, o sotaque. Até o gesto e o olhar.

Pensando nessa interpretação como perturbação, recordava uma observação de uma passante (Kusnierek)[3] que referia, como AE, à sua cura e o que havia sido para ela o ponto de viragem.

Tal como o contava, essa interpretação não foi todo um discurso: ela estava num longo corredor escuro depois da sessão e, enquanto ia-se, viu-se levada a se virar, pois o analista lhe dirigia uma mensagem que, tal como ela a descreve, era feita de uma espécie de pantomima de devoração acompanhada de um vago rosnado, algo como um Grrr…! (…). Como se assinalava muito precisamente, isso acontece (…) fora, na saída (no corredor), já que a posição padrão não permite a operação da visão, o olhar, etc. (…) (Há aí) uma forma de colocar o corpo (…). Não se pode trazer a pulsão oral ou a pulsão anal, mas podem-se trazer, por outro lado, as pulsões especificamente lacanianas, que são a pulsão escópica e a pulsão invocante.

E a interpretação como perturbação conta especificamente com essa contribuição. Em todo caso, um dia seria necessário apreender que o que falha na noção de decifração é que, na análise, é preciso que um e o outro coloquem o corpo” (MILLER, 2011, p. 136, tradução nossa).

Para terminar, evocarei um momento do Colóquio organizado pela UFORCA em 2011, em Montpellier, acerca do Seminário, livro 23: o sinthoma.

Éric Laurent foi convidado para comentar um texto apresentado por Alfredo Zenoni, que citava uma frase de Lacan no Seminário, livro 21: os não-tolos erram, dita em 1973, dois anos antes do Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007). A frase era a seguinte: “o que você faz sabe o que você é” (LACAN, 1973-74, aula de 11/12/1973, tradução nossa). A frase completa está assim:

“Isso (a que) responde o discurso analítico é o seguinte: o que você faz, longe de ser o fato da ignorância, é sempre determinado, determinado já por alguma coisa que é saber, e que chamamos o inconsciente. O que você faz, sabe (sabe, s.a.b.e), sabe o que você é: sabe de você!”

Tal debate merece ser seguido detalhadamente:

É. Laurent: Alfredo Zenoni isolou uma frase do Seminário XXI: “O que você faz sabe o que você é”. Nesse caso, o que você faz é antes tomado na dimensão daquilo que o inconsciente o faz fazer ou daquilo que o inconsciente, como saber, faz de você.

J-A. Miller: Sim, mas há aqui uma espécie de materialismo do tipo: o que você faz, desde que você tenha um comportamento que se repete, bem, você é isso (…). Você está atrasado. Você está atrasado e, portanto, você é um retardatário. Você está o tempo todo atrasado, por causa disso ou daquilo, é um ato falho, mas no fim das contas você é um retardatário (…).

J-A. Miller: O psicanalista (ele também) é só o que faz. É isso. Ou seja, ele coloca seu corpo em jogo.

Deduzo desse debate que, uma outra forma de dizer que “o psicanalista não pode se conceber a não ser como um sinthoma”, é dizer “o psicanalista, é o/isso que ele faz”. Isso quer dizer que ele está presente com seu corpo, e sua interpretação implica sua presença física.

Uma interpretação, segundo Lacan, visa, portanto, perturbar a defesa. Visa colocar “um limite ao monólogo autista do gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996 – tradução nossa). E ela não pode ser considerada sem a presença dos corpos. Ela visa fazer ressoar no corpo algo que toque essa articulação do corpo e da língua. Ela não implica necessariamente um enunciado, nem uma enunciação (LACAN, 1974-1975, aula de 11/2/1975). Os meios utilizados para fazê-lo são diversos, mas para que ela faça acontecimento, é preciso que o analista faça semblante do sinthoma do analisante — e é difícil ver como isso seria possível por Skype. Isso remete ao modo como o mestre zen o faz.

 

Tradução: Letícia Mello
Revisão: Michelle Sena

Referências Bibliográficas:
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KUSNIEREK, M. “Une interprétation sans parole”. InQui sont vos psychanalystes?. Paris: Seuil, Champ freudien, 2002, p. 23-26.
LACAN, J. (1953-54) O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
LACAN, J. (1965-1966). Le séminaire, livre 13: l’objet de la psychanalyse. Inédito.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. (1973-74) Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Inédito.
LACAN, J. (1974-75) “Le Séminaire, livre XXII: R.S.I.”, aula de 11 de fevereiro de 1975. Ornicar?, n. 4, p. 95-96.
LACAN, J. (1975). “Joyce, o Sinthoma”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACA, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
LACAN, J. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LAURENT. É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.
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MILLER, J-A. (1995-1996) L’orientation lacanienne. La fuite du sens. Inédito.
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MILLER, J-A. “Uma fantasia”. InOpção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 42, 2005, p. 7-18.
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PORCHERET, B. “La pulsion est vorace”. InLa cause du désir, n. 83, dez. 2012, p. 60-64.

UFORCA. Journée UFORCA pour l’UPJL, Autour du Séminaire XXIII, 21 e 22 de maio de 2011. Montpellier, 2011. Inédito.
[1] Texto originalmente publicado na revista Quarto, n. 126. Belgique: ECF, dez. 2020. pp. 40-45
[2] Trata-se do Congresso da NLS “A interpretação: da verdade ao acontecimento” que deveria ter ocorrido dias 27 e 28 de junho de 2020, mas foi cancelado por causa da pandemia.
[3]Trata-se do testemunho de Monique Kusnierek, evocado anteriormente.



A INTERPRETAÇÃO E ALÉM[1]  

SOPHIE MARRET-MALEVAL
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana/AMP |

Resumo: A prática analítica se estabelece entre o que se lê e o que se escreve, ancora-se numa decifração que não visa o sentido e se regula pelo corte que separa S1 e S2, bem ali onde a palavra mostra o seu limite.

Palavras-chave: interpretação, leitura, escrita, inconsciente

INTERPRETATION AND BEYOND

Abstract: The analytical practice is established between what is read and what is written, anchored in a decipherment that does not aim at meaning and is regulated by the cut that separates S1 and S2 right where the word shows its limit.

Keywordsinterpretation, reading, writing, unconscious

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

“O de que se trata no discurso analítico é sempre isto — ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa”. Esse enunciado de Jacques Lacan aparece na terceira lição do Seminário Mais, ainda, intitulada “a função da escrita” (LACAN, 1972-73/2008, p. 43): quase da ordem do óbvio, ele lembra que a experiência analítica tem sua origem na interpretação, ou seja, em um uso do significante. Suas implicações são, entretanto, maiores quando Lacan precisa a distinção entre letra e significante abrindo-se para uma prática de interpretação que vai além do alcance freudiano.

 

O que se lê e o que se escreve

“No discurso analítico de vocês, o sujeito do inconsciente, vocês supõem que ele sabe ler” (Ibid., p. 43), continua Lacan, mas ele acrescenta: “Só que, o que vocês ensinam a ler, não tem, absolutamente, nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito” (Ibid.). A experiência analítica é, desde então, situada entre a leitura e a escrita. A leitura é aqui colocada em relação ao significado, “o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante” (Ibid., p. 39), enquanto a escrita é referida à letra. Lacan revisita os termos da linguística saussuriana afastando-se da abordagem do significante como “imagem acústica do signo”. Ele descarta a noção de referência que religaria a linguagem a uma realidade pré-discursiva lembrando, aliás, que “os homens, as mulheres (…) não são mais do que significantes” (Ibid., p. 38): “A palavra referência, na ocasião, só se pode situar pelo que constitui como liame o discurso. O significante como tal não se refere a nada, a não ser (…) a uma utilização da linguagem como liame” (Ibid., p. 36). Ele privilegia, então, a noção de “discurso”, da linguagem como laço, no qual se localizam dois efeitos: o significado de uma parte (“O significado é efeito do significante. Distingue-se aí algo que não passa de efeito do discurso […], quer dizer, de algo que já funciona como liame” [Ibid., p. 39]), a letra e a escrita de outra (“A letra, radicalmente, é efeito de discurso. […] É que, o que eu digo anteriormente ganha sentido depois” [Ibid., p. 41]), mas também “tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um certo efeito do discurso que se chama a escrita” (Ibid., p. 40). A impossível escrita da relação sexual se segura, por um lado, ao que “Um homem procura uma mulher (…) a título do que se situa pelo discurso” (Ibid., p. 38), quer dizer, que ele não goza do corpo de sua parceira como tal, mas que o gozo parte dos traços sobre o corpo, do significante fálico, e que ela depende do objeto que a causa, assim como Lacan o precisa no início desse Seminário. Por outro lado, ela se segura à inexistência do significante de A mulher, que torna impossível a escrita de uma relação lógica entre os sexos (ou seja, entre dois significantes se o segundo existisse).

A letra é efeito de discurso. Lacan situa sua função na barra entre o significante e o significado, sem a qual “nada, dos efeitos do inconsciente, tem suporte” (Ibid., p. 40). “A barra é precisamente o ponto onde, em qualquer uso da língua, se dá a oportunidade de que se produza o escrito” (Ibid., p. 40). Se seguirmos a lógica desse capítulo, dois eixos vêm à tona. A primeira: o que se lê, o significado como efeito do significante e que se baseia de uma ausência de relação com o significante, o que se materializa pela barra da arbitrariedade saussuriana, do qual é deduzida também a impossível escrita da relação sexual, que se situa no registro dos efeitos do discurso corrente, do laço entre os significantes. O segundo: o que se escreve, o que não é para ser compreendido, e “parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual” (Ibid., p. 40), o que marca também a materialidade da barra.

 

Uma outra leitura

Dar “uma leitura outra que não o que significa” ao “que se enuncia de significante” (Ibid., p. 43) não pode mais se orientar, portanto, a uma prática de interpretação que visaria à verdade, à reabsorção da barra, do que se escreve. A prática da interpretação convoca, sobretudo, a inexistência da relação sexual, que não cessa de não se escrever. O enunciado convida para uma compreensão quase literal. Trata-se de se abrir a outra leitura que não uma prática de sentido, que leve em conta os efeitos da barra. Quando Lacan aponta ainda a disjunção entre leitura e escrita, ele parte da constatação de um hiato entre o que se enuncia da construção na prática analítica e as letras com as quais ele convida para escrever a teoria (nesse caso, S(Ⱥ), a e Φ). O que se pode escrever sobre isso está além do sentido. Se ele permanece movido pela esperança de um apoio possível na matemática para escrever a teoria analítica, nesse momento, ele faz, no entanto, claramente aparecer, situando a escrita como efeito de dizer, uma outra dimensão da prática analítica, aquela do sentido, sensível no que se escreve sobre isso. A práxis analítica se situa entre o que se lê e o que se escreve, entre a abordagem da inexistência da relação sexual e a incidência da letra. A ênfase é deslocada sobre a função de borda de certos significantes que apontam em direção ao objeto, como Lacan o evoca alguns meses mais cedo em “Lituraterra” (LACAN, 2003).

Assim ele indica, no capítulo seguinte:

“Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria, e por uma curvatura que não poderia nem mesmo ser mantida como sendo como a das linhas de força, aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na alíngua, o que a fratura” (LACAN, 1972-73/2008, p. 50).

Ou seja, a letra que ele indica que ela “revela (…) a gramática”. Uma concepção da interpretação se deduz disso que não negligencia a referência à escrita porque, sublinha, “recusar-se à referência à escrita é proibir-se aquilo que, de todos os efeitos da linguagem, pode chegar a se articular” (Ibid., p. 50). Por um lado, é necessário visar o que se pode articular, por outro, como ele aponta, “Esta articulação se faz naquilo que resulta da linguagem o que quer que façamos, isto é, um suposto aquém, e um além” (Ibid., p. 50). Isso quer dizer que o uso da letra nos leva à via do real, de acordo com as coordenadas que ele dá anteriormente: o objeto a e a inexistência da relação sexual.

“Se trata de ler o quê?”, ele precisa ainda um pouco mais longe, “nada, senão os efeitos desses dizeres. Esses efeitos, bem vemos no que é que isto agita, comove, atormenta os seres falantes” (Ibid., p. 51). É preciso ainda que a leitura desses efeitos sirva “a dar uma sombra de vidinha a esse sentimento dito de amor” (Ibid., p. 51). Ele precisa “outra leitura” que ele convoca: trata-se de fazer uso dos efeitos dos ditos para “civilizar” o gozo pelo amor, que é o que permite “fazer sentido”  (MILLER, 2004, inédito, tradução nossa), mas também de visar um desejo vivo. “É preciso que, por intermédio desse sentimento, isso chegue (…) à reprodução dos corpos” (LACAN, 1972-73/2008, p. 51-52).

 

Interpretação pelo avesso

Para esse fim, Lacan sublinha de que uso do sentido depende o discurso analítico:

“com efeito, um discurso como o analítico visa ao sentido. (…) O que o discurso analítico faz surgir, é justamente a ideia de que esse sentido é aparência. Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isto só pode ser para dar razão do seu limite. Não há, em parte alguma, última palavra, se não for no sentido em que última palavra é nem palavra, caluda — já insisti nisto. Sem resposta, nem palavra, diz em algum lugar La Fontaine. O sentido indica a direção na qual ele fracassa” (Ibid., p. 85).

Ele precisa além disso: “o gozo só se interpela, só se evoca, só se suprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência” (Ibid., p. 99). É por isso que a prática lacaniana continua sendo prática do significante.

No entanto, Jacques-Alain Miller nos lembra que “O tempo da interpretação ficou para trás. Isso Lacan sabia, mas não o dizia: ele o deixava entender e só agora começamos a ler” (1996, p. 96) especificando que “a interpretação não é outra coisa que o inconsciente, a interpretação é o próprio inconsciente” (Ibid., p. 96), o que quer dizer que “o inconsciente fica (…) inteirinho na defasagem (…) que se repete no que quero dizer ao que digo” (Ibid.), a interpretação analítica vem em segundo lugar. Não obstante, ele fala “o inconsciente quer ser interpretado. Oferece-se para tanto. Se não o quisesse, se o desejo inconsciente do sonho não fosse, em sua fase mais profunda, desejo de ser interpretado (…), desejo de fazer sentido, não haveria analista” (Ibid., p. 97). Ele sugere compreender a interpretação como decifração. “Mas, decifrar é cifrar novamente. O movimento para somente numa satisfação” (Ibid.). Uma prática do sentido que não ficaria “a serviço do princípio do prazer” (Ibid.), ou seja, que visa o sinthoma, o ponto de conexão entre linguagem e gozo, deve-se, portanto, distinguir de uma interpretação do inconsciente. Ele propõe uma outra via, aquela da “interpretação pelo avesso”, que “na outra via o S2 fica retido, para não ser acrescido ao objetivo de cercear S1. Trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, com os quais delirou em sua neurose” (Ibid., p. 98). Convém apoiar-se sobre uma “decifração que não produz sentido” (Ibid.) sobre o corte que separa S1 e S2, lá onde a palavra designa o seu limite e conduz pela via do objeto, como uma janela sobre os limites do dizer. É ainda pela via de uma leitura que visa o que se escreve que se alcança o que não cessa de não se escrever, a inexistência da relação sexual na medida em que resulta de uma precisão das coordenadas do sintoma, ou seja, do que cada um goza.

Podemos ainda enfatizar como, ao destacar a leitura do único sentido para pontuar os limites, Lacan abria a via para a prática analítica das psicoses. J.-A. Miller e É. Laurent lembram que o inconsciente interpreta muito particularmente na psicose e que se trata, na maioria das vezes, de visar os pontos onde o sentido se interrompe, de “estabilização da metáfora”, ou seja, como propõe Laurent, de introduzir vírgulas, de isolar, de separar os significantes (LAURENT, 2005, tradução nossa). Como tantos grampos de gozo, os significantes podem igualmente servir a fins de nomeação e permitir uma amarração, uma resolução[2] desta pelo sentido.

 

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Letícia Mello

Referências:
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, É. “Interpréter la psychose au quotidien”. In: Mental, n° 16, out. 2005, p. 17, 19 & 20-24.
MILLER, J.-A. “A interpretação pelo avesso”. In: Opção Lacaniana, n° 15, abril 1996, pp. 96-99.
MILLER, J.-A. “L’orientation lacanienne. Pièces détachés”. Ensino pronunciado dentro do quadro do departamento de psicanálise da universidade de Paris VIII, lição de 24 novembro 2004, inédito

[1] Texto originalmente publicado em: La Cause du Desir, no. 80, 2012.
[2] Jacques-Alain Miller precisa assim a função da nomeação: “Se o nó como suporte do sujeito segura, não há necessidade alguma do Nome-do-Pai: ele é redundante. Se o nó não segura, o Nome exerce a função de sinthoma. Na psicanálise, ele é o instrumento para resolver o gozo pelo sentido” (MILLER, “Nota passo a passo”, em Jacques Lacan, O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 238).



INTERPRETAÇÃO HERÉTICA E ACONTECIMENTO DE CORPO NAS PSICOSES[1]  

SÉRGIO LAIA
Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) pela EBP e AMP |
laia.bhe@terra.com.br

Resumo: O inconsciente é intérprete e, ao interpretar, cifra novamente tornando infinita a atividade interpretativa. Frente a esse excesso interpretativo do inconsciente que se impõe nas psicoses como nas neuroses — embora, nestas últimas, de forma mais velada e sutil —, este texto, na trilha das formulações de Lacan e Miller, argumenta que interpretar analiticamente é fazer frente a esse trabalho interpretativo infindável próprio ao inconsciente, de modo que a interpretação analítica vire pelo avesso essa interpretação infinita do inconsciente. A heresia em questão é sustentar a interpretação na contracorrente do inconsciente quando a concepção que, em geral, se tem da atividade analítica é de que ela o interpreta, ou ainda que, na clínica das psicoses, não se deve interpretar. Também nessa perspectiva herética, este texto aponta para uma direção possível ao tratamento das psicoses: encontrar ou mesmo montar, com cada psicótico, outros enredos possíveis, nos quais alguma subjetivação se processe, e com alguma conjugação do corpo.

Palavras chaves: Inconsciente, interpretação, heresia.

HERETICAL INTERPRETATION AND EVENTS OF THE BODY IN PSYCHOSIS

Abstract: The unconscious is an interpreter and, when interpreting, it ciphers again, making the interpretive activity infinite. Facing this interpretive excess of the unconscious that imposes itself on psychoses, as well as on neuroses — although, in the latter, in a more veiled and subtle way —, this text, following Lacan and Miller’s formulations, argues that to interpret analytically is to face this endless interpretive work that is proper of the unconscious in such way that analytic interpretation turns this endless unconscious interpretation inside out. The heresy in question is to sustain interpretation against the unconscious when the conception that is generally held of the analytic activity is that it interprets it, or even that, in the clinic of psychoses, one should not interpret. Still in this heretical perspective, this text points to a possible direction for the treatment of psychoses: to find or even set up, with each psychotic, others possible plots, in which some subjectivation is processed, and with some conjugation of the body.

Keywords: Unconscious, interpretation, heresy

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Considero muito feliz a escolha, realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), da expressão “interpretação herética” para abordar o que fazemos, graças à psicanálise de orientação lacaniana, na clínica com os psicóticos. Tomando como referência as formulações de Miller (1996, p. 12) de que “o inconsciente interpreta, e quer ser interpretado” e de que “interpretar é decifrar” tanto quanto “decifrar é cifrar de novo”, verificamos como os psicóticos podem sustentar à exaustão a atividade interpretativa. Afinal, por mais que os enigmas sejam decifrados, insiste sempre uma cifra obscura, relativa ao que a psicanálise lacaniana chama de gozo e que, por ser avessa ao sentido, não deixa de exigir mais interpretação, afetando desmedidamente os corpos dos psicóticos que, perplexos, são assolados por uma angústia insuportável. Frente a esse excesso interpretativo do inconsciente imposto sem entraves nas psicoses ou, de modo mais velado e sutil, também nas neuroses e perversões, Miller (1996, p. 13) propõe-nos que interpretar analiticamente é fazer frente ao trabalho interpretativo infindável próprio ao inconsciente, de modo que “a interpretação propriamente analítica… funcione ao avesso do inconsciente”. Logo, já é uma heresia sustentar a interpretação na contracorrente do inconsciente quando a concepção que em geral se tem da atividade analítica é de que ela o interpreta, e essa heresia se ressalta ainda mais ao contrariar outra doxa, ou seja, outra opinião (também genérica e consolidada nos meios psicanalíticos), de que não se deve interpretar os psicóticos.

Sabemos que heresia não indica apenas o que se coloca contra uma tendência, um standard (padrão) ou mesmo uma ordem ou uma norma. Conforme sublinharam Laurent (2011) e Miller (2017/2018), em duas ocasiões distintas, mas sempre se valendo da leitura de Joyce por Lacan (1975-1976/2007, p. 16), heresia designa uma escolha, e uma escolha inaudita, pois remete-nos ao que os gregos chamavam de hairesis[2]. Em outro texto, já tive oportunidade de tematizar a interpretação como a heresia do analista (LAIA, 2019) a partir da constatação de que, no mundo do mestre contemporâneo, o sintoma, cada vez mais refratário ao sentido, exige dos analistas “intervenções capazes de incidir sobre o gozo e não apenas sobre o sentido”, aproximando a interpretação mais “de um fazer que de um saber”, e de um fazer que “atualiza, a cada vez”, para o analista, “sua escolha pelo real” (SOUTO, 2018) como o que, sem lei, se impõe no avesso mesmo do sentido.

 

Batalha de objetos a

Na clínica das psicoses, a heresia da interpretação analítica, a meu ver, se eleva a uma potência superior porque, por um lado, a foraclusão — ressaltando nos psicóticos a anulação simbólica de um significante fundamental, norteador (o Nome-do-Pai), e do significante do gozo (o Falo, Φ) — já demarca a escolha herética pelo real do gozo que lhes toma obscura e enigmaticamente os corpos, mas, por outro lado, essa escolha apresentada nas psicoses não coincide ponto a ponto com a escolha pelo real, também herética, sustentada por um analista. Costumo dizer, a partir de minha clínica com os psicóticos, que travamos com eles uma espécie de batalha, de um duelo de Titãs ou, evocando um brinquedo infantil que fazia bastante sucesso entre as crianças anos 1990 e para o qual um garoto psicótico que atendi sempre me convoca no início de cada sessão, o tratamento psicanalítico das psicoses se faz como em uma “arena de blades”: cada um lança contra o outro seu blade, sua escolha pelo real, e o desafio é verificar qual choque de um blade em outro vai fazer um deles parar de girar. Tomava os blades, nesse caso que atendi, como uma espécie de forma do objeto a difundida pela proliferante indústria de brinquedos infantis e da qual me vali, ao longo de muitas sessões, para acolher um garoto psicótico que tendia a recusar tudo e todos, mas que me deixava entrar em sua arena de disputa entre blades.

Ainda no contexto desse confronto entre as escolhas (heréticas) dos psicóticos e as escolhas (também heréticas) dos analistas pelo que se resvala do sentido, considero importante lembrar que, por um lado, segundo Lacan (1967, p 24), “os homens livres, os verdadeiros, são precisamente os loucos” porque — diferente dos neuróticos — não almejam o objeto “no lugar do Outro” por o encontrarem “à sua disposição”, por terem “sua causa em seu bolso” enquanto que nós, analistas, por outro lado, nos valemos de um discurso que, no lugar do agente, apresenta o objeto como causa do desejo (LACAN, 1969-1970/1991, p. 43, 47-48):

Quanto aos psicóticos, trazer o objeto no bolso implica, conforme as expressões francesas dans la poche ou dans sa poche, tê-lo com facilidade, possuí-lo de um modo definitivo, assegurado, tendo-o à disposição, inclusive, no sentido de dominá-lo ou, como dizemos em português, “tê-lo na mão”. Mas esse domínio do objeto a, mesmo conferindo aos psicóticos a liberdade de não terem de almejar ou demandar tal objeto ao Outro (como acontece com os neuróticos), não os deixa propriamente à vontade. Afinal, para os psicóticos, essa possessão do objeto a, embora o configure como uma espécie de propriedade particular, não os resguarda de modo algum de sua dimensão arrebatadora e perturbadora. Tal possessão chega mesmo a assolá-los com a identificação com o dejeto, ostentada por muitos psicóticos contra tudo e contra todos, inclusive contra si próprios, porque nem sempre eles têm uma ligação com o corpo capaz de torná-los, como nas neuroses, senão adoradores do próprio corpo, certamente mais zelosos consigo e com o que lhes atinge os corpos.

Por isso, Lacan (1967) lê, como psicanalista, a História da loucura, escrita por Foucault, ressaltando o quanto a segregação dos psicóticos nos manicômios (que, sobretudo no passado, situavam-se fora das cidades) é uma espécie de defesa frente à angústia que eles nos provocam. Em outros termos, por carregarem o objeto no bolso, os psicóticos provocam-nos angústia, são excluídos do convívio com os outros e há toda uma tendência de eles não serem suportados. Ainda que essa segregação manicomial não tenha mais a mesma virulência de outros tempos, ela insiste como um estigma indelével a ponto de que, atualmente, tornou-se até prestigioso afirmar “sou TDH”, “sou bipolar” “sou Asperger” ou “sou trans”, mas essa potência afirmativa (com o sentido ativista que esse adjetivo ganhou) não faz alguém se declarar tão enfática e orgulhosamente “sou psicótico”. Historicamente, embora o próprio Foucault (1961/1972) tenha vacilado, em algumas passagens, em afirmá-lo, como faço aqui, os analistas e, sobretudo, eu diria, os analistas pautados na orientação lacaniana de não recuar diante da psicose diferenciam-se porque são talhados para dar lugar (ou seja, não segregar) aos psicóticos e enfrentar a angústia que, ao modo do olhar da Medusa, eles impõem ao mundo. Mais ainda, na batalha de blades que jogamos com os psicóticos, não se trata propriamente de ostentarmos, como Perseu contra a Medusa, um escudo ao modo de espelho para cortar a cabeça daqueles cujo olhar pode angustiar a ponto de petrificar, imobilizar, deixar em um estado no qual parece não haver o que fazer. Nosso desafio — diante do objeto que o psicótico traz em seu bolso — é apresentar-lhe o objeto que agencia o discurso analítico, mas como em uma batalha de blades: para desacelerar o giro interpretativo no qual muitas vezes os psicóticos se fazem afogar, sufocar, cair, largar, ser evitados e segregados.

Assim, se, nas psicoses, encontramos uma identificação como o objeto a, esse mesmo objeto, para o analista, não tem uma função identificatória. O analista faz uso desse objeto inclusive porque sua análise pessoal e as supervisões servem-lhe de instrumentos decisivos para, em sua ação, ir além das identificações. Nesse contexto, vale citar outra formulação de Miller (2010, p. 13) e na qual ele aplica, aos analistas, a operação que o poeta Paul Valéry concebeu como “salvação pelos dejetos”: “o que salva” os analistas “é ter conseguido fazer da sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”, ou seja, colocar o a como agente de um discurso e não como referência identificatória. Esse feito se dá porque os analistas conseguiram “sublimar bastante sua decadência para elevá-la à dignidade de uma prática, isto é, de um objeto de troca” (MILLER, 2010, p. 13) — somos, como analistas, até mesmo pagos para exercer o que exercemos. Porém, a ação analítica tampouco se reduz a esse processo sublimatório porque, por exemplo, mesmo pagos para sustentarmos uma prática a partir da posição de dejeto, mesmo inseridos no circuito comercial da troca e da prestação de serviço, nos é decisivo continuar “sem documentos” (Ibid.), ou seja, sem, por exemplo, um reconhecimento de nosso ofício por um Conselho Profissional ou por alguma lei promulgada pelo Estado.

A posição do analista como dejeto, como objeto a que agencia um discurso, implica também manter “o que, do gozo, permanece insocializável” (Ibid., p. 15). Logo, se “o discurso faz função de laço social” (LACAN, 1972/1978, p. 51), os analistas ousam promover um discurso e, ao mesmo tempo, zelar pela dimensão insociável do gozo. Por sua vez, ao trazerem no bolso o objeto a, os psicóticos também testemunham o quanto o gozo é insociável, mas, na medida em que essa pregnância do objeto tem para eles um alcance identificatório, Lacan (1972/2001, p. 490) lhes atribui a liberdade perturbadora e angustiante de se encontrarem “fora do discurso”. Portanto, não é sem razão que a psicanálise possa interessar a alguns psicóticos a ponto de eles também quererem fazer dela uma prática: a psicanálise aloja o que há de sem laço no gozo e, ao mesmo tempo, dá lugar a um discurso, isto é, ao que faz laço social. No contexto dessa proximidade da psicose e da psicanálise com o que do gozo não se consome e é refratário ao que se coletiviza socialmente, vale lembrar que Freud, no seu célebre texto sobre Schreber, já afirmava que a teoria psicanalítica da libido não era tão diferente do que esse psicótico apresentava em seu delírio:

“Os ‘raios divinos’ de Schreber, feitos de uma condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides, não são outra coisa senão os investimentos libidinais concretamente representados e projetados para fora, e conferem ao seu delírio uma espantosa concordância com nossa teoria (da libido)” (FREUD, 1911/2010, p. 103).

Para ressaltar que tal proximidade, ou concordância, não implica uma equivalência e que a atração de alguns psicóticos pelo exercício da prática analítica não os exime da liberdade angustiante e perturbadora de se encontrarem fora do discurso (e mesmo fora, acrescentaria, do discurso analítico), considero oportuna a declaração feita por Lacan na Proposição dedicada a discernir como se dá a passagem do analisante a analista: “retirem o Édipo, e a psicanálise em extensão (ou seja: a prática mesma da psicanálise)… torna-se inteiramente sob a jurisdição do delírio do presidente Schreber” (1967/2001, p. 256). Nessa declaração, Lacan não deixa de fazer valer o complexo de Édipo como uma função que separa a prática analítica e o delírio psicótico, mas tal valorização tampouco o impede questionar e criticar o amor incondicional às referências paternas. Assim, na clínica psicanalítica, diferentemente do que acontece aos psicóticos (e sobretudo quando eles não estão em um tratamento analítico), a constatação da impostura do pai, ou seja, de que a lei paterna pode tomar a forma de um “faça o que eu digo, mas não o que eu faço”, implica que dispensar o pai não se efetiva sem que se possa servir-se dele.

 

O real de um efeito-sujeito

Considerando os dois “blades” envolvidos na “arena” psicanalítica com as psicoses, eu me valho de dois matemas. Do lado do psicótico, a localização do objeto a em seu bolso me permitiu inventar o matema S(a), no qual o sujeito não dividido (S), por não almejar ao objeto a no Outro, traz esse objeto consigo, mas como algo heterogêneo a si próprio, conforme  procurei demarcar pelos  parênteses que,  por sua vez,  evocam a forma  mesma de  um bolso. Do lado do analista, recorto a linha superior do discurso analítico,  onde o objeto a,  no lugar de “agente”, como  “causa do desejo” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 122- 123), incide  sobre  o sujeito dividido () localizado no lugar do “outro” (LACAN, 1970/2001, p. 447): a  . No caso desse segundo matema, recortado do discurso do analista e aplicado por mim às psicoses, é preciso fazer a ressalva de que um psicótico não é um sujeito dividido (), ou seja, um sujeito que, por sofrer a ação constitutiva e mortífera do significante, ao mesmo tempo se encontraria e se esvairia no intervalo entre um significante (S1) e outro significante (S2). Porém, justifico esse recorte pelo que Miller (1987-1988/1991, p. 40) certa vez demarcou quanto ao modo como Lacan inverteu a perspectiva na qual a alucinação é concebida, passando a dar ao perceptum, ou seja, ao que é percebido, “um alcance causal” com “efeitos de divisão que recaem não sobre um percepiens”, sobre quem percebe no sentido de ter um domínio sobre o que é percebido e que ajustaria sua percepção à chamada realidade, “mas sobre um sujeito”. Por essa inversão lacaniana, na alucinação psicótica, o objeto a, como “perceptum alucinatório” (MILLER, 1987-1988/1991, p. 40), incide sobre o sujeito que, passivamente, “padece da alucinação como independente dele” (MILLER, 1995). Assim, um objeto como o olhar, ou a voz, afeta o psicótico a ponto de insultá-lo, lhe invadir a privacidade, não lhe conferir qualquer lugar no Outro, esmagando-o como sujeito (S) sem lhe dar a chance de se posicionar no mundo dessa forma incômoda (mas passível de reconhecimento) que, na neurose, aparece como falta-a-ser (). Porém, tal esmagamento do psicótico como sujeito não impede à psicanálise de orientação lacaniana apostar no que os psicóticos podem testemunhar quanto às suas posições subjetivas.

Conceber o sujeito ()  como falta-a-ser é concebê-lo como “efeito do significante” (MILLER, 1983a/1996, p. 156) não tomado pela alucinação, mas assolado por “isso fala, no sentido de que isso fala dele… antes que ele fale, antes que ele chame ou mesmo que ele grite”. Assim, pelos significantes do Outro, um sujeito vem a ser como falta-a-ser porque, embora designado por esses significantes que o fazem ser, tais significantes não são literalmente seus e, portanto, mesmo que lhes sirvam para algum reconhecimento, não lhe são de todo concernentes. Por isso, o sujeito se divide quanto ao que ele é e esse contexto evoca a célebre formulação lacaniana de que, antes de falar, o homem é falado: falam de um bebê, por exemplo, antes mesmo de ele efetivamente existir. Nas psicoses, esse “isso fala dele” aparece de modo diferente e até mais radical do que acontece nas neuroses, apesar de não reservar para o sujeito qualquer lugar no Outro. Afinal, essa fala irrompe “de modo desagradável”, a ponto de atingir o extremo de um “isso fala nele” ou, de modo ainda mais esmagador, como vai nos mostrar o “sujeito da dita esquizofrenia” que “isso não fala dele” e, assim, em vez de um falado constitutivo e proveniente do Outro, teremos a presença de um real aniquilador, configurando a esquizofrenia como “a subjetivação de um puro real” (MILLER, 1983a/1996, p. 157).

Nesse contexto, “a escolha da psicose” e — é importante essa ressalva feita por Miller (1983a/1996, p. 157) — “não” de “quem a faz”, é essa “escolha impensável de um sujeito que faz objeção à falta a ser que o constitui na linguagem”. Na psicose, temos uma escolha contrária à alienação aos significantes do Outro e, assim, a dimensão herética dessa escolha é bem mais decidida que aquela sustentada nas neuroses e nas perversões. Mas a ressalva feita por Miller entre essa escolha e quem a afirma é esclarecedora porque, para quem faz a escolha da psicose, mesmo que ela implique uma objeção à constituição subjetiva na linguagem, não há propriamente um consentimento quanto ao não-lugar do qual se padece com relação ao Outro. A meu ver, a sustentação de um tratamento possível das psicoses tem, no não-consentimento a esse não-lugar destinado ao sujeito na escolha da psicose, uma chance decisiva: é nesse não-consentimento, mesmo quando se coloca de modo muito sutil, que encontraremos vestígios do psicótico como um sujeito, ainda que se trate de sujeito não dividido pelos significantes do Outro que, por sua vez, não lhe reserva qualquer lugar no mundo. A clínica das psicoses pautada pela orientação lacaniana dá lugar ao psicótico como sujeito contrapondo-se, por exemplo, tanto à tendência dos paranoicos de se colocarem como “causa de um desejo infinito”, quanto à entrega esquizofrênica “à derrelicção do des-ser” (MILLER, 1983a/1996, p. 160) e, assim, ela faz frente ao aniquilamento subjetivo acionado pelo objeto que os psicóticos trazem consigo, no bolso. Quando a liberdade implicada nesse modo de portar no corpo a heterogeneidade desse objeto toma uma dimensão insuportável, a heresia da interpretação sustentada pelos psicóticos oferece alguma abertura para dar lugar à heresia da interpretação analítica.

Na busca por alguma subjetivação frente ao peso aniquilador do objeto a, é importante lembrar que o discurso universitário também não deixa de ser atraente para muitos psicóticos porque cabe a esse discurso “produzir um sujeito []… a partir de um dejeto (a), pelo viés de um saber (S2)” (MILLER, 1983a/1996, p. 156) separado do que o determina (S1):

Porém, a operação promovida pelo discurso universitário pode não ser a melhor em alguns casos de psicose porque o sujeito que nela é produzido, além de ser barrado, dividido e mortificado, encontra-se no lugar à direita e inferior designado por Lacan  como “produção” (1969-1970/1991, p. 106 e 1970/2001, p. 447), mas também como “perda”. Assim, a alguém identificado ao objeto a a ponto de anular-se subjetivamente, o que adiantaria ser a produção e fazer valer um discurso que, no entanto, o coloca a perder, o descarta e o segrega justamente como sujeito?

Para os psicóticos, a posição subjetiva promovida no discurso universitário, embora nem sempre de modo tão avassalador como em uma alucinação ou em um delírio, pode não lhes reservar anulações muito diferentes daquelas de ser causa de um desejo infinito sempre avassalador (paranoia) ou de uma derrelicção do des-ser (esquizofrenia). Daí, a importância de outro matema apresentado por Miller (1983a/1996, p. 160) no final de um texto que, no próprio título, indaga — “Produzir o sujeito?”:

Esse matema é um recorte do lado direito do discurso universitário, mas Miller (1983a/1966, p. 160) me parece diferenciá-lo do que se processa nesse discurso ao inserir essa seta (↓) que faz o objeto a incidir sobre o sujeito (), em vez de simplesmente segregá-lo e isolá-lo, sob a barra (__), no lugar da produção-perda.

Demarcar assim, na psicose, a incidência do objeto sobre o sujeito é reiterar o esforço de Lacan para “fazer da psicose uma questão de sujeito” porque “o sujeito tem de contentar-se com o que o determina” (MILLER, 1983b/1991, p. 164) e, para os psicóticos, essa determinação vem do objeto a que, não sem incômodo e angústia, ou seja, não sem algum sinal de efeito-sujeito, eles trazem no bolso. Nesse contexto, vale lembrar que Lacan (1955-1956/1981, p. 330), no Seminário III e, portanto, muito antes de formular o objeto a, já ensinava que, na ausência dessa “grande-rota” pavimentada como o próprio grande Outro, “aí onde o significante não funciona” como norteamento, “a função das alucinações auditivas verbais”, ou seja, do que se impõe como objeto a, pode muito bem ser a de “letreiros”, “placas de sinalização” e, portanto, de determinações para os psicóticos orientarem-se em seus caminhos off road[3]. A incidência de a sobre o sujeito, tal como modulada pela orientação lacaniana do tratamento possível das psicoses, poderá dar lugar, acolher, modular e cingir o que eu chamaria, então, de o real de um efeito-sujeito.

 

Fantasia éclatée (explodida)

Nas neuroses e, com suas singulares diferenças, também nas perversões, o sujeito procura compensar sua falta-a-ser com o objeto a que, por condensar a libido, lhe faz as vezes de ser, mas ser que não deixa de lhe escapar devido à sua proveniência, sua extração, do campo do Outro e, portanto, de seu alheamento quanto ao sujeito. É o que Lacan formalizou com o matema da fantasia    ◊ a — busca-se compensar a falta-a-ser () com o objeto a que, como condensador de gozo, ou seja, de satisfação pulsional, faz as vezes de ser, aparece como se fosse ser, parece-ser. Por sua vez, se, para os psicóticos, o objeto encontra-se no bolso — S (a) —, é porque ele não foi extraído do campo do Outro. Essa não-extração o impede de apresentar-se propriamente como condensador de gozo e, assim, nas psicoses, o objeto a prolifera, por exemplo, sob a forma de vozes, olhares, dejetos ou, ainda, no que se acumula, se corta, se ejeta sem que se consiga propriamente fazer sair ou, também, no que, quando sai, tem uma evasão difícil de manejar. Essa proliferação explosiva de objetos a, mesmo quando consideramos sua função de “letreiros” e “placas de sinalizações”, expõe os corpos dos psicóticos à desmedida, bem como os submete a terríveis dilacerações subjetivas porque, nas psicoses, em vez de concentração, há “transporte” do objeto para um “ponto no infinito” (MILLER, 1983a/1991, p. 153) no qual o sujeito nem sempre consegue situar-se, encontrar-se.

Não é incomum e, nos nossos dias, tem sido até frequente, psicóticos procurarem valer-se de alguma composição que, ao lhes fazer as vezes de fantasia, possa lastrear o gozo que, de modo proliferante e perturbador, lhes tomam os corpos a ponto de — recusando-lhes qualquer apropriação — nunca estarem onde se tenta alcançá-los. Busca-se, então, atingir o corpo para fazê-lo acontecer[4] e permitir ao sujeito, senão uma aderência ao corpo, certamente algum tipo de alinhavo pelo qual lhe seja viável ligar-se ao próprio corpo, dedicar-lhe algum cuidado, algum investimento, mesmo depois de lhe impor desgastes muitas vezes atrozes e que anulam ainda mais qualquer tipo de subjetivação. Por isso, à proliferação do objeto que lhes dilacera os corpos por não se ater ao “bolso” que os carrega, muitos psicóticos contrapõem uma multiplicação de cortes pelos corpos; uma procrastinação pela qual a negação para realizarem qualquer ato “catatoniza”-lhes infinitamente a vida; um uso indiscriminado de drogas; uma incessante deambulação sexual ou, ao contrário, uma negação — não menos insistente — do que poderia convocar-lhes a sexualidade; uma adesão a um enxame de palavras-de-ordem ou protocolos que lhes acenam com as possibilidades de apresentarem-se como “mulher”, “homem”, “realizado(a) profissionalmente”, etc.

Tenta-se compor uma fantasia como resposta à anulação experimentada com relação a um lugar no Outro e que poderia acolher (como acontece nas neuroses e perversões), sempre por um triz, o sujeito. Afinal, parece-me que muitos psicóticos — inclusive por se sentirem mais consonantes com o fora-da-ordem que caracteriza o mundo contemporâneo — sabem o quanto a fantasia é um aparelho que organiza o gozo e promove essa identificação pela qual um sujeito consegue, como nos elucida Miller (2010, p. 14), “encontrar seu lugar em uma das muitas rotinas das quais a organização social é feita e que têm como propriedade estabilizar a relação do significante e do significado, a relação do sujeito com as grandes significações humanas”, “sua inscrição sob um significante-mestre”, mas também “uma identificação do gozo no lugar do Outro”. Pela fantasia, um sujeito visa manter-se, minimamente que seja, frente à perturbação obscura que o gozo impõe aos corpos. O problema é que, nas psicoses, esse resgate do ser pela via do objeto a, esse tratamento do real do gozo pela via do semblante, tem sua impostura muito mais intensa e rapidamente experimentada e denunciada. Por isso, mesmo que haja alguma emulação da fantasia nas psicoses (e sobretudo quando ela se dá sem as parcerias que os psicóticos podem encontrar nos analistas), a “construção” ou o “funcionamento”[5] da fantasia para esses sujeitos se processa sempre de um modo para o qual não encontro palavra melhor que a francesa éclatée. É uma fantasia éclaté não apenas porque ela é explosiva a ponto de estilhaçar o sujeito e tudo que ela implica, mas também porque os estilhaços (éclats) por ela provocados comportam toda uma dimensão de brilho (éclat) pela qual um sujeito, mesmo dilacerado por tal explosão mortífera, insiste em fazer-se enredar.

A heresia que sustentamos, então, na clínica das psicoses, como analistas da orientação lacaniana, é a de encontrar ou mesmo montar, com cada psicótico que atendemos, outros enredos possíveis, nos quais alguma subjetivação se processe, e com alguma conjugação do corpo. O alinhavo ao próprio corpo não deixa de me evocar a costura que Peter Pan precisava realizar para prender seu corpo à sua sombra, mas, no caso das psicoses, trata-se muito mais de fazer do corpo uma sombra que — pela sutileza cambiante própria às sombras e diferente daquela do objeto que esmaga o sujeito[6] — dê lugar a alguma subjetivação capaz de servir de companhia à solidão que o gozo não lastreado impõe-lhes na vida. Nesse contexto, é preciosa a indicação feita por Miller (2010, p. 15): “trata-se de destacar do gozo uma parcela que possa se fazer de objeto, e de início objeto de uma narração, de um roteiro — como o roteiro da fantasia —, de um storytelling”, ao modo “de uma lenda, do que Lacan chamava de um ‘mito individual’”, ou seja, de uma estória que se conta inclusive sem os atropelos desse “pesadelo” que Joyce (1922/1986, p. 28) nomeou “história”.

Ora, na expressão mito individual, Lacan (1952/2007) quis conjugar o que se toma geralmente como coletivo, ou seja, o mito, e o que concerne, de modo mais específico, ao indivíduo, ao que nem sempre se experimenta como propriamente contemplado pelos processos de coletivização. Podemos tomá-la, então, como um oximoro, ou seja, uma conjugação paradoxal de palavras cujos sentidos são literalmente opostos e contraditórios. Se, nas psicoses, temos contraposições heréticas ao que se apresenta como coletivo ou, também, um uso muitas vezes muito idiossincrático (e não menos herético) do coletivo, é mesmo oportuno que o tratamento analítico se apresente como um processo no qual um mito individual possa ser inventado, explorado e narrado. Afinal, se o discurso, segundo Lacan, faz laço social na medida em que conjuga elementos heterogêneos, enredando a dimensão significante (S1, S2 e ) com aquela do gozo (a), não me parece possível dizer que um mito individual dê lugar, necessariamente, a uma via discursiva, mas sua dimensão de oximoro não deixa de contemplar a conjugação dos mesmos elementos heterogêneos que compõem os discursos.

Destaco que, a meu ver, a montagem de um mito individual não se faz pelo encadeamento de um significante (S1) a outro (S2) para responder à perplexidade que o gozo impõe ao corpo e pode se condensar no objeto a. Considero que essa tentativa de encadeamento significante é muito mais o que encontramos no delírio psicótico. Portanto, se o emparelhamento S1-S2 não dá lugar, por si só, à montagem de um mito individual, é porque este nos convoca a outro tipo de par ordenado: (S1a), no qual se conjugam um significante que, mesmo não sendo fundamental como o Nome-do-Pai, promove algum ordenamento (S1) e o que, localizando-se quanto à dimensão do gozo (a), dá chances ao que chamei de o real de um efeito-sujeito. Por que é possível contar uma estória — formular um mito individual — com um par ordenado em que um significante determinante (S1), em vez de convocar outro, conjuga-se a um objeto que é referência de gozo (a)? Para responder a essa questão, me valho da seguinte formulação de Laurent (2005, p. 18): “a própria língua significantiza o gozo, transformando-o em pedaços de gozo, tal como o objeto que é elemento de gozo, embora ao mesmo tempo se comporta como uma letra” e “pode entrar em cadeia”, fazer “série… ser substituível, … estar no lugar de causa”. Logo, a montagem de um mito individual se faz com elementos significantes determinantes para o sujeito e com o que pode lhe ser reduzido como uma marca que, ao modo de uma letra, referencia o gozo que lhe toma o corpo a ponto de impedir esse corpo de efetivamente acontecer, mas que — pela conjugação (S1a) — pode dar lugar a um acontecimento de corpo no qual também podemos localizar o real de um efeito-sujeito.

Encontro, na quarta lição do Seminário III de Lacan (1955-1956/1981, p. 55-68), um exemplo clínico conciso e esclarecedor de como a conjugação relativa ao par ordenado (S1a) pode tanto lastrear um gozo que se impõe de modo invasivo quanto redimensionar a disrupção provocada por um significante insultante. É importante nos atentarmos para o modo como Lacan, nesse contexto, se aproxima da paciente e lhe extrai o que, a princípio, parecia não ter lugar algum. Essa forma de aproximação, embora circunscrita à brevidade de uma única entrevista, não deixa de evocar, a meu ver, como a transferência e o tempo podem ser fatores decisivos para que um mito individual, mesmo como um esboço inicial, possa ser montado. Trata-se do conhecido relato de uma “apresentação de pacientes” na qual Lacan (1955-1956/1981, p. 59) teve contato com uma psicótica que padecia de uma “cadeia de interpretações… da qual ela se sentia vítima” inclusive porque tinha muitas referências do quanto era “uma mulher encantadora e amada por todos”. Após enfrentar algumas dificuldades para abordar a paciente, Lacan (1955-1956/1981, p. 59) — por ter mostrado, nesse enfrentamento, a meu ver, sua disposição a escutá-la — aproxima-se “do centro do que ali estava manifestamente presente” porque ela lhe confia o seguinte: “um dia, no corredor, no momento em que saía de sua casa, tinha tido de se haver com uma espécie de mal-educado, e com o qual ela não tinha por que ficar espantada”, uma vez que se tratava do “desprezível homem casado que era amante regular de uma de suas vizinhas de costumes levianos”.

Ora, foi justamente esse homem que, ao se cruzarem no corredor, a havia insultado com “um palavrão” que ela não se dispunha sequer a repeti-lo para Lacan (1955-1956/1981, p. 59) em função do tanto que isso “a depreciava”. Ressalto que, sensível ao que essa indisposição da paciente apresenta como uma espécie de vestígio de uma posição de sujeito, tampouco Lacan (1955-1956/1981, p. 59) insiste para que ela lhe diga qual era o palavrão que, mais adiante, se revela como sendo “Porca!”. Essa disponibilidade de Lacan, sua “doçura” (como ele próprio diz) frente à indisponibilidade da paciente é, portanto, decisiva para o modo como ela se desloca da condição de objeto (a) de um insulto (S1) que, por vitimá-la, não lhe dava qualquer lugar como sujeito, e passa a experimentar o que chamei de real de um efeito-sujeito, não sem antes ceder, àquele que a entrevistava, a marca mesma de um gozo que, diferentemente do que a segregava como insultada, também tomava-lhe o corpo, mas de forma sutil e da qual ela não deixava de ter alguma participação ativa. Vale aqui citar, mais uma vez, o próprio Lacan (1955-1956/1981, p. 59):

“Uma certa doçura que eu tinha colocado na aproximação com ela, fez com que estivéssemos, após cinco minutos de entrevista, em uma boa sintonia (à une bonne entente), e assim ela me confessa, com um riso de concessão, que ela não se encontrava naquele ponto totalmente inocente, pois ela mesmo disse alguma coisa ao passar”.

Diferentemente da posição de  “insultada” (e que não lhe dava qualquer lugar com sujeito), localizo no riso de concessão manifestado em transferência pela paciente outro modo de ela experimentar como o gozo, não sem a dimensão significante, impacta-lhe o corpo. Ao mesmo tempo, o que ela diz em seguida para Lacan lhe permite também destacar um S1, de um significante determinante e ordenador, mas que, diferentemente daquele do insulto, não deixa de iterá-lo numa modalização que, em vez de segregá-la como sujeito, a inclui. Afinal, essa “alguma coisa” que ela teria dito ao passar pelo tal “desprezível homem casado” e “amante da vizinha”, Lacan (1955-1956/1981, p. 59) nos apresenta com os seguintes termos: “essa alguma coisa, ela a confessa mais facilmente que o que ela escutou”, ou seja, que o palavrão-alucinatório Porca!, “e é isto: Eu venho do ‘linguiceiro’[7]. Assim, à trama de interpretações enfatizada a partir de um insulto escutado de forma alucinatória e que segregava a paciente (S1-S2a), a docilidade herética de Lacan permite-lhe contrapor o par ordenado (S1a), que faz para ela as vezes de um mito individual.

Sublinho, nessa contraposição, o quanto esse par ordenado (S1a) — diferente da trama interpretativa S1-S2a — articula significante e gozo fora da vertente do sentido, porque, como elucida Miller (1987/2006, p. 111), “o S1, quando é separado de S2, aparece como sem sentido, e o objeto obtém sua posição por estar fora de sentido”. Afinal, uma estória do tipo nonsense é contada quando a própria paciente acaba confessando que não é de todo inocente quanto ao que havia escutado, mas não porque teria provocado o insulto ao considerar “desprezível” (ou mesmo “um porco”) aquele que a teria xingado de “porca”. Destacando ainda mais o que se apresenta como fora de sentido, temos o riso proveniente da confissão de que, ao passar pelo tal amante da vizinha, ela mesma teria dito que vinha do linguiceiro e, por esse acontecimento de corpo, após tomar distância de sua posição inocente sem ter de se fixar àquela de vítima, a obscuridade do gozo se apresenta não pela vertente segregativa e nefasta do insulto, mas por essa parte da estória que a paciente — até ser escutada por um analista — parecia negar-se, ela própria, a contar, escutar e mesmo gozar.

 


Referências
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[1] Este texto retoma, com algumas modificações e acréscimos, uma apresentação online realizada no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), no dia 7 de maio de 2021, a convite de Fernando Casula (Coordenador desse Núcleo). Por ocasião dessa atividade, Cristiana Pittella (Coordenadora da Seção Clínica do IPSM-MG) fez um comentário do que ali apresentei. Agradeço a esses colegas, bem como aos participantes dessa atividade e a Patrícia Ribeiro, a oportunidade para a realização desse trabalho e, agora, desta publicação.
[2] Por exemplo, no precioso Dicionário Grego-Português (MALHADAS, DEZOTTI e NEVES, 2007, p. 23), encontramos αϊρεσις como “ação de tomar”, “tomada”, “conquista”, assim como “escolha” e, já com referência à cristandade, temos o termo “heresia” (αίρέω). Por sua vez, o clássico e incontornável Etymological Dictionary of Greek (BEEKS; BEEK, 2009/2010, p. 42) apresenta-nos o mesmo termo como “captura, escolha, partido”, relacionando “heresia” a uma “escola filosófica”, além de indicar que outras formas derivadas dessa mesma palavra designam tanto “ser escolhido, provocando abalos, rupturas”, quanto “quem escolhe”. Agradeço, aqui, Teodoro Rennó Assunção, por ter me presenteado e indicado esses dicionários.
[3] Em outro texto (LAIA, 2006), pude trabalhar um pouco mais essa referência lacaniana das alucinações auditivo-verbais como “placas de sinalização” ou “letreiros” às margens dos trajetos que os psicóticos fazem off road, ou seja, fora da “grande-rota” pavimentada, a partir do norteamento do Nome-do-Pai como grande Outro.
[4] Para o que me permite utilizar assim a noção lacaniana de “acontecimento de corpo”, ver o texto “Quando o corpo acontece”, destinado (LAIA, 2021) à preparação da XXV Jornada da Seção Minas Gerais (EBP-MG).
[5] Com as aspas colocadas nas palavras “construção” e “funcionamento”, procuro ressaltar o quanto a fantasia, mesmo aparelhando gozo, não deixa de ser desconstruída e perturbada pelo que, na dimensão mais obscura do gozo, excede o que ela tenta enquadrar. Esse fracasso da fantasia se apresenta nas neuroses e nas perversões, mas ganha um alcance ainda mais disruptivo nas psicoses.
[6] Para essa referência à sombra do objeto que esmaga o sujeito, me valho da célebre formulação de Freud (1917/2016, p, 107) sobre o que acontece nos casos de extrema melancolia: “a sombra do objeto caiu sobre o Eu, que agora pôde ser julgado por uma instância especial, como um objeto, como o objeto abandonado”.
[7] Em francês, o termo original é charcutier e remete-nos àquele que prepara e vende carne de porco. O charcutier e sua “loja” (a charcuterie) são referências comuns à vida francesa. Na edição brasileira do Seminário 3charcutier foi traduzido por “salsicheiro” e essa opção se repete em outras traduções brasileiras nas quais há referência a essa apresentação de pacientes relatada por Lacan (1955-1956/1985, p. 55-69). Porém, mesmo considerado que salsicha é feita com carne de porco, preferi traduzir charcutier por “linguiceiro”, porque quem faz e vende linguiça (tradicionalmente de carne de porco) está muito mais presente na vida brasileira e a salsicha é, de fato, um produto industrializado, não referenciado propriamente a alguém que a produz.



DA ESCUTA DO SENTIDO À LEITURA FORA DO SENTIDO: NOSSA SANTA INTERPRETAÇÃO[1]  

SILVIA BAUDINI
Psicanalista membro da EOL e da AMP |
sbaudini@yahoo.com.ar

 

Resumo: Em um primeiro momento dessa conferência, a autora trabalha as noções de transferência e interpretação quando sustentadas pelo simbólico e pelo analista alojado em uma posição de prestígio pelo suposto saber, para, em seguida, pensá-las em um mundo onde essa suposição tem praticamente desaparecido e o simbólico não é o registro predominante. Através de alguns fragmentos de casos, a autora nos conduz por uma clínica onde o Outro não existe e na qual a leitura do fora do sentido pode dar lugar a invenção de uma nova escrita.

Palavras-chave: Interpretação, transferência, clínica, escrita.

FROM LISTENING TO THE MEANING TO READING THE NONSENSE: OUR SAINT INTERPRETATION 

Abstract: In the first part of this conference, the author works on the notions of tranference and interpretation when sustained by the symbolic and by the analyst lodged in a position of prestige by the suppost subject of knowledge, to then think of these notions in a world where this supposition has practically disappeared and the symbolic is no longer the predominat register. Through some fragments of cases, the author leads us through a clinic where the Other does not exist and in which the reading of the nonsense can give way to the invention of a new writing.

Keywords: Interpretation, transference, clinic, writing.

 

Introdução

Irei começar utilizando uma citação de J.-A Miller que tem me servido de suporte para esta conferência. Miller está trabalhando, em seu curso “El ultimísimo Lacan”, o Seminário “Momento de concluir”, de Jacques Lacan, e cita a seguinte frase: “Por que o desejo se converte em amor? Os fatos não permitem dizê-lo — sem dúvidas há efeitos de prestígio” (LACAN, 1975, tradução nossa).

Sua leitura da frase é a seguinte:

“Dificilmente se pode ir mais longe na degradação discreta da vida amorosa (…). O mesmo acontece, a meu entender, quando se atreve a dizer da interpretação, de nossa santa interpretação, que é tudo o que temos para operar em nossa tradição léxica, ao menos semântica, que depende do peso do analista. Efeito de prestígio ali também. Esse movimento chega até o ponto de dobrar a interpretação sobre a sugestão, horresco referens[2] (MILLER, 2012, p. 186, tradução nossa).

Nessa citação de Miller, extraída do seu curso “El ultimísimo Lacan” (2012), se colocam em relação dois rebaixamentos, o do amor e o da interpretação.

No Seminário, livro 8: a transferência, Lacan se pergunta se nosso acesso ao paciente é ou não através do amor e se interroga sobre o estatuto do amor em relação a uma profunda discordância e ruptura que questiona qualquer harmonia (LACAN, 1960-61/2010).

A relação entre transferência e interpretação está colocada na citação de Miller que nos diz que houve em Lacan uma inversão entre transferência e Sujeito Suposto Saber. Primeiro Lacan localizou a relação com o Sujeito Suposto Saber e disse “a quem lhe suponho o saber, eu amo” para logo invertê-lo, e, citando Miller, “o que faz existir o inconsciente como saber é o amor” (MILLER, 2005, p. 18). Não descartamos seu reverso, o ódio. Depois voltarei a esse ponto.

Então, o estatuto da suposição de saber fica afetado. Recordemos que Freud diz: “tem-se de ter cuidado em não fornecer ao paciente a solução de um sintoma ou a tradução de um desejo até que ele esteja tão próximo delas…” ( 1913/1996, p. 87). Vemos aqui que, para Freud, é o próprio sujeito, o inconsciente que faz a interpretação de seu sintoma.

A suposição de saber que alojava o analista em uma posição de prestígio se movimenta. O discurso da ciência e das leis do mercado também tocam a psicanálise. Como responder sem cair nas redes do discurso do mestre moderno? A psicanálise muda e essa mudança mina as raízes do simbólico como registro predominante na sua qualidade dialética e também a relação S1-S2, operação fundamental da interpretação semântica. Aquilo a que podemos chamar de causa significante.

A orientação lacaniana que JAM sustenta há muitos anos nos dá os instrumentos para operar no mundo do Outro que não existe, onde a suposição de saber praticamente desapareceu.

 

Tradição semântica

O que é a tradição semântica? Em primeiro lugar, tomo o termo tradição, que Miller coloca em oposição à transmissão. A tradição se coloca na linha do NP (Nome-do-Pai) e provém de uma ortodoxia. A transmissão implica o um por um, ou seja, o corpo. O NP não necessita do corpo, é um significante; a transmissão, por outro lado, está encarnada. Por exemplo, o NP se veicula através de uma transmissão e quem encarna essa transmissão fará uma coisa ou outra com esse significante.

Lacan (1955-56/1998) nos apresenta duas modalidades do significante:

1) A cadeia subsiste em uma alteridade em relação ao sujeito, tão radical como os hieróglifos ainda não decifrados na solidão do deserto.

2) Tem a função de induzir no significado, a significação, impondo-lhe sua estrutura. O que conhecemos como significação fálica.

Em relação à semântica, sabemos que esta se refere ao estudo de diversos aspectos do significadosentido ou interpretação de signos linguísticos.

Se tomamos o primeiro ensino de Lacan, o simbólico se institui como uma ordem, com leis, e o significante se define por seu valor diacrítico, ou seja, é oposto a outro significante. A matriz é S1-S2. Essa ordem simbólica vem para pacificar a desordem no imaginário citando Lacan no Seminário, livro 2: “No simbólico nunca há encontro que seja um choque” (1954-55/1985, p. 332). O significante induz, diz Lacan, no significado a significação, quer dizer que esse significado alcança uma detenção graças à operação do significante. Por isso, nas psicoses, ao não se inscrever um significante especial, o Nome do Pai, essa função de limite não se encontra presente e o que há é significação de significação. Por exemplo: um sujeito vê um carro vermelho e sabe que significa algo para ele, que está dirigido a ele, mas não sabe o que quer dizer, qual é sua significação. Essa significação induzida pela presença do significante tem um caráter mais ou menos universal; por outro lado, a significação de significação implica o que conhecemos como significação pessoal, ou seja, está dirigido ao sujeito, com um caráter mais ou menos ameaçador.

Os anos 1994-1995 são um marco para a orientação lacaniana. Miller ministra seu curso “La fuga del sentido” (1994-95/2012), curso que tive o prazer de traduzir. E também ministra duas conferências, uma em Buenos Aires, nas Jornadas anuais da EOL, intituladas “El tiempo de interpretar”. Essa conferência foi intitulada “Adiós al significante” (MILLER, 1995/2009, p. 278) e Jacques-Alain Miller não quis publicá-la durante muito tempo, até que autorizou sua publicação e atualmente pode ser lida nas “Conferencias porteñas: tomo II” (2009). Essa conferência teve diversos efeitos, perplexidade, mal-estar, entusiasmo. E nela Miller apresentou o interminável de uma cura sustentada no modelo tradicional da interpretação; disse que se a “interpretação se for colocada em continuidade com o inconsciente, não é mais que delirar com o paciente” (MILLER, 1995/2009, p. 278, tradução nossa).

Nas “Journées d’étude da ECF” de 1995, proferiu “A interpretação ao avesso” (MILLER, 1996) e, depois de 27 anos, ainda devemos seguir extraindo consequências desses textos e conferências de Miller.

Em primeiro lugar, na “Conferência sobre a interpretação ao contrário”, ele começa dizendo que a era da interpretação já passou, ou seja, que nós (foi há 27 anos) não estamos na era da interpretação. Parece-me importante ressaltá-lo. Verificamos, por exemplo, nos casos, os próprios ou os que supervisionamos, um desejo, um anseio de ligar S1 e S2: o paciente não associa, fala pouco, não liga o que diz com nada, é o que escutamos de nós mesmos ou de nossos supervisionandos. Então, afirmar que a época da interpretação ficou para trás é fundamental para escutar os sujeitos que vêm nos consultar.

Tomemos agora os dois maiores textos do primeiro ensino de Lacan, “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953/1998) e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957-58/1998). O que diz Miller sobre eles? “São iniciativas grandiosas de integrar o gozo à estrutura da linguagem” (MILLER, 1996, p. 97).

Dizê-lo assim nos permite entender que o último ensino e o ultimíssimo ensino de Lacan são muito mais humildes em relação à psicanálise e à ação do analista. O trabalho do analista fica desprovido de qualquer ideia de grandeza e de toda esperança. E, ao mesmo tempo, é muito mais leve, mais eficaz, temperado.

 

A prática

Vou relatar um fragmento de um caso de uma paciente que atendo há 10 anos; ela é alguém que não acredita no pai, o nomeia “progenitor” esclarecendo que ele não pode, em caso algum, ser chamado de pai. Tem um profundo desejo de morte formulado da seguinte forma: “subir no terraço e me jogar”. Nada do que faz a satisfaz, mas, enquanto isso vive e tem um humor muito particular, faz dela uma amadora do stand up. As entrevistas transcorrem entre sua declaração do sem sentido de sua vida e de seu desejo de dormir e seus relatos humorísticos. Numa ocasião, me entrega um papel no qual escreveu um sonho: “Sonho que entro na minha casa e faço isso abrindo uma fechadura que está na janela da varanda. Não há cortinas, estou exposta, me veem. Os meus vizinhos estão lá. Ontem à tarde perdi a confiança neles”.

Até aqui o que escreveu. Digo: Ah! Mas você tem recursos, quando não pode entrar pela porta, entra pela janela!

Pouco tempo depois, chega, senta-se e me diz: “vê aquela pasta verde” — de fato saía de uma sacola uma pasta dessa cor —, “são os papéis para que assinem a doação da casa de minha avó”, único laço dessa paciente com alguém que respeitava e acabava de falecer. Ela se negava sistematicamente a fazer uso dessa propriedade.

Acrescenta: “Isso, eu tenho que agradecer a você e a Maria” (sua analista anterior). Esse recurso, não sem a psicanálise, torna possível para ela dois movimentos: um de vitalização do mortífero, que tem sido seu laço com o Outro, e outro que inaugura um endereçamento a um Outro a quem possa agradecer.

O sonho diz literalmente e ela passa do desejo de jogar-se no vazio, que indica que não havia para ela a moldura da fantasia, a uma janela que, emoldurada pela análise, já que ela escreve o sonho para sua analista, lhe permite abrir a porta de uma casa que poderia melhorar suas precárias condições de vida.

 

Uma prática pós joyceana

Se tomamos a citação do texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que mencionei, o significante tem a função de induzir no significado a significação impondo-lhe sua estrutura. Essa estrutura imposta é a que abreviamos escrevendo S1-S2 e a operação analítica é a pontuação, ou seja, reproduz a estrutura significante, a do significante privilegiado, a do Nome-do-Pai. Por isso Miller diz que entre inconsciente e interpretação há uma equivalência, e isso é o que se diz sob a forma do Sujeito Suposto Saber (MILLER, 1996).

À pontuação se opõe o corte. Em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” encontramos uma citação de Lacan que diz que o corte, “a suspensão da sessão, que a técnica atual transforma numa pausa puramente cronométrica […] indica libertar esse termo (o da sessão) de seu contexto rotineiro” (LACAN, 1953/1998, p. 253). Em seu ultimíssimo ensino, Lacan vai dizer que há que elevar o corte à dignidade da cirurgia. Penso que essa passagem em Lacan sobre libertar o final da sessão de seu contexto rotineiro ao corte cirúrgico marca a incidência do corpo no ato analítico.

Que Jacques-Alain Miller diga que a interpretação é tudo o que temos em nossa tradição semântica nos deixa a porta aberta para pensar algo que vai mais além dessa tradição, digamos, religiosa.

Então, pensar a neurose a partir da psicose se torna imprescindível na prática de nosso tempo. A psicose não tem tradição, Lacan diz que não há psicose infantil, marcando, com isso, que não há uma história, um romance. A psicose transcorre em um tempo sem “contexto rotineiro”.

A neurose, com seu romance lido a partir do último ensino de Lacan, nos liberta do contexto rotineiro.

Por outro lado, se a entrada do significante no corpo se faz por efração, de maneira disruptiva, isso nos dá uma relação com o significante que nada tem a ver com a ideia de um simbólico ordenado. O simbólico é então um buraco, o significante perfura, traumatiza o organismo vivo que não será natural nunca mais.

Cito Jacques-Alain Miller:

“O modo de entrada da experiência inesquecível do gozo que será comemorada pela repetição (…) é sempre a efração em todos os casos aos que se acede a ela por meio da análise. A efração não é a dedução, não é a intenção, tampouco a evolução, mas sim a ruptura, a disrupção quanto a um ordenamento prévio, já feito, ou à rotina do discurso, graças ao qual se mantém as significações, ou à rotina que imaginamos como a do corpo animal” (2013, tradução nossa).

Essa leitura da entrada do significante como Um, que ingressa no corpo e o faz gozar, ou seja, que o afeta, também tem consequências no nível da interpretação.

Dizemos que interpretar no sentido S1-S2 é se identificar ao inconsciente, então, qual seria a intervenção analítica se o significante é Um sozinho e procede pela disrupção?

Vou citar três fragmentos de casos que me ensinaram.

1) Um homem delira sentado na cama de um hospital, fala dos horrores que sofre de forma monotônica, delírios cenestésicos, alucinações etc. O escuto e, em um momento, pegando no meu braço, digo “fiquei arrepiada”. Me olha pela primeira vez, cala-se e sorri.

2) Uma jovem que chega depois de um acidente, vem confusa e com certo empuxo às mulheres, dispersa até que algo se localiza em um aplicativo do celular, o Tinder. A partir dali marca encontros com mulheres, homens e casais. Não vem às entrevistas e, quando vem, relata suas atuações, o álcool e as saídas. Intervenho: “M., me dá algo ao que me agarrar, não tenho nada para me agarrar”. Me diz “bom” e, a partir de então, não falta mais a seu tratamento. Embora suas urgências, atuações e seu empuxo persistam, pode registrá-los, freá-los, como ela diz, e também se angustiar frente a uma viagem que planeja sem muita orientação porque quer experimentar, ser livre. A análise a acompanha para localizar um espaço e um tempo, para que seu fazer tome corpo e não fique exposta a uma fuga sem freios.

3) Um homem chega para avaliar a medicação; seu pai acaba de morrer e vários de seus familiares estão gravemente doentes. Nada disso o afeta. Somente o rechaço que tem por si mesmo e que se consuma na recusa a qualquer intervenção médica ou de outra ordem. Meu fracasso é completo e lhe digo que não posso ajudá-lo. Deixa a quem até esse momento é seu analista e pede para vir duas vezes por semana. Segue seu rechaço. Como escreve poemas, lhe digo que os leremos, mais fracasso. Enfim…

Chega a uma entrevista falando de várias coisas e, no final me diz: “Minha amiga me disse para ligar para fulano, que é o analista dela, ligo e ele me diz que não pode me atender, e que vai me dar outro contato, e me deu o seu. É o círculo do inferno de Dante”.

Digo-lhe: “claro, sou sua analista”. Carrego, ali com o inferno, esse real que o deixa em queda livre no buraco e do qual se defende com o rechaço fundamental ao altero. Então, desmontar a defesa é a operação, o inferno é inferno e vamos circunscrevê-lo. O rechaço a todo laço que inclua família, parceira, trabalho, analista, é a defesa do sujeito frente ao real, o real da melancolia, de se fazer o próprio dejeto.

“A desmontagem da defesa supõe que outra construção venha no lugar do que foi esvaziado” (GUÉGUEN, 2014, p. 103) e permita manter o enodamento RSI. A analista marcada pelo inferno permite que o afeto se localize e lhe faça borda ao corpo.

Dias depois disse que, pela primeira vez, chorou a morte do pai, e ele nunca chora. Irrompe um sintoma: a insônia. Então aceitou a medicação, lhe digo “com a insônia não se pode viver”. Consente.

Breton, citado por Jacques-Alain Miller em “La fuga del sentido”, diz que devemos desviar a palavra de seu dever de significar (MILLER, 1995-95/2012, p. 80).

Lacan vai se basear na obra de Joyce para produzir seu conceito de sinthome. A escrita joyceana cumpre com essa indicação de Breton, Joyce desvia a palavra de seu dever de significar e faz ressoar a lalíngua em sua escrita. Não é em vão que Lacan diz que é o melhor que se pode ler e inclui seus Escritos.

Efetivamente, a escrita joyceana é disruptiva, perfura todo o conhecido e faz falar. Lacan postula, no Seminário, livro 23: O sinthome, “um novo tipo de ideia” (1975-76/2007, p. 127), mas o que quer dizer isso? Estamos habituados a pensar as ideias como algo ligado ao sentido, ao imaginário, mas recordemos que Lacan, no Seminário, livro 3, toma o fenómeno anidéico de Clérambault, que é um elemento, estrutura mínima. Lacan esclarece o que quer dizer anidéico, “não conforme a uma sequência de ideias” (1955-56/1985, p. 14), e acrescenta que é algo que se apresenta como ruptura e como incompreensível. Então, esse novo tipo de ideia que é o traumatismo, dado que não é conforme a uma sucessão, é o que vai dar a possibilidade da invenção, a invenção de uma nova escrita, o forçamento de uma nova escrita. Lacan diz que o real é sua invenção e que tê-lo enunciado como uma escrita (do nó borromeano) tem o valor de um traumatismo.

É, então, coerente falar de forçamento, dado que o significante procede por efração, ou seja, rompe, faz disrupção. Portanto, esse forçamento de uma nova escrita é homólogo à irrupção do significante no corpo.

 

Corpo afetado

Vemos, então, a diferença entre a interpretação orientada pela escuta do sentido ou pela leitura do fora do sentido: essa leitura não é sem um forçamento que pode dar lugar à invenção de uma nova escrita.

Essa orientação também toca a posição do analista e seu semblante de objeto. O analista orientado pelo real empresta o corpo no ato. Tomemos o testemunho de Rosine Lefort na entrevista que Judith Miller lhe faz.

Chega em posição de dejeto e encontra o horror da transferência. Diz que Lacan se queixou uma ou duas vezes da dificuldade do trabalho na transferência com ela. E acrescenta “se ele não tivesse infiltrado simbólico mediante suas palavras, ou nas sessões, jamais teria voltado” (LEFORT, 2013, p. 129, tradução nossa).

Penso que, no caso construído por Rosine Lefort, é claro como o analista cumpre uma função civilizadora da disrupção. Tempera a violência que levava ao sujeito ao encontro com o horror, ao mesmo tempo que dava voz e corpo.

Ela diz também que o analista não deixava de “manter a pressão”, por exemplo, pedindo-lhe que lhe trouxesse os objetos de sua autoagressão ou as provas do maltrato infantil. Máxima redução do imaginário do espelho, que consistia em fenômenos psicossomáticos graves — mutismo, sonambulismo — para produzir um imaginário que inclui o afeto (LACAN, 1975-76/2007) e que a extrai de sua posição de objeto. Ela diz: “o lugar de resto e de dejeto foi o gérmen de meu trabalho como analista… afinal de contas, eu estava lá para voltar (à vida) eficiente” (LEFORT, 2013, p. 133, tradução nossa).

Lacan (1975-76/2007) fala de um imaginário que inclui afeto depois de citar a cena de Joyce, na qual é espancado e amarrado com arame farpado. Seu relato dessa cena é desafetado, não sente nada nem guarda nenhum rancor. Então, Lacan dirá que não há uma relação entre o corpo e o inconsciente, é o significante Um sozinho que permite que o corpo e o inconsciente se enodem. É através da escrita/leitura do significante como pura letra fora do sentido que o corpo se mantém enodado. No caso de Joyce, essa função fracassada é suprida pelo ego, uma megalomania de suplência, ser o escritor que dará o que falar aos universitários por trezentos anos. Essa suplência restitui a unidade do corpo. A invenção, o forçamento de uma nova escrita que dá o que falar é bem capturado nessa suplência joyceana.

Voltando à transferência, pensar a intervenção do analista em relação com a leitura do fora do sentido coloca em jogo a transferência mais além do amor e da suposição de saber. Em seu texto “A negativa”, Freud (1925/1976) dá conta da constituição do eu a partir da expulsão. Trata-se, como diz Éric Laurent em “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência (2018), da expulsão fora do sujeito, o que constitui o real como o que subsiste fora da simbolização. Essa expulsão constitui aos Uns como outros Uns, e daí a possibilidade de amor e ódio e de sentimento, consequências da separação dos outros Uns. “Aquilo que é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos” (FREUD, 1925/1976, p. 141) e se expulsam, diz Freud. Assim pode constituir-se o ego.

Então, o ódio como afeto primário, o horror de que fala Rosine Lefort, não devem fazer o analista recuar. É nesse horror que o Um sozinho fora de todo sentido joga sua partida. Suportar e manejar o ódio de transferência e sua irrupção na cura é a oportunidade para fazer existir uma satisfação mais suportável para o sujeito.

Uma jovem que atendi durante mais de quinze anos de maneira interrompida, logo após um período de evidente progresso na sua vida, realiza uma passagem ao ato inesperada para mim, levando-me a pensar em não continuar a atendê-la pelas consequências que isso tem a nível do ódio familiar dirigido a mim, mas fundamentalmente dirigido a ela. Faço uma supervisão e recebo o seguinte: vai ter a coragem de deixá-la?

Depois de algum tempo, ela me diz: “você vai ter que procurar um discípulo, já está velha, parece cansada”. É verdade, eu me queixava com ela das minhas costas e sustentava um semblante de cansaço e envelhecimento. Isso produz nela uma visível satisfação e amenizou sua mortificação. Essa contingência transferencial permitiu que ela continuasse mais tempo em sua análise e, consequentemente, com sua vida, da qual sempre recebo notícias.

 


Referências
FREUD, S. (1913). “Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I)”. InEdição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. 12.
FREUD, S. (1925) “A negativa”. InEdição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. 19.
GUÉGUEN, P.-G. “Defesa (desmontar a)”. Um real para o século XXI, Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
LACAN, J. (1954-1955) O Seminário, livro 2: o Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. (1955-1956) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
LACAN, J. O Seminário, livro 25: momento de concluir. 1975, inédito.
LACAN, J. (1953) “Função e campo da fala e da linguagem”. InEscritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324.
LACAN, J. (1955-56) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, InEscritosop. cit.
LACAN, J. (1957-8). “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. InEscritosop. cit.
LACAN, J. (1960-61) O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
LAURENT, É. “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. Opção Lacaniana, n. 79. São Paulo: Eolia, 2018.
LEFORT, R. “‘El camino de la cresta sobre la duna’, Entrevista de Judith Miller a Rosine Lefort”, In: Revista Lacaniana, n. 14, Buenos Aires: Eol, 2013.
MILLER, J-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. “Uma fantasia”, In: Opção Lacaniana, n. 42. São Paulo: Eolia, 2005.
MILLER, J-A. (1994-1995) La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. (1995) “Adiós al significante”, In: Conferencias Porteñas: tomo II Desde Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2009, p. 265-282.
MILLER, J-A. “A interpretação ao avesso”, In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia, n. 15, 1996.
MILLER, J-A., “El desnivel entre el ser y la existencia”. In: Freudiana, Revista de la Comunidad de Catalunya ELP, n.68, Barcelona, 2013.

[1] Conferência apresentada em 01 de março de 2021 na Aula inaugural: abertura das atividades do primeiro semestre/2021 do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
[2] “Tremo ao dizê-lo”, verso extraído da Eneida, do poeta Virgílio.



 O real do inconsciente e a gaia ciência: saber fazer com lalíngua[1] 

BERNARDO MARANHÃO
Psicólogo. Advogado. Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Doutorando em Estudos Psicanalíticos na UFMG. Professor na Escola do Legislativo de Minas Gerais |
maranhao.bernardo@gmail.com

Resumo: Este artigo discute o trecho de “Televisão” em que Lacan faz menção à gaia ciência, o saber alegre dos trovadores medievais. O que se pretende interrogar é em que medida esse saber pode ser tomado como um referencial, entre outros simultaneamente possíveis, para a interpretação analítica, num contexto em que o inconsciente é concebido, com Lacan, como “o mistério do corpo falante”.

Palavras-chave: inconsciente, gaio saber, lalíngua.

THE REAL OF THE UNCONSCIOUS AND THE GAY SÇAVOIR:

SAVOIR-Y-FAIRE WITH LALANGUE

Abstract: This article discusses the sketch of “Television”, in which Lacan mentions gai savoir, the joyful knowledge of medieval troubadours, in order to interrogate to which extent this knowledge can be taken as a reference, among others equally possible, to psychoanalytic interpretation, in a context in which the unconscious is conceived, with Lacan, as “the mystery of the speaking body”.

Keywords: unconscious, gai savoir, lalangue.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Nos anos finais do ensino de Lacan, a concepção do inconsciente estruturado como uma linguagem cede espaço à do inconsciente como corpo falante. A leitura em perspectiva desses remanejamentos conceituais, tal como empreendida por Miller, possibilita que a proposição lacaniana “o inconsciente é o mistério do corpo falante” (LACAN, 1972-73/1985, aula de 15 de maio de 1973) seja reformulada nos seguintes termos: “o real do inconsciente é o corpo falante” (MILLER, 2015, p. 34). E é precisamente lalíngua, tomada como o real da língua e como o elemento de gozo que há no uso da palavra, que corresponde, nesse corpo falante, ao ponto de amarração entre a fala e o corpo.

A metafísica cartesiana, observa Bassols (2015), conserva inquestionado o mistério da união entre a alma e corpo. Já na perspectiva lacaniana detalhada por Bassols e por Miller, a união entre a res cogitans e a res extensa, ou seja, entre a substância pensada e a substância corpórea, constitui uma terceira substância, uma substância gozosa, que corresponde a isso que Lacan denomina “o mistério do corpo falante” e que Miller designa como o real do inconsciente. É essa substância gozosa, diz Bassols, que se encontra no ensino de Lacan, a partir do Seminário XX, Mais, ainda, como o significante que se transforma cada vez mais em letra e que, no mesmo passo — ousamos acrescentar —, vem a ser progressivamente tomado como pertinente não à linguagem, mas a lalíngua. A respeito dessa substância gozosa, observa Bassols (2015, p. 14): “É aí que se coloca o problema do real da linguagem, que amarra o corpo imaginário e o simbólico da realidade psíquica. É o real como terceiro que, não obstante, produz uma amarração”.

É também a partir desse real da linguagem que se forma o sintoma, concebido como acontecimento de corpo, num arranjo que resulta da maneira singular como o ser falante é afetado em seu corpo pelos sedimentos de lalíngua. Ao analista, incumbe saber ler o sintoma (MILLER, 2016a), não segundo uma visada hermenêutica, atrelada aos sentidos convencionados do significante, mas de uma maneira que presta atenção à materialidade gráfica e fônica do significante, ou seja, à sua dimensão de letra e às ressonâncias produzidas no corpo do sujeito pela matéria do significante, constelada na galáxia de lalíngua. Ao analisante, toca-lhe a tarefa de “inventar o saber” (LACAN, 1973/2003, p. 315) que lhe convém quanto a esse seu modo singular de gozo. Dito de outro modo, o que está em jogo numa análise é a construção de um modo específico de saber, que Lacan (1976-77, aula de 15 de fevereiro de 1977) nomeia com a expressão savoir-y-faire. Trata-se de um saber que aponta para a aproximação entre o fazer do psicanalista e o do artista, um saber que valoriza a diferença entre o universal e o singular. O savoir-y-faire, tal como o toma Lacan, observa Márcia Mello de Lima (2009, pp. 26–27), pode ser traduzido como um saber se virar com isso que o sujeito tem de surpreendente, com isso que o conduz à singularidade de seu ato.

O trato com o real do gozo de lalíngua, com os efeitos por ela produzidos no corpo — efeitos que são afetos (LACAN, 1972–73/1985, aula de 26 de junho de 1973) —, é algo cultivado refinadamente pelos trovadores da Idade Média, os quais instituem, a partir desse savoir-y-faire, um campo particular do saber, a gaia ciência. Em “Televisão”, Lacan (1974/2003) aproxima esse saber do poeta ao do analista e caracteriza a gaia ciência, ao mesmo tempo, como um afeto — trata-se, afinal, de um saber alegre — e como uma virtude, em oposição ao afeto da tristeza, que ele, evocando Dante e Spinoza, qualifica como uma falha moral. Nesse passo, Lacan coloca em curto-circuito a acostumada oposição entre afeto e intelecto ao indicar que o afeto deriva do pensamento, e, conforme veremos mais detalhadamente a seguir, põe o problema das depressões a salvo de uma abordagem biologizante ao enquadrá-lo na moldura de uma ética do bem-dizer.

Desde o Seminário X, A angústia, Lacan já indica que o campo dos afetos é atinente à relação do sujeito com o Outro, relação articulada pelo significante. A esses dois termos, o significante e o Outro, é preciso, diz Miller (1986/2016b, p. 108), acrescentar um terceiro: o gozo. Sob essa perspectiva, os afetos não derivam de uma relação direta do sujeito com o mundo, mas de uma relação mediada pelo desejo, e consistem em efeitos de gozo produzidos pela linguagem no corpo desse sujeito. Em síntese, diz Miller (1986/2016b p. 109), “o que Freud denomina a separação entre a cota de afeto e a ideia se torna, para nós, a articulação do significante e do objeto a”.

Em “Televisão”, Lacan inscreve expressamente os afetos no campo da ética. Ao tratá-los como “paixões da alma”, na esteira de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, afasta-os das visadas psicológicas e psicofisiológicas próprias da contemporaneidade e, sem deixar de reconhecer que eles têm uma ancoragem no corpo, toma os afetos em consideração a partir da relação que eles possam guardar com o problema do bem, ou mesmo do soberano bem. Não se trata, pondera Miller (1986/2016b), de transportar para a psicanálise a questão do soberano bem, tão cara ao pensamento antigo e medieval, mas de indicar que “é nessa abordagem tradicional da questão que a psicanálise encontra sua orientação” (p. 109).

É eloquente, quanto a essa consideração dos afetos sob uma perspectiva ética, o exemplo da oposição evocada por Lacan entre a tristeza e o gaio saber. Essa oposição é amplamente lastreada nas doutrinas médicas e filosóficas da Idade Média (AGAMBEN, 1977/2007), que associam a tristeza ao pecado mortal da acídia — posição demissionária do sujeito em face do soberano bem[2] — e reconhecem no gaio saber — ramo da arte do bem-dizer — um remédio para esse mal que nem a religião, nem a filosofia, nem a medicina sabem curar.

Desse par de opostos herdado da tradição, Lacan faz uma apropriação à sua maneira. A tristeza constitui para Lacan um problema ético — e é para dar evidência a esse ponto que, nessa passagem de “Televisão”, ele recusa expressamente o termo depressão, próprio ao campo semântico de uma abordagem psicofisiológica dos afetos. Com apoio em Dante e em Spinoza[3], caracteriza a tristeza como “lassidão moral”, isto é, como um abandono, por parte do sujeito, em face de um dos deveres éticos fundamentais. No entanto — e aqui se destaca o aspecto particular da leitura proposta por Lacan —, esse dever ante o qual o sujeito se omite não é, como quereria o filósofo seiscentista, o de bem-dizer o supremo bem divino, mas o de encontrar seu próprio lugar na estrutura, ou seja, sua posição em face do inconsciente (LACAN, 1974/2003). Esse dever, em sua versão lacaniana, também se enquadra na ética do bem-dizer e engaja a relação entre o saber e o gozo. Nesse sentido, observa Miller (1986/2016b, p. 111): “A ética do bem-dizer consiste em discernir, em circunscrever, no saber, aquilo que é impossível de dizer. (…) Quando o saber é triste, ele é impotente para pôr o significante em ressonância com o gozo; esse gozo permanece exterior”.

Já no que concerne à gaia ciência, virtude de um saber alegre que se encontra em oposição ao vício do saber faltoso da acídia-tristeza, Lacan a considera não somente como a arte de entrelaçar com engenho as sílabas às notas musicais e as palavras umas às outras, mas como uma arte de “gozar do deciframento” (LACAN, 1974/2003, p. 525), um modo de dar lugar ao gozo no exercício do saber, de propiciar alguma reconciliação entre o saber o e gozo. Como observa Miller:

“[O] gaio saber admite a extimidade do gozo, ele admite que esse gozo não é, decerto, absorvível no saber, mas que tampouco lhe é exterior. Notemos, quanto a esse aspecto, que o saber alegre não é o saber onipotente, mas aquele que faz passar da impotência ao impossível. A tristeza é a impotência [do saber], ao passo que o gaio saber é o impossível do saber. Por essa via, ele toca no real” (MILLER, 1986/2016b, pp. 110-11).

De que maneira o saber alegre toca no real? As palavras de Lacan, no trecho de “Televisão” em que ele se refere ao gaio saber, propiciam o vislumbre de uma resposta a essa questão:

“No polo oposto da tristeza existe o gaio issaber [gay sçavoir] o qual, este sim, é uma virtude. Uma virtude não absolve ninguém do pecado — original, como todos sabem. A virtude que designo como gaio issaber é o exemplo disso, por manifestar no que ela consiste: não em compreender, fisgar [piquer] no sentido, mas em roçá-lo tão de perto quanto se possa, sem que ele sirva de cola para essa virtude, para isso gozar com o deciframento, o que implica que o gaio issaber, no final, faça dele apenas a queda, o retorno ao pecado” (LACAN, 1974/2003, p. 525).

A partir desse dito de Lacan, é possível, ainda, considerar que o gaio saber fornece um paradigma para a escuta analítica: “não compreender, fisgar no sentido, mas roçá-lo tão de perto quanto se possa”. Essa divisa nos parece articulável, do lado da interpretação analítica, àquilo que Éric Laurent (2018) recorta do ensino de Lacan sob a rubrica da interpretação como jaculação. A partir das indicações dadas por Laurent, é possível supor que a jaculação se liga menos ao conteúdo semântico de determinado significante que a “um efeito de sentido real” (LAURENT, 2018, p. 70) produzido pela maneira como esse significante é veiculado pelo analista. Em suas palavras: “Essa interpretação não é o acréscimo de um significante dois com relação a um significante um. Ela não visa à concatenação ou à produção de uma cadeia significante” (LAURENT, 2018, p. 71). Trata-se, como explica Laurent mais adiante nesse mesmo texto, de um significante que seria novo em razão de sua capacidade de desencadear um despertar, o qual se conecta “à produção de um efeito de sentido real como produção de um evento de corpo” (LAURENT, 2018, p. 71).

Dentre os contextos de uso da ideia de jaculação recortados da obra lacaniana por Laurent, destacamos dois, por sua pertinência à discussão que aqui tecemos acerca do gaio saber. O primeiro deles diz respeito a Poordjeli, palavra-valise inventada por Serge Leclaire de modo a formalizar, em final de análise, vários aspectos de sua fantasia. Lacan qualifica esse invento como “uma jaculação secreta, uma fórmula jubilatória, uma onomatopeia” (LACAN, 1964-65, aula de 27 de janeiro de 1965). O segundo contexto é o do uso do termo jaculação para dar conta da força do texto poético.

As referências específicas identificadas por Laurent neste segundo contexto são aquelas feitas à poesia de Píndaro e à de Angelus Silesius. No entanto, podemos imaginar Lacan às voltas com a raiz etimológica do termo “jaculação”, não muito distante, possivelmente, do latim joculator (de jocus: jogo), termo que derivou, nos séculos XI e XII, para o nome dado, em diversas línguas latinas, a uma figura-chave da cultura dos trovadores medievais (ZUMTHOR, 1987/2001, p. 56), o jogral, esse que em suas andanças cantava coisas como:

Er vei vermeills, vertz, blaus, blancs, gruocs,
vergiers, plais, plans, tertres e vaus;
e’il votz dels auzels son’e tint
ab doutz acort maitin e tart:
so’m met en cor q’ieu colore mon chan
d’un’aital flor don lo fruitz si’amors
e jois lo grans e l’olors de noigandres.

Um dos vestígios que nos chegaram da “catedral” (AGAMBEN, 1977/2007, p. 157) de versos e melodias construída pelos trovadores medievais da Europa ocidental, essa estrofe do Canto XI de Arnaut Daniel (1150-1210) exemplifica bem um modo, próprio da gaia ciência, de saber fazer com o gozo de lalíngua. Ainda que a melodia tenha se perdido, ainda que a língua nos seja estranha, é possível perceber como esses versos se prestam a uma fruição que se dá não só no pensamento, às voltas com as camadas de decifração do sentido, mas também no corpo, afetado pelo ritmo de cada verso, pela vibração de cada palavra, pelo timbre de cada fonema.

E embora a gaia ciência medieval pareça remota e inacessível à sensibilidade contemporânea, pode-se dizer que ela encontra uma espécie de ressurgência entre nós, brasileiros, na canção que aqui se tem produzido, sobretudo na segunda metade do século XX, como sugere José Miguel Wisnik (2004). Esse cancioneiro, observa o autor, constitui um espaço de reflexão e debate sobre os problemas do país, ao mesmo tempo que proporciona, em grande medida, a nossa “educação sentimental”, como o atesta o documentário As canções, de Eduardo Coutinho (2011) — e tudo isso em formas nas quais se encontram ricamente articulados o erudito e o popular, o literário e o oral, a fala e o canto, a poesia e a música. No que concerne particularmente ao discurso analítico, a gaia ciência brasileira parece oferecer, a quem se deixa tocar pelas várias vozes que a compõem[4], uma via régia para o real de lalíngua.

 


Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, G. (1977). Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Ed. UFMG. Tradução: Selvino José Assmannn. 2007
BASSOLS, M.. “Scilicet, le corps parlant de l’AMP”. In: Association Mondiale de Psychanalyse. Scilicet: Le corps parlant: Sur l’inconscient au XXIeme siècle. Paris: ECF, 2015, p. 9-14.
COUTINHO, E. As cançõesDVD. Petrópolis: Bretz Filmes. 2011.
LACAN, J. (1964-65). O Seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito.
______. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, aindaRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Tradução: M. D. Magno, 1985.
______. (1973). “Nota italiana”. InOutros escritosRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Tradução: Vera Ribeiro). 2003.
______. (1974). “Televisão”. In: Outros escritosRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Tradução: Vera Ribeiro). 2003.
______. (1976-77). O Seminário, livro 24: l’insu qui sait de l’une bévue s’aile à mourre. Inédito.
LAURENT, E. “L’interprétation événement”. In: La Cause du Désir100(3), 2018, p. 65-73.
LIMA, M. “Freud, Lacan e a arte: uma síntese”. In: LIMA; JORGE (orgs.). Saber fazer com o real: diálogos entre psicanálise e arte. Rio: Companhia de Freud, (2009), p. 15-29.
MILLER, J.-A. “Le corps parlant: Sur l’inconscient au XXIeme siècle”. In: Association Mondiale de Psychanalyse. Scilicet: Le corps parlant: Sur l’inconscient au XXIeme siècleParis: ECF, 2015, p. 21-34.
______. “Ler um sintoma”. Lacan XXI, Revista Fapol online. v. 1. 2016a. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br (acesso em 25/6/2020).
______. (1986). “Les affects dans l’expérience analytique”. InLa Cause du Désir, v. 93, n. 2, 2016b, p. 98-111.
TEIXEIRA, A. “Depressão ou lassidão do pensamento? Reflexões sobre o Spinoza de Lacan”. InPsicologia Clínica20(1), 2008, p. 27-41.
WISNIK, J. M. “A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil”. InSem Receita: ensaios e cançõesSão Paulo: Publifolha, 2004, p. 213-240.
ZUMTHOR, Paul. (1987). A letra e a voz(Tradução: Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira). Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 2001.
[1] O autor agradece ao Prof. Antônio Teixeira pela orientação na feitura deste artigo.
[2] A acídia corresponderia, numa perspectiva lacaniana, a uma posição demissionária do sujeito em face da causa do desejo. Ver TEIXEIRA, 2008.
[3] Ver TEIXEIRA, 2008.
[4] Entre as quais se reconhecem as do rap e do slam, intensamente presentes sobretudo para a juventude periférica dos grandes centros urbanos do país.



EDITORIAL – ALMANAQUE Nº27

Cecília Batista

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Sejam bem-vindas e bem-vindos! É um prazer recebê-los na 27ª edição da Almanaque Online. Nesta edição tivemos como tema, em consonância com o trabalho desenvolvido pelo IPSM-MG no primeiro semestre de 2021, “Interpretação: da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”. Para acompanhá-los neste percurso, do sentido ao fora de sentido, alguns textos foram cuidadosamente selecionados pela equipe de publicação da revista.

Comecemos nossa caminhada pela rubrica Trilhamentos, na qual vocês encontrarão a conferência “Da escuta do sentido à leitura do fora do sentido: nossa santa interpretação”, proferida por Silvia Baudini. A autora perpassa o tema da interpretação, desde a “tradição semântica” à leitura e escrita, em uma construção enlaçada por ricos fragmentos clínicos. Sérgio Laia, por sua vez, em seu texto “Interpretação herética e acontecimento de corpo nas psicoses”, traz um interessante percurso, apoiado nas formulações de Lacan e Miller, sobre uma interpretação que opera na contratendência do trabalho interpretativo infinito do inconsciente, podendo, então, tocar algo do gozo, e não do sentido. Reflete ainda sobre como essa escolha herética pode indicar uma direção no tratamento das psicoses. Em “A interpretação e além”, de Sophie Maleval, trabalha-se a noção da prática analítica situada entre a leitura e a escrita, de uma interpretação regulada pelo corte no qual a palavra encontra seu limite. Finalmente, Bernard Seynhaeve nos coloca a pensar, ainda mais, sobre a presença dos corpos na experiência analítica — tema importante em tempos de análise online — e sustenta que a psicanálise lacaniana exige a presença dos corpos, tendo em vista que a interpretação pretende uma perturbação que ressoe no corpo.

Em Entrevista somos agraciados pelas palavras de Jacyntho Lins Brandão, professor emérito de Língua e Literatura Grega da Universidade Federal de Minas Gerais, que responde às perguntas sobre a interpretação, gentilmente elaboradas por Gilson Iannini. Para provocar a leitura, deixo aqui um trecho dessa entrevista: “o que os textos antigos nos ensinam sobre ‘a ciência e a arte da interpretação’ é a dificuldade. Pelo simples fato de serem antigos, mas de um modo mais agudo ainda quando se trata de nossos antigos, como são os gregos. (…) Se o outro representa uma dificuldade, o outro que é nosso impõe dificuldades maiores”.

Seguimos, então, para Encontros. O artigo de Jorge Assef parte de uma citação de Éric Laurent sobre sua análise com Lacan, através da qual trabalha as vertentes do meio-dizer, a saber, o equívoco, o enigma e os efeitos de estilo. Marisa Moretto faz a sua leitura sobre o termo “jaculatória” e considera que a interpretação nesse sentido é aquela que tem efeito de ressonância no corpo e no gozo. Ao operar um limite à decifração eterna, a experiência não mais se traduz, mas resta o impacto. “O que faz Um, marca” é o título do texto de Paula Husni, que trabalha a noção do analista traumático, ou seja, o que produz um intervalo fazendo existir o que não existe. A intervenção, nesse sentido, pode ter um efeito de experiência de vazio, o que a autora observa tomando como referência o encontro de Lilia Mahjoub-Trobas com Lacan. Ainda em Encontros será possível fazer a leitura do texto de María de los Ángeles Córdoba, que utiliza o testemunho de Hilda Doolittle sobre sua análise com Freud, mais especificamente de uma intervenção feita por ele, para dizer de uma interpretação que ocupa o lugar de uma intervenção de exceção.

Partimos, em seguida, para a rubrica Incursões, na qual estão os textos trabalhados por nossos colegas nos espaços de investigação do IPSM-MG. Mauricio Tarrab retoma e comenta outro texto de sua autoria, “A psicose e a máquina de interpretar”, afirmando que o real, fora do sentido, coloca em funcionamento uma máquina de produzir ficções, mas que, com o ensino de Lacan, é possível ir além do campo ficcional — e é esse além que o autor desdobra em seu texto. Márcia Mezêncio examina, através do filme Inocência Roubada, os efeitos, para o sujeito, de uma interpretação feita pelo discurso jurídico. Margaret Couto, em “Porque as mães de hoje não interpretam?”, coloca em questão, a partir de sua clínica, a dificuldade dos pais em traduzir o mal-estar de seus filhos, dificuldade a qual ela trabalha sob a perspectiva da inexistência do Outro. Tereza Facury discute, a partir do texto de Miller “Ler um sintoma”, o lugar do qual a psicanálise opera, um lugar “entre”, entre a escuta e a leitura. No texto “O que cabe ao analista na interpretação hoje?”, Aparecida Rosângela Silveira trabalha a interpretação no último ensino de Lacan abordando os deslocamentos teóricos-clínicos produzidos na prática da interpretação.

Chegamos a De uma nova geração. Aqui vocês encontrarão dois textos produzidos pelos alunos do IPSM-MG. Bernardo Maranhão, através de um trecho de “Televisão”, em que Lacan menciona o saber alegre dos trovadores, interroga se esse saber pode ser tomado como um referencial para a interpretação analítica. Já Marcela Greco investiga como as apresentações sintomáticas da neurose obsessiva podem ser comparadas à fenomenologia dos novos sintomas que se apresentam frente ao declínio do simbólico.

Sua leitura será ainda permeada pela beleza das imagens dos trabalhos do artista plástico/visual Mário Azevedo[1], a quem agradecemos enormemente por nos concedê-las. Agradecemos também aos autores e à equipe de publicação desta revista.

Partimos à leitura, bon voyage!

 


[1] Mário Azevedo, mineiro de Ubá, formou-se na Escola de Belas Artes da UFMG, onde lecionou Pintura entre 1994 e 2020. O artista é mestre em Poéticas Visuais, também pela EBA-UFMG, doutor em Teoria, História e Crítica de Arte, pelo IA-UFRGS (Porto Alegre/RS) complementado na Université Jules Verne (Amiens/França), e Pós-Doutor pela EBA-UFRJ. Possui trabalhos e textos publicados em revistas brasileiras e estrangeiras e produziu algumas exposições curatoriais. Com mais de 35 mostras individuais e inúmeras exposições coletivas, recebeu prêmios diversos no Brasil, além de alguns no exterior. Suas obras estão ainda em importantes acervos de museus e instituições, dentro e fora do país, bem como em várias coleções particulares.



NEUROSE OBSESSIVA: UM DIALETO CONTEMPORÂNEO?

MARCELA BACCARINI PACÍFICO GRECO
Psicanalista em formação (IPSM-MG) | Psicóloga (Fumec) e Engenheira de Produção (UFMG) |
mbpacifico@gmail.com

Resumo: Este trabalho parte de um comentário feito por Lacan em 1978 para investigar como o discurso do mestre contemporâneo e suas incidências podem privilegiar apresentações sintomáticas que se aproximam daquelas de que se vale a neurose obsessiva. Trata-se de discutir como determinados aspectos dessa forma de organização subjetiva, que foram apontados por Freud e retomados por Lacan, podem ser cotejados com a fenomenologia dos novos sintomas provocados pela decadência da ordem simbólica. Por fim, objetiva-se, também, levantar uma questão sobre a direção do tratamento nesses casos.

Palavras-chave: Neurose obsessiva, discurso do mestre contemporâneo, novos sintomas.

OBSESSIONAL NEUROSIS: A CONTEMPORARY DIALET:

Abstract: Based on a Lacan’s comment made in 1978, this work investigates how the contemporary master discourse and its incidences can privilege symptoms that are close to those that obsessional neurosis presents. It discusses how certain aspects of this form of organization, pointed out by Freud and Lacan, can be compared with the phenomenology observed in new symptoms that are related to the decay of the symbolic order. Finally, it is also intended to raise a question about the direction of treatment in these cases.

Keywords: Obsessional neurosis, contemporary master discourse, new symptoms.

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Enquanto as manifestações ruidosas que marcaram as histéricas de outrora não podem mais ser reconhecidas com frequência, os pensamentos obsedantes e atos compulsivos como os que atormentavam Ernst Lanzer parecem não ter perdido todo o seu espaço na clínica atual. Assim, as observações de Freud (1909) sobre o Homem dos Ratos ainda constituem o paradigma da neurose obsessiva.

E se, por isso, tem-se a impressão de ser esse um tema exaustivamente abordado, a razão de um retorno encontra-se, aqui, apoiada no conhecido comentário de Lacan de 1978: “Quero dizer, não é muito certo que a neurose histérica ainda exista, mas certamente existe uma neurose, isso é o que se chama neurose obsessiva”. Entre os que seguiram nessa direção, Gazzolla (2002) e Alvarenga (2019) afirmam que se trata mesmo da neurose contemporânea por excelência, resultado do declínio do pai e de sua potência na cultura. Da mesma forma, a indagação feita por Alvarenga (2019) sobre se haveria na contemporaneidade a tendência de a histeria se apresentar sob a forma da neurose obsessiva, enquanto dialeto, é tomada como mais um sinalizador da atualidade dessa discussão. Não parece anacrônico, portanto, retomar alguns aspectos que caracterizam essa organização subjetiva para compreender como e por que tal forma de apresentação da neurose se tornaria privilegiada na época do declínio da ordem simbólica.

Vale destacar que nos distanciamos de uma suposta interrogação sobre a prevalência da neurose obsessiva enquanto estrutura para nos aproximarmos da discussão sobre a apresentação de sintomas e estratégias que, como ressalta Cottet (2011), podem ser observados em outras estruturas e não são suficientes para fazer do sujeito um obsessivo. Trata-se de pensar como a relação que o sujeito estabelece com o discurso do mestre contemporâneo pode privilegiar apresentações sintomáticas que se aproximam daquelas de que se vale a neurose obsessiva.

 

O mestre contemporâneo e suas incidências

No Seminário 17, Lacan (1969-70/1992) faz referência à mutação no estatuto do discurso do mestre operada por certa modificação no lugar do saber, que lhe confere o estilo capitalista. A passagem do mestre antigo ao senhor moderno associa-se a uma “curiosa copulação com a ciência” e é apontada como aquilo que permite a manutenção e o sucesso desse discurso.

Nesse contexto, em que a palavra vira carniça, perdem força as instituições patriarcais e o valor universal do mestre, que se pulveriza através de representações de um Outro sem consistência. A decadência da ordem simbólica põe em xeque o valor da significação fálica, denunciando a dificuldade de subjetivação do falo enquanto significante capaz de orientar o sujeito pelo Outro. Com menos recursos para que o gozo possa ser metaforizado, a clínica contemporânea apresenta novos sintomas que, como indica Recalcati (2004), não manifestam o sujeito dividido, mas que se configuram pelo tratamento da divisão através do objeto. Em consonância, através de suas agências, o discurso capitalista trata de indicar e oferecer ao sujeito-gadget aquilo que lhe falta, provocando uma demanda desenganchada da dialética do desejo (RECALCATI, 2004).

Sem ter à disposição referências identificatórias ligadas ao ideal, os sujeitos tendem, como destaca Alvarenga (2019), a se identificar e coletivizar sob certos S1 que nomeiam modos de gozo e visam a tamponar o buraco da castração, impondo novas formas de compulsão que acabam se revelando como imperativo de gozo. Como consequência, caem as possibilidades de que as manifestações sintomáticas sejam reduzidas ao regime significante, ao que se associa o que Recalcati (2004) chamou de expulsão-anulação do sujeito do inconsciente.

 

A neurose obsessiva e suas estratégias

Como relembra Gazzolla (2002), as estratégias e sintomas obsessivos aparecem como resposta a impasses simbólicos relacionados a certa posição subjetiva. Tais impasses se organizam ao redor de operadores que foram valorizados por Lacan e que, em parte, já haviam sido destacados por Freud (1909/2013) no Homem dos Ratos.

Freud localiza que seu paciente padecia de um conflito psíquico que tentava conjugar amor objetal com a vontade do pai e ao qual se relacionavam desejos e impulsos contrários. O ódio inconsciente direcionado ao genitor e à dama venerada provocava desejos de morte e impulsos vingativos dos quais ele se defendia através de intensas recriminações e autopunição. Isso leva Freud a dizer que esses conflitos serviam como mola para suas construções obsessivas (FREUD, 1909/2013). Nesse caso, a dívida não saldada com o pai, o domínio da dúvida que paralisa o sujeito, a relação com a morte sempre à espreita, os mecanismos de substituição e deslocamento, o impulso de saber e até uma observação sobre a forma do paciente fazer suas orações são alguns dos aspectos encontrados no texto de Freud que contribuem para a compreensão da modalidade de gozo do sujeito obsessivo e da sua relação com o objeto, tal como Lacan trabalhou anos mais tarde.

Para Lacan, o que está colocado para todo neurótico é, fundamentalmente, uma questão sobre a existência aberta à medida que a criança falta a ser o falo da mãe. O drama subjetivo no qual o sujeito se engendra a partir daí exige uma resposta que só pode ser buscada no campo do Outro. No Seminário 5, Lacan (1957-58/1999) assinala que é aí onde deve ser descoberto, pelo sujeito, o desejo e sua formulação possível. Mas, uma vez que o falo é introduzido no conjunto de significantes, o Outro não deixa de ser, ele mesmo, marcado pelo desejo. Isso provoca dificuldades nas quais os sujeitos neuróticos claudicam já que, como Lacan (1960-61/2010, p. 273) assinala no Seminário 8, o desejo do Outro é um enigma “enlaçado com o fundamento estrutural da sua castração”.

A esse impasse, as estruturas produzem respostas diferentes. Enquanto a histérica vai buscar seu desejo no desejo do Outro, colocando ênfase na insatisfação e encontrando apoio na identificação com o outro imaginário, o obsessivo vai buscá-lo num além, visando ao desejo em sua constituição como tal mesmo que, através desse movimento, ele seja levado a almejar a destruição do Outro (LACAN, 1957-58/1999).

Empenhado nessa tarefa, sua relação com o outro é marcada por uma tendência de redução do desejo à demanda que fica, então, em posição de prevalência. Trata-se de uma manobra que tenta não só livrar o obsessivo do enigma sobre o desejo, mas lhe afastar do encontro com a falta-a-ser e que está representada no matema da fantasia obsessiva formulado por Lacan (1960-61/2010) como Ⱥ <> φ (a, a’, a’’, a’’’…). A fórmula expressa como o sujeito coloca o pequeno em série e o acomoda sobre a medida do phi (φ) para oferecê-lo ao Outro barrado. Esse movimento relança o obsessivo ao circuito primitivo da demanda, característico do período pré-genital, em que o sujeito se dirigia ao Outro para a satisfação de suas necessidades. Essa elaboração é importante para compreender a oblatividade enquanto uma das estratégias do obsessivo diante do problema do desejo.

A noção de oblatividade enquanto mítica é criticada por Lacan reiteradas vezes. Desde o Seminário 4, ele aponta para o fracasso de tomá-la como auge da maturação genital afirmando que o reconhecimento do desejo como tal é impossível dada a hiância fundamental da sua articulação. Isso o leva a dizer que a oblatividade não está situada nesse nível e não passa de uma fantasia obsessiva (LACAN, 1957-58/1999). O verdadeiro campo do dom enquanto objeto destinado a satisfazer é, como ele desenvolve, o da dialética anal, de forma que o ‘tudo para o outro’ que marca essa fantasia se associa àquilo que caracteriza a demanda nesse estágio: os objetos (excrementícios) solicitados pelo Outro (LACAN, 1960-61/2010). Através dessas formulações, ele se esforça para demonstrar como a submissão à demanda do outro de forma altruísta equivale a não resolver o problema do desejo que, “literalmente, vai à merda” (LACAN, 1960-61/2010, p. 255).

Nesse ponto, não parece incabido relacionar essas estratégias obsessivas com a formulação de Recalcati (2004), segundo a qual a clínica dos novos sintomas seria configurada mais além do princípio do desejo. Ele chama a atenção para o estatuto contemporâneo da demanda que não se mantém em relação ao desejo, que não se orienta pelo que resta não satisfeito, mas que se guia pelo próprio objeto de gozo oferecido pelo discurso capitalista. Ora, se o obsessivo quer manter o desejo à distância, a ética do consumo parece não dificultar seu trabalho.

Da mesma forma, a oferta de objetos mercantilizados pela cultura, operada sob a lógica de que são descartáveis e precisam ser permanentemente renovados, também parece se acomodar à fantasia obsessiva. Isso porque a estratégia de seriar e falicizar os objetos oferecidos ao Outro envolve, como Lacan (1960-61/2010) indicou, uma relação metonímica com o objeto, de constantes substituições, promovendo, por consequência, um afrouxamento das relações objetais conforme já havia sido apontado por Freud (1926/2014).

Segundo Lacan (1960-61/2010), a falicização dos objetos se dá ao preço de uma degradação do significante falo (Φ) ao phi minúsculo (φ), já que deixar emergir o Φ na sua forma desvelada aponta para a presença do desejo, insuportável e de difícil manejo. É nesse sentido que Lacan afirma que o fundamento da relação do obsessivo com o objeto é menos a abolição do Outro e mais a rejeição dos signos do seu desejo. Ele assinala que tal anulação só pode ser feita a nível do significante e pode ser verificada no caráter verbal da própria estrutura dos seus sintomas. O que se anula é o próprio falo enquanto signo do desejo do Outro, golpeado no plano imaginário (LACAN, 1960-61/2010). Como resultado, o desejo do Outro, estruturalmente simbolizado e articulado pelo falo, é provido do sinal ‘não’ (d0), determinando o caráter de impossibilidade associado à sua manifestação para esse sujeito (LACAN, 1957-58/1999).

Porém, à medida que, com suas estratégias, o obsessivo tenta destruir os signos do desejo do Outro para não ter que se haver com a sua falta de resposta, é seu próprio desejo que, sem ponto de apoio, desaparece. Assim, através de um movimento contraditório e dialético, preservar a dimensão do Outro em perpétuo perigo de sucumbir, ou no mínimo isolar as partes do seu discurso que precisam ser conservadas, constitui visada preliminar no circuito do sujeito e que também só poderá ocorrer numa certa articulação significante. Isso se manifesta no obsessivo através dos seus sintomas: pedidos intermináveis de permissão, bem como, a colocação do seu desejo como proibido pelo Outro, deixam o sujeito em posição de dependência e servem, portanto, a restaurá-lo. No nível da relação com o outro, uma das vias escolhidas para se obter tal permissão são suas proezas. Sempre impossibilitado de gozar das férias a que teria direito por suas façanhas, o que está em jogo para o obsessivo é preservar o Outro, que testemunha e registra tudo isso (LACAN, 1957-58/1999).

Lacan (1957-58/1999) associou essas estratégias para reconstituição do Outro com as exigências do supereu, instância que já havia sido apontada por Freud (1926/2014) como tendo um importante papel na angústia dessa estrutura. No contemporâneo, o supereu também aparece em posição de comando, mas menos numa função de interdito e mais numa vertente de imperativo de gozo. Diante de uma ordem simbólica em declínio, o sujeito é impelido a gozar por intermédio dos objetos sob a promessa de que esses teriam o poder de preencher sua falta subjetiva e de desviá-lo do encontro com a castração. Isso não só é impossível como produz o que Brousse (2007, p. 4) apontou como “expansão das patologias ligadas ao supereu”.

Sob essa égide, localizam-se diversas formas de compulsão e sintomas que compõem a clínica da neurose atual e que aparecem mais como amarração do gozo do que como produção de sentido (ALVARENGA, 2019). Efeito da dificuldade de subjetivação do falo e, consequentemente, da capacidade de se orientar pelo Outro, essas manifestações se afastam do modelo de sintoma metafórico ancorado no significante e que podia ser decifrado em função das vivências do sujeito tal como Freud (1917/2014) descreveu em “O sentido dos sintomas”. Isso porque, como assinala Miller (1997), a produção do sentido na formação do sintoma pressupõe a tomada do Outro como interlocutor.

 

O advir do sujeito

Freud (1926/2014) deixa claro que, ainda que as neuroses histérica e obsessiva tomem o mesmo ponto de partida para formação dos seus sintomas, elas se distanciam quanto ao caminho percorrido. Ele já havia localizado que, no caso do sujeito obsessivo, observa-se uma tendência geral que prioriza a satisfação substitutiva, contando, para isso, com estratégias de anulação, isolamento, regressão e formações reativas (FREUD, 1926/2014).

Alvarenga (2019) destaca que esses mecanismos estão associados ao apego do sujeito à sua relação com a realidade, sustentando a ilusão de domínio consciente, de saúde aparente e constituindo “um fechamento em relação à dimensão transferencial do sujeito histérico” (p. 78). Quando a defesa logra, o que se observa é um rechaço do inconsciente que inibe o aparecimento de suas formações. Parece ser justamente nesse sentido que Freud (1926/2014) aponta para a dificuldade de o sujeito obsessivo obedecer à regra psicanalítica fundamental. Em função do mecanismo de isolamento que despoja uma vivência traumática de seu afeto e suprime suas relações associativas, o obsessivo fia-se a dirigir o curso do seu pensamento, procurando evitar conexões que levem àquilo que ameaça o Eu.

A dificuldade de consentir com a abertura do inconsciente associada a esses modos de defesa não parece distante do que Recalcati (2004) nomeou de expulsão-anulação do sujeito do inconsciente e que aparece na clínica contemporânea como efeito da relação com os discursos do capitalista e da ciência. Sem poder contar com um Outro capaz de interpretar e conferir sentido, são produzidos sintomas que não se reduzem ao regime significante e tendem a não manifestar a divisão subjetiva, privilegiando leituras orientadas pela cognição e comportamento.

Nesse contexto, alguns casos revelam como os sintomas contemporâneos engendrados ao discurso capitalista tentam negar a dimensão da verdade do sujeito inconsciente valendo-se de S1s nesse lugar. Nesse ponto, a oposição histeria-inconsciente e neurose-obsessiva-consciência, já apontada por Freud (1926) e ressaltada por Godoy e Schejtman (2011), parece ajudar a entender a prevalência dessa forma de dialeto da neurose associada à modificação no lugar do saber do mestre.

Essa perspectiva coloca em destaque a histerização do discurso como operação preliminar da clínica contemporânea, já que tal passagem, formulada por Lacan (1969-70/1992) como condicionante à entrada em análise, faz valer a dimensão de verdade do sintoma, submetendo a vontade de curar-se à vontade de saber. Se Alvarenga (2019) aponta que, no caso da neurose obsessiva, trata-se de perturbar as defesas para sintomatizar os traços de caráter que enrijecem e fecham o inconsciente em sua dimensão transferencial, parece ser possível ampliar essa direção para pensar que se trata de fazer advir o sujeito apagado pelo discurso do mestre contemporâneo, independentemente da sua estrutura. Dito de outro modo, se Lacan (1969-70/1992) apontou que o que resta depois dessa mutação do lugar da verdade é o ‘não saber o que se quer’ (posição do antigo senhor), destaca-se o dever ético do analista de fazer advir o sujeito movido pelo desejo de saber sobre aquilo que irrompe como algo que lhe diz respeito.

 


Referências Bibliográficas:
ALVARENGA, E. A neurose obsessiva no feminino. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
BROUSSE, M.-H. “Em direção a uma nova clínica psicanalítica”. InLatusa digital, ano 5, n. 30, 2007. Disponível em: http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_30_a1.pdf.
COTTET, S. “A propósito da neurose obsessiva feminina”. In: ___. Ensaios de clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. p. 82-99.
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FREUD, S. (1926) “Inibição, sintoma e angústia”. In: ___ Obras completas. v. 17: Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). São Paulo: Cia das Letras, 2014. p. 13-123.
GAZZOLLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
GODOY, C.; SCHEJTMAN, F. “La neurosis obsesiva en el último período de la enseñanza de J. Lacan”. Anuario de Investigaciones, v. XVI, 2009, p. 91-95.
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MILLER, J. A. Seminário de Barcelona sobre Die Wege der Symptombildung. InFreudiana, n.19, Barcelona: EEP – Catalunya, 1997. p.7-57
RECALCATI, M. A questão preliminar na época do Outro que não existe. InLatusa digital, ano 1, n. 7, 2004. Disponível em http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_7_a2.pdf.

 




O QUE CABE AO ANALISTA NA INTERPRETAÇÃO HOJE?

APARECIDA ROSÂNGELA SILVEIRA
Psicóloga e psicanalista, doutora em Psicologia (UFMG)
silveira.rosangela@uol.com.br

Resumo: Este texto trata do lugar que ocupa a interpretação hoje na clínica psicanalítica a partir do último ensino de Lacan. Busca-se elucidar os deslocamentos teóricos-clínicos produzidos na prática da interpretação. Da escuta do sentido do sintoma à leitura do fora de sentido, destaca-se que a interpretação opera entre o ser da falta e a fixidez do gozo, entre o saber ler e o bem-dizer do sintoma. Assim, espera-se que do encontro com o analista possam advir saídas para o sujeito lidar com o que é da ordem de seu mal-estar.

Palavras-chave: psicanálise, interpretação, clínica.

what is the analyst’s role in interpretation today?

Abstract: This text deals with the place that interpretation occupies today in the psychoanalytic clinic from the last teaching of Lacan. This study seeks to elucidate the theoretical-clinical displacements produced in the practice of interpretation. From the listening of symptom sense to reading of what is out of sense, it is highlighted that interpretation operates between the being of lack and the fixity of jouissance, between knowing how to read and the well-spoken of the symptom. Thus, it is expected that the meeting with the analyst may provide solutions for the subject to deal with what is related to his inquietude.

Keywords: psychoanalysis, interpretation, practice.

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

As mudanças operadas na clínica psicanalítica a partir dos desdobramentos do último ensino de Lacan convidam-nos para uma importante reflexão sobre o lugar que ocupa a interpretação hoje e, consequentemente, o que cabe ao praticante da psicanálise de orientação lacaniana nesse contexto.

Neste texto nos debruçaremos na interpretação em tempos atuais. Faremos um breve percurso no ensino de Lacan em diálogo com Miller e, finalmente, desenvolveremos uma discussão para pensar os desdobramentos teóricos-clínicos acerca da interpretação na atualidade.

O primeiro ensino de Lacan, aquele do inconsciente estruturado como uma linguagem, período de seu retorno a Freud sob as insígnias do movimento estruturalista, permitiu situar o que se nomeiam estruturas clínicas como modos de funcionamento psíquico dos sujeitos. Nesse momento de seu ensino, o sintoma a ser interpretado passa pela cadeia significante. Trata-se de uma mensagem a ser decifrada e agrega um sentido. Um sintoma que busca o bem-dizer da interpretação.

Em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan (1998), ao propor a questão “Quem analisa hoje?”, aponta que o analista certamente dirige o tratamento, o que não significa dirigir o paciente, e sim fazer com que o sujeito aplique a regra analítica, a associação livre, e o analista, com suas palavras, pela operação analítica, possa produzir efeito de interpretação a partir daquilo que lhe é apresentado pelo analisante em atos e colocações.

Nesse mesmo texto, ele destaca o lugar da interpretação e sua ação a partir do conceito da função significante, assim descrito: “(…) o conceito da função do significante que capta onde o sujeito se subordina a ele, a ponto de por ele ser subornado” (LACAN, 1998, p. 599). Assim, a interpretação age como um deciframento do conteúdo que aparece na diacronia das repetições inconscientes ao longo da história do sujeito e na sincronia dos significantes para possibilitar, do lado do sujeito, uma tradução, e que, pela via do significante, a interpretação possa produzir algo novo para o sujeito.

Posteriormente, Lacan, ao recolher no texto freudiano o que Freud nomeou restos sintomáticos, analisa que o sintoma deve ser interpretado em função de um desejo e que é um efeito de verdade do sujeito. Lacan, destaca que há um resto, que se trata do real do sintoma, aquilo que nele se apresenta como sem sentido, que se repete e escapa ao simbólico. Destaca-se, nesse momento de seu ensino, a presença de um sintoma, que se inscreve no corpo que não é tocado pelo simbólico, mas pelo real pulsional, fazendo marcas, esburacando sem fazer história e sem fazer mensagem, apenas veículo da pulsão de morte inscrita no corpo. Trata-se do deslocamento do inconsciente transferencial para o inconsciente real, em que se afirma um saber no real que faz furo à máquina significante (LACAN, 2007).

Miller cita que, a partir dessa virada no ensino de Lacan, ele nomeou gozo um acontecimento de corpo de valor traumático, que não há representação, não há regulação simbólica e que retorna sempre ao mesmo lugar.  A repetição é a mola do real do trauma, o que a estrutura não alcança. Há desordem no gozo na medida em que o pensamento não se faz presente, escapa à rede de significações e não obedece a essa lei, portanto, inassimilável semanticamente (MILLER, 2012).

No último ensino de Lacan, há a inclusão do sinthoma como uma segunda versão do real e sua repetição. Em O Seminário, 23: o sinthoma, Lacan retoma as dimensões imaginário, simbólico e real para destacar o real como mola do simbólico e convida à reflexão de como se virar com isso na medida em que em relação ao real não há tradução, há o gozo.

A partir desses deslocamentos operados na teoria, pergunta-se o que cabe ao analista na interpretação hoje.

 

A prática interpretativa

Assistimos, no ensino de Lacan, a um deslocamento sobre a prática interpretativa. Se temos, no seu primeiro ensino, a interpretação como busca de sentido em relação à lei do desejo, em seu último ensino, há o convite para tocar na fixação do sujeito não articulada aos significantes, e sim ao gozo, ao que é da ordem do traumático, e sua repetição. Assim, mudanças foram operadas na prática interpretativa com a inclusão da leitura do que se repete para além do sentido, em referência ao real sem lei, que não tem ordem: “(…) um pedaço de real” (LACAN, 2007, p.133).

Com essa interpretação para além do sentido, busca-se tocar o real pulsional, que escapa ao simbólico. Não há interpretação de sentido que toque nesse real que se inscreve no corpo e promova um desvio do gozo.

A partir dos desdobramentos do ensino de Lacan, instaura-se um campo clínico em que a prática interpretativa se desloca da escuta do sentido à leitura do fora de sentido, sem, contudo, excluir a escuta do sentido. Do lado do analista, isso promove tocar o real, o modo de gozo, para além do édipo e da operação de recalcamento, em uma delicada clínica que inclui a presença de um vazio em que não se inscrevem palavras. A partir desse lugar, o analista se encontra em posição de validar o sujeito, a mensagem que vem dele, o seu sofrimento e o seu mal-estar que não cessa de não se inscrever. A palavra do analista tem uma função apaziguadora e sua intervenção tem efeito de interpretação. Do lado do analisante, o que se coloca no horizonte é a abertura para as invenções como forma de lidar com seu mal-estar.

Miller (2012), ao tratar da instauração do novo campo clínico no ensino de Lacan, promove uma reflexão em que se destaca a defasagem entre o que se escuta e o que se diz, que se compreende, que se comunica e que se apresenta como proposição de verdade. Ele nos lembra de que há duas dimensões no dito: o que alcança o ouvido e o que nele é compreendido e a defasagem entre o que se escreve e o que se lê. Aponta que o lugar da interpretação está na defasagem entre escutar e dizer, entre escrever e ler.

Não se trataria de uma interpretação suplementar, mas de considerar a existência de uma máquina de interpretações, com regras: a homofonia do lado da escuta da fala e o anagrama (as letras) para o que se inscreve. Escritura e leitura estão ligadas.  Contudo, destaca Lacan que afirma a existência de um escrito para não ser lido. Nas palavras de Miller: “(…) talvez haja no escrito algo mais ou algo mais distinto do significante” (MILLER, 2012, p. 6). A letra separa o significante do significado, sendo a letra o significante sem valor de significação. Há uma escritura na fala em que a letra é decifrada como criptograma inscrito a partir de uma língua perdida a ser constituída.

Nesse sentido, cabe à prática interpretativa fazer uma operação de leitura do escrito separado do seu valor de significação. Há um gozo que se encontra sem um significante adequado em direção à socialização. Trata-se do gozo do Um, inscrito no encontro da letra com o corpo, lalíngua.

Como pensar então a interpretação que inclua lalíngua? A partir de Miller (2012), a interpretação implica ultrapassar a relação daquilo que se escuta no que se diz. Saber ler o que está na escritura, que aponta no dizer para algo singular do sujeito, pela via do pertencimento: a fala é dele, na dimensão da lalíngua e seus equívocos pela via do gozo, em sua finalidade distinta da comunicação.

A interpretação em nível de lalíngua significa dizer que o psicanalista não se encontra em nível de comunicação, como se situa a interpretação de sentido. Nesse sentido, Miller recorre a Lacan, em “Função e campo da fala e da linguagem”, à expressão ressonância de fala e convida-nos, através desta, para restituir o valor de evocação, e não apenas comunicação direta e informação. Para ele, ressonância é “(…) uma propriedade da fala que consiste em fazer escutar o que ela não diz” (Ibid., p. 18). A ressonância aponta para a presença do significante no destino do sujeito, a palavra como aparelho do gozo, assim como se refere Lacan (1985) no Seminário 20: Mais, ainda.

Miller (2015) aponta que a leitura do sintoma vai em direção oposta à da interpretação do sentido, ou seja, é privar o sintoma de sentido. Passa-se à leitura do fora de sentido. Ainda afirma Miller: “A disciplina da leitura visa a materialidade da escrita, isto é, a letra, na medida em que ela produz o acontecimento de gozo que determina a formação dos sintomas” (p. 21). Aqui se apresenta uma dupla visada da interpretação. Há a interpretação de sentido daquilo que se escuta, mas também é preciso saber ler o sintoma visando a um “choque inicial, o que é como um clinâmen do gozo” (Ibid.), um desvio do gozo.

Portanto, a interpretação como saber ler o sintoma implica uma redução do sintoma à sua origem, que se trata do encontro material do significante com o corpo. A interpretação como saber ler visa a reduzir o sintoma ao choque da linguagem sobre o corpo, ou seja, o trauma do corpo pela entrada do significante, destacando aqui que o trauma se experimenta sempre em relação à capacidade de absorção que o corpo tem, um acontecimento de corpo. Nesse sentido, a interpretação busca perturbar a fixidez do gozo em direção à invenção do sujeito em construção de saída possível.

Na interpretação, hoje, é preciso tocar o gozo do ser falante, o significante que opera fora do sentido. Como afirma Miller (2015), a leitura do sintoma vai em direção oposta à inflação de sentido, além do enquadre edipiano e se deparando com o enquadre da topologia borromeana, novo estatuto na relação entre Real, Imaginário e Simbólico, em que a interpretação passa à interpretação do sem sentido.

 

Conclusão

A título de finalização, retomamos a pergunta central do texto: o que cabe ao analista na interpretação hoje?

Partindo do princípio de que o saber ler na prática analítica completa o bem-dizer, do lado do analista, trata-se de que o bem-dizer e o saber ler se transfiram para o analisante, que ele possa bem-dizer e saber ler o seu sintoma rumo às invenções que possam fazer borda, fazer contorno ao gozo do sintoma.

Advertidos por Lacan que um sintoma deve ser interpretado em seu sentido, mas que há um resto sintomático, nomeado por ele Real, que faz ressonância, os analistas devem interpretar do lugar onde a prática psicanalítica opera, entre escuta e leitura, entre o ser da falta e a fixidez do gozo para o qual não há resposta, mas que as palavras, do encontro com o analista, possam advir para que o sujeito possa lidar com o que é da ordem do real que escapa à significação e que produz mal-estar. 

 


Referências Bibliográficas:
LACAN, J. (1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: o Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
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MILLER, J-A. Progressos Em Psicanálise Bastante Lentos. Opção Lacaniana Online, n. 64, Ano 2012. Disponível em: http://www.ebp.org.br/old/publicacoes/opc%CC%A7a%CC%83o-lacaniana-64/ Acesso em maio 2021.
MILLER, J-A. Ler um sintoma. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. N. 70, 2015. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_escrito_na_fala.pdf