UMA INTERVENÇÃO POUCO ORTODOXA[1] 

MARÍA DE LOS ÁNGELES CÓRDOBA
Psicanalista membro da EOL/AMP |
angelescordoba2@gmail.com

Resumo: A autora faz uma leitura apurada do testemunho de Hilda Doolittle sobre a sua análise com Freud, presente no livro Por amor a Freud, no qual Doolittle se esforça para transmitir algo da experiência desse encontro de maneira vívida. A autora destaca a “atmosfera interpretativa” e o efeito do impacto do gesto e das palavras do analista sobre o corpo da analisante a partir de umas das intervenções freudianas relatadas por Doolittle — uma intervenção de exceção, pouco ortodoxa, que seguiu ressoando por muito tempo após o fim dessa análise.

Palavras-chave: Interpretação, corpo, corpo do analista, gozo.

AN UNORTHODOX INTERVENTION

Abstract: The author makes an accurate reading of Hilda Doolittle’s testimony about her analysis with Freud present in the book For love of Freud, in which Doolittle strives to convey something of the experience of this encounter in a vivid way. The author highlights the “interpretive atmosphere” and the effect of the impact of the analyst’s gesture and words on the analysand’s body, based on one of the Freudian interventions reported by Doolittle — an exceptional intervention, unorthodox, which continued to resonate for a long time, time after the end of this analysis.

Keywords: Interpretation, body, analyst’s body, jouissance.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

 Se não existisse a substância gozo, seríamos todos lógicos, uma palavra valeria como outra, não haveria nada parecido com palavra justa, a palavra que ilumina, a palavra que fere, somente haveria palavras que demonstram.
Entretanto, as palavras fazem algo muito diferente do que demonstrar, as palavras furam, emocionam, comovem, se inscrevem e são inesquecíveis. (MILLER, 2009, p. 249, tradução nossa).

 

Hilda Doolittle, em seu livro Por amor a Freud, quer transmitir algo da sua análise com ele. Podemos deduzir, da leitura de seu texto, o esforço para fazer passar algo da experiência desse encontro: “o impacto de uma língua, bem como o impacto de uma impressão, pode se tornar ‘correto’, se tornar ‘estilizado’, perder sua qualidade viva“ (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 33). “Não quero me envolver na sequência histórica rigorosa. Desejo lembrar as impressões, ou antes, desejo que as impressões me lembrem” (Ibid.).

Escolhe começar por uma intervenção cujo eco, cujo impacto sustenta sua vigência intacta por muito tempo após o fim da análise: “O próprio Professor é pouco canônico; ele bate com a mão, com o punho, no alto do encosto do antiquado sofá de crina… (…). O Professor disse: ‘O problema é — sou um homem velho — você não acha que valha a pena me amar’” (Ibid., p. 34).

Pergunto-me de que se trata essa intervenção. Para onde aponta?

Trata-se da tradução de uma verdade inconsciente? É uma via pela qual a própria mensagem retorna ao sujeito de forma invertida? Revela algo do impossível de dizer? Assinala algo do gozo que está ali em jogo na sessão analítica? A que ponto da estrutura se dirige, ao ponto de repetição ou ao de evitação? E a batida (da mão no encosto do sofá)? O que a batida toca? De que batida se trata? E essas palavras, de onde brotam? Por que são inesquecíveis para Hilda Doolittle?

 

O contexto da intervenção 

Interessa-me situar, em relação ao caso e a essa interpretação, o que Miller chama de “atmosfera interpretativa”, ou seja, o meio no qual a interpretação se produz e tem efeitos.

Hilda Doolittle foi analisante de Freud nos anos de 1933 e 1934. Ela introduz a intervenção que nos convoca relatando o que a levou, pela segunda vez, a retornar ao divã do “Professor”: soube do falecimento do analisante com quem cruzava nas escadas do consultório na entrada da sua sessão. “Voltei a Viena para lhe dizer que sinto muito” (Ibid. p. 28). Freud lhe responde: “Você voltou para tomar o lugar dele” (Ibid.), uma interpretação que parece apontar para localizar a posição do sujeito, pois Hilda Doolittle nos diz que ela andava sem rumo naquela época.

Também há algo que antecede as palavras ditas: Hilda Doolittle relata esse dizer de Freud: “Estive pensando sobre o que você disse, sobre não valer a pena amar um homem velho de 77 anos” (Ibid., p. 115). Ela deixou claro que tinha dito que temia que não valesse a pena, ao que ele respondeu com silêncio e um sorriso irônico.

 

Do efeito da interpretação

“Conscientemente, eu não percebia ter dito alguma coisa que pudesse explicar a explosão do Professor. E enquanto eu girava, encarando-o, minha mente estava distanciada o suficiente para me perguntar se aquilo era alguma ideia dele para acelerar o conteúdo analítico ou redirecionar o fluxo de imagens associadas. (…).

O impacto de suas palavras foi terrível demais — eu simplesmente não senti nada. Não disse nada. O que ele esperava que eu dissesse? Foi exatamente como se o Ser Supremo tivesse martelado com o punho no encosto do divã onde eu estava deitada. Por que, afinal de contas, ele fez aquilo? Ele devia saber tudo, ou não sabia nada. Ele devia saber o que eu sentia. Talvez soubesse, talvez fosse daquilo que se tratasse. Talvez, no fim das contas, fosse apenas um ardil, algo para me chocar, para quebrar alguma coisa em mim de que eu estava parcialmente consciente — algo que não iria, que não deveria ser quebrado. Eu estava ali porque não deveria ser quebrada” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34).

Recorto: primeiro, um efeito de perplexidade “simplesmente não senti nada”, um vazio, o encontro com algo inesperado.

É em um segundo momento que aparecem as primeiras interpretações da analisante, algo o chateou, era para acelerar a análise, um recurso para impressioná-la. Tal como Freud aponta em “Análise terminável e interminável” (1937/1980), o analista torna-se um homem estranho que dirige propostas desagradáveis e isso está em conexão com o choque dos mecanismos de defesa.

Algo que perturba: “O impacto de suas palavras foi terrível demais” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34). Algo que impacta o corpo e, portanto, tem valor traumático. Por que essas palavras impactaram desse modo? Nessas palavras se fez presente, de modo contundente, o corpo do analista, “ele bateu no meu travesseiro, ou no suporte para cabeça do velho divã (…)” (Ibid., p. 99).

Trata-se do analista-corpo que encarna algo do não simbolizável do gozo? Um impacto que a força a ocupar seu lugar? Ela nos diz que estava bastante afastada, que se recusava a entregar algo, e o efeito quase imediato foi deslizar-se novamente sobre o divã, “sorrateiramente”. A força a ocupar o seu lugar no próprio tempo da sessão.

Uma interpretação que ressoa no corpo, que faz com que essa seja uma intervenção de exceção. É surpreendente o estilo dessa intervenção, Freud acompanha com o corpo, com o golpe no divã, com um tom inédito, o seu dizer.

Chama a atenção a posição, a atitude de Freud como intérprete, tal como Miller assinala em seu texto “La palabra que hiere” (2009/2018). É a maneira que Freud se propõe como parceiro (partenaire) na experiência analítica. Lá onde Hilda Doolittle se evade, se esquiva, não ocupa seu lugar, Freud a faz presente presentificando-se.

E isso tem ressonâncias indeléveis. No começo de seu texto “Escrito na parede” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 26), nos conta o último contato que teve com Freud. Umas pequenas linhas que ele lhe escreveu em agradecimento por umas flores que ela lhe mandou, mas o detalhe é que ela não assinou o cartão. Freud responde: “Sem assinatura. Desconfio que você seja a responsável pelo presente. (…) Em todo caso, afetuosamente” (Ibid., p. 31). Essa correspondência a remete a essa intervenção pouco ortodoxa e aos seus efeitos; Hilda Doolittle continua a ler um aborrecimento (el enojo) na despedida, o eco do impacto daquelas palavras ressoa.

 

Tradução: Julia Buére
Revisão: Giselle Moreira

 


Referências:
FREUD, S. (1937/1980). “Análise terminável e interminável”. Ediçăo standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 23, p. 239-287.
MILLER, J.-A. (2009) “La palabra que hiere”. In: Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, año XIII, Buenos Aires: Escuela de la Orientación Lacaniana, 2018. p. 23-26.
MILLER, J.-A. Sutilezas analiticas. Buenos Aires: Paidós, 2009.
DOOLITTLE, H. (1956) Por amor a Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.

 


[1] Texto originalmente publicado na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, ano XIII, nov. 2018.



 A INTERPRETAÇÃO JACULATÓRIA[1] 

MARISA MORETTO
Psicanalista, membro da EOL/AMP
marisamoretto@fibertel.com.ar

Resumo: A autora traz nuances da discussão teórica sobre a interpretação jaculatória situando-a no limite da palavra quando já não é mais possível o desdobramento da cadeia significante e pergunta se tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toca o corpo e incide no campo do gozo. Ali, onde a palavra se apaga, estaria o impacto, o que faz ressoar outra coisa que não a significação. Para Miller, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna.

Palavras chave: Interpretação jaculatória, jaculação, ressonância, gozo.

JACULATORY INTERPRETATION

Abstract: The author brings nuances in the theoretical discussion about the jaculatory interpretation, placing it at the limit of the word, when the unfolding of the signifying chain is no longer possible, and asks if it would be an effect of meaning that, by its resonance, touches the body and it focuses on the field of enjoyment. There where the word is erased is the impact, which makes something other than the meaning resonate. For Miller, it is an interpretation that precipitates an “it is like this” ending the urge to continue seeking the eternal decipherment.

Keywords: Jaculatory interpretation, jaculate, resonance, enjoyment.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

O termo jaculatório, segundo o dicionário da RAE[2], designa uma oração breve e fervorosa. Seus sinônimos são: oração, prece, reza e invocação. Não só os cristãos a usam em suas preces. O Alcorão começa todas as suratas[3] com uma jaculatória.

Por que Lacan emprega esse termo, usado na cultura religiosa, para se referir à interpretação? Será porque a interpretação opera de maneira religiosa, ou é uma questão de fé, ou, talvez, de sugestão? É certo que também tem usos literários, aplica-se em sentido figurado a uma frase ou estribilho curto, repetitivo e sentencioso.

Entretanto, a expressão jaculatória é utilizada por Lacan não só em referência à interpretação, mas ao limite da significação, quer dizer, como cadeia rompida. Assim o li pela primeira vez em “De uma questão Preliminar a todo tratamento possível das psicoses” (LACAN, 1955-56/1998). Ali Lacan situa a opacidade nas jaculatórias do amor quando, diante da escassez do significante para chamar o objeto de seu epitalâmio[4], usa, para isso, o expediente do imaginário mais cru: “Eu te como… — chuchuzinho”. “Estás todo derretido… — gato!” (Ibidem, p. 541). Um significante que não faz cadeia expressando-se com crueza. Assim se expressam, a palavra de amor ou o insulto, diante da impossibilidade de significar de forma acabada.

Como adjetivo ele deriva do latim jaculari, que é: lançar. A jaculatória é lançada com fervor e tem entonação. Recordo, em analogia, o Homem dos Ratos quando, para insultar, expressava qualquer palavra despojada do enunciado. Desde muito pequeno, nos conta Freud, ao ser castigado por seu pai, uma ira se apodera dele e, como ainda não conhecia as más palavras, recorre então a nomes de objetos que iam lhe ocorrendo: “Eh, tu, lâmpada, lenço, prato! (FREUD, 1977, p. 208). O significante chega a um limite em que só é compreensível por sua dimensão de ato. Então, não se trata das palavras, mas do lançado. Modo que indica aquilo que não pode ser capturado pelo conceito, que não pode ser traduzido. Também em analogia em seu livro sobre o chiste, Freud se refere ao disparate, esses lançamentos que só em aparência são chistes, frequentes no balbucio infantil e também nas psicoses (FREUD, 1977, p. 148). Sem sentido, significantes que não fazem cadeia. Até aqui consideramos a jaculatória expressão que exterioriza o caráter nativo do sujeito com o significante, assim desenvolve Gorostiza em seu texto “O princípio do ininterpretável” (2014). Em seu texto “A interpretação-jaculação”, Laurent (2018) toma a aula do Seminário RSI (LACAN, 1975), de 11 de fevereiro de 1975, e faz referência ao dizer do analista: “Esse dizer do analista que põe em entredito as categorias linguísticas da enunciação e do enunciado. É a isso que Lacan pôde dar, entre outras, o nome de jaculação”. Vamos ao Seminário, Lacan situa:

“Antes de tudo se coloca a questão de saber se o efeito de sentido em seu real se sustenta no emprego das palavras — digo o emprego no sentido usual do termo — ou somente em sua jaculação. Muitas coisas, desde sempre, tem-lo feito pensar; mas deste emprego desta jaculação não se fazia a distinção. Acreditava-se que eram as palavras que as que produzem. Enquanto, se nos dermos ao trabalho de isolar a categoria do significante, vemos bem que a jaculação conserva um sentido, um sentido isolável.”

A palavra se apaga, a experiência não pode se traduzir, não obstante, o impacto está. De que sentido isolável se trata a diferença de uma palavra? Isso que lança e faz ressoar outra coisa que a significação. Quer dizer que não aponta para a continuação do desdobramento da cadeia significante. Tratar-se-ia de um efeito de sentido que, por sua ressonância, toque o corpo e incida no campo do gozo?  Em “Sutilezas analíticas”, Miller dirá: “Uma análise é concebível onde uma jaculação pode retificar… o gozo, isto é, que possa ser concebido como satisfatório” (2011, p. 268).

Alguns anos depois, em “O ser e o Um” (2011), Miller não falará de jaculação senão de constatação ou delimitação a propósito da interpretação. Assinala que, tratando-se do gozo impossível de negativizar e já havendo dado várias voltas sobre as verdades mentirosas que se constroem da má maneira diante do real que não enlaça com nada, trata-se de uma interpretação que precipita um “é assim” cessando o afã de continuar buscando a decifração eterna. Da mesma maneira que o insulto ou a palavra de amor no dizer do sujeito delimita, constata o impossível de seguir pondo em palavras, já que não há S2 que signifique adequadamente — no sentido da inadequação, do não enlace, enfim, do real —, a interpretação jaculatória delimita, constata isso mesmo, e seu efeito é um gozo que, ainda iterando e intraduzível, é satisfatório. Então — não sei bem como ocorreu a Lacan a jaculatória que tem usos religiosos —, vale a pergunta se, por acaso, essa constatação jaculatória não tem, dado seu alcance transferencial, um caráter de crença. Se se trata do que resta, de uma marca, de um fora-de-sentido, no dizer de Laurent, isso que terminou por apagar a falsa cantoria da crença no sintoma, isso é, então, uma questão de crença? Como transmitir uma constatação, como fazê-la passar de uma boa maneira, para não ficarmos sugestionados e repetirmos ferventemente HáUm![5] Cada trabalho de Escola é instrumento para tentar, um a um, não obstaculizar cada descoberta incomparável que cerniu o analisante via sua jaculatória.

No limite, então, a transmissão será compreensível em ato, um por um e a cada vez. Parafraseando Vicente Palomera, em sua conferência dada na noite preparatória das Jornadas Anuais do último três de outubro, “Estes traços são estes e não são outros os que se pôde isolar, faz-se algo com eles e isso se corporifica”.

A pergunta freudiana se renova: qual é a diferença essencial entre o analisado e o não analisado? (FREUD, 1977, p. 260). Pareceria que, naquele não analisado, tanto a palavra de amor quanto o insulto ou o disparate possuem o mesmo estofo que escutamos nos finais da experiência analítica. Entretanto, não é do mesmo modo que uma palavra de amor ou a injúria jaculam tentando cernir em ato um gozo opaco ao sentido, ou a criança que balbucia via disparate, ou o Homem dos Ratos lançando expressões ante a fúria pelo castigo paterno, que, como em alguns testemunhos de passe, o analisante isola certa marca que se corporifica de uma boa maneira, ou de maneira satisfatória, via interpretação jaculatória. Um analisado é alguém que passou pela crença no sintoma até apagar sua sede por esses sentidos que o faziam sofrer demais. A interpretação-jaculação tratará então de deixar “… o analisante ter confiança no sinthoma que ele inventou, enquanto puder” (GUÉGUEN, 2012). Constatação, então. Ou, melhor dizendo, “desembrulhar-se, mas sem tomar a coisa em conceito” (LACAN, 1977).

 

Tradução: Tereza Facury
Revisão: Beatriz Espírito Santo 

 


Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1909) “A propósito de um caso de neurose obsessiva”. In: Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. X, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD, S. (1905) “O chiste e sua relação com o inconsciente”. In: Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. VIII, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD, S. (1937) “Análise terminável e interminável”. In: Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXIII, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
GOROSTIZA, L. “El principio de lo interpretable”. In: Resonancias, Revista de Psicoanálisis del Nuevo Cuyo N°1, Grama ediciones, Buenos Aires, 2014.
GUÉGUEN, P-G. “La interpretación lacaniana”. In: Revista Psicoanalítica publicada em Barcelona sob os auspícios de La Escuela Lacaniana de Psicoanálisis. n. 64. Distribui: RBA Libros, S.A, 2012.
LACAN, J. (1955-1956) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 541.
LACAN, J. (1974-1975) O Seminário, livro 22: R.S.I. Aula de 11 de fevereiro de 1975. Inédito.
LACAN, J. (1976-1977) Seminário 24, aula de 11 de janeiro de 1977. Inédito.
LAURENT, E. “La interpretación-jaculación”. 2018. Disponível em: <https://psicoanalisislacaniano.com/la-interpretacio-jaculacion>. Acesso em: 24/05/2021.
MILLER, J-A. (2011) Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós. 2011.
MILLER, J-A. (2010-2011) “El ser y el Uno”. Aula de 11 de maio de 2011. Inédito.

[1] Texto originalmente publicado em: Somos todos religiosos? GOROSTIZA, L. [et al.]. Compilado por Ruth Gorenberg; Claudia Lazaro, 1ª ed.  Olivos: Grama Ediciones, 2020.
[2] Dicionário da Real Academia Espanhola. Disponível em: https://dle.rae.es/ (Nota do tradutor).
[3] N.T.: Sura, surata ou surat é o nome dado a cada capítulo do Alcorão.
[4] N.T.: Epitalâmio (do grego epithalámion – epi, sobre + thalamium, o tálamo, ou quarto nupcial) é um cântico nupcial de natureza religiosa, destinado a reivindicar para os noivos a bênção dos deuses, em especial de Himeneu, a divindade protetora dos enlaces matrimoniais.
[5] No texto original em espanhol: ¡Haiuno!



O QUE FAZ UM, MARCA[1][2]

Paula Husni
Membro da Escuela de Orientación Lacaniana EOl/AMP |
paulahus@gmail.com

Resumo: A autora faz referência ao encontro de Lilia Mahjoub-Trobas com Lacan e os efeitos de uma intervenção do analista que toca o corpo, ressoa e faz eco perturbando as defesas e inserindo um menos. Com seu corpo, o analista inscreve uma hiância ao se prestar a representar o não simbolizável do gozo. O analista advém no lugar do trauma ao provocar um vazio, o Um a menos que instaura a presença da falha da não relação sexual.

Palavras-chave: corpo, analista traumático, Um a menos, gozo.

What does one, signs

ABSTRACT: The author makes reference to the encounter between Lilia Mahjoub-Trobas and Lacan and the effects of an intervention by the analyst that touches the body, resonates and echoes, disturbing defenses and inserting a minus. With his body, the analyst inscribes a gap, as he lends himself to representing the non-symbolizable of jouissance. The analyst takes the place of trauma by provoking an emptiness, the One less he introduces the presence of the failure of the non-sexual relationship.

Keywords: body, traumatic analyst, One less, jouissance.

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

“Nada gera mais velocidade que aquilo que detém”
(MILLER, 1998, tradução nossa)

 

Em uma pequena nota, anterior ao começo do seminário “Los signos del goce” (MILLER, 1998), encontramos um esclarecimento a respeito dos diversos equívocos possíveis em torno do título desse seminário em francês — Ce qui fait insigne. Recorri a esse ponto para o título do meu comentário incluindo uma maiúscula ao Um.

É nesse mesmo seminário que Jacques-Alain Miller assinala que, diferente do hábito que indica sempre o mesmo, o que faz insígnia é o que faz que um não caminhe do parecido ao mesmo e abre o encontro com o que manca.

Penso que a intervenção escolhida do caso de Lilia Mahjoub-Trobas segue essa lógica apresentando um “encontro que pôs fim a uma série” (1995. p. 31) e produzindo um tropeço nesse caminho que ia do parecido ao mesmo. Efetivamente, prévio ao seu encontro com Lacan, relata oito tentativas malsucedidas, que não vão além da primeira entrevista ou de uma ligação telefônica. Todos sob um denominador comum: ninguém a cobra.

O que é que faz, do encontro com Lacan, Um que não faz série senão que a detém, descompletando-a?

Tomarei a intervenção a partir de seus efeitos: existe a experiência de um vazio que descompleta uma série e que persiste depois de ter deixado o analista. Isso verifica que o corpo foi tocado e que isso ressoa e faz eco; presença que perturba, que transtorna.

Proponho pensar que o que permite a operação de esvaziamento é a intervenção do analista no corpo representando o não simbolizável do gozo. É o vazio que instaura essa presença, o que retroativamente marca o Um a menos.

Lacan, no Seminário, livro 19: … ou pior (1971-72/2012), distingue o Um da série, da repetição, do Um que é marcado como tal a partir da inscrição de um vazio.

O Um que se repete faz série, contabiliza, mantém o corpo adormecido em um devir sincopado. A rasteira que subtrai interrompendo a contagem faz tropeçar e transtorna o corpo.

Nesse mesmo Seminário, estabelece que “o primeiro passo da experiência analítica é introduzir nela o Um, como o analista que se é” (LACAN, 1971-72/2012, p. 123).

E acrescenta: “Quando alguém me procura no meu consultório pela primeira vez (…) o importante é a confrontação de corpos. É justamente por isso partir desse encontro de corpos que este não entra mais em questão, a partir do momento em que entramos no discurso analítico” (LACAN, 1971-72/2012, p. 220).

Esse movimento se vislumbra muito bem em uma parábola do caso em três movimentos precisos:

“Não fez comentários quando lhe disse o que havia acontecido com aqueles a quem havia encontrado antes dele. Mas não manifestou nenhuma indiferença. Chegou um pouco mais perto — estava realmente muito perto” (MAHJOUB-TROBAS, 1995, p. 35, tradução nossa), afirma Lilia.

A mão é estendida junto com as frases: “Você me dará algo” e, depois, “Dê-me o que tem”.

No final do relato, situa-se bem esse ponto em que o corpo pode ser subtraído: “Vim ontem, mas você não pôde me receber, estava de cama. Como! — me disse —, claro que eu podia recebê-la!” (MAHJOUB-TROBAS, 1995, p. 35, tradução nossa).

Irei me deter no segundo tempo. Aquele que, junto com essa mão, desse corpo, instaura uma diferença com o resto da série, subtrai em ato, subtração no real. O que faz furo no saco para que haja Um (LACAN, 1971-72/2012).

“Você me dará algo” marca o instante que funda a inscrição de uma cessão de gozo. “Dê-me o que tem” é, por outro lado, uma frase que se presta ao equívoco. Para dar o que não se tem a quem não o é (LACAN, 1960-61/2010) é preciso, primeiro, instaurar uma hiância que produza um menos.

O sentido fica do lado do analisante, está claro. O analista dá um corpo a esse significante que o representa (LACAN, 2011).

A intervenção pode muito bem ser lida sob as coordenadas do analista traumático. Um analista que reduplica o efeito traumático da imersão do sujeito na linguagem já que “comporta, em seu centro, uma não-relação. (…) o analista ocupa o lugar da perda essencial do objeto. (…) ele consegue estar, ele próprio, no lugar do trauma” (LAURENT, 2004, p. 26).

O caso ilustra que, para que o analista advenha no lugar do trauma que descompleta o simbólico, deve se produzir uma hiância trazendo aquilo que não é do mesmo nível que a palavra: o corpo. Com seu ato, faz existir o que não existe (MILLER, 2003, p. 42) para fazer da falha estrutural da não-relação sexual um vazio que permita instalar a transferência a partir do Um a menos.

 

Tradução: Renata Mendonça
Revisão: Julia Buére

 


Referências Bibliográficas
LACAN, J. (1960-61) O Seminário, livro 8: a Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
LACAN, J. (1971-72) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LACAN, J. (1971-72) Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte Anne. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
LAURENT, E. “O trauma ao avesso”. InPapéis de Psicanálise, Belo Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, n. 1, v. 1, 2004, p. 21-28.
MAHJOUB-TROBAS, L. “El encontro com el Outro em la serie de los analistas”. In¿Conoce usted Lacan? Barcelona: Paidós, 1995.
MILLER, J-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J-A. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998.

[1]Texto originalmente publicado na Revista Lacaniana, n. 25, ano XIII, nov. 2018.
[2] Em português  se perde o uso deste equívoco homofônico, possível em espanhol, entre Insigne e Lo que hace Un, signa  do qual a autora se vale no título.



A INTERPRETAÇÃO LACANIANA: MEIO-DIZER, POESIA, ESTILO[1] 

JORGE ASSEF
Psicanalista, membro da EOL/AMP |
jorgepabloassef@hotmail.com

RESUMO: O autor recorre a uma citação de Éric Laurent referente a um episódio do início de sua análise com Lacan e, a partir desse exemplo, aborda as três vertentes do meio-dizer implicadas na estrutura da interpretação tal como propostas por Lacan: o equívoco, o enigma e os efeitos de estilo.

PALAVRAS-CHAVE: Interpretação, meio-dizer, enigma, citação, efeitos de estilo.

LACANIAN INTERPRETATION: HALF-SAYING, POETRY, STYLE

ABSTRACT: The author uses an Éric Laurent’ quote in which he refers to an episode from the beginning of his analysis with Lacan and, through this example, he addresses the three aspects of the half-saying proposed by Lacan: the misunderstanding, the enigma, and the effects of style.

KEY WORDS: Interpretation, half-saying; enigma, citation, style effects.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

“Nas entrevistas preliminares, apresentei a Lacan toda uma confusão de coisas pedindo, acima de tudo, para que não me aceitasse em análise, porque eu estava muito extraviado, era muito jovem e muito privilegiado em comparação com outros que não podiam demandar análise. Lacan concluiu essas entrevistas garantindo que a idade era perfeita para começar uma análise, meu extravio também, e que, quanto ao privilégio, eu não tinha nenhuma ideia do que dizia.

E ele disse uma frase cuja harmonia ainda ressoa e cujos múltiplos sentidos foram pouco a pouco se esclarecendo. Hoje transcrevo essa frase assim: todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que é a sua própria vida. Para isso não é necessário fazer uma análise. O que a análise realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A contração do tempo — que permite o conto — produz efeitos de estilo. A psicanálise te permitirá descobrir efeitos de estilo que podem resultar interessantes” (LAURENT, 1995, p. 37, tradução nossa).

 

As vertentes do meio-dizer

No Seminário 17, Lacan apresenta a estrutura da interpretação como um saber enquanto verdade e que, como tal, não pode mais que meio-dizer. Dessa forma, propõe duas vertentes desse meio-dizer: o enigma e a citação:

“Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso do psicanalisante, e que você, o intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo (…). Citação, por outro lado, tomada, às vezes tirada do mesmo texto, tal como foi enunciado. Que é aquele que pode ser considerado uma confissão, desde que o ajuntem a todo o contexto. Mas estão recorrendo, então, àquele que é seu autor” (LACAN, 1969-70/1992, p. 38).

Lacan também adverte que a estrutura do meio-dizer está na figura do oráculo, o qual “não revela nem oculta: (…) ele faz signo” (LACAN, 2003, p. 555).

Desde “O aturdito” em diante, o meio-dizer toca no equívoco:

“É unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. (…) Esse dizer, para que ressoe, para que consoe, outra palavra do sinthoma masdaquino, é preciso que o corpo lhe seja sensível” (LACAN, 1975-76/2007, p. 18).

Nessa última vertente da interpretação como meio-dizer, além do corpo, Lacan remete à função do escrito, dado que a interpretação que sabe jogar com o equívoco apela ao escrito na palavra e ao uso de lalíngua (LAURENT, 2016).

Em 1967, Éric Laurent consulta Jacques Lacan e a primeira intervenção de que Laurent se recorda nos permite localizar as três vertentes do meio-dizer que comentamos. Em primeiro lugar, encontramos uma das formas mais simples do equívoco, quando Lacan transforma as razões que o analisante supõe como contraindicações para seu tratamento (o extravio e a juventude) em condições ideais para começar uma análise. Em segundo lugar, aparece a citação quando Lacan retoma as palavras do analisante “demasiado privilegiado” agregando “você não tem nenhuma ideia do que diz com isso”, o que provoca um enigma. Por último, a intervenção adquire um tom oracular quando Lacan anuncia ao analisante que, com a psicanálise, descobrirá “efeitos de estilo”.

 

Convocar o estilo pela via da poesia

Quando Laurent retorna àquela primeira sessão com Lacan, afirma que a psicanálise é uma experiência narrativa (o que implica a escrita), localiza as condições do romance e do conto destacando a contração do tempo, mas principalmente para lembrar que, em 1977, Lacan precisou que os recursos do analista provêm da poesia:

“se o analista é poeta, o sujeito pode se converter nesse personagem essencial que é o vazio que circula pelo poema. A sessão breve, que prefiro qualificar de contraída, tem esse horizonte: fazer do sujeito o vazio do haiku[2] de sua enunciação” (LAURENT, 1995, p. 37, tradução nossa).

Em uma antiga conferência, J. A. Miller enumerava rapidamente as distintas faces da interpretação lacaniana — “fazer ressoar, fazer alusão, sobre-entender, fazer silêncio, fazer de oráculo, citar, fazer enigma, meio-dizer, revelar” — para explicar que é o inconsciente mesmo quem faz essa tarefa como ninguém e, portanto, a interpretação analítica deveria oferecer outro horizonte. Miller o designa assim: “revelar uma opacidade irredutível na relação do sujeito com lalíngua” (MILLER, 1996 apud ASSEF).

O que Laurent retoma da primeira interpretação de sua análise, quando Lacan lhe diz “a contração do tempo que o conto permite produz efeitos de estilo”, e a maneira como essas palavras o remetem à poesia e ao vazio, nos mostra que, já nesse momento, Lacan tinha como meta reduzir o sentido do romance até chegar em uma opacidade irredutível, porque, uma vez que o sujeito se encontra com essa opacidade, resta-lhe apenas uma saída: o que cada um pode inventar, também graças à análise.

Laurent destaca uma citação do Seminário 22 em que Lacan localiza um efeito de sentido real provocado pela interpretação: “(…) o que, no Seminário 22, designando um efeito de sentido real, é chamado de jaculação, torna-se, no Seminário 24, o significante novo” (LAURENT, 2018, p. 61). A propósito, Miller explica: “Quando se apela a um significante novo, trata-se, de fato, de um significante que poderia ter um outro uso” (MILLER, 2007/2014). Por essa via, estaria em jogo justamente a noção de estilo a qual Lacan apela na primeira entrevista de Éric Laurent.

Um ano antes daquele encontro, Lacan havia publicado uma nova edição dos seus Escritos e, no texto introdutório, escreveu “O estilo é o homem” e logo esclareceu: “Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si” (LACAN, 1966/1998, p. 11). Efetivamente, é disso que se trata!

 

Tradução: Giselle Moreira
Revisão: Tereza Facury

Referências
LACAN, J. (1966) “Abertura desta coletânea”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1969 – 1970) O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. (1975 – 1976) O Seminário, Livro 23o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 18.
LACAN, J. “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”. InOutros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 555.
LAURENT, É. “Cuatro observaciones acerca de la inquietude científica de Jacques Lacan”. In: Conoce usted a Lacan? Paidós, Barcelona, 1995.
LAURENT, É. “O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo”. InOpção Lacaniana. São Paulo, n. 13, 2016.
LAURENT, É. (2018) “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. InOpção Lacaniana, São Paulo. Tradução: Sergio Laia, Revisão: Vera Avellar Ribeiro, São Paulo, n. 79, julho/2018.
MILLER, J. A., “Entonces Sssh…”. In: Uno por Uno, Revista mundial de Psicoanálisis, Eolia, Barcelona, 1996. p. 8-12.
MILLER, J. A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014, p.145.

[1] Texto originalmente publicado na Revista Lacaniana, n. 25, ano XIII, nov. 2018.
[2]Haiku. Breve composição poética, de origem japonesa (também chamada hokku, haikai ou haicai) que se funda nas relações profundas entre homem e natureza e obedece à estrutura formal de 17 sílabas ou fonemas, distribuídos em 3 versos. Acessado em 30/06/2021: https://edtl.fcsh.unl.pt



ALMANAQUE ENTREVISTA JACYNTHO LINS BRANDÃO

 


Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, Jacyntho Lins Brandão lecionou língua e literatura grega de 1977 a 2018, foi diretor da Faculdade de Letras por duas vezes e vice-reitor da Universidade. Foi também professor visitante na Universidade de Aveiro, em Portugal, na Universidad Nacional del Sur, na Argentina e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. Atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Ouro Preto e membro da Academia Mineira de Letras.

Almanaque: Para todos nós que amamos textos, letras, escritos, seu trabalho é uma referência. De certa maneira, nós psicanalistas também trabalhamos com textos antigos, de certa forma bastante arcaicos: precisamos ler — ou mesmo decifrar —, no texto que escutamos do que nossos analisantes nos dizem, camadas de texto recobertas por outras camadas. Precisamos interpretar. Mas que diabos é isso? No Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, temos estudado o tema da interpretação ou as diferentes modalidades de intepretação: entre o sentido (ou uma determinada concepção de sentido) e o fora-de-sentido (idem). Assim, para começo de conversa e de maneira bem geral, dizendo a primeira coisa que lhe ocorrer, o que os textos antigos nos ensinam sobre a ciência e a arte da interpretação? E o que as poéticas e as retóricas antigas nos ensinam hoje sobre o vasto domínio da interpretação? 

JACYNTHO BRANDÃO: O que me ocorre logo, a partir de sua provocação, é que o que os textos antigos nos ensinam sobre a “ciência e arte da interpretação” é a dificuldade. Pelo simples fato de serem antigos, mas de um modo mais agudo ainda quando se trata de nossos antigos, como são os gregos. Sempre lembro para meus alunos que, tendo-nos acostumado já com a ideia de alteridade, costumamos pensá-la só numa dimensão espacial, sincrônica, esquecendo-nos de que os antigos são também nossos outros. Se o outro sempre representa uma dificuldade, o outro que é nosso impõe dificuldades maiores.

Vou dar um exemplo prático: quando estive como professor visitante em Portugal (na Universidade de Aveiro), a primeira coisa que perguntei a um colega, logo que cheguei, foi como é que o professor se dirigia aos alunos, com qual pronome, uma dúvida que eu não teria caso estivesse num país de língua estrangeira. Fiquei logo sabendo que o tratamento normal era “você”, mas não por algum tipo de igualitarismo, como no Brasil, mas porque essa é a forma de alguém mais importante dirigir-se a alguém menos importante, o que significa que um aluno jamais diria “você” a um professor — aliás, o torneio para eles é “o professor-doutor”. Entre o reles você e as formas de tratamento solenes, há outras gradações: se formos colegas, mas não tão íntimos para usar “tu”, um modo intermediário é usar o nome daquele com quem se fala — como numa vez em que cheguei a Coimbra e minha colega de lá perguntou-me: “o Jacyntho fez boa viagem”?. Então, é a mesma língua, mas não inteiramente própria, algo como minha língua outra. Manusear essa língua sem impropriedade ou ridículo acaba sendo mais difícil do que falar uma língua estrangeira, que sempre se fala como outro, tanto que minha solução foi dizer a meus alunos, no primeiro dia de aula, “vou falar brasileiro”, o que, reconheço, era um modo de me resguardar de minha falência em falar “português” assumindo minha alteridade mesmo no espaço de minha língua materna, restando então perguntar sobre o que seria “materno” no âmbito da língua (de um modo meramente lúdico, me ocorre que talvez o “português” seja meu idioma paterno, ao “brasileiro” cabendo a parte materna, a relação entre os dois sendo como disse Caetano Veloso: “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões” etc.).

Acho que são esses afastamentos que as diferenças entre outro e outro provocam que geram as dificuldades que geram a necessidade ou o desejo de interpretação. Eu não quero dizer diferença entre eu e o outro, porque, dependendo das ideologias, um dos dois seria tomado como referência, mas sublinhar esse “outro e outro” que deixa as coisas um tanto mais complicadas — “outro e outro” sendo como se diz em grego o que nós dizemos em português “um e outro”: állos kaì állos ou, como mais ênfase na diferença, héteros kaì héteros. Acho que não seria absurdo pensar que todo texto é uma alologia, enquanto é do outro, ou uma heterologia, porque do diferente. E por isso que todo texto é sempre difícil.

Chegando à última parte de sua pergunta: eu gosto do esforço de discernimento sobre os modos de ler um texto feito por Tzvetan Todorov no capítulo “Ler”, do livro Poética da prosa. Na ordem em que ele os apresenta (vou deixar de lado o último), o primeiro modo é constituído pela “leitura regressiva”, que se interessa pelo que há antes do texto, o autor, sua época etc., acreditando que nisso estaria uma chave para a compreensão. O segundo modo é o “comentário”, que se volta inteiramente para os elementos do próprio texto, com escrúpulo de introduzir nele algo estranho, até o limite das leituras parafrásticas. O terceiro modo é a “leitura poética”, que busca a compreensão do texto tendo em vista as categorias a que ele pertence, como os gêneros e modos, tecendo, portanto, uma leitura entre texto e teoria. O quarto modo é a “interpretação”, que produz um outro texto como resultado do encontro entre texto e leitor (ou ouvinte, pois uso “leitor” no sentido de recebedor, “texto” abrangendo tanto textos orais quanto escritos). Mesmo que Todorov chame de interpretação apenas um dos modos que apresenta, eu acredito que todos devem ser mobilizados na interpretação em sentido amplo, ou seja, estou querendo dizer que ler é sempre interpretar, porque ler implica sempre a relação texto-leitor que produz um novo texto. Os outros níveis, contudo, são importantes para controlar essa produção, que não pode se entregar ao aleatório, gerando interpretações equivocadas.

Maria Luiza Ramos contava um caso curioso a propósito do poema de Manuel Bandeira que começa assim “Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável)/ talvez eu tenha medo. / Talvez sorria, ou diga: / – Alô iniludível!”, dando o poema em aula e pedindo que os alunos interpretassem, um deles afirmou que a “Indesejada das gentes” era a sogra! É claro que, tendo em vista o poema, se trata de uma interpretação equivocada, que leva de “morte” a “sogra”, embora essa própria interpretação possa ser interpretada justamente no que tem de desviante — e estaria perfeita, por exemplo, num contexto cômico ou satírico, mas, na situação em que se deu a professora que ensina como interpretar, auxiliada pela teoria, apontaria um desvio de gênero, porque não se trata de comédia, etc.

Nós poderíamos pensar que o que pretendem as poéticas e retóricas antigas é tentar entender a produção do texto não propriamente para codificá-la, mas para exercer algum tipo de controle sobre sua recepção. Nesse sentido, a definição de tragédia por Aristóteles é modelar: depois de falar sobre com que ela se realiza (com palavras, música e espetáculo), o que encena (histórias elevadas) e como (através de atores), a definição atinge o ponto mais importante ao declarar que o efeito da tragédia, pela produção de medo e piedade, é a purificação (catarse) dessas emoções. Não basta, portanto, identificar os elementos próprios do gênero, seu efeito sendo o que faz com que seja isso ou aquilo. Esse modelo de definição poderia ser aplicado a outros gêneros — e o ponto de chegada, interessante para exercícios de elucubração de nossa parte, seria relativo aos efeitos: qual o da comédia? qual o da épica? qual o do romance? qual o das novelas da Globo? qual o das séries de detetive da Netflix? A codificação de que a tragédia deve produzir a catarse de medo e piedade tem um efeito explicativo, sem dúvida, mas também um efeito prescritivo em termos da recepção ao afirmar que o efeito da tragédia não pode ser o riso, ou a catarse de emoções através do riso, talvez porque medo e piedade implicam empatia, enquanto, para rir, é preciso distanciamento. São os efeitos descontrolados que atormentavam Platão a ponto de, mesmo admitindo que os poemas são belos e os poetas homens admiráveis, em especial Homero, não admitir sua presença na sua República.

A retórica também se elabora da perspectiva da produção-recepção, com um agravante com relação à poética: ainda conforme Aristóteles, nas suas duas modalidades políticas, a retórica da assembleia e a do tribunal, o efeito visado é o voto, decidido pelos membros da assembleia ou do júri a partir dos discursos que ouvem, ou seja, da interpretação do que lhes parece mais verossímil. Esse é um exercício de interpretação bastante radical, em vista do pouco tempo para firmá-la e de seu caráter irrevogável, ainda conforme Aristóteles, sendo por isso que ele afirma que os juízes erram muito (na Atenas democrática, os juízes eram os membros do júri, não havendo juiz profissional).

Então, modalizando esse conceito de “erro” de interpretação a que estamos sujeitos o tempo todo, é bom lembrar que errar é vagar e que erro é também errância, essa errância parecendo ser algo inerente aos discursos, na distância entre quem fala e quem ouve ou entre quem escreve e quem lê. É por errar sobre as novelas de cavalaria que D. Quixote se torna cavaleiro errante: e que erro genial! Todo leitor/recebedor é um tanto errante, talvez porque todo texto induza a isso. Por isso toda interpretação é difícil. Talvez isso decorra de uma pretensão de controlar os erros.

A.: Em seu percurso, você foi da Grécia à Mesopotâmia. O que esses deslocamentos, cada vez mais ao leste, cada vez mais para fora da Europa, nos ensinam?

J.L.B. Acho que essa pergunta me permite emendar a resposta com o que eu dizia antes sobre a errância. Eu já falei de quando estudei hebraico (e fui colega de seu pai). Meu interesse era muito linguístico — ter contato com uma língua que não fosse indo-europeia, o curso sendo de hebraico moderno — mas havia também um interesse cultural, que era menos chegar na Bíblia hebraica e mais nos comentários rabínicos, que praticam uma forma de texto diferente, em que a errância funciona como um elemento estruturante. Vou dar um exemplo tomado do tratado Bereshit Rabah: sobre a árvore do paraíso, a partir da pergunta “qual foi essa árvore da qual Adão e Eva comeram?”, segue a sucessão de pareceres: Rabi Meir disse: era trigo…; Rabi Samuel ben Isaac compareceu diante de Rabi Zeira e perguntou: é possível que ela seja trigo?… pois está escrito ‘árvore’; Rabi Zeira explicou: plantas de trigo cresciam algo como cedros do Líbano…; Rabi Judah ben Ilai disse: eram uvas…; Rabi Aba de Acco disse: era cidra…; Rabi José disse: eram figos…; mas de qual espécie de figueira? Rabi Abin disse: era a berath sheva…; Rabi Josua de Siknin disse em nome de Rabi Levi: era a berath ali…; Rabi Azariah e Rabi Judah ben Simon disseram, em nome de Rabi Joshua ben Levi: Deus nos livre, o Único-Santo-Abençoado-Seja-Ele não expôs ao homem a natureza dessa árvore e não a exporá no futuro. E assim termina a passagem. Para cada uma das interpretações há uma explicação (que deixei de lado), todas usando o método hermenêutico de confrontar o texto com o próprio texto, isto é, explicar uma passagem com outra da própria Bíblia. Mas o que quero ilustrar é como o acúmulo de opiniões configura uma sintaxe errante, nesse caso chegando ao gran finale de que Deus não revelou a natureza da árvore nem a revelará no futuro, o que faz parecer que toda elucubração anterior era vã, mas a prova de que não era está em que se conserva como um conjunto de interpretações tão valiosas quanto a última.

Eu diria que meu caminho para o Oriente, que é uma errância, foi preparado pelos gregos, que, da Antiguidade até hoje, sempre foram e são muito orientais, as descobertas dos textos cuneiformes do Oriente Médio escancarando isso e derrubando aquela ideia do “milagre grego” brotado do nada. O que me atrai na história das culturas são a contaminações, os processos de troca mútua e seus resultados, então, para mim, é muito mais atraente uma visão dos gregos não como uma espécie de princípio inaugural (e puro) de algo (o Ocidente), mas como parte de todo tipo de contatos e confluções no espaço do Mediterrâneo oriental. Mais interessante isso se torna porque, ainda que redescobertas no século 20, os próprios gregos nunca se furtaram a referir suas relações com o Oriente: conforme Heródoto, foram os fenícios que inventaram o alfabeto, Tales aprendeu geometria no Egito, onde também Pitágoras foi iniciado nos mistérios etc. — ao que se pode acrescentar que, segundo Luciano, o próprio Homero não seria grego, mas babilônio, não se chamando Homero, mas Tigranes, e tendo recebido aquele nome só depois de ter sido tomado como refém pelos gregos, pois em grego ‘refém’ se diz hómeros. Mesmo que essa explicação, dada pelo próprio Homero, esteja num texto ficcional (mais exatamente um texto de autoficção), não deixa de ser sugestiva enquanto faz do fundamento da Grécia (de seu educador, como afirmava Platão) nada menos que um bárbaro e, mais ainda, conhecido não por seu nome próprio, mas por um apelido que, na verdade, era só um nome comum. Veja-se quanta errância!

O trato mais íntimo com a literatura babilônica só iniciei há pouco tempo, faz uns dez anos, implicando estudar a língua acádia, que é da mesma família que o hebraico (e o aramaico e o árabe), para traduzir o poema de Gilgámesh, fazer traduções sendo também um investimento a que eu tinha me dedicado pouco até então. Fazer essa tradução foi uma experiência de alteridade muito intensa, pois eu não queria domesticar a diferença que um texto assim apresenta, enquanto antigo e enquanto “oriental”. Quando o cuneiforme foi decifrado e se começou a conhecer a produção em acádio, a tendência foi classificar os textos em categorias reconhecidas na nossa experiência. Assim, Gilgámesh foi identificado com Nemrod, personagem referido do Gênesis bíblico, e o poema sobre ele foi classificado como epopeia, que é um gênero grego. Gregos e hebreus serviram de critério para a recepção dessa literatura muito mais antiga que ambos, nesse processo de classificação por retrospectiva, que constitui ao fim e ao cabo uma tentativa de controle da recepção. O poema intitulado Enuma elish, para falar de um outro exemplo, recebeu o título de Relato caldeu de Gênesis, que já de início o relaciona com o livro bíblico, embora seja, em sua maior parte, uma teogonia, mais próxima de Hesíodo que da Bíblia.

Não quero dizer que essas aproximações não sejam legítimas e se façam até naturalmente, só desejo sublinhar que uma recepção que se pretende mais cuidada deve ter consciência delas ao aproximar-se do diferente, para não reduzir tudo à mesmice do mesmo. Como a tradução implica fazer justamente a passagem de uma língua outra à língua própria, a cada passo impõe a questão de como não domesticar inteiramente o outro. Vou dar um exemplo: há no poema de Gilgámesh uma expressão difícil de verter, ana dūr dār, porque dūru significa ‘para sempre’ e dāru ‘eternidade’, havendo aí um jogo iterativo, algo como ‘pela eternidade de para sempre’, sublinhado também pela aliteração sonora (ana é a preposição). A solução dos tradutores vai de “for all eternity” (Andrew George), que dá conta do sentido, mas perde o estilo, a “por los siglos de los siglos” (Joaquín Sanmartín), que preserva o estilo, mas lança mão de um lugar comum excessivamente marcado (a alguém que diz ‘pelos séculos dos séculos’ só falta acrescentar ‘amém’!). Demorei um tanto a achar minha solução, que no final me agradou bastante em sua simplicidade: “de era em era”, tanto porque mantém o estilo quanto porque usa termos neutros e respeita uma concepção diferente de organização do tempo, uma organização por eras, como usavam os babilônios, as principais sendo a era antediluviana e a pós-diluviana.

Eu gostaria de que o acesso a essa produção médio-oriental, sobre a qual o fato de ser mais antiga que a de hebreus e gregos lança naturalmente um ar de respeitabilidade, representasse uma experiência forte para o leitor, experiência de contato com a diferença provocando mudanças de percepção do mundo. Basta lembrar que essa produção admirável esteve por séculos enterrada nos desertos do Iraque, que é lá que ela foi escrita, naquele lugar que o Ocidente olha com desprezo. Há um poeta iraquiano contemporâneo, Khalid Al-Maaly, que põe em xeque essa mentalidade ao intitular seu livro Eu sou da terra de Gilgámesh (o livro foi traduzido do árabe para o português por Mamede Jarouche). Isso é importante para evitar que se idealize esse Oriente descolando-o de onde ele se encontra e continua, como em geral aquela Grécia fundadora do Ocidente terminou por ser algo fortemente idealizado, saqueado dos próprios gregos, como se eles não se encontrassem e continuassem lá.

A.: Recentemente, em 2018, você escreveu um belíssimo artigo sobre uma citação e um lugar comum de Lacan (agalma e sicut palea). Mas tenho aqui, diante de mim, um livro que você organizou em 1984, intitulado O enigma em Édipo Rei, que foi o tema do I Congresso Nacional de Estudos Clássicos. Você lembra que Édipo Rei continua sendo “inspiração e ponto de partida para a arte e a ciência” e lembra a equivalência freudiana entre o Oedipouskomplex (complexo de Édipo) e o Kernkomplex (complexo nuclear) afirmando, com Freud, que o “Édipo é o nosso cerne”. Não sem nos lembrar de nosso dilaceramento, da dimensão do enigma e, um pouco depois, da polifonia… Fala-se muito, desde algumas décadas, da necessidade de ir além do Édipo. Em que ponto estamos? Fomos além? Se você me permite lembrar uma expressão que aprendi em um de seus cursos, somos, realmente, “pós-antigos”? Por outro lado, que papel a psicanálise tem ou teve, se é que teve, no seu percurso?

J.L.B.: Essa pergunta tem tantos aspectos que nem sei se consigo respondê-la. Então vou tomar o que me parece o fio que os amarra, que é essa perspectiva da temporalidade e da transmissão da cultura. Acho que isso está inscrito tanto no uso de “ágalma” e “sicut palea”, por Lacan, quanto no uso de Édipo por Freud, algo que se retoma e se ressignifica, a cultura sendo esse procedimento constante de ressignificação. Enquanto está viva isso acontece, de modo que cada etapa tem seu pré e seu pós. Nesse sentido, torcendo um pouco sua pergunta, poderíamos dizer que a psicanálise é muito pós-antiga. Estou querendo dizer com isso que é claro que a descoberta do inconsciente é um salto espetacular, que muda nossa percepção de mundo, mas também que ela resulta de uma acumulação de experiências e conhecimentos, que é o antigo desse pós.

Eu conheço pouco de psicanálise, embora ser professor de grego me tenha permitido conviver com psicanalistas, e eu gosto especialmente de tratar de assuntos encomendados, pois sempre comportam um desafio, mas sempre tive o cuidado de ficar na esfera de minha competência. Nisso, aprendi como é diferente falar das coisas em lugares diferentes, pois os diálogos que isso gera são diferenciados. É claro que há textos de Freud que são obrigatórios para um helenista, como o primeiro, sobre a interpretação de sonhos, em que Édipo aparece, de par com Hamlet. Gosto muito de “O tema dos três escrínios”, da análise da Gradiva de Jensen, para lembrar de alguns textos. Mas não me aventuro nos trabalhos mais especializados, interessando-me mais pelo “Freud pensador da cultura”, como no título do livro do Renato Mezan.

A.: Finalmente, o que Jacyntho leitor (filólogo, helenista, paleógrafo) ensinou a Jacyntho escritor (ficcional) sobre a verdade e a ficção? 

J.L.B.: Essa é uma questão de longa duração que nos vem dos gregos. As Musas, que são deusas e que, segundo uma concepção ingênua, deviam falar sempre a verdade, começam o poema que ensinaram a Hesíodo sobre a origem dos deuses (a Teogonia) com a afirmativa de que “sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autênticas/ e sabemos, quando queremos, proferir verdades”. Esse é um ponto de partida perturbador: deusas que sabem mentir e só em alguns momentos dizem verdades — mas os deuses gregos sabem fazer isso. Acho que isso mostra como a verdade sempre se apresentou, entre os gregos, como problema, o único indício a respeito dela sendo a verossimilhança, que é o que as Musas dizem que fazem normalmente, porque não está na esfera delas a simples mentira, mas essa mentira semelhante a coisas autênticas (pseúdea etymoisin homoîa). É por isso que é preciso sempre testar os discursos, porque não se conta com algo externo — um deus ou um rei — que avalize a verdade do discurso. Na filosofia, na história, na retórica esse foi um motor constante: testar o lógos para problematizar as verdades aparentes, muitas vezes jogando lógos contra lógos, como na assembleia e no tribunal.

Esses discursos sobre discursos (filosofia, história, retórica) têm como horizonte a poesia, que era o que havia antes de todos, distinguindo-se dela porque postulam certos modos de verdade. Luciano de Samósata, que é o autor que foi assunto de meu doutorado, tem uma perspectiva interessante. Segundo ele, antes de tudo, um escritor (se quisermos, um intelectual) deve ser amigo da verdade, autônomo, sem pátria, sem rei, pois de outro modo não gozaria de liberdade intelectual; mas quem goza de “liberdade pura” é só poeta, pois a liberdade do historiador tem seu limite nos acontecimentos que ele narra, a liberdade do retórico tem seu limite nas situações em que ele profere seus discursos, e a liberdade do filósofo tem seu limite na concordância do que ele diz e do que ele faz. Então, só poetas, pintores e sonhos gozam de liberdade pura, essa expressão remetendo ao vinho que os bárbaros tomavam puro, mas os gregos costumavam tomar misturado (ou temperado) com água. Filósofos, historiadores e rétores tem, portanto, uma liberdade temperada; poetas, como pintores e sonhos, a pura liberdade, a qual, por ser pura, faz supor que seu discurso seja mais inebriante que os outros.

O ficcionista faz isso. Convida o leitor (ou ouvinte) para mergulhar num lógos que ele conduz baseado no que chamamos de verossímil, mas os gregos chamavam de eikós, semelhante, adequado, conveniente — o que faz com que a “verossimilhança” (para usar o nosso termo) dependa não exatamente de um verdadeiro a que ela se assemelhe mais ou menos, mas à cena discursiva com que ela convém. O princípio que orienta a ficção seria então um princípio de consequência (akolouthía). Como exemplifica Luciano, se um poeta afirma existir um homem com dez braços e dez pernas, então ele será consequente se mostrar como esse homem pode lutar com dez inimigos ao mesmo tempo, brandindo dez lanças etc. É interessante que é justamente por isso que Aristóteles afirma que a poesia é mais filosófica que a história, pois esta, a história, se ocupa do particular, o que aconteceu, enquanto o poesia se ocupa do que poderia acontecer, ou seja, do universal, de acordo com regras de necessidade e semelhança. Mas Luciano, em Das narrativas verdadeiras, diz que escreve não sobre o que aconteceu nem sobre o que poderia acontecer, mas sobre o que não poderia acontecer, ou seja, ele avança mais uma etapa enveredando pelo inverossímil. Isso depende do pacto que ele celebra explicitamente com o leitor logo de saída: o confessar que tudo o que dirá é mentira, só numa coisa sendo verdadeiro, ao confessar que mente.

Para não me alongar mais, explorar as formas de ficção talvez nos ensine mais sobre o verdadeiro que muitos tratados, considerando que, conforme o Sócrates de Platão (portanto, uma personagem), a busca da verdade se assemelha a crianças perseguindo andorinhas: quando estão a ponto de pegá-las, elas escapam. Não quer isso dizer que não haja nada de verdadeiro, pois o mundo está aí lançado sob nossos olhos, em sua verdade crua, e somos seres no mundo que não nos fornece de antemão a razão das coisas, mas significa que alcançar essa verdade mundana é difícil, o que nos leva de volta ao tema da dificuldade. São desafios que a linguagem nos permite encarar. E, de novo com Platão, vale a pena lembrar que “as coisas belas são difíceis”. Falar de dificuldade leva a isto: a falar de beleza.

Entrevista feita por Gilson Iannini.




NÃO SEM OS CORPOS[1] 

BERNARD SEYNHAEVE
Psicanalista. Membro da ECF e da NLS (AMP) |
seynhaeve.bernard@gmail.com

Resumo: O autor sustenta o lugar determinante que Lacan dá à presença dos corpos em uma análise: o do analista e do analisante. Em seu ultimíssimo ensino, compreende-se que a interpretação segue o rastro do falasser considerando que a função do inconsciente se completa pelo corpo — não pelo corpo simbolizado nem pelo corpo imaginário, mas pelo corpo que tem em si algo de real. Portanto, para além da decifração, o que uma interpretação visa é perturbar a defesa, fazer ressoar o corpo afetado por lalangue. Para tanto, não basta se ver ou se falar; a presença física também faz parte da interpretação.

Palavras-chave: Interpretação, corpo; gozo, sinthoma, lalangue.

NOT WITHOUT BODIES

Abstract: The author sustains the determining place that Lacan gives to the presence of bodies in an analysis: that of the analyst and the analysand. In his last teaching, it is understood that interpretation follows the trail of the speaking being, considering that the function of the unconscious is completed by the body, not by the symbolized body, nor by the imaginary body, but by the body that has something real in it. Therefore, beyond deciphering, what an interpretation aims at is to disturb the defense, to make the body affected by lalangue resonate. Therefore, it is not enough to see or speak, the physical presence is also part of the interpretation.

Keywords: Interpretation, body, sinthome, jouissance, sinthome, lalangue..

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

 

Tento avançar com as questões que me tocam.

Gostaria de tentar precisar por que uma psicanálise lacaniana necessita, exige a presença dos corpos: o do analisante e o do analista.

Isso pode parecer evidente à primeira vista, mas não é. Dessa forma, uma questão que eu não esperava surgiu num grupo da New Lacanian School (NLS). Um colega disse: “Você verá, senhor, que um dia haverá AEs que terão feito suas análises por Skype”. Essa questão, que é política, coloca-se em nossa Escola, a NLS. Aqueles que estiveram em Tel-Aviv na Assembleia Geral de 2019 se lembram de nosso debate acerca do uso da internet (Skype) na cura.

Uma outra questão se coloca para mim na perspectiva de nosso próximo Congresso, que acontecerá em Gante, em junho de 2020[2], sobre a interpretação nos tempos do falasser, e não mais nos tempos do sujeito. Essa questão leva em consideração o ultimíssimo ensino de Lacan, que visa perturbar a defesa.

A defesa é esse “dispositivo psíquico” que Freud, desde o começo de sua obra, postula como sendo uma “defesa primária”, que bloqueia aquilo que chamou de  “ameaças de desprazer” (FREUD, 1895/1980, p. 486) e que chamamos, com Lacan, de “o real do gozo”, o impacto da língua sobre o corpo. Para o último Lacan, a interpretação visa perturbar a defesa na medida em que cuida de não desfazer o nó de lalangue e do corpo, mas de fazê-lo ressoar.

O que seria, portanto, um corpo impactado pela língua?

 

Da necessidade da presença dos corpos

Freud, no fim de sua vida, estava com esta constante: a análise é interminável. Para o ultimíssimo Lacan, uma análise pode se concluir na medida em que o falasser encontra um saber-fazer com seu sinthoma, isto é, com o impacto da língua sobre o seu corpo. Se a interpretação visa perturbar a defesa, é na medida em que tenta tocar esse real do corpo que se goza.

Mas pergunto: para tocar esse real, a presença dos corpos, do analista e do analisante, é necessária?

Salientamos, a respeito disso, duas intervenções de Jacques-Alain Miller. A primeira é retirada de sua entrevista ao jornal Libération, em 1999.

“A tecnologia desenvolve modos de presença inéditos. O contato a distância em tempo real se tornou comum ao longo do século. Quer seja por telefone, agora celular, internet, videoconferência. Isso vai continuar, multiplicar-se, será onipresente. Mas será que a presença virtual terá, afinal, um impacto fundamental sobre a sessão analítica? Não. Ver-se e falar-se, isso não faz uma sessão analítica. Na sessão dois estão ali juntos, sincronizados, mas eles não estão ali para se verem, como demonstra o uso do divã. A co-presença em carne e osso é necessária, nem que seja para fazer surgir a não-relação sexual. Se sabotamos o real, o paradoxo desaparece. Todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, tropeçarão aí” (MILLER, 1999, tradução nossa).

A segunda é extraída de sua intervenção no texto publicado “Uma fantasia”, no Congresso da AMP em Comandatuba, em 2004. “O inconsciente é corporal?” (MILLER, 2005, p. 17). O efeito de interpretação se deve ao uso das palavras ou a sua jaculação? Além do mais, é preciso colocar o tom. Aqueles que tiveram a oportunidade de relatar as interpretações de Lacan sempre as repetem com o tom de Lacan. “A poética da interpretação (…) é um materialismo da interpretação. (…) É preciso pôr o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma” (Ibid.).

 

O que é um corpo?

Visto que se trata de delimitar o que constitui a junção do corpo e da língua, o que é, portanto, um corpo? O que é um corpo falante, o corpo dos seres falantes, o falasser?

Na apresentação do tema do X Congresso da AMP, em 2014, Miller apontou que se pode, sem dúvida, apreender o corpo como imaginário: “(…) encontramos a seguinte equivalência formulada por Lacan: o imaginário é o corpo. E (…) seu ensino, em seu conjunto, testemunha a favor dessa equivalência” (MILLER, 2014). Mas ele acrescenta que Lacan, ao final de seu ensino, enuncia outra coisa: o corpo “é um mistério” (Ibid.). Ele diz isso no Seminário: livro 20: mais, ainda: “o real (…), é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente” (LACAN, 1985, p. 178).

Tentemos especificar esse mistério. J.-A. Miller nos convida para fazer uma distinção entre o que chamamos um corpo e uma massa, um saco de órgãos, ou seja, entre o corpo e a carne.

“Na distinção entre o corpo e a carne, o corpo se mostra apto para figurar, como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante. (…) O que faz mistério, mas permanece indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para dizê-lo em termos cartesianos: o mistério é sobretudo o da união da fala com o corpo. Por esse fato de experiência, pode-se dizer que ele é do registro do real” (MILLER, 2014).

O ser falante tem, portanto, um corpo e o utiliza como um instrumento para falar. O que faz mistério é a própria amarração da língua e do corpo, é que UOM (LOM) (LACAN, 1975/2003) possa fazer uso de seu corpo para falar. E isso não se explica, é um mistério, isso faz furo no saber e, consequentemente, dá relevância ao registro do real.

Por outro lado, o falasser goza desse uso. O ser falante se goza de fazer uso de seu corpo enquanto falante. Portanto, não há somente o corpo que se imagina, há também o corpo que se goza. E esse gozo, o gozo do se gozar, é autoerótico, autístico, como precisa Lacan. A percussão da língua e do corpo faz furo (trou), ele diz mais, faz troumatisme (LACAN [1973-74], aula de 19/2/1974).

A esse “corpo marcado por acontecimentos de gozo, por traumas de lalíngua, virão, em seguida, efeitos inconscientes de sentido, assimilados por Lacan a efeitos de saber” (LAURENT, 2016, p. 57), especifica Laurent. “O gozo se experimenta: ‘isso se sente’. E é após essa prova pelo gozo que se produzem os efeitos de saber próprios aos efeitos significantes sobre o corpo” (Ibid.), “é preciso, de início, ter um corpo, condição para que o gozo (…) venha se inscrever nele” (Ibid.).

No começo de seu ensino, Lacan desenvolveu as consequências de sua tese da primazia do simbólico. O sintoma era então considerado um retorno do recalcado inconsciente velando a verdade do sujeito, e a interpretação analítica consistia em tentar revelar a verdade oculta dos sintomas e do desejo inconsciente do sujeito.

Nesse contexto, Lacan revisitou os conceitos freudianos — o inconsciente, a transferência, o sintoma e também a interpretação — à luz do simbólico enfatizando a palavra, a linguagem e a letra. Essa tese de Lacan implica que existe um Outro, com O maiúsculo, que é correlativo ao conceito de fala. Isso implica também que a linguagem seja estruturada, ou seja, que “os significantes estão em relação entre si sob duas espécies, a da combinação e da substituição, o sentido aparece como um efeito dessa combinação e dessa substituição” (MILLER [1995-96], aula de 31/1/1996, tradução nossa). A interpretação, nesse caso, não é um problema. Ela se ocupa dos significantes. Ela responde à questão do Che vuoi?, Que queres?, e mesmo que seja sobre o desejo, ela continua a ser uma questão de sentido. Mas se, ao início de seu ensino, Lacan relia Freud definindo o inconsciente como sendo estruturado como uma linguagem, à medida que seu ensino progride, ele extrairá as consequências desse arranjo do corpo com a linguagem, isto é, do corpo que se goza. Portanto, as coisas mudam, observa J.-A. Miller.

Para que a amarração da linguagem e do corpo aconteça, é preciso que UOM (LOM) faça de seu corpo um instrumento de fala, UOM (LOM) fala através de seu corpo; para falar, é preciso ter um corpo do qual se servir; UOM (LOM) deve consentir em ter um corpo para que a amarração se produza. E é esse nó entre linguagem e corpo que constitui seu sinthoma. Esse nó é sólido. A principal consequência dessa tese será orientar a cura analítica em direção a esse nó, em direção ao real do gozo produzido por essa amarração para fazê-la ressoar.

Lacan muda, então, o vocabulário, como observa J.-A. Miller. Ele não utiliza mais os conceitos freudianos de inconsciente, sintoma e recalque, mas fala de falasser, sinthoma e verdade mentirosa. Passa-se da linguagem à lalangue, da palavra à aparola (apparole), ou seja, ao aparelho de gozo, do sujeito do inconsciente ao falasser.

Para ilustrar essa mudança, J.-A. Miller toma de Michel Leiris um pequeno exemplo através do qual ele inicia sua “Regra do jogo”, três pequenas páginas que narram uma experiência de criança.

“Então, Michel Leiris é uma criancinha que ainda não sabia ler nem escrever, ele brinca com seus soldadinhos. Um soldadinho cai. Ele deveria ter se quebrado, mas não se quebrou. E Leiris diz: ‘foi tamanha minha alegria que me expressei dizendo: ‘flismente’ (reusement)!’. Mas é felizmente (heuresement) que ele deveria ter dito, sua mãe disse a ele. O pequeno Michel, quando estava indo tudo bem, acreditava que se dizia ‘flismente’ (reusement). Ele então descreve minuciosamente o quanto ficou surpreso: para ele, reusement era muito mais expressivo que heureusementReusement é, sem dúvida, uma pura jaculação (…), uma jaculação de gozo que encontra seu significante adequado. Mas agora se produz (…), como diz Leiris, ‘um rasgo no véu, uma explosão de verdade’. Ele descobre que há um sentido da palavra, um sentido na língua e que ele deve dizer felizmente (heureusement), como todo mundo. Sente-se que isso é único, que ele será capaz de escrever interminavelmente sua própria ‘Regra do jogo’. A regra do jogo é, justamente, que é preciso dizer como todo mundo (que nos endereçamos ao Outro com O maiúsculo) e que, nesse momento, a palavra se encontra inserida em uma sequência de significações precisas (numa estrutura gramatical, lexical, sintática) e que aquilo que era antes, era realmente uma ‘coisa minha’ — ele diz. Esse pequeno exemplo impressionante, Leiris o desenvolve um pouco mais adiante. Há um segundo fragmento de ‘A Regra do jogo’ que começa com estas palavras: ‘Quando ainda não sabemos ler’. Ele tenta capturar o que seria a linguagem antes de começarmos a escrever e a ler. Ele se pergunta o que são as palavras quando as apreendemos apenas pela audição” (MILLER, 1995-1996, aula de 17/1/1996, tradução nossa).

 

Lalangue não é uma estrutura, ela é sem Outro, ela não obedece às regras gramaticais e sintáticas. Ela não se endereça ao Outro, ela é para si mesma “o que se sabe, consigo”, como diz Lacan em seu último escrito (LACAN, 1976/2003, p. 567). Ela não é um querer dizer ao Outro, “ela não é o sentido, mas o gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996, tradução nossa).

 

O que é uma interpretação no sentido do ultimíssimo Lacan?

No seminário O objeto da psicanálise, Lacan retoma, como observa Laurent (2020), as primeiras frases de seu primeiro seminário ([1953-54], 2009, p. 9) sobre a ação do mestre zen:

“todos sabem que o exercício Zen tem alguma relação, mesmo que não saibamos bem o que isso quer dizer, com a realização subjetiva de um vazio. (…) o vazio mental que se trata de obter e que seria obtido nesse momento singular, brusquidão que sucede à espera que se realiza às vezes por uma palavra, uma frase, uma jaculação, até mesmo uma grosseria, uma zombaria, um pé na bunda” (LACAN, 1965-66, aula de 15/12/1965).

O mestre zen coloca, portanto, seu corpo aí.

O analista também coloca seu corpo em jogo, a interpretação analítica é, ela mesma, um arranjo de lalangue e do corpo do analista. J.-A, Miller esclarece:

“Tudo está ligado ao acontecimento, um acontecimento que deve ser encarnado, que é um acontecimento de corpo — definição de sinthoma dada por Lacan. O resto, digamo-lo, é uma roupagem — uma roupagem necessária, na maioria dos casos. Mas o núcleo (da análise) (…), é esse instante, o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p. 76,  tradução nossa).

Mais adiante, com relação ao sinthoma, J.-A. Miller assinala também:

“Há um nível de defesa que é mais tortuoso, mais paradoxal (…). Do ponto de vista do singular, do ponto de vista do sinthoma, como o que há de singular em cada um, não vejo como evitar dizer — bem que eu gostaria —, não vejo como evitar ao menos passar por essa proposição a fim de aferi-la: o inconsciente (transferencial), ele mesmo, é uma defesa — sim —, o inconsciente é uma defesa contra o gozo em seu status mais profundo, que é seu status fora de sentido” (MILLER, 2009, p. 77, tradução nossa).

“A orientação para o singular”, ele continua, “não quer dizer que não decifremos o inconsciente. Ela quer dizer que essa exploração encontra necessariamente um obstáculo, que a decifração se interrompe no fora de sentido do gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).

Mas, “do lado do inconsciente”, ele avança,

“há o singular do sinthoma, onde isso não fala a ninguém (o monólogo do falasser/parlêtre, o autismo do sintoma). Razão pela qual Lacan o qualifica de acontecimento de corpo. Não se trata de um acontecimento de pensamento (…). É um acontecimento de corpo substancial, aquele que tem consistência de gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).

E, uma coisa importante a se lembrar, é que a interpretação que produz sentido, saber sobre o sintoma, não se relaciona com o acontecimento de corpo, com o sinthoma.

J.-A Miller assinala, então, o lugar determinante que Lacan dá à presença e, mais especificamente, ao corpo do analista no segundo tempo da análise:

“o ponto de vista do sinthoma consiste em pensar o inconsciente a partir do gozo. Pois bem, isso tem consequências para a prática, especialmente para a prática da interpretação. A interpretação não é apenas a decifração de um saber, é fazer ver, é elucidar a natureza de defesa do inconsciente. Sem dúvida ali onde isso fala, isso goza, mas a orientação para o sinthoma enfatiza o seguinte: isso goza ali onde isso não fala, isso goza ali onde isso não faz sentido. Como Lacan pôde convidar o analista a ocupar (anteriormente) o lugar do objeto pequeno a, em seu Seminário O Sinthoma, ele formula: O analista é um sinthoma. Ele é suportado pelo não-sentido, então perdoamos-lhe suas motivações, ele não se explicará. Preferirá, antes, dar-se ares de acontecimento de corpo, de semblante de traumatismo. E terá muito a sacrificar para fazer jus a ser, ou a ser considerado um pedaço (bout) de real” (MILLER, 2009. p. 79, tradução nossa).

J.-A. Miller nos dá aqui uma indicação precisa sobre o que seria a interpretação em uma cura orientada para o sinthoma.

Prosseguirei com dois exemplos clínicos em que a intervenção do analista toca o mais íntimo, o mais singular do ser do analisante, a saber, o sinthoma que orientou e decidiu seu destino. Recorrerei a excertos de dois testemunhos, os de Monique Kusnierek e de Bernard Porcheret, que me tocaram profundamente, me marcaram pessoalmente e que, no que concerne a essa articulação do corpo e de lalangue, são claros e precisos.

Aqui está o que Kusnierek diz:

“A sessão acabara de terminar. Ela saía do consultório de seu analista, estava no corredor, ele fazia sombra e, de repente, ela ouve atrás dela um barulho de um bicho feroz. Ela não acredita em seus ouvidos. Ela se vira para verificar com seus olhos o que havia ouvido. É quando vê seu analista que gesticula como um bicho feroz pronto para se lançar sobre sua presa. Ela fica surpresa e ri.

Que essa pantomima barulhenta fez interpretação, suas consequências o provam. A analisante entendeu, antes de tudo, que, na relação transferencial, não havia apenas uma demanda de amor e um abandono, mas também uma pulsão oral, que fazia sentir a sua presença.

Ela, então, começa a buscar como pensar isso em termos de transferência, como integrar essa pulsão, devorante, à única coisa que ela vinha fazer em análise, que era falar, isto é: colocar em jogo a relação que ela tinha com o saber, expor-se, cair sobre o que ela não sabia.

Ela encontrou, então, uma fórmula que lhe pareceu ideal e que estava no limite do que ela poderia elaborar sobre o que era, para si, o fato de falar. Foi a seguinte fórmula: ‘Se não estou à altura, então me morda!’.

Esse ‘me morda!’ era, sem dúvida, a fórmula de um imperativo pulsional. Ela entendeu, então, que essa era a motivação louca que a levava a cada semana à análise e que esse imperativo estava articulado nela à divisão gerada pelo próprio fato de falar (…).

Essa interpretação é sem palavras. Consiste apenas em um som e um gesto. Comporta um som, um barulho de bicho feroz, um ‘grr’, como uma espécie de núcleo da fala que, de repente, se faz ouvir. E, ao mesmo tempo, um gesto igualmente intempestivo se faz ver, o do bicho feroz pronto para lançar-se sobre sua presa.

A interpretação (…) (produz) uma montagem cênica que se inspira muito diretamente no pesadelo. Essa montagem é usada para trazer à cena da transferência a devoração. A devoração torna-se um semblante, uma peça com a qual se joga.

Essa interpretação do analista diz respeito ao próprio analista como parceiro do sujeito. O analista se faz surgir na cena como um bicho-papão, como o Outro convocado pela montagem pulsional do sujeito. E, de repente, essa montagem na qual se fabricou um Outro fantástico acaba se revelando ser apenas uma farsa burlesca. É o que, depois de ter a surpresa, fez essa analisante rir.

Isso a levou, posteriormente, a tirar uma série de conclusões.

O analista, ao se fazer de bicho feroz, ou seja, reduzindo o Outro da fantasia ao seu semblante, realizou, de fato, o que o terceiro sonho anunciava: a castração do grande Outro” (KUSNIEREK, 2002, p. 23-36, tradução nossa).

Eis aqui um curto trecho de testemunho de Bernard Porcheret que, em seu relato, evidencia seu fascínio pela morte, o que se inscreve em toda a sua história. Aqui está, como ele a chama, “a interpretação decisiva”:

“No caminho em direção à porta de saída, eu tiro meu casaco do cabide. Silêncio, nenhum barulho de maçaneta para ir chamar o analisante seguinte. Viro-me, o analista, contingência da interpretação, neste dia, está vestido com um terno escuro, daqueles que vestimos para momentos solenes. Na penumbra do corredor, atrás da porta da sala de espera, ele fica de frente para a parede, congelado, imitando o agente funerário. Siderado (…).

Na rua, a alguns metros de distância, leve, eu rio. Um dizer surgiu: fôlego. Algumas palavras, como se saídas de um buraco, se escrevem. Um salto aconteceu na saída do tobogã. A interpretação fez cair o significante mestre agente funerário, sob o qual eu estava esmagado. Imitando-o, em silêncio e sem olhar, o analista me separa dele. Eu era aquele olhar se olhando, aquela voz que se invocava. Quebra. Eu era aquela boca à qual eu me oferecia como alimento para domesticá-la. A pulsão enoda a sexualidade no inconsciente e a morte” (PORCHERET, 2012, p. 63, tradução nossa).

 

Para pontuar minha intervenção

Cito novamente J.-A. Miller.

“E correlativamente à noção de interpretação como perturbação, algo como o falasser (parlêtre) deve ser introduzido, uma noção da ordem do que Lacan denomina que vai mais além do inconsciente. (…) e (o) que se inscreve nesse lugar: ele o chamou de falasser, no qual a função do inconsciente se completa com o corpo, mas não pelo corpo simbolizado, o corpo imaginário, senão com o que o corpo tem de real.

Assim, a interpretação como perturbação mobiliza algo do corpo, exige ser investida pelo analista e, por exemplo, que ele forneça (…) o tom, a voz, o sotaque. Até o gesto e o olhar.

Pensando nessa interpretação como perturbação, recordava uma observação de uma passante (Kusnierek)[3] que referia, como AE, à sua cura e o que havia sido para ela o ponto de viragem.

Tal como o contava, essa interpretação não foi todo um discurso: ela estava num longo corredor escuro depois da sessão e, enquanto ia-se, viu-se levada a se virar, pois o analista lhe dirigia uma mensagem que, tal como ela a descreve, era feita de uma espécie de pantomima de devoração acompanhada de um vago rosnado, algo como um Grrr…! (…). Como se assinalava muito precisamente, isso acontece (…) fora, na saída (no corredor), já que a posição padrão não permite a operação da visão, o olhar, etc. (…) (Há aí) uma forma de colocar o corpo (…). Não se pode trazer a pulsão oral ou a pulsão anal, mas podem-se trazer, por outro lado, as pulsões especificamente lacanianas, que são a pulsão escópica e a pulsão invocante.

E a interpretação como perturbação conta especificamente com essa contribuição. Em todo caso, um dia seria necessário apreender que o que falha na noção de decifração é que, na análise, é preciso que um e o outro coloquem o corpo” (MILLER, 2011, p. 136, tradução nossa).

Para terminar, evocarei um momento do Colóquio organizado pela UFORCA em 2011, em Montpellier, acerca do Seminário, livro 23: o sinthoma.

Éric Laurent foi convidado para comentar um texto apresentado por Alfredo Zenoni, que citava uma frase de Lacan no Seminário, livro 21: os não-tolos erram, dita em 1973, dois anos antes do Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007). A frase era a seguinte: “o que você faz sabe o que você é” (LACAN, 1973-74, aula de 11/12/1973, tradução nossa). A frase completa está assim:

“Isso (a que) responde o discurso analítico é o seguinte: o que você faz, longe de ser o fato da ignorância, é sempre determinado, determinado já por alguma coisa que é saber, e que chamamos o inconsciente. O que você faz, sabe (sabe, s.a.b.e), sabe o que você é: sabe de você!”

Tal debate merece ser seguido detalhadamente:

É. Laurent: Alfredo Zenoni isolou uma frase do Seminário XXI: “O que você faz sabe o que você é”. Nesse caso, o que você faz é antes tomado na dimensão daquilo que o inconsciente o faz fazer ou daquilo que o inconsciente, como saber, faz de você.

J-A. Miller: Sim, mas há aqui uma espécie de materialismo do tipo: o que você faz, desde que você tenha um comportamento que se repete, bem, você é isso (…). Você está atrasado. Você está atrasado e, portanto, você é um retardatário. Você está o tempo todo atrasado, por causa disso ou daquilo, é um ato falho, mas no fim das contas você é um retardatário (…).

J-A. Miller: O psicanalista (ele também) é só o que faz. É isso. Ou seja, ele coloca seu corpo em jogo.

Deduzo desse debate que, uma outra forma de dizer que “o psicanalista não pode se conceber a não ser como um sinthoma”, é dizer “o psicanalista, é o/isso que ele faz”. Isso quer dizer que ele está presente com seu corpo, e sua interpretação implica sua presença física.

Uma interpretação, segundo Lacan, visa, portanto, perturbar a defesa. Visa colocar “um limite ao monólogo autista do gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996 – tradução nossa). E ela não pode ser considerada sem a presença dos corpos. Ela visa fazer ressoar no corpo algo que toque essa articulação do corpo e da língua. Ela não implica necessariamente um enunciado, nem uma enunciação (LACAN, 1974-1975, aula de 11/2/1975). Os meios utilizados para fazê-lo são diversos, mas para que ela faça acontecimento, é preciso que o analista faça semblante do sinthoma do analisante — e é difícil ver como isso seria possível por Skype. Isso remete ao modo como o mestre zen o faz.

 

Tradução: Letícia Mello
Revisão: Michelle Sena

Referências Bibliográficas:
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KUSNIEREK, M. “Une interprétation sans parole”. InQui sont vos psychanalystes?. Paris: Seuil, Champ freudien, 2002, p. 23-26.
LACAN, J. (1953-54) O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
LACAN, J. (1965-1966). Le séminaire, livre 13: l’objet de la psychanalyse. Inédito.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. (1973-74) Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Inédito.
LACAN, J. (1974-75) “Le Séminaire, livre XXII: R.S.I.”, aula de 11 de fevereiro de 1975. Ornicar?, n. 4, p. 95-96.
LACAN, J. (1975). “Joyce, o Sinthoma”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACA, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
LACAN, J. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LAURENT. É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.
LAURENT, É. “A interpretação: da verdade ao acontecimento”. InCuringa, n. 50. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, jul-dez 2020, p. 168-188.
MILLER, J-A. (1995-1996) L’orientation lacanienne. La fuite du sens. Inédito.
MILLER, J-A. (1999) Le divan. XXIe siècle. Demain la mondialisation des divans ? Vers le corps portable. Libération. Disponível em: https://www.liberation.fr/cahier-special/1999/07/03/le-divan-xx1-e-siecle-demain-la-mondialisation-des-divans-vers-le-corps-portable-par-jacques-alain-m_278498 Acesso em 12 de junho de 2021.
MILLER, J-A. “Uma fantasia”. InOpção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 42, 2005, p. 7-18.
MILLER, J-A. “L’inconscient et le sinthome”. InLa cause freudienne, n. 71, jun. 2009, p. 72-79.
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PORCHERET, B. “La pulsion est vorace”. InLa cause du désir, n. 83, dez. 2012, p. 60-64.

UFORCA. Journée UFORCA pour l’UPJL, Autour du Séminaire XXIII, 21 e 22 de maio de 2011. Montpellier, 2011. Inédito.
[1] Texto originalmente publicado na revista Quarto, n. 126. Belgique: ECF, dez. 2020. pp. 40-45
[2] Trata-se do Congresso da NLS “A interpretação: da verdade ao acontecimento” que deveria ter ocorrido dias 27 e 28 de junho de 2020, mas foi cancelado por causa da pandemia.
[3]Trata-se do testemunho de Monique Kusnierek, evocado anteriormente.



A INTERPRETAÇÃO E ALÉM[1]  

SOPHIE MARRET-MALEVAL
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana/AMP |

Resumo: A prática analítica se estabelece entre o que se lê e o que se escreve, ancora-se numa decifração que não visa o sentido e se regula pelo corte que separa S1 e S2, bem ali onde a palavra mostra o seu limite.

Palavras-chave: interpretação, leitura, escrita, inconsciente

INTERPRETATION AND BEYOND

Abstract: The analytical practice is established between what is read and what is written, anchored in a decipherment that does not aim at meaning and is regulated by the cut that separates S1 and S2 right where the word shows its limit.

Keywordsinterpretation, reading, writing, unconscious

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

“O de que se trata no discurso analítico é sempre isto — ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa”. Esse enunciado de Jacques Lacan aparece na terceira lição do Seminário Mais, ainda, intitulada “a função da escrita” (LACAN, 1972-73/2008, p. 43): quase da ordem do óbvio, ele lembra que a experiência analítica tem sua origem na interpretação, ou seja, em um uso do significante. Suas implicações são, entretanto, maiores quando Lacan precisa a distinção entre letra e significante abrindo-se para uma prática de interpretação que vai além do alcance freudiano.

 

O que se lê e o que se escreve

“No discurso analítico de vocês, o sujeito do inconsciente, vocês supõem que ele sabe ler” (Ibid., p. 43), continua Lacan, mas ele acrescenta: “Só que, o que vocês ensinam a ler, não tem, absolutamente, nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito” (Ibid.). A experiência analítica é, desde então, situada entre a leitura e a escrita. A leitura é aqui colocada em relação ao significado, “o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante” (Ibid., p. 39), enquanto a escrita é referida à letra. Lacan revisita os termos da linguística saussuriana afastando-se da abordagem do significante como “imagem acústica do signo”. Ele descarta a noção de referência que religaria a linguagem a uma realidade pré-discursiva lembrando, aliás, que “os homens, as mulheres (…) não são mais do que significantes” (Ibid., p. 38): “A palavra referência, na ocasião, só se pode situar pelo que constitui como liame o discurso. O significante como tal não se refere a nada, a não ser (…) a uma utilização da linguagem como liame” (Ibid., p. 36). Ele privilegia, então, a noção de “discurso”, da linguagem como laço, no qual se localizam dois efeitos: o significado de uma parte (“O significado é efeito do significante. Distingue-se aí algo que não passa de efeito do discurso […], quer dizer, de algo que já funciona como liame” [Ibid., p. 39]), a letra e a escrita de outra (“A letra, radicalmente, é efeito de discurso. […] É que, o que eu digo anteriormente ganha sentido depois” [Ibid., p. 41]), mas também “tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um certo efeito do discurso que se chama a escrita” (Ibid., p. 40). A impossível escrita da relação sexual se segura, por um lado, ao que “Um homem procura uma mulher (…) a título do que se situa pelo discurso” (Ibid., p. 38), quer dizer, que ele não goza do corpo de sua parceira como tal, mas que o gozo parte dos traços sobre o corpo, do significante fálico, e que ela depende do objeto que a causa, assim como Lacan o precisa no início desse Seminário. Por outro lado, ela se segura à inexistência do significante de A mulher, que torna impossível a escrita de uma relação lógica entre os sexos (ou seja, entre dois significantes se o segundo existisse).

A letra é efeito de discurso. Lacan situa sua função na barra entre o significante e o significado, sem a qual “nada, dos efeitos do inconsciente, tem suporte” (Ibid., p. 40). “A barra é precisamente o ponto onde, em qualquer uso da língua, se dá a oportunidade de que se produza o escrito” (Ibid., p. 40). Se seguirmos a lógica desse capítulo, dois eixos vêm à tona. A primeira: o que se lê, o significado como efeito do significante e que se baseia de uma ausência de relação com o significante, o que se materializa pela barra da arbitrariedade saussuriana, do qual é deduzida também a impossível escrita da relação sexual, que se situa no registro dos efeitos do discurso corrente, do laço entre os significantes. O segundo: o que se escreve, o que não é para ser compreendido, e “parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual” (Ibid., p. 40), o que marca também a materialidade da barra.

 

Uma outra leitura

Dar “uma leitura outra que não o que significa” ao “que se enuncia de significante” (Ibid., p. 43) não pode mais se orientar, portanto, a uma prática de interpretação que visaria à verdade, à reabsorção da barra, do que se escreve. A prática da interpretação convoca, sobretudo, a inexistência da relação sexual, que não cessa de não se escrever. O enunciado convida para uma compreensão quase literal. Trata-se de se abrir a outra leitura que não uma prática de sentido, que leve em conta os efeitos da barra. Quando Lacan aponta ainda a disjunção entre leitura e escrita, ele parte da constatação de um hiato entre o que se enuncia da construção na prática analítica e as letras com as quais ele convida para escrever a teoria (nesse caso, S(Ⱥ), a e Φ). O que se pode escrever sobre isso está além do sentido. Se ele permanece movido pela esperança de um apoio possível na matemática para escrever a teoria analítica, nesse momento, ele faz, no entanto, claramente aparecer, situando a escrita como efeito de dizer, uma outra dimensão da prática analítica, aquela do sentido, sensível no que se escreve sobre isso. A práxis analítica se situa entre o que se lê e o que se escreve, entre a abordagem da inexistência da relação sexual e a incidência da letra. A ênfase é deslocada sobre a função de borda de certos significantes que apontam em direção ao objeto, como Lacan o evoca alguns meses mais cedo em “Lituraterra” (LACAN, 2003).

Assim ele indica, no capítulo seguinte:

“Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria, e por uma curvatura que não poderia nem mesmo ser mantida como sendo como a das linhas de força, aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na alíngua, o que a fratura” (LACAN, 1972-73/2008, p. 50).

Ou seja, a letra que ele indica que ela “revela (…) a gramática”. Uma concepção da interpretação se deduz disso que não negligencia a referência à escrita porque, sublinha, “recusar-se à referência à escrita é proibir-se aquilo que, de todos os efeitos da linguagem, pode chegar a se articular” (Ibid., p. 50). Por um lado, é necessário visar o que se pode articular, por outro, como ele aponta, “Esta articulação se faz naquilo que resulta da linguagem o que quer que façamos, isto é, um suposto aquém, e um além” (Ibid., p. 50). Isso quer dizer que o uso da letra nos leva à via do real, de acordo com as coordenadas que ele dá anteriormente: o objeto a e a inexistência da relação sexual.

“Se trata de ler o quê?”, ele precisa ainda um pouco mais longe, “nada, senão os efeitos desses dizeres. Esses efeitos, bem vemos no que é que isto agita, comove, atormenta os seres falantes” (Ibid., p. 51). É preciso ainda que a leitura desses efeitos sirva “a dar uma sombra de vidinha a esse sentimento dito de amor” (Ibid., p. 51). Ele precisa “outra leitura” que ele convoca: trata-se de fazer uso dos efeitos dos ditos para “civilizar” o gozo pelo amor, que é o que permite “fazer sentido”  (MILLER, 2004, inédito, tradução nossa), mas também de visar um desejo vivo. “É preciso que, por intermédio desse sentimento, isso chegue (…) à reprodução dos corpos” (LACAN, 1972-73/2008, p. 51-52).

 

Interpretação pelo avesso

Para esse fim, Lacan sublinha de que uso do sentido depende o discurso analítico:

“com efeito, um discurso como o analítico visa ao sentido. (…) O que o discurso analítico faz surgir, é justamente a ideia de que esse sentido é aparência. Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isto só pode ser para dar razão do seu limite. Não há, em parte alguma, última palavra, se não for no sentido em que última palavra é nem palavra, caluda — já insisti nisto. Sem resposta, nem palavra, diz em algum lugar La Fontaine. O sentido indica a direção na qual ele fracassa” (Ibid., p. 85).

Ele precisa além disso: “o gozo só se interpela, só se evoca, só se suprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência” (Ibid., p. 99). É por isso que a prática lacaniana continua sendo prática do significante.

No entanto, Jacques-Alain Miller nos lembra que “O tempo da interpretação ficou para trás. Isso Lacan sabia, mas não o dizia: ele o deixava entender e só agora começamos a ler” (1996, p. 96) especificando que “a interpretação não é outra coisa que o inconsciente, a interpretação é o próprio inconsciente” (Ibid., p. 96), o que quer dizer que “o inconsciente fica (…) inteirinho na defasagem (…) que se repete no que quero dizer ao que digo” (Ibid.), a interpretação analítica vem em segundo lugar. Não obstante, ele fala “o inconsciente quer ser interpretado. Oferece-se para tanto. Se não o quisesse, se o desejo inconsciente do sonho não fosse, em sua fase mais profunda, desejo de ser interpretado (…), desejo de fazer sentido, não haveria analista” (Ibid., p. 97). Ele sugere compreender a interpretação como decifração. “Mas, decifrar é cifrar novamente. O movimento para somente numa satisfação” (Ibid.). Uma prática do sentido que não ficaria “a serviço do princípio do prazer” (Ibid.), ou seja, que visa o sinthoma, o ponto de conexão entre linguagem e gozo, deve-se, portanto, distinguir de uma interpretação do inconsciente. Ele propõe uma outra via, aquela da “interpretação pelo avesso”, que “na outra via o S2 fica retido, para não ser acrescido ao objetivo de cercear S1. Trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, com os quais delirou em sua neurose” (Ibid., p. 98). Convém apoiar-se sobre uma “decifração que não produz sentido” (Ibid.) sobre o corte que separa S1 e S2, lá onde a palavra designa o seu limite e conduz pela via do objeto, como uma janela sobre os limites do dizer. É ainda pela via de uma leitura que visa o que se escreve que se alcança o que não cessa de não se escrever, a inexistência da relação sexual na medida em que resulta de uma precisão das coordenadas do sintoma, ou seja, do que cada um goza.

Podemos ainda enfatizar como, ao destacar a leitura do único sentido para pontuar os limites, Lacan abria a via para a prática analítica das psicoses. J.-A. Miller e É. Laurent lembram que o inconsciente interpreta muito particularmente na psicose e que se trata, na maioria das vezes, de visar os pontos onde o sentido se interrompe, de “estabilização da metáfora”, ou seja, como propõe Laurent, de introduzir vírgulas, de isolar, de separar os significantes (LAURENT, 2005, tradução nossa). Como tantos grampos de gozo, os significantes podem igualmente servir a fins de nomeação e permitir uma amarração, uma resolução[2] desta pelo sentido.

 

Tradução: Letícia Soares
Revisão: Letícia Mello

Referências:
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT, É. “Interpréter la psychose au quotidien”. In: Mental, n° 16, out. 2005, p. 17, 19 & 20-24.
MILLER, J.-A. “A interpretação pelo avesso”. In: Opção Lacaniana, n° 15, abril 1996, pp. 96-99.
MILLER, J.-A. “L’orientation lacanienne. Pièces détachés”. Ensino pronunciado dentro do quadro do departamento de psicanálise da universidade de Paris VIII, lição de 24 novembro 2004, inédito

[1] Texto originalmente publicado em: La Cause du Desir, no. 80, 2012.
[2] Jacques-Alain Miller precisa assim a função da nomeação: “Se o nó como suporte do sujeito segura, não há necessidade alguma do Nome-do-Pai: ele é redundante. Se o nó não segura, o Nome exerce a função de sinthoma. Na psicanálise, ele é o instrumento para resolver o gozo pelo sentido” (MILLER, “Nota passo a passo”, em Jacques Lacan, O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 238).



INTERPRETAÇÃO HERÉTICA E ACONTECIMENTO DE CORPO NAS PSICOSES[1]  

SÉRGIO LAIA
Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) pela EBP e AMP |
laia.bhe@terra.com.br

Resumo: O inconsciente é intérprete e, ao interpretar, cifra novamente tornando infinita a atividade interpretativa. Frente a esse excesso interpretativo do inconsciente que se impõe nas psicoses como nas neuroses — embora, nestas últimas, de forma mais velada e sutil —, este texto, na trilha das formulações de Lacan e Miller, argumenta que interpretar analiticamente é fazer frente a esse trabalho interpretativo infindável próprio ao inconsciente, de modo que a interpretação analítica vire pelo avesso essa interpretação infinita do inconsciente. A heresia em questão é sustentar a interpretação na contracorrente do inconsciente quando a concepção que, em geral, se tem da atividade analítica é de que ela o interpreta, ou ainda que, na clínica das psicoses, não se deve interpretar. Também nessa perspectiva herética, este texto aponta para uma direção possível ao tratamento das psicoses: encontrar ou mesmo montar, com cada psicótico, outros enredos possíveis, nos quais alguma subjetivação se processe, e com alguma conjugação do corpo.

Palavras chaves: Inconsciente, interpretação, heresia.

HERETICAL INTERPRETATION AND EVENTS OF THE BODY IN PSYCHOSIS

Abstract: The unconscious is an interpreter and, when interpreting, it ciphers again, making the interpretive activity infinite. Facing this interpretive excess of the unconscious that imposes itself on psychoses, as well as on neuroses — although, in the latter, in a more veiled and subtle way —, this text, following Lacan and Miller’s formulations, argues that to interpret analytically is to face this endless interpretive work that is proper of the unconscious in such way that analytic interpretation turns this endless unconscious interpretation inside out. The heresy in question is to sustain interpretation against the unconscious when the conception that is generally held of the analytic activity is that it interprets it, or even that, in the clinic of psychoses, one should not interpret. Still in this heretical perspective, this text points to a possible direction for the treatment of psychoses: to find or even set up, with each psychotic, others possible plots, in which some subjectivation is processed, and with some conjugation of the body.

Keywords: Unconscious, interpretation, heresy

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

 

Considero muito feliz a escolha, realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), da expressão “interpretação herética” para abordar o que fazemos, graças à psicanálise de orientação lacaniana, na clínica com os psicóticos. Tomando como referência as formulações de Miller (1996, p. 12) de que “o inconsciente interpreta, e quer ser interpretado” e de que “interpretar é decifrar” tanto quanto “decifrar é cifrar de novo”, verificamos como os psicóticos podem sustentar à exaustão a atividade interpretativa. Afinal, por mais que os enigmas sejam decifrados, insiste sempre uma cifra obscura, relativa ao que a psicanálise lacaniana chama de gozo e que, por ser avessa ao sentido, não deixa de exigir mais interpretação, afetando desmedidamente os corpos dos psicóticos que, perplexos, são assolados por uma angústia insuportável. Frente a esse excesso interpretativo do inconsciente imposto sem entraves nas psicoses ou, de modo mais velado e sutil, também nas neuroses e perversões, Miller (1996, p. 13) propõe-nos que interpretar analiticamente é fazer frente ao trabalho interpretativo infindável próprio ao inconsciente, de modo que “a interpretação propriamente analítica… funcione ao avesso do inconsciente”. Logo, já é uma heresia sustentar a interpretação na contracorrente do inconsciente quando a concepção que em geral se tem da atividade analítica é de que ela o interpreta, e essa heresia se ressalta ainda mais ao contrariar outra doxa, ou seja, outra opinião (também genérica e consolidada nos meios psicanalíticos), de que não se deve interpretar os psicóticos.

Sabemos que heresia não indica apenas o que se coloca contra uma tendência, um standard (padrão) ou mesmo uma ordem ou uma norma. Conforme sublinharam Laurent (2011) e Miller (2017/2018), em duas ocasiões distintas, mas sempre se valendo da leitura de Joyce por Lacan (1975-1976/2007, p. 16), heresia designa uma escolha, e uma escolha inaudita, pois remete-nos ao que os gregos chamavam de hairesis[2]. Em outro texto, já tive oportunidade de tematizar a interpretação como a heresia do analista (LAIA, 2019) a partir da constatação de que, no mundo do mestre contemporâneo, o sintoma, cada vez mais refratário ao sentido, exige dos analistas “intervenções capazes de incidir sobre o gozo e não apenas sobre o sentido”, aproximando a interpretação mais “de um fazer que de um saber”, e de um fazer que “atualiza, a cada vez”, para o analista, “sua escolha pelo real” (SOUTO, 2018) como o que, sem lei, se impõe no avesso mesmo do sentido.

 

Batalha de objetos a

Na clínica das psicoses, a heresia da interpretação analítica, a meu ver, se eleva a uma potência superior porque, por um lado, a foraclusão — ressaltando nos psicóticos a anulação simbólica de um significante fundamental, norteador (o Nome-do-Pai), e do significante do gozo (o Falo, Φ) — já demarca a escolha herética pelo real do gozo que lhes toma obscura e enigmaticamente os corpos, mas, por outro lado, essa escolha apresentada nas psicoses não coincide ponto a ponto com a escolha pelo real, também herética, sustentada por um analista. Costumo dizer, a partir de minha clínica com os psicóticos, que travamos com eles uma espécie de batalha, de um duelo de Titãs ou, evocando um brinquedo infantil que fazia bastante sucesso entre as crianças anos 1990 e para o qual um garoto psicótico que atendi sempre me convoca no início de cada sessão, o tratamento psicanalítico das psicoses se faz como em uma “arena de blades”: cada um lança contra o outro seu blade, sua escolha pelo real, e o desafio é verificar qual choque de um blade em outro vai fazer um deles parar de girar. Tomava os blades, nesse caso que atendi, como uma espécie de forma do objeto a difundida pela proliferante indústria de brinquedos infantis e da qual me vali, ao longo de muitas sessões, para acolher um garoto psicótico que tendia a recusar tudo e todos, mas que me deixava entrar em sua arena de disputa entre blades.

Ainda no contexto desse confronto entre as escolhas (heréticas) dos psicóticos e as escolhas (também heréticas) dos analistas pelo que se resvala do sentido, considero importante lembrar que, por um lado, segundo Lacan (1967, p 24), “os homens livres, os verdadeiros, são precisamente os loucos” porque — diferente dos neuróticos — não almejam o objeto “no lugar do Outro” por o encontrarem “à sua disposição”, por terem “sua causa em seu bolso” enquanto que nós, analistas, por outro lado, nos valemos de um discurso que, no lugar do agente, apresenta o objeto como causa do desejo (LACAN, 1969-1970/1991, p. 43, 47-48):

Quanto aos psicóticos, trazer o objeto no bolso implica, conforme as expressões francesas dans la poche ou dans sa poche, tê-lo com facilidade, possuí-lo de um modo definitivo, assegurado, tendo-o à disposição, inclusive, no sentido de dominá-lo ou, como dizemos em português, “tê-lo na mão”. Mas esse domínio do objeto a, mesmo conferindo aos psicóticos a liberdade de não terem de almejar ou demandar tal objeto ao Outro (como acontece com os neuróticos), não os deixa propriamente à vontade. Afinal, para os psicóticos, essa possessão do objeto a, embora o configure como uma espécie de propriedade particular, não os resguarda de modo algum de sua dimensão arrebatadora e perturbadora. Tal possessão chega mesmo a assolá-los com a identificação com o dejeto, ostentada por muitos psicóticos contra tudo e contra todos, inclusive contra si próprios, porque nem sempre eles têm uma ligação com o corpo capaz de torná-los, como nas neuroses, senão adoradores do próprio corpo, certamente mais zelosos consigo e com o que lhes atinge os corpos.

Por isso, Lacan (1967) lê, como psicanalista, a História da loucura, escrita por Foucault, ressaltando o quanto a segregação dos psicóticos nos manicômios (que, sobretudo no passado, situavam-se fora das cidades) é uma espécie de defesa frente à angústia que eles nos provocam. Em outros termos, por carregarem o objeto no bolso, os psicóticos provocam-nos angústia, são excluídos do convívio com os outros e há toda uma tendência de eles não serem suportados. Ainda que essa segregação manicomial não tenha mais a mesma virulência de outros tempos, ela insiste como um estigma indelével a ponto de que, atualmente, tornou-se até prestigioso afirmar “sou TDH”, “sou bipolar” “sou Asperger” ou “sou trans”, mas essa potência afirmativa (com o sentido ativista que esse adjetivo ganhou) não faz alguém se declarar tão enfática e orgulhosamente “sou psicótico”. Historicamente, embora o próprio Foucault (1961/1972) tenha vacilado, em algumas passagens, em afirmá-lo, como faço aqui, os analistas e, sobretudo, eu diria, os analistas pautados na orientação lacaniana de não recuar diante da psicose diferenciam-se porque são talhados para dar lugar (ou seja, não segregar) aos psicóticos e enfrentar a angústia que, ao modo do olhar da Medusa, eles impõem ao mundo. Mais ainda, na batalha de blades que jogamos com os psicóticos, não se trata propriamente de ostentarmos, como Perseu contra a Medusa, um escudo ao modo de espelho para cortar a cabeça daqueles cujo olhar pode angustiar a ponto de petrificar, imobilizar, deixar em um estado no qual parece não haver o que fazer. Nosso desafio — diante do objeto que o psicótico traz em seu bolso — é apresentar-lhe o objeto que agencia o discurso analítico, mas como em uma batalha de blades: para desacelerar o giro interpretativo no qual muitas vezes os psicóticos se fazem afogar, sufocar, cair, largar, ser evitados e segregados.

Assim, se, nas psicoses, encontramos uma identificação como o objeto a, esse mesmo objeto, para o analista, não tem uma função identificatória. O analista faz uso desse objeto inclusive porque sua análise pessoal e as supervisões servem-lhe de instrumentos decisivos para, em sua ação, ir além das identificações. Nesse contexto, vale citar outra formulação de Miller (2010, p. 13) e na qual ele aplica, aos analistas, a operação que o poeta Paul Valéry concebeu como “salvação pelos dejetos”: “o que salva” os analistas “é ter conseguido fazer da sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”, ou seja, colocar o a como agente de um discurso e não como referência identificatória. Esse feito se dá porque os analistas conseguiram “sublimar bastante sua decadência para elevá-la à dignidade de uma prática, isto é, de um objeto de troca” (MILLER, 2010, p. 13) — somos, como analistas, até mesmo pagos para exercer o que exercemos. Porém, a ação analítica tampouco se reduz a esse processo sublimatório porque, por exemplo, mesmo pagos para sustentarmos uma prática a partir da posição de dejeto, mesmo inseridos no circuito comercial da troca e da prestação de serviço, nos é decisivo continuar “sem documentos” (Ibid.), ou seja, sem, por exemplo, um reconhecimento de nosso ofício por um Conselho Profissional ou por alguma lei promulgada pelo Estado.

A posição do analista como dejeto, como objeto a que agencia um discurso, implica também manter “o que, do gozo, permanece insocializável” (Ibid., p. 15). Logo, se “o discurso faz função de laço social” (LACAN, 1972/1978, p. 51), os analistas ousam promover um discurso e, ao mesmo tempo, zelar pela dimensão insociável do gozo. Por sua vez, ao trazerem no bolso o objeto a, os psicóticos também testemunham o quanto o gozo é insociável, mas, na medida em que essa pregnância do objeto tem para eles um alcance identificatório, Lacan (1972/2001, p. 490) lhes atribui a liberdade perturbadora e angustiante de se encontrarem “fora do discurso”. Portanto, não é sem razão que a psicanálise possa interessar a alguns psicóticos a ponto de eles também quererem fazer dela uma prática: a psicanálise aloja o que há de sem laço no gozo e, ao mesmo tempo, dá lugar a um discurso, isto é, ao que faz laço social. No contexto dessa proximidade da psicose e da psicanálise com o que do gozo não se consome e é refratário ao que se coletiviza socialmente, vale lembrar que Freud, no seu célebre texto sobre Schreber, já afirmava que a teoria psicanalítica da libido não era tão diferente do que esse psicótico apresentava em seu delírio:

“Os ‘raios divinos’ de Schreber, feitos de uma condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides, não são outra coisa senão os investimentos libidinais concretamente representados e projetados para fora, e conferem ao seu delírio uma espantosa concordância com nossa teoria (da libido)” (FREUD, 1911/2010, p. 103).

Para ressaltar que tal proximidade, ou concordância, não implica uma equivalência e que a atração de alguns psicóticos pelo exercício da prática analítica não os exime da liberdade angustiante e perturbadora de se encontrarem fora do discurso (e mesmo fora, acrescentaria, do discurso analítico), considero oportuna a declaração feita por Lacan na Proposição dedicada a discernir como se dá a passagem do analisante a analista: “retirem o Édipo, e a psicanálise em extensão (ou seja: a prática mesma da psicanálise)… torna-se inteiramente sob a jurisdição do delírio do presidente Schreber” (1967/2001, p. 256). Nessa declaração, Lacan não deixa de fazer valer o complexo de Édipo como uma função que separa a prática analítica e o delírio psicótico, mas tal valorização tampouco o impede questionar e criticar o amor incondicional às referências paternas. Assim, na clínica psicanalítica, diferentemente do que acontece aos psicóticos (e sobretudo quando eles não estão em um tratamento analítico), a constatação da impostura do pai, ou seja, de que a lei paterna pode tomar a forma de um “faça o que eu digo, mas não o que eu faço”, implica que dispensar o pai não se efetiva sem que se possa servir-se dele.

 

O real de um efeito-sujeito

Considerando os dois “blades” envolvidos na “arena” psicanalítica com as psicoses, eu me valho de dois matemas. Do lado do psicótico, a localização do objeto a em seu bolso me permitiu inventar o matema S(a), no qual o sujeito não dividido (S), por não almejar ao objeto a no Outro, traz esse objeto consigo, mas como algo heterogêneo a si próprio, conforme  procurei demarcar pelos  parênteses que,  por sua vez,  evocam a forma  mesma de  um bolso. Do lado do analista, recorto a linha superior do discurso analítico,  onde o objeto a,  no lugar de “agente”, como  “causa do desejo” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 122- 123), incide  sobre  o sujeito dividido () localizado no lugar do “outro” (LACAN, 1970/2001, p. 447): a  . No caso desse segundo matema, recortado do discurso do analista e aplicado por mim às psicoses, é preciso fazer a ressalva de que um psicótico não é um sujeito dividido (), ou seja, um sujeito que, por sofrer a ação constitutiva e mortífera do significante, ao mesmo tempo se encontraria e se esvairia no intervalo entre um significante (S1) e outro significante (S2). Porém, justifico esse recorte pelo que Miller (1987-1988/1991, p. 40) certa vez demarcou quanto ao modo como Lacan inverteu a perspectiva na qual a alucinação é concebida, passando a dar ao perceptum, ou seja, ao que é percebido, “um alcance causal” com “efeitos de divisão que recaem não sobre um percepiens”, sobre quem percebe no sentido de ter um domínio sobre o que é percebido e que ajustaria sua percepção à chamada realidade, “mas sobre um sujeito”. Por essa inversão lacaniana, na alucinação psicótica, o objeto a, como “perceptum alucinatório” (MILLER, 1987-1988/1991, p. 40), incide sobre o sujeito que, passivamente, “padece da alucinação como independente dele” (MILLER, 1995). Assim, um objeto como o olhar, ou a voz, afeta o psicótico a ponto de insultá-lo, lhe invadir a privacidade, não lhe conferir qualquer lugar no Outro, esmagando-o como sujeito (S) sem lhe dar a chance de se posicionar no mundo dessa forma incômoda (mas passível de reconhecimento) que, na neurose, aparece como falta-a-ser (). Porém, tal esmagamento do psicótico como sujeito não impede à psicanálise de orientação lacaniana apostar no que os psicóticos podem testemunhar quanto às suas posições subjetivas.

Conceber o sujeito ()  como falta-a-ser é concebê-lo como “efeito do significante” (MILLER, 1983a/1996, p. 156) não tomado pela alucinação, mas assolado por “isso fala, no sentido de que isso fala dele… antes que ele fale, antes que ele chame ou mesmo que ele grite”. Assim, pelos significantes do Outro, um sujeito vem a ser como falta-a-ser porque, embora designado por esses significantes que o fazem ser, tais significantes não são literalmente seus e, portanto, mesmo que lhes sirvam para algum reconhecimento, não lhe são de todo concernentes. Por isso, o sujeito se divide quanto ao que ele é e esse contexto evoca a célebre formulação lacaniana de que, antes de falar, o homem é falado: falam de um bebê, por exemplo, antes mesmo de ele efetivamente existir. Nas psicoses, esse “isso fala dele” aparece de modo diferente e até mais radical do que acontece nas neuroses, apesar de não reservar para o sujeito qualquer lugar no Outro. Afinal, essa fala irrompe “de modo desagradável”, a ponto de atingir o extremo de um “isso fala nele” ou, de modo ainda mais esmagador, como vai nos mostrar o “sujeito da dita esquizofrenia” que “isso não fala dele” e, assim, em vez de um falado constitutivo e proveniente do Outro, teremos a presença de um real aniquilador, configurando a esquizofrenia como “a subjetivação de um puro real” (MILLER, 1983a/1996, p. 157).

Nesse contexto, “a escolha da psicose” e — é importante essa ressalva feita por Miller (1983a/1996, p. 157) — “não” de “quem a faz”, é essa “escolha impensável de um sujeito que faz objeção à falta a ser que o constitui na linguagem”. Na psicose, temos uma escolha contrária à alienação aos significantes do Outro e, assim, a dimensão herética dessa escolha é bem mais decidida que aquela sustentada nas neuroses e nas perversões. Mas a ressalva feita por Miller entre essa escolha e quem a afirma é esclarecedora porque, para quem faz a escolha da psicose, mesmo que ela implique uma objeção à constituição subjetiva na linguagem, não há propriamente um consentimento quanto ao não-lugar do qual se padece com relação ao Outro. A meu ver, a sustentação de um tratamento possível das psicoses tem, no não-consentimento a esse não-lugar destinado ao sujeito na escolha da psicose, uma chance decisiva: é nesse não-consentimento, mesmo quando se coloca de modo muito sutil, que encontraremos vestígios do psicótico como um sujeito, ainda que se trate de sujeito não dividido pelos significantes do Outro que, por sua vez, não lhe reserva qualquer lugar no mundo. A clínica das psicoses pautada pela orientação lacaniana dá lugar ao psicótico como sujeito contrapondo-se, por exemplo, tanto à tendência dos paranoicos de se colocarem como “causa de um desejo infinito”, quanto à entrega esquizofrênica “à derrelicção do des-ser” (MILLER, 1983a/1996, p. 160) e, assim, ela faz frente ao aniquilamento subjetivo acionado pelo objeto que os psicóticos trazem consigo, no bolso. Quando a liberdade implicada nesse modo de portar no corpo a heterogeneidade desse objeto toma uma dimensão insuportável, a heresia da interpretação sustentada pelos psicóticos oferece alguma abertura para dar lugar à heresia da interpretação analítica.

Na busca por alguma subjetivação frente ao peso aniquilador do objeto a, é importante lembrar que o discurso universitário também não deixa de ser atraente para muitos psicóticos porque cabe a esse discurso “produzir um sujeito []… a partir de um dejeto (a), pelo viés de um saber (S2)” (MILLER, 1983a/1996, p. 156) separado do que o determina (S1):

Porém, a operação promovida pelo discurso universitário pode não ser a melhor em alguns casos de psicose porque o sujeito que nela é produzido, além de ser barrado, dividido e mortificado, encontra-se no lugar à direita e inferior designado por Lacan  como “produção” (1969-1970/1991, p. 106 e 1970/2001, p. 447), mas também como “perda”. Assim, a alguém identificado ao objeto a a ponto de anular-se subjetivamente, o que adiantaria ser a produção e fazer valer um discurso que, no entanto, o coloca a perder, o descarta e o segrega justamente como sujeito?

Para os psicóticos, a posição subjetiva promovida no discurso universitário, embora nem sempre de modo tão avassalador como em uma alucinação ou em um delírio, pode não lhes reservar anulações muito diferentes daquelas de ser causa de um desejo infinito sempre avassalador (paranoia) ou de uma derrelicção do des-ser (esquizofrenia). Daí, a importância de outro matema apresentado por Miller (1983a/1996, p. 160) no final de um texto que, no próprio título, indaga — “Produzir o sujeito?”:

Esse matema é um recorte do lado direito do discurso universitário, mas Miller (1983a/1966, p. 160) me parece diferenciá-lo do que se processa nesse discurso ao inserir essa seta (↓) que faz o objeto a incidir sobre o sujeito (), em vez de simplesmente segregá-lo e isolá-lo, sob a barra (__), no lugar da produção-perda.

Demarcar assim, na psicose, a incidência do objeto sobre o sujeito é reiterar o esforço de Lacan para “fazer da psicose uma questão de sujeito” porque “o sujeito tem de contentar-se com o que o determina” (MILLER, 1983b/1991, p. 164) e, para os psicóticos, essa determinação vem do objeto a que, não sem incômodo e angústia, ou seja, não sem algum sinal de efeito-sujeito, eles trazem no bolso. Nesse contexto, vale lembrar que Lacan (1955-1956/1981, p. 330), no Seminário III e, portanto, muito antes de formular o objeto a, já ensinava que, na ausência dessa “grande-rota” pavimentada como o próprio grande Outro, “aí onde o significante não funciona” como norteamento, “a função das alucinações auditivas verbais”, ou seja, do que se impõe como objeto a, pode muito bem ser a de “letreiros”, “placas de sinalização” e, portanto, de determinações para os psicóticos orientarem-se em seus caminhos off road[3]. A incidência de a sobre o sujeito, tal como modulada pela orientação lacaniana do tratamento possível das psicoses, poderá dar lugar, acolher, modular e cingir o que eu chamaria, então, de o real de um efeito-sujeito.

 

Fantasia éclatée (explodida)

Nas neuroses e, com suas singulares diferenças, também nas perversões, o sujeito procura compensar sua falta-a-ser com o objeto a que, por condensar a libido, lhe faz as vezes de ser, mas ser que não deixa de lhe escapar devido à sua proveniência, sua extração, do campo do Outro e, portanto, de seu alheamento quanto ao sujeito. É o que Lacan formalizou com o matema da fantasia    ◊ a — busca-se compensar a falta-a-ser () com o objeto a que, como condensador de gozo, ou seja, de satisfação pulsional, faz as vezes de ser, aparece como se fosse ser, parece-ser. Por sua vez, se, para os psicóticos, o objeto encontra-se no bolso — S (a) —, é porque ele não foi extraído do campo do Outro. Essa não-extração o impede de apresentar-se propriamente como condensador de gozo e, assim, nas psicoses, o objeto a prolifera, por exemplo, sob a forma de vozes, olhares, dejetos ou, ainda, no que se acumula, se corta, se ejeta sem que se consiga propriamente fazer sair ou, também, no que, quando sai, tem uma evasão difícil de manejar. Essa proliferação explosiva de objetos a, mesmo quando consideramos sua função de “letreiros” e “placas de sinalizações”, expõe os corpos dos psicóticos à desmedida, bem como os submete a terríveis dilacerações subjetivas porque, nas psicoses, em vez de concentração, há “transporte” do objeto para um “ponto no infinito” (MILLER, 1983a/1991, p. 153) no qual o sujeito nem sempre consegue situar-se, encontrar-se.

Não é incomum e, nos nossos dias, tem sido até frequente, psicóticos procurarem valer-se de alguma composição que, ao lhes fazer as vezes de fantasia, possa lastrear o gozo que, de modo proliferante e perturbador, lhes tomam os corpos a ponto de — recusando-lhes qualquer apropriação — nunca estarem onde se tenta alcançá-los. Busca-se, então, atingir o corpo para fazê-lo acontecer[4] e permitir ao sujeito, senão uma aderência ao corpo, certamente algum tipo de alinhavo pelo qual lhe seja viável ligar-se ao próprio corpo, dedicar-lhe algum cuidado, algum investimento, mesmo depois de lhe impor desgastes muitas vezes atrozes e que anulam ainda mais qualquer tipo de subjetivação. Por isso, à proliferação do objeto que lhes dilacera os corpos por não se ater ao “bolso” que os carrega, muitos psicóticos contrapõem uma multiplicação de cortes pelos corpos; uma procrastinação pela qual a negação para realizarem qualquer ato “catatoniza”-lhes infinitamente a vida; um uso indiscriminado de drogas; uma incessante deambulação sexual ou, ao contrário, uma negação — não menos insistente — do que poderia convocar-lhes a sexualidade; uma adesão a um enxame de palavras-de-ordem ou protocolos que lhes acenam com as possibilidades de apresentarem-se como “mulher”, “homem”, “realizado(a) profissionalmente”, etc.

Tenta-se compor uma fantasia como resposta à anulação experimentada com relação a um lugar no Outro e que poderia acolher (como acontece nas neuroses e perversões), sempre por um triz, o sujeito. Afinal, parece-me que muitos psicóticos — inclusive por se sentirem mais consonantes com o fora-da-ordem que caracteriza o mundo contemporâneo — sabem o quanto a fantasia é um aparelho que organiza o gozo e promove essa identificação pela qual um sujeito consegue, como nos elucida Miller (2010, p. 14), “encontrar seu lugar em uma das muitas rotinas das quais a organização social é feita e que têm como propriedade estabilizar a relação do significante e do significado, a relação do sujeito com as grandes significações humanas”, “sua inscrição sob um significante-mestre”, mas também “uma identificação do gozo no lugar do Outro”. Pela fantasia, um sujeito visa manter-se, minimamente que seja, frente à perturbação obscura que o gozo impõe aos corpos. O problema é que, nas psicoses, esse resgate do ser pela via do objeto a, esse tratamento do real do gozo pela via do semblante, tem sua impostura muito mais intensa e rapidamente experimentada e denunciada. Por isso, mesmo que haja alguma emulação da fantasia nas psicoses (e sobretudo quando ela se dá sem as parcerias que os psicóticos podem encontrar nos analistas), a “construção” ou o “funcionamento”[5] da fantasia para esses sujeitos se processa sempre de um modo para o qual não encontro palavra melhor que a francesa éclatée. É uma fantasia éclaté não apenas porque ela é explosiva a ponto de estilhaçar o sujeito e tudo que ela implica, mas também porque os estilhaços (éclats) por ela provocados comportam toda uma dimensão de brilho (éclat) pela qual um sujeito, mesmo dilacerado por tal explosão mortífera, insiste em fazer-se enredar.

A heresia que sustentamos, então, na clínica das psicoses, como analistas da orientação lacaniana, é a de encontrar ou mesmo montar, com cada psicótico que atendemos, outros enredos possíveis, nos quais alguma subjetivação se processe, e com alguma conjugação do corpo. O alinhavo ao próprio corpo não deixa de me evocar a costura que Peter Pan precisava realizar para prender seu corpo à sua sombra, mas, no caso das psicoses, trata-se muito mais de fazer do corpo uma sombra que — pela sutileza cambiante própria às sombras e diferente daquela do objeto que esmaga o sujeito[6] — dê lugar a alguma subjetivação capaz de servir de companhia à solidão que o gozo não lastreado impõe-lhes na vida. Nesse contexto, é preciosa a indicação feita por Miller (2010, p. 15): “trata-se de destacar do gozo uma parcela que possa se fazer de objeto, e de início objeto de uma narração, de um roteiro — como o roteiro da fantasia —, de um storytelling”, ao modo “de uma lenda, do que Lacan chamava de um ‘mito individual’”, ou seja, de uma estória que se conta inclusive sem os atropelos desse “pesadelo” que Joyce (1922/1986, p. 28) nomeou “história”.

Ora, na expressão mito individual, Lacan (1952/2007) quis conjugar o que se toma geralmente como coletivo, ou seja, o mito, e o que concerne, de modo mais específico, ao indivíduo, ao que nem sempre se experimenta como propriamente contemplado pelos processos de coletivização. Podemos tomá-la, então, como um oximoro, ou seja, uma conjugação paradoxal de palavras cujos sentidos são literalmente opostos e contraditórios. Se, nas psicoses, temos contraposições heréticas ao que se apresenta como coletivo ou, também, um uso muitas vezes muito idiossincrático (e não menos herético) do coletivo, é mesmo oportuno que o tratamento analítico se apresente como um processo no qual um mito individual possa ser inventado, explorado e narrado. Afinal, se o discurso, segundo Lacan, faz laço social na medida em que conjuga elementos heterogêneos, enredando a dimensão significante (S1, S2 e ) com aquela do gozo (a), não me parece possível dizer que um mito individual dê lugar, necessariamente, a uma via discursiva, mas sua dimensão de oximoro não deixa de contemplar a conjugação dos mesmos elementos heterogêneos que compõem os discursos.

Destaco que, a meu ver, a montagem de um mito individual não se faz pelo encadeamento de um significante (S1) a outro (S2) para responder à perplexidade que o gozo impõe ao corpo e pode se condensar no objeto a. Considero que essa tentativa de encadeamento significante é muito mais o que encontramos no delírio psicótico. Portanto, se o emparelhamento S1-S2 não dá lugar, por si só, à montagem de um mito individual, é porque este nos convoca a outro tipo de par ordenado: (S1a), no qual se conjugam um significante que, mesmo não sendo fundamental como o Nome-do-Pai, promove algum ordenamento (S1) e o que, localizando-se quanto à dimensão do gozo (a), dá chances ao que chamei de o real de um efeito-sujeito. Por que é possível contar uma estória — formular um mito individual — com um par ordenado em que um significante determinante (S1), em vez de convocar outro, conjuga-se a um objeto que é referência de gozo (a)? Para responder a essa questão, me valho da seguinte formulação de Laurent (2005, p. 18): “a própria língua significantiza o gozo, transformando-o em pedaços de gozo, tal como o objeto que é elemento de gozo, embora ao mesmo tempo se comporta como uma letra” e “pode entrar em cadeia”, fazer “série… ser substituível, … estar no lugar de causa”. Logo, a montagem de um mito individual se faz com elementos significantes determinantes para o sujeito e com o que pode lhe ser reduzido como uma marca que, ao modo de uma letra, referencia o gozo que lhe toma o corpo a ponto de impedir esse corpo de efetivamente acontecer, mas que — pela conjugação (S1a) — pode dar lugar a um acontecimento de corpo no qual também podemos localizar o real de um efeito-sujeito.

Encontro, na quarta lição do Seminário III de Lacan (1955-1956/1981, p. 55-68), um exemplo clínico conciso e esclarecedor de como a conjugação relativa ao par ordenado (S1a) pode tanto lastrear um gozo que se impõe de modo invasivo quanto redimensionar a disrupção provocada por um significante insultante. É importante nos atentarmos para o modo como Lacan, nesse contexto, se aproxima da paciente e lhe extrai o que, a princípio, parecia não ter lugar algum. Essa forma de aproximação, embora circunscrita à brevidade de uma única entrevista, não deixa de evocar, a meu ver, como a transferência e o tempo podem ser fatores decisivos para que um mito individual, mesmo como um esboço inicial, possa ser montado. Trata-se do conhecido relato de uma “apresentação de pacientes” na qual Lacan (1955-1956/1981, p. 59) teve contato com uma psicótica que padecia de uma “cadeia de interpretações… da qual ela se sentia vítima” inclusive porque tinha muitas referências do quanto era “uma mulher encantadora e amada por todos”. Após enfrentar algumas dificuldades para abordar a paciente, Lacan (1955-1956/1981, p. 59) — por ter mostrado, nesse enfrentamento, a meu ver, sua disposição a escutá-la — aproxima-se “do centro do que ali estava manifestamente presente” porque ela lhe confia o seguinte: “um dia, no corredor, no momento em que saía de sua casa, tinha tido de se haver com uma espécie de mal-educado, e com o qual ela não tinha por que ficar espantada”, uma vez que se tratava do “desprezível homem casado que era amante regular de uma de suas vizinhas de costumes levianos”.

Ora, foi justamente esse homem que, ao se cruzarem no corredor, a havia insultado com “um palavrão” que ela não se dispunha sequer a repeti-lo para Lacan (1955-1956/1981, p. 59) em função do tanto que isso “a depreciava”. Ressalto que, sensível ao que essa indisposição da paciente apresenta como uma espécie de vestígio de uma posição de sujeito, tampouco Lacan (1955-1956/1981, p. 59) insiste para que ela lhe diga qual era o palavrão que, mais adiante, se revela como sendo “Porca!”. Essa disponibilidade de Lacan, sua “doçura” (como ele próprio diz) frente à indisponibilidade da paciente é, portanto, decisiva para o modo como ela se desloca da condição de objeto (a) de um insulto (S1) que, por vitimá-la, não lhe dava qualquer lugar como sujeito, e passa a experimentar o que chamei de real de um efeito-sujeito, não sem antes ceder, àquele que a entrevistava, a marca mesma de um gozo que, diferentemente do que a segregava como insultada, também tomava-lhe o corpo, mas de forma sutil e da qual ela não deixava de ter alguma participação ativa. Vale aqui citar, mais uma vez, o próprio Lacan (1955-1956/1981, p. 59):

“Uma certa doçura que eu tinha colocado na aproximação com ela, fez com que estivéssemos, após cinco minutos de entrevista, em uma boa sintonia (à une bonne entente), e assim ela me confessa, com um riso de concessão, que ela não se encontrava naquele ponto totalmente inocente, pois ela mesmo disse alguma coisa ao passar”.

Diferentemente da posição de  “insultada” (e que não lhe dava qualquer lugar com sujeito), localizo no riso de concessão manifestado em transferência pela paciente outro modo de ela experimentar como o gozo, não sem a dimensão significante, impacta-lhe o corpo. Ao mesmo tempo, o que ela diz em seguida para Lacan lhe permite também destacar um S1, de um significante determinante e ordenador, mas que, diferentemente daquele do insulto, não deixa de iterá-lo numa modalização que, em vez de segregá-la como sujeito, a inclui. Afinal, essa “alguma coisa” que ela teria dito ao passar pelo tal “desprezível homem casado” e “amante da vizinha”, Lacan (1955-1956/1981, p. 59) nos apresenta com os seguintes termos: “essa alguma coisa, ela a confessa mais facilmente que o que ela escutou”, ou seja, que o palavrão-alucinatório Porca!, “e é isto: Eu venho do ‘linguiceiro’[7]. Assim, à trama de interpretações enfatizada a partir de um insulto escutado de forma alucinatória e que segregava a paciente (S1-S2a), a docilidade herética de Lacan permite-lhe contrapor o par ordenado (S1a), que faz para ela as vezes de um mito individual.

Sublinho, nessa contraposição, o quanto esse par ordenado (S1a) — diferente da trama interpretativa S1-S2a — articula significante e gozo fora da vertente do sentido, porque, como elucida Miller (1987/2006, p. 111), “o S1, quando é separado de S2, aparece como sem sentido, e o objeto obtém sua posição por estar fora de sentido”. Afinal, uma estória do tipo nonsense é contada quando a própria paciente acaba confessando que não é de todo inocente quanto ao que havia escutado, mas não porque teria provocado o insulto ao considerar “desprezível” (ou mesmo “um porco”) aquele que a teria xingado de “porca”. Destacando ainda mais o que se apresenta como fora de sentido, temos o riso proveniente da confissão de que, ao passar pelo tal amante da vizinha, ela mesma teria dito que vinha do linguiceiro e, por esse acontecimento de corpo, após tomar distância de sua posição inocente sem ter de se fixar àquela de vítima, a obscuridade do gozo se apresenta não pela vertente segregativa e nefasta do insulto, mas por essa parte da estória que a paciente — até ser escutada por um analista — parecia negar-se, ela própria, a contar, escutar e mesmo gozar.

 


Referências
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[1] Este texto retoma, com algumas modificações e acréscimos, uma apresentação online realizada no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), no dia 7 de maio de 2021, a convite de Fernando Casula (Coordenador desse Núcleo). Por ocasião dessa atividade, Cristiana Pittella (Coordenadora da Seção Clínica do IPSM-MG) fez um comentário do que ali apresentei. Agradeço a esses colegas, bem como aos participantes dessa atividade e a Patrícia Ribeiro, a oportunidade para a realização desse trabalho e, agora, desta publicação.
[2] Por exemplo, no precioso Dicionário Grego-Português (MALHADAS, DEZOTTI e NEVES, 2007, p. 23), encontramos αϊρεσις como “ação de tomar”, “tomada”, “conquista”, assim como “escolha” e, já com referência à cristandade, temos o termo “heresia” (αίρέω). Por sua vez, o clássico e incontornável Etymological Dictionary of Greek (BEEKS; BEEK, 2009/2010, p. 42) apresenta-nos o mesmo termo como “captura, escolha, partido”, relacionando “heresia” a uma “escola filosófica”, além de indicar que outras formas derivadas dessa mesma palavra designam tanto “ser escolhido, provocando abalos, rupturas”, quanto “quem escolhe”. Agradeço, aqui, Teodoro Rennó Assunção, por ter me presenteado e indicado esses dicionários.
[3] Em outro texto (LAIA, 2006), pude trabalhar um pouco mais essa referência lacaniana das alucinações auditivo-verbais como “placas de sinalização” ou “letreiros” às margens dos trajetos que os psicóticos fazem off road, ou seja, fora da “grande-rota” pavimentada, a partir do norteamento do Nome-do-Pai como grande Outro.
[4] Para o que me permite utilizar assim a noção lacaniana de “acontecimento de corpo”, ver o texto “Quando o corpo acontece”, destinado (LAIA, 2021) à preparação da XXV Jornada da Seção Minas Gerais (EBP-MG).
[5] Com as aspas colocadas nas palavras “construção” e “funcionamento”, procuro ressaltar o quanto a fantasia, mesmo aparelhando gozo, não deixa de ser desconstruída e perturbada pelo que, na dimensão mais obscura do gozo, excede o que ela tenta enquadrar. Esse fracasso da fantasia se apresenta nas neuroses e nas perversões, mas ganha um alcance ainda mais disruptivo nas psicoses.
[6] Para essa referência à sombra do objeto que esmaga o sujeito, me valho da célebre formulação de Freud (1917/2016, p, 107) sobre o que acontece nos casos de extrema melancolia: “a sombra do objeto caiu sobre o Eu, que agora pôde ser julgado por uma instância especial, como um objeto, como o objeto abandonado”.
[7] Em francês, o termo original é charcutier e remete-nos àquele que prepara e vende carne de porco. O charcutier e sua “loja” (a charcuterie) são referências comuns à vida francesa. Na edição brasileira do Seminário 3charcutier foi traduzido por “salsicheiro” e essa opção se repete em outras traduções brasileiras nas quais há referência a essa apresentação de pacientes relatada por Lacan (1955-1956/1985, p. 55-69). Porém, mesmo considerado que salsicha é feita com carne de porco, preferi traduzir charcutier por “linguiceiro”, porque quem faz e vende linguiça (tradicionalmente de carne de porco) está muito mais presente na vida brasileira e a salsicha é, de fato, um produto industrializado, não referenciado propriamente a alguém que a produz.