EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 28

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UM CORPO, UM. TRADUÇÃO E DECIFRAMENTO[1]

ANTONI VICENS
Psicanalista AME da ELP/AMP
avicens@me.com

Resumo: O autor empreende a tentativa de tradução e interpretação da frase lacaniana contida na conferência Joyce, o Sintoma, “UOM kitemum corpo e só-só Teium (…)”. A partir de questões sobre o ter e o Um, ele propõe algumas perguntas sobre o corpo a partir das consequências do ter: como UOM pode ter Um corpo? O que é ter? Como é Um? O que é corpo? E, para respondê-las, considera as três dimensões do dito: o imaginário, o simbólico e o real.

Palavras chaves: UOM, ter, Um, corpo.

ONE BODY, ONE. TRANSLATION AND DECRYPTION

Abstract: The author undertakes the attempt to translate and interpret the Lacanian phrase, contained in the Joyce, the Symptom lecture, “LOM, LOM de base, LOM cahun corps et nan-na Kun (…)”. Based on questions about having and the One, he proposes some questions about the body from the consequences of having: How can LOM have One body? What is having? How is One? What is a body? And, to answer them, he considers the three dimensions of what is said: the imaginary, the symbolic and the real.   

Keywords: UOM, having, One, body.

 

Desali, s/t

 

Na conferência de Lacan intitulada Joyce, o Sintoma (1975/2003a)[2], encontramos umas frases que reivindicam seu deciframento. A tradução publicada diz assim:

“UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium [nan-na Kum]. Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele éum (corp/aninhado). É o ter, e não o ser, que o caracteriza. […] UOM tem [a], no princípio. Por quê? Isso se sente, e uma vez sentido, demonstra-se (LACAN, 1975/2003a, p. 561)[3].

Antes de abordar os enigmas ali contidos, fazemos nossa a observação de Jacques-Alain Miller sobre

“o tipo de atenção que a inteligência de Lacan requer, sobretudo em seu último ensino, repleto de tantas coisas ditas e apressado por ter tantas coisas a dizer, cuja enunciação atua em várias direções e cujo enunciado toma várias faces por vez. As referências mais pertinentes nem sempre são as mais explicativas, e nenhum índice de nomes próprios poderá detectá-las. Seria preciso um índice de não-ditos, pensamentos de fundo, alusões crípticas, ressonâncias e outros invisibilia” (MILLER, 2007, p. 214).

O que se segue é uma tentativa de tradução e interpretação dessas frases intraduzíveis, na qual nos deixamos orientar precisamente pela impossibilidade, no limite de traduzir sentidos de uma língua a outra. Se o sentido é gozo e o gozo é sempre atual, o sentido está submetido à mesma inércia. Não sabemos nada do gozo de Lacan, logificamos o que podemos dentro de uma lógica baseada no não-todo. Talvez possamos aproveitar, uma vez que, na versão, o sentido original, por ser enigmático, se perde; a ressonância do real surpreende melhor nossos sentidos. Transformar o impossível da tradução e o impossível contido na mensagem é uma questão de sorte, que tentamos.

UOM de base

Vamos por partes, mas também por conjuntos aleatórios sem partes. “UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium”. UOM substitui aqui o “homem”, o homem das ilusões humanistas, humanitaristas, humanitárias, o conquistador do Universo no qual ele supõe se refletir; trata-se do “homem que tem um corpo”. O “homem” é substituído por três letras que configuram algo que é quase um matema, quase um impessoal, quase uma jaculatória. Mas isso não o priva de ter um corpo e não mais de um. Então, segue uma frase, cahun corps. Custa, mas se pode ler o relativo de determinação: “UOM que tem um corpo”. Ter um corpo o define (LAURENT, 2016, p. 57).

Às vezes uma cedilha pareceria mais adequada, çahun corps, “isso tem um corpo”. Se fosse assim, Lacan nos levaria a afirmar que o Isso, le Ça, ou, em alemão, das Es, não é um corpo, senão que o tem, no sentido de sua propriedade e no de tê-lo agarrado também. Mas o que lemos é cahun. O que nos leva a outro desvio.

Claude Cahun foi o pseudônimo de uma mulher artista, inserida no movimento surrealista, que, de acordo com Jean-Paul Clébert (1996), “viveu no ódio de sua feminilidade”[4]. Ao contrário, embora não seja incompatível com esse ódio, parece que ela viveu habitando a estranheza de seu corpo. Escritora, atriz, fotógrafa, vestia-se de maneiras muito diferentes, brincando sempre com a ambiguidade de seu gênero. Ela mesma se considerava sua própria criação, com a identidade de um terceiro gênero. O mais conhecido são suas fotografias, geralmente autorretratos nos quais aparece olhando o espectador, ou olhando-se no espelho enquanto olha o espectador, ou com os olhos fechados. Sua parceira foi uma mulher que utilizava como pseudônimo o nome de um homem, digamos, um homem. Enquanto seu próprio nome, Claude, é epiceno em francês; seu sobrenome, Cahun, que foi de um tio-avô seu, o escolheu pela sua semelhança com o nome Caim. Significava assim a ambiguidade de seu gênero e recordava ao homem que, se possui um corpo, não o possui sem ódio.

Voltemos a Lacan: “Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele é um” (LACAN, 1975/2003a, p. 561) cor/niché. Para começar, corniché nos remete a cornichon, que significa “pepino[5]”, mas também “tolo” ou “bobo”. Ter um corpo nos entontece. Ter um corpo nos condena a estar incorporados nele; niché significa alojado em algum tipo de habitáculo, o que inclui também estar metido no nicho funerário. Falando do corpo, Lacan (1970/2003b, p. 407) se refere a ele como corpse, “cadáver”, resto de um ser falante, de forma alguma uma carniça (LAURENT, 2016, p. 35). O corpo do homem como Um antecipa sua qualidade de resto de uma existência também Uma. Logo Lacan especifica que UOM, no princípio, tem. Tem um corpo. E o ser provém daí, de uma existência que tem corpo, que o toma como Um, antecipando então sua morte.

O corpo cartesiano 

O ser de UOM é ter um corpo. O ter é anterior ao ser: “o verdadeiro é que UOM tem [a], no princípio” (LACAN, 1975/2003a, p. 561). E logo se demonstra, no bordel epistemológico, como razão de ser.

Vamos ao começo: o Discurso do método, de Descartes. O pensamento cartesiano separa a alma do corpo: “a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo” (DESCARTES, 1996, p. 39). O corpo não lhe é necessário para pensar: “podia fingir que não tinha nenhum corpo” (Ibid., p. 38) na hora de acompanhar o pensamento com o ser. A partir dali, o corpo é entregue ao raciocínio geométrico, às leis estabelecidas por Deus na natureza (Ibid., p. 47). A luz, os astros, a terra, a água, o ar, o fogo, os minerais, as plantas, os animais, e “particularmente […] os homens” (Ibid., p. 52). Embora, para estes, Descartes confesse que lhe falta conhecimento:

“Contentei-me em supor que Deus tivesse formado o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto na aparência exterior de seus membros quanto na conformação de seus órgãos, sem o compor com matéria diferente daquela que eu descrevera, e sem nele pôr, no início, qualquer alma racional ou qualquer outra coisa que lhe servisse de alma vegetativa ou sensitiva” (Ibid., p. 52).

E supõe ao corpo um calor sem lume, semelhante ao que se produz no feno verde ou na fermentação do vinho. Trata-se de todas aquelas coisas que se produzem no corpo “sem que pensemos nisso” (Ibid., p. 52), e que igualmente se produzem nos animais desprovidos de razão. Para Descartes, tudo aquilo que pensa está separado do corpo. E a partir dali convida seus leitores para se proverem de um coração de boi para estudar a mecânica da circulação sanguínea. Mas não pode deixar de inserir nessa mecânica “a geração dos espíritos animais, que são como um vento muito sutil, ou antes como uma chama muito pura e muito viva que, subindo continuamente em grande quantidade do coração para o cérebro, daí se dirige pelos nervos para os músculos, e dá movimento a todos os membros” (Ibid., p. 61). Para Descartes, esses “espíritos animais” são materiais, partículas ínfimas que formam parte da circulação sanguínea e estão submetidas, portanto, às leis da mecânica[6]. Descartes atribui a eles não somente o movimento animal, como também, após sua visita ao cérebro, a causa do sono e da vigília, dos sonhos, do senso comum, da memória, da fantasia. Segundo sua concepção, o corpo é um grande autômato complexíssimo, feito pelas mãos de Deus, mais admirável que as máquinas que podem ser inventadas pelos homens.

Parece, então, que a diferença está somente na complexidade. Mas Descartes adiciona algo a mais: o uso da palavra e a faculdade de conhecimento. Sempre poderíamos distinguir esses autômatos, ainda que imitassem nossas ações tanto como fosse moralmente possível. O termo “moralmente” que utiliza Descartes se refere ao sentido prático no uso do corpo, na medida em que possamos considerá-lo em nossa possessão. A máquina pode chegar a proferir palavras e inclusive signos corporais que valeriam como discurso, como o gesto de tocar alguém para chamar sua atenção ou emitir um grito de dor, mas não poderá tomar a linguagem como um fato de significantes: não é “possível conceber que combine as palavras de outro modo para responder ao sentido de tudo quanto dissermos em sua presença” (Ibid., p. 63). Inclusive os homens mais embrutecidos podem fazê-lo. Esse é o automatismo dos mais perfeitos autômatos de hoje, como Siri, Alexa e outros dispositivos. A outra parte é que, embora possam executar ações ainda melhor que os homens, não atuam por conhecimento, quer dizer, pela faculdade de encontrar respostas singulares a ações imprevistas, “senão somente pela disposição de seus órgãos” (Ibid., p. 64).

Ter é sentir o não-ser 

Vemos, em todas essas considerações, então, como o pensamento de Descartes dá por suposta a possessão do corpo como algo próprio e como condição da qual deduzir o ser. Já dissemos que o que acrescenta Lacan é que, se contamos com o corpo, o ser é secundário, o primário é o ter. E esse ter toma o sentido de captar ou de ser captado. Lacan (1972/2003c) o diz com a expressão ça s’y sent, “isso se sente aí”, ou seja, que o sentido (oposto à significação) é questão de sentimento, o sentido se sente[7]. Ou inclusive somos sentidos, somos sentido, que somente em um segundo tempo terá razão. A expressão francesa se escuta também como o adjetivo saisissant: surpreendente, chocante, estonteante, impressionante, cativador. Quer dizer, esse “ter” é algo sentido: não é questão de dedução, mas de ponto de partida; não é questão de possessão, mas de captura. O ser, em contrapartida, não se sente, não angustia, é uma dedução, mais ou menos, de razão, não de corpo. Tal como o diz Lacan (1975/2003a, p. 561): “Isso se sente, e uma vez sentido, demonstra-se”. A interpretação na psicanálise aponta a esse sentido e a essa captura; a interpretação é uma ressonância, uma ré-son, uma razão que se mostra primeiro pelos seus ecos e logo se demonstra em seus efeitos. Temos então isto: o sentido, o Sinn, diferenciado da Bedeutung (traduzida ora como significação ora como referência), é um efeito de corpo, uma ressonância que será razão.

Assim, o parlêtre, o ser-de-falar-com-letra, enquanto homem, enquanto UOM, tem um corpo. O parlêtre, enquanto mulher, é sintoma de um corpo, como as produções de Claude Cahun. Perguntamo-nos o que quer dizer “ter” no “ter um” e o que quer dizer “um” em “um corpo”. Dentro da problemática da oposição entre o ser e o Um, podemos compreender que o ter não se aplica ao ser[8]. O ser, não se o tem; se o é, eventualmente. O que UOM tem é algo que supõe um Um, que ainda não é ser, chamado corpo inicialmente. Vejamos as qualidades paradoxais desse corpo que UOM teria.

UOM não tem, então, ser; mas tampouco é Um. O Um não se tem, como não se tem a palavra; o Um, existe. Então vem UOM e tem Um corpo. E isso é um avoyement[9],  que seria (em francês antigo) um “abrir caminho”; em francês atual se traduziria algo como uma terência, palavra que, se existisse, seria um sinônimo não exato de possessão. Como um ter sem possuir, sem agarrar. A palavra avoyement (LACAN, 1975/2003a, p. 561)além disso, guarda semelhança com aboiement, ladrido. Latir não é falar, mas se fazer escutar um som, com valor de semblante, que abriria o caminho… à formação do sintoma, com um discreto desprendimento. Talvez não seja demais recordarmos aqui o cachorro do conto de Sir Arthur Conan Doyle: seu silêncio era mais eloquente que seu ladrido, sempre que alguém escutasse esse Ø. O ladrido obtura o silêncio.

Perguntas 

Recapitulemos nossas perguntas: Como pode UOM ter Um corpo? O que é ter? Como é Um? O que é o corpo? Muitas perguntas?

A civilização, ou a biopolítica (LAURENT, 2016), é o imperium, o un-pire, o um-pior, o império sobre os corpos, que nos dirige ao pior modo de ter um corpo (LACAN, 1975-76/2007). Um Império se baseia efetivamente no domínio sobre os corpos tomados de uma vez, como Uns reunidos em algum modo de totalidade. Ali se assenta a diferença entre Aristóteles e Lacan. Na primeira versão de Joyce, o Sintoma, Lacan carrega ainda mais as tintas: “Somente deportados participam da história: já que o homem tem um corpo, é pelo corpo que se o tem. Avesso do habeas corpus” (1975/2003a, p. 565)[10]. O habeas corpus, base do direito ocidental, é a possessão inalienável do corpo próprio, o fundamento da soberania. O Império é a despossessão, sem mística nem poética, do corpo de alguém. Dali os movimentos de corpos por centenas e por milhares: deslocam-se em razão de uma conquista que os despossui de todo o resto, não sem ameaçar essa mesma última possessão. O exílio do corpo se traduz em êxodos porque, se alguém pode “ter seu corpo”, por menor que seja, esse corpo pode passar a ser uma possessão (ou propriedade) de outrem.

Antes de tentar responder às perguntas sobre o corpo, examinemos o que é ter. Para isso temos uma resposta lacaniana direta: “Ter é poder fazer alguma coisa com” (LACAN, 1975/2003a, p. 562). Com isso que se tem. Recordemos que, a isso, Descartes o chamava moral. O que UOM faz com seu corpo é: um sintoma. O “poder fazer algo com isso” remete ao artifício de Joyce (2014)[11], ao savoir y faire, ao saber como lidar com isso que se tem, ainda que não se saiba de que maneira o tem ou como funciona, porque nunca se o tem totalmente. Quando não se tem Todo, fica o recurso do que há, embora não se possa possuí-lo: o Um. Com os semblantes, que são a forma eminente do Um na linguagem, na lalangue, no conjunto de todos os conjuntos que nunca chegam a dizer-se a si mesmos, pode-se fazer um nó, mais ou menos, emaranhado, mais ou menos apertado, que tenha, que seja uma tensão sustentada, algo que UOM possa ter por consistente.

Vamos, então, às perguntas sobre o corpo de acordo com as consequências do ter. Para isso, levamos em consideração três respostas, segundo as três dimensões do dito: o imaginário, o simbólico e o real. 

O corpo imaginário 

No imaginário, o corpo tem o poder de cativar. O corpo é uma forma imaginária que parte do saco ou da bolha. O corpo é a pele, a peau, que, em francês, se pronuncia como pot, como bote, ou bunda, ou sorte. Dali nos vem a ideia de consistência, de algo que um recipiente mantém junto, fazendo conjunto. É a ideia de que a pele envolve os órgãos. Embora isso seja assim graças à corda que amarra o saco, acontece que, no imaginário, essa corda não pode fazer nó. E vai ser no discurso do mestre que os corpos serão contados, de um em um, graças à corda (de presos).

Por outro lado, “o amor-próprio é o princípio da imaginação” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64). E continua Lacan:

“O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante. […]

O corpo decerto não se evapora e, nesse sentido, ele é consistente, trata-se de um fato constatado mesmo nos animais. É precisamente o que é antipático para a mentalidade, porque ela crê nisso, ter um corpo para adorar. É a raiz do imaginário” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64).

E Lacan faz uma brincadeira sobre o cogito cartesiano: “Je le panse… je le fais panse, donc je l’essuir” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64)[12]. Vejamos que versões podemos ter desse cogito — que consoa com o original cartesiano do je pense, donc je suis — em dialeto corporal: je le panse, o cuido, coloco-lhe um curativo (um band-aid), quer dizer, eu o faço penso, logo je l’essuie, o enxugo, o seco, o suporto (como em essuyer une défaite, “sofrer uma derrota”), o limpo. Seco-lhe os fluídos que às vezes transbordam (sangue, suor e lágrimas e também mucos, sêmen, saliva, urina, etecetera) ou as escamas que caem (pele morta, pele seca, cabelo, unhas). O ser, posto a ter, torna-se líquido. Mas essa crença não deixa de ter uma importância às vezes crucial na clínica do sinthome. O suor pode valer como um recobrimento do corpo, como uma segunda pele ou um vestido. A maquiagem pode também servir de concha macia para um semblante.

Uma vinheta clínica sobre as lágrimas: uma mulher chega ao meu consultório para formular uma queixa absurda. Enquanto fala, chora amargamente e vai formando uma pilha de lenços de papel úmidos que, no final, atira como produto, ou evacuação, ou signo de pontuação, na minha lixeira; paga e vai embora aliviada, até a próxima. Por um tempo, recuperou alguma consistência para seu corpo. Outra vinheta, de uma apresentação de pacientes: uma mulher está marcada desde sua mais terna infância pelo suor, sintoma que tem guiado sua vida. Seus estudos se limitaram, pois o suor dificultava-lhe a aprendizagem com livros e blocos encharcados. Muitos trabalhos lhe são impedidos pelo mesmo motivo. Nenhuma cadeia significante sustenta esse sintoma, que envolve seu corpo, frouxamente investido pela pulsão, amarrado só por uma costura sem fio.

Voltemos a Lacan: “Em suma, é isso. É o sexual que mente lá dentro, ao ficar se relatando demais” (LACAN, 1975-76/2007. p. 64)[13]. A coisa sexual conta muitas histórias, vangloria-se, tem a sua arrogância, é muito convencida. O imaginário do corpo é sua geometria. O início da geometria não é a linha, nem os axiomas de Euclides, senão a bola, ou o globo, que provém do gozo oral-anal. Nesse sentido, Joyce (2014) nos ensina algo no Retrato do artista quando jovem quando, depois da surra, seu corpo se desprende como uma casca. Ele nos mostra que ter um corpo (e não sê-lo) não exclui senti-lo como um estrangeiro. Daí a necessidade de supor uma alma, uma Ideia Uma para resolver essa estrangeiridade. O original de Joyce é que resolve essa estrangeiridade não com a alma, mas com o ego.

O corpo simbólico

Por outra parte, se consideramos em sua dimensão simbólica o saco da forma imaginária, veremos que se traduz em uma oscilação entre o 1 e o 0. O saco é um, mas está vazio. Lacan dá uma formulação dessa tradução nos termos da teoria dos conjuntos e Jacques-Alain Miller a desenvolve na sétima Nota passo a passo. Enquanto o corpo aristotélico (o da psicologia, o da mentalidade, o da saúde mental) é o corpo tomado como Um, para Lacan, o corpo faz presente o conjunto vazio, que se escreve Ø. A partir daqui, o desenvolvimento se apoia em dois princípios cantorianos: em primeiro lugar, que o conjunto vazio é subconjunto de todo conjunto; em segundo lugar, que todo conjunto é subconjunto de si mesmo. Então, se partimos do Um do corpo, podemos escrevê-lo na teoria dos conjuntos como um conjunto de dois elementos: o Ø e o 1. Isto, dito na linguagem dos conjuntos, é {1, Ø}. Ou seja, o corpo é um conjunto de dois elementos, de forma que, com o Um, criamos o 2. Comentando Lacan, Miller o expressa assim: “o conjunto, o saco cantoriano, merece ser conotado como uma mistura de 1 e de zero” (MILLER, 2007, p. 213). Dito de outra maneira e resumindo o raciocínio de Miller, o corpo, um saco vazio no imaginário, tomado no simbólico como Um, entra na conta como duplo. Essa duplicidade, em termos lacanianos, se escreve: l’Un-tout-seul, o Um totalmente sozinho, e l’un-en-plus, o um que está a mais. A esse l’Un-tout-seul, ao um sozinho, ao um-todo-só (onde “todo” é ao mesmo tempo adjetivo e advérbio), poderíamos chamá-lo de solitodo. Se o solitodo é “significante, marca, traço, corte” (MILLER, 2007, p. 213), o um-a-mais dá à matemática o modelo do conjunto vazio. É o saco de pele, vazio, o corpo por fora de seus órgãos o que Lacan, em outro lugar, chama de l’un-en-peluce, o um de pelúcia, que se pronuncia em francês como l’un en plus. Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan (1953/1998, p. 284) alude a algo assim, ao citar ao poeta T. S. Elliot: We are the hollow men / We are the stuffed men. “Somos os homens ocos / Somos os homens empalhados / Todos encostados / Com o capacete cheio de palha. Ai de nós!” (LACAN, 1953/1998, p. 284). Poderia ser também o misterioso “corpo sem órgãos”, do qual falavam o filósofo Gilles Deleuze e o psiquiatra Felix Guattari no seu Anti-Édipo (MILLER, 2007).

O corpo real

O dois do simbólico nos leva ao três: 1, Ø e, como terceiro elemento, o conjunto que formam ambos, {1, Ø} (MILLER, 2007, p. 213). Esse é o nó do real, 1, o solitodo é o significante do mestre. O Ø é o S2, porque indica o par “1, Ø”. Esse casal separado constitui o símbolo, esse objeto ao qual lhe falta sua metade. Vemos então que, separados, eles são necessários um ao outro no simbólico. Para indicar o que não está, faz falta um 1; que deixará de ser solitodo para ser falta de complemento. Para constituir o três do real, faz falta o conjunto {1, Ø}, que é a arbitragem do signo linguístico, o que enoda o 1 e o 0. Refiro-me aqui à substituição que Lacan faz do que Saussure considerou uma relação arbitrária por uma relação de arbitragem, uma solução de compromisso, na qual não está ausente um mestre, entre o som e o sentido. E o que liga o significante ao significado, ou, mais primariamente, o símbolo com o sintoma, é a forma de ressonância dessa arbitragem (LACAN, 1975-76/2007, p. 20).

A surpreendente conclusão de Lacan, de amplas consequências clínicas, é que o real não é o corpo, como tampouco é a linguagem, mas é a ressonância ou consonância, essa arbitragem que cria uma concordância inesperada entre ambos. Lacan utiliza um termo em francês para descrever as consequências da interpretação como modo de criar uma nova ressonância que não havia se produzido anteriormente; utiliza para isso o termo épisser, emendar, um vocábulo pertencente à arte da cordoaria e que se refere à operação pela qual se unem duas cordas entrelaçando seus cabos ou extremos. Para seguir esse procedimento, primeiro tem que desfazer os extremos das cordas a unir e, em seguida, fazendo uso de uma ferramenta apropriada, entrelaçar os cabos soltos de cada extremo com os do outro.

Assim, “ensinamos o analisante a emendar (épisser), a fazer emenda (épissure) entre seu sinthoma e o real parasita do gozo” (LACAN, 1975-76/2007, p. 71). Porque “é de suturas e emendas que se trata na análise” (LACAN, 1975-76/2007, p. 71)[14]. A ressonância da interpretação afeta o imaginário-real do corpo com a finalidade de fazê-lo simpatizar com o real parasita do (seu) gozo. O gozo parasita do corpo deve emendar-se com o corpo. O corpo deve admitir esse parasita como próprio: assim chega ao nó do amor pelo seu sinthoma.

 

 

Tradução: Ernesto Anzalone e Paula Nocquet
Revisão: Michelle Sena

Referências
CLÉBERT, J.-P. Dictionnaire du Surréalisme. Paris: Seuil, 1996.
DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.
LACAN, J. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b, p. 400-447.
LACAN, J. (1972). O aturdito. In: ______, 2003c, p. 448-497.
LACAN, J. (1975). Joyce, o Sinthoma. In: ______, 2003a, p. 560-566.
LACAN, J. (1975-76). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J.-A. “Nota passo a passo”. In: LACAN, J. (1975-76). O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

[1] Texto originalmente publicado com o título “Un cuerpo, uno. Traducción y desciframiento”, na Revista Lacaniana de Psicoanálisis, ano XV, número 28, ago. de 2020.
[2] Há duas versões para essa conferência. A primeira foi publicada nas Atas do V Symposium Internacional James Joyce (Paris, 1975), em Joyce avec Lacan (Paris: Navarin, 1987) e nos Autres écrits (Paris: Seuil, 2001) e Outros escritos (Rio de Janeiro: Zahar, 2003). A segunda se encontra em Jacques Lacan, O seminário, livro 23: o sinthoma (trad. Sergio Laia; revisão André Telles) (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007). O fragmento considerado aqui pertence à primeira versão, Outros escritos, 2003, p. 561.
[3] No original: “LOM, LOM de base, LOM cahun corps, et nan-na Kun. Faut le dire comme ça: il ahun…et non: il estun… (cor/niché). C’est l’avoir et pas l’être qui le caractérise. […] LOM a, au principe. Pourquoi? ça se sent, et une fois senti, ça se démontre“. cor/niché (corps niché), corpo aninhado, alojado, escondido, faz lembrar ainda cornichon, termo com que, na linguagem coloquial, faz-se referência àquele que é tolo, fácil de enganar (N.E.) (LACAN, 1975/2003, p. 561).
[4] Em seu Diccionnaire du Surréalisme, Paris, Seuil, 1996.
[5] N.T: Esse termo Cornichon, conforme podemos ler na nota do tradutor do livro de Éric Laurent, O avesso da Biopolítica. Uma escrita para o gozo, à p. 56, também pode ser traduzido por pepino que, na gíria francesa, designa o órgão sexual masculino.
[6] Nota de É. Gilson em sua edição comentada do Discours de la méthode, Paris: Vrin, 1925, p. 414-415.
[7] Lacan introduz esta expressão no “O Aturdito” (1972/2003, p. 481-482). Primeiramente grafado como çasysent, e linhas abaixo como sacysent. A tradução é “isso se sente ai”, “issaisecente” em português. Diríamos que responde ao duplo sentido da palavra “sentido”: como efeito do dito, e como sentimento. Os tradutores consideram que a segunda grafia contém uma alusão a Lemaistre de Sacy. As linhas citadas ao início deste artigo contêm a terceira grafia. Mais adiante (LACAN, 1975/2003, p. 566) Lacan volta a tomar esta expressão para certificar a leitura possível de Finnegans Wake: se sente que Joyce gozou o escrevendo.
[8] Um dos temas do último curso de J-A Miller de 2011, Um inteiramente só, conhecido inicialmente como O ser e o Um.
[9] Il y a de l’avoiement dans qu’as-tu? Intraduzível como “Há algum ladrido nele, que tens tu?” que os tradutores comentam: “o que de um ladrido há na pergunta pelo ter”. Na edição em português: “Há uma terência [avoyement] no ‘que que você tem?’ (LACAN, 1975/2003, p.561)
[10] Cf. MILLER J.-A. Habeas Corpus. Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 73, p.31-37, 2016.
[11] Ao final do Retrato do artista quando jovem: “Old father, old artificer”. “Velho pai, velho artífice” (JOYCE, 2014, p.313)
[12] Traduzido como “Eu o penso, isto é, eu o faço penso, logo eu o enssoufro” (LACAN, 1975-76/2007, p.64). Nota do tradutor: Condensação dos verbos “ser”. “enxugar” e “sofrer”, contidos no verbo “essuyer”
[13] O original diz “C’est à ça se résume. C’est le sexuel qui ment là-dedans, de trop s’en raconter”. O sexual se conta demais.
[14] O original diz: “nous apprenons à l’analysant á épisser, à faire épissure entre son sinthome et le réel parasite de la jouissance […] C’est de sutures et d’épissures qu’il s’agit dans l’analyse”.



ACONTECIMENTO DE CORPO, GOZO MÍSTICO E JACULAÇÃO[1]

JÉSUS SANTIAGO
Psicanalista, membro e AME da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
santiago.bhe@terra.com.br

Resumo: O interesse do texto é mostrar que a jaculação é uma versão renovada da interpretação na medida que nela o objeto voz se orienta para a vertente da ressonância do significante, dando assim abertura ao equívoco. Para a jaculação, o significante é menos o que produz sentido e mais o que se ouve e ressoa como real. Por intermédio do objeto voz, a interpretação joga com o equívoco dos significantes que causam o gozo. E nisso a interpretação se apresenta diretamente conectada com a escritura. Apenas a escritura é capaz de circunscrever e isolar o real do efeito de sentido. O inconsciente torna-se um texto que se lê e no qual a leitura se equivoca, deixando ouvir efeitos sonoros que permitem esvaziar o sentido.

Palavras chaves: jaculação, interpretação, gozo, sentido e real.

BODY EVENT, MYSTIC JOUISSANCE AND JACULATION

Abstract: This essay has the intent to show that jaculation is a renewed version of interpretation, in which the object voice is oriented toward the resonance of the signifier, thus opening up to equivocation. In jaculation, the signifier is less what produces meaning and more what is heard and resonates as real. Through the object voice, interpretation plays with the equivocation of the signifiers that cause jouissance. In this case, interpretation is directly connected to writing. Only writing can circumscribe and isolate the real from the effect of meaning. The unconscious becomes a text that is read, and its reading is open to equivocation, letting the sound effects be heard and allowing the meaning to be emptied.

Keywords:  jaculation, interpretation, mystic jouissance, meaning, real.

Desali, s/t

 

Dois acontecimentos de corpo 

O interesse precoce de Lacan pela mística se inicia na década de 50 e é uma evidência de que o corpo atravessa, de diferentes maneiras, toda a trajetória de seu ensino. Particularmente, o gozo místico desempenha um papel fundamental nessa revolução conceitual concernente ao sintoma concebido como acontecimento de corpo. Antes de tratar da mística, é preciso dizer que o acontecimento de corpo concerne a uma mudança radical na concepção do sintoma na medida em que este passa a ser diretamente causado pelo trauma. Aliás, tanto o sintoma quanto o trauma são apreendidos como acontecimentos que deixam traços e marcas. Trata-se sempre da ação dos discursos que afetam o corpo. Assim, o trauma não é um acontecimento que possa se explicar no sentido de um acidente factível, como é o caso de um atentado ou abuso sexual. É um acontecimento que resulta do componente inerente de lalíngua, ou seja, sua abertura à contingência que se afirma por sua condição em causar impacto sobre o corpo. O trauma é o traço de afetação fundamental que deixará marcas na vida subsequente do corpo falante, gerando um desequilíbrio permanente que mantém um excesso de excitação que não se deixa reabsorver pela homeostase do prazer.

É diante do insucesso do princípio do prazer em regular o desequilíbrio do gozo gerado pelo trauma que se pode falar do sintoma como acontecimento de corpo. O sintoma é, assim, a pura repetição, pura reiteração, no real, desse Um de gozo que se depreende desse acontecimento primordial que é o trauma. Desde então, o sintoma passa a ser menos um objeto decifrável do que esse efeito de reiteração do gozo do Um no corpo e, nesse sentido, esse acontecimento passa a ser nomeado como sinthoma (com th), diferenciando-se daquele por não se esgotar com a decifração do sentido (MILLER, 2011, aula de 2/3/11). Enquanto acontecimento de corpo, o sinthoma não se confunde com fenômenos de corpo transitórios, em eclipses, mas apresenta-se, ao contrário, com uma temporalidade permanente (MILLER, 2003). Qualifica-se, assim, o acontecimento de corpo como sinthoma quando este se instala ordenando, de modo permanente, na vida do falasser. 

O Outro da mística é furo

A mística é exemplar no que caracteriza o sinthoma, pois fala-se com o corpo permanentemente com base no amor da língua, cujo destino é quase sempre a escritaPara as beguinas, mulheres místicas um pouco desumanizadas — que podem ser consideradas casos que Lacan nomearia como UOM —, é quase natural que escrevam, com o corpo, para o gozo que lhes transborda. A escrita testemunha a afinidade particular que existe entre o gozo e a experiência mística. Para além das miragens do narcisismo, fomentado pela relação dual e especular, a escrita mística para o gozo visa o amor que está do lado do real. O que vem a ser o amor real? O próprio Lacan colocará a questão sobre se o amor pode ir até o limite em que se visa, no Outro, o seu gozo nocivo e deletério. Enfim, pode-se amar o Outro em seu gozo? Esse amor calcado no gozo que se aloja no Outro se mostra com nitidez nas experiências místicas em que Angela de Folignio bebia com deleite a água na qual acabara de lavar os pés dos leprosos ou, ainda, em que Maria Allacoque comia, com não menos recompensas que as efusões espirituais, os excrementos de um doente (LACAN, 1969-70/1986).

Tanto a mística quanto o amor cortês consistem nas respostas de Lacan a respeito do real do amor concebido como “o que vem em suplência à relação sexual” (1972-73/1982, p. 62). No defrontamento com o impossível da não relação sexual — de onde se define o real —, a experiência mística aparece enquanto encontro com o seu parceiro privilegiado, que é Jesus Cristo, e não o Deus da religião monoteísta. O parceiro é o Cristo da paixão, crucificado, estigmatizado, de tal maneira que as místicas gozam do Filho de Deus, considerando que este morre sem o amparo do Pai. É o que se manifesta na súplica do Filho: “Pai, por que me abandonaste?”. Se a mística não tem o Deus monoteísta como parceiro de gozo, é porque não retém como Outro aquele que provoca trevas sobre a Terra e não responde a tempo no momento em que o filho se encaminha para a morte. A face negativa de Deus pode se apresentar como um puro abismo, um puro vazio, um furo e, por isso, Lacan (1972-73/1982), na lição “Deus e o gozo d’Ⱥ Mulher”, demonstra como o Outro das místicas equivale à “face de Deus, como suportada pelo gozo feminino” (p. 103). Esse Outro com o qual uma mística goza, Lacan o define como sendo um furo (p. 155), e nome desse furo é o S(Ⱥ).

Não se está mais do lado da existência da função de exceção do pai que funda o universo edípico do “todos submetidos à castração”. A face do Outro das místicas não é paterna, ela é crística. Pode assumir a figura do querubim ou do serafim, como é o caso dos que aparecem nas visões de Santa Teresa d’Ávila. A mística cristã é a experiência desse “não há nenhum Outro”, não há ninguém para suprir; é a experiência da ausência suplicante de Deus. A mística aprofunda essa ausência, cava fundo o abismo que é a condição do encontro com Deus, que, por ser puro e infinito amor, confunde-se com o não-toda do feminino.

Com a mística, torna-se possível distinguir duas faces do Outro que correspondem às duas faces de Deus. De um lado, a face de Deus que se apresenta como o Outro do pacto da palavra, que assume a função de um terceiro termo, pacificador e dotado da capacidade de simbolização, e, de outro, um Deus que se suporta do gozo suplementar d’ Ⱥ Mulher. Lacan inscreve essa face real de Deus do lado feminino das fórmulas da sexuação, no lugar em que se escreve a inexistência da exceção feminina -$x-Fx.

Caso fosse possível escrever o Totem e Tabu do lado feminino da sexuação, caso a exceção feminina existisse, realizar-se-ia a existência d’A Mulher. Se mulher existisse, constituiríamos o conceito universal das mulheres. O Ao-menos-Um não existindo para o não-todo fálico feminino, o que se escreve no lugar é o Menos-Um referente ao significante da falta no Outro S(Ⱥ) Justamente nesse lugar, Lacan situa o êxtase proveniente do gozo místico, que não se apazigua com nenhum universal, pois ele é o furo que bebe, é o abismo que tem sede.

A mística é acontecimento de corpo

Essa valorização do gozo do feminino no âmbito da experiência mística sofre um tratamento aprofundado por meio da arte barroca no cristianismo, que Lacan (1972-73/1982), em suas diversas manifestações, não recua em qualificar como obscena. É conhecida a força interpretativa do barroco com relação aos estados da alma e do corpo, das emoções e das paixões, suas exposições de modos de gozo e, notadamente, estados de sofrimentos característicos do martírio, do qual se extrai a etimologia de “testemunho”. Surpreende, no entanto, que as evocações do gozo de Santa Teresa d’Ávila se fazem no decurso do seminário Mais, ainda, sem nenhuma referência aos seus escritos. Lacan se vale da obra de arte do escultor barroco Gian Lorenzo Bernini, posterior em mais de um século da vida da santa, realizada em contexto cultural e teológico bem distinto do século XVI espanhol. Assim, não se sugere a leitura de suas obras, pois, segundo Lacan, basta olhar, como se o olhar fosse a única via para apreender não o savoir-faire do artista, mas o gozo da santa que se pretende exibir: “Basta que vocês olhem em Roma a estátua de Bernini para compreenderem que ela está gozando” (1972-73/1982, p. 103), diz Lacan.

Além do gozo feminino, a obra retrata o fenômeno místico da chamada transverberação, que descreve a ação das palavras jaculatórias representadas pelo dardo de ouro do serafim que lhe perfura o coração. Em seu relato, a santa fala de suas impressões de que o anjo lhe perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-lhe as entranhas. Quando o tirava, parecia-lhe que as entranhas também eram retiradas, ficando com o corpo todo abrasado, num imenso amor de Deus. Relata ainda que “(…) a dor era tão grande que soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa que a alma não desejava que tivesse fim”. Como prova de que se trata de jaculações que atingem o corpo, ela própria conclui: “(…) ainda que o corpo participe, às vezes muito, não se trata de dor corporal, é dor espiritual”.

Esse a mais do gozo tem lugar no corpo, como mostra o testemunho de vivências corporais nos relatos de Santa Teresa d’Ávila: “(…) a ampliação sem limites do amor é o que dilata o seu peito de uma tal maneira que o seu coração fica prestes a romper”. O querubim é um nome do real do gozo que trabalha em seu corpo. A flecha do anjo, ao perfurar seu corpo, delimita e circunscreve o êxtase proveniente do amor místico que Lacan correlaciona ao significante do Outro barrado (Ⱥ) Trata-se de um gozo enquanto tal excluído do lugar do Outro, fora da lei do significante, mas sem, no entanto, estar fora do corpo, como é o caso do gozo fálico, nem fora do real, como é o caso do gozo do sentido. Esse furo próprio do significante do gozo do Outro barrado S(Ⱥ) é o mais genuíno furo com o qual a prática analítica lida, visto que contrasta com o orifício referido ao gozo fálico, ou o umbigo do sonho como furo do sentido, no âmbito do tecido do inconsciente. É esse gozo que experimentam certas místicas como um gozo ao mesmo tempo envolvente e aniquilador da nudez de Deus. Pois o que o gozo místico coloca a nu é que no lugar de Deus há um abismo, um real inerente ao gozo feminino.

Faz-se necessário precisar que a mística Santa Teresa não se caracteriza pelo uso da poética, como é o caso de São João da Cruz ou Ângelo Silésius, pois prevalece, em seus escritos, as preces jaculatórias, que, como se viu, são palavras vivas e inflamadas que, segundo ela, “partem da alma e perfuram o coração”. Quando Lacan retoma a mística durante os anos 70, não se trata apenas de mostrar o que é o gozo não-todo fálico, mas objetiva-se, também, reinventar a prática da interpretação à luz da jaculatória mística. A abordagem da jaculação aparece, portanto, quando se depara com o fato que a interpretação, no último ensino de Lacan, se apresenta intimamente articulada com a definição do sintoma como acontecimento de corpo.

A jaculatória é palavra que fere

Quando se retoma a palavra jaculatória como horizonte para se renovar a prática da interpretação, trata-se de uma reinvenção que deve estar à altura do sintoma como acontecimento de corpo. Portanto, a jaculação, tal como ela é reinventada no ensino de Lacan, é, como propõe Éric Laurent (2021), um filão fecundo para tratar da interpretação como acontecimento. A interpretação elevada à altura do acontecimento exige, em primeiro lugar, fazer a distinção entre a fala e o dizer. É o que sugere o Seminário 20: Mais, ainda ao apresentar a jaculação mística como profundamente distinta do campo da fala, pois ela é escrita. Lacan diz assim: “essas jaculações místicas, não é lorota nem só falação, é em suma, o que se pode ler de melhor podem pôr em nota de rodapé (…) — Acrescentar os Escritos de Jacques Lacan, porque é da mesma ordem” (1972-73/1982, p. 103). Como se vê, recorre-se à jaculação como um dos pilares da interpretação porque, enquanto escrita, ela é um meio que permite interrogar o alcance da operatividade das palavras.

Essa mesma distinção entre a fala e o dizer reaparece no ano seguinte, em Les non-dupes errent:

“Notem que eu não disse a fala, eu disse o dizer, nem toda fala é um dizer, se assim fosse toda fala seria um acontecimento, o que não é o caso, pois, se o fosse, falas vãs não seriam faladas. Um dizer é da ordem do acontecimento” (LACAN[2] apud LAURENT, 2021, p. 184-185, grifo nosso).

Se a questão da interpretação está cravada como um pilar da prática analítica, é porque, desde o seu início, foi possível interrogar sobre o alcance e a operatividade das palavras. Nesse momento do ensino de Lacan, postula-se a interpretação como o instrumento que se distingue das “falas vãs”, pois lhe interessa atingir o dizer capaz de confrontar com o impossível de suportar do sintoma, única maneira de abrir uma porta ao real.

Portanto, a jaculação, enquanto um dizer da ordem do acontecimento, emerge como um meio em condições de enlaçar a intepretação e o sintoma, concebida como a reiteração do gozo do Um sobre o corpo. Para que a interpretação seja o emprego das palavras no sentido da jaculação, faz-se necessário ir bem mais longe do que é a função da fala, a saber, gerar efeitos de sentido. Ir além dos efeitos de sentido que se localizam na junção do imaginário com o simbólico supõe admiti-la como incompatível com um dizer esclarecedor, ou tradução, obtidos pelo acréscimo de um significante dois a um significante um (LAURENT, 2021). Assim, um ano após essa formulação da interpretação como um dizer da ordem do acontecimento, Lacan, em RSI, se refere expressamente à interpretação como jaculação:

“O que apresentamos como o nó borromeano já vai contra a imagem de concatenação. O discurso em questão não faz cadeia (…). Desde então, trata-se de saber se o efeito de sentido em seu real tem a ver com o emprego de palavras ou com sua jaculação (…). Acreditava-se que eram palavras que tinham peso. Mas, à medida que tivemos o trabalho de isolar a categoria do significante, acabamos vendo que a jaculação comporta um sentido isolável” (LACAN apud LAURENT, 2021, p. 178, grifo nosso).

Torna-se claro, com relação à jaculação, que o caráter propriamente a-semântico da interpretação não implica a simples erradicação do sentido, mas a necessidade de isolá-lo como efeito real. A chance de construir a interpretação como o que faz nó entre o dizer e o acontecimento de corpo implica ir contra o discurso que faz cadeia e que aparece sob o imaginário da concatenação. Mais adiante, ainda nessa mesma lição do RSI, reafirma-se essa visão borromeana da jaculação como uma forma para se obter o real do efeito de sentido, considerada, portanto, uma via apropriada para proceder o tratamento da disrupção do gozo.

Laurent (2021) ainda propõe que o enodamento entre o dizer e o acontecimento de corpo próprio da jaculação coincide com o que Miller trabalha como vociferação, na última lição de seu curso Todo mundo é louco (MILLER, 2015). O ponto de partida dessa conceituação da vociferação é admitir que não há equivalência entre ela e um enunciado proposicional submetido à matriz do binário “verdadeiro ou falso”. Com efeito, todo enunciado proposicional consiste num fato verdadeiro ou falso e, por consequência, jamais considerado sob o prisma de um juízo de valor. No entanto, se a vociferação e todo enunciado poético não estão subordinados ao critério do verdadeiro ou do falso, ambos se baseiam no par enunciado e enunciação. Para Miller (2015), o que define a vociferação é que, apesar dessa presença fundamental do enunciado e da enunciação, eles se mostram, nesse caso, indivisíveis. É exatamente nisso que a jaculação equivale à vociferação, ou seja, há nelas a suspensão da diferença entre o enunciado e a enunciação. Acrescenta-se, ainda, a essa indivisibilidade, o fato que, para vociferar, é preciso um corpo, é preciso pagar com sua condição de falasser. Isso quer dizer que tanto a vociferação quanto a jaculação implicam o uso da voz que, enquanto objeto a, deve ser considerada aquilo que mais se aproxima da consistência lógica do real do gozo. Entre as cinco substâncias episódicas do objeto a, a voz é a que menos se confunde com o semblante oriundo do aparelho do significante. Por estar mais do lado real do que do semblante, o objeto voz na jaculação é abertura à escritura e, como tal, à impressão, rasura e cunhagem das palavras sobre o corpo.

Não há escuta sem interpretação

A vociferação apenas constitui-se na versão renovada da jaculação na medida em que esta orienta a interpretação para a vertente da ressonância do significante, dando, assim, abertura ao conceito de equívoco. Para a jaculação, o significante é menos o que produz sentido e mais o que se ouve e ressoa como real. Por intermédio do objeto voz, a interpretação joga com o equívoco dos significantes que causam o gozo, e nisso a interpretação se apresenta diretamente conectada com a escritura. Apenas a escritura é capaz de circunscrever e isolar o real do efeito de sentido. Por isso, o inconsciente deixa de estar confundido com a revelação dos capítulos censurados e já escritos da história do sujeito para se tornar um texto que se lê e no qual a leitura se equivoca, deixando ouvir efeitos sonoros que permitem esvaziar o sentido. De fato, o texto escrito do inconsciente, com relação à linguagem, pode se autonomizar (MILLER, 2021a). A matemática é o grande exemplo de um escrito que funciona de maneira autônoma.

Para tornar o inconsciente um texto que se lê, é preciso desfazer-se da ideia de que a interpretação equivale à escuta das significações que derivam do que já está escrito. Com a interpretação, trata-se especialmente de leitura, e não de escuta. O que se escuta são as significações que evocam a compreensão, pois o gozo está sempre, nesse caso, implicado (MILLER, 2021a). Com efeito, quando se trata da escuta, parte-se do significado e tenta-se isolar o significante. A leitura é outra coisa, pois o significante é letra, ou seja, o significante opera como separado da significação, e parte-se do significante para eventualmente dar lugar às significações. Importa, assim, destacar a defasagem entre escuta e leitura. Para passar de uma coisa para outra, é preciso passar pela escrita.

Enfim, o uso da palavra apenas se efetiva como interpretação com a condição de ser uma leitura. A condição de existência do inconsciente também é a leitura e, portanto, nisso ele é homogêneo à interpretação. Os dois existem enquanto “escritos de palavras” (MILLER, 2021a, p. 29). Assim, tanto a letra é para se ler quanto o inconsciente, para o psicanalista, é suposto ler. Afinal, a jaculação é a letra que se lê da leitura que provém do inconsciente, e dela, precisamente, muito pouco se escuta. Não há escuta sem interpretação, ou seja, a palavra, na experiência analítica, não é sacralizada (MILLER, 2021b). Ao visar o real do efeito de sentido, a jaculação é a letra apofântica que fere o corpo falante mais aquém do verdadeiro e do falso e que não comporta nenhuma demanda, particularmente nenhuma demanda de consentimento.

 


Referências
LACAN, J. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 50, p. 168-188, 2021.
MILLER, J.-A. Conversation sur les embrouilles du corps. Ornicar? Revue du Champ Freudien, Paris: Navarin/Seuil, n. 50, p.227-291, 2003.
MILLER, J.-A. L’Un est lettre. La Cause du désir, Paris: Navarin, n. 107, 2021a.
MILLER, J.-A. Conversation d’actualité avec l’École espagnole du Champ freudien. La Cause du désir, Paris: Navarin, n. 108, 2021b.
MILLER, J.-A. (2011). L’être et l’Un. (Inédito)
MILLER. J.-A. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.

[1] Texto publicado sem a revisão do autor.
[2] LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. 1973-1974 (Texto inédito).
psicanálse – alzheimer – lacan – psicanalise – psychanayse – corpo – psicoanálisis

 




DO ACONTECIMENTO AO ADVENTO[1] 

ESTHELA SOLANO-SUÁREZ
Psicanalista, Analista Membro da Escola, membro da ECF, EOL E NLS/AMP
solano-suarez@orange.fr

Resumo: A autora descreve em seu texto um antes e um depois de seu encontro com Lacan, na época de seu último ensino, “no momento em que ele deportava a prática da psicanálise do Outro em direção ao Um, visando o real do sinthoma”. Nesse sentido, sua experiencia de análise com Lacan teve, segundo Esthela Solano, a dimensão de um acontecimento. A autora destaca que essa análise lhe permitiu ler, no equívoco dos sons, o que escorre em lalíngua, isolando o Um do significante separado do outro.

Palavras chaves:real; sinthoma; acontecimento; lalíngua.

Abstract: The author describes us in her text a before and after her encounter with Lacan at the time of his last teaching, “at the moment when he deported the practice of psychoanalysis from the Other towards the One, aiming at the real of the sinthome”. In this sense, her analysis experience with Lacan had, according to Esthela Solano, the dimension of an event. The author emphasizes that this analysis allowed her to read in the misunderstanding of sounds what flows in lalangue, isolating the One from the signifier separated from the other.

Keywords: real; sinthome; event; lalangue.

Desali, s/t

 

Do acontecimento ao advento

Vários eventos pontuaram o percurso disso que posso chamar de minha vida, e isso desde meu nascimento. Eles deixaram traços, inclusive traços no corpo, inscrevendo um antes e um depois irreversível. Seu caráter de acontecimento só surgiu a posteriori.

As contingências que nos surpreendem aqui e ali escrevem os episódios constitutivos de uma trama da qual fazemos nosso destino. Contudo, nem toda contingência e nem todo episódio se torna um acontecimento. Ora, os encontros não se sustentam por nada, senão pela contingência, e há encontros que fazem acontecimento.

Posso adiantar hoje que houve para mim um primeiro encontro decisivo. Posso dizer primeiro? Com certeza não. Ele já estava inscrito na esteira das consequências de um primeiríssimo, fundamental e esquecido, do qual resultou o sintoma como consequência do impacto de lalíngua sobre o corpo. O sintoma veio assinalar, bem cedo, na infância, um modo de ser que me caracterizava: fui uma criança “perdida em seus pensamentos”, aérea, mas também muito presente, à escuta de tudo o que circulava nas reuniões familiares nas quais a conversação ocupava um lugar importante; os convidados eram numerosos e falantes. Sempre fui interpelada pelas falhas e pela inconsistência de suas recomendações, falhas que eu atribuía, sobretudo, às mulheres. De vez em quando, se as condições eram favoráveis, eu podia compartilhar minhas reflexões — mas apenas uma pequena parte de minhas inquietudes, pois não lhes dizia tudo — a meus dois interlocutores preferidos, meu pai e meu avô paterno, a quem eu supunha alguma segurança no nível do pensamento. Eles ficavam maravilhados e me elogiavam. Eu me sentia tão lisonjeada quanto decepcionada, pois esperava uma resposta que colocasse um fim a meus pensamentos.

Os pensamentos giravam em torno, precisamente, do enigma do sexo e da morte. Nessa família, que foi a minha, os homens não eram católicos, nem praticantes, nem crentes, enquanto as mulheres eram fervorosas. Assim, fui introduzida por minha mãe, desde o início, à crença. Ela me colocou em contato com Deus. A Bíblia foi o Livro que estruturou minha relação com o Outro e se torna o contexto das delícias de meus pensamentos. Eu não perdia de vista esse bom e velho Deus pai, embora isso se desse no temor e na compaixão. Sua vontade era um problema para mim, no sentido de um desejo que prescrevia os objetivos últimos do sentido da vida. Eu podia cumprir seus mandamentos, sem nunca ser capaz de me livrar da culpa que sempre se infiltrava sem que eu me desse conta, tanto em meus atos quanto em meus pensamentos. Por que pedia o sacrifício? Por que pediu a Abraão que sacrificasse seu único filho? Não era dele que viria uma descendência tão numerosa quanto as estrelas do céu e a areia do mar? E se o anjo não tivesse chegado a tempo de substituí-lo pelo carneiro? Por que sacrificou Jesus, seu próprio filho, para nos redimir de uma culpa original já que teria, tendo em vista seu poder divino, podido impedir? Ao mesmo tempo, eu justificava Eva por ter desejado, tentada pela serpente, ter acesso ao discernimento e ter provado a maçã da árvore proibida e desejável ao preço de ser expulsa do Paraíso. Do alto de meus cinco anos, o que se seguiu dessa ficção me desanimou: a culpa, o pecado, a doença e a morte e todos os tormentos da condição humana. Eu me encontrava irremediavelmente capturada aí.

Meu esforço de pensamento, mais precisamente, a imposição do pensamento, era minha maneira sintomática de encarar a falha, o erro, a falta inerente à relação do desejo com o desejo do Outro e de querer preenchê-lo. E, para além do desejo, o que se impunha a mim era algo do impossível de definir, escapando do sentido. Missão impossível, portanto, querer pensar o impensável. A falha sempre crescia. Mas, em resumo, eu decidi desde muito cedo me curvar à vontade divina, aceitando a sua face de mistério e supondo que, mais tarde, adulta, encontraria as respostas. Entretanto, jurei alimentar a consistência do Ideal para agradar a Deus e, por consequência, meus entes queridos. A mortificação do corpo caminhou de mãos dadas com esse programa de santidade cuja ambição visava, via anulação da carne, o corpo glorioso. O dito corpo glorioso, pendente do sonho de eternidade, conjugava a morte e o corpo, reduzindo este à sua pura consistência imaginária, à boa forma, ao saco vazio, esvaziado de gozo da vida. O ideal em jogo é apenas uma ficção. Esta, sendo introduzida pelo simbólico no corpo, torna-o servo da instância que vigia e julga, enquanto ignora que o corpo glorioso é somente o envelope do olhar, mais-de-gozar recuperado do esvaziamento da carne.

Bum! Plaft! O despertar da primavera vem para partir em pedaço a bela imagem, por irrupção disso que do corpo “se goza” sozinho, fazendo objeção às ficções do ideal proveniente do Outro. Esse momento de ruptura trouxe à tona uma violência vulcânica que já havia irrompido, bem cedo, na minha infância. Mas, dessa vez, sua força foi multiplicada pelo encontro efetivo com o amor e com o encontro com um outro corpo sexuado de outro modo. Eu me tornei, assim, Outra de mim mesma. Essa Outra, sendo uma, estava fora do modelo, estilhaçando o Um da identificação ao ideal, evidenciando que o Outro não se adiciona ao Um, que o Outro é um a menos. O descolamento do objeto olhar, face oculta da insígnia do ideal, roubou o semblante do ser cuja significância me serviu de apoio. Sem saber onde me estou[2], na aflição de me encontrar uma, e, consequentemente, exilada do significante mestre, fui sugada pelo S(Ⱥ). Sem a segurança de nenhum saber, nem de nenhuma elucubração ao alcance de meu pensamento, minha experiência me confrontou com a dura prova do Um do conjunto vazio.

Surge, então, uma interrogação crescente e relativa ao que eu sentia como sendo da ordem de um furo, um questionamento absoluto no nível da existência, tomando forma de descrença, descrença relativa à existência de Deus. Pela intrusão do gozo Um, do hétero, experimentei, na solidão extrema, a inexistência do Outro. O Outro, no meu sistema de pensamento, era sustentado pelo Um do pai, confundindo-se com ele. Mas esse semblante maior se empalideceu, mostrando sua insuficiência diante do real. Eu me vi arrebatada, por sua queda, em uma dor infinita.

Termina aqui o preâmbulo necessário para explicar o encontro que foi, para mim, um acontecimento. Tive, nesse momento, a sorte de encontrar e de levar a sério o acontecimento Freud. Esses textos me trouxeram consolo como uma razão, como uma elucidação. Descobri a dimensão do sintoma, do inconsciente, da pulsão e, assim, do fundo do poço de meu abismo, pude me reerguer para demandar uma análise.

Essa análise me salvou. Encontrei meu caminho. Numa boa hora, tendo terminado meus estudos, eu me instalei como analista. Tudo ia bem; o normal do que se chama de sucesso profissional estava ao meu alcance, um consultório que funcionava, um início de carreira docente na universidade, mais um encontro amoroso tão marcante quanto importante.

O real bateu à minha porta sob os tipos de uma reação terapêutica negativa e de uma erotomania, como demonstraram duas de minhas analisantes. As supervisões não me ajudaram em nada. Essas duas mulheres me confrontaram numa zona que minha análise havia deixado na sombra. Eu sabia que havia aí uma sombra espessa, mas não conseguia identificá-la naquele momento. Minha análise me permitiu elucidar as confusões das identificações, elaborar um certo saber no enquadre da lógica edipiana e confirmar a singularidade de minha maneira de ser mulher, construída contra o modelo materno. A elaboração de saber recobria e consolidava a consistência imaginária do corpo colocando uma tela sobre o real fora de sentido do gozo. O simbólico recobria o imaginário e o real deixando, então, na sombra, a triplicidade do Um.

Sobre isso, um milagre se produziu por acaso. Encontrei um texto de Althusser que me abriu a porta em direção a Lacan. Lendo, em seguida, “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise”, impôs-se para mim a evidência de um “É isso!”: a psicanálise era exatamente isso, e não outra coisa. Pouco tempo depois caiu em minhas mãos um texto de Jacques-Alain Miller, “A sutura (elementos da lógica do significante)”, que me pareceu brilhante. Esse foi o momento de concluir e a decisão estava tomada: ir a Paris para me formar.

Parece-me tão inacreditável como surpreendente ter encontrado Lacan e ter tido a sorte de fazer uma análise com ele. Quando me recebeu, ele tinha acabado de voltar de sua viagem aos EUA e iniciava o Seminário XXIII: o sinthoma. Encontrei Lacan no momento em que ele deportava a prática da psicanálise do Outro em direção ao Um, visando o real do sinthoma.

O começo de minha análise foi incontestavelmente troumatique, pois ele furou em ato o que eu acreditava ser a prática analítica fundada sobre a associação livre. Ele procedia de modo a cortar o laço dos significantes entre si, a contrariar o relato dos sonhos, das lembranças das elaborações, enfim, das elucubrações articuladas. Ele fazia objeção à ordem simbólica, a saber, ao que numa frase articula um sujeito, um verbo e um complemento, sustentando a intenção de significação. Ele quebrava a unidade da frase de maneira implacável, produzindo um efeito de furo no sentido. A sessão analítica se reduzia a um núcleo, isolando na pressa a fugacidade de um equívoco significante. Ele recuperava em ato o trauma inicial.

Foi preciso um certo tempo, um tempo duro que pôs à prova minha demanda, para que eu pudesse ouvir outra coisa no que havia dito, com intenção de dizer. Mas, a partir desse momento, eu aprendi a ler, a ler não o que se relaciona com significações e confusões do sentido, mas a ler no equívoco dos sons o que surge e escorre em lalíngua, isolando o Um do significante recortado de outro.

Assim, fui arrancada da ordem simbólica e deportada à lalíngua, isto é, ao lugar onde os traços fora de sentido deixaram marcas no corpo como letras de gozo, letras que ex-sistem ao dito. Assim, experimentei o que, naquilo que se diz, cessa de se escrever, daquilo que cessa no nível de afetação do corpo, daquilo que cessa de doer, sob a condição de que as palavras não tenham mais sentido.

Ter sido descolada do sentido desde o início me possibilitou parar de buscar uma saída do lado do ser, abrindo uma via do lado da ex-sistência. Na verdade, o sintoma me forçou a pensar o impensável e, por isso, a articulação significante foi convocada sem cessar, assim como a suposição de um saber que eu ia poder desenterrar de uma vez, para recobrir com suas miragens não a falta, mas o furo. No fundo, o sintoma e seu uso de gozo eram apenas a busca desesperada por um “je panse[3], a fim de recobrir com as miragens do ser o real fora de sentido, a saber, o impossível. O sintoma não cessa de se escrever no lugar do que não cessa de não se escrever, no lugar da impossível escrita da relação sexual que não há.

Perfurando o sentido, Lacan esvaziou o “je panse” colocando em evidência, assim, a solidariedade do ser de pensamento com a suposta harmonia da imagem unificante do corpo, enodado aos ideais, terreno de predileção onde reina o verdadeiro e o belo. A verdade mentirosa sendo desnudada, essas amarrações se dissiparam levando embora os atributos e os predicados do ser, estes sendo apenas o véu recobrindo a inexistência de Ⱥ mulher. Uma mulher tem apenas um semblante de ser, ali onde ela é causa de desejo para um homem no lugar do objeto a. Se o homem copula em sua fantasia com o objeto a e se ela se presta no parecer-ser, isso não deixa de implicar para um efeito de queda, em vez do vazio. A menos que o pare-ser se conjugue ao a-muro, então o acontecimento amoroso faz suplência na relação sexual. Assim, fui capaz de identificar a dor que me acompanhava desde o tempo do esquecimento como sendo o afeto vindo do impossível, isto é, o real.

Não há dúvida aqui da existência de uma dor, como eu tinha acreditado erroneamente no passado. Trata-se, acima de tudo, da dor de uma inexistência, aquilo que está inscrito do lado das fórmulas de sexuação, do lado mulher, como negação de uma existência. Do lado feminino não existe um x que vem negar a função Φx e, consequentemente, o gozo não é todo submetido à lei da negativação imposta pela linguagem como castração. Uma parte do gozo de uma mulher daí escapa, não sendo todo submetido à função fálica. Ele oculta, diante da lógica edipiana, fora do Um que, sendo exceção, traça o entorno do Todo do universal fálico. Ele é consequência louca, enigmática, fora de sentido.

O sintoma se constitui como uma resposta, como uma solução, como um operador de consistência visando a inclusão da parte do não-toda, a saber, real, na lógica fálica. Sua visada impossível se impunha como sendo da ordem de uma força (Zwang) impondo uma vontade de anulação do gozo não-todo, a fim de submetê-lo, todo, à castração. Eu era uma fervorosa do Aufhebung, da anulação operada pelo significante, me perdendo em seus labirintos. Mas a peculiaridade de l(a)pensée, do gozo sentido do (a) pensamento, é que ele anda em círculos, gira em torno do furo e essa rodagem em vão aumenta, não o efeito de falta, mas o efeito de furo. A outra face do (a)pensamento, então, como efeito de furo, me aspirava para o infinito, transportando o corpo para fora de si, um lugar de pura falta, um lugar de parte alguma. Nesse furo falhou a ilusão de encontrar, via falo, uma solução pelo universal.

A operação de Lacan consistiu em opor uma recusa categórica à estratégia neurótica. Pouco fascínio, ruptura dos semblantes, desarticulação do Um unificador, parada categórica do blá-blá-blá. É por uma redução do gozo fálico que a análise operou, fazendo cessarem, assim, as confusões do sentido. Isso só foi possível drenando a via do verdadeiro para abrir aquela do real.

Qual foi o acontecimento então? Aquele do advento de uma mulher, resultado do consentimento dos pontos de impossível localização. Esse consentimento acabou parando a dor e promovendo uma satisfação inédita.

Hoje é possível considerar que essa satisfação tenha vindo como consequência da operação de Lacan, esvaziando o campo da linguagem das significações para manejar a letra fora de sentido. Esvaziando o sintoma das miragens do ser, sua operação visava estreitar o real do sintoma, cujo gozo irredutível é fora de sentido e sem lei.

E nisso fui capaz de assumir o que, na diferença radical  enquanto uma, se singulariza como sinthoma ela (“sinthome elle”).

É esse o acontecimento que se produziu como consequência de meu encontro com Lacan.


Tradução: 
Letícia Mello
Revisão: Renata Mendonça

[1] Texto originalmente publicado na Revue La cause du désir, n. 100, 2018.
[2] N.T.: No texto original, me m’être é homófono com me mettre, que se traduz como me colocar.
[3] N.T.: “Je panse” ou “eu curo” que também é homófono a “je pense” – “eu penso”.
psicanálse – alzheimer – lacan – psicanalise – psychanayse – corpo – psicoanálisis



EDITORIAL – ALMANAQUE N 28

MICHELLE SENA

Desali, s/t

 

Está no ar a 28ª edição da revista Almanaque On-line!
Esta edição tem como tema Interpretação: um dizer que toca o corpo. A partir da continuidade do trabalho desenvolvido pelo IPSM-MG no segundo semestre de 2021 e seguindo a trilha do Almanaque 27, a temática da interpretação continua provocando ressonâncias que, nesta edição, serão abordadas evidenciando seus efeitos sobre o corpo.

Iniciamos, em Trilhamentos, com os textos de Esthela Solano-Suárez, Jésus Santiago, Antoni Vicens e Sandra Espinha. Em Do acontecimento ao advento, Solano traz um relato de sua análise, no qual transmite a constituição do seu sintoma e os efeitos do tratamento no corpo e coloca em evidência como a análise visa o real do sinthoma. Em Acontecimento de corpo, gozo místico e jaculação, Santiago aborda a jaculação enquanto uma versão renovada da interpretação, considerando a vertente da ressonância do significante e do equívoco. No texto Um corpo, Um: tradução e deciframento, Vicens empreende a tentativa de tradução e interpretação da frase lacaniana “UOM (…) kitemum corpo e só-só Teium” visando o corpo a partir das consequências do ter. Ainda nessa rubrica, contamos também com o texto de Sandra Espinha, Lições sobre Hamlet: o desejo da mãe, proferido no âmbito das Lições Introdutórias do IPSM-MG, dedicadas às Sete Lições sobre Hamlet.

Na rubrica Encontros, elegemos os textos de Esteban Klainer e Leonardo Gorostiza. Em O quarteto de Jacques Lacan, Gorostiza propõe o quarteto — injúria, opacidade, jaculatória e silêncio — como instrumentos de leitura da interpretação analítica enquanto incidência da palavra e do significante sobre o corpo, o gozo e o real. No texto Uma leitura sobre o sintoma como acontecimento de corpo, Klainer busca detalhar a construção da noção de sintoma como acontecimento de corpo no último ensino lacaniano partindo da diferenciação entre fenômeno e acontecimento de corpo, percorrendo a pista de Joyce, necessária para que Lacan pudesse formular essa noção.

Para a Entrevista, conversamos com Márcio Abreu, dramaturgo, diretor e ator, que nos conta sobre seu percurso nas artes, principalmente a relação da escrita e da atuação com o corpo. Márcio aponta a importância da palavra e sua materialidade, incluindo a dimensão do silêncio, bem como o aspecto do corpo do espectador, necessário na sua orientação dramatúrgica.

Em Incursões, temos textos que orientaram as discussões realizadas nos núcleos de pesquisa do IPSM-MG e no Atelier de Pesquisa: Psicanálise e Segregação no último semestre. Compõem essa rubrica os textos Racismo e Identidade: um guia lacaniano para entender a questão, de Andréa Guerra; O inconsciente: da criança até o adolescer, e mais, de Cristiane Barreto; Fenômeno e acontecimento de corpo, de Sérgio de Campos; As temporalidades da medida protetiva de acolhimento, de Carlos Henrique Nunes e Alzheimer como ruptura do laço social: uma leitura psicanalítica, de Guilherme Ribeiro.

E, por fim, em De uma nova geração, contamos com textos produzidos pelos alunos do IPSM-MG: Uma dificuldade a mais na análise de uma mulher?, de Luciana Romagnolli, ​e As duas mortes de Ana Karenina, de Cirilo Vargas.

Acompanhando os textos apresentados, vocês encontrarão os trabalhos de Desali[1], a quem agradecemos imensamente por colorir esta edição com sua singular produção artística.

Agradecemos também aos autores e à equipe de publicação desta revista, em especial à Cecília Batista, responsável pela tradução de todos os resumos para o inglês.

Desejamos aos leitores que desfrutem desses textos tão precisos e que sua leitura ecoe em um desejo vivo de trabalho!


[1] Desali, 1983, Contagem, MG. Desali é formado em Artes Plásticas pela Escola Guignard (UEMG). Participou das exposições “Enciclopédia Negra”, na Pinacoteca de São Paulo; “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”, no Instituto Moreira Salles; 36º Panorama da Arte Brasileira: “Sertão”, no MAM; Bolsa Pampulha, no MAP, e da 32ª Edição do Salão Arte Pará. Já fez parte de residências, exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior. É autor de obras adquiridas pelo Centro Cultural São Paulo (acervo Arte da Cidade) e pelos acervos do Museu de Arte da Pampulha (MAP) e da Pinacoteca de São Paulo. Criador do Coletivo Piolho Nababo, há dez anos em Belo Horizonte, viaja por múltiplas linguagens, incluindo grafite, fotografia, vídeo e intervenção urbana, promovendo o contato entre a margem e o centro e questionando as instituições artísticas tradicionais e seu colonialismo, contaminando esses espaços com as ruas.




AS DUAS MORTES DE ANA KARENINA

CIRILO AUGUSTO VARGAS
Defensor público, mestre em Direito pela UFMG
e aluno do Curso de Psicanálise do IPSM-MG.
cirilo.vargas@gmail.com

Resumo: A partir do clássico Ana Karenina, romance atemporal publicado por Liev Tolstói em 1877, o artigo aborda o tema da pulsão de morte em seu entrelaçamento com o gozo mortífero e o suicídio. Freud, ele próprio um mestre das letras, já apontava a utilidade de investigar personagens inventados por grandes escritores, dada a abundância do seu conhecimento da alma. A experiência destrutiva de uma melancólica capturada pelo espiral trágico da repetição assume relevância atual em um cenário político-social de conflagração e ódio. Ana Karenina convida à reflexão, ilustrando como a morte é companheira inseparável do amor.

Palavras chaves: literatura; pulsão de morte; gozo; melancolia; suicídio

THE TWO DEATH OF ANA KARENINA

Abstract: Based on the classic Ana Karenina, a timeless novel published by Leo Tolstoy in 1877, the article approaches the theme of the death drive, in its intertwining with the deadly jouissance and suicide. Freud, himself a master of letters, already pointed out the usefulness of investigating characters invented by great writers, given the abundance of his knowledge of the soul. The destructive experience of a melancholic woman, captured by the tragic spiral of repetition, assumes current relevance in a political-social scenario of conflagration and hatred. Ana Karenina invites to reflection, illustrating how death is an inseparable companion of love.

Keywords: literature; death drive; jouissance; melancholy; suicide.

Para Cristina Drummond

Desali, s/t

 

Ana Arkadievna Karenina, imortalizada nas palavras de Liev Tolstói, não abriu mão de seu desejo e, assim como Antígona, pagou um preço elevado: morreu duas vezes. A primeira, ao abandonar seu marido e filho para se entregar a uma aventura amorosa. A segunda morte aconteceu anos mais tarde, quando Ana se jogou sobre os trilhos em uma estação de Moscou. De um lado, o perecimento social, que assumiu ares de morte civil. Do outro, a efetiva destruição corpórea. Na tragédia russa, o objeto de amor é o conde Alexei Vronski, jovem oficial da cavalaria, em relação a quem Ana desenvolve, no decorrer da narrativa, os mais ambivalentes sentimentos: paixão irrefletida, culpa, ciúme e ódio delirantes que culminam no desejo de vingança.

Não é aleatório o recurso a um ícone da literatura para tratar do tema da tragédia em torno da satisfação do gozo mortífero. A alta sociedade russa pré-revolução, de certo modo como a brasileira contemporânea, prescrevia um sistema rígido de normas morais inerentes aos arranjos familiares tidos como convenientes. E a personagem central, manancial de ambiguidades e contradições, não encontrou conforto ou segurança, seja adequando-se às leis sociais, seja obedecendo aos seus desejos.

Ana Karenina é uma subversiva que, regida pela pulsão de morte, transcende a ficção. E sua vida e mortes interessam à psicanálise. Afinal de contas, qual é a leitura possível do mal-estar e da desintegração psíquica experimentada pela personagem de Tolstói? O que a levou ao cometimento do que consideramos duplo suicídio? Como a realização de um desejo de amor transformou-se em ato de vingança? Vingança contra quem? E por quê? Tentaremos apontar respostas ao longo deste trabalho.

A aristocrata transgressora

Ana Karenina pertencia à alta sociedade de São Petersburgo, âmbito restrito de relações sociais estabelecidas entre funcionários públicos, intelectuais e aristocratas propriamente ditos, a “sociedade dos bailes, dos banquetes e dos vestidos elegantes”. Enquanto pôde, transitou com naturalidade nesse universo, fazendo bom uso do que Freud chamou de “autossuficiência” da mulher bela (FREUD, 1914, p. 34). A beleza era apenas um de seus atributos narcísicos: o que causava fascínio era a combinação de graça, inteligência e desenvoltura. Sua personalidade misteriosa dava-lhe um ar quase inacessível às outras mulheres. Quando entrava em um salão, “o que vestia passava despercebido”. Ana era uma sedutora. Que tirava proveito dessa condição.

Revelava-se no seu íntimo, todavia, profunda insatisfação com a realidade. Além de considerar falsos aqueles à sua volta, mantinha um relacionamento frio, protocolar com o marido, fruto de um casamento de conveniência. E pelo filho nutria sentimento ambíguo: o prazer “quase físico ao senti-lo junto de si” não inibia o mesmo descontentamento que experimentava quando estava ao lado do marido.

Nesse contexto de frustração generalizada, Ana conheceu o militar Alexei Vronski, a quem seduziu e por quem se deixou seduzir publicamente, antecipando o escândalo iminente. O amor clandestino, levado às vias de fato, sedimentou o gozo da transgressão, sempre perpassado por culpa, vergonha e alegria. Em sonho, Ana fantasiava Karenin e Vronski como seus maridos a lhe acariciar, num estado de júbilo. Despertava esmagada pela angústia, no encontro com o real. Convicta da sinceridade de Vronski, Ana optou pela ruptura, ciente de que abandonar o marido, escravo da opinião pública, implicaria perder tudo: a honra e o contato com o filho. Colocou-se, como disse Lacan, “à prova de um destino sem rosto, como um risco do qual o sujeito, tendo-se safado, encontra-se depois como que garantido em sua potência” (LACAN, 1959-1960, p. 234). Paradoxalmente, o ato de coragem marcou a mudança do seu comportamento em relação ao amante. Antes terna e servil, passou a dar sinais de ciúme e beligerância. Compreendeu que pagaria sozinha, como criminosa, o preço da aventura. Começou então a sonhar com a própria morte, certa da sua proximidade.

Durante o autoexílio do casal na Itália, Ana experimentou uma ilusão fugaz de felicidade, facilitada pela busca inútil de Vronski pela satisfação dos seus desejos. O tédio logo os reconduziu à Rússia e Ana Karenina tornou-se ainda mais “fria, irritável e hermética”. Injustificadamente, colocou em xeque o amor que recebia e passou a interpretar os menores atos para confirmar a suposição.

A parte final da obra descreve Ana em Moscou completamente absorvida pelo delírio de abandono. Refratária a qualquer ponderação do amante, acirrou a postura persecutória, alheia à realidade. Essa compulsão fez com que as tentativas de pacificação gerassem efeito oposto. Fez também com que sua morte se revelasse como única alternativa para se vingar de Vronski e, simultaneamente, obter seu amor. Por derradeiro, quando ele vai à casa da mãe para cumprir uma formalidade, ela, certa de que Vronski teria ido ao encontro de outra mulher, perde o controle dos seus atos e dirige-se às cegas para a estação, “esquecida por completo aonde ia e porque razão”. Antes de se atirar sobre o trilho, pensou: “Castigá-lo-ei e livrar-me-ei de tudo e de mim mesma”.

O gozo do horror

Ana Karenina é introduzida no romance como Eros e Tânatos fundidos em uma só pessoa. Ao mesmo tempo em que se apresenta em seu esplendor de mulher autossuficiente, agregadora, dela emerge forte estímulo destrutivo, provisoriamente recalcado. Nos capítulos iniciais, ao desembarcar na estação de trem de Moscou, para onde fora com o intuito de pacificar a relação conjugal do irmão, Ana se defrontou com a cena de um homem morto após cair nos trilhos. Sob forte emoção, afirmou: “É mau presságio”. Pouco tempo depois, usou seus encantos para arruinar, com indisfarçável satisfação, o noivado de Vronski. Aparentemente Tolstói construiu sua personagem mais célebre a partir da ambivalência amor-ódio que ele próprio experimentou a certa altura da vida. Em Uma confissão, autobiografia escrita após finalizar Ana Karenina, ele comenta:

“A força que me atraía para longe da vida era mais poderosa, mais completa do que uma vontade comum. Era uma força parecida com a antiga aspiração de vida, só que voltada no sentido contrário. (…) A ideia de suicídio me veio de maneira tão natural quanto, antes, me vinham os pensamentos sobre o aperfeiçoamento da vida” (TOLSTÓI, 2017, p. 36).

Tenha ou não caráter autobiográfico, o romance retrata situações vivenciadas pela protagonista que permitem a articulação de dois temas: a pulsão de morte e o gozo da transgressão. Sobre a primeira, Freud apontou, em Além do princípio do prazer, um elemento nuclear das pulsões, definido como compulsão à repetição, recurso psíquico originário e elementar que “revelaria a eficácia de uma pulsão de morte, cujo livre curso em direção ao seu alvo encontra a barreira das pulsões sexuais e das pulsões do ego, reunidas e rebatizadas de pulsões de vida” (SANTOS, 1991). Associada à ideia de destruição/agressão, a pulsão de morte freudiana constitui mecanismo biológico original (e necessário) do ser vivo — alheio à dicotomia prazer/desprazer — destinado a assegurar um regresso ao estado inanimado. “A meta de toda vida é a morte” (FREUD, 1920, p. 137). É o que se constata, por exemplo, no masoquismo, constituído pela reversão da pulsão sádica contra o próprio eu, admitindo-se o sadismo como perversão precedente (FREUD, 1914, p. 65).

A trajetória de Ana Karenina é definida por um gozo mortífero, fruto da reiteração de atos e pensamentos de autoagressão, sobre os quais ela não exerce controle e que tão somente fazem recrudescer seu sofrimento: autocolocação em situações de expiação pública e de humilhação perante o marido, atitudes persecutórias direcionadas ao amante e sonhos traumáticos. E é justamente desse movimento repetitivo que ela retirava sua satisfação paradoxal, eis que sempre permaneceu latente o “sincero desejo de sofrer”. Só a iminência do desastre lhe apaziguava.

A literatura está a ilustrar um caso específico em que a compulsão à repetição desempenha papel dominante no processo de destruição pessoal[1]. Seria possível, então, inferir que a pulsão gregário-conservativa (de vida) constitui elemento acidental da pulsão por excelência, que é a pulsão de morte? Lacan, no Seminário 11, sustenta a distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte, porém, não como espécies diversas do gênero pulsão, nos moldes do dualismo proposto por Freud, mas como dois aspectos desta konstante Kraft cujo destino é contornar o objeto a. Isso, ele pondera, desde que se possa

“(…) conceber que todas as pulsões sexuais se articulam no nível das significações no inconsciente, na medida em que, o que elas fazem surgir, é a morte — a morte como significante, e, nada mais que como significante, pois será que se pode dizer que há um ser-para-a-morte? Em que condições, em que determinismo, a morte, significante, pode ela brotar toda armada na cura? É o que só pode ser compreendido por nossa maneira de articular as relações” (LACAN, 1964, p. 249).

Éric Guillot propõe que em “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” há um “novo giro” na abordagem da pulsão. Quando Lacan recorre ao simbólico, “é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte” (GUILLOT, 2014). “Gozo” torna-se nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.

Lembra-se, a partir das lições de Miller (2012), que, no Seminário 7, diferentemente do que foi elaborado no seminário sobre “Os quatro conceitos…”, “temos o gozo conectado ao horror e é preciso passar pelo sadismo para compreender alguma coisa disso”. Verifica-se nessa fase do ensino lacaniano que, “Quando se está no lugar do gozo, algo da ordem de uma terrível fragmentação corporal se produz — e não basta, a Lacan, somente uma morte para dar conta disso: ele acrescenta uma segunda morte” (MILLER, 2012). Alude-se à tragédia de Antígona, que guarda semelhança com a de Ana Karenina. Em ambas, cai o semblante de bondade característico das personagens, emergindo a crueldade. Isso em paralelo com a total indiferença ante as “leis da cidade” e o destino sacrificial reservado aos criminosos.

É justamente pelo paradigma do gozo como “transgressão heroica”, estabelecido em “A ética da psicanálise”, que trabalhamos o percurso da personagem de Tolstói. Ana Karenina não se identifica com o círculo aristocrático ao qual pertence. Enxerga-se acima dos protocolos de falsidade que lhe envolvem. Reivindica o reconhecimento do Outro (opondo-lhe violência) pelo exercício de autonomia para, na condição de mulher casada, vincular-se a um homem pela via do amor. Então, despida do sentimento de igualdade ou altruísmo, goza tripudiando da moralidade hipócrita imposta pela alta sociedade. Não se opera na sua consciência o que Lacan denominou “lei de igualdade”, freio para submissão à vontade geral (inibindo o ato transgressor). Ao contrário. Seu prazer advém da agressividade incontrolável, cuja consequência é a solidão e a destruição pessoal. O processo da perversão se consolida com a passagem do sadismo ao masoquismo, retornando o ódio ao ponto de origem.

Da substituição da realidade ao suicídio

A ideia de suicídio tornou-se consciente para Ana Karenina quando a dúvida sobre o afeto de Vronski se fez acompanhar da fantasia de abandono. Ela não se limitou, nessa altura, a negar a realidade. Ana substituiu a realidade para sustentar o gozo de automartírio (“No seu ciúme cego, via em todas as mulheres a rival”). Um quadro psíquico delirante compatível tanto com a neurose quanto com a psicose (FREUD, 1924, p. 221). O ciúme projetado constitui mecanismo neurótico através do qual a pessoa infiel reconhece a infidelidade do amante em lugar da sua própria, mantendo-a recalcada, de maneira a aplacar a recriminação (FREUD, 1922, p. 194).

O ciúme não parece, todavia, ser o ponto chave para compreender o percurso da personagem ao autoextermínio, mas sim seu estado melancólico, reação à perda imaginária do objeto de amor. Em “Luto e melancolia”, texto fundamental sobre o tema, Freud define melancolia (ou “delírio de pequenez”) como abatimento doloroso acompanhado de “diminuição de autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição” (FREUD, 1915-1917, p. 173). Na tese de doutorado A dor moral da melancolia, Maria da Fátima Ferreira, ao abordar caso clínico envolvendo uma melancólica, percebe o predomínio de uma “culpa maciça” e de um “excesso desafiante”. E, exatamente como em Ana Karenina, as aventuras “só serviam para agravar seu desespero e seu sentimento de humilhação” (FERREIRA, 2014, p. 196).

Questão que surge é como esse quadro de empobrecimento do Eu pode se conciliar com a ideia de vingança, bem expresso no pensamento de Ana em relação a Vronski: “Tudo acabará com a minha morte. E, quando eu estiver morta, ele há de arrepender-se da sua conduta, há de chorar por mim, amar-me-á”. Freud observa que, na melancolia,

“os doentes habitualmente conseguem, através do rodeio da autopunição, vingar-se dos objetos originais e torturar seus amores por intermédio da doença, depois de se entregarem a ela para não ter de lhes mostrar diretamente sua hostilidade. (…) Assim, o investimento amoroso do melancólico em seu objeto experimentou um duplo destino: parte dele regrediu à identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito da ambivalência, foi remetida de volta ao estágio do sadismo, mais próximo desse conflito. Apenas esse sadismo nos resolve o enigma da inclinação ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante — e tão perigosa” (FREUD, 1915-1917, p. 184).

O que se percebe ao final de Ana Karenina é o acting out da protagonista, ato que, segundo Jésus Santiago, surge para tamponar a incapacidade do sujeito de falar ou simbolizar algo (apud CAMPOLINA, 2020, p. 126). Um apelo, sob a forma de cena pública, dirigido não apenas ao amante, mas principalmente à alta sociedade russa, modeladora da lei e da cultura, em cujos parâmetros a heroína transgressora optou por não se inserir. Uma demanda de amor que, ao fim e ao cabo, se revelou inútil, porque todo o amor possível já lhe havia sido dado. O “ganho secundário” do suicídio histérico (vingança) culminou no aniquilamento do objeto de amor, impotente diante de uma força destrutiva que nunca conseguiu compreender. Ana, tal como na tragédia de Sófocles, passou ao imaginário popular na condição de signo eterno.

 


 

Referências
CAMPOLINA, A. “O ato, o acting out, a passagem ao ato”. In: GRECO, M.; CARVALHO, D. e REGGIANI, N. (Orgs.) Ponto final? Indagações em torno da questão do suicídio. Belo Horizonte: Associação Imagem Comunitária, 2020.
FERREIRA, M. F. A dor moral da melancolia. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREUD, S. (1914) Introdução ao narcisismov. XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. v. XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
FREUD, S. (1922) Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidadeBelo Horizonte: Autêntica, 2016.
FREUD, S. (1924) A perda da realidade na neurose e na psicosev. XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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LACAN, J. (1959-1960) O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
MILLER, J.-A. “Os seis paradigmas do gozo”. Opção Lacaniana online. Ano 3, n. 7, mar. 2012.
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TÓLSTOI, L. N. Ana Karenina. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
TOLSTÓI, L. N. Uma confissão. São Paulo: Mundo cristão, 2017.

[1] “Dizer que toda ‘pulsão parcial é por natureza pulsão de morte’ não quer dizer, certamente, que toda pulsão vai até a morte.” (GUILLOT, 2014).



UMA DIFICULDADE A MAIS NA ANÁLISE DE UMA MULHER? 

LUCIANA EASTWOOD ROMAGNOLLI
Pesquisadora independente de Linguagem, Arte e Psicanálise.
Doutora em Artes Cênicas e aluna do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
lucianaromagnolli@gmail.com

Resumo: Com base no debate sobre a neurose obsessiva em mulheres, o artigo indaga se a estratégia obsessiva contra o gozo feminino não simbolizável apresenta, na clínica contemporânea, uma dificuldade a mais na análise de mulheres, considerando a realidade de devastação na relação mãe-filha, de quem esta esperaria uma consistência impossível pela inexistência do significante d’A mulher. Na defesa obsessiva, a tentativa de fazer Um com o eu e a consequente fortificação do corpo; a oblatividade que assegura a consistência do Outro; o amor erotômano; além do imperativo do supereu, aparecem como pontos possíveis de agravamento da estratégia neurótica frente à devastação.

Palavras chaves: neurose obsessiva, devastação

ONE MORE DIFFICULTY IN WOMEN’S PSYCHOANALYSIS?

Abstract: Based on the debate about women’s obsessional neurosis, this essay questions if the obsessional defense against non-symbolizable female jouissance presents as one more difficulty in women’s analysis in the contemporary clinic, considering the reality of the ravage in mother-daughter relationship, since daughters seems to expect from their mothers a kind of consistency that is impossible due to the non-existence of the significant of The woman. In the obsessional defense, the attempt to make One with the self and the consequent fortification of the body; the oblativity that ensures the consistency of the Other; the erotomanic love; and the imperative of the superego, appear as possible points of aggravation of the neurotic strategy in face of the ravage.

Keywords: obsessional neurosis, ravage

 

UMA DIFICULDADE A MAIS NA ANÁLISE DE UMA MULHER? 

 

Desali. Eis que me descubro objeto do objeto de outros objetos
Indagar a incidência da neurose obsessiva em mulheres abre a questão sobre a estrutura neurótica e suas distintas estratégias de defesa frente à inexistência de significante d ‘Ⱥ mulher, ao gozo Outro sem limites e ao real sem lei. A clínica diferencial torna-se complexa quando se consideram os frequentes sintomas obsessivos em histéricas, em contraste com casos em que a estratégia obsessiva de destruir o desejo do Outro prevalece. Estabelecida a histeria como a estrutura nuclear do sujeito neurótico, tal como proposto por Freud, a neurose obsessiva pode ser entendida como uma defesa a mais à estrutura histérica, dobra que privilegia o eu em sua vertente de autoconsciência.

As defesas obsessivas comparecem na clínica psicanalítica desde Freud à atualidade, na forma exitosa do caráter obsessivo ou na formação de outros sintomas, tais como atos compulsivos (ALVARENGA, 2019). A coação de pensamento é o sintoma obsessivo por excelência, tentativa de erguer uma barragem de significantes contra o enigma do desejo e o real da angústia. A neurose obsessiva carrega a marca de um primeiro gozo experimentado como estrangeiro, que está no princípio do sentimento de infamiliar (SOLANO, 2009). O pensamento faz-se sintoma para dominar o fora do sentido desse gozo. O sofrimento assume a forma de um conflito moral e de pensamentos perturbadores que se impõem no mais íntimo do sentimento de si e são experimentados como exteriores e intrusivos.

A curiosidade da posição obsessiva de querer saber sobre a relação entre gozo e semblantes no casal parental desvela a falência do pai e o gozo sem limites da mãe (SOLANO, 2001). É contra esse empuxo a ser aspirado pelo buraco de S(Ⱥ) que responde a estratégia de reduzir-se ao Um em uma empreitada fálica que engaja corpo, imagem e pensamento. Ao privilegiar o eu, sujeito do significante, na tentativa de encobrir a divisão subjetiva e fazer o Um imaginário do corpo, fortificado, recobre o objeto “a” causa de desejo com as vestimentas do Eu ideal i(a). E transforma o desejo do Outro em demanda do pequeno outro a ser eliminada e restituída, repetidamente. A oblatividade torna-se modo de assegurar essa consistência do Outro, “ao preço de concebê-lo como invasor e mortificante (ALVARENGA, 2019, p. 94)”. Ao degradar o falo simbólico em imaginário, ataca o próprio desejo, que deve ser mantido a distância.

Obsessivas

Na clínica contemporânea, Lêda Guimarães constata “mulheres estruturadas em suas neuroses através de fortes defesas obsessivas” (GUIMARÃES, 2015, p. 78).  Elas se apresentam em posição de objeto-dejeto da mãe. Os esforços para reduzir a potência do Outro materno absoluto frequentemente assumem o caráter de atuação ou passagem ao ato, com consequente mortificação do próprio corpo.

A baixa operatividade do pai caracteriza estruturas “malformadas”, deixando tais mulheres com recursos simbólicos escassos para localizar o desejo nas bordas do buraco da falta do Outro. “O sujeito, preso nas defesas obsessivas, mantém uma posição fóbica central que lhe permite correr para longe desse buraco”, apoiando-se na posição da criança como objeto “a” (GUIMARÃES, 2015, p. 82). O Eu ideal i(a) e Ideal do eu I(A), sustentados na alienação aos significantes mestres, envolvem o objeto para torná-lo amável pelo Outro. O amor recobre a não relação sexual.

Esthela Solano observa que, “se o sujeito obsessivo é uma mulher, a estratégia fálica prevalece igualmente”, não por desejar ter o falo para bancar o homem, mas pelo dever de “paramentar-se de falo” para tamponar a falta no Outro, fazendo Um com ele (SOLANO, 2001, p. 35). Lêda Guimarães (2015) localiza uma distinção na neurose obsessiva em homens e mulheres: eles contam com o desmentido da castração pelo traço perverso do fetiche para fazer suplência de proteção ao desejo do Outro. Em contraponto, elas têm recorrido à construção de um script com estatuto de verdade nas parcerias amorosas, assumindo multitarefas para afirmar aptidões fálicas. Asseguram a consistência imaginária do pai e do Um corpo como anteparo ao singular do gozo inominável que as lança ao real sem lei rebaixando o objeto, o que carrega o traço de perversão, dirigindo a destruição à onipotência do Outro.

A mancha

No primeiro caso analisado na conferência “O sentido dos sintomas” (1916-1917), Freud apresenta uma mulher cujos sintomas obsessivos são desencadeados tardiamente, encobrindo a impotência sexual do marido. Ao repetidamente convocar o olhar da empregada para uma mancha em uma toalha de mesa, semelhante ao borrão de tinta que o marido deixara no lençol como prova do ato sexual não efetuado nas núpcias, o que essa mulher busca é uma testemunha (pequeno outro) do seu ato de exibição para fazer o Outro subsistir. O semblante da mancha tapa o furo, mantendo a distância do seu desejo e a consistência da sua imagem.

Esse sintoma compulsivo responde à predominância da função escópica na neurose obsessiva, em seu caráter oblativo de dar a ver uma imagem de si para ser amada, que aponta para o modo de amor erotômano (ALVARENGA, 2018. p. 45). A consciência escópica estabiliza a armadura obsessiva do Um corpo imaginário, sustentando-a em um ideal de onividência que a mantém autoconsciente, fora da cena e cúmplice daquela que a observa. Oferece a imagem fálica para tampar a divisão subjetiva do Outro e em si, em defesa contra a ressonância do significante no corpo.

Sem a amarra fálica, a mulher da mancha confronta-se ao -∃x -Φx, “por onde o simbólico, por seu poder de negação, se conjuga à morte” (ALVARENGA, 2018, p.38). O sintoma vem restituir a função fálica. Elisa Alvarenga então questiona: “Sem o apoio fálico encontrado no objeto de amor, haveria um risco de aspiração pelo furo do Outro, resultando na devastação ou melancolização do sujeito?” (ALVARENGA, 2019, p. 39). Eis a emergência da pergunta sobre a devastação quando a defesa obsessiva falha em uma mulher.

Inexistência

A fantasia erotômana da demanda infinita dirigida ao Outro, que pode retornar como devastação, faz-se estratégia obsessiva para negação do desejo. Esse amor se distingue de uma erotomania psicótica pela imagem de si que o obsessivo empenha como não podendo faltar ao outro, garantindo a distância de si (ALVARENGA, 2019). Podemos, então, calcular os efeitos da queda dessa imagem, relativa ao i(a).

Esthela Solano (1996) relata uma demanda de análise após o passe, quando a nomeação a AE desencadeou uma angústia terrível ao fazê-la se deparar com o buraco da imagem e do significante. A neurose infantil se manifestara aos nove anos, com a destituição do pai do alto cargo que ocupava, deixando-a sem as coordenadas fálicas frente ao Outro do amor que rompeu as amarras imaginárias com que ela se identificava ao agalma do desejo. A fantasia se assenta no mandamento moral, sob o significante “anjo”, prendendo-a ao lugar de exceção do Ideal ou do dejeto. Na segunda análise, localiza o horror que se revela do amor como pulsão de morte e faz uma amarração privilegiando o gozo parasitário do sintoma.

Na análise pós-passe, destaca três sonhos. No primeiro, encontra no corpo uma marca que lê como a da morte iminente (buraco do simbólico). No segundo, vê os quantificadores ∃x Φx, sem-razão que inscreve a falha de existência no lado feminino (o buraco no real). Do terceiro, emerge a recordação infantil de ver no quadro de melhores alunas do colégio um buraco (no imaginário) no lugar de sua foto. É o trauma que a nomeação como quadro vazio de imagem e significante reconvoca. Retorna a vertigem infantil “que se produzia como abismo quando o sujeito não encontrava apoio em nenhuma existência que a incluísse na função fálica, uma vez percebida a irremediável impostura do Outro” (SOLANO, 1996, p. 36, trad. nossa.).

A nomeação a confronta à falha de existência pela inexistência do significante d’O analista, tal como inexiste o d’A mulher. A angústia surge no real insuportável, “comparável ao de uma bomba que explode e se produz disso a deflagração desse pouco de realidade em que se sustenta o sujeito em sua representabilidade” (SOLANO, 1994, p. 33). A amarração anterior se desfaz.

Estrago

A angústia surge da emergência do gozo no próprio corpo, separado do Outro — que não existe —, quando confronta o sujeito com a solidão inominável (GUIMARÃES, 2015, p. 85). Podemos supor que a neurose obsessiva, na mulher, faz-se mecanismo de defesa à sem-razão desse gozo, no ponto de devastação? Essa hipótese aponta para o que Lacan observa, em O aturdito, como a “realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe”, de quem “parece esperar mais substância que do pai” (LACAN, 2003, p. 465). Para Esthela Solano, “podemos supor que a devastação, em uma mulher, caracteriza o imbróglio específico do real de que ela é efeito enquanto sujeito feminino” (SOLANO, 2003, p. 54).

Nos relatos de AE de Graciela Brodsky, a defesa à angústia ante o gozo do Outro fica explícita na cena infantil em que os pais chegam felizes de uma festa: ela está excluída do gozo do Outro, e o arruína com seu choro. Filha única de mãe surda, em sua fantasia deveria fazer-se ouvir e ser a única que desperta esse Outro — o que pressupõe mantê-lo mortificado. “Se fosse histérica, ficaria com o lamento de ser a que fica de fora, mas como não sou […] dou um passo a mais: sou a que diz: que a festa termine!” (BRODSKY, 2012, p. 105).

Ainda na infância, um diagnóstico a marca: “inteligência superior à normal, graças à qual […] sabia dos perigos que as demais crianças ignoravam” (BRODSKY, 2012, p. 107), e seu sintoma é convertido em virtude. A mãe denuncia à filha a impotência do pai. Interpretar que o gozo materno estava nessa impotência faz desaparecer a querela com a mãe. Constata que o gozo do Outro está separado dela quando vê o analista dançar em uma festa. Com a travessia da fantasia, aparece o seu corpo vivo, Um do gozo. No fim da análise, esquece o termo que o analista usara para expressar a satisfação em arruinar o gozo do Outro. Parece-lhe que começava com a letra T, mas, quando o analista elucida, não reconhece o significante “pisotear”. Fica com o buraco do significante e com a letra.

Supermulher

Se, na neurose obsessiva, as mulheres se apresentam vinculadas mais com a mãe do que com o pai, decaído como anteparo ao gozo sem-limite, qual é a incidência das estratégias obsessivas na devastação? Há uma sobreposição da oblatividade como evitação do desejo do Outro, transformado em demanda, com a demanda direcionada à mãe por um significante d’A mulher que não existe? O vínculo mãe-filha pode assumir o insuportável dessa dupla demanda?

Miller (2016) localiza a devastação no princípio do não-todo da inconsistência. A substância a mais que a mulher esperaria da mãe corresponderia a um corpo que se completasse à maneira fálica, ganhando consistência. De acordo com Brousse, a devastação

“concerne para o sujeito feminino o real fora do corpo do sexo, quer dizer, uma parte de gozo não reduzível à significação fálica e mobiliza ou melhor imobiliza o sujeito alternativamente no amódio da demanda absoluta e na aspiração por uma imagem do insignificável” (BROUSSE, 2017, p. 34, trad. nossa.).

Como a predominância do pensamento e a fortaleza narcísica da neurose obsessiva operam contra a inconsistência do corpo do real da mulher? Haveria um agravamento da estratégia fálica de mortificação para estancar esse gozo a mais, fazer consistir um corpo-fortaleza contra o gozo feminino “que não fixa o sujeito ao seu corpo” (EULÁLIO, 2018, p. 108)?

A questão também se lança ao supereu da mulher como ponto insuportável que se origina do Outro materno. Sérgio Campos observa que “o supereu feminino opera na própria mulher como devastação” (CAMPOS, 2015, p. 203) e, para todo sujeito inscrito na significação fálica, o lado que escapa ao simbólico na mulher poderá operar como supereu. “Logo, mulher que está abrigada na mãe poderá surgir como Outro superegoico para a filha”, e o da filha para a mãe, resultando em mulheres devastadas (CAMPOS, 2015, p. 207).

Lêda Guimarães propõe que esse gozo devastador resulta da infiltração do imperativo mortífero do supereu no gozo feminino. Segundo ela, este último, embora vivificante, sofre os efeitos da infiltração do supereu e passa a sustentar um “goza!” mortificante (GUIMARÃES, 2015, p. 37). Na clínica contemporânea, esse imperativo se articula ao semblante de feminilidade para sustentar o Eu ideal d’A Mulher superpotente. Daí que “a patologia devastadora que invade as mulheres não é uma patologia da paixão amorosa, mas, sim, uma patologia do supereu” (GUIMARÃES, 2015, p. 39).

Quais as consequências, então, quando o gozo devastador se apresenta na neurose obsessiva, em que o pensamento é “imperativo de gozo” (SOLANO, 2009, p. 26)? Entre elas, está a maior ferocidade do supereu? Diante desses entrelaçamentos, levanta-se a hipótese de que não será sem uma dificuldade a mais que as estratégias obsessivas incidirão no momento de uma devastação na mulher.

 

 


Referências 
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BROUSSE, Marie-Hélène. Intervenciones especiales. Una dificultad en el análisis de las mujeres: el estrago de la relación con la madre. Ética y Cine Journal, v. 7, n. 2, p. 29-35, 2017. Disponível em: <https://revistas.unc.edu.ar/index.php/eticaycine/article/view/18973> Acesso em 29 set. 2021.
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COTTET, Serge. A respeito da neurose obsessiva feminina. Isepol, Asephallus, n. 06, 2007. Disponível em: <http://www.isepol.com/asephallus/numero_06/traducao_01.htm > Acesso em 29 set. 2021.http://www.isepol.com/asephallus/numero_06/traducao_01.htm
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EULÁLIO, Andréa. Amores Loucos. A devastação materna e nas parcerias amorosas. Belo Horizonte: Artesã, 2018.
FUENTES, Maria J. S. As mulheres e seus nomes. Lacan e o feminino. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
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MILLER, Jacques-Alain. Uma partilha sexual. Opção Lacaniana, ano 7, n.20, jul. 2016. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_20/Uma_partilha_sexual.pdf> Acesso em 29 set.
SOLANO-SUÁREZ, Esthela. A análise após o passe. Opção Lacaniana, n.11, 1994.
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______. La práctica del pase. Paidós Ibérica, 1996.
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______. O parasitismo do pensamento. Arteira. n.2, set. Florianópolis: Escola Brasileira de Psicanálise – Santa Catarina, 2009. Disponível em: <http://revistaarteira.com.br/images/pdf/Arteira-2.pdf> Acesso em 29 set. 2021.
ZUCCHI, Marcia. Esse estranho que nos habita: o corpo nas neuroses clássicas e atuais. Opção Lacaniana, v. 5, n. 14, 2014. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero14/texto5.html> Acesso em 29 set. 2021.



ALZHEIMER COMO RUPTURA DO LAÇO SOCIAL: UMA LEITURA PSICANALÍTICA[1]

GUILHERME CUNHA RIBEIRO
Médico e psicanalista, membro da EBP/AMP
guilhermecribeiro@outlook.com

Resumo: A partir do filme Meu pai, escrito e dirigido por Florian Zeller, este texto busca compreender as mudanças que ocorrem em portadores da doença de Alzheimer  sob a ótica da psicanálise de orientação lacaniana. Essa doença neurológica se manifesta no campo da fala, onde são percebidas alterações no funcionamento significante, em especial na metáfora e na metonímia. As consequências são sentidas no discurso e em uma progressiva ruptura no laço social.

Palavras chaves: Alzheimer, psicanálise, laço social, discurso, Lacan

ALZHEIMER AS A RUPTURE OF THE SOCIAL BOND: A PSYCHOANALYTIC READING

Abstract: Based on the film My Father, written and directed by Florian Zeller, this text seeks to understand the changes that occur in people who suffer from Alzheimer’s disease from perspective of the Lacanian psychoanalysis. This neurological disease manifests itself in the field of speech, where alterations in signifying functioning are noticed, especially in metaphor and metonymy. The consequences are felt in the discourse and in a progressive break in the social bond.

Keywords: Alzheimer, psychoanalysis, social bond, discourse, Lacan

 

 

Desali, s/t

Utilizando a psicanálise de orientação lacaniana como sustentação teórica, este trabalho busca compreender o que acontece com um sujeito que apresenta a doença de Alzheimer. Não se trata de pensar a psicanálise como instrumento de tratamento, mas de usar alguns elementos de sua teoria na leitura e na interpretação do modo de presença do sujeito adoecido no laço social.

Sabemos que a medicina normatizou a área de conhecimento cognitivo comportamental como padrão de avaliação dessa condição médica por meio de testes de desempenho para diagnóstico e acompanhamento. Considero importante       fazer outra leitura, que abra outra compreensão desse quadro tão dramático e frequente na vida dos idosos. A questão que se colocou desde o início foi entender  como a doença de Alzheimer afeta o sujeito em sua relação com o laço social, tendo como pressuposto que é a linguagem que nos conecta com esse laço. Para Lacan, é o laço social o que o sujeito tem de mais real. No Seminário 20, ele aponta  que, “no fim das contas, há apenas isto, o laço social”, para completar que esse “laço social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é, o ser falante” (LACAN  [1973], p. 74). Foi a partir do campo da fala que procurei construir a abordagem das alterações que ocorrem na doença de Alzheimer, campo no qual se pode verificar como se dá a ancoragem do laço social na linguagem.

Para abordar a relação do sujeito em seu laço social, é importante partir da distinção entre fala e linguagem (BASSOLS, 2017), instituída por Lacan desde o “Discurso de Roma”. O campo da linguagem é a estrutura simbólica de significantes que constituem o universo do Outro e que operam em uma sincronia que antecede o sujeito. Já a função da fala trata da relação do sujeito com a palavra propriamente dita, na diacronia da cadeia significante. Distinto do campo da linguagem e da função da fala está o suporte orgânico da fala, dependente da plena função dos órgãos fonador e neurológico do corpo.

Para essa leitura, farei uso de alguns fragmentos da obra Meu pai, do diretor e dramaturgo Florian Zeller, que narra a estória de Anthony, portador de quadro demencial — que, apesar de não nomeado pelo autor como tal, tomarei como típico da doença de Alzheimer pela similaridade com os quadros dessa patologia. A doença do personagem está na fase em que se torna obrigatória a presença da família e de cuidadores, diante da progressiva dificuldade do sujeito em lidar com o que se passa ao seu redor.

O personagem, brilhantemente interpretado no cinema por Anthony Hopkins, mostra a progressiva destituição subjetiva e a ruptura do laço social, tão características dessa condição. Essa destituição se dá com o avanço das alterações neurológicas e com suas consequências na função da fala, bem como na relação com o universo simbólico e cultural do próprio sujeito. No filme, percebemos o comovente  esforço de Anthony para entender seu cotidiano e se manter em conexão com as pessoas e com a vida. Tratando-se de uma obra que mostra de maneira arguta o quadro de sujeitos nessa condição, considerei-a um bom caminho para tentar entender as alterações da função da fala e da posição do sujeito no laço social que podem acontecer na doença de Alzheimer.

Passo então a descrever algumas alterações ocorridas com o personagem Anthony. Destaco sua dificuldade em compreender o momento que vive, o seu aqui e agora, que se mostra muito afetado pela doença. Essa alteração do aqui e agora se manifesta de várias maneiras, a saber, como dificuldades em distinguir o presente e o passado, que se misturam, bem como em localizar-se na morada atual, confundindo-a com a anterior; dificuldade para reter informações, perdendo objetos e esquecendo-se de acontecimentos cotidianos e fatos relevantes, como a morte da filha mais jovem, em um acidente; redução dos campos de interesse na vida, em uma espécie de encolhimento do campo de investimento libidinal; progressivas solidão e limitações   para encontrar soluções em sua vida.

O que se mostra importante para este estudo é a redução de sua habilidade discursiva: os diálogos têm os campos de interesse reduzidos, concentrados na busca de uma melhor orientação no aqui e agora. Em função dessa redução da habilidade discursiva, suas defesas se modificam. Para lidar com a desorientação temporal, o personagem diz ter dois relógios: um no pulso e outro na cabeça. Pela dificuldade em entender o espaço onde vive, busca as características de sua antiga casa nos cômodos atuais. Já em outros momentos, apresentam-se defesas paranoicas, como quando acusa a filha de querer roubá-lo.

Outras vezes anda pela casa com expressão atônita, perdida. Em uma situação interessante, quando se vê diante de uma jovem garota, consegue usar de fantasias para se mostrar sedutor e simpático. Diz ter sido dançarino no passado, o que nunca aconteceu. Outra defesa que se dá ao longo de todo o filme — e que acontece com a maior parte dos portadores de Alzheimer — é o uso de lembranças antigas, acessíveis à fala, para dar conta do cotidiano.

Sobretudo se percebe o esforço comovente de Anthony, que parece perplexo, em muitos momentos, diante de sua progressiva inabilidade para se manter conectado com seus objetos e com as pessoas próximas. Penso que esse esforço  seja para se manter no discurso que o conecta ao laço social. No entanto, aquilo que, no passado, fluía de maneira automática em sua vida, agora se mostra em uma progressiva ruptura.

Para tentar compreender o que se passa com Anthony e, de resto, com muitos portadores da doença de Alzheimer, parto do princípio de que, “mesmo quando se trata de transtornos orgânicos das funções implicadas na fala (…) as disfunções seguem leis simbólicas estruturais da linguagem” (BASSOLS, 2017). A hipótese que sustenta esse trabalho é que a afetação do real do corpo pela doença determina a presença de modificações progressivas na função da fala do sujeito, o que resulta em uma obrigatória tentativa de reposicionamento no discurso que sustenta o sujeito da enunciação no laço social.

Sabemos com Lacan que a função da fala comporta uma função de semblante, pois cada palavra é apenas um meio, como qualquer outro, para sustentar o laço social. Para dar conta dessa função de semblante, Lacan articulou o discurso com a maneira de associar o sujeito da enunciação com o laço social. Para ele, o discurso é uma estrutura necessária, “que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN [1969-70], p. 11). A estruturação dos discursos no laço se define a partir da incidência da linguagem para o sujeito, sendo que essa estrutura discursiva pode se manter mesmo sem palavras, sustentada por certas relações fundamentais que estão asseguradas com a linguagem. Pois é a linguagem que “instaura um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN [1969-70], p. 11).

Quais seriam então as alterações que podemos observar no funcionamento  significante do personagem?

A evolução da doença no corpo altera o funcionamento da fala e seus efeitos de metáfora e metonímia (MILLER [1998-99], p. 23). O efeito metonímico se dá com o deslizamento do sentido, quando um significante se conecta a outro significante. Já o efeito metafórico ocorre quando há uma substituição de um significante por outro. O discurso funciona na medida da interrelação entre a metáfora e a metonímia.

Essa máquina de funcionamento significante funciona mal em Anthony e em muitos daqueles portadores do mal de Alzheimer. Tratando-se de uma patologia progressiva, a deterioração dos efeitos metonímicos e metafóricos aumenta com o avançar da doença. Durante o filme, vemos o sujeito se apresentar confuso e atônito, o que parece um indicativo de que, naquele momento, os significantes não deslizam metonimicamente, fazendo com que ele se desoriente, pois não há uma significação que relance o funcionamento significante.

Diante da dificuldade discursiva, com frequência Anthony é capaz de lançar mão de significantes e imagens que, mesmo fora do contexto vivido, o ajudam a se situar. Um exemplo do uso de significantes fora de contexto se dá quando ele recebe, em sua casa, uma  jovem candidata à função de cuidadora.

Inicialmente ele não se dá conta da razão da visita e logo a associa à imagem de sua filha desaparecida, o que o ajuda a desempenhar um papel charmoso e sedutor. Ao associá-la à imagem da filha, ele pode sair da situação de desamparo, mesmo que tenha que usar uma significação fora do contexto daquele momento.

Uma outra defesa que se mostra presente para Anthony é a resposta agressiva e paranoica. Ele tem dificuldade de reconhecer o ambiente em que vive; insiste que ainda está em seu apartamento e, quando confrontado com a realidade por sua filha  Anne, a acusa de querer roubá-lo, assim como acusa as cuidadoras de roubar seus objetos. No filme, essas situações se repetem, mas, a cada vez que acontecem, não se sustentam por muito tempo, ao passo que o personagem esquece o ocorrido e alivia-se o mal-estar. Essa defesa agressiva e paranoica parece estar relacionada a um problema no efeito metafórico, na medida da dificuldade em fazer um significante ser substituído por outro.

Podemos também perceber que, em certas situações, não há nenhuma defesa para dar conta do desamparo, como quando o personagem não consegue encontrar uma palavra ou imagem que o ajude a se situar. Nesse momento, ocorre uma interrupção da articulação significante com consequências diferentes a cada vez. Quando Anthony recebe a nova cuidadora durante seu café da manhã e não a reconhece, apesar de ter estado com ela no dia anterior, revela-se a falha no funcionamento significante. Isso gera uma ruptura discursiva — ele corre para seu  quarto e não retoma o discurso.

Diante desse tipo de situação, o filme mostra uma maneira de ajudar a sair da ruptura momentânea. A interposição habilidosa de novos significantes por aqueles que estão ao seu lado pode permitir que o sujeito volte a apresentar o deslizamento significante. Mesmo que não seja sempre efetiva, essa oferta faz o efeito de uma espécie de prótese ad hoc, com funcionamento apenas evanescente.

Com o avançar da doença, torna-se mais difícil buscar palavras e imagens que deem conta do desamparo, como na última cena do filme, quando a habilidosa enfermeira o ajuda a se situar no discurso, permitindo que os significantes se articulem, mesmo com dificuldade. No entanto, os limites surgem a todo momento: ele não reconhece o funcionário que vai ao seu quarto diariamente, não se lembra do nome da enfermeira e chega a esquecer seu próprio nome. Diante da percepção de suas falhas, Anthony interpõe lembranças mais antigas, como a de sua mãe, confundindo-a com sua filha. Ao constatar a ausência de sua mãe, Anthony está diante do desamparo total: ele chora, mas ainda é capaz de elaborar sobre sua condição, dizendo que não sabe o que está acontecendo e que se sente como se estivesse perdendo todas as suas “folhas”. Aí constatamos que a função metafórica ainda está presente.

O discurso que não funciona

Em relação ao enlaçamento do real, do simbólico e do imaginário, Lacan aponta que é o enunciado desse enlaçamento que opera na fala durante a análise, pois esses termos emergem, e o fazer do analista é seguir esse discurso. Mas os outros discursos também estão situados a partir do real. O discurso do mestre, articulado ao funcionamento simbólico, é para que “as coisas caminhem no passo de todos”, o  que faz frente ao real, “pois este, justamente, é o que não caminha” e o que “não cessa de se repetir para impor um entrave a essa marcha” (LACAN [1974], p.16), pois retorna sempre ao mesmo lugar. Já a função do imaginário reflete “o mundo como ele é — imaginário” (LACAN [1974], p. 16). Para situar o imaginário, é preciso que a função da representação seja reduzida e localizada onde ela está, ou seja, no  corpo. O trabalho de Lacan com a imagem, desde o texto “Estádio do espelho”, conduz a entender o estatuto de real que a imagem assume, do poder da imagem como real. Esse poder confere um efeito de verdade que afasta o imaginário da ideia da imaginação, por isso sua função central na constituição subjetiva.

No caso do personagem Anthony, fica patente que algo não caminha, não há a fluência que se pode perceber quando a vida marcha de acordo com o discurso do inconsciente. Algo do real do corpo se impõe e  impede que o discurso caminhe. Na medida do avanço da doença, esse real do corpo não cessa de retornar e interferir no processo discursivo, comprometendo a função simbólica.

Como fragilidade do enlaçamento simbólico, a função do imaginário se acentua como defesa a essa progressiva destituição do funcionamento significante, na tentativa de sustentar o discurso. Tomo o imaginário aqui como o próprio corpo do personagem, que reflete sua posição no mundo. É com o próprio corpo como imaginário que Anthony tenta se situar em seu aqui e agora. Ele busca elementos imaginários, seus objetos, sua casa para usá-los como suporte. Mas essa tentativa se dá em uma descontinuidade temporal: o “aqui e agora” de Anthony ocorre em uma fusão de presente e passado, impedindo que ele localize seu corpo na casa onde mora e que encontre os objetos com os quais se identifica — como seu relógio e o quadro pintado pela filha. É uma defesa que permite soluções temporárias, frágeis, na tentativa de se manter no discurso. Em  um esforço de dar sentido a sua vida, na fragilidade de seu corpo e de seu enlaçamento discursivo, Anthony ainda se mostra capaz de fazer metáforas, na medida que o imaginário consegue temporariamente sustentá-lo no discurso.

No progresso e na solidão da doença, em uma cena comovente, o personagem demanda encontrar quem ele sabe que não faltaria com ele, que permitiria uma significação vinda do Outro: sua mãe. Florian Zeller, dramaturgo e diretor do filme, mostrou com sensibilidade a  importância de os portadores do mal de Alzheimer terem ao seu lado alguém capaz de oferecer os semblantes necessários para que seu desamparo não seja completo.

 


Referências
BASSOLS, M. (2018) O bárbaro. Transtornos de linguagem e segregação. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_Barbaro_Transtornos_de_lin guagem_e_segregacao.pdfAcesso em: 15 dez. 2021.
LACAN, J. (1972-73) “Aristóteles e Freud: A outra satisfação”, In: O seminário, Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: JZE.
LACAN, J. (1969-70) “Produção dos quatro discursos”, In: Seminário 17, O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: JZE.
LACAN, J (1974) “A terceira”, In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia, nº 62, dezembro 2011, p. 16.
MILLER, JA. (1998-99) “Lo real y el semblante”, In: La experiencia de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Medicina da Seção Clínica- IPSM-MG em 10/09/2021.



O INCONSCIENTE: DA CRIANÇA ATÉ O ADOLESCER, E MAIS[1]

CRISTIANE BARRETO
Psicanalista, membro da EBP/AMP
cristianebarretonapoli@yahoo.com.br

Resumo: O texto comenta o prefácio de Jacques-Alain Miller para o livro L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, de Hélène Bonnnaud. Para tanto, primeiro contextualiza o inconsciente freudiano, seguido das elaborações lacanianas do inconsciente estruturado como uma linguagem ao inconsciente real. Ressalta a importância da questão da defesa e de como perturbar a defesa na psicanálise com crianças. Por fim, por meio de de um fragmento clínico, discute a questão contemporânea do inconsciente frente ao sintoma de uma adolescente e os efeitos na família, bem como o lugar de uma análise.

Palavras chaves: Inconsciente, linguagem, criança, adolescente, famílias contemporâneas

THE UNCONSCIOUS: FROM CHILD TO ADOLESCENT, AND BEYOND.

Abstract: The essay comments on Jacques-Alain Miller’ s preface to the book L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, by Hélène Bonnoaud. To this end, it first contextualizes the freudian unconscious, followed by the lacanian elaborations of the unconscious structured as a language and the unconscious as real. It emphasizes the issue of the defense and how it is possible to disturb the defense in children’s analysis. Finally, through a clinical fragment, it discusses the contemporary issue of the unconscious  in the face of a teenager’s symptom and the effects on the family, as well as the place an analysis can have.

Keywords: unconscious, language, child, teenager, contemporary families

 

Desali, s/t

Em “O Inconsciente”, texto de 1915, Freud argumenta para justificar o seu conceito: “nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situados no corpo” (FREUD, 1915/1974, p. 201). Lacan (1996/2017, p. 12) elucida que “a questão diante da qual a natureza do inconsciente nos situa é, em poucas palavras, que algo pensa o tempo todo”.

O inconsciente pensa. Com essa elaboração, Freud desaloja a consciência e confere um estatuto fundamental aos pensamentos inconscientes, produzidos à margem e independentes dela, com seus atos típicos — os atos falhos, os lapsos, sonhos. “O inconsciente implica na hipótese do sujeito freudiano, que se separa de toda reflexividade da consciência”, pontua Laurent (2007, p. 91).

“O que é que chama atenção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem”, ressalta Lacan (1964/1990, p. 29), apontando que “o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do sujeito — donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo” (p. 32). Desde aí, o inconsciente é rastro de linguagem, não sem o que a escapa e, ao mesmo tempo, é motriz: a pulsão. Assim, o mundo experimenta, sempre com densa resistência, o “acontecimento Freud” (LACAN, 1969/2008, p. 183).

“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, definição lacaniana inaugural ao seu ensino, articula os recursos da sua época; servindo-se da linguística, substitui as noções de condensação e deslocamento como mecanismos pelos termos metáfora e metonímia. Para Lacan, o material do inconsciente é “linguageiro” (LACAN, 1996/2017, p. 12). Afirma que a expressão adotada por ele, “como uma linguagem”, não se refere “a uma espécie particular de linguagem, como por exemplo a linguagem matemática, a linguagem semiótica, ou a linguagem cinematográfica” (LACAN, 1996/2017, p. 12). “Linguagem é a linguagem, e só existe um tipo: a linguagem concreta — o francês ou o inglês, por exemplo — que as pessoas falam” (LACAN, 1966/2017, p. 12). Entende-se que a linguagem, com suas estruturas e mecanismos retóricos, “possibilitam o surgimento de um saber que se desprende da correspondência entre significantes” (CÁRDENAS, p. 217).

Nesse momento importante do ensino, Lacan (1996/2017, p. 13) prepara uma conferência de madrugada e acaba por definir, de forma poética: “O inconsciente é Baltimore ao amanhecer”. Encontra aí, segundo ele, a melhor imagem para representar o inconsciente. Lacan (1996/2017, p. 13) complementa, ensinando a ler tal frase: “Onde está o sujeito? É necessário situá-lo como um objeto perdido. Mais precisamente, esse objeto perdido é o suporte do sujeito e, frequentemente, é algo bem mais abjeto do que vocês gostariam de considerar”. Essa afirmativa, à luz da definição poética, como Laurent (2007) faz ver, foi um modo de Lacan dizer do Inconsciente introduzindo aí o seu objeto inventado, o objeto a.

Miller (2011, p. 4), ao comentar essa mesma frase, diz que sabemos tão pouco sobre o inconsciente, que “é inverossímil e muito arriscado definir o que quer que seja a partir dele: pelo contrário, é sempre ele, o inconsciente, que deve ser definido, porque não se sabe o que é”. Portanto, as definições lacanianas do inconsciente reenviam a uma exigência de esforço, esforço de poesia. Lendo Miller, Laurent (2007) dirá que fórmulas do tipo “O inconsciente é…” competem ao analista. Tanto formulá-las quanto engendrar, a cada vez, uma resposta.

Defini-lo como uma cidade ou compará-lo a esse espaço não é inédito a Lacan, mas certamente as cidades lacanianas não têm a profundidade, ou reservas e marcas que remetem à temporalidade das cidades em ruínas freudianas. Hieróglifos ou ruínas arqueológicas causam impressão de civilizações enterradas, soterradas, mas, fazendo justiça àquele que funda a psicanálise, Freud coloca a pulsão de morte no coração da civilização, das cidades que pulsam, e isso é o que permite Lacan elaborar o Inconsciente real.

Com Lacan, o inconsciente não é reservatório senão de gozo, e nasce no espaço de um lapso, ao mesmo tempo em que se o relança sob transferência. Seja no sonho, seja no lapso, seja no trabalho em análise, os pensamentos já estão ali, mas em potência ou em ato (LAURENT, 2007). Quanto ao sujeito do inconsciente, nos diz Laurent (2007, p. 107), respondendo à pergunta demarcada por ele mesmo, como chave para lermos a frase lacaniana que diz que o inconsciente “está em todos os lugares e não se prende a nenhum deles”: com elementos atemporais, o inconsciente avança, na nossa época, a céu aberto e um tanto turvo.

Miller (2013), no prefácio ao livro de Hélène Bonnnaud O inconsciente da criança: do sintoma ao desejo de saber, é enfático ao dizer tratar-se de um livro que vai ficar para a história. E por uma curiosa razão: pelo fato de os psicanalistas duvidarem que exista um inconsciente na criança. Cito Miller (p. 01): “É que os psicanalistas não estão muito seguros de que as crianças tenham um inconsciente digno deste nome”. Adjetivar o inconsciente como digno chama a atenção. Qual é a dignidade em questão? Miller nos lembra que “não há inconsciente sem recalque”, retomando a concepção de que o recalque começaria com o período de “latência”, assim sendo, só então poder-se-ia afirmar a existência do inconsciente. Antes desse período, portanto, comenta Miller, de certa forma, duvida-se disso. Mas de qual inconsciente estaria ele fazendo menção? E, principalmente, quem seriam esses analistas que duvidam da existência do inconsciente na criança? Seriam esses dignos do inconsciente freudiano?

Miller prefacia o livro de uma analista que atende crianças e é lacaniana e, por isso mesmo, tem outra noção do inconsciente. O inconsciente de Lacan é, sobretudo, o inconsciente de quem é atravessado por uma experiência de análise e que se dedica à sua formação permanente, sustentando supervisões e endereços de questões, também permanentes, em estudos e invenções endereçados a uma Escola cernida por um campo — o freudiano. O inconsciente de que se trata é “o inconsciente real, do inconsciente como o impossível de suportar” (Ibid.).

Miller reitera o que se transmite no Núcleo de Psicanálise com Crianças: “Há as formações do inconsciente, que se decifram, que fazem sentido. Mas há também o que faz furo (trou), o que faz excesso (trop), o que faz tropmatismo e troumatismo” (Ibid.).

Miller, então, retoma a questão sobre a defesa e de como perturbá-la. A defesa, pontua ele, com Freud, “não tem a estrutura de um recalque. Ela está antes dele. O falasser está aí diretamente, cruamente, confrontado ao real, sem a interposição do significante — que é cataplasma, unguento, remédio” (Ibid.). Para Miller, a pergunta fundamental que a prática coloca a um analista, também de crianças, é: “como perturbar a defesa?”.

Para muitos analistas, a questão da defesa não se coloca. Para esses, segundo Miller, a defesa estaria fora de alcance, pois conhecem do inconsciente apenas o simbólico, ou, ainda, em uma posição pior, aqueles que estariam no registro da “tonteria”, conhecendo apenas a concepção do imaginário. Miller, então, se serve nesse prefácio para sublinhar com destaque que um analista intervém com a criança quando a defesa ainda não está cristalizada.

Miller demarca que, do encontro com a linguagem, “o sujeito sai esmagado, enterrado pelo significante que o assola”. “Ele renasce, born again, do apelo feito a um segundo significante. Ei-lo entre-dois, recalcado, deslizante, ex-sistente, sujeito barrado e que se barra”.

Lembra-nos que o homem nasce acorrentado, por ser prisioneiro da linguagem, e que seu estatuto primeiro é o de ser objeto. Ser objeto “causa de desejo de seus pais, se ele tem sorte. Se ele não tem, é dejeto do gozo deles” (Ibid., p. 03).

Abre-se o flanco para uma discussão a respeito da criança objeto do mercado, do mundo capitalista. Pois, tal como observa, atualmente “os pretendentes a genitores (…) começam por um estudo dos custos antes de se colocar na tarefa de produzir um ser humano” (Ibid.). Miller exemplifica com a questão da natalidade francesa, que é próspera, e, segundo ele, isso se deve, em parte, às disposições do legislador. Posto que “a política é antes de tudo uma regulação das populações”, é “biopolítica”, como afirma Foucault. The baby business atinge no mundo atual o seu auge. Traz como exemplo a questão do “filho para todos”, fazendo menção a uma das reivindicações do movimento “casamento para todos” (defesa dos direitos do casamento gay). Numa outra vertente, podemos acrescentar e mencionar um dos costumes americanos: nos EUA, o grande planejamento, índice de “responsabilidade paterna” ou “familiar”, é prover uma gorda poupança, a um filho criança, que garanta seus estudos até a faculdade.

Retomando o subtítulo de um outro livro, o de Debora Spar How money, science, and politics drive the commerce of conceptions[2], para terminar seu prefácio com uma ironia tenaz (a meu ver, também dirigindo-se aos discursos liberais, ou pseudolibertários de direitos), convoca os políticos a dirigir um olhar corajoso para o real:

“Homens e mulheres políticos, o pior seria que vocês fechassem os olhos para continuar a sonhar com um mundo ideal no qual papai batalha e mamãe costura. Saibam dirigir um olhar corajoso para o real. Só então vocês terão a oportunidade de agir pelas liberdades” (Ibid. p. 03).

Esse é o ápice do prefácio, que assim se conclui. Entretanto, Miller, nesse pequeno e instigante texto, assinala o fato que todas as culturas estabelecem procedimentos destinados a fazer o sujeito nascer ou renascer através da imposição de um significante suplementar. “Gravam-se, cortam-se, perfuram-se, suturam-se, pedaços do corpo: circuncisão, batismo, infibulação (…). Mais tarde, todos os tipos de ritos de iniciação (…). São sempre manobras, fingimentos, falcatruas, com o significante”.

Com esse aspecto pontuado por Miller, introduzimos a questão da adolescência e das ofertas discursivas de que os jovens podem lançar mão, ora para responderem a um dano causado pelo encontro com o real traumático, ora para se danarem ainda mais. A presença de um trabalho em análise pode servir, ter a função de fazer um sujeito renascer por outra via, qual seja: oferecendo uma parceria real, que aposta na fala e nas invenções singulares.

Para enlaçar ao tema dos impasses de pais e filhos, percorremos, junto ao comentário desse prefácio de Miller, o caso clínico de uma adolescente: o caso Luma[3], sua invenção e sintomas, que parecem abalar as defesas familiares, ou melhor, tocam no princípio organizador da família — um pai de “coração partido” e uma mãe tomada de angústia frente à sexualidade feminina no enlace da questão histérica “sou homem ou mulher?”.

A família, com sua linguagem de família, é berço do falasser, que é filho do sintoma. Como escreveu Ceres Rúbio em seus apontamentos, o filho, filho do sintoma, advém de um mal-entendido sobre o estatuto do corpo, na inexistência da relação sexual; faz acontecimento, e a crise do mal-entendido reaparece na adolescência, fazendo, por sua vez, acontecimento, furo no berço adormecido do casal parental.

O que exaspera os pais de Luma? Aos doze anos, ela se fez passar por um rapaz de dezoito para namorar virtualmente uma menina também de doze anos.

A filha, tratada como “adulta desde bebê”, inteligente e dócil, encontra-se perdida na encruzilhada que se desenha na adolescência. Seus pais a tomam como uma mentirosa compulsiva. Tal passagem remete ao comentário de Roy (2021, p. 03), de que as famílias contemporâneas “sustentam os ideais familiares explorando a discrepância inevitável entre a ‘criança-perfeita’ e a ‘criança-terrível’, entre a criança-falo prometida pelo ideal e a criança-objeto, ser de gozo”. Marco da divisão de “uma mulher ou um homem quando eles se tornam ‘pai’ ou ‘mãe’” (Ibid.)[4]. A criança, no caso, essa adolescente, passa a exasperar, em cada um deles,

“a tensão entre a mais-valia que conta com o acesso a significantes mestres e o efeito de castração que, por sua vez, é registrado como perda, senão como falta. Ao não ser tomada por um dizer singular, essa divisão, então sentida como insuportável, é projetada sobre a criança, que assume os traços de um ser enganador”[5] (Ibid.).

As notas e o interesse da adolescente pela escola decaem; passa a não gostar do próprio corpo e a vestir roupas largas. Assim, inventa um personagem e pesquisa sobre a transexualidade e a hormonização. Apavorados, tiram dela o celular e o tablet, ou seja, as telas por onde ela experimentava construir suas perguntas e vivenciar sua fantasia, com os recursos da sua época, não sem recorrer aos semblants. Com o recurso ao imaginário como falasser, fez do seu corpo um objeto do jogo que inventava; uma matéria na cena do encontro virtual, na internet, para tratar seu gozo, percorrer uma posição sexuada. Lembrando que o termo imaginário, tal como Lacan (1975, p. 30) ressalta em RSI, “não quer dizer pura imaginação, já que da mesma forma, se podemos fazer com que o imaginário ex-sista, é que se trata de um outro Real”.

Para Lacan (1975, p. 30), “a consistência para o falasser, para o ser falante, é o que se fabrica e que se inventa”. Qual é o estatuto da invenção de Luma? Tratar-se-ia de saber como uma mulher responde ao ser abordada por um homem? Construir um saber sobre o que é uma mulher fazendo-se o homem?

Curiosamente, a novidade que “veio dar à praia”[6] na adolescência de Luma não traz algo tão inédito assim. A mãe conta que, aos quatro anos, Luma se recusava a usar a saia da escola e, aos oito, inventava personagens masculinos para os jogos on-line. A primeira manifestação da adolescência, como resposta à puberdade, faz retorno a um tempo pré-edípico, portanto, conturbado, não organizado pelo édipo, e o que se passa com Luma parece ilustrar bem esse estatuto.

O pai interpreta o fato como “doença do coração partido”, a mãe identifica o sofrimento da filha ao dela próprio. E qual seria esse? Para ela, só quando teve a filha nos braços cessou sua angústia frente aos impasses do feminino. E seu sintoma toca uma das insígnias do feminino, que culminou quando a filha tinha quatro anos, idade em que esta responde com a recusa de usar saias. Trata-se de uma literalidade corpórea do todo fálico, sem espaço ao não-todo.

Luma, no encontro com a analista, vai dizer é da sua solidão: “um vazio, uma dor no peito, um desespero que faz o coração disparar”. No seu cubículo, também imposto pela pandemia, experimenta uma escuridão, o tempo que “gira e não passa”, seu nada, ou “o vazio sufocante”, bom nome para cernir a insistência da demanda parental.

Roy (2021, p. 04) pontua que, na zona de alienação significante, oculta-se “o que circula como desejo e o que se deposita como gozo em jogo, para cada um dos parceiros”[7], nessa interseção em que o “processo de separação se funda, dos desmames da infância até as aventuras tumultuadas da adolescência”[8] (Ibid.). Na tentativa de separação dos pais, interpela-os e, de certa forma, evita perguntar-se “o que o Outro quer de mim?”, aspecto de maior angústia. Luma, com essa resposta, recusa uma demanda e, dessa forma, “não dar a eles o que ela não pode dar”, seu ser singular — passar a ser como eles queriam que ela fosse.  Ou, ainda, fornecer aos pais, com o seu sintoma, as respostas sobre o que fazer com um coração partido e com as insígnias do feminino.

Dessa maneira, dar o que não se tem, o amor, passa a fazer questão em análise. A “menina estranha”, que não quer mais ser parecida com os pais; a alienação, no entanto, segue seu curso sob a forma de acting-out. Luma edita, no seu mundo virtual, a questão do enlace e desenlace do mal-entendido do seu par parental?

Existe um real em jogo e é preciso ofertar um lugar de fala, para que ela reinicie seu jogo, dessa vez, com a analista. Tendo sido privada das telas, a impossibilidade do uso das redes para fazer suas ficções e laços interrompe o jogo fantasmático no qual buscava saber o que é ser uma menina de doze anos. Para a mãe, um acontecimento de corpo faz marca de gozo e de perda de insígnias do feminino, colocando no real a questão histérica por excelência — sobre ser homem ou ser mulher.

Para Lacan (1975/2007, p. 129), a todo instante criamos uma língua, a língua é viva, “na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”, o que faz com que exista apenas “inconscientes particulares”. O encontro com a analista e suas primeiras intervenções promovem efeitos. Roy (2021, p. 05) acentua que Lacan

“amplia o conceito de inconsciente freudiano, enfatizando aí, o traço de uma passagem: algo aconteceu, um relâmpago chegou. Um equívoco, não há nada mais próximo, no ser falante, para fazer signo do acontecimento contingente. Não são novas significações que se trata de isolar, mas, a partir de um equívoco (une bévue), na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”[9].

O significante “trans”, que a adolescente diz aos pais, se modifica para “pan” quando endereçado à analista, e ela põe-se a falar dos seus impossíveis de dizer, fazendo o tempo dessa travessia da adolescência em análise, construindo o saber e o caminho enquanto avança. Novos arranjos que permitam um fazer com o gozo atordoante, falar para poder, quem sabe, fazer-se por escrito — ela quer ser escritora. Ela passa a fazer poesia dos “exageros” e ser escritora do seu “intenso insuportável”. Com a licença poética da transferência.

Por fim, de volta ao começo (do texto), o que é o inconsciente faz ressonância à pergunta deixada como ponto de causa nodal a uma Escola, a saber: o que é um analista? O que é um analista de crianças e de adolescentes?

 


 

Referências
CÁRDENAS, M.-H. Inconsciente. In: Scilicet: As psicoses ordinárias e as outras – sob transferência. São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, 2018.
FREUD, S. (1915). O inconsciente. In: Volume XV, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1974.
LACAN, J. (1966). Acerca da estrutura como imisção de uma alteridade prévia a um sujeito qualquer. Conferência em Baltimore, 1966. Opção Lacaniana, n. 77, São Paulo, Edicões Eolia, 2017.
LACAN, J. (1969). O Seminário, livro 16: de um Outro a outro. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. (1975). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2007.
LAURENT, E. Cidades Analíticas. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2007.
MILLER, J.-A. Intuições Milanesas. Opção Lacaniana online nova série.
Ano 2, Número 5, Julho 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf Acesso em out. de 2021.
MILLER, J-,A. Prefácio. In: Bonnnaud, Hélène. L’Inconscient de l’enfant. Du symptôme au désir de savoir. (Trad. Cristina Drummond) Paris: Navarin Éditeur, 2013 (circulação interna).
ROY, D. Parents exaspérés: enfants terribles. Disponível em: https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Acesso em: set. de 2021.

[1] Comentário do prefácio de Jacques-Alain Miller para o livro L’Inconscient de l’enfant: du symptôme au désir de savoir, de Hélène Bonnnaud. Apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do IPSM-MG em 20/10/2021.21.
[2] Como o dinheiro, a ciência e as políticas impulsionam o comércio de concepções, tradução nossa.
[3] Caso apresentado e autorizado para estar presente neste texto, pela colega Ceres Rúbio, psicanalista participante da Seção Leste/Oeste (EBP-SLO) e do Bilboquê — Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Criança, Rede CEREDA, do Campo Freudiano.
[4] No original: “Ils viennent aujourd’hui soutenir les idéaux familiaux en exploitant l’écart inéluctable entre “enfant-le-parfait” et “enfant-le- terrible”, entre l’enfant-phallus promis par l’idéal et l’enfant-objet, être de jouissance. Cette division percute une femme ou un homme quand ils deviennent “père” ou “mère”.
[5] No original: “la tension entre la plus-value que fait espérer l’accès à ces signifiants-maîtres et l’effet de castration, qui lui, s’enregistre comme perte, si ce n’est comme manque. À ne pas être prise en charge par un dire singulier, cette division, alors ressentie comme insupportable, est projetée sur l’enfant qui prend les traits d’un être trompeur (…).”
[6] Trecho da música “A novidade”, de Gilberto Gil.
[7] “Dans cette zone d’aliénation signifiante, ce qui circule comme désir et ce qui se dépose de jouissance en jeu, pour chacun des partenaires
[8] “C’est en effet sur cette intersection que se fonde le moindre processus de séparation, des sevrages de la petite enfance jusqu’aux frasques tumultueuses de l’adolescence”.
[9] “Élargit le concept de l’inconscient freudien, en mettant l’accent sur la trace d’un passage: quelque chose a eu lieu, en un éclair c’est arrivé́. Une bévue, il n’y a pas plus proche, chez l’être parlant, pour faire signe de l’événement contingent. Ce ne sont pas de nouvelles significations qu’il s’agit d’isoler, mais, à partir d’une bévue, “le petit coup de pouce que chacun donne à la langue qu’il parle”.



AS TEMPORALIDADES DA MEDIDA PROTETIVA DE ACOLHIMENTO[1]

CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA NUNES
Psicanalista, graduado em Psicologia.
Analista de Políticas Públicas da Secretaria de Assistência Social de Belo Horizonte e
mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG.
h.oliveira@live.com

Resumo: O artigo trata da medida protetiva de acolhimento, utilizada como instrumento de proteção a crianças e adolescentes pelo Judiciário e pelas políticas públicas de assistência social. Nesse âmbito, o texto explora pontos de tensão entre esses campos no esforço de argumentar que questões em torno da temporalidade, bem como a penetração do discurso jurídico no espaço reservado à escuta dos sujeitos, ocupam posições centrais nesse debate. O desafio está em criar um intervalo para a escuta que propicie a dialetização entre a temporalidade cronológica, na qual opera o discurso jurídico, e a temporalidade lógica, mais própria ao sujeito.

Palavras chaves: medida protetiva de acolhimento; judicialização; políticas públicas de assistência social; temporalidade lógica.

The Temporalities of Foster Care

Abstract: This text discusses the foster care, used by the Judiciary and by public social assistance policies as an instrument to protect children and adolescents. In this context, the article explores points of tension between these two fields, considering that the various temporalities and the penetration of legal discourse in the space reserved for listening to subjects occupy central positions in this debate. The challenge is to create an interval for listening that provides a dialectization between the chronological temporality, in which the legal discourse operates, and logical temporality, more appropriate to the subject.

Keywords: foster care; judicialization; public social assistance policies; logical temporality

Desali, s/t

Durante a reabertura democrática, ao fim da ditadura empresarial-militar, afinado com as discussões mundiais sobre infância, o Brasil levou o tema da garantia de direitos de crianças e adolescentes como responsabilidade da família, da sociedade e do Estado para o texto da Constituição Federal de 88 (CF88) e, dois anos depois, para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA90). O Estatuto inaugura a chamada Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. Estes passam a figurar como sujeitos de direitos, cuja proteção passa a ser dever de todos. As políticas públicas organizam-se, assim, numa lógica de proteção e promoção de direitos.

Para tanto, o Estatuto estabelece um rol de medidas de proteção para garantir direitos a crianças e adolescentes que se encontrem em situação de risco ou de vulnerabilidade. Há uma gradação entre essas medidas — algumas bastante simples, como “matrícula escolar” (crianças cujo direito à educação tem sido negligenciado) e “acompanhamento temporário por serviços públicos de saúde e assistência social”; e outras mais complexas e incisivas, por exemplo, em casos extremos de violência contra a criança ou violação de direitos pela família, temos, justamente, a medida protetiva de acolhimento, que é a retirada da criança do seio familiar para ser enviada a serviços de acolhimento institucional, popularmente conhecidos como abrigos, ou serviços de acolhimento familiar de famílias acolhedoras, nas residências de famílias voluntárias.

A medida protetiva de acolhimento possui duas características fundamentais: é excepcional, ou seja, deve ser utilizada apenas quando todas as outras tiverem se mostrado ineficazes e incapazes de garantir proteção; e provisória. Temos aí dimensões temporais: deve ser a última de uma série e deve ser breve.

O Estatuto estabelece que, uma vez que uma criança tenha sido encaminhada a um serviço de acolhimento, todos os esforços devem ser realizados no sentido do retorno da criança para casa. Assim, a família deve receber apoio para que possa reposicionar relações intersubjetivas familiares e sociais, assim como ter garantido seu acesso às políticas públicas, acompanhamento sociofamiliar e proteção do Estado para, finalmente, receber de volta a guarda da criança. Segundo o Estatuto, a separação é um meio para a reintegração da criança à sua família. Nota-se aí o caráter paradoxal.

Apenas nos casos em que, mesmo depois desse trabalho com os pais, tios, avós e outros parentes, nenhum adulto desse núcleo familiar mostrar condições de haver a guarda da criança, é que esta fica, então, disponível para a adoção por uma família que se interesse por ela. A adoção é a última medida.

Importante tal contextualização para que tenhamos em mente que uma adoção pressupõe um tempo anterior a ela. Um histórico que envolve sujeitos, instituições, dispositivos, laços rompidos, antigos afetos e projetos sem sucesso…

As medidas protetivas de acolhimento se dão em dois campos: no primeiro, temos a Vara Cível da Infância e Juventude, na qual todo o processo legal e decisório sobre a guarda das crianças se desdobra; no outro, paralelo, a assistência social com os serviços de acolhimento, que contam com psicólogas e assistentes sociais. O trabalho destas últimas pode ser resumido em dois pontos: humanização do acolhimento das crianças e acompanhamento e atendimento a essas crianças e suas famílias, tendo em foco a possibilidade de reintegração familiar.

A relação entre esses dois campos (judiciário e assistência social) é bastante complexa. Embora sejam independentes (um judiciário e, outro, serviço do executivo municipal), a própria Política de Assistência Social coloca-se como estando em “estreita interface com o Sistema de Justiça” (CNAS, 2009. p. 37). Mas a relação não parece ser simplesmente essa. O que se nota é que o trabalho de acompanhamento às crianças e às famílias, que poderia, como tal, se configurar como a oferta de um tempo e um espaço, ou seja, um intervalo, para uma escuta desses sujeitos, está constantemente sendo atravessado por demandas judiciais.

Teríamos aí o risco da judicialização dos serviços de acolhimento (a penetração de uma lógica jurídica em um campo, a princípio, exterior àquele propriamente jurídico). Mas tal judicialização ainda pode se estender a um segundo tempo, pois, caso a profissional/técnica desses Serviços de Acolhimento esteja desavisada dessas tensões, pode acabar por veicular para a família um discurso que reitera deveres, normas, protocolos padronizados e generalizações. A família (que no processo é chamada de ) pode acabar sendo convocada a dar provas de ser uma boa família — noção que não passa de imaginarização de relações que são simbólicas e muito mais variadas e complexas. No fim das contas, isso seria veicular uma “medida” na qual nenhuma família cabe.

Quem diz a verdade? O abuso sexual realmente aconteceu? Essa mulher, com 4 filhos de 4 pais distintos, tem mesmo condições de ser mãe? Esse homem é um bom pai? Favor inquerir esta mulher sobre quem seria o pai da criança, porque esta tem o direito de ter o nome do pai em sua certidão de nascimento! Tem afeto?” são algumas das questões direcionadas aos Serviços de Acolhimento. Vemos que são questões que os desviam de seu objetivo — a reintegração familiar — e parecem interessadas em reintegrar, na verdade, certo saber à justiça — fazê-lo íntegro, completo.

Espero deixar claro que não se trata de condenar o uso da medida de acolhimento, mas de estar esclarecido a respeito de sua complexidade e até mesmo suas contradições.

Arrisco alguns comentários sobre esse trabalho de reintegração familiar articulando-o a partir da questão do tempo. Destacam-se três temporalidades que se atritam e tensionam: uma da lei ou do judiciário, outra da família e, por fim, uma da criança acolhida (NUNES; PENNA, 2021).

O processo de acolhimento no judiciário se pauta pela provisoriedade do acolhimento, que deve ser o mais breve possível. No sentido da celeridade processual, pautam-se prazos e demanda-se urgência dos serviços de acolhimento da assistência social. O tempo para esse processo na legislação diminuiu há alguns anos. Antes, o prazo máximo de permanência em acolhimento era de dois anos, agora, um ano e meio. Na lei, sempre esteve prevista a possibilidade de prorrogação desses prazos, mas a prática indica que essa possibilidade nem sempre é considerada ou não é considerada por todos. Os relatórios sobre a possibilidade de reintegração da criança à família eram semestrais, agora, trimestrais. Crianças que não são procuradas 30 dias após o acolhimento devem ser cadastradas para adoção. Assim, a pressa em responder[2] chega para os serviços de acolhimento (em especial, em casos de crianças acolhidas).

Claro, há uma exigência que o processo corra no menor tempo possível, pois, quanto menor o tempo em acolhimento, melhor para a criança, certo? Sim e não. O que fundamenta essa demanda de uma resposta rápida para concluir sobre o caso me parece uma problemática identificação operada nesse campo entre a velocidade da decisão judicial e o princípio do “melhor interesse da criança”. Algo aí fica fora do jogo, desconsiderado.

Outra temporalidade seria aquela experienciada pelas famílias. Elas vêm, invariavelmente, de um contexto de vulnerabilidades sociais extremas e historicamente cronificadas de situações violadoras. Não raro, é possível escutar desses sujeitos suas histórias que giram em torno de um mesmo núcleo e que se repetem uma e outra vez, mudando as gerações… Frente a essas questões, embora a demanda verbalizada pelas famílias seja também a de uma pressa na reintegração do filho, com sua escuta é possível cernir que é preciso um tempo estendido, para que se produza uma resposta, reorganização, implicação etc. O tempo da família (atravessada por suas questões singulares e também determinantes históricos, culturais, socioeconômicos) parece ser uma temporalidade não-apressada.

Uma terceira experiência de tempo seria a da criança ou do adolescente acolhido. O tempo aqui aparece nas chamadas fases do desenvolvimento, mas principalmente como demanda de retorno para a família no tempo mais breve possível, o sofrimento pelo tempo afastado do lar… Mas a própria criança não se beneficiaria se sua família tivesse um tempo não-apressado a seu dispor? Estamos de volta à questão do melhor interesse da criança. E aqui poderíamos perguntar: o melhor interesse da criança segundo quem?

Como representativo desses fenômenos, podemos lembrar alguns exemplos, como as Recomendações 04 e 05/2014 da 23ª Promotoria de Infância e Juventude de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Elas foram publicadas recomendando que os serviços de saúde, em especial as maternidades, comunicassem compulsoriamente à VIJ as situações de puérperas com histórico de uso de drogas, que não teriam realizado acompanhamento pré-natal adequado, que estariam em situação de rua e/ou que tivessem interesse em entregar seu bebê diretamente para a adoção.

Esses documentos motivaram muitos acolhimentos preventivos (desrespeitando o caráter excepcional já citado da medida de acolhimento). Vemos aí uma tentativa de antecipar-se às situações que supostamente seriam violadoras de direitos. Ou seja, não apenas saber sobre o melhor interesse da criança, mas saber a priori. É interessante notar que as Recomendações não foram recebidas como um recomenda-se, mas como cumpra-se — sinal da judicialização a que me referi anteriormente.

Não são raros os casos de decisões processuais jurídicas anteriores a uma conclusão sinalizada pelo trabalho com as famílias e crianças. Esses retornos para casa e até encaminhamentos para famílias adotivas fazem um corte abrupto antes que se esboce uma elaboração por parte da família.

As prescrições de prazos que instrumentalizam a urgência da temporalidade judicial está fundada sobre a linearidade suposta de um tempo cronológico. Nessa orientação, o processo judicial progride, protocolar, superando sucessivamente etapas anteriores, dirigindo-se sempre para seu desfecho. Mas diversa é a forma de tempo que se observa na experiência dos sujeitos (famílias e acolhidos).

No trabalho de escuta desses sujeitos, o tempo se inscreve por vezes como persistências, repetições, reincidências, pausas, movimentos que parecem cíclicos e prenhes de descontinuidades (esse é também o modelo do tempo histórico que, embora avance, faz reincidir e acirrar desigualdades sociais seculares). Um tempo lógico que irrompe onde se esperaria uma linearidade processual e cronológica.

Os casos nos quais os familiares fazem uso de drogas, lícitas ou ilícitas, são muito representativos disso. Iniciados os tratamentos, vemos sujeitos que se organizam e caminham em certa direção, mas acabam por vezes retomando o uso abusivo — reincidem, interrompendo o tempo linear de “avanço”. As recaídas, que são até esperadas nesse contexto, algumas vezes são lidas como atraso e como provas da incapacidade da família, que não conseguiria se reorganizar.

Não se trataria, portanto, apenas de fazer uma oferta de “mais” tempo, mas também de estar esclarecido que o tempo subjetivo acelera, regride, retorna, avança e desacelera. Essa temporalidade lógica do sujeito (diferente da cronológica prescrita na lei) não pode ser pré-estabelecida.

Fica o desafio de pensar como inserir um intervalo e tecer uma dialetização entre os tempos lineares e lógicos dessa cena para lidar com essas temporalidades, por vezes concorrentes. Uma temporalidade de urgência ameaça a possibilidade de um tempo para compreender, necessário para alguma elaboração.

Gostaria de finalizar com uma frase de Freud, no texto Sobre o início do tratamento (1913/2017), que demonstrava já estar avisado da impossibilidade de uma duração determinada a priori para uma análise. Segundo ele, ao ser interpelado com a questão de quanto tempo um tratamento durará, o analista deveria responder que primeiro se precisa conhecer o passo do andarilho, para depois poder calcular a duração de sua caminhada (p. 129).

 


Referências
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Resolução nº 145/2004. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS, 2009. 175 p.
FREUD, S. Sobre o início do tratamento. In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Trad. Claudia Dornbusch. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 121-147.
NUNES, C. H. O.; PENNA, P. D. M. O tempo da lei e as temporalidades singulares: impasses no acolhimento institucional de crianças e adolescentes. In: ANDRADE, M. C.; CARDOSO, J. S.; Curi, G. A. (org.) Transfinitos: inconsciente e tempo. Belo horizonte: Aleph – Escola de Psicanálise, 2021. (v. 18). p. 233 – 242.
Nota

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Direito da Seção Clínica do IPSM-MG, em 10/09/2021.
[2] A expressão intitula a Jornada Internacional do CIEN “A pressa em responder”, realizada em 27 de novembro de 2009.
psicanálse – acolhimento – lacan – psicanalise – psychanayse – psicoanálisis