A INFÂNCIA É TRANS…[1]

TÂNIA MARIA LIMA ABREU
A.E. (2020-2023) EBP/AMP
taniaabreu.ta@gmail.com

Resumo: Este trabalho é fruto de uma pesquisa que tomou como eixo o documentário Pequena garota e as leituras que dele a autora pode fazer a partir de textos e vídeos com os quais dialogou.

Palavras chaves: infância; trans; sexuação; gozo.

Childhood is Trans

Abstract: This article is the result of a research that had as its guide the documentary Little Girl and the readings that the author could make of it through texts and videos with which she dialogued.

Keywords: childhood; trans; sexuation; jouissance.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 


Trata-se de um lindo documentário dirigido por Sébastien Lifshitz, que chegou aos cinemas e às plataformas digitais em dezembro de 2020. O longa emociona ao contar a história real de Sasha, uma criança de 7 anos que sempre soube que era uma garota, embora tivesse nascido menino, caracterizando, assim, o que no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 6 (DSM 6) aparece como disforia de gênero. Durante um ano o diretor acompanhou a pequena Sasha e sua família, que residem na Alta França (Hauts-de-France). O filme, com muita sensibilidade (o que não impediu de tamponar, com saber, a castração), foi selecionado no Festival de Berlim e garantiu o prêmio de melhor longa-metragem internacional do Festival de Cinema Mix Brasil.

Meu comentário se divide em duas partes, seguindo o que o título, por mim escolhido, aponta. Assim, parto da ideia de que a infância é trans e, depois, me dedicarei às reticências.

Na versão em vídeo (que circulou na Lacan WEB TV), Daniel Roy (2021a), retomando Freud, nos relembra que uma desarmonia entre o que acontece no corpo e as palavras é característico da sexualidade infantil, mas, hoje, ter “nascido em um corpo errado” é um “passaporte” para ser enquadrado em uma transidentidade, como se as crianças, em suas pesquisas infantis, em sua latência, não pudessem ter dúvidas, ambiguidades e qualquer transitoriedade. Como nos adverte Roy, “não há caminho normal para a sexuação”, tampouco uma instância interna ou externa à criança que possa julgar se o próprio corpo é um bom ou um mau corpo. Sigo Roy ao afirmar que nas crianças há afetos e sintomas, mas dos quais só saberemos se as escutarmos. E por falar em sintomas, relembro Maleval (2021) que, também em vídeo da Lacan Web TV, nos sublinhou que a disforia de gênero — nomeação que acalma algumas crianças, por encontrarem um lugar no discurso do Outro — nem sempre é o problema maior, visto que pode vir acompanhada de outros sintomas, tais como anorexia, autismo ou perturbações de humor.

Ainda na direção da minha pesquisa nos áudios da Lacan Web TV, chamou a atenção o que disse Hélène de La Bouillerie, a propósito do prefixo “dis”: “Na experiência com crianças, na prática clínica, é comum encontrarmos crianças diagnosticadas ‘dis’: dislexia, disortografia, discalculias, dispraxia…”. Diagnósticos que fazem série àqueles de outras letrinhas, tais como TDAH, TOC entre outros. A propósito disso, Roy nos diz que:

“Talvez tenhamos agora a fala e o espírito com mais liberdade para nos confrontar com essa criança-terrível, a hiperativa, os ‘dis’ (dis: elemento que significa dificuldade, problema, por exemplo: dislexia), aquele que morde, aquele que não dorme, e aos seus pais exasperados, aflitos ou desesperados” (ROY, 2012, n/p).

No ano de 2005, Miller, no curso Piezas sueltas, na aula de 19 de janeiro de 2005, segundo Roy, adverte para:

“(…) a questão da continuação da psicanálise na época da leveza”. Ele destaca que, face a esse ‘domínio da leveza’ — que visa a conduzir o sujeito da sua particularidade ao universal — a psicanálise não tem que entrar ‘em uma competição de poder terapêutico’, uma vez que, com Lacan, ela é a única a levar em conta o lugar do objeto a, tanto quanto como causa do desejo, como mais-de-gozar, mas, também, como consistência lógica, como um real ‘produto do simbólico’. Ele nos encoraja a tomar um ponto de vista ‘pragmático e de bricolagem’, que consiste em procurar, com os sujeitos, os significantes — os S1 —, que ‘ajudam a deixar legível o gozo’ e, portanto, ‘ajudam a deixar legível a história’” (ROY, 2012, n/p).

Assim, escutem as crianças: elas têm o que dizer, sobretudo sobre o mal-estar que lhes afeta o corpo. Posição, como mencionada acima, absolutamente freudiana — um pouco mais adiante, retomarei a questão da bricolagem, ao dialogar com Fórum Zadig (2021).

Para esta conversação, retomei um texto de Freud intitulado “O esclarecimento sexual das crianças” (1907), uma carta aberta endereçada ao Dr. Michael Fürst. Ali, encontrei a ferrenha defesa de Freud sobre a importância de se falar às crianças e, consequentemente, de escutá-las em suas curiosidades sexuais. Freud argumenta que:

“(…) certamente são a habitual hipocrisia e a própria má consciência em questões de sexualidade que levam os adultos a fazer mistério diante das crianças; mas é possível que influa nisso alguma ignorância teórica, contra a qual podemos agir mediante o esclarecimento dos adultos” (FREUD, 1907/2015, p. 221).

Passagem que se assemelha ao segredo de família, que, com Lacan, sabemos ser sempre um algo não dito sobre o gozo.

Na sequência, Freud traz o equívoco à tona, reinante, à época, nas famílias, nos educadores e na sociedade, ao suporem que “falta às crianças o instinto sexual, que somente na puberdade ele aparece, com o amadurecimento dos órgãos sexuais. Isso é um erro grosseiro, de sérias consequências para o conhecimento e para a prática” (FREUD, 1907/2015, p.221). Ainda, para Freud:

“Na verdade, o recém-nascido vem ao mundo com a sexualidade, determinadas sensações sexuais acompanham seu desenvolvimento no período da amamentação e da primeira infância, e pouquíssimas crianças deixariam de ter atividades e sensações sexuais antes da puberdade” (FREUD, 1907/2015, p.221).

O que, em termos lacanianos, quer dizer que as crianças gozam! Perversão polimorfa é gozo. Em sua argumentação, Freud segue, afirmando que:

“O que a puberdade faz é conferir aos genitais a primazia entre todas as zonas e fontes geradoras de prazer, forçando o erotismo a pôr-se a serviço da função reprodutiva, um processo que naturalmente pode sofrer certas inibições e que em muitos indivíduos, os futuros pervertidos e neuróticos, efetua-se apenas de modo incompleto. Por outro lado, bem antes de alcançar a puberdade a criança é capaz da maioria das atividades psíquicas da vida amorosa (ternura, dedicação, ciúme) e, com alguma frequência, a irrupção desses estados psíquicos vem acompanhada das sensações físicas da excitação sexual, de maneira que a criança não tem dúvida quanto à relação entre as duas coisas. Em suma, bem antes da puberdade, a criança é, tirando a capacidade de reprodução, uma criatura amorosa completa … O interesse intelectual da criança pelos enigmas da vida sexual, sua curiosidade sexual, manifesta-se insuspeitadamente cedo, portanto” (FREUD, 1907/2015, p.221).

Há um ponto que não desenvolverei, mas que gostaria de ressaltar, por permitir atualizar o texto freudiano ao confrontá-lo com o texto de Roy (2021b), uma vez que, ali, localizamos o lugar privilegiado do mal-entendido que transmite o gozo: “(…) a família está, daqui em diante, mergulhada no banho de nossa civilização, onde os objetos vindos da tecnologia, os objetos mais-de-gozar, se tornaram a autoridade e fundaram a lei de todas as formas de ideal. O gozo está aí em primeiro lugar” (ROY, 2021b).

Em um dos seus últimos seminários, de 10 de junho de 1980 — intitulado, por Jacques-Alain Miller, “O mal-entendido” —, Lacan extrai as consequências e evoca “(…) dois falantes que não falam a mesma língua (…), dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido realizado (…)”, dando a vida, transmitem esse mal-entendido (LACAN, 1980/2016, p. 11). Trata-se, aqui, de um mal-entendido que se refere ao gozo, acrescenta Roy.

Aí estão dadas as condições para podermos afirmar que a infância é trans, na acepção de transitar e transportar. A criança curiosa pergunta, investiga, hipotetiza, experimenta o seu corpo e o corpo do outro, identifica-se e, desse modo, exerce a sexualidade infantil. Identificações livres, influenciadas pelo afeto e pela pulsão, mas, também, livres em sua diversidade. Identificação que não se guia tanto pelo Outro, mas pelo gozo que habita o próprio corpo.

O enigma da diferença sexual não escapa a essa lógica infantil, e, como preconiza Roy (2021a), em vídeo já referenciado, seguindo Freud, “é um momento no qual a criança está só”, momento de crise, no qual descobre que o Outro é barrado, não possui respostas para tudo. Por outro lado, o fato de ser esse o caminho para todos, “a crise é a norma”, “não há um caminho padrão para encontrar sua via para sua sexuação”, completa. Freud nomeou essa fase de latência, aquela na qual o gozo, advindo do sexual, é desviado para atividades sublimatórias e fixa o sujeito em seu modo de gozar.

Partamos, agora, para o que me despertou atenção no filme, tendo como eixo norteador Sasha, sua família e, dentro dela, a relação mãe-criança.

Trata-se de uma família de quatro filhos, sendo a mais velha uma adolescente e os outros três nascidos meninos. Ao longo do filme, escutamos a mãe de Sasha, em consulta com um psicólogo, dizer de seu desejo de ter uma menina durante a gravidez de Sasha — único dos quatro filhos que possui um nome comum aos dois gêneros. É notório que Sasha nasceu em uma família amorosa e teve a sorte de ter uma mãe que olhava para cada filho em sua singularidade, embora tenha ficado claro o idílio amoroso que havia entre ela e Sasha, o que, por vezes, deslocava seu olhar dos outros filhos.

O pai, aquele que só tem direito ao amor e ao respeito ao fazer de uma mulher objeto a causa do seu desejo e se ocupar dos seus produtos, como nos ensinou Lacan (1974/1975), me pareceu bem em sua função de cuidar do produto Sasha, mas inoperante para barrar o desejo da mãe. Seu discurso é de normalizar o que se passava com a criança, não podendo alcançar o sofrimento que a atingia.

No tocante à mãe, é interessante como ela é sensível e se questiona sobre a força do seu desejo, mas o diretor do filme opta pela via do saber, aqui, representado pela psiquiatra infantil Anne Bargiacchi, do hospital Robert Debré, em Paris, que, de um golpe, elimina qualquer lugar tanto para o desejo quanto para o discurso psicanalítico: não sabemos a causa da disforia, mas não é fruto do desejo dos pais. Nesse ponto, detenho-me no vídeo que Fabian Fajnwaks (2021) gravou para a 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, no qual observou que as diferentes teorias do gênero e dos terapeutas querem “abordar a sexuação pelo viés do semblante, modo de gozo feminino ou masculino, curto-circuitando o Outro, e, como se o Outro não existisse, abolem o desejo (…)” (tradução nossa).

A partir daí, o que se vê é que a psiquiatria, tal como representada no filme, não deixou espaço para que o dito de uma criança pudesse ser escutado, o que, com o tempo e sob transferência, poderia ser transformado em um dizer. Afinal, Sasha afirmou que queria ser uma menina quando crescesse. A família passa a travar uma cruzada contra a escola na qual estudava e nas aulas de ballet, que não a aceitam porque, na certidão de nascimento, está registrado menino, ignorando o que recomendou Roy:

“Existe a possibilidade de uma criança decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais como ‘causa de seu desejo’ e ‘como dejeto de seu gozo’. Esse deciframento, uma criança o faz com os significantes que ela retira, que tomam o valor singular do gozo pulsional que os flexibiliza. Essa é a função privilegiada do jogo da criança, que enoda, em volta do objeto indizível, as extremidades do corpo, os fios de gozo e os fragmentos de discurso. Esse objeto é a válvula que abre, entreabre ou fecha, o espaço para uma separação” (ROY, 2021b).

Para concluir a primeira parte do meu trabalho, continuo com o referido texto de Roy, mas, agora, colocando-o frente a frente com o evento Zadig, recém ocorrido na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Nele, destaco a passagem

“Nós partimos, pois, de um outro ponto de vista, colocando que não existe ser falante que não seja de uma família, o que abre então muitas perspectivas para todos aqueles que estão numa situação delicada com suas famílias ou que se consideram “sem família”, mas também para todos os outros. Para cada criança, protegida ou abandonada, existem possibilidades de bricolagem. Respondendo a uma lógica do não-todo (pas-tout), a instituição ‘família’ oferece outros recursos: aqueles, para as crianças, de serem não-todo (pas-tout) dependentes das identificações familiares, não-todo (pas-tout) dependente do amor, filial e parental, quer dizer, de poder explorar as facetas menos amáveis. E isso vale também para os seus “parceiros no jogo da vida”, pai, mãe, padrasto, madrasta e outros ‘familiares’” (ROY, 2021b).

Do Fórum Zadig, ocorrido em 1º de julho de 2021, retiro a entrevista com Are Bolguesi, conduzida por Angelina Harari, e os ensinamentos extraídos dos dez minutos que nos concedeu, sobretudo no tocante à relação dela com a moda, que, ao vestir a própria pele, a liberta.

Sasha e Are têm, ambas, uma paixão que, entretanto, encontrou destinos distintos. Are relata como tem sido libertador cuidar de sua pele, por intermédio da moda. Sasha, uma criança cujo discurso foi, segundo Maleval (2021), tomado como “discurso científico”, não foi ouvida naquilo que a movia: a dança. A tristeza no olhar de Sasha poderia ter sido interpretada como a de quem não podia fazer o que o desejo lhe apontava? Nesse contexto, o da “bricolagem” acima citado, podemos questionar: Sasha poderia ter sido um “menino bailarino”? Bricolagem, por esse prisma, com o que a pulsão vivificava em seu corpo, ressonância do eco de um dizer? Teria sido essa sua saída sinthomática, seu modo de ser mulher?

 

Parto, agora, para as reticências…

É do conhecimento de todos que Jacques-Alain Miller denominou o ano de 2021 como “ano trans”. Toda nomeação implica alguma fixação. No campo epistêmico, estamos ainda no instante de ver, de produção de ideias decorrentes dessa fixação, cabendo, então, dúvidas: o que é um trans? Binário ou não binário? O que é sexo fluido? Necessitaremos de algum tempo para compreender o que é um fenômeno global, atemporal e diverso: a teoria do gênero. Eric Marty (2021), entrevistado por Jacques-Alain Miller sobre seu recém-lançado livro, O sexo dos modernos, elevou tais teorias à categoria de “última grande mensagem ideológica do ocidente ao resto do mundo”, destacando suas influências jurídicas em diversas democracias.

Diante da diversidade que o tema impõe — e assim deve ser tratado, a meu ver —, detenho-me agora em uma pequena digressão, contida no título do meu trabalho: as reticências, pois eles me levarão a tratar de outra fixação.

O que são as reticências? Quando usá-las? Em que contexto? A sua presença no título do meu trabalho levou-me a pesquisar as suas origens, e eis que me deparo com uma etiologia latina para os três pontinhos, que significam algo implícito. O que há de implícito no momento “trans”, que, de uma década para cá, assolou o mundo, levando as crianças em seu movimento? Será que a onda “trans” do mundo adulto pode ser “transportada” para o infantil que, em si, é uma transmutação por estrutura?

A infância é, por estrutura, “trans”: transição, transformação, transgressão. Mas, sobretudo, “transfixão”. Essa palavra é dicionarizada e significa um método de amputação cirúrgica em que se transpassa o bisturi de lado a lado, dividindo os músculos de dentro para fora, segundo o Michaelis. Qualquer semelhança com o que temos presenciado ao nível do esmagamento do infantil pelo discurso do adulto não é mera coincidência. É de “fixão” que se trata quando a ficção infantil é atravessada pelo discurso do Outro.

Freud nos legou o conceito de fixação, Lacan inventa a “fixão”. A criança do século XXI está a nos presentear, com sua divisão desde dentro, com os efeitos em seu corpo do Discurso do Mestre, aqui representados pela Ciência e pelas leis. Quem vem primeiro? Quem serve a quem? Isso não interessa ao infantil, pois, sobre ele, tombam os efeitos daí transportados. Se o músculo se divide de dentro para fora, a criança se divide de fora para dentro, a partir do que vê e ouve.

Voltemos às reticências, sem perder de vista que, além de apontarem para uma interrupção da frase, elas transmitem sentimentos: surpresas, dúvidas, suspense… Elas animam um texto! Eis o que interessa nesses pontinhos: a arte da vivificação que, no nosso affaire, tem como caminho privilegiado a prática clínica.

O que a psicanálise pode oferecer aos sujeitos falantes que sofrem por uma inadequação entre corpo e discurso? É de leitura do sintoma que se trata: encontro de significante e corpo.

Concluo lembrando que os significantes menina ou menino fazem eco no corpo de modo singular e o fazem gozar, uma vez que “um corpo, isso se goza” (LACAN, 1972–73/2008, p. 29), desde que tal gozo seja corporizado de modo significante. Sasha nos demonstra que, no sexo, não há nada mais que uma questão de cor, como ensina Lacan: “pode haver mulher cor de homem, ou homem cor de mulher” (LACAN 1975–1976/2005, p. 112).

 


Referências
FAJNWAKS, F. Entrevista concedida a Christine Maugin, publicada em Les Z’atelier 2, como atividade preparatória à 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, de 13 de março de 2021. Em https://institut-enfant.fr/organisation-jie6/zatelier-video-1/. Acesso em: 10 ago. 2021
FREUD, Sigmund (1907). O esclarecimento sexual das crianças (carta aberta ao Dr. M. Furst). Trad: Paulo César de Souza, In: Obras Completas. RJ: Companhia das Letras, 2015 vol. 8, p. 220/226.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXIII: o sinthoma. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975-1976/2005, p. 112.
LACAN, Jacques. O mal-entendido, lição de 10/06/1980, In: Opção Lacaniana, n. 72. São Paulo, março de 2016, p. 11.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XX: mais, ainda. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1972/1973/1985, p. 29.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXII: RSI. 1974/1975, inédito.
MALEVAL, J-C. La réassignation de genre chez l’enfant. In: Lacan Web Tv. YouTube.com. em 12 de abril de 2021. Acesso em: 10 ago. 2021. Tradução da autora.
MARTY, Éric. Entrevista sobre Le sexe des modernes, por Jacques-Alain Miller. Correio Express. 21 mar. 2021. Disponível em: https://www.ebp. org.br/correio_express/2021/04/14/entrevista-sobre-le-sexe-des-modernes/. Acesso em: 14 de abril de 2021.
MILLER, Jacques-Alain. Del objeto a al sinthome. In: Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 97/117.
ROY, Daniel. Être né dans le mauvais corps. (vídeo) In: Lacan Web TV. YouTube.com. em 28.6.2021a. Acesso em: ago. 2021. Tradução da autora.
ROY, Daniel. Parents exaspérés – Enfants Terribles. In: Zapresse : Lettre D’Information de L’Institut Psychanalitique de L’Enfant. Université Populaire Jacques Lacan.2021b. Disponível em : https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Acesso em: ago, 2021. Tradução da autora.
ZADIG. Fórum. Trans: Leituras. Evento da La movida Zadig Doces & Bárbaros, em 1º de julho de 2021, via Plataforma Zoom.

[1] Texto apresentado e debatido em forma de Conversação no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças, Seção-MG, em 18/09/2021.



ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA SÉRGIO LAIA A.M.E. da EBP/AMP 

 

Imagem: Fred Bandeira 

 

Almanaque On-Line: Há mais de trinta anos, em seu seminário O banquete dos analistas, Miller convocava os psicanalistas para uma tomada de posição diante do avanço de um discurso cujo cerne implicava o apagamento do desejo em favor de uma injunção ao mais de gozar.  Hoje, esse cenário se consolidou. Sabemos que, distintamente de um discurso que, por estrutura, faz barreira ao gozo, como vemos figurado no discurso do mestre, o discurso do capitalista, ao qual Miller se refere, possui uma configuração na qual o sujeito e o objeto mais de gozar gozo estão diretamente vinculados.

Uma de suas manifestações que interessa aqui isolar advém da parceria entre o discurso liberal — próprio ao capitalismo — e o saber da ciência, que exibe como palavras de ordem a utilidade e a rentabilidade, o que significa dizer que se ampara em uma lógica utilitarista que vai na contramão da existência do amor, do desejo e do gozo.

Nesse contexto, a prática analítica permanece sob a pressão de ceder a essas regras, seja, por exemplo, deixando-se incluir em sua burocracia, seja acatando o seu imperativo de eficácia medido por estudos e cálculos estatísticos. Diante dessa conjuntura, quais são as saídas para que a psicanálise possa se manter como um discurso que faz objeção a esse empreendimento de universalização ou de massificação anônima?

 

Sérgio Laia: Primeiramente, acho oportuno lembrar uma observação feita por Jacques-Alain Miller em uma de suas recentes apresentações virtuais, quando destaca que Lacan sempre se deixava tocar por uma oportunidade relativa a seu tempo, mas sem abrir mão de ser Lacan. O exemplo evocado, nessa ocasião, por Jacques-Alain Miller, é justamente o das referências que Lacan fez, no final dos anos 1960 e no início da década de 1970, a Marx e à mais-valia: elas não deixam de se valer da importância que o pensamento e a ação marxistas tinham, sobretudo entre os jovens comprometidos com lutas para um mundo mais justo e melhor, mas Lacan não se apresenta propriamente como mais um marxista ou alguém diretamente envolvido em ações anti-capitalistas, tampouco se coloca como um defensor do capitalismo — ele se serve, por exemplo, da noção marxista de mais-valia para ressaltar o que passa a formular, a partir da experiência psicanalítica, como mais-de-gozar.

Considero, por conseguinte, importante esclarecer que a formalização lacaniana dos discursos, embora passível de algum sequenciamento na história e de referência a certos contextos, não se restringe a essa historicização nem a esses referenciais. Em uma perspectiva que poderia ser qualificada de histórico-contextual, sabemos que o discurso do mestre foi relacionado por Lacan ao “roubo”, ao “rapto” e à “subtração” realizados pelo senhor; quanto ao “saber” que o escravo, particularmente na Grécia Antiga, derivava da própria prática, isso é como um savoir-faire que, exceto pela operação do senhor, jamais poderia ser articulado na forma de um saber valorizado e difundido como episteme (LACAN, 1969-1970/1991, p. 21). Igualmente por uma contextualização e uma localização histórica, o discurso universitário chegou a ser associado à universidade, que não mede esforços para colocá-lo “em posição dominadora” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 231). Em mais uma referência localizável historicamente, Lacan ressaltou a importância, para uma histérica, de “que o outro chamado homem saiba” o quanto “ela se torna nesse contexto de discurso” um “objeto precioso” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 37), e, certamente, no final do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX, Freud escutou como poucos o que suas pacientes diziam e favoreceu, com sua descoberta do inconsciente nessa experiência singular de escuta, a formulação lacaniana do discurso do mestre, do discurso da histérica e do discurso analítico. Todavia, com sua “produção dos quatro discursos”, Lacan visa dar corpo a “uma estrutura… que ultrapassa bastante a fala, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11). Por essa ultrapassagem, cada um dos quatro discursos não se limita a ocasiões histórico-contextuais, mesmo se elas são evocadas por uma das designações que corresponde a cada um como sendo o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso da histérica e o discurso analítico. Em cada discurso, trata-se, segundo Lacan, do que “subsiste em certas relações fundamentais” que, “literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem”, mas, “no interior” dessas relações, aborda-se também “alguma coisa que é bem mais ampla e vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11).

No que concerne à linguagem, os matemas lacanianos dos discursos são compostos pelo significante-mestre (S1), pelo significante referente ao saber (S2) e por esse efeito significante que tampouco deixa de ser uma espécie de rasura significante, designada como sujeito barrado ou dividido (S). Contudo, essa “alguma coisa” que, embora se amplifique e extrapole as enunciações efetivas, também se encontra inscrita nos discursos, é o que Lacan chama de mais-de-gozar e localiza no objeto a. Assim, em cada discurso, considero que Lacan — sem confundi-los — procura articular e, portanto, aproximar dois tipos de elementos que, ao longo uma parte de seu ensino, eram tomados como heterogêneos: os elementos concernentes à dimensão significante (S1, S2, S) e aquele referente à dimensão do gozo (a). Essa heterogeneidade entre significante e gozo não deve ser confundida com uma oposição na qual um excluiria necessariamente o outro impedindo-lhe a ação: ela tem a ver com certa distância, entre gozo e corpo, demarcada pelo impacto do significante nos corpos humanos.

Prefiro me ater, aqui, à especificidade lacaniana da acepção do objeto a como mais-de-gozar, sem desenvolver o modo como se evoca aí, também, a noção marxista de mais-valia. Assim, da própria ação do significante nos corpos, há um resto impermeável à mortificação e Lacan — localizando-o como objeto a — destaca nele, a meu ver, tanto a insistência quanto certa anulação do gozo, valendo-se de toda uma ressonância própria à língua francesa, ao designar esse resto como plus-de-jouir. Na tradução “mais-de-gozar”, perde-se essa ressonância e, talvez, algo dela poderia ser mantida se optássemos por traduzir plus-de-jouir  como “mais-a-gozar”. Trata-se concomitantemente de insistência e anulação porque, em francês, o advérbio plus implica sempre o que é mais e, acompanhado da preposição de, aponta, ao contrário, para o que não há mais. Logo, como plus-de-jouir, o objeto a nos discursos implica, sem cessar, um mais gozo que não deixa de ser também experimentado, embora sem que se queira saber disso, como uma ausência, um menos que, ao mesmo tempo, convoca um mais que, a cada vez, tampouco se alcança. Estimo que, na configuração do discurso do capitalista por Lacan, essa insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir será levada ao extremo, e foi isso que, a meu ver, o fez se interessar pelo que tal discurso opera. Em outros termos, diferentemente de muitos envolvidos com as lutas políticas dos anos 1960-1970, Lacan não me parece propriamente apostar na instauração de outro modo de produção avesso ao capitalismo, tampouco se coloca como um defensor desse modo de produção cada vez mais dominante. Ao mesmo tempo, ao localizar esse extremo da insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir, Lacan também vai se servir do discurso analítico para retificar ou, retomando um termo da questão de vocês, para fazer objeção a essa forma paradoxal de o gozo se impor e se esvair dos corpos dos seres afetados pelo significante.

Na formulação dos quatro discursos por Lacan no Seminário XVII, há uma vetorização ordenada da esquerda para a direita com relação ao giro dos quatro elementos (S1, S2, S, a) por quatro lugares diferentes entre si, mas que permanecem os mesmos em cada discurso. Respondendo a uma pergunta que lhe fiz no dia 19 de outubro de 2020, por ocasião de um evento virtual da Escola Brasileira de Psicanálise, Jésus Santiago pôde destacar que, no discurso do capitalista, essa vetorização ordenada deixa de se sustentar e vetores transversais e perpendiculares se impõem sem definir propriamente um giro dos elementos desse discurso cada vez mais dominante. O desmantelamento, no discurso do capitalista, dessa vetorização ordenada que, a princípio, norteava os discursos, me parece também destacar que nada gira como antes, mas o significante-mestre (S1) insiste e impera, com sua proliferação implacável e anônima, no adoecimento dos corpos e na configuração do que já designei certa vez como sujeitos objetalizados, ou seja, consumidos pelos objetos que muitas vezes eles mesmos consomem (LAIA, 2008). Por isso, o discurso do capitalista, embora seja, nos termos mesmo de Lacan, “o que se fez de mais astucioso como discurso”, acaba por ser tomado pela “explosão” (crévaison) na medida em que ele “se consuma (se consomme) tão bem a ponto de consumir-se (se consume)” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Há, no discurso capitalista e, ainda, na própria dimensão discursiva do inconsciente, uma espécie singular de autofagia, porque a degradação e a mortificação que lhe são concernentes colocam em perigo os corpos por ela impactados, mas também fazem desse risco sua consumação, ou seja, a realização de seu próprio domínio.

A pergunta de vocês também me faz indagar sobre como enfrentar essa dominação sem ser pela via sem saída da revolta, porque, nesta última, reitera-se o império do significante-mestre (S1) e a proliferação do mais-a-gozar (a). A via da incorporação do discurso tomado pela vontade imperiosa de gozo tampouco é uma saída, pois é o que já acontece quando — nos meandros obscuros da satisfação e na escalada contemporânea do capitalismo — passamos a ser todos capitalistas, agenciadores da linguagem do lucro, mas não menos segregados. Assim, o discurso do capitalista, inclusive como uma versão atualizada do discurso do inconsciente, é uma proliferação de mal-entendidos que mortificam todos aqueles por ele englobados. Porém, a experiência psicanalítica, tomando como seu princípio ativo o que é segregado na dimensão do gozo (a), endereça ao sujeito (S barrado) algumas interpretações quanto ao que o destitui de um corpo. Na escala, portanto, do discurso analítico, é encontrada, segundo Lacan, “uma forma de mal-entendido na qual” o sujeito, como hiância no campo dos significantes eivada de gozo, “se quita” e pode “subsistir” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Importante destacar que a utilização lacaniana do verbo quitar me parece introduzir, para o sujeito (S), no discurso analítico, a dimensão do pagamento da qual tanto o capitalista-do-mercado quanto o inconsciente-capitalista insistem em se safar condenando-se, de todo modo, à insaciabilidade do mais-a-gozar (a). Por sua vez, a esse sujeito que se quita e pode passar a subsistir, com sua própria hiância imiscuída de gozo, em uma forma de mal-entendido, outros usos do corpo se tornam viáveis, diferentemente do que acontece na fantasia, porque esta, em um circuito mais privado que o do mercado, não deixa de ser prisão no mais-a-gozar insaciável (a).

A experiência analítica dá acesso, então, a outros modos de “viver a pulsão” (LACAN, 1964/1973, p. 246), mas também o inconsciente, porque, pelo “espaço de um lapso”, ou seja, de um mal-entendido, sobretudo ao fim de uma análise, quando o discurso analítico toma a forma mesma do ato, o inconsciente deixa de ter qualquer “alcance de sentido (ou interpretação)” (LACAN, 1976/2001, p. 571). Os testemunhos de passe são profícuos em nos mostrar o quanto, no discurso analítico, os significantes-mestres (S1) determinantes da dominação subjetiva pelo Outro passam a iterar de outra forma, porque não funcionam apenas nos lugares do agenciamento, da verdade ou do outro: eles passam a ser localizados no lugar da produção-perda. Trata-se, então, efetivamente de outro tipo de mal-entendido: o significante-mestre (maître) que me faz ser (m’être) e me assola como sujeito, se apresenta, pelo discurso analítico, no lugar de produção perdida e, com isso, temos “um outro estilo de significante-mestre” (LACAN, 1969–1970/1991, p. 205).

a  à   S

S2  –>   S1

Como se trata, no discurso analítico, de encontrar outro estilo para o significante-mestre (S1), me parece possível sustentar que há, então, pela experiência analítica, uma saída do império e da insaciabilidade do discurso do capitalista, mas sem a re-volta que, conforme esclarece Lacan, tanto quanto a sujeição, acaba fazendo imperar o S1. Não é, portanto, sem razão, que Lacan insistia na peculiaridade do discurso analítico frente aos outros discursos: “só o discurso analítico é exceção” porque “exclui a dominação”, “nada ensina” e “não tem nada de universal” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Mas a exceção concernente a esse discurso no âmbito da dominação se vale também do outro estilo encontrado para o Sdominador, que, ainda assim, não deixa de ser dominador. Também a exceção referente ao ensino não se separa  do enfrentamento do desafio de “como fazer para ensinar o que não se ensina” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Por fim, se o discurso analítico pôde ser considerado por Lacan “até mesmo a saída do discurso capitalista”, ele também nos alerta que essa saída “não constituirá um progresso, se for apenas para alguns”. Nesse contexto de um progresso que pode até evocar o universal, considero oportuno destacar que, para lançar no universo esses produtos de uma análise que os analistas são, a escala é aquela do discurso analítico como “laço social determinado pela prática de uma análise”, ou seja, por uma experiência que é única e feita à medida de cada um que, como analisante e como analista, a ela se dedica.

 

A.O-L.: Em 1970, no seminário O avesso da psicanálise, Lacan nos apresenta a segregação como o fundamento de toda fraternidade. Só há fraternidade por estarmos isolados juntos, isolados do resto” (1969-70/1992, p. 107). Nesse momento, ele aborda a fraternidade como uma noção referida ao discurso, ao laço social como tal. Dois anos mais tarde, no Seminário 19, …ou pior, Lacan vai retomar a referência à fraternidade, mas, dessa vez, não mais sustentada no discurso, mas no corpo. Ele se refere ao racismo como algo que se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo” (1971-72/2012, p. 226). É curioso porque, no ano seguinte, Lacan definiria a raça como o que se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente dos escravos” (O aturdito, 1973/2003, p. 462). É uma clara referência ao período colonial a partir do qual noção de raça surgiu e se consolidou em seguida junto ao discurso nacionalista, o que desembocaria mais tarde no surgimento dos campos de concentração. Considerando a atualidade, poderíamos dizer que a era dos mercados comuns operou uma mutação nessas noções de raça, fraternidade e racismo? O que implica para essas noções quando Lacan transita entre a referência ao discurso e ao corpo?

 

Sérgio Laia: Como vocês mesmos destacam nesta segunda pergunta, Lacan conclui o Seminário …ou pior dizendo que a revalorização da palavra “irmão” implica uma “fraternidade do corpo” diversa dos “bons sentimentos”, porque nela se enraíza, também, o “racismo” (LACAN, 1971–1972/2012, p. 227). Foi seu modo de pôr em suspeição a noção de irmandade em um mundo em que cada vez mais ela se apresentava como uma solução, inclusive (para usar um termo frequente daquela época) contra-cultural. Assim, o que afeta os corpos (como eles se satisfazem) e o que os irmana (com que se identificam) têm uma função tão importante para a concepção lacaniana do racismo quanto o que os segrega.

No que concerne à satisfação, sabemos que, nos corpos humanos, ela não segue rigorosamente um programa estabelecido pelo organismo: é perturbada pelo que se escuta e se diz. Nossa satisfação toma, portanto, trajetórias desvairadas e, para designar e orientar essa satisfação, contamos apenas com o Outro, ou seja, com um lugar do qual estamos separados e que nos referencia. Porém, essa separação e até muitas dessas referências nos são também insuportáveis: não conseguimos, segundo Lacan, “deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo” e lhe impomos “o nosso” (LACAN, 1973/2003, p. 533). O racismo, então, se apresenta quando nosso desvairado modo de satisfação procura se orientar rejeitando as formas diferentes (ou mesmo desconhecidas) de o Outro se satisfazer. Em outros termos, como esclarece-nos Laurent, o racismo sempre tem a ver, “em uma comunidade humana”, com “a rejeição de um gozo inassimilável” e que é relacionado “a uma barbárie possível” (LAURENT, 2013, p. 32).

Com a “globalização” — nome mais atual para o que, na pergunta de vocês, é evocado como “era dos mercados comuns” —, considero que o racismo se agrava porque se torna cada vez mais difícil localizar o que faz as vezes de Outro: as diferenças (sobretudo aquelas referentes às alteridades) tendem a se apagar, dando lugar a uma irmandade generalizada — o termo “irmão”, destacado por Lacan desde a última lição de …ou pior, se desdobra hoje em “brother”, “bro”, “mano”, “véi”, aplicáveis a todo mundo, conforme constatamos sobretudo nas falas dos jovens, mas também dos que já não são assim tão jovens. Se o contorno do Outro já não é tão palpável, se seu corpo deixa de existir e seu modo de gozo não delimita mais o que nos concerne em termos de satisfação e de identificação, o desvario das satisfações se intensifica ainda mais sem direção. Os jovens, ao terem seus corpos impelidos a buscar Outros corpos para sua satisfação sexual e sua identificação, são particularmente sensíveis a esse desvario e, nos nossos dias, quando todo mundo é incitado a ser jovem, tal desorientação toma proporções avassaladoras e efetivamente globalizadas.

Com essa diluição do campo simbólico do Outro, com a proliferação das irmandades, são os grupos que se tornam mais propensos, a meu ver, para fazer as vezes não de uma alteridade simbólica que parece cada vez mais inapreensível, mas de uma alteridade-corpo no qual as pulsões podem se satisfazer diretamente. Hoje, encontramos exposto o que a experiência analítica aborda, mais intimamente, desde os primeiros pacientes de Freud: as identificações promovidas pelo Outro (e que são, inclusive, cada vez mais frágeis) não respondem efetivamente às exigências de satisfação; há discrepâncias cada vez maiores entre o que nos satisfaz e o que nos identifica, inclusive porque as referências identificatórias estão diluídas ou até ausentes.

Para este contexto atual, a noção lacaniana de identificação ao sintoma pode se apresentar, a meu ver, como um leme, pois conjuga elementos que, na cena sócio-cultural atual, apresentam muitas vezes desarticulados, ou seja, corpo e fala, satisfação e identidade.

 

A.O-L.: O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se comprova nossa política implica (…) que tudo o que se articula dessa ordem seja passível de interpretação. Por isso que tem toda razão quem põe a psicanálise à testa da política(1971/2003, p. 23). Nessa citação de Lacan em Lituraterra, podemos entender que, para ele, a política é a do sintoma e sua interpretação. Em nossa época, o singular do sintoma regula o sujeito e as construções do laço social (do individual para o coletivo). O sintoma serve para pensar o político?

 

Sérgio Laia: Estimo que já pude responder a essa questão sobre o sintoma e a dimensão política no final de minha segunda resposta, quando faço menção à noção lacaniana de “identificação ao sintoma” e, ao longo de minha primeira resposta, quando mostro como o discurso do capitalista configurado por Lacan é uma espécie de update do discurso do inconsciente. Ainda assim, mesmo que, a meu ver, vocês tenham dado uma conotação mais coloquial ao verbo “pensar” (ao utilizá-lo na expressão “pensar o político”), eu faria uma ressalva de que não se trata propriamente de, a partir da psicanálise, pensar o político ou a política, mas de intervir sobre esse campo. Essa intervenção, no entanto, não seria propriamente equivalente ao que teríamos na chamada militância política nem ficaria restrita à chamada “territorialidade” dos nossos consultórios ou da clínica. Para esclarecer os matizes dessa intervenção, eu lhes lembraria o próprio modo como a psicanálise, desde Freud, se faz presente no mundo. Por um lado, desde o início, essa presença não se dá sem a manifestação de resistência ao discurso analítico (inclusive, segundo nos ensina Lacan, da parte dos próprios analistas) — assim, as resistências à psicanálise, as críticas e os impedimentos que lhe são impostos têm a ver com nossa coragem de operarmos com o que Freud mesmo chamou certa vez de “substâncias perigosas”, aproximando-a da química. Por outro lado, entre todas as propostas que, desde o final do século XIX, se formulam com o prefixo psi-, a psicanálise é a única que tem conseguido fazer passar para o uso comum, sem qualquer banalização, o que para ela tem uma caracterização muito específica e, como exemplo, cito-lhes o ato falho. Antes de a psicanálise existir e se difundir no mundo, não tínhamos essa concepção — hoje amplamente partilhada, inclusive por aqueles que sequer conhecem Freud — de que uma troca de palavras produzida casualmente quer dizer alguma coisa. A meu ver, nenhuma resistência ou crítica que temos sofrido como psicanalistas abala a força de como, por exemplo, a concepção psicanalítica do ato falho se tornou uma propriedade comum. Sabemos que Lacan, no Seminário 23, aproximou a noção de sintoma da operação de “fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum” (LACAN, 1975–1976/2017, p. 86) — não é ela que se processa também nesse uso difundido que temos do ato falho? Logo, considero que a política que cabe a um psicanalista sustentar é diferente da militância e, mais ainda, da irmandade partidária, porque não se pauta pela instauração de uma nova ordem, pela consolidação de um projeto, por uma revolta quanto ao estabelecido, e muito menos pelo apreço quanto ao já vigente e estabelecido. Na perspectiva psicanalítica, trata-se de fazer passar o que é próprio para o comum ou, como certa vez formulou Éric Laurent, procuramos desfazer o que é recebido como unidade de significação para fazer ecoar uma leitura singular do que nos é apresentado como já pronto para ser usado (LAURENT, 2005).

 


LACAN, J. (1972) “Du discours psychanalytique“. ______. Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978.
LACAN, J. (1964) Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1973.
LACAN, J. (1969-1970) Le séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991.
LACAN, J. (1971-1972) O seminário, livro 19:... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2017.
LACAN, J. (1976) “Préface à l’édition anglaise du Séminaire XI “. ______. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.
LACAN, J. (1973) “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1978) “Transfert à Saint Denis? Journal d’Ornicar? Lacan pour Vincennes!”. Ornicar?, n. 17-18, Paris, 1979.
LAIA, S. “Os sujeitos objetalizados e o analista como ‘parceiro-sintoma’”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 52, São Paulo, setembro 2008.
LAURENT, É. “Da linguagem pública à linguagem privada, topologia da passagem”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 42, fevereiro de 2005.
LAURENT, É. “Racismo 2.0”. Opção Lacaniana, n. 67, 2013.
Perguntas formuladas por Bernardo Micherif, Patrícia Ribeiro e Rodrigo Almeida.