DISCURSOS DE GÊNERO E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS INTERLOCUÇÕES

RODRIGO ALMEIDA
Psicanalista, psicólogo, mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG
romabh2003@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho propõe uma articulação entre alguns pontos dos “discursos de gênero” e suas teorias no que eles se contrapõem à psicanálise, examinando de forma breve o discurso da psicanálise, sua prática e seu lugar no social. Posto isso, interrogamos de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para os psicanalistas na leitura da subjetividade de sua época.

Palavras-chave: Gênero; queer; discurso; sexuação; falasser.

Gender discourses and psychoanalysis: possible interlocutions

Abstract: This paper discusses some aspects of “gender discourses” and their theories in what they counterpose to psychoanalysis by briefly reviewing the discourse of psychoanalysis, its practice and place in the social sphere. With that said, we interrogate how the debate with gender theories can contribute to psychoanalysts in reading the subjectivity of their time.

Keywords: Gender; queer; discourse; sexuation; parlêtre.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Em nossa condição de seres falantes e sexuados, chegamos ao mundo onde diversos discursos nos precedem antes mesmo de nosso nascimento. Somos atravessados pelo real e pelo encontro sempre traumático com o sexual. Lacan (1977, inédito, tradução nossa), mais ao final de seu ensino, afirma que “o sexo é um dizer”. Para além do falo, o ser sexuado pode ser lido em termos de sexuação, portanto, o que vamos levar em conta é a posição de gozo do sujeito.

O discurso psicanalítico demonstra seu alcance como “um instrumento poderoso” (LAURENT, 2016, p. 219) para questionar tanto outros discursos quanto os corpos e seus modos de gozo. O conceito de falasser, ao incluir o corpo e, por extensão, a noção de inconsciente político, possibilita interrogar a relação do sujeito com o discurso. Seguindo com Laurent (2016, p. 213), “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado”. Há assim uma dimensão coletiva, que surge em suas nomeações e desencontros, em que a subjetividade individual é marcada pela época em que se inscreve. Nas palavras de Brousse (2018, p. 137), “Trata-se de considerar os falasseres como solidões numerosas e irremediáveis, que fazem série e não grupo. A experiência analítica nos cura do Nós, ao preço de uma perda do sentido, frequentemente gozoso”. Podemos afirmar que a psicanálise, ao levar em conta o real e o gozo, ao ler a subjetividade de sua época, vai mais além dos discursos vigentes. Com relação aos discursos de gênero, o que ela teria a dizer?

Diante dessa questão, vale ressaltar que qualquer ideia de normatização da sexualidade não está presente na psicanálise de orientação lacaniana, pois ela opera para além dos gêneros com os quais o falasser possa se identificar. Constatamos, hoje, a propagação dos discursos de gênero abarcada pelas chamadas teorias queer, que se propõem a reorganizar o discurso sexual, interrogando outros saberes e a sociedade, que aparecem como reguladores de corpos e de sua vivência da sexualidade e identidades. Importante salientar que o que chamamos aqui de discurso de gênero tem relação com os enunciados que governam e norteiam momentos históricos específicos, e a noção de discurso fundamenta-se em conceitos foucaultianos. Conforme Salih (2009, p. 69), “Foucault está interessado particularmente na posição de sujeitos pressupostas pelos enunciados e no modo como os sujeitos são discursivamente constituídos”.

Com a disseminação de tais discursos, a psicanálise se viu convocada a revisitar as elaborações lacanianas sobre a diferença sexual, colocando em relevo a tábua da sexuação, o não-todo e a conjugação do corpo com o gozo, confrontando-se, assim, com o lugar privilegiado de saber sobre a sexualidade. Nos últimos anos, foi possível observar que a psicanálise foi alvo de diversos posicionamentos contrários ao seu discurso teórico, e até mesmo à sua ética. Desse modo, julgamos relevante abordar alguns pontos sobre o “discurso de gênero” e suas teorias, tentando localizar pontos de diálogo para o debate e que podem nos interessar enquanto praticantes da psicanálise.

Nessa interlocução de saberes proposta pelas teorias de gênero, a psicanálise está presente como instrumento de leitura e diálogo com seus teóricos. A partir da insurgência de um debate, a psicanálise se vê convocada não só a responder, como também a marcar seu posicionamento diante do contemporâneo, norteado por sua ética e sua política. Cada vez mais a prática clínica se vê interrogada por aqueles que buscam uma análise, seja, inicialmente, para um acompanhamento em um processo de transição — no caso de sujeitos trans —, seja para aqueles que se interrogam sobre as mudanças advindas pela diversidade sexual diante de suas escolhas e do outro do laço social.

Na obra Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, vista por muitos como referência para os estudos queer, Judith Butler afirma, num primeiro momento de suas formulações, que a teoria feminista presume a existência de uma identidade definida e que a “(…) concepção dominante da relação entre teoria feminista e política passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes” (BUTLER, 2020, p. 18). A filósofa — que hoje se identifica como gênero não binário e que atualmente propõe pensar as questões de gênero a partir da ideia de decolonização e racismo —, em seus primeiros estudos, demonstrava a complexidade de presumir certa identidade fixa e a impossibilidade de conjecturar um feminino universal. Butler afirma que várias pessoas não se identificam ou não se veem representadas pelo feminismo. Esse movimento pode ser notado também em outros grupos minoritários, como o de gays e de lésbicas. Há dissidências dentro dos próprios grupos; a vivência da sexualidade é diferente para cada sujeito e as ideias se movimentam, o que leva a distintas noções de identidade. Poderíamos dizer que, para Butler, o queer origina-se de uma ruptura com o que se estabelece enquanto norma na construção de uma identidade. A autora vai propor que as identidades se constroem a partir de um corpo social e se conecta à ideia de performance e performatividade na elaboração de sua teoria sobre o gênero. Butler faz uma interface com a psicanálise, o estruturalismo e a genealogia foucaultiana em suas formulações.

Em relação à psicanálise, ela vai interrogar, a princípio, se não seria a psicanálise mais um saber, entre outros, que propõe uma leitura das identidades com base em uma matriz heterossexual e que funciona a favor de uma hierarquia já estabelecida em relação ao gênero. Vale ressaltar que o conceito de gênero ordena um conjunto interdisciplinar de saberes, devido à sua complexidade. Para Butler (2020, p. 27), “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscriçãocultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Tanto o queer quanto as teorias de gênero trazem em sua origem a semente da recusa a um enquadramento, levando-se em consideração resistir à possibilidade de domesticação acadêmica.

Rafael Leopoldo (2020), em seu livro Cartografia do pensamento queer, esclarece sobre a palavra inglesa queer: inicialmente, sua acepção era de insulto e nomeava o estranho e bizarro, estando fora do que se nomeava como normal. Um fora de lugar, nem lá nem cá, nem isso nem aquilo, simplesmente queer. Esses corpos excluídos e marcados, muitas vezes, de forma violenta, rechaçados do social e do espaço público, apropriam-se do termo e fazem dele outro uso, um uso como ferramenta de ruptura frente à normalizaçãoda sociedade. De acordo com Leopoldo:

“O queer, ante isto, toma outra forma; não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de naturalização e normalização. (…) O queer vai questionar esses saberes de forma contundente e propor, a todo momento, que haja dentro desses outros grupos uma mutação” (LEOPOLDO, 2020, p. 29).

A questão do gênero não é formulada pela psicanálise da mesma forma que para os estudos de gênero, visto que aquilo que a psicanálise entende por homem e mulher em relação ao gênero se difere do que propõem os estudos de gênero. Tomamos aqui uma definição oferecida por Leguil:

“Para a psicanálise, o gênero é da ordem de uma posição subjetiva dando conta de uma certa relação com o corpo e com o Outro. (…) Para a psicanálise, o gênero é, antes, aquilo atrás do qual o sujeito corre, tentando, assim, ir ao encontro de alguma coisa de seu ser, sem nunca sê-lo totalmente” (LEGUIL, 2016, p. 40).

Marie-Hélène Brousse (2019) nos diz que o gênero se torna um significante mestre no lugar do sexo; o termo “gênero” vai evitar o equívoco que se apresenta no significante “sexo” em relação ao binário masculino/feminino, introduzindo assim um terceiro termo, o neutro. Parece ser importante a possibilidade de adentrar no debate das questões de gênero e identidade, apoiando-se na ética da psicanálise e para além da noção do discurso do mestre, levantando as modificações que surgem no social e o que dela é possível recolher no discurso dos analisantes.

Se, antes, a diferença sexual e o binarismo homem/mulher serviam de bússola para o sujeito, as questões de identidade e de gênero vêm, de certa maneira, reorganizar o conjunto dos discursos. Brousse (2019, p. 73) ressalta ainda que Lacan, ao final de seu ensino, “mudou a distribuição dos mecanismos de identificação”; há uma destituição do Outro e o sujeito é pensado a partir dos três registros.

Em relação ao falasser, Miller observa: “(…) não se trata mais do sujeito, do sujeito do significante, do sujeito da identificação” (MILLER, 2009, p. 110). Com a ideia do falasser, o Outro não é mais o lugar das identificações; em seu lugar está o corpo, o corpo próprio. Corpo e gozo se conjugam na identidade daquele que fala. Assim, o processo de identificação vai surgir não mais do Outro, mas de Um-corpo, esse corpo que o falasser adora por acreditar que o tem, esse corpo que se conjuga com o gozo.

Recebemos cada vez mais sujeitos que interrogam sobre o gênero e suas identificações, recolhendo assim os efeitos do discurso de gênero na clínica. Se, enquanto analistas, nos orientamos pelo sintoma e o gozo, indo além da ideia de identidade, cabe a nós acolher a forma como o falasser se apresenta, assim, “tomamos a identidade sexual como qualquer outra portada pelo falasser” (FAJNWAKS, 2017, p. 38).

Para Lacan, a existência do inconsciente é inseparável da noção de sexualidade; o inconsciente é o índice do fracasso do biológico e do cultural. Importante salientar que Lacan, ao teorizar sobre a sexualidade, não a coloca em termos de gênero, mas de gozo. Alguns estudiosos do gênero que mantêm uma interlocução com a psicanálise afirmam que Lacan (2008), ao propor as fórmulas da sexuação e ao estabelecer o lado homem e o lado mulher em seu quadro, acaba criando uma padronização das identificações reduzida ao binarismo homem/mulher. De acordo com a leitura de Butler, “(…) a versão lacaniana do sexo e da diferença sexual coloca suas descrições de anatomia e desenvolvimento em um quadro não examinado de heterossexualidade normativa” (BUTLER, 2019, p. 195). Para ela, o que Lacan chama de posições sexuadas se estabelece “relegando as identificações não heterossexuais ao domínio do culturalmente impossível (…)” (BUTLER, 2019, p. 195).

Posto isso, interrogamos se, para os teóricos do gênero, os importantes desdobramentos das formulações lacanianas sobre a sexuação não são levados em conta no embate, visto que o que vai interessar à psicanálise é a posição de gozo do ser falante e o feminino que se localiza em cada falasser. De acordo com Ambra, Silva Jr. e Laufer:

“(…) a aposta lacaniana em localizar a sexuação numa diferença radical que aponta para o real subverteria os apegos imaginários identitários presentes em diversos usos das teorias de gênero. Mais ainda ficariam desarmadas as críticas feministas à centralidade do falo como significante privilegiado da subjetividade, na medida em que tais fórmulas de Lacan apontariam outro domínio da experiência, não todo marcado pela castração” (AMBRA; SILVA JR; LAUFER; 2019, p. 3).

Lacan, em “Les non-dupes errent”, propõe o aforismo: “O ser sexuado se autoriza de si mesmo e de alguns outros” (tradução nossa). Essa sentença que reverbera entre os psicanalistas não reduz a ideia da escolha para o ser sexuado. A questão simbólica imposta pelo binarismo homem/mulher permite também avançar teoricamente a partir das fórmulas da sexuação. Nas palavras de Lacan:

“(…) o ser sexual se autoriza de si mesmo. É nesse sentido que… que ele tem a ‘escolha’. Quero dizer que isto a que a gente ‘se limita’ enfim para classificar como ‘masculino’ ou ‘feminino’ no registro civil… enfim, isso… Isso não impede que haja escolha. (…) Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros.” (LACAN 1973, aula de 9/2/1974).

Fajnwaks (2020) nos diz ser importante interrogar quem são esses alguns outros, pois não se trata mais do grande Outro, mas do outro do imaginário. É importante ressaltar que, mesmo que Lacan proponha suas fórmulas da sexuação a partir do binarismo e evocando a ordem simbólica, ele inclui a dimensão do imaginário. Alguns outros fazem parte da escolha e da ideia de reconhecimento que o sujeito busca em suas identificações. Nesse percurso de leitura, aventamos a hipótese de que o discurso de gênero objetiva o Um da identidade ofertado pelo discurso do mestre contemporâneo. Nas palavras de Musachi  “(…) nessa tentativa se opera um certo ‘empuxo’ ao Um da identidade, o que produz uma suspensão em relação às identidades” (MUSACHI, 2020, n/p, tradução nossa). Ao tomarmos como referência a orientação lacaniana, a partir das fórmulas quânticas da sexuação, temos uma leitura da sexualidade em que não se trata de universalizar, mas de singularizar o gozo, considerando o encontro de um real com lalíngua, que habita o falasser e determina suas identificações.

Se, para alguns teóricos, a questão do gênero concerne apenas à performatividade, a psicanálise não se limita a apenas uma questão de semblantes, mas busca interrogar as mutações no sexual, a partir do desacordo entre os lados feminino e masculino da sexuação. A psicanálise, ao se apropriar do aforismo lacaniano de “que não há relação sexual” (LACAN, 2008, p. 19), não trata as questões contemporâneas concernentes ao gênero como uma simples aparelhagem dos semblantes sem relação com o gozo. Em nossa clínica, recebemos sujeitos que se dizem trans e que colocam em xeque a construção de uma identidade. Para a psicanálise, diferentemente do que propõem algumas teorias de gênero, não há um unarismo do gozo no acolhimento da diversidade sexual. Para ela, a sexualidade é diversa em relação às soluções únicas que o próprio sujeito encontra para lidar com o gozo.

Enquanto praticantes, sabemos que a diferença sexual não se inscreve no inconsciente, mas é na relação com o inconsciente que o sujeito situa sua vida sexual numa outra cena, não se limitando, assim, à questão da anatomia e das normas sociais. Em tempo, parece importante não cairmos na idealização da psicanálise como absoluta, que tudo pode enunciar — vale lembrar que tanto Freud quanto Lacan se valeram de outros saberes diante daquilo que a prática clínica de sua época lhes interrogava. Assim, não devemos nos eximir de nossa responsabilidade ética e política diante da alteridade nem dos fenômenos contemporâneos.

 


 

Referências
AMBRA, Pedro; SILVA JR., Nelson; LAUFER, Laurie. O ser sexual só se autoriza por si mesmo e por alguns outros. Psicologia em Estudo, [s. l.], v. 24, p. 1-14, 2019. Acesso em: 1 mar. 2022.
BROUSSE, Marie-Hélène. Democracias sem pai. In: O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p. 129-137.
BROUSSE, Marie-Hélène. As identidades, uma política, a identificação, um processo e a identidade um sintoma. In: Mulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2019, p. 67-74.
BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo:
Crocodilo edições, 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
FAJNWAKS, Fabián. Lacan e as teorias queer: mal-entendidos e desconhecimentos. In: SANTIAGO, Ana Lydia et al. (org.). Mais além do gênero: corpo adolescente e seus sintomas. Belo Horizonte: Scriptum, 2017, p. 22-40.
FAJNWAKS, Fabián. Lo que el sujeto trans enseña al psicoanálisis. In: TENDLARZ, Edith Beatriz. Género, cuerpo y psicoanálisis. Olivos: Grama, 2020. Ebook Kindle.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2008.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Lição de 9 de abril de 1974. (Inédito)
LACAN, J. Momento de concluir. Aula 15 de novembro de 1977. (Inédito, 1977-1978)
LAURENT, Éric. O Falasser político. In: O avesso da biopolítica: Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 201-220.
LEGUIL, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
LEOPOLDO, Rafael. Cartografia do pensamento queer. Salvador: Editora Devires, 2020.
MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
MUSACHI, Blanca. Ser sexuado en el siglo XXI: ¿ empuje a lo trans? In: TENDLARZ, Edith Beatriz. Género, cuerpo y psicoanálisis. Olivos: Grama, 2020. Ebook Kindle.
SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.



PSICANÁLISE E POLÍTICA[1] 

FABIÁN A. NAPARSTEK
Psicanalista, AME da EOL/AMP
fabiannaparstek@hotmail.com

Resumo: Neste artigo Fabián Naparstek parte de uma referência a Cervantes e Borges para, com as indicações de Lacan, abordar o laço entre psicanálise e política. Desse modo, o autor faz uma leitura da política envolvida no laço entre os analistas, na direção do tratamento, assim como na própria posição do analista no mundo, marcando uma orientação que vai contra os processos de segregação, propondo uma estratégia que segue, a cada época, uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro.

Palavras-chave: psicanálise; política; sintoma; segregação.

Psychoanalysis and Politics 

Abstract: In this essay, Fabián Naparstek makes reference to Cervantes and Borges in order to discuss the link between psychoanalysis and politics. The author comments on the politics involved in the bond between analysts, in the direction of treatment, as well as in the analyst’s own position in the world, marking an orientation that goes against segregation, proposing a strategy that has in mind the singular of the symptom that is not without the other. 

Keywords: psychoanalysis; politics; symptom; segregation.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

“Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face
do mundo. Sua tarefa persiste. Se nossas previsões não
estiverem erradas, daqui a cem anos alguém descobrirá
os cem tomos da segunda enciclopédia de Tlön. Então,
desapareceram do planeta o inglês, o francês e o mero
espanhol. O mundo será Tlön”.

(BORGES, 1940, p. 435, tradução nossa)

 

A leitura e a política

O engenhoso fidalgo Don Quixote de La Mancha passou da leitura para a cidade real. Isso o levou a pelejar contra os moinhos de vento.

Borges, por sua vez, pensava que a leitura poderia mudar o mundo. O borgeano, se é que isso existe, é a capacidade de ler tudo como ficção e acreditar no seu poder. Definitivamente, o mundo Tlön, de Borges, é a ilusão de um universo criado pela leitura e que depende dela. Lê-se o real perturbado e contaminado pela ficção. Uma ficção que tem consequências. Por sua vez, J.-A. Miller comparava esse mundo borgeano com a leitura de Jacques Lacan. Com efeito, Lacan dedicou uma vida a se colocar diante de seus alunos — os que o seguiam — fazendo uma leitura pública do retorno ao Freud. Uma leitura que supõe uma posição política e que tenta produzir consequências. Produziu para ele próprio, já que ousou ir mais além do pai e de Freud.

 

Três citações

Partirei de três indicações de Lacan para abordar o laço entre psicanálise e política. Em primeiro lugar, J. Lacan falava sobre a “falação que diz respeito à dignidade humana, senão aos Direitos do Homem” (LACAN, 1985, p. 12). Imediatamente acrescentava, que “Qualquer um, a todo instante e em todos os níveis, é negociável” (LACAN, 1985, p. 12) e que “Todos sabem que a política consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos, por centenas de milhares” (LACAN, 1985, p. 13). Definição que pode ser estendida ao conceito de política em geral, mas que, nesse caso, se refere aos eventos de excomunhão aos quais Lacan foi submetido pela Associação Internacional de Psicanálise. Sublinha-se o fato de ele próprio ter sido objeto de negociação pelos seus próprios alunos e pacientes.

Em segundo lugar, vou deter-me em uma referência ao texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Ali J. Lacan propôs uma política específica na realização dos tratamentos. Destaca, em primeira instância, a impotência de sustentar uma práxis quando ela se reduz ao “exercício de um poder” (LACAN, 1998, p. 592). Com efeito, toma a perspectiva do lugar do analista e de suas dificuldades.

Por fim, fornece mais uma indicação que, surpreendentemente, remete “ao dever que lhe compete em nosso mundo” (LACAN, 2003, p. 235). Na verdade, essas são as perspectivas que J.-A. Miller (1999) apontou no início de seu seminário sobre a Política Lacaniana nos anos de 1997 e 1998.

 

A política do tratamento

Em relação ao tratamento, a política tem um lugar central na discussão da época. Em vez da suposta neutralidade do analista, Lacan se opõe propondo na psicanálise uma política bem determinada, na qual o analista é tudo, menos livre. É menos livre na tática e na estratégia. Existe apenas UMA política! Por outro lado, a referência à política no tratamento centra-se na ação que emana de sua falta a ser, e não de seu ser. De fato, como assinala J. Lacan, o analista “é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser” (LACAN, 1998, p. 593-594). Vale a pena mencionar aqui, como disse J.-A. Miller, que tal ação é o antecedente do que será mais tarde o ato analítico e que esse ato terá algo de não natural. É por isso que, para Lacan, o problema central não será que haja analisandos, mas que haja um analista. De fato, “a reprodução dos sintomas já não constitui um problema, mas somente a reprodução dos analistas; a dos pacientes está resolvida” (LACAN, 1998, p. 630).

 

A política e os analistas

Quanto ao laço entre os analistas, Lacan subverte o tipo de estrutura de associação possível e os modos de obtenção de títulos entre eles. A invenção dos dispositivos lacanianos — entende-se pela Escola, o cartel, o dispositivo do passe, etc. — perturba a tendência natural ao encontro dos analistas como grupo de ajuda mútua para o exercício de poder. De fato, vale ressaltar que a invenção de dispositivos é para forçar algo que vai contra uma tendência natural ao poder e à manutenção do vínculo libidinal entre iguais. A Escola e seus dispositivos, na política de Lacan, visam acolher o diferente, colocar o analista como um desconhecido, um de cada vez, e a uma elaboração coletiva a partir da heterogeneidade das singularidades. Uma política na qual “tudo é da ordem do analítico” (MILLER, 2016, p. 12).

 

A política da psicanálise no mundo

Finalmente, nos referimos ao aspecto da psicanálise e dos analistas no mundo. Como já foi apontado, J. Lacan atribui um dever ao analista no mundo. Aqui também não se trata da neutralidade. A referência não é tanto que o analista participe como cidadão (algo que não lhe é proibido obviamente), mas que ele possa introduzir algo a partir da perspectiva analítica. A questão é sobre o que a psicanálise pode fazer valer a partir de sua própria orientação. Se a política em geral responde ao discurso do mestre na medida em que tenta introduzir a captura do sujeito por um significante mestre, a posição da psicanálise visa destituir o sujeito desse significante para que ele possa contribuir com o que nele há de singular.

  1. Lacan (2003, p. 560) nos fala do direito ao sintoma. Surge daí uma política que visa a desidentificação para que cada sujeito possa contribuir a partir de sua perspectiva mais singular, de sua “luz interior”, como coloca S. Weil (2021). De fato, percebe-se que qualquer política que vise sustentar identificações necessariamente leva à segregação. Questão que foi de grande preocupação para J. Lacan em diferentes momentos de seu ensino. Os efeitos de uma segregação que, em seu extremo, leva ao extermínio do diferente.

 

A proposição

Na “Proposta de 9 de outubro de 1967…”, J. Lacan apresenta sua preocupação com a segregação e sua ligação com os campos de concentração.

Quando fala sobre isso, ele nos diz que:

“(…) o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (LACAN, 2003, p. 263).

Nesse parágrafo, ele não apenas aborda a questão extrema dos campos de concentração como um evento recente, mas também anuncia que isso pode acontecer novamente no futuro. A análise política da questão é realmente uma revelação chocante. No ano de 1967, na época das grandes liberdades na Europa Ocidental e após o suposto aprendizado que os horrores da Segunda Grande Guerra poderiam ter acarretado, J. Lacan antecipa novas segregações. Na verdade, coloca os Naziz como precursores do que está por vir. Pode-se indicar que foram precursores do modo gueto, onde se separa o diferente e marca uma época já há algum tempo. Os agrupamentos sociais que se reorganizam podem ser vislumbrados nas diferentes formas de bairros, mais ou menos fechados, que servem para que cada um viva ao lado daqueles que assumem desfrutar do mesmo que si mesmos. Sua indicação aponta que, quanto maior a universalização da ciência — o que hoje chamamos de globalização —, maiores serão os efeitos da segregação.

O mais surpreendente é que essa indicação é feita na “Proposição” do dispositivo do passe. Quero dizer que, onde ele introduz sua política ou sua concepção do final da análise, assim como sua política de Escola para a seleção de analistas, é também o momento em que ele introduz essa análise de seu tempo e do que está por vir. Nesse texto encontramos articulados os três aspectos da política para J. Lacan: em torno da direção do tratamento, do laço entre os analistas e do analista na pólis. Assim, pode-se inferir que o problema da ação do analista ou do ato do analista será central na articulação entre política e psicanálise no que diz respeito aos três aspectos que focalizamos.

 

Lacan e o tempo

Nesse ponto, vale situar que Lacan pensa em seu tempo e faz a dedução do porvir. J.-A. Miller faz um desenvolvimento muito preciso do que podemos entender por tempo em J. Lacan. Lá ele aponta que se trata da “realidade transindividual do sujeito” (MILLER, 2021, p. 21, tradução nossa) em um dado momento no tempo. Miller indica que “o exemplo memorável que todos conhecem e lembram, mesmo que não sejam lacanianos, é o dos três prisioneiros. São três indivíduos, mas estão presos um ao outro, o que constitui uma subjetividade, uma subjetividade prisioneira, como um prisioneiro de seu próprio tempo” (MILLER, 2021, p. 22, tradução nossa).

Em 1944, J.-P. Sartre escreveu a sua famosa peça Entre quatro paredes (2008), na qual se mostrava que o inferno são os outros. A Segunda Guerra Mundial ainda não havia acabado, assim como Paris também não havia sido libertada, e Sartre colocou na mesa o problema do confinamento e dos outros. A obra mostrava uma única cena contrária a qualquer possibilidade de pensar um lugar diferente. De fato, J. Lacan (1998, p. 197) argumenta com Sartre — propondo exatamente o contrário —, pois para ele não há saída para o sujeito a não ser com o Outro.

Vale notar que Lacan tenta ler, como outro prisioneiro de seu tempo, as variáveis que determinam nossa posição e que nos dão a possibilidade de pensar uma estratégia específica a partir da dedução de nossa posição a cada momento. Uma estratégia que segue uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro. A era atual gera novos significantes aos quais o indivíduo pode se identificar gerando novos modos de segregação, e veremos se a psicanálise estará à altura da tarefa de contrapor esses novos modos de segregação a partir de seus dispositivos e de uma política que permita desidentificar e colocar no horizonte o fato de que não há solução total (final) que permita evitar totalmente o sofrimento.

Por fim, pode-se concluir que em Lacan há um “realismo” (MILLER, J-A., 1999, p. 9-12) em sua concepção de política. É um realismo que se opõe a qualquer idealismo segregativo. O uso dos significantes mestres, que se apresentam de maneira diferente em cada época, pode levar, em cada ocasião, a novos modos de segregação. Assim, a atual pressão por uma identidade que ofereça a ilusão da eliminação do sofrimento coloca os analistas diante do dever de ecoar que a saída é, para cada sujeito, no singular e que nenhuma identidade pode resolver o mal-estar na cultura.

Prosseguimos com uma advertência de J. Lacan no sentido de que:

“(…) O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se confirma nossa política — foi esse o passo que ela deu — implica, por outro lado, que tudo o que se articula dessa ordem é passível de interpretação. Por isso é que tem toda razão quem põe a psicanálise à frente da política. E poderia não ser nada fácil, para o que da política fez boa figura até aqui, se a psicanalise se revelasse mais esperta” (LACAN, 2009, p. 115).

Seguindo essas indicações, o sintoma, a política e o direito podem ser amarrados em seu laço com a singularidade. Que, finalmente, supõe o direito à interpretação em cada sujeito que decide tomar a palavra frente a uma época que pretende fazer valer os supostos direitos, para eliminar o mal-estar total na identificação à literalidade de uma palavra (MILLER, 2021).

Como dizia Lacan em “A terceira”, embora o real atravesse, “o analista tem por dever combatê-lo” (LACAN, 2015, p. 17, tradução nossa). Ele poderá fazer, em cada caso e em cada momento, a sua leitura e a sua interpretação.

 

Tradução: Jônatas L. Q. Casséte
Revisão: Renata Mendonça

Referências 
BORGES, J. L. (1940). “Tlön, Uqbar, orbis Tertius”. Ficciones, Obras completas, Buenos Aires: Emecé, 1974.
LACAN, J. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1964) “Ato de fundação”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J. (1958) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
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[1] Publicado originalmente em Lacan hispano. BRODSKY, G.; LAURENT, É.; BRIOLE, G.; compilación de GLAZE, A.; MILLER, J-A. 1ª. Ed. Olivos: Grama Ediciones, 2021.