Uma defesa primária

Cristina Drummond
AME da EBP/AMP
paixao.bhe@terra.com.br

 

Resumo: O texto aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Freud situa a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses e delineia a própria concepção do funcionamento da vida psíquica, marcando sua oposição em relação aos seus contemporâneos. Desde o texto “Projeto para uma psicologia científica”, a defesa primária é percorrida tanto através da busca por sua origem quanto pela diferenciação entre defesa normal e patológica. Avançando pelo ensino de Lacan, argumenta-se que a defesa diz respeito à dor, ao corpo, e como cada um pode se virar com esse encontro. A partir dessa premissa, esse conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias, seja quando a desmontagem da defesa faz emergir a pulsão encoberta. A construção pela defesa primária permite buscar, por trás das manifestações sintomáticas, o sujeito do gozo.

Palavras-chave: defesa; direção do tratamento; formação de sintomas.

A PRIMARY DEFENSE

Abstract: The text addresses the importance of the concept of primary defense as the guide of the Freudian-Lacanian clinic. Freud puts the notion of defense at the foreground in psychoneuroses, and outlines the very conception of the functioning of psychic life, marking his opposition to his contemporaries. Since the text Project for a scientific psychology, the primary defense is covered both through the search for its origin and the differentiation between normal and pathological defense. Advancing through Lacan’s teaching, it is argued that defense concerns pain, the body, and how each one can deal with this encounter. From this premise, this concept is presented as a guide in the direction of treatment, whether it is in cases in which the formation of the symptom is structured by the repression and is subject to decryption, allowing the disassembly of meaning in body phenomena, such as drug addictions and anorexias, or when the disassembly of the defense brings out the covert drive. The construction by primary defense allows for finding the subject of jouissance behind the symptomatic manifestations.

Keywords: defense; direction of treatment; symptom formation.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Freud e a defesa primária

Ao colocar a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses, Freud delineou a própria concepção do funcionamento da vida psíquica em oposição aos pontos de vista de seus contemporâneos. Para investigar os primeiros usos do termo, vamos voltar à histeria e às hipóteses sobre a etiologia das psiconeuroses e ao “Projeto para uma psicologia científica”, escrito por Freud em 1895 em apenas três semanas. Ele faz parte dos rascunhos trocados em sua correspondência com Fliess, a qual durou de 1887 a 1902. O projeto ficou inacabado e foi engavetado por Freud, que só voltou a ter contato com o texto em 1937, por intermédio da princesa Maria Bonaparte, que o obteve com a compra das cartas Freud–Fliess. O texto só foi publicado em 1950, 11 anos após a morte de Freud, e ele tornou-se uma referência para o estudo da metapsicologia, pois contém a origem de muitos conceitos.

Apesar de ser um documento neurológico, o projeto mostra o esforço inicial de Freud para compreender a etiologia das neuroses, assim como traz o gérmen do que ele vai desenvolver mais tarde. No “Projeto”, Freud se propõe a formalizar uma doutrina que tem na mecânica newtoniana seus parâmetros científicos, buscando uma base orgânica para as descobertas clínicas oriundas dos atendimentos a pacientes com sintomas neuróticos graves.

Em seu “Projeto para uma psicologia científica”, Freud aborda o problema da defesa de duas maneiras. Em primeiro lugar, ele procura a origem daquilo que chamou de “defesa primária” numa vivência de dor. Em segundo lugar, ele procura diferenciar uma defesa normal de uma defesa patológica. A primeira opera no caso da revivescência de uma experiência penosa, e o ego já começa a diminuir a intensidade do desprazer quando a situação se repete.

Na carta do dia 20 de outubro de 1895, Freud, que ainda se encontrava esperançoso em relação ao “Projeto”, relata a Fliess de que modo sua psicologia tornara-se clara para ele:

[…] as barreiras ergueram-se subitamente, os véus caíram e tudo se tornou transparente — desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar-se, as engrenagens se entrosaram e tive a impressão de que a coisa passara realmente a ser uma máquina que logo funcionaria sozinha. Os três sistemas de neurônios; os estados livres e ligados de Qn; os processos primário e secundário; a tendência principal e a tendência de compromisso do sistema nervoso; as duas regras biológicas de atenção e da defesa; as características de qualidade, realidade e pensamento; o estado do grupo psicossexual; a determinação sexual do recalcamento; e, por fim, os fatores que determinam a consciência como função da percepção — tudo ficou e continua correto até hoje! Naturalmente, mal consigo conter minha alegria (FREUD, 1887–1904/1986, p. 147).

Nessa carta temos um resumo do projeto e ela mostra que Freud queria encaixar o organicismo à sua teoria do Inconsciente em formação. Na carta que inicia em 8 e continua em 10 de novembro daquele ano, ele diz de sua tristeza pela desistência do projeto: “A partir de agora minhas cartas perderão muito de seu conteúdo. Empacotei os manuscritos psicológicos e os atirei numa gaveta, onde dormirão até 1896. […] Desde que pus a ΦΨω de lado, sinto-me abatido e desencantado; creio não estar de modo algum à altura de suas congratulações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 151). E a sua própria avaliação não deixa dúvidas de que ele abre mão de uma relação de superposição entre a neurologia e o mecanismo de recalque:

“Não entendo mais o estado mental em que maquinei a psicologia; não consigo perceber como posso tê-lo infligido a você. Creio que você está sendo polido demais; para mim, parece ter sido uma espécie de loucura. A solução clínica das duas neuroses provavelmente se manterá, depois de algumas modificações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 153).

A primeira utilização do termo “defesa” ocorreu no texto “Neuropsicoses de defesa” (1894). Entretanto, antes disso, Freud já buscava compreender esse processo, mesmo que não o tivesse nomeado assim. O estudo das origens das concepções sobre defesa nos remete às suas investigações acerca do trauma. Freud afirma que as quantidades de energia com as quais um sujeito tem de lidar colocam o psiquismo em funcionamento, pois, das excitações que provêm de fora, o sujeito pode fugir, tal como no modelo do arco-reflexo; mas não pode fugir das excitações internas, o que acarreta a necessidade de estruturas capazes de dar conta da tramitação interna e da descarga adequada das quantidades de energia.

Para Freud (1893/1976, p. 42), a lembrança traumática possui ação contínua e intensa, que não se desgasta com o tempo, pois não houve perda do afeto que está investido nela. O momento que marca o surgimento da doença é aquele em que o indivíduo “se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo” (p. 55). É essa incompatibilidade entre o eu e uma representação que torna necessária a “divisão de consciência”, ou seja, a criação de um segundo grupo psíquico cujo núcleo é recalcado. Nesse momento inicial da concepção da defesa, esse processo é tratado como um ato voluntário de afastar algo tomado como desprazer do psiquismo, e ele não pode ser considerado patológico, já que esse ato de esquecimento intencional é bem sucedido para muitas pessoas. Por isso, Freud (1895/1977) inclui a defesa entre as tendências normais do indivíduo.

Para formular o modelo do funcionamento psíquico, Freud (1895/1977) propõe uma concepção quantitativa dos processos psíquicos com duas noções fundamentais: a de neurônio e a de quantidade (Q). A quantidade é a energia que circula pelos neurônios, podendo ser deslocada e descarregada. A energia transita através dos neurônios, que são capazes de armazená-la. Assim, um neurônio pode estar ocupado, com uma quantidade de excitação, ou desocupado. O sistema nervoso recebe estímulos do mundo externo. A tendência é descarregar-se das quantidades de energia que ingressam pela fuga, seguindo o modelo do arco-reflexo. Mas o sistema nervoso recebe também estímulos endógenos, que precisam ser descarregados, e dos quais o organismo não pode se esquivar. Esses estímulos criam as grandes necessidades, tais como a fome, a respiração, a sexualidade. Diante desses estímulos, o aparelho não pode descarregar toda a quantidade de excitação presente no neurônio, pois é necessário que este sustente um acúmulo de Q, em função das ações necessárias para pôr fim a eles. A partir disso, Freud (1895/1977) diz que a estrutura e o desenvolvimento, assim como as funções dos neurônios, devem ser compreendidos com base no princípio de inércia, que é a tendência a evacuar as quantidades de energia que recebem do mundo externo, com o objetivo de diminuir a excitação presente no neurônio. Com o fracasso dessa evacuação, a tendência do psiquismo passa a ser manter a energia no nível mais baixo possível, o que constitui o princípio de constância.

No início da vida, devido a seu estado de desamparo, o ser humano não consegue provocar uma ação capaz de diminuir a tensão vinda de excitações endógenas. O alívio da tensão só pode ser alcançado se for eliminado o estímulo na fonte endógena. Nesse momento, o sujeito precisa ser auxiliado por outro, que realize uma ação para acabar com o estado de tensão. Quando isso ocorre, essa ação diminui a tensão interna, produzido uma sensação de prazer na consciência. Essa ação é independente da Q endógena, e Freud a chama de ação específica, aquela que possibilitará o que Freud denomina vivência de satisfação. A vivência de satisfação deixa uma marca e fará com que o sujeito, diante de novo estado de tensão, queira que essa se repita. É pela vivência de satisfação que serão construídos os traços mnêmicos. Por meio da vivência de satisfação, devido a um movimento mecânico, a notícia da eliminação da tensão chegará a outros neurônios formando uma trilha preferencial entre neurônios que contêm a imagem mnêmica do objeto da satisfação. Quando outra situação de tensão ocorrer, a imagem do objeto é reinvestida e ocorre algo análogo à percepção, ou seja, uma alucinação. O psiquismo não contém mecanismos internos suficientes para discriminar entre a presença real do objeto da satisfação e a alucinação deste. Assim, torna-se necessário que se adquira um critério para verificar a presença real do objeto da satisfação, a fim de que seja efetuada uma descarga de Q na presença do objeto de desejo, o que efetivamente levaria à satisfação. Do contrário, diante da alucinação, a descarga de Q levaria ao desprazer.

Freud (1895/1977) afirma que as ações humanas se constituem em duas vivências fundamentais: buscar o prazer e evitar a dor. A busca do prazer é indicada como vivência de satisfação. Tanto na vivência de satisfação quanto na vivência de dor, há uma memória que, em determinadas circunstâncias, é acionada. Na busca do prazer, a imagem do objeto de satisfação é reinvestida. No entanto, para que haja de fato uma satisfação da tensão, o objeto tem de estar presente. No caso de um objeto causar dor ao psiquismo, há uma sensação de desprazer, e esse aumento quantitativo induz a eliminação da Q para consequente alívio da tensão. Ocorre ainda um trilhamento entre a tendência à descarga e uma imagem-lembrança do objeto que provoca a dor. Se a imagem do objeto hostil é reinvestida, surge um estado de desprazer com uma tendência à descarga. Esse estado não é propriamente a dor, mas algo que se assemelha a ela e que Freud chama de afeto. Na recordação da dor, há desprazer. O desprazer tem uma origem dupla: no ambiente externo, pelo objeto hostil; internamente, pela recordação. Portanto, evitar a dor terá relação com o não-investimento da imagem mnêmica do objeto hostil.

Isso é o que Freud caracteriza como defesa primária: a desocupação da imagem recordativa hostil. A defesa primária, que é acionada no caso da dor, cumpre a função de gerar uma aversão a manter investida a imagem mnêmica hostil. Portanto, a consequência da defesa primária é gerar prazer, evitando o desprazer. Freud afirma que, além da defesa primária, o psiquismo necessita de mecanismos internos para dar conta da insatisfação que seria gerada a partir da recordação da dor e da catexização da imagem mnêmica do objeto da satisfação sem sua presença real. Daí decorre a importância, para a estruturação psíquica, da vivência da dor e do estado de desejo. Se não existem estruturas internas capazes de inibir o processo alucinatório no caso da dor, há a geração de desprazer. Embora o objeto hostil não esteja presente, o desprazer sentido pela representação é como se fosse real e externo. Da mesma maneira, a catexização do objeto de desejo nos estados de desejo leva ao desprazer, pois há uma eliminação da tensão pelos caminhos facilitados, mas não ocorre a satisfação, pois o objeto de desejo não está lá para propiciá-la. Se a inibição, que é tarefa do ego, não se realiza, há naturalmente uma decepção. Dessa maneira, o ego é um conjunto de neurônios que tem por finalidade inibir a descarga da quantidade quando da ausência do objeto da satisfação. No caso da dor, precisa-se de um signo para a desocupação da imagem recordativa hostil. Essa tarefa do ego se dá pela inibição da descarga de quantidades, pelo processo que Freud denominou de ocupação das vias colaterais, que consiste em inibir a descarga da Q pelos caminhos facilitados, desviando-a para os neurônios colaterais. Se se conseguir realizar a inibição a tempo, não haverá liberação de desprazer. No caso contrário, haverá enorme desprazer e defesa primária excessiva. Esse é o papel do ego. A partir da postulação da inibição da descarga feita pelo ego, Freud distingue os processos psíquicos primários e os secundários. No processo primário, o estado de ligação do ego deixa de ser levado em conta e prevalecem as ligações associativas criadas pela vivência originária, havendo uma indiferenciação entre percepção e alucinação do objeto. Os processos psíquicos secundários se dão a partir da inibição produzida pelo ego. Nesse caso, verifica-se que a defesa primária é menos utilizada nos processos secundários devido à inibição.

A defesa primária é considerada, ao lado da atenção, regra biológica e definida como um repúdio a manter investida a imagem mnêmica hostil da dor, isto é, evitar o desprazer. Contudo, não se podem ignorar as reações de adoecimento encontradas em diversos pacientes, que se devem ao esquecimento ocasionado pela “divisão de consciência” (1894, p. 57). O que determina uma defesa como tendo um caráter patológico é o deslocamento. A ideia que causa desprazer é esquecida, mas outra representação irrompe repetidamente na consciência sem motivo evidente e desencadeia o afeto aflitivo (FREUD, 1895/1977, p. 405-406). Na tentativa de defender-se, o eu se obriga a fazer algo de que não é capaz: erradicar o traço mnêmico e o afeto ligado à representação, “mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto do qual está carregada” (FREUD, 1894/1976, p. 56). Para que a representação incompatível se torne verdadeiramente inócua, é preciso que a soma de excitação que dela foi desvinculada seja utilizada de alguma forma, seja pela conversão, seja pelas falsas ligações das ideias obsessivas, seja pela liberação de angústia.

Há ainda outro tipo de defesa, que, segundo Freud, é mais poderosa e mais bem sucedida do que naqueles casos em que a representação incompatível é separada de seu afeto. Nessa defesa, “o eu rejeita a representação incompatível juntamente com o seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido” (FREUD, 1894/1976, p. 64). Quando isso acontece, o sujeito fica em um estado de confusão alucinatória que pode ser classificado como psicose. Nesse processo de “fuga para a psicose”, o eu rompe com a representação incompatível, que está ligada a uma parte da realidade e, dessa forma, ele acaba por romper com a realidade.

Freud (1895/1977, p. 374) constatou que o recalcamento incide sobretudo sobre as ideias provenientes da vida sexual do sujeito e que despertam no eu um afeto de desprazer. Essas ideias não são realmente extintas. Torna-se necessário que a força recalcadora que atuou no passado continue sua ação através da resistência que é dirigida contra qualquer pensamento que tenha relação com o recalcado. Esse processo é regulado pelo eu. Dessa forma, a defesa passa a adquirir um caráter contínuo, que tem como efeito a resistência evidenciada na clínica. Ao retomar o tema da determinação do processo defensivo patológico, Freud (1896) abandona a questão da hereditariedade como causa mais importante das neuroses e defende o papel da sexualidade na causação tanto das neuroses atuais quanto das psiconeuroses de defesa, ressaltando que, nestas, o psiquismo assume papel essencial através da defesa contra as lembranças traumáticas de experiências sexuais reais ocorridas precocemente.

Tal como Virgínia Carvalho nos indicou na lição anterior, Freud separa e mistura os conceitos de defesa e recalque e, apenas no texto “Inibição, Sintoma e Angústia”, ele pode deixar claro que o recalque não é a mesma coisa que a defesa e toma o recalque como “um caso especial de defesa”, já que ele visa a proteção do eu contra as “exigências pulsionais” (1925–1926/1976, p. 159).

Carvalho retomou os efeitos do recalque separando afeto de representação e seus efeitos de conversão na histeria do seu processo em dois tempos, com deslocamento da representação na neurose obsessiva. O efeito do recalque é o sintoma, mas, nos processos de defesa primária, nem sempre a resposta é a constituição de um sintoma, já que o sintoma decifrável é um recurso do simbólico e ele depende do recalque de um significante.

Nesse sentido, o conceito de defesa não se restringiria ao simbólico, tampouco ao imaginário, já que podemos também tomar todo o recurso ao imaginário como uma defesa diante da precariedade e do desamparo do infans. Se a defesa é defesa ao real, ao encontro com o real, o imaginário e o simbólico se apresentam como maneiras distintas de recobri-lo.

Por isso o conceito de defesa primária, aquela que antecederia o recalque, nos é muito caro, pois ele nos indica que, quando o sujeito não conta com o recurso do sintoma, temos que nos dirigir ao que ele pode construir como defesa diante do primeiro encontro com o real da língua, a como a palavra tocou seu corpo. A defesa primária diz respeito à dor, ao corpo e a como cada um pode se virar com esse encontro.

Da importância de retomar o conceito de defesa

1) A defesa primária é a defesa do real da pulsão

Em primeiro lugar, perguntei-me a respeito da importância de tomarmos o conceito de defesa a partir de um texto que poderíamos dizer ser pré-psicanalítico, já que ele data de cinco anos antes de “A interpretação dos sonhos”. Nessas lições introdutórias, visamos tratar o conceito de defesa até chegar à proposta de Lacan de que a direção de um tratamento se orienta pela perturbação e desmontagem da defesa, o que demanda passar pelos diversos tempos da construção desse conceito. Como Virgínia Carvalho nos trouxe em sua aula anterior, desmontar a defesa é uma operação que incide sobre o gozo autístico, sobre o gozo do Um. É uma formulação de Lacan de 1976, que extrai do caminho de Freud uma indicação precisa sobre a direção do tratamento, e vamos ter que fazer um grande percurso teórico para dar a ela todo o seu valor de orientação.

Para vocês terem uma ideia do que vamos buscar construir nesse percurso, sugiro a escuta do vídeo de Esthela Solano no Boletim Punctum 31. Ali ela fala do que Lacan nos indicava como a direção de uma análise: recuperar um traço de gozo que ex-siste no nível do dizer. Ir além do simbólico e do imaginário para buscar o que uma análise deve visar e que ela chama de um acontecimento de sentido real, aquele que toca o corpo. Se a pulsão é definida como o eco no corpo do fato de que há um dizer, é esse nível real do pulsional que Lacan buscava tocar para além das palavras que o sujeito enuncia, e, para isso, é preciso perturbar a defesa. Perturbar a defesa implica em atrapalhar a homeostase do princípio do prazer ao fazer um sujeito falar sobre aquilo para o que ele se mostra menos disposto, isto é, de suas particularidades sintomáticas.

Acho que o exemplo relatado por Silvia Ons (2022), de um caso que ela acompanhou em supervisão, nos ajuda a entender melhor a maneira como tomamos a defesa na perspectiva de sua perturbação. Trata-se de uma mulher que, quando era criança, ganhou um frasco em forma de fada (hada) com granulados dentro. Ela o pede dizendo: “me dá o geladinha (heladita)?”. Nesse momento ela é corrigida. Dizem-lhe: “não é a heladita, é hada”. Ela leva a lembrança desse equívoco para sua análise perguntando-se sobre seu sentido. O analista lhe diz: “você já sabe o que tem que fazer com isso”, tomando esse equívoco como uma jaculatória sem sentido, puro gozo. Mas, numa segunda análise, ao puxar o fio simbólico, surge uma cena sexual infantil durante a qual ela fantasiava com uma geladeira e assim, geladinha, heladita, tem um caráter de defesa: esfriar o prazer desse encontro sexual mas, ao mesmo tempo, perpetuá-lo. Geladinha não é apenas uma representação, já que é também sintoma como acontecimento de corpo com suas duas caras: defesa diante do gozo e memória inapagável de seu encontro. Como castigo por seu erotismo infantil, ela imaginava que iriam trancá-la em uma geladeira, padecendo de uma rinite crônica e estando sempre resfriada. Seu ceticismo diante da existência, seu constante pessimismo, sua recusa em admitir que os acontecimentos pudessem ser distintos daquilo que ela imaginava, indicam como o heladita é também esse saber gélido que a acompanhava e mortificava. Isso indica que, para se perturbar a defesa, é preciso esgotar o sentido que ela encerra.

2) Quando o sujeito não conta com um sintoma

Em segundo lugar, tomar o conceito de defesa tem uma grande importância na orientação do tratamento psicanalítico nos casos em que as defesas não estão estruturadas a partir do recalque e dos sintomas passíveis de serem decifrados pelo simbólico. É um fato constatável que a psicanálise muda e que nos defrontamos em nossa atualidade com uma ordem simbólica e com um real distintos daqueles do final do século 19. Se a língua que habitamos muda, os sintomas e os fenômenos de gozo também mudam. Cabe ao analista lidar com a subjetividade de sua época, mas isso não nos leva a querer ser atuais e conformes a nossa época.

Ainda que a maneira de interpretar tenha mudado, buscamos fazer valer os princípios lógicos que orientam nossa prática da psicanálise, que é sensível ao mestre de nossa época, mas eles devem ser entendidos a partir da maneira pela qual Lacan nos ensinou a ler Freud. Tal como diz Max Jacob, o verdadeiro é sempre novo, e essa me parece ser a boa maneira de retornar a Freud naquilo que ele nos indica como insuperável. Lacan (1977) nos assinala o espírito com o qual devemos retornar a esses primeiros textos em sua “Abertura da sessão clínica”, em que ele nos diz que o analista tem que apresentar suas razões, até mesmo no mais ocasional de sua prática, e também tem que justificar a razão de Freud ter existido.

Freud não manteve as mesmas ideias em relação ao conceito de defesa e, durante sua obra, introduziu mudanças em sua teoria de acordo com as questões que foram suscitadas pela experiência do real de sua clínica. A teorização do conceito de defesa tem grande importância clínica, na medida em que foram as resistências, entendidas em um primeiro momento como reflexos clínicos da defesa, que mobilizaram as mudanças na técnica e as reformulações teóricas em torno da concepção do tratamento das neuroses. O conceito de defesa foi apropriado de forma equivocada por diversos psicanalistas, o que gerou um tipo de prática baseada na análise das resistências do eu, tendo como alvo o fortalecimento das defesas. É o viés da psicanálise tomada como a análise dos mecanismos de defesa que foi muito trabalhado por Anna Freud, segundo a qual tudo o que concorre para dificultar o processo analítico seria da ordem de uma resistência.

Essa ênfase dos pós-freudianos nos mecanismos de defesa e na análise das resistências é um ponto importante na distinção de nossa orientação lacaniana e da maneira pela qual tomamos os tratamentos. Isso torna o entendimento do conceito de defesa ainda mais essencial para fundamentarmos os princípios lógicos de nossa prática.

Retomar os caminhos desse conceito também nos leva a promover as maneiras iniciais de Freud e tomá-lo como uma defesa primária, que seria distinta do recalque. Esse retomar das primeiras observações clínicas de Freud se articula ao interesse pelas várias manifestações clínicas da contemporaneidade que se apresentam na clínica do narcisismo, assim como naquela da compulsividade desregulada e da descarga por meio das diversas atuações. Essas respostas não são construídas de modo sintomático, não são construídas a partir do recalque, e pensar sua organização a partir da defesa primária pode nos ajudar na abordagem desses fenômenos. Penso aqui na distinção entre fenômenos de corpo e acontecimento de corpo como respostas distintas que exigem modos distintos de tratamento e que talvez possamos articular com o conceito de defesa primária tal como Freud o pensou no início de seu percurso. Se as neuroses típicas se fundam pelo recalque, outros sintomas, tais como a anorexia, as toxicomanias, obesidades e outros fenômenos de corpo, podem ser iluminados em sua articulação com as defesas primárias.

3) Quando a defesa se desmonta e surge a pulsão que a encobria

Penso que também seria importante pensar no que nos ensinam alguns casos em que as defesas são desmontadas a partir de um encontro com o real. Elas nos elucidam a respeito da função da defesa e de como as pulsões se apresentam a partir da desmontagem desse recurso. Vou tomar um exemplo que se aproxima daqueles relatados por Lacan sob o título de perversão transitória, perversão reativa diante de um impasse no simbólico, no qual a desmontagem da fantasia faz aparecer uma resposta da pulsão separada da defesa.

Trata-se de um caso relatado pela analista italiana Laura Storti em uma conferência proferida na sessão clínica de NUCEP em janeiro de 2022, um caso de psicanálise aplicada atendido no laboratório de homens que cometeram violência contra mulheres e menores, em um serviço localizado em Roma. Storti se refere a um homem de 58 anos que foi atendido durante um ano no âmbito desse laboratório. O serviço social o encaminhou buscando um especialista em pedofilia e ninguém tinha se colocado à disposição para tal tratamento. Ele havia ficado um ano na prisão e, depois, alguns dias em prisão domiciliar enquanto esperava uma sentença definitiva. Foi condenado por tentativa de violência contra duas menores e por possuir material pornográfico infantil. No primeiro encontro, ele coloca sobre a mesa da analista os vários documentos judiciais e conta que o incidente ocorreu em um sótão de um edifício residencial onde ele fazia serviços de inspeção. Diz que não fez nenhum tipo de violência contra as meninas, que só se masturbou na frente delas. Dois policiais o prendem um mês depois e um deles lhe pergunta se ele tinha material de pornografia infantil. Ele diz que sim e entrega espontaneamente o material. Essa admissão foi a causa de sua prisão. Ele não entende como chegou a essa situação e diz que é um homem justo, um homem casado, pai de duas filhas e avô de duas netas e que às vezes duvidava se tinha sido ele mesmo que havia feito isso. Passa por uma situação de ameaça na prisão e diz que os tratavam assim. Ao ser perguntado a quem ele se referia, ele sussurra: pedófilos. Tem insônia, fica confuso e muito angustiado. Na prisão, o guarda com um olhar perturbador lhe disse que ele deveria morrer. A perda de trabalho como eletricista e vagabundeio na internet o fizeram colecionar as imagens. Primeiro buscou trabalho na internet e, depois, imagens de mulheres, e, à medida que seguia sua busca, o computador lhe perguntava se queria mulheres mais jovens. Começaram a chegar imagens de meninas. De início, se masturbava, mas depois, não mais. Ele não conseguia entender o que acontecera, pois sempre gostara de mulheres. Quando a analista lhe pergunta se não se interessava nem em sua fantasia, ele se mostra confuso. Ele catalogou as imagens. Fala que a mãe era muito religiosa e rígida. Ele era o mais novo dos filhos e a mãe separava os meninos das meninas. O pai sempre estava fora de casa, trabalhando. Traz uma lembrança infantil: aos seis anos está em uma festa na sua casa e beija uma menina. A mãe entra pela porta e diz à menina que não volte à sua casa e bate muito no filho. Ele se pergunta se essa lembrança teria algo a ver com o que aconteceu com ele, já que ela tinha a mesma idade das meninas diante das quais ele se masturbou. Ele diz que, ao ver as meninas no marco da porta, algo fez click nele. Ele se pergunta pelo prazer em olhar as mulheres e as meninas, mas também pelo prazer em ser visto pelas meninas. Disse que talvez tenha feito isso para poder parar. Havia ali o olhar da mãe e o do guarda da prisão. Foi uma apresentação da cena fantasmática que o levou à atuação.

Creio que o conceito de defesa primária é aquele que nos permite nos orientar na leitura desse tipo de manifestação, fazendo-nos buscar, por trás delas, o sujeito do gozo, aquele que a defesa encobriu.

 


Referências
FREUD, S (1895). Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. I, 1977.
FREUD, S (1887-1904). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
FREUD, S (1894). As neuropsicoses de defesa. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III, 1976.
FREUD, S (1893). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferência. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III, 1976.
FREUD, S (1925–1926). Inibição, Sintoma e ansiedade. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XX. 1976.
LACAN, J. Ouverture de la Section Clinique. Ornicar? n. 9, 1977, p. 7-14.
ONS, S. Sobre el sentido. El psicoanálisis líquido y sólido. Buenos Aires: Grama ed., 2022.

1. Disponível no YouTube: https://youtu.be/V7wMlwYXXg0 Acesso em 13 nov.2022 



A experiência analítica de testemunhos de perda no hospital

Marina del Papa
Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG e aluna do IPSM-MG
marina.delpapa09@gmail.com

Resumo: Este trabalho visa a transmitir o relato de uma experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital. Parte-se da premissa de que, quando um sujeito busca uma instituição hospitalar, ele o faz, a princípio, pela urgência biológica e traumática de seu corpo; porém, de maneira concomitante, pode-se verificar uma atualização psíquica e singular de sua relação com a castração e o real. A prática psicanalítica passa fundamentalmente por algo desta ordem: um testemunho de perda, seja em sua construção teórico-clínica, seja na travessia do fantasma no final de uma análise. Trabalhar em um hospital traz a possibilidade de não só revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como também fazer ressoar a potência da presença do analista com seu corpo, enquanto via transferencial de testemunho para o sujeito.

Palavras-chave: Psicanálise; testemunho de perda; hospital.

THE PSYCHOANALYTICAL EXPERIENCE OF TESTIMONIALS OF LOSS IN THE HOSPITAL

Abstract: This work aims to convey the report of a clinical experience guided by psychoanalysis within a hospital. It is assumed that, when a subject goes to a hospital, he does so, at first, because of the biological and traumatic urgency of his body; however, at the same time, it is possible to verify a psychic and singular update of his relationship with castration and the real. The psychoanalytic practice fundamentally passes through something of this order: a testimony of loss, whether in its theoretical-clinical construction, or in the crossing of the phantasm at the end of an analysis. Working in a hospital brings the possibility of not only revisiting important concepts for clinical listening, but also echoing the power of the psychoanalyst’s presence with his body, as a transferential path of testimony to the subject.

Keywords: Psychoanalysis; testimony of loss; hospital.

CAROLINA BOTURA. CASA PARA UM ANIMAL

 

Em vista das discussões levantadas durante o segundo período de formação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, as quais se baseavam na prática do analista em instituições, e da temática proposta para o Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “Analista: Presente!”, vi-me interessada em escrever sobre minha experiência de trabalho dentro de um hospital de Belo Horizonte (MG). O fragmento de caso que compartilho a seguir tornou oportuna a retomada de conceitos importantes da psicanálise, como a localização subjetiva e a transferência, e, igualmente, abriu margem para uma reflexão sobre a presença do analista como via de testemunho, posição esta que torna possível um giro a partir do qual o sujeito pode avançar sobre seu dito e sua implicação com a perda.  

O caso Rubens

Rubens era um senhor de 76 anos para o qual foi requisitada assistência psicológica devido à angústia da equipe médica que o tratava, que não conseguia realizar o diagnóstico de sua doença. O que se sabia desse paciente é que ele sofria de algo relacionado ao pâncreas, embora isso não ficasse claro nos exames tumorais.

Esse sujeito não recebia visitas. Era educado com a equipe, mas bastante solitário. Acompanhei-o por cinco meses, até o momento de sua morte. Boa parte desse período — quatro meses exatamente — se destinou à definição de seu diagnóstico. Sempre o encontrava deitado; nisso, sentava-me a seu lado e buscava investigar sua história. Ele falava muito pouco sobre si e, por isso, pude colher apenas poucos dados: “fui diagnosticado com bipolaridade muitos anos atrás”, “perdi uma filha quando ela era criança por um câncer”, “tenho filhos, mas não são próximos” e “um casamento perdido”.

O paciente sempre interpunha à continuação de sua história queixas de dor. Revirando-se na cama, ele dizia das dores que tinha no corpo. A propósito, fazia uma descrição detalhada delas. Permaneci acompanhando-o, sentando-me ao lado de sua cama, na presença constante de suas queixas. Seu corpo não mais respondia a uma série de funções. Houve dias em que apenas o acompanhei em seu silêncio. Aliás, por alguns meses, essa foi a forma de acompanhamento que pude ofertar: uma presença e uma disponibilidade de escuta, indo a seu leito quase diariamente.

Depois de alguns meses, durante uma sessão, teve início o giro do caso. Nesse dia, Rubens afirmou sentir muita dor. Ele mal conseguia se movimentar no leito, contorcendo-se agoniado e com febre, o que o fazia ter calafrios. Ele, então, sorriu para mim e disse: “Que profissãozinha ruim a sua, hein?! Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Eu o respondi dizendo: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. O paciente tremia de frio. Em vista disso, levantei-me e o cobri com o cobertor. Nesse momento, ele demonstrou espanto com meu gesto, agradecendo-me em seguida.

Após essa sessão, ocorreram algumas mudanças com Rubens: ele passou a se sentar na cama para os atendimentos, dando amostras de que um sujeito começou a se presentificar ali. Outro modo de dizer se instaurou. O paciente pôde construir uma elaboração sobre um momento traumático de sua vida, que foi a perda de sua filha: “Briguei com tudo e todos”. Ele considerava justa sua solidão: “Fiz mal a meus filhos e minha esposa; é natural que não venham. Eu causei tudo isso, fiz coisas muito erradas. É justo que eu morra sozinho, mas não gostaria de morrer com dor. […] Está perdido, não tem mais o que ser feito”. Cortes, interpretações, desconstruções e conclusões foram sendo produzidos pelo paciente. Outra elaboração foi sobre como ter uma morte mais digna dentro das coisas que ele fez na vida e de outras que ele perdeu, sem possibilidade de restauração. Em uma das sessões, já com um sujeito instaurado, pude dizer a ele: “Hoje você trabalhou”. Nisso, ele me respondeu: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”.

Rubens veio a falecer pouco tempo depois. Como ficou acordado pela equipe médica após o diagnóstico de câncer no pâncreas, ele não seria submetido a tratamentos com poucas chances de êxito, tendo sido realizado apenas um paliativo. Juntamente à equipe, foi possível colocar em jogo a posição desse paciente: ele não poderia evitar a morte, mas poderia morrer sem grandes dores. Essa foi a ética possível para esse sujeito, que pôde realizar algum trabalho sobre suas perdas.  

Considerações iniciais

Quando oferecemos um espaço de escuta, como no caso de Rubens, algumas vezes nos deparamos com sujeitos em uma posição apagada, posição essa mais voltada à descrição corporal dos sintomas e a uma verificação queixosa da manifestação destes. Digo algumas vezes porque entendo que a maioria dos casos não é assim. Nesse sentido, o primeiro ponto que considero importante destacar para compreender a experiência de um testemunho de perda é a presença do analista.  

Presença como testemunha

Clotilde Leguil (2022) escreveu, no boletim extra A presença do psicanalista como testemunha de perda, que a presença do analista é articulada por Lacan não tanto a uma ausência, mas a uma perda. O fato de o analista estar ali com seu corpo, com sua voz, com sua respiração no mesmo lugar em que está o analisante — este também com seu corpo e com sua angústia — tem uma função decisiva. O corpo do analista em sua modalidade de presença exerce uma função de testemunha daquilo que se perde. O surgimento do inconsciente se produz no próprio modo daquilo que aparece e depois desaparece, no modo do que se dá a conhecer e depois se deixa esquecer, no modo do que estava lá, mas que já não está mais. A autora acrescenta que o inconsciente se manifesta como o que se perde, como aquilo que apenas é encontrado, que já está perdido, ganhando consistência se, e somente se, houver uma testemunha de seu surgimento.

Depreendo, do fragmento supracitado, a importância da dimensão da presença, isto é, a importância de manter constantes as idas, de convocar esse sujeito a falar e, mais do que falar, de acompanhar, em meio a seu dito, as dores, as angústias e os odores do corpo: em outras palavras, estar ao lado daquele corpo. A sessão que ocorre como divisor de águas, como ponto de mutação de um sujeito que descrevia suas dores para outro sujeito, que inicia um trabalho analítico, é aquela que tem como marca a constatação de Rubens: “Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Essa é uma indicação passível de ser compreendida como testemunho? O texto de Clotilde Leguil nos leva a recordar da terminologia lacaniana testemunha para abarcar a presença do analista. Lacan (1964) ressalta que, desde o início da psicanálise, quando Freud trabalha a estrutura do inconsciente e instaura uma prática, esse é um campo que, por natureza, se perde. É aí que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda.

Compreendo, a partir disso e tendo acompanhado Rubens por quatro meses, que existe uma sustentação em suportar o corpo real enquanto presença. Enquanto orientação clínica, aposta-se que exista um sujeito que se instaura pela perda. É por essa orientação, não desassociada do ato de suportar o corpo e sua angústia, que se pode dizer: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. Dessa forma, outro elemento indispensável para essa reflexão é a transferência.

O segundo momento do fragmento, em que o paciente inicia seu trabalho e uma abertura subjetiva se instaura, ele nomeia “de amor”: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”. Isso demonstra que a transferência se instaura em uma constatação de localidade subjetiva com o Outro, a qual não seria viável sem a presença da localidade enquanto presença. Assim, como encontramos na orientação lacaniana, a transferência vinculada a uma presença é necessária (LACAN, 1964).

Por fim, tendo sido instaurados esses elementos para Rubens, verifica-se uma ultrapassagem do dito para um sujeito com um inconsciente, pois, quando avançada essa constatação de presença, o paciente se coloca a trabalhar, relacionando a perda traumática de sua filha, que morreu de câncer quando era criança, a um câncer descoberto em estágio avançado, dizendo do trauma que o marcava por ter presenciado a hemorragia no corpo da menina. Rubens constata em sessão que, após a morte da filha, ele se colocou em uma posição desenfreada na vida, enquanto sujeito disposto a perder todo o resto: o casamento, os filhos, o dinheiro, o emprego, nada mais lhe importava. Próximo de morrer, ele pôde julgar a ausência de alguém.

Sendo assim, levanto o último elemento da reflexão: para que haja o testemunho do analista, é necessária a localização subjetiva do sujeito com seu inconsciente; é nesse momento que o que está em jogo não é mais apenas um espaço de escuta, mas, sim, uma experiência analítica. Só existe um testemunho. Se existe um sujeito aberto a essa experiência, é necessária a presença de um analista que queira colocá-lo a trabalho.  

A localização subjetiva

O analista, como testemunha de perda, testemunha, na presença de um sujeito, quando este aparece ou é convocado aparecer. O sujeito surge, como diz Lacan (1966), para além de seus ditos, sendo implicado pela demanda que ele apresenta. Isso equivale a um sujeito com um sintoma que ultrapassa o diagnóstico médico. Como mencionado por Lacan, trata-se de um sintoma como enigma para o sujeito que tem uma fantasia — essa seria uma condição mínima definida como instrumento.

Miller (1997), em Lacan elucidado, nos orienta exatamente sobre essa diferenciação quando toca o método lacaniano para que possa se apresentar como uma análise: o mecanismo dos ditos é falso, pois este não vale mais que o mecanismo da psicologia do eu. A localização subjetiva consiste em distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito. É necessário sempre inscrever algo, com um índice subjetivo do dito, o que verificamos no mal-entendido, naquilo que o paciente apresenta como uma verdade absoluta ou no que é predominantemente falso, no que ele deseja mas teme, ultrapassando o sentido de um dito.  

Considerações finais

A partir dessa experiência, reflito sobre a importância da presença de uma orientação psicanalítica nas instituições. A presença e a conduta dessa orientação implicam uma aposta no inconsciente e em sua abertura. Para isso, é necessário fazer presença, às vezes, com as palavras, outras, com o corpo, mas sempre apostando em uma possibilidade singular para cada sujeito e que este possa se ouvir e se implicar para além do que é dito. Isso ultrapassa qualquer protocolo hospitalar, incluindo tempo de sessão, quantidade de atendimentos por dia, o que o plano de saúde sugere etc. Não se trata de nada disso. É uma aposta em oferecer uma experiência de testemunho, elevando o sujeito à maior dignidade possível: a de ser sujeito de sua própria história.

 

 


 Referências
LACAN, J. (1964). O seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. (1966). Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LEGUIL, C. A presença do psicanalista como testemunha de perda. 2022. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
MILLER, J.-A. Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.



Defender-se de uma incompatibilidade na vida representativa

Virgínia Carvalho
Psicanalista, membro da EBP/AMP, doutora
e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.
virginiacarvalhopsicanalise@gmail.com

 

Resumo: A autora trabalha a noção lacaniana de “des-montar” (déranger) a defesa a partir de uma releitura dos textos de Freud “As neuropsicoses de defesa” (1894) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896), nos quais localiza a “incompatibilidade na vida representativa” como o ponto chave do qual o sujeito se defende, indicando algumas perspectivas clínicas dessa concepção.

Palavras-chave: Defesa; clínica psicanalítica; pulsão.

TO DEFEND FROM AN INCOMPATIBILITY IN A REPRESENTATIVE LIFE
Abstract: The author works with the Lacanian notion of “dis-assembling” (déranger) the defense, based on a reading of the Freud’s texts The neuropsychoses of defense (1894), and Additional observations on the neuropsychoses of defense (1896), in which she localizes the “incompatibility in representative life” as the key point from which the subject defends himself. She also indicates some clinical perspectives of this notion.

Keywords: Defense; psychoanalytic clinic; drive.

 

CAROLINA BOTURA. SHEILA NAJIG

 

Na 58ª edição das Lições Introdutórias à Psicanálise, propusemos o desafio de ler Freud a partir da orientação lacaniana de que des-montar a defesa é o “coração”, a matriz mesma da operação analítica (MILLER, 2020, p. 36). O termo utilizado por Lacan é dérange, que optamos por traduzir como desmontar, desordenar. Também incluímos um hífen no des-montar para realçar a ideia de que há uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa. Essa “des-montagem” parece se aproximar do que vemos no trabalho Disassembled/Things come apart, do fotógrafo Todd McLellan (2013). O artista desmonta alguns objetos e faz desses objetos desmontados uma bela e interessante nova montagem. As fotos encontram-se disponíveis em seu site.

Ler Freud com Lacan, Lacan com Freud e Miller fazendo a costura: eis nossa metodologia de trabalho. Mas é preciso fazer isso sem apagar a complexidade do texto freudiano. Em seu seminário sobre as psicoses, o Seminário 3 (1955-1956), Lacan nos orienta nesse desafio que é ler Freud:

“só mesmo ele [Freud] é que, em vida, tenha preparado os conceitos originais necessários a atacar e ordenar o campo novo em que descobria. Esses conceitos, ele os prepara cada um com um mundo de questões. O que há de interessante em Freud é que ele não as dissimula, essas questões. Cada um de seus textos é um texto problemático, de tal modo que ler Freud é reabrir as questões” (LACAN, 1955-1956/1995, p. 128).

Com-texto

Centrar-nos-emos sobre dois textos cuja temporalidade remonta a um tempo anterior ao que Freud localiza como o da “psicanálise propriamente dita” (1925/1996): “As neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1896/1996). Ambos são anteriores ao abandono por Freud da teoria da sedução, ou seja, ele ainda acreditava que a experiência traumática da qual seus pacientes lhe falavam referia-se a reminiscências de episódios de abuso ocorridos na infância, algum tipo de sedução por um adulto. É somente três anos após esses textos que Freud escreve a Fliess sua “Carta 69” (1892-1899/1996), dizendo que não acreditava mais em sua neurótica.

Em 1897, duas questões o atordoavam: por que ainda não havia sido possível levar uma análise à sua conclusão real e exitosa?, será que todos os pais são perversos e abusam de suas filhas? Como resposta, Freud se deparou com o papel “extraordinariamente grande desempenhado na vida mental dos neuróticos pelas atividades da fantasia” (FREUD, 1924/2016). Isso o fez constatar o “erro” que cometia ao privilegiar a sedução como um fato e, ao mesmo tempo, permitiu-lhe sustentar ainda mais a ideia de que, no psiquismo humano, existe uma instância em que a verdade e a ficção coexistem lado a lado (FREUD, 1892-1899/1996), o inconsciente.

Em 1925, ao revisitar a cena do abandono da teoria da sedução, conclui que tal abandono implicava em reconhecer que “os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade efetiva” (FREUD, 1925/1996, p. 29). Isso nos leva à ideia que vem sendo trabalhada por Miller a respeito de que, em Freud, tudo é sonho e que todo mundo é louco — mas não nos apressemos com isso.

Também convém lembrar que, quando escreveu “Neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996), ele ainda não dispunha de uma teoria consistente do recalque — o que se consolidou melhor em sua metapsicologia, em 1915, quando o relaciona ao “pilar sobre o qual repousa o edifício da psicanálise” (FREUD, 1915/2010), mas que ele localiza ainda mais no texto sobre “Inibição, sintoma e angústia” (FREUD, 1926/1996), que será posteriormente trabalhado aqui. Também não havia formulado suas constatações acerca da pulsão de morte, o que vai acontecer em 1920, não sem antes questionar de diversas formas sua maneira de formalizar o conceito de pulsão.

Inicialmente, Freud (1910/1996) considerava que havia dois grupos distintos de pulsão. Um que estava a serviço da autoconservação, que nomeou de pulsões do Eu, e outro que serviria às demandas sexuais. Esse primeiro dualismo pulsional ancorava suas bases no poeta Schiller, que acreditava que “fome e amor” moviam as engrenagens do mundo. Em “A perturbação psicogênica da visão” (1910/1996), Freud nos dá algumas imagens para compreendermos como uma mesma fonte poderia obedecer às duas correntes pulsionais. Diz Freud:

“A boca serve tanto para beijar como para comer e para falar; os olhos percebem não só alterações no mundo externo, que são importantes para a preservação da vida, como também as características dos objetos que os fazem ser escolhidos como objetos de amor — seus encantos” (FREUD, 1910/1996, p. 201).

Segundo Freud nos indica em sua conferência sobre “Angústia e vida pulsional” (1932/1996), quando começa a estudar o Eu e se aprofunda no conceito de narcisismo, “a distinção entre pulsão do Eu e sexual perde o sentido”, já que o Eu é sempre o principal reservatório da libido. Nesse momento, abrem-se algumas perguntas para ele sobre um tipo de pulsão bastante destrutiva, que revela uma propensão a restaurar uma situação anterior, um retorno ao inorgânico: uma “estranha pulsão que se volta para a destruição de sua própria morada orgânica essencial” (FREUD, 1932/1996). Desse modo, a hipótese de Freud passa a ser a de que existiriam duas classes de pulsão: “as pulsões sexuais, compreendidas no sentido mais amplo — Eros, se preferem esse nome —, e as pulsões agressivas, cuja finalidade é a destruição” (1932/1996, p. 129). A ideia freudiana de que vida e morte se mesclam no processo de viver e que as pulsões de morte estariam amalgamadas às de vida permitiu a Lacan (1964/1998) considerar que a pulsão é pulsão de morte e que a pulsão de vida já seria um tratamento dado à pulsão.

A pulsão é considerada por Lacan (1964/1998) um dos mais importantes conceitos fundamentais da psicanálise. Segundo a metapsicologia de Freud (1915/2016), elas podem ser consideradas “uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico, em decorrência de sua relação com o corporal” (p. 25). Por isso é um “conceito fronteiriço entre o anímico e o somático” (FREUD, 1915/2016, p. 25). Ela é uma pressão (drang) constante, da qual não se pode fugir, e que tem como meta a satisfação. Como esta implicaria numa suspensão do estímulo corporal, e isso não é possível, a pulsão insiste como demanda. Sua fonte é corporal, mas seu objeto é o que há de mais variável, pois não está nunca atrelado a ela. É sempre um objeto faltoso, pois será sempre um substituto, o que está escrito por Freud, nos “Três ensaios sobre a sexualidade”, do seguinte modo: “o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (1905/1996, p. 210). Lacan (1964/1998) a configura como uma montagem surrealista, tal como um sujeito acéfalo, sem pé nem cabeça.

A pulsão não pode ser satisfeita nem eliminada, no entanto, pode sofrer alguns destinos. Freud (1915/2016) enumerou quatro: 1) reversão em seu oposto, que seria a mudança da finalidade da pulsão, como a mudança de atividade para passividade; 2) retorno em direção à própria pessoa; 3) sublimação, que consiste na modificação da finalidade sexual da pulsão para uma finalidade não sexual e também em uma inibição do alvo, sem restrição da intensidade; e o 4) recalque, que consiste na separação entre a ideia e o afeto que a acompanha, mantendo a ideia afastada da consciência.

O recalque ganhou um texto próprio, e, nesse, Freud (1915/2010) o articula à formação dos sintomas, sendo estes últimos seus derivados. Indica que é o recalque originário (Urverdrangung) o responsável pela divisão entre os sistemas pré-consciente/consciente e inconsciente e que esse primeiro recalque consiste em negar o acesso do representante pulsional à consciência, através de um “contrainvestimento” (1915/2016). O recalque propriamente dito é o que vai cuidar de sua continuidade e funciona mantendo uma ideia afastada da consciência.

Mas o recalque é a defesa? Freud  os separa e os mistura, chegando a localizar, no texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1996), que o recalque não é a mesma coisa que a defesa, classificando o recalque como “um caso especial de defesa”, pois a defesa seria algo “que pode abranger todos os processos que tenham a mesma finalidade — a saber, a proteção do eu contra as exigências” pulsionais (p. 159). Miller (2020) nos ajuda a entender a ideia de que a defesa não se equivale ao recalque. Enquanto o recalque incide sobre o significante, separando a ideia do afeto, a defesa não recairia sobre um significante. Ela qualifica, já em Freud, “uma relação com a pulsão” (MILLER, 2020, p. 52). A defesa é defesa ao real. Falarei sobre isso depois.

Feito esse com-texto freudiano, podemos agora retornar aos textos de 1894 e 1896 para entendermos melhor o que Freud chama de “incompatibilidade na vida representativa” e nos permitirmos, ainda hoje, cento e vinte seis anos após, a aprender com Freud sem nos apressarmos tanto para chegar ao ultimíssimo Miller.

A incompatibilidade representativa

Adentremos, então, em “As neuropsicoses de defesa”, cujo subtítulo é “tentativa de formulação de uma teoria da histeria adquirida, de muitas fobias e obsessões e de certas psicoses alucinatórias” (FREUD, 1894/1996). Isso nos dá uma orientação sobre o rumo que Freud imprime a esse texto: há algo comum entre a neurose histérica, a neurose obsessiva, a fobia e a psicose. Embora circunscreva esse ponto em comum, em nenhum momento Freud iguala essas categorias, borrando suas diferenças. Não faz uma despatologização, como a que tem ocorrido em nossa cultura e que Miller (2022) vem apontando como uma “igualdade” que acaba por apagar a clínica, dando lugar a uma substituição dos princípios clínicos por princípios jurídicos, já que tudo passa a se relacionar a estilos de vida. Não sei se vocês estariam de acordo, mas me pareceu que, nesse texto de Freud (1894/1996), fica evidente seu esforço, com os recursos que tem naquele momento, para dar lugar à loucura de cada um.

Leio a questão central desses textos da seguinte maneira: “como alguém pode não se defender?”. Isso me faz lembrar a pergunta feita por Lacan em seu Seminário 23 (1975-1976/2007), a propósito do paciente que relatava sofrer de “falas impostas”, dizendo-se afetado pela telepatia, de modo que todo mundo era avisado de suas reflexões. O “telepata emissor” havia tentado se matar, tamanho sofrimento na experiência desses fenômenos elementares. Joyce também vivenciava essa sensação de “palavras impostas”, uma vez que sua relação própria com as palavras evidencia o modo como as “experimenta como algo estranho, heterogêneo, ‘imposto’, que não vai por si” (MANDIL, 2003, p. 249). Joyce produz um anteparo ao caráter excessivamente vivo da linguagem, desarticulando-a. Mas, para fazer tal desarticulação, ele preserva a letra, mantendo sua escrita em inglês (MANDIL, 2003). Lacan (1975-1976/2007) destaca que a escrita deu um tratamento à dimensão parasita que está presente para todo falasser: “a questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (p. 92).

Em Freud (1894/1996), ao buscar em sua experiência clínica alguma resposta, indica:

“Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento em que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa — isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento” (p. 55).

Luiz Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud (1996), se dedica ao termo unverträglich (p. 277). Quer dizer inassimilável, indigesto (faz mal à saúde), inconciliável, intratável e aponta para uma impossibilidade de coexistência. Hanns (1996) concorda com a tradução de “incompatível” presente na Imago, mas aponta que, com ela, “perde-se a ideia de uma incompatibilidade visceral, bem como a noção de que se trata de uma impossibilidade de coexistência” (p. 281). Interessante nos perguntarmos sobre o que seria essa “representação incompatível” de que Freud tanto fala. Estaríamos aí no terreno que Lacan nos ensinou a ler como o registro do real?

Freud (1894/1996) lembra que seus pacientes histéricos “conseguem recordar com toda precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de ‘expulsar aquilo para longe’, de não pensar no assunto, de suprimi-lo” (p. 55). Como faz Elizabeth Von R., que se culpava por pensar em um rapaz que lhe causara uma “leve impressão erótica” justamente no momento de cuidar de seu pai enfermo, ou Miss Lucy, ao experimentar um sentimento de paixão por seu patrão. Indico a vocês retomar os casos trabalhados por Freud em seus “Estudos sobre a histeria” (1893-1895/2016), texto que se encontra no segundo volume das Obras Completas.

Em “As neuropsicoses de defesa” (1894/1996), Freud ressalta que o fato de nos defendermos não é patológico. Os sintomas que levam os sujeitos a procurar uma análise surgem, ao contrário, quando a defesa não funciona: quando “esse tipo de esquecimento não funcionou” (FREUD, 1894/1996, p. 55). Quando a defesa não é eficaz, há uma série de reações patológicas.

O eu se impõe uma tarefa, em sua atitude defensiva, de tratar a representação incompatível como “non-arrivé”, como se ela não tivesse chegado. Mas o que ocorre é que “tanto o traço mnêmico quanto o afeto ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não podem ser erradicados” (FREUD, 1894/1996, p. 56). O eu promove, então, uma transformação dessa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto. Separa-se, portanto, o afeto e a ideia, o que Freud mais adiante vai formalizar como sendo o mecanismo do recalque.

O afeto que resta livre precisa ser utilizado de alguma forma, e, nesse texto de 1894, Freud localiza que histeria, fobia e neurose obsessiva se encontram nesse modo de funcionar, mas não de forma semelhante. Embora todos eles tentem se defender da “representação incompatível”, a maneira como fazem com esse afeto livre é distinta. Vejamos essa distinção tão clínica que Freud nos apresenta.

Na histeria, esse afeto se converte em algo somático. Como ocorre com Miss Lucy, que procura Freud com uma “rinite supurativa cronicamente recorrente”, aparentemente derivada de uma cárie no osso etmoide, mas que persistia sem que seu colega clínico pudesse continuar atribuindo o problema “a uma afecção local” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134). Ela havia perdido todo o sentido do olfato e “era quase continuamente perseguida por uma ou duas sensações olfativas subjetivas, que lhe eram muito aflitivas. Além disso, estava desanimada e fatigada e se queixava de peso na cabeça, pouco apetite e perda de eficiência” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134).

Ela constantemente sentia um cheiro perturbador de pudim queimado, sintoma que foi “o ponto de partida da análise”. Nessa, Miss Lucy trouxe à luz a primeira lembrança desse cheiro, e os desdobramentos do caso mostram que Freud tentava localizar nesse momento algo que pudesse levá-lo à representação incompatível. Nos “Estudos sobre a histeria”, vemos o movimento de Freud (1893-1895/2016) de tentar levantar a barreira imposta pelo recalque. Miss Lucy havia chegado à ideia de que sua paixão pelo patrão era sua fonte de sofrimento, e isso tornou desnecessário o sintoma de sentir cheiro de pudim queimado, porém, abriu caminho para um deslocamento, passando a experimentar um outro odor: o de fumaça de charuto. Freud (1893-1895/2016) relata não ter ficado “muito satisfeito com os resultados do tratamento”. Em suas palavras: “eu apenas eliminara um sintoma só para que seu lugar fosse ocupado por outro” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 145). Ele segue ainda o caminho do segundo odor, tentando liberar mais lembranças traumáticas, e chega a uma cena que supõe ter desencadeado os sintomas. Trata-se de um momento em que o patrão havia gritado com ela sem que ela fosse responsável pela situação em questão, o que, em sua concepção, evidenciava sua ausência de sentimentos ternos para com ela. Ao chegarem a essa cena, uma lembrança aflitiva, ela se libera dos sofrimentos que ensejaram o início da análise, que durou nove semanas.

Voltando ao texto que estamos trabalhando, Freud (1894/1996) acreditava que, se na histeria esse afeto livre se transpõe para “enormes somas de excitação para a inervação somática”, na neurose obsessiva haveria uma carência na “aptidão para a conversão” (p. 59). Não obstante, os sujeitos parecem também “rechaçar uma representação incompatível”. Quando tal representação é separada de seu afeto, ele fica obrigado a permanecer na esfera psíquica. Como está livre, “liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa ‘falsa ligação’ tais representações se transformam em representações obsessivas” (FREUD, 1894/1996, p. 59).

No caso do Homem dos Ratos, de 1909, isso fica muito evidente. Vale muito a pena a retomada desse caso, que se encontra no volume X, no texto intitulado “Nota sobre um caso de neurose obsessiva”. Trata-se de um jovem senhor de formação universitária que se apresenta a Freud (1909/1996) com obsessões que o acompanham desde a infância e que se intensificaram nos últimos quatro anos. O caso tem como cenário os ratos (Ratten), que tomam relevo a partir do relato de um castigo feito pelo capitão “cruel” quando prestava o serviço militar. Tal castigo consistia em amarrar o criminoso e introduzir ratos dentro de suas nádegas. Esse relato se transforma em ideia obsessiva, produzindo sintomas que se referem ao termo: Ratten (ratos), Spielratten (ratos de jogo), Raten (prestações, pagamentos), Heiraten (casamentos, acasalamentos). Para Freud (1909/1996), no final das contas, o que se coloca é uma questão sobre sua própria existência como rato, por ver no animal uma “imagem viva de si mesmo” (p. 188).

No início de seu tratamento, o paciente relata a Freud sobre o episódio da morte de seu pai, que ocorreu exatamente no momento em que ele havia se deitado para descansar, enquanto o acompanhava por ocasião da doença no pulmão. Soube, pela enfermeira, que o pai o havia chamado, o que aumentou ainda mais sua recriminação: “passara a tratar a si próprio como criminoso” (FREUD, 1909/1996, p. 156). No caso do Homem dos Ratos, o rato foi o objeto erotizado. É o que faz com que esse sujeito inclua os ratos em sua economia, o que pode ser visto na associação que faz entre “tantos ratos, tantos florins” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 250).

Para Freud (1894/1996), “a obsessão é, em primeiro lugar, a fonte do afeto agora colocado numa falsa ligação” (p. 59). O paciente chega se queixando de suas obsessões, mas o afeto ligado a uma determinada ideia parece estar desalojado e transposto.

No caso de uma substituição da qualidade do afeto, estamos no terreno da fobia: a angústia liberada cuja origem sexual não deva ser lembrada pelo paciente irá apoderar-se das fobias primárias comuns da espécie humana, relacionadas com animais, tempestades, escuridão, e assim por diante, ou de coisas inequivocamente associadas, de um modo ou de outro, com o que é sexual — tais como a micção, a defecação ou, de um modo geral, a sujeira e o contágio. Podemos aqui fazer referência a Hans e sua fobia de cavalos, caso que se encontra no volume XVII sob o título “História de uma neurose infantil” (FREUD, 1909/1996).

Em “Neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/1996) lembra que, embora sejam distintas as maneiras de lidar com o afeto liberado da representação incompatível recalcada, “em todas as situações, é a vida sexual o que desperta o afeto aflitivo”.

Mas, e a psicose? Considero que esses dois textos com os quais estamos trabalhando nos trazem luzes importantes para o trabalho com a psicose, mesmo que sejam ainda muito incipientes e que Freud ainda não tenha localizado a diferenciação entre a defesa e o recalque. Vejamos o que ele escreve:

“a defesa contra a representação incompatível [na neurose] foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas, a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como ‘confusão alucinatória’” (FREUD, 1894/1996, p. 64).

Vemos como Freud, já em 1894, aponta para a rejeição da representação incompatível na psicose, o que Lacan irá trabalhar a partir de sua concepção de foraclusão, que pode ser lida no Seminário 3 (LACAN, 1955-1956/1995).

Interessante o fragmento clínico, trazido por Freud (1894/1996), da moça que experimentava sua paixão por um homem e que acreditava, de modo erotômano, que ele também a amava, e que, diante da recusa deste, vive a chegada do seu amor como um sonho. Freud (1894/1996) lembra que ali “o eu rechaçou a representação incompatível através de uma fuga para a psicose” (p. 65). Ele

“rompe com a representação incompatível; esta porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu obtém esse resultado, também ele se desliga total e parcialmente da realidade. […] Assim, quando a defesa consegue ser levada a termo, ele se encontra num estado de confusão alucinatória” (FREUD, 1894/1996, p. 65).

Freud (1894/1996) conclui o texto com a ideia de que há “três métodos de defesa” (p. 66) e podemos convidar Lacan e Miller para essa conversa, mas não sem antes percorrermos suas “Observações adicionais às neuropsicoses de defesa”, texto de 1896 que nos traz ainda mais elementos. Neste, ele afirma que a defesa é “o ponto nuclear no mecanismo psíquico” tanto da histeria como da neurose obsessiva e da psicose alucinatória (FREUD, 1896/1996).

Ele vai tentando explicar a neurose e a psicose a partir do traço mnêmico deixado por perturbações sexuais vividas antes do advento da maturidade. Na neurose histérica, o afeto vinculado à experiência seria colocado no corpo, enquanto, na neurose obsessiva, se deslocaria para outra ideia. Para ele,

“a natureza da neurose obsessiva pode ser expressa numa fórmula simples. As ideias obsessivas são, invariavelmente, auto-acusações transformadas que reemergiram do recalcamento e que sempre se relacionam com algum ato sexual praticado com prazer na infância” (FREUD, 1896/1996, p. 169).

O sujeito recalca e substitui a lembrança dessas ações prazerosas por “um sintoma primário de defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). A conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança são sintomas dessa espécie, que dão início a um período de aparente saúde mas que, na realidade, apontam para uma defesa bem-sucedida.

“O período seguinte, o da doença, é caracterizado pelo retorno das lembranças recalcadas — isto é, pelo fracasso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). Esse fracasso leva a formações de compromisso entre as representações recalcadas e as recalcadoras; os sintomas. Ele usa um termo interessante, apontando que se trata de um “colapso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 171).

Nesse texto bastante clínico, Freud (1896/1996) mostra algumas estratégias da neurose obsessiva. Considero que nos auxilia grandemente na clínica porque nos ajuda a entender que os sintomas dos quais o obsessivo se queixa no início do tratamento não são a causa de seu sofrimento, mas sim sua maneira de se defender dele. Ou seja, a dúvida, a compulsão, a autoacusação, a ruminação, as medidas penitenciais, a vergonha, a hipocondria, as medidas de proteção e de colecionar objetos, assim como a busca incessante por assegurar “o entorpecimento da mente” são manifestações de uma defesa secundária, diante do colapso da defesa primária.

Diferentemente da neurose, na paranoia a defesa é muito bem sucedida, daí Freud (1896/1996) a considera uma psicose de defesa. Ao mesmo tempo, ele indica que no desencadeamento psicótico haveria um total fracasso da defesa:

“Em vista do que se sabe da paranoia além disso, inclino-me a supor que há um gradual comprometimento das resistências que enfraquecem as auto-acusações, de modo que, por fim, a defesa fracassa por completo e a auto-acusação original, o termo real do insulto de que o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua forma inalterada” (FREUD, 1984/1996, p. 181).

Mais tarde, ele indica que o que foi abolido do simbólico retorna no real.

“Parte dos sintomas provém da defesa primária — a saber, todas as representações delirantes caracterizadas pela desconfiança e pela suspeita e relacionadas à representação de perseguição por outrem” (FREUD, 1896/1996, p. 182).

Outra passagem interessante é quando ele diz que “nenhuma defesa pode valer contra os sintomas de retorno aos quais, como sabemos, liga-se uma crença” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Parece-me que podemos extrair algumas consequências dessa frase quando estivermos nos dedicando a desenvolver algo sobre o delírio.

Na paranoia, a autoacusação é defendida pela projeção, ou seja, a desconfiança passa a ser de outras pessoas: “o sujeito deixa de reconhecer a autoacusação; e como que para compensar isso, fica privado de proteção contra as autoacusações que retornam em suas representações delirantes” (FREUD, 1896/1996, p. 182). Essas autoacusações retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta. As representações delirantes que chegam à consciência através de uma formação de compromisso (os sintomas de retorno) “fazem exigências à atividade de pensamento do eu, até que possam ser aceitos sem contradição” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Assim, o que corresponde aos sintomas de defesa secundária na neurose obsessiva, na psicose se faz como uma formação delirante combinatória: “delírios interpretativos que terminam por uma alteração no eu” (FREUD, 1896/1996, p. 183).

Esse desenvolvimento é realizado por Freud a partir do caso da Sra. P. e evidencia uma certa confusão entre a paranoia e a esquizofrenia, ponto que também no texto anterior se verifica. Digo isso pela nota que ele apresenta em 1924, reforçando que se trata de um caso de dementia paranoides.

A Sra. P., caracterizada por Freud (1894/1996) como “uma mulher inteligente”, levava “uma vida saudável” em seus últimos anos até que o nascimento de seu filho “mostrou os primeiros sinais de sua atual enfermidade” (p. 175). Ela tornou-se pouco comunicativa e desconfiada, acreditando que as pessoas a estavam menosprezando, o que, pouco tempo depois, se transformou numa queixa de que as pessoas liam seus pensamentos e sabiam tudo o que ocorria em sua casa. Isso era transposto a seu corpo e a sensação que ela experimentava em seu baixo abdome era atribuída à certeza de que sua criada, com quem estava a sós, havia tido uma “ideia imprópria” (FREUD, 1894/1996, p. 175). Sentia seus órgãos genitais “como se sente uma mão pesada” e começou a ver coisas que a horrorizavam, como alucinações de mulheres nuas e genitálias femininas e masculinas. Essas imagens a aterrorizavam porque ela também sentia seu corpo exposto. Começou a ser importunada por vozes que a censuravam e passou a não mais querer sair de casa e não se alimentar.

Com Freud, a Sra. P. pôde percorrer algumas cenas infantis, entre elas, uma em que se despia sem nenhuma vergonha na frente de outras crianças, o que leva Freud a considerar que haveria algo por aí. Mas “a depressão da paciente começou na época de uma discussão entre seu marido e seu irmão, em consequência da qual este passou a não mais frequentar sua casa” (FREUD, 1894/1996, p. 178). Ele não dá muitos elementos sobre esse ponto, mas traz uma nova cena em que sua cunhada a visitara e lhe dissera que “em toda família acontecem coisas sobre as quais eu gostaria de pôr uma pedra. Mas quando uma coisa desse tipo acontece comigo, eu a trato com descaso” (FREUD, 1894/1996, p. 178). O significante “descaso” havia impregnado o delírio de P. Seria interessante sabermos mais sobre onde entra o bebê de P. nessa história, mas Freud não nos deu elementos a esse respeito, mesmo tendo localizado que o desencadeamento ocorreu após o nascimento da criança.

No texto que estamos trabalhando, de 1894, Freud afirma que pode reproduzir com sua paciente “várias cenas de seu relacionamento sexual com o irmão” e, nessas revivescências, seu corpo “participou da conversa”, o que nos aponta algo sobre a importância do atendimento presencial. Para ele, “depois de percorrermos essa série de cenas, as sensações e imagens alucinatórias desapareceram e (ao menos até o presente) não retornaram” (FREUD, 1894/1996, p. 179). Não deixem de ler as notas de rodapé escritas por Freud. Elas nos mostram, tal como a arte de Todd McLellan (2013), que há algo que se monta e se des-monta, formando novas montagens. Arranjos e desarranjos.

Des-montar a defesa

O desenvolvimento de Freud nos leva à ideia de que a defesa é algo basal que está presente tanto na neurose como na psicose e que é defesa ao sexual, ou à pulsão, como ele irá trabalhar mais adiante. Em um texto intitulado “Clínica irônica”, de 1988, que vocês encontram publicado no livro Matemas I (1996), Miller indica que nos defendemos do real e que “todos os nossos discursos não passam de defesas contra o real” (p. 190). Lembra que, para Lacan, a clínica psicanalítica é “o real como o impossível de suportar”. Nesse sentido, as formas clínicas não passam de modos de defesa, até mesmo “no caso limite dito esquizofrênico, onde o sujeito aparece sem defesa diante do impossível de suportar” (MILLER, 1996, p. 198).

Miller (1996) considera que “o delírio é universal porque os homens falam e porque há linguagem para eles. Eis, então, o a-b-c ao qual se volta: a linguagem [o Outro] tem como tal, efeito de aniquilamento” (p. 192). Anteriormente, trabalhamos com a ideia de que não há Outro do Outro, ou seja, não há um Outro que diga o verdadeiro sobre o verdadeiro. Para falar com Guimarães Rosa (1956/2019), “mente pouco quem a verdade toda diz”. Nesse sentido, Miller (1996) propõe que nossa clínica seja irônica, ou seja, fundada sobre a inexistência do Outro como defesa contra o real (a neurose tenta fazer existir o Outro, ao preço de um apagamento subjetivo; na psicose, o Outro não está separado do gozo).

Dez anos após, em seu curso sobre A experiência do real na cura psicanalítica, Miller (2014) afirma que “na psicanálise se trata do real e da defesa contra este”. Mas, o que é o real? Milner (2006) nos ajuda na definição dos três registros, real, simbólico e imaginário, do qual depende a estruturação da realidade:

“existem três suposições. A primeira, ou melhor, uma delas, pois já é demais por ordem nisso, por mais arbitrária que seja, é que há: proposição tética que só tem por conteúdo sua própria posição — um gesto de corte, sem o qual não há nada que exista. Chamaremos isso de real ou R. Outra suposição, dita simbólica ou S, é que há alíngua, suposição sem a qual nada, e singularmente nenhuma suposição, poderia ser dita. Uma outra suposição, enfim, é que há semelhante, na qual se institui tudo o que constitui laço: é o imaginário ou I” (p. 7).

Para Lacan (1975-1976/2007), o real é o impossível porque “é sem lei” e “não tem ordem”1 (p. 133). Exatamente por isso, para que o homem possa, talvez, “reencontrar alguma coisa que seja da ordem do real” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 120), é necessário se colocar no lugar de lixo, o que significa dispensar o sentido. Quanto mais tenta apreender o real pelo sentido, mais longe está dele.

Miller (2012) ressalta que o real psicanalítico é desprovido de sentido e não corresponde a nenhum querer-dizer. Ele não é “um cosmo, não é um mundo, nem uma ordem; é um pedaço, um fragmento assistemático porque separado do saber ficcional” (MILLER, 2012, n.p.). O real é o que se produz no choque pulsional do encontro do significante com o corpo. O real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real ao acaso, contingente, na medida em que falta a lei natural da relação entre os sexos. O sentido escapa a esse real e, quando há doação de sentido, ela ocorre através da elucubração da fantasia. Favret, ao se perguntar sobre O que ilumina o passe no Ultimíssimo ensino de Lacan? (2014), propõe que, no final de uma análise, trata-se de como cada um tenta se aproximar de um ponto, de um pedaço de real, apesar de sua opacidade.

Frente ao real, nos defendemos. A defesa, segundo Miller (2014), qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. “A abordagem do real se inscreve em primeiro lugar em termos de defesa, e não de apetite, harmonia ou cálculo” (MILLER, 2014, p. 51). Miller (2012) indica que, “para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se concentrar em desmontar a defesa, desordenar a defesa contra o real”. Em uma análise, o inconsciente transferencial é uma “defesa contra o real”, ou seja, uma tentativa de fazer o Outro existir. Isso ocorre porque, “no inconsciente transferencial, continua vigente uma intenção, um querer dizer, um querer que me seja dito algo” (MILLER, 2012). Isso não ocorre no inconsciente real, que não é intencional, apenas “é”. Isso abriria para mais outra pesquisa que encontraria sua ancoragem no “Prefácio para Edição Inglesa do Seminário 11” (LACAN, 1976/2003).

Essa indicação de que nossa clínica precisa “des-montar a defesa” provém da afirmação lacaniana, em seu Seminário, livro 24: l’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre (LACAN, 1976-1977), de que o falasser fala sozinho e sempre a mesma coisa, a não ser que se abra para falar com um psicanalista e receba deste algo que desordena, desarranja (dérange) sua defesa (LACAN, 1976-1977). Gueguen (2014) propõe a utilização do termo “desmontagem da defesa” em detrimento da expressão “perturbar a defesa”, pois, para ele, “a desmontagem da defesa supõe que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado” (p.103). Nos testemunhos de passe vemos essa des-montagem, assim como buscamos fazer nas construções de casos clínicos. É também essa nossa aposta de leitura ao texto freudiano: des-montá-lo e nos permitir sermos tocados por ele.

 


Referências
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1. Vemos aqui que houve uma modificação no pensamento de Lacan a esse respeito, levando em conta que, no Seminário 11 (1964/1998), ele acreditava que o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar (MILLER, 2012). Jésus Santiago (2022), em A escrita real no passe não é autoficção, indica que “É somente no Seminário ‘De um discurso que não fosse semblante’ que surgem os sinais mais evidentes de uma formulação mais acabada e genuína do real, na medida em que sua concepção se faz sem os instrumentos da linguística. Em outras palavras, o real deixa de estar submetido ao algoritmo do significante/significado e passa a ser distinto tanto do sentido (imaginário) quanto do saber (simbólico)”.



Paternidade e neurose obsessiva : a literatura de Karl Ove Knausgard

Wallace Faustino da Rocha Rodrigues
Doutor em Ciências Sociais, professor de Sociologia na UEMG e aluno do IPSM-MG
wallacefaustinorocha@hotmail.com

Resumo: Seguindo o Complexo de Édipo, o sujeito ante à ameaça de castração tende a ver o pai como o detentor do falo e, consequentemente, obstáculo à realização de seu desejo — quadro esse que se impõe durante toda a sua vida. Diante desse princípio, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, pretende-se uma reflexão sobre a paternidade na neurose obsessiva a partir de um olhar sobre a obra do escritor Karl Ove Knausgard, de modo a proporcionar uma discussão mais ampla sobre a temática.

Palavras-chave: Paternidade; neurose obsessiva; Karl Ove Knausgard

FATHERHOOD AND OBSESSIONAL NEUROSIS: THE LITERATURE OF KARL OVE KNAUSGARD

Abstract

Following the Oedipus Complex, the subject, faced with the threat of castration, tends to see the father as the holder of the phallus and, consequently, an obstacle to the fulfillment of his desire — a situation that imposes itself throughout his life. From this principle, in the light of the three logical stages of Oedipus proposed by Lacan, a reflection on fatherhood in obsessional neurosis is intended from a look at the work of the writer Karl Ove Knausgard in order to provide a broader discussion about the theme.

Keywords: Fatherhood; obsessional neurosis; Karl Ove Knausgard

CAROLINA BOTURA. RAINHA

 

“Uma criança era vida, e quem gostaria de virar as costas para a vida?”
Karl-Ove Knausgard, Um outro amor

Em O homem dos ratos, Freud apresenta como a imagem do falecido pai de seu paciente é recriada simbolicamente com a finalidade de barrar o seu desejo (FREUD, 1909/2020). Reconstruído na teia do imaginário, o Pai vigilante é aquele por quem o neurótico espera aprovação ou rejeição. O engano do neurótico é o de que o Outro cerceia o seu desejo, prendendo-se enganado em sua própria trama de que, restituído o Pai, conseguiria a realização de seu desejo — ao mesmo tempo em que a sua restituição representa o vigor da castração (LACAN, 1966/2021).

O pai simbólico, morto, é agente de interdição, abrindo o acesso ao desejo por sua submissão à lei, unindo desejo e lei. Por sua vez, o pai imaginário é aquele construído involuntariamente pelo neurótico em sua versão idealizada ou terrível. O obsessivo, portanto, volta-se para pagar a dívida paterna, sendo que a sua versão idealizada, ou terrível, é uma forma de encobri-la. Freud demonstra isso no relato que faz do desespero de seu paciente em pagar a dívida referente ao pince-nez perdido. Se não o paga, o falecido pai seria punido — porém, essa dívida não existe (FREUD, 1909/2020).

O redimensionamento do Outro, que não está ali, e a permanente ameaça de castração paralisa o neurótico, tornando-o impotente na realização do desejo. Assim, questiona-se: quando a ameaça de castração se torna menos evidente, a ponto de permitir maior possibilidade de o neurótico prosseguir em direção ao seu desejo? Para efeitos deste texto, a paternidade é uma delas.

 

Paternidade e obsessão

Na teia do Édipo, o pai deseja a mãe, interditando-a à criança, que passa a dividir o seu objeto de desejo com a figura castradora. Ambiciona, então, a morte do pai para ter a exclusividade do objeto desejado.

Em Lacan, o Nome-do-Pai está no discurso da mãe, sendo para onde aponta o desejo. A metáfora paterna é uma operação significante articulando o Complexo de Édipo ao de Castração. Logo, o Édipo deixa a sua base evolucionista do desenvolvimento infantil ao permanecer atemporal, por se situar em uma premissa da estrutura. Desse modo são apresentados três tempos lógicos para o Édipo (LACAN, 1957-1958/1999).

O primeiro está centrado na identificação da criança ao objeto de desejo da mãe — equivalência falo e criança. Ergue-se uma tríade a partir desses dois elementos: criança, mãe e falo. Ser falante, a mãe fica submetida à lei simbólica, tornando-se um Outro absoluto para a criança.

No segundo tempo está a simbolização — o fort-da (FREUD, 1920/2019b). A mãe, representada pelo carretel, também o é por palavras, enunciando a sua simbolização. É a entrada da criança na linguagem. Pela premissa do estágio do espelho, ergue-se o binarismo significante S1 e S2, por onde o sujeito caminharia.

Antes disso, a intermediação criança-mãe se dava pelo falo. A linguagem passa a condicionar o posicionamento da criança no mundo. A mãe deixa de ser objeto primordial, passando ao de signo. Com a metáfora paterna, o desejo da mãe é deslocado para outro lugar, não mais estando na criança.

Significante, o Nome-do-Pai faz a mãe ser simbolizada. Se, no primeiro tempo lógico, o Outro é a mãe, o Nome-do-Pai barra o Outro absoluto; no segundo, a criança é inserida na ordem do simbólico. Lacan introduz o Édipo da castração simbólica, faz com que a identificação da criança com o falo da mãe seja recalcada e coloca a mãe no nível significante do desejo do Outro.

No terceiro tempo tem-se o declínio do Complexo de Édipo, com o menino deixando de ser falo para ser alguém com falo. É iniciado o processo de significação ao seu pênis, com o pai como identificação com o ideal do eu. A matriz simbólica é o significante Nome-do-Pai, conferindo-lhe virilidade — já a menina é posicionada como objeto de desejo masculino.

Em sua existência como alguém com falo, há o temor pela castração. O ideal do eu, simbolizado na figura paterna, edifica-se no universo simbólico como construção sua. Entende-se a grande admiração ao pai em Homem dos ratos e explica-se, então, os seus dilemas, sobretudo no tocante à escolha do casamento, sempre à espera da aprovação do pai simbólico, adiando a realização de seu desejo. O temor pela perda do falo acompanha o de não corresponder às expectativas de alguém tão grande (FREUD, 1909/2020).

Ao obsessivo, a ameaça ao falo é constante. Ao se relacionar com um ser castrado, teme perder o falo. Diante disso, tomando os três tempos lógicos acima apresentados, mostra-se como a mãe, em determinado momento, por possuir o seu próprio falo, deixa de ser uma ameaça castradora. Por isso que a paternidade poderia ser, para o obsessivo, o testemunho da potência e a possibilidade de se romper com a trama neurótica na qual se encontra enredado.

 

Paternidade e potência — um caso na literatura

Para ilustrar essa discussão, toma-se a obra de Karl Ove Knausgard. Em seu projeto literário Minha luta, dividido em seis volumes, o escritor norueguês trata episódios de sua vida elaborando remotas lembranças da infância até obscuros pensamentos e preconceitos, a ponto de promoverem um inevitável julgamento da parte de seus leitores.

Para os propósitos do presente artigo, os dois primeiros volumes mostram-se mais significativos, contribuindo para que o elemento obsessivo seja observado na trajetória do escritor/personagem. Em A morte do pai, Knausgard centra a narrativa na figura paterna (KNAUSGARD, 2015a). Em seu relato, tem-se um homem distante, incompreensível para os filhos e até mesmo para a mãe. Tirânico, isola-se no alcoolismo. Não há, ao longo do livro, descrição de momentos agradáveis vividos com os dois filhos — Knausgard era o caçula. Pelo contrário, pois a convivência mútua é sempre relatada a partir de uma sufocante tensão.

Curioso é que os castigos sempre esperados de um pai autoritário raramente se mostram presentes, denotando a exploração do simbólico da parte do autor da obra. Ao contrário, tem-se sempre a apresentação quanto ao que aconteceria se ele o descobrisse, com um excesso de cuidado para que isso não ocorresse — parece mais uma obsessão pelo castigo do que a sua realidade.

Em contrapartida, Knausgard escreve apresentando-se como um jovem repleto de frustrações, como as pelo seu péssimo desempenho como músico da banda de rock da qual faz parte, por ser um escritor e redator medíocre e descompromissado, pelo excesso de timidez e fracasso nas tentativas de relacionamento com as meninas — a perda da virgindade tarda ainda por muitos anos —, pela dificuldade com amizades, entre outras. Isso se dá principalmente quando se compara constantemente ao seu irmão mais velho, Ingve, descrito como bastante independente. Destaca-se que nunca elogia o seu próprio trabalho — embora louve os de muitos outros colegas.

Como o título do primeiro volume indica, o livro é marcado pela morte de seu pai. Em sua descrição, isso se dá de forma agonizante, em decorrência do álcool. A sua decrépita situação é ilustrada ainda pelo relato de um episódio em que seu pai, dentro de casa, quebra a perna e opta por permanecer ferido no chão, bebendo, a pedir por socorro.

Nota-se como, diferentemente do que se observa em O homem dos ratos, o pai não é digno de admiração, mas, sim, de repulsa — algo comum na neurose obsessiva, a existência de algo equivalente a esse polo tirania-admiração. Castrador, funciona como um constante juiz, e o neurótico, sabendo de sua condição limitadora, ainda assim, em seu imaginário, opera sempre em busca da aprovação desse Outro, figura austera provida de severidade, que, certamente, não virá.

Um outro amor, o segundo volume, se inicia com a descrição de seu divórcio com Tonje e sua mudança para Estocolmo, onde conhece Linda Boström, com quem viria a ter três filhos. É aqui, após narrar a morte do pai, que Knausgard apresenta a felicidade da paternidade, alterando o tom de sua narrativa, mesmo ao exibir as dificuldades que enfrenta na conciliação da família com o trabalho (KNAUSGARD, 2014).

À sua chegada à Suécia, tem-se um reconhecimento insignificante do trabalho como escritor, pelo qual evidencia um grande desejo outrora cerceado pela figura do Pai. No começo do livro, antes do nascimento de sua primogênita Vanja, muitos dos pensamentos obsedantes ainda se fazem presentes, como no caso em que, no encontro com outros escritores, apaixonado por Linda, tendo dificuldades com a possível aproximação, faz, diante do espelho, diversos cortes em seu rosto. O fato, naturalmente, chama a atenção dos colegas, que não entendem o motivo pelo qual fez aquilo.

Com a paternidade, Knausgard volta-se para a organização da casa, chegando a executar trabalhos braçais na reforma do novo lar para receber Vanja. A procrastinação para a escrita aos poucos se desvanece, e até se isola da esposa grávida para confeccionar um grande trabalho, cujo prazo para envio da versão final expirava. Esse trabalho viria a lhe credenciar maior reconhecimento na escrita, abrindo as portas para a posterior redação de Minha luta.

Mesmo na consumação da paternidade, traços de sua neurose ainda se fazem presentes. Para ilustrar esse ponto, basta trazer algumas de suas posturas ante Vanja, como a obsessão pela limpeza da filha na hora de comer — uma característica de seu pai no tratamento com os filhos que o autor deixa bastante demarcado.

Interessante como, à leitura da obra, nota-se exatamente o preceito assinalado por Gazolla, quando enuncia o teatro do obsessivo que roteiriza, dirige, assina a cenografia, atua, ilumina e assiste ao seu próprio espetáculo. O Pai simbólico de Knausgard permanece mesmo após a sua morte, que, em seu primeiro livro, da maneira como foi descrita, funciona como um modo de edulcorar a sua tirania. O totem, na configuração enunciada por Freud, ali permanece, castrando-o. Uma castração apenas amenizada pela paternidade, ao transferir a sua libido para a produção literária, abrindo caminho para a execução da escrita. Após a paternidade, até mesmo trabalhos julgados como enfadonhos e difíceis, como o de revisão de tradução, tornam-se toleráveis e prazerosos, segundo os dizeres do próprio autor.

Diante disso, a remissão à sua infância e adolescência, no terceiro volume, se dá de uma forma muito mais amena ao permitir a aproximação com a arte (KNAUSGARD, 2015b). Aqui não se trata mais de desabafo, tal como no primeiro volume de Minha luta. Knausgard escreve sobre a escrita e sua vida como escritor, outrora cerceado pela figura do Pai (KNAUSGARD, 2017).

Se, como diz Lacan (1966/2021), o obsessivo compensa a degradação do pai ao buscar preencher o buraco simbólico por ele deixado com o mito, com a fantasia, pode-se dizer que Knausgard segue essa trilha com a sua escrita. Em Homem dos ratos, conjuga-se a imagem narcísica com o real difícil de suportar. O paciente de Freud fica, então, preso às circunstâncias de sua própria fantasia, em que seu pai é sustentado em um lugar inalcançável (FREUD, 1909/2020). Minha luta poderia seguir o mesmo caminho se se permanecesse apenas na triste morte do pai. Entretanto, Knausgard vai por outra direção por meio da paternidade. O desejo de ser pai é manifestado em sua primeira noite com Linda, insinuando uma saída de seu lugar de vigiado, julgado pelo Pai (KNAUSGARD, 2014, 2015a).

Nem de longe deseja-se esgotar essa temática. A ideia fundamental é a de apresentar contribuições que possam direcionar a uma discussão mais profunda sobre a paternidade e o lugar por ela ocupado na psicanálise. Tomou-se, aqui, a neurose obsessiva como referência.

 


Referências 
FREUD, Sigmund. (1924). A dissolução do complexo de Édipo. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 16. Companhia das Letras, São Paulo, 2018.
FREUD, Sigmund. (1912-1913). Totem e tabu. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11. Companhia das Letras, São Paulo, 2019a.
FREUD, Sigmund. (1920). Além do princípio do prazer. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 14. Companhia das Letras, São Paulo, 2019b.
FREUD, Sigmund. (1909). Observações sobre um caso de neurose obsessiva (“O homem dos ratos”, 1909). In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 9. Companhia das Letras, São Paulo, 2020.
GAZZOLA, Luiz Renato. Estratégias na neurose obsessiva. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2015.
KNAUSGARD, Karl Ove. Um outro amor. Companhia das Letras, São Paulo, 2014.
KNAUSGARD, Karl Ove. A morte do pai. Companhia das Letras, São Paulo, 2015a.
KNAUSGARD, Karl Ove. A ilha da infância. Companhia das Letras, São Paulo, 2015b.
KNAUSGARD, Karl Ove. A descoberta da escrita. Companhia das Letras, São Paulo, 2017.
LACAN, Jacques. (1957-1958). Os três tempos do Édipo. In: LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
LACAN, Jacques. (1966). De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses. In: LACAN, Jacques. Escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2021.



Modos de presença1

Florencia F. C. Shanahan
Psicanalista, A.P. da NLS/AMP
florenciashanahan@gmail.com

 

Resumo: A autora levanta algumas questões, a partir de sua própria experiência, sobre os modos de presença em uma análise, apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona se haveria um final de análise caso assim permanecesse.

Palavras-chave: presença; analista; fim de análise; virtual.

MODES OF PRESENCE 

Abstract: In this essay the author questions, through her own experience, the modes of presence in an analysis, while recognizing that the online sessions were very important for her. However, she questions if there would’ve been an end of analysis had it continued to be virtual.

Keywords: presence; analyst; end of analysis; virtual.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Penso que a análise não é um quebra-cabeça, mas um mosaico, feito não de peças preexistentes para as quais haveria um lugar predeterminado e cuja disposição daria uma forma toda bem-feita, mas de peças, tesselas que vão cortando, encontrando, descartando ou tirando do outro na transferência, compondo um quadro que não se completa, mesmo que esteja acabado.

Vou tentar dizer algumas coisas. Podem às vezes ser contraditórias. Não respondem a nenhuma pergunta geral. Tampouco, creio eu, se prestam a qualquer dedução. São pequenos fragmentos que emergem no tempo de elaboração em que me encontro. Eles encontrarão um lugar no mosaico que continua a ser criado após o passe.

Meu primeiro analista nunca teve meus dados: nem endereço postal, nem número de telefone. Muitas vezes fantasiei que desaparecia e que ele não poderia me contatar, não saberia onde me procurar, se perguntaria se eu havia morrido. Por quase oito anos assisti religiosamente às sessões de tempo fixo. A três quarteirões de onde morava. Quarenta e cinco minutos. Um enquadramento ritualizado que alimentava meu já excessivo supereu e que mortificava meu corpo. O silêncio e a quietude do analista muitas vezes me deixavam à mercê do mutismo pulsional do qual me tornei parceira. Aprendi ali que o sentido não se engorda apenas com palavras.

O analista que me permitiu sair disso — e encontrar um fim lógico para a experiência do inconsciente do qual sou sujeito — se mexia muito. Ele também falava muito pouco, mas movia seu corpo constantemente. Cortava pedaços de papel freneticamente ou digitava forte no teclado. Ele atendia ligações durante as sessões, às vezes resmungava coisas. Ali aprendi que o silêncio não era do Outro.

Eu poderia ter continuado a seguir a vida se ele não tivesse me atendido por telefone todos os dias quando minha mãe e meu irmão morreram inesperadamente? Não sei.

Poderia ter ido ao encontro do bom furo se ele não tivesse me atendido por Skype, sustentando o olhar na tela, diariamente, por mais de um mês, durante a travessia pela angústia mais radical no tempo da destituição subjetiva que deu passagem ao final? Não acredito.

No entanto, acredito que minha análise não poderia ter concluído se tivesse sido “virtual”. Especialmente porque o impulso de sair surgiu, como relatei em meu primeiro testemunho, a partir do momento em que deixei meu isqueiro no divã. Sem dúvida, isso não poderia ter acontecido em uma sessão telefônica ou por chamada de vídeo. Aquele pequeno objeto que fica para trás imprime a urgência que me faz pegar um avião para voltar; e abre a porta da última sessão. A voz como objeto, como entrou em jogo em minha análise — em sua extração e incorporação — não é de forma alguma a voz da comunicação. Sobre isso tentarei avançar em meu próximo escrito.

Sem dúvida, a prática on-line ou por telefone existe. É um fato. Que estatuto tem? As questões que derivam disso dizem respeito à psicanálise como tal, e não apenas a que circunstâncias atuais elas nos confrontam.

Acho que se trata, sobretudo, de encontrar posições na enunciação que vão na direção do que Lacan chamou de bem-dizer e contra as posições que a neurose está sempre pronta a alimentar: buscar explicações para o que se faz ou deixa de fazer; tentar obter do Outro a validação do que se faz ou não; forçar os pinos a entrar nos buraquinhos para acomodar o real à realidade…

Trata-se de não se preparar muito rápido para dizer o que é psicanálise e o que não é, ignorando a implicação de um desejo singular na base de cada ato que, como tal, não tem garantia. Trata-se de não se sustentar, na tradição, os significantes congelados na boca da autoridade ou o saber morto do que já foi dito, com a ilusão de proteger a psicanálise de sua degradação fantasiada.

Obviamente, quando se trata de justificar a prática em si como meio de subsistência2, ou sua permanência no mercado como mais um dos objetos oferecidos para consumo, aí o problema é outro. E diz respeito à formação do analista.
Tradução: Rodrigo Almeida

Revisão: Cecília Batista

 


1. Texto originalmente publicado em: https://zadigespana.com/2020/04/11/coronavirus-modos-de-la-presencia/.

2. Pergunta feita por Lacan em seu último texto escrito, “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567.

 

 




Sylvia Plath: uma escrita para “O caos da experiência”

Isadora Saraiva Vianna de Resende Urbano
Graduada em Estudos Literários e Mestra em
Teoria da Literatura Comparada pela UFMG
isaresendeurbano@gmail.com

Resumo: Este artigo discute o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta Sylvia Plath (1932-1963). Partindo de trechos de seus diários, cartas e poemas, além do romance A redoma de vidro, procuramos investigar as dimensões que a escrita assumiu na vida da autora. Destacadamente, pontuamos que Plath se valia da escrita como um modo de buscar se fazer amar e de organizar o que nomeava como “o caos da experiência”, numa tentativa de sinthoma que funcionou bem o bastante por muito tempo, mas que, a dada altura, mostrou-se uma saída insuficiente para que Plath sustentasse o desejo de viver.

Palavras-chave: Sylvia Plath; escrita; sinthoma.

SYLVIA PLATH: A WRITING FOR “THE CHAOS OF EXPERIENCE”

Abstract: This article discusses the role of writing as a psychic support for the poet Sylvia Plath (1932-1963). Starting from excerpts from her diariesletters and poems, as well as the novel The bell jarwe seek to investigate the dimensions that writing assumed in the author’s lifeNotablywe point out that Plath used writing as a way of trying to make herself loved andalsoof organizing what she called “the chaos of experience”, in an attempt of making a sinthomethat worked well enough for a long time, but eventuallyproved to be an insufficient way for Plath to sustain the desire to live.

Keywords: Sylvia Plath; writingsinthome.

 

CAROLINA BOTURA. EX-DEUS

 

No Seminário 23, O sinthoma, Lacan nos diz que “uma escrita é (…) um fazer que dá suporte ao pensamento” (LACAN, 2007, p. 140). Pouco à frente, acrescenta: “As pessoas escrevem suas recordações de infância. Isso tem consequências. É a passagem de uma escrita para outra escrita” (ibid., p. 143). A passagem de uma escrita para outra escrita, nesse contexto, é algo que podemos ler como a passagem de uma escrita no corpo para uma escrita textual, por meio da qual registramos nossas impressões e as tornamos legíveis para outras pessoas, e também para nós mesmos.

Escrever suas recordações, como afirma Lacan, certamente tem consequências. No caso de James Joyce, por exemplo, Lacan afirma que a escrita é essencial a seu ego, possibilitando a amarração do nó que rateia na tríade R.S.I. Mas para além do caso Joyce, há um sem-número de pessoas que se apoiam no recurso à escrita e fazem dela algo importante em termos psíquicos. Algumas vezes, essa escrita pode alcançar algo de íntimo e quiçá vital para aquele que escreve, para além de qualquer valor prático ou literário que possa vir a ter. Nesse campo, uma escrita pode, por exemplo, dar corpo aos pensamentos, dar destino ao fluxo de ideias, aquietar a ânsia de dizer, dar consistência às próprias palavras, permitir que algo seja esquecido sem que caia de vez no esquecimento, elaborar, expurgar, etc., o que equivale a dizer que uma escrita pode ter o lugar de uma invenção, uma forma criativa de lidar com os temas que nos tocam, que pode alcançar efeitos terapêuticos ou não, e que, em todo caso, não substitui uma análise, mas pode aparecer como uma estratégia suplementar para lidar com a experiência¹.

Para explorar essas questões, das funções e efeitos de uma escrita, proponho passarmos ao caso concreto e ilustrativo de Sylvia Plath e sua relação particular com as práticas da letra, a partir dos materiais deixados em seu romance, poemas, diários e cartas. Não se trata absolutamente de fazer uma análise de Plath a partir da sua escrita, mas de verificar como essa escrita foi apropriada por ela e que lugares pôde ocupar em sua vida psíquica.  

Sylvia: vida & obra, ou vida-obra

Em um dos poemas de sua juventude, escrito em 1948, o eu-poético de Sylvia Plath responde a questões colocadas por um interlocutor indefinido acerca de sua relação com a escrita:

You ask me why I spend my life writing?

Do I find entertainment?

Is it worthwhile?

Above all, does it pay?

If not, then, is there a reason? …

 

I write only because

There is a voice within me

That will not be still.

                               (PLATH, 2011, s/p)

Diante dessa voz inquieta, a jovem Sylvia procura na escrita uma saída para apaziguar uma angústia, como nos sugerem os três últimos versos do poema, que indicam que a escrita é tanto consequência dessa voz como solução provisória para sua inquietude. De fato, a determinação de Sylvia, desde muito cedo, para se tornar uma escritora, nos mostra a importância que dava a essa atividade: mais que um hobby ou uma fonte de renda, Sylvia se valia da escrita como um modo de inventar seu eu artístico, que se confunde com seu eu pessoal, e descobrir uma voz própria. Mas não devemos idealizar: se a escrita, por um lado, podia lhe dar um senso de identidade e uma preciosa ferramenta de elaboração, por outro lado, a preocupação com a qualidade literária dessa escrita, atrelada imaginariamente ao seu valor pessoal, também era uma das suas grandes angústias, como ela escreve, em 1951, em seu diário:

Posso escrever? Conseguirei escrever se me dedicar o suficiente? Quanta coisa preciso sacrificar para poder escrever, de todo modo, até descobrir se sou mesmo boa? Acima de tudo, PODE UMA MULHER SEM IMAGINAÇÃO, EGOÍSTA, EGOCÊNTRICA E INVEJOSA ESCREVER QUALQUER COISA QUE VALHA A PENA? (PLATH, 2017, p. 121).

Dois anos depois, Sylvia foi escolhida para um estágio em Nova York, onde seria editora convidada da revista Mademoiselle. Em agosto, de volta a casa, tentou cometer suicídio, mas foi encontrada ainda com vida e pôde ser salva. Depois disso, foi internada temporariamente no hospital psiquiátrico McLean, onde conheceu a psiquiatra Ruth Beuscher, com quem manteve contato até o fim de sua vida. É dessa experiência traumática que Sylvia se apossou para escrever, quase dez anos depois, aquele que seria seu primeiro e único romance, A redoma de vidro.

É difícil dizer em que medida e de que maneiras o trabalho de rememoração realizado durante a escrita de A redoma de vidro teria ocasionado uma revivificação dos afetos ligados a essa experiência. Algumas pistas deixadas por suas cartas, entretanto, sugerem que a ficcionalização dessa época tenha sido experimentada por Sylvia em termos positivos, ainda que imaginemos que revirar esses conteúdos não tenha sido uma tarefa fácil.

No romance, é Esther Greenwood, o alter-ego ficcional de Plath, quem revive a experiência em Nova York e a tentativa de suicídio, após a qual é internada e conhece a dra. Nolan (correspondente de Beuscher), que parece ser a única a ouvi-la e compreendê-la sem condescendência. A importância de Nolan para Esther reflete a dimensão da relação transferencial de Sylvia com Beuscher, que se estenderá muito depois, mesmo após a partida de Sylvia para a Inglaterra, por meio de cartas2. Não por acaso, quando o casamento de Plath e Ted Hughes entrou em crise, foi a Beuscher que Sylvia recorreu como apoio emocional, e foi ela quem lhe recomendou um divórcio “limpo”… e paciência.

Pela transferência, Beuscher ofereceu a Sylvia uma figura materna alternativa à da própria mãe, e pôde suprir parcialmente uma carência afetiva de Sylvia, para quem o amor da mãe parecia insuficiente. Significativamente, a relação de Sylvia com a mãe se mostra intimamente ligada à sua relação com a escrita, como nos mostram seus diários:

POR QUE NÃO SINTO QUE ELA [a mãe] ME AMA? O QUE ESPERO EXATAMENTE QUE SEJA O “AMOR” POR PARTE DELA? O QUE É QUE NÃO RECEBO E ME FAZ CHORAR? Creio que sempre senti que ela me usa como uma extensão de si mesma; que eu, quando cometo suicídio, ou tento, faço com que ela passe “vergonha”, sinta-se acusada. O que é verdade, claro. Trata-se de uma acusação de que seu amor foi ineficaz. (…) Como, gostaria de saber, mamãe entendeu minha tentativa de suicídio? Como resultado da incapacidade de escrever, sem dúvida. Eu achava que não podia escrever porque ela ia se apropriar de tudo. Só isso? Eu sentia que, se não escrevesse, ninguém me aceitaria como ser humano. Escrever, portanto, era um modo de substituir minha personalidade: se você não me ama, ame o que escrevo & me ame por escrever. Há muito mais: um modo de organizar e reorganizar o caos da experiência (PLATH, 2017, p. 519-520).

Nesse trecho, de 1958, Sylvia revela algo da maior importância: sua sensação de não ser suficientemente amada pela mãe, o significado atribuído por ela à sua tentativa de suicídio, e sua tentativa de, pela escrita, se fazer amar e organizar “o caos da experiência”. Nesse sentido, o lugar que a escrita ocupa para Plath é diferente, ainda que tenha pontos de convergência, daquele que ela tinha para escritores como Joyce, para quem escrever foi um modo de constituir um corpo, ou Virginia Woolf, para quem, como escreve Stella Harrison, tratava-se de “venir à bout de la réalité” (HARRISON, 2010, p. 81). Para Plath, por outro lado, a escrita tomou o lugar de uma invenção imprescindível, não exatamente para superar a realidade nem para fazer um corpo, mas para aquietar a voz interior, para ser validada “como ser humano”, para ser amada e para “organizar e reorganizar” (i.e., para elaborar) a experiência.

Além disso, sua escrita também estava ligada à demanda por reconhecimento, como indicam os fatos de ter publicado seus textos, endereçando-os diretamente ao Outro, e ter buscado estabelecer-se na carreira de escritora, procurando uma validação editorial/crítica para sua literatura. Essa demanda, sabemos, se desdobra em demanda de amor, como nos ensina Lacan em seu Seminário 5As formações do inconsciente, em que demonstra que, no limite, aquilo que uma demanda almeja é sempre o amor (LACAN, 1999, p. 418). Com efeito, é por meio da escrita e do reconhecimento que essa escrita poderia lhe trazer que Sylvia buscava se afirmar como merecedora desse amor que, a seu ver, lhe era negado³.

Uma pergunta se impõe: por que, mesmo com o recurso à escrita, Sylvia optou pelo suicídio? Para essa pergunta, tudo o que podemos afirmar é que, com tantos fatores envolvidos4, sua passagem ao ato não pode ser atribuída a um único evento, sendo necessariamente sobredeterminada. Uma segunda observação é que, em todo caso, uma solução criada pelo sujeito pode vir a falhar: não há, nem é possível haver, uma invenção que nos imunize ao sofrimento e que garanta que vá funcionar para sempre. Na verdade, é justo quando o sofrimento aparece que essa solução é colocada à prova, e nem sempre se mostrará suficiente para sustentar um sujeito em meio à angústia, como aconteceu com Plath.

No caso da autora, a escrita parece ter servido como uma tentativa de sinthoma que durante muitos anos atendeu, com menor ou maior sucesso, às suas necessidades de elaboração, mas em dado momento falhou, como qualquer saída pode falhar. Cabe destacar que o fracasso dessa tentativa não é sinal de que a escrita tenha sido o que lhe fez mal e/ou o que a levou ao suicídio: quanto a isso, é impossível fazer uma afirmação categórica, como aponta Luciana Silviano Brandão (2009, p. 72) ao se interrogar sobre a questão dos escritores suicidas e da suposta toxidez da escrita. Fato é que Plath, que andou ao lado da morte durante tantos anos — com a morte de seu pai, na infância, e a tentativa de suicídio ainda na juventude —, tentou se valer da escrita para elaborar essas experiências e o fez, tanto quanto pôde.

Exemplo disso é que, em 1962, Plath havia escrito a Beuscher que já não achava mais que fazia o tipo suicida, mas, na escrita, continuava o trabalho de elaboração, tanto pela rememoração e ficcionalização do tema, em A redoma de vidro, quanto em suas “confissões” poéticas, como no caso do célebre poema Lady Lazarus, em que Plath escreve: “Dying / Is an art, like everything else. / I do it exceptionally well. / I do it so it feels like hell. / I do it so it feels real. / I guess you could say I’ve a call” (PLATH, 2007, p. 62). Fingidas ou não, as ideias suicidas e a glorificação da morte pertencem, em última instância, à autora que as escreveu, e, escrevendo-as, talvez tenha podido até mesmo adiar sua realização factual.

Desse modo, podemos pensar que a escrita forneceu a Sylvia um espaço em que ideias como essas puderam ser trabalhadas e “colocadas para fora”, promovendo algum efeito de catarse, mas sem a intervenção de um Outro que pudesse interrogar essa convicção mortífera anunciada com tanta clareza sob o manto do “fingimento” literário, tecido a sós. Por razões como essa, o processo de elaboração pela via literária pode ser bastante ambíguo, como pontuou Frieda Hughes, filha de Plath, no documentário Sylvia Plath: inside the Bell Jar, produzido pela BBC em 2018:

“I think [that] to give a voice to an experience is like letting go. I always think the words remember it for us, so we don’t have to carry it anymore (…). We can write it all down, let it go. And they’re all out there. And if we ever wan
to be reminded, they’re all there for us because we have made sure they are, but they are all at a distance. Perhaps it can imbue a sense of freedom, but also, I think: ‘This happened to me. It was real’.”

Há casos, porém, em que a escrita de Plath não se debruçou sobre aquilo que havia acontecido com ela, no passado, mas sim sobre o que se apresentava como questão no então presente, como material que demandava análise com urgência. É o caso de seu último poema, Edge, escrito a poucos dias de seu suicídio, que retrospectivamente pode ser lido como antecipação e sinalização de sua passagem ao ato, dado o novo sentido que os versos adquiriram após a sua morte: “The woman is perfected. / Her dead / Body wears the smile of accomplishment (…)” (PLATH, 2007, p. 96). Nesse caso, a elaboração poética, que performou textualmente a satisfação de sua morte, falhou enquanto elaboração “terapêutica”, sendo incapaz de manter a morte no campo do semblante (ou da fantasia?), e sustentar em si, no espaço restrito do simbólico, uma satisfação suficiente para dar outro destino a essa pulsão destrutiva.

De certo modo, foi ao tirar a própria vida que Sylvia completou o poema, o realizou, entrando em continuidade com a sua produção artística e encontrando uma saída para o sofrimento: aquela que, para nós, é, entre todas, a menos desejável, por custar um preço excessivamente alto. Passando do simbólico ao real, Sylvia saltou do campo da escrita para entrar na zona em que a fina matéria viva se desfaz e se torna matéria inerte. Nessa passagem, não parece ter sido a escrita, e sim o silêncio do Outro, a falta do Outro (a falta de amor, mas também a falta de uma escuta, de uma interpretação, de um ato), o abismo em que a poeta se joga, movida pela certeza em sua incapacidade de “ser ela mesma”, de ser amada e de se amar, como escreve em sua última carta. Passando do simbólico ao real do corpo, Plath deslizou do campo dos sentidos para o sem sentido — o que não nos impede de ler nesse ato a mensagem que, com sua morte, nos convocou a ouvir.

 

 


Referências
BRANDÃO, L. S. Rememoração e reminiscência em De amor e trevas de Amós Oz. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.
HARRISON, S. Virginia Woolf, bataille vers un sinthome. Quarto, n. 97, junho, 2010, p. 79-82.
LACAN, J. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. (Trad. Sérgio Laia). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
PLATH, S. A redoma de vidro. (Trad. Chico Mattoso). São Paulo: Mediafashion, 2016.
PLATH, S. Letters Home. Aurelia Schober Plath (Ed.) Londres: Faber & Faber, 2011. Edição Kindle.
PLATH, S. Os diários de Sylvia Plath: 1950-1962. Org. Karen V. Kukil. (Trad. Celso Nogueira). 2ª ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
PLATH, S. Poemas. (Trad. Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça). 2ª edição. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 127-138
PLATH, S. The letters of Sylvia Plath. Volume II: 1956–1963. Faber & Faber, 2018. Edição Kindle.
SYLVIA Plath: inside The Bell Jar. Dir. Teresa Griffiths. Londres: BBC, 2018. Documentário, 59 min.

1. Porque a escrita, nesse sentido, é uma invenção individual, que servirá bem para alguns, mas não para todos. Além disso, porque ela não conta com a presença de um analista que possa interpretar e atuar com relação ao que se produziu. Sem a presença do analista, o sujeito pode chegar perto, talvez, do que se alcançaria com uma “auto análise”, mas não muito mais que isso. Isso não quer dizer que se deva entender a escrita como uma estratégia prejudicial para o sujeito, nem é justo rotular como “precária” a forma que os sujeitos elegem como seu suporte psíquico, embora, como qualquer saída, ela possa falhar. Afinal, frente à contingência, não há nenhuma garantia. À diferença de uma análise, entretanto, quando a escrita falha, não há mais ninguém ali para evitar que o sujeito se quebre. 
2. Em 1962, quando seu casamento entra em crise, Sylvia tenta fazer dessas cartas um substituto para as sessões de psiquiatria que, por razões financeiras e geográficas, eram inviáveis. Ela chega a implorar a Beuscher que lhe cobre pelas cartas que escrevesse, o que sublinha o estatuto que Sylvia conferiu a esses escritos. 
3. Embora não o diga em termos tão diretos quanto faz em relação à mãe, a própria relação de Sylvia com o marido também passava pela escrita. Ela menciona em seus diários a atração intelectual e admiração que sentia por ele como poeta, e nesse sentido, chama a atenção que Sylvia tenha escolhido em um parceiro marcado pelos significantes “poeta” e “leitor” alguém que pudesse se ligar a ela pelo amor às letras, que ambos compartilhavam, a despeito dos rumos que a relação tomou ao final. 
4. Por exemplo, o divórcio, o sentimento de humilhação, a precariedade da assistência especializada (lembrando que nesses meses Sylvia e Beuscher trocaram cartas, mas não se encontraram), a insegurança financeira, a infraestrutura precária do apartamento em Londres, as dificuldades diante da expectativa de se tornar mãe “solo”, a recepção abaixo da esperada de seu romance, a demissão recente da mãe, o medo de ser internada novamente, a tentativa prévia de suicídio como agravante, etc. 



Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat
Psicanalista, doutora pelo Programa
de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ
clarisse.boechat@gmail.com

 

Resumo: Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época.

Palavras-chave: Psicanálise; presença; ruas; errância.

ABOUT A CERTAIN PRESENCE OF PSYCHOANALYSIS IN THE STREETS

Abstract: In this text, I return to questions that emerged from the experience of working on the streets of the city of Rio de Janeiro, between 2012 and 2019, and the lessons I was able to extract from that. Highlighting especially the wandering that the streets showed me as one of the names of the real of our time. From that, it was possible to locate and point out what, for each one, worked as guidance, as well as sustain our bet on the “errant methods” of those I have met. The work turned out to be a learning experience, coinciding with what I also find in my, more traditional, clinical practice. Whether in the office or on the streets, wandering seems to present itself as a privileged mode of operation in times when the Name-of-theFather no longer serves as the main highway. As we live in a wandering world, the patients who come to us in our offices are also taken by their own wanderings and atypical solutions, as a symptom of our time.

Keywords: Psychoanalysis; presence; streetswandering.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Retomo, neste texto, questões que começaram a surgir a partir do trabalho iniciado em 2012, como psicóloga do Consultório na Rua do Centro do Rio de Janeiro. A primeira delas tornou-se mais consistente no título de minha tese de doutorado1: “Quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?”. Para respondê-la procurei localizar o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico. Em outros termos, considerando as grandes diferenças entre os encontros que aconteciam nas ruas e uma experiência de análise, qual é a pertinência do interesse da psicanálise em relação a um campo, à primeira vista, tão distinto daquele das análises tradicionais? As experiências de errância das ruas nos ensinariam sobre a abordagem psicanalítica dos sintomas ou é muito mais a experiência com essa abordagem que pode orientar nossas intervenções nas ruas?

Tais questões se endereçaram ao Núcleo de Pesquisa “Práticas da Letra”, ligado ao Instituto de Clínica Psicanalítica da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio. A pesquisa do núcleo, coordenado à época por Ana Lucia Lutterbach-Holck, interrogava os “usos possíveis da psicanálise na cidade”, convocando-a a se fazer presente “nas ruas, de portas abertas a quem possa interessar testemunhar sua experiência” (LUTTERBACH-HOLCK, 2014, p. 43). Dessa aproximação surgiu, num segundo tempo, o ateliê “Escreve-se história”, que funcionou semanalmente em frente à Central do Brasil, entre 2014 e 2019, permitindo-nos estar em contato com o que me parece possível considerar como a presença do real na cidade.

Nesse ateliê, uma dupla de psicanalistas se colocava em uma calçada próxima a essa Central, sob o anúncio “Escreve-se história”, com um banquinho reservado a quem se aproximasse. A este, dizíamos algo como “caso queira nos contar uma história, podemos escrevê-la e entregá-la, ao final, para você”. Enquanto o primeiro integrante da dupla se oferecia como destinatário, ouvindo a história, o segundo operava como uma espécie de “escrevente” e, em silêncio, registrava os pontos que se destacavam quando um pedestre tomava a posição de narrador de sua experiência. Ao fim, oferecíamos o original, ficávamos com uma cópia do material e, caso houvesse interesse, dávamos um cartão com data e horário do próximo encontro.

Ofertávamos a escuta e a escrita daquilo que, na abertura ao imprevisto, em uma fala, se precipita, ressoa, causados pelo desejo de ler a cidade de nosso tempo, inventando formas de ocupá-la. Contudo, essa ocupação das ruas, embora tivesse como bússola a psicanálise, não deu margem a experiências que pudessem ser chamadas de análise. Do ponto de vista mais formal, que tampouco demarca o que é uma análise, havia uma radicalidade no despojamento do setting. Os atendimentos eram feitos em meio a carros e transeuntes; não havia pagamento nem como recolhermos os efeitos do só-depois — pois muitas vezes o depois não existia, devido ao trânsito mesmo daqueles com os quais pontualmente nos encontrávamos.

A oferta de escuta e registro das histórias que alguns teriam a nos contar foi o ponto de partida para que pudessem, cada qual a seu modo, e de formas muito distintas, servir-se daquela espécie de trabalho de “edição” que fazíamos sobre o que nos ressoava como orientação. Tanto o “ouvinte” das histórias quanto seu “escrevente” tinham a função de “editar” o “texto” que nos era endereçado. Por vezes, tal “edição” consistia em apontar o que se esboçava como uma localização subjetiva; em outras, havia a tentativa de instauração de um espaçamento mínimo, localizando frestas que furassem a consistência de um Outro invasivo, permitindo-nos apostas nas possibilidades de uma extração de algo perturbador; e ainda, em certas ocasiões, visávamos aos significantes que indicavam uma modalidade de gozo, seja pela possibilidade de ela se constituir como ancoragem, seja pela aposta de promover algum descolamento. Buscávamos extrair, da errância, uma leitura, na medida em que pudéssemos seguir o fio daquelas andanças, nos constituindo como lugar de endereçamento e, a partir daí, víamos se era possível apostar na localização de um fio, por vezes roto e puído, daquelas histórias.

Certa vez, perguntei a uma mulher o seu nome, ao que, de uma só vez, respondeu: “Maria da Silva. Vim do Maranhão depois que me tiraram à força pra fazer sexo. Minha irmã não conseguiu fazer nada (chora). Meu irmão mais velho morreu cortado pra me defender”. Interrogo: “Como você se virou?”. Ela diz: “Tomando distância. Porque eu meto a faca, se eu voltar é pra matar ou morrer”. Em casos assim, tentávamos recolher algo que funcionasse como uma espécie de orientação vital. Digo a ela: “sua vinda foi uma aposta na vida”, apontando, mesmo diante do horror, para a dimensão vivificante dessa escolha que se impôs.

Era recorrente que aquelas histórias fizessem referência a um antes e um depois de acontecimentos que desfizeram arranjos com os quais seus narradores se sustentavam, deixando-os sem uma rede de proteção e expostos à queda de identificações que os ligavam ao Outro, que os inseriam no laço social, levando-os, com certa frequência, a desmoronar feito um castelo de cartas diante do sopro de uma infeliz contingência. Acontecimentos dessa natureza parecem apontar para o furo de um real traumático, frente ao qual a rua responde como espaço para a errância.

Tocar em amarrações tão vitais requer um manejo delicado para, por exemplo, não destacar uma identificação mortífera, abrir buracos em estradas acidentadas demais, sob o risco de interditá-las. Diante de tamanhas devastações, estávamos atentos ao que despontava como recurso, orientação, extraindo os “pontos cardeais” que o “escrevente” tomava como norteadores naquelas histórias. O que chamamos de “pontos cardeais” são os arranjos e soluções que apostávamos fazer a função de ancoragem diante daquilo que, para cada um, apresentava-se como deriva: pequenas bússolas que operassem como orientação.

Em “O exílio e a identificação”, Cristiane Alberti aborda questões relativas ao exílio estrutural do falasser em relação à linguagem, mas também quanto à perspectiva mais radical do exílio, que nos chamou a atenção pela proximidade com o que as ruas apresentam: “Destaquemos aqui que alguns sujeitos estão sempre fora de, jamais em casa, um exílio existencial, nenhum lugar, parte alguma” (ALBERTI, C., 2020, n.p.). Entendemos que “nenhum lugar”, “parte alguma” apontam para uma metonímia incessante, marca do que não se localiza, excesso de extravio. O que chamamos de errância relaciona-se a essa deriva pulsional, em que o circuito da fantasia, a formalização de um sintoma, ou mesmo a consistência de um delírio, não se apresentam de forma tão localizável.

A errância no ensino de Lacan não possui o estatuto de um conceito nem é um tema recorrente em seus seminários. Mas podemos nos ater aqui à menção que lhe é feita no título de seu Seminário 21: les non-dupes errent, que joga com a homofonia que remete tanto aos “não-tolos erram” quanto à pluralização de “Os Nomes-do-Pai”, apontando para as soluções atípicas que um sujeito pode lançar mão para se virar na vida. A temática da errância, tal como Lacan a esboça ali (1973-74, inédito), pode constituir-se como fio condutor de uma clínica que precisa se haver com impasses e soluções surgidas quando o Nome-do-Pai não se faz estrada principal que orienta os caminhos. Ao contrário, na errância há a iteração insistente do Um do gozo desarticulado de um itinerário ou mesmo do que pode se apresentar como montagem da pulsão.

Tal errância se traduz como certo “desenraizamento” e nos evidencia o que se passa quando um sujeito perde o que poderia ter-lhe sido referenciais, vendo-se ultrapassado pela iteração do Um do gozo, sem sentido. Os não-tolos, segundo Lacan, são aqueles que se apresentam como errantes, porque se fixariam à pretensão de seguir sempre a direção inequívoca que a iteração comporta, ou mesmo nos mandamentos provenientes do supereu e nas rotas determinadas pelo Nome-do-Pai.

Fernanda Otoni-Brisset, em “O povo e a peste”, testemunha, de sua prática na rede pública “junto a pessoas sem renda, sem documentos, sem trabalho, sem família, sem teto, sem lei, sem razão, sem muita coisa” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.), e situa que eles têm muito a dizer quando encontram um analista: “Diria que portam sem saber, um saber que não é suposto. Um saber a forçar suas escolhas, de forma irrecusável” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.). Otoni parece também se encontrar com o que nomeamos como a dimensão da iteração presente na errância, que, em seu texto, tender-se-ia a localizar como “esse saber a forçar suas escolhas” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.).

Eis o desafio: como nos incluirmos como destinatários do endereçamento de um saber que se sabe sozinho, que não é suposto? Diante da dimensão implacável da iteração do gozo descolada da suposição de saber no Outro, cabe, ao analista, a aposta de fazer incluir nesses circuitos, a fim de se constituir como parceiro, por exemplo, na relação com o gozo opaco do Um, que itera, instaurando uma modesta margem de manobra a partir do saber que se recolhe.

Quando Claudionor pergunta meu nome e lhe respondo “Clarisse”, ele observa: “Olha! 2 C: Claudionor e Clarisse”. Em seguida, diz que gostaria de escrever um livro com dedicatória para 3 K. Destaco: “Você gosta de letras!”. Ele diz que sim, me mostra uma tatuagem com o 3K, explicando se tratar da inicial dos nomes das três filhas. A letra K surgiu quando aguardava o nascimento de sua primeira filha na maternidade, ao ler uma revista em quadrinhos em que tinha uma mulher chamada Kelly: “Fiquei com o K e escolhi o nome de Késia pra ela”. Ou seja, esse K ele extrai no momento do nascimento de sua primeira filha, parindo um significante que lhe permitiu ser pai. Desse K, retirado da revista, partirão os nomes das demais filhas: Késia, Keyla, Kamile — 3K. O que recolhemos dos encontros, que duraram cerca de um ano, nos ensina sobre o uso sinthomático do 3K, invenção marcada pela tolice de se deixar guiar por essa espécie de Um sozinho, que lhe orienta a deriva, a lógica de sua errância, funcionando à semelhança de um itinerário.

Seguíamos aqueles sujeitos em seu ir-e-vir, às vezes sem rumo, buscando fazer ressoarem as formas pelas quais eles poderiam se valer de seus próprios arranjos, inventando ou aprimorando modos de lidar com o gozo que itera sempre em suas derivas.

Jacques-Allain Miller, em O parceiro sintoma (2008), considera o sinthoma, no último Lacan, como uma construção que envolve uma parte de gozo solta e uma parte de gozo apreendido no âmbito do discurso. Nessa dimensão sinthomática, os itinerários, as montagens, podem ser variados — são formas de dar lugar à errância inerente ao gozo, que é sempre singular.

Ao nos fazermos presentes nas ruas, com a psicanálise, nos acostamentos e “quebradas”, no burburinho caótico da cidade, às margens da rodovia do Nome-do-Pai, aprendemos a garimpar os “pontos cardeais” que podem fazer as vezes de caminhos, conforme Sérgio Laia nos indica mostrando que as errâncias possuem seus próprios métodos sinthomáticos. Fora da estrada principal, mas também não deixando os falasseres imersos na solidão do Um-sozinho, podemos encontrar invenções marcadas por esse norteamento de se fazer tolo de um real, para que se possa dar outro lugar a um gozo que é errante e próprio de cada um. Nos casos que acompanhamos, buscamos situar nossa aposta quanto a um norteamento, ainda que esse trabalho não tenha passado, necessariamente, pela construção da fantasia ou de uma estabilização via construção delirante. Esse norteamento pôde, em alguns casos, fazer as vezes de um itinerário, acolhendo a errância do gozo em vez de pretender, em vão, contê-la. Essa era a parceria a que nos oferecíamos: seguir os indícios — que, com o Lacan do Seminário, livro 23, podemos situar como sinthomáticos — daqueles sujeitos que se endereçavam a nós para que lhes escrevêssemos suas histórias errantes.

Seja nas ruas, seja no consultório, a psicanálise se vale dos desarranjos da rotina; é nessa lacuna que relampeja o que mostra a efetividade do discurso analítico em sua via de extrair, onde quer que ele se aplique, enunciações com efeitos de verdade, ancoragens, deslocamentos, leituras, enfim. Também no consultório testemunhamos do mal-estar próprio ao nosso tempo, da iteração do gozo mais além de qualquer enquadre ou norma, quando a estrada principal do Nome-do-Pai já não faz mais tanto as vezes da grande rodovia.

Então, abordamos a errância como um dos nomes do real que as ruas, ao mesmo tempo, acolhem e dispersam, mas, na medida em que vivemos em um mundo errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são também tomados por suas próprias errâncias, como um sintoma de nossa época. A errância diz respeito ao que, do gozo, não se normatiza nem se normaliza, não sendo propriamente específica da neurose ou da psicose, embora possa ser mais disruptiva nos contextos em que o Nome-do-Pai não faz as vezes de norteador.

Em A sociedade do sintoma, Éric Laurent propõe que, “quando o laço se rompe, a cidade se torna o império do vazio, escavado pela escritura, gozo fora do sentido que circula na cidade” (2007, p. 110). As ruas são labirintos por onde o extravio do gozo circula, mas onde ele também se enlaça em arranjos muito singulares, como pude verificar em minha experiência de alcançar as ruas com a psicanálise. Essa presença permitiu-nos testemunhar as formas pelas quais o mais singular de um gozo, que, muitas vezes, dá lugar à segregação, pôde se relançar e até encontrar algum lugar no coletivo em uma renovada, embora muitas vezes lábil, forma de laço social dessegregativo (LAIA, 2020). Um laço que, intermitentemente, pode se enganchar e se desconectar do Outro, compondo diferentes soluções provisórias. Nas ruas ou no consultório, nossa tarefa consiste em instalar pequenas brechas porosas à passagem das operações singulares de cada sujeito, que portam a vitalidade de uma ação psicanalítica extensiva ao campo social. Situado na conjunção entre a clínica e a política, o analista tem como incumbência apostar na emergência da diferença, na abordagem dessegregativa do gozo errante, na diversi-cidade dos laços, tornando-se “aquele que segue” as soluções atípicas (LAURENT, 2018).

 


Referências:
ALBERTI, C. O exílio e a identificação. Disponível em: https://ebp.org.br/rj/2020/10/19/o-exilio-e-a-identificacao/. Último acesso em 09/04/2021.
LACAN, J. (1973-74). O seminário, livro 21: les non dupes-errent. Inédito.
LACAN, J. (1975-76). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAIA, S. O ventríloquo e a biruta analítica: das versões do corpo falante… no momento de conclui. In: Curinga. Nº 49, 2020.
LAURENT, É. A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. In: Opção Lacaniana. Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, n. 79. São Paulo, 2018.
LUTTERBACH-HOCLK, A. L. Sobre o método e o objeto. In: LUTTERBACH-HOLCK, A. L.; GROVA, T. [orgs.] Ao pé da letra: leituras e escrituras na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Subversos, 2014.
MILLER, J-A. Le partenaire-síntoma. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
OTONI-BRISSET, F. O. O povo e a peste. Disponível em: http://lalibertaddepluma.org/fernanda-otoni- brisset-o-povo-e-a-peste/. Último acesso em: 09/04/2021.

1. Tese defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2020, que teve como orientadores Heloisa Caldas e Sérgio Laia.



O grito silencioso: o corpo da criança na clínica da civilização1

Alessandra Thomaz Rocha
Psicanalista, doutora em psicanálise pela UFMG, membro da EBP/AMP
aless.thz@hotmail.com

 

Resumo: O texto trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças. Para isso, a autora aborda a questão do grito em Lacan e localiza a questão do silêncio e sua importância na psicanálise. Articula-os um ao outro e à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

Palavras-chave: Silêncio; grito; criança; acontecimento de corpo; falasser

THE SILENT SCREAM: THE CHILD’S BODY IN THE CLINIC OF CIVILIZATION

Abstract: The text deals with the silent scream issue from the point of view of the political body event from the perspective of the psychoanalytic clinic with children. For this, the author addresses the issue of screaming in Lacan and also locates the issue of silence in Lacan and its importance in psychoanalysis. She articulates them to each other and to the clinic of the parlêtre based on the event of the political body, considering that there is no clinic of the subject without a clinic of civilization.

Key words: Silence; scream; child; body event; parlêtre.

 

CAROLINA BOTURA. IO

 

Como se articulam grito e silêncio? Qual é a relação da criança com seu corpo e o com o gozo, que dele escapa? Qual é o lugar do corpo da criança na clínica da civilização? Para tratar desse assunto, faremos inicialmente uma abordagem sobre o grito a partir de Lacan e, em seguida, sobre o silêncio, para depois articulá-lo à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

O grito

Lacan evoca o grito para falar do silêncio no Seminário 12: problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965, inédito), fazendo circular na sala uma reprodução do célebre quadro de Edward Munch “O grito” (1893). Ele comenta que não encontrou imagem melhor para falar do silêncio do que essa. Menciona o ser que aparece, que tem o aspecto estranho e que não se pode dizer sexuado. Esse ser que

“tapa as orelhas, escancara a boca: ele grita. O que é esse grito? Quem ouviria esse grito que não ouvimos? Se não que ele impõe esse reinado do silêncio […]. Literalmente, o grito parece provocar o silêncio e, aí se abolindo, é sensível que ele o causa, ele o faz surgir, ele lhe permite manter a nota. É o grito que o sustenta, e não o silêncio ao grito” (LACAN, 1964-65, p. 217).

“O grito é uma pura enunciação, o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas” (LAURENT, 2016, p. 210-211). Assim, o silêncio não está fora da linguagem, já que não é anterior ao grito, mas, ao contrário, é o grito que funda o silêncio. Logo, não há silêncio sem grito, pois, como nos afirma Lacan, “O grito faz o abismo onde o silêncio se aloja” (LACAN, 1964-1965, p. 217). O grito é a expressão primitiva e indiferenciada do recém-nascido, que, por estar fora do sentido, convoca seu outro primordial a um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Sob a forma de choro da criança, o grito é transformado em demanda. Para Freud, a primeira experiência de satisfação, por ser inédita, é também irrecuperável enquanto tal. Ela estabelece tanto uma expectativa e uma procura por satisfação quanto uma impossibilidade de reencontro do objeto dessa satisfação, para sempre perdido, constituindo um vazio contínuo e constante para o sujeito, que nenhum objeto substituto pode preencher. Lacan se refere à pausa do silêncio na música como um saber fazer do músico, que é tão essencial quanto uma nota sustentada, e se pergunta se só poderíamos pensar no silêncio como suspensão da palavra.

Taceo não é sileo

Ainda nesse mesmo seminário (1964-1965), Lacan nos remete a duas formas do silêncio, utilizando os termos em latim. Define taceo como a dimensão do silêncio que é aquela da palavra não-dita, enquanto sileo seria um silêncio fundante, estruturante, que aponta para uma ausência essencial da palavra, isto é, um buraco de significação, uma impossibilidade de simbolização (LACAN, 1964-1965) que seria, em última instância, a própria morte. Roland Barthes, em O neutro (2003), referindo-se à língua clássica, também faz uso desses dois termos em latim para abordar o silêncio. Define Sileo como o que remete a uma ausência de movimento e de ruído, uma espécie de pureza atemporal das coisas que existe antes de elas nascerem ou depois de elas desaparecerem; e taceo como o que diz respeito a um calar-se, a um deixar de falar, isto é, um silêncio verbal.

Lacan salienta que “O silêncio forma um laço, um nó fechado entre algo que é um entendimento e algo que, falando ou não, é o Outro, é este nó fechado que pode repercutir quando o atravessa, e talvez mesmo o cave, o grito” (LACAN, 1964-1965, p. 218). Menciona que em algum lugar em Freud existe a percepção primordial desse buraco do grito. Afirma que é no nível do grito que aparece o próximo, o Nebenmensch, o mais próximo, porque é justamente esse vazio intransponível, marcado no interior de nós mesmos, e do qual podemos apenas nos aproximar. Menciona também, nessa lição XII, de 17/03/65, o excelente artigo de Robert Fliess, filho do famoso Wilhelm Fliess, o companheiro de autoanálise de Freud, intitulado “Silence and Verbalization2. Esclarecendo que esse silêncio a que se refere Fliess é “o próprio lugar onde aparece o tecido sobre o qual se desenrola a mensagem do sujeito, é aí onde o nada impresso deixa aparecer o que é esta palavra. E o que é dela é precisamente, neste nível, sua equivalência com uma certa função do objeto a” (LACAN, 1964-1965, p. 218).

O silêncio compõe a própria função da verbalização e manifesta a presença do que é indistinguível da pulsão, ou seja, a presença do objeto a. Há, portanto, uma aproximação entre o silêncio das pulsões e o silêncio que compõe a palavra e a convoca enquanto objeto a. Isso que, na clínica, se presentifica como o silêncio do analista. Essa é a função crucial do silêncio na experiência analítica, convocar o dizer analisante, a partir da presença do analista como silêncio invocante, como semblante de objeto a.

O artigo de Robert Fliess também foi citado por Lacan em 1953, em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, para se referir às palavras e à linguagem em relação ao corpo. Fliess estuda, na análise, a conexão entre a palavra e o gozo através dos silêncios. Distingue três tipos de silêncio que observa clinicamente e diz que são interrupções de uma linguagem semelhantes às pausas ou silêncios de uma partitura musical.

“Há o pequeno silêncio normal, ‘uretral’, no qual o paciente parece ter esquecido a regra analítica e interrompe a fluidez das palavras. O ‘silêncio anal’ alude aos pacientes que se calam, retêm palavras, estão sujeitos a uma inibição. O sujeito não consegue retomar as associações. Mas o pior, segundo ele, é o ‘silêncio oral’, que parece interminável. É um mutismo que dá conta de uma impotência para falar. Lacan menciona Fliess precisamente por essa relação da pulsão à palavra que pode tomar valor de gozo segundo os diferentes estados libidinais mencionados por Freud e sinaliza que, quando o valor de gozo infiltra a palavra, e isso se repara melhor no silêncio, a pulsão a cala. No silêncio há a inibição da satisfação que o sujeito experimenta na produção do fluxo de palavras” (KUPERWAJS, 2021, n/p). 

O acontecimento de corpo político e a clínica da civilização 

Partindo do tema do falasser político e do acontecimento de corpo, considerando o fato de que o gozo foi elevado ao zênite na civilização, Éric Laurent, em seu livro O avesso da biopolítica, nos lembra de que o estatuto fundamental da subjetividade de nossa época é a angústia, e que o sujeito moderno possui uma afinidade com o corte introduzido pela angústia em tudo o que constitui o mundo. É uma relação do sujeito com o corte e com o vazio que pode ser dita “fora do sentido” e contabilizada como a marca de um sujeito que falha (LAURENT, 2016). Ressalta que a desaparição do sujeito contemporâneo se produz no nível da divisão subjetiva, o que acarreta uma perda no nível do desejo, e que essa perda ecoa na operação da fantasia “em que o sujeito se apreende como objeto no pleno (plein) de sua perda. Isso define um funcionamento da psicologia das massas distinto da identificação positiva como um traço extraído do Outro” (LAURENT, 2016, p. 210). Ele nos indica que, na democracia, o Um da união está sempre perdido, pois “a oposição entre o laço social fundado numa identificação com um traço unário, ou um bigodinho, e aquele fundado na fantasia como resposta em face da angústia original nos permite ler de outra maneira (…)” (LAURENT, 2016, p. 210) alguns dos movimentos sociais que tem surgido em resposta à crise. Essas respostas vêm sendo formuladas sob a forma de

“movimentos espontâneos sem palavras de ordem unificadora na Europa latina, sob o significante ‘indignados’, nos EUA e sob o de ‘Occupy…’ em países anglófonos. Trata-se de ocupar um lugar mais indefinido ainda, ou seja, aquele de uma enunciação em que o sujeito pode se retomar em sua desaparição. É um grito do sujeito contra o Outro infernal, que o deixa sem lugar no mundo” (LAURENT, 2016, p. 210).

O grito como pura enunciação é o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas. Logo, “em resposta à angústia, trata-se de escrever alguma coisa nova, alguma coisa que demarque um lugar (place)” (LAURENT, 2016, p. 211), pois “é o lugar que deixa aberto o furo no simbólico que o sujeito tenta ocupar para se apreender” (LAURENT, 2016, p. 211). Porém, resta saber para onde se dirigem as marchas em curso desses movimentos da cultura, já que a suspeita da impotência do homem político contemporâneo se dissemina. Laurent questiona: esses movimentos seriam “a possibilidade de uma manifestação em que o silêncio trabalharia no avesso da pulsão de morte, num mal-entendido vivo que nos afastaria do ajuste final entre liberdade e segurança?” (LAURENT, 2016, p. 211). Seria esse grito silencioso o que poderia operar uma subversão a partir do lugar de uma enunciação eloquente?

Considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização, trata-se, na clínica do falasser, de apostar no inconsciente como o que está ‘a ser definido’, segundo Miller (LAURENT, 2016, p. 201), e de acordo com Laurent, considerar que, diante da liquidez da civilização moderna, a angústia se apresenta de forma generalizada. Por isso, Lacan nos orienta a trabalhar a partir não mais das defesas ligadas ao desejo, mas dos “arranjos e percursos dos regimes de gozo” (LAURENT, 2016, p. 203), como o que se estabelece no nível da pulsão.

Assim, tomando a experiência analítica, não mais nomeada como cura ou tratamento, mas como uma experiência, proposta que se apresenta a partir do último ensino de Lacan, trata-se, na clínica psicanalítica, de apostar no “sintoma como acontecimento” e no “modo de gozar como sintoma”, de forma a localizar, isto é, dar lugar ao falasser político como acontecimento de corpo. Tomar o Outro como corpo, e não como espírito, permite inscrever nele uma marca, que vai mais além do traço unário. É uma marca que permite reler a identificação a partir da inscrição sobre o corpo, a partir do acontecimento de corpo (LAURENT, 2016). “O acontecimento de corpo assinalado por Lacan é mudo. Ou então fala aos gritos, sem direção precisa e fora dos códigos: ‘isso goza onde não fala, isso goza onde não faz sentido’” (BARROS, R., 2011, p. 218).

Laurent (2016) comenta que Miller, em seu texto “Intuições milanesas”, descreve as modificações da clínica na época do não todo e da globalização, assinalando que a “clínica do não todo é aquela em que florescem as patologias descritas como centradas na relação com a mãe, ou […] no narcisismo”, e que o nó é

“uma maneira de responder à estrutura do não todo. […] O ternário RSI se distingue e se opõe ao que era a repartição estanque descontínua entre neurose, perversão e psicose, [e] sem dúvida nos fornece arranjos diferentes, mas que estão em continuidade uns com os outros” (LAURENT, 2016, p. 206).

É o sintoma que se torna a unidade elementar da clínica, e não mais o que se chamava de estrutura clínica, que era uma classe. “Nessa clínica o absoluto, a substância, é o gozo” (LAURENT, 2016, p. 206), que no corpo faz sintoma como um acontecimento, pois “é como se fosse mais simples para o inconsciente de se servir do corpo para tratar o que não pode ser dito” (BONNAUD, 2015, p. 11).

Portanto, o acontecimento de corpo “está, como a angústia, do lado do gozo, que faz desordem no simbólico e que não pode encontrar aí nem seu lugar, nem seu laço, já que se apresenta como irrupção ou emergência” (LAURENT, 2016, p. 209). Porém, a angústia, como afeto que não engana e que é sentido no corpo, está mais em relação ao sexo e ao desejo do que em relação à morte. 

O acontecimento de corpo na clínica com crianças como grito silencioso 

Há um saber que surge da boca das crianças como algo novo, sobre o qual é preciso se debruçar. É preciso investigar, a partir do corpo como Outro, qual seria a relação da criança com o gozo que lhe escapa e que provoca desordem na família. O corpo é o lugar onde um dizer é capturado, mas aparece como enigma de um corpo sexuado, não sem a angústia como sinal. “A criança é feita para aprender, diz Lacan, aprender a fazer o nó a partir do que fracassa. Com isso ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui a ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um” (BARROS, M. 2011, p. 227).

Em tempos de pós-verdade, no qual o que importa não são mais os fatos, mas o que se diz deles, como operar com a enunciação da criança diante de um fechamento ao inconsciente? Como fazer existir o inconsciente quando a subjetividade de nossa época, com sua autodenominação, busca separar o corpo do ser falante e fazer da criança um objeto mudo, a ser escrutinado pelo saber da ciência? Como dar lugar ao Outro do desejo e da palavra, ao falasser, quando o que surge são indivíduos isolados do Outro, arraigados em suas crenças delirantes de um gozo mortífero? É preciso buscar ler o sintoma como grito silencioso nos atos que curto-circuitam a palavra e rechaçam o inconsciente.

Cabe, portanto, ao analista se perguntar sobre o ponto de angústia que mobiliza a criança e seus pais de forma a localizar o não dito que os permitirá formular uma questão. Ao fazer-se parceiro da criança nesse trabalho de elaboração e construção de uma demanda, permite-se a ela lidar com o real opaco que se apresenta de forma cada vez mais avassaladora, a partir de sua posição de objeto a, dejeto das famílias e da civilização.

Na análise com crianças, é possível ler, através dos equívocos e dos lapsos, o que se escreve a partir do corpo fora do corpo, do corpo como Outro, e que surge como acontecimento, como grito silencioso, índice, letra, que abre a possibilidade de inscrição de sua singularidade. É importante localizar o índice inconsciente, a cifra que permite escrever a marca singular do gozo de cada um a partir do saber fazer com as palavras mais além do corpo, para poder dar lugar e nome a uma diferença.

 


Referências 
BARROS, R. Lacan e o acontecimento de corpo. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 217-219.
BARROS, M. Lacan e a criança. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 227-229.
BARTHES, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BONNAUD, H. Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris France : Navarin, 2015.
KUPERWAJS, I. Silêncios. Texto publicado no Boletim infamiliar do XXIII Encontro Brasileiro do campo Freudiano, 2021. Disponível em: https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/wp-content/uploads/2020/12/Kuperwajs-Irene-Sile%CC%82ncios.pdf.
LACAN, J. (1964-1965) O seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito.
LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 238-324.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do IPSM-MG em 06/07/2022. 
2Silence and verbalization: A suplement to the theory of the analytic rule (1949). (Trad. J. D. Nasio) Le silence en psychanalyse. Paris: Payot-Rivages, 1998. In: Lacan, J. Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965), p. 460. 



As TCCs e sua tentativa de reduzir o ser falante ao organismo

Margaret Pires do Couto
Aderente da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise.
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação/UFMG e
pós-doutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
coutomargaret@gmail.com

 

Resumo: O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo.

Palavras-chave: Corpo; Psicanálise; Gozo.

The TCC’s and it’s attempt to reduce the speaking being to the organism 

Abstract: The article discusses how the belief in the existence of a natural body supports the attempt operated by Cognitive Behavioral Therapies (TCC) to reduce the speaking being to the organism. It is a body that supposedly should be quantified, domesticated and, therefore, adapted to the ideals of culture. On the contrary, psychoanalysis teaches us that a habitable body is not a biological datum. It is the fruit of the clash with language, the place of jouissance.

Keywords: Body; Psychoanalysis; Jouissance.

CAROLINA BOTURA. LONGEEUMLUGARQUENAOEXISTE

 

Um dos modos de rechaço à psicanálise que temos enfrentado no cotidiano de nossa clínica tem ocorrido por meio do encaminhamento em massa, especialmente de crianças e adolescentes, para as psicoterapias de orientação cognitiva comportamental. Os pais ou responsáveis relatam que esse direcionamento é realizado pelo médico pediatra, por diferentes profissionais da saúde, como também pelos profissionais da educação. Com a promessa de eficácia, objetividade e rapidez nos resultados, a terapia cognitiva comportamental (TCC) opera uma nova forma de governo da infância e da subjetividade.

Constatamos também a invasão dos ideais adaptativos dessa abordagem terapêutica na formação tanto dos profissionais da saúde como dos profissionais da educação.

A suposição de um corpo naturalizado, que existiria de forma independente da linguagem, ancora a tentativa de reduzir o ser falante ao organismo. O fascínio provocado no meio médico e educacional por essa proposta terapêutica se verifica em função da crença que é possível se ter o acesso a esse corpo de forma direta e, assim, quantificá-lo, padronizá-lo e adaptá-lo aos ideais vigentes. A promessa da eficácia promove uma verdadeira simplificação que exclui o sujeito, o gozo e o real na difícil tarefa de habitar um corpo.
Desconstruindo a TCC

Encontramos, de acordo com Aflalo (2012), uma aliança neo-higienista da psiquiatria biopsicossocial e o ideário da TCC. Nessa aliança, a clínica psiquiátrica é esvaziada de seu conteúdo e a investigação diagnóstica é substituída pela prática de questionários. Seus métodos contribuem para a propagação de uma ideologia duvidosa que sustenta um novo racismo científico. A psiquiatria psicobiossocial se faz passar por um humanismo científico, embora seja especialmente uma espécie de biorreligião a serviço das TCCs.

A discussão de cinco pontos nos permitirá estabelecer as bases da TCC e seus limites teóricos:

1. O pretenso cognitivismo das TCCs

Para Laurent (2007), a cognição a que se refere o termo terapia cognitivo comportamental não é a cognição definida pelas chamadas ciências cognitivas. Ela não permite estabelecer nenhum laço demonstrativo entre a prática das TCCs e os modelos teóricos propostos pelas ciências cognitivas. O pretenso cognitivismo das TCCs é, antes, uma bricolagem teórica. As terapias do mesmo nome são, na verdade, uma aplicação direta e técnica de duas teorias, inclusive opostas em seus princípios: a teoria comportamental e a teoria cognitivista. A concepção da natureza humana não é a mesma para os partidários do comportamentalismo e do cognitivismo. Para os primeiros, homem e animal são idênticos, pois não há diferença entre a adaptabilidade do comportamento humano e a do rato em laboratório. O humano seria apenas a soma de comportamentos, haveria apenas o organismo. Para os cognitivistas, o ser humano estaria identificado com um de seus órgãos, o cérebro, reduzido ao funcionamento de um computador. O pensamento não passaria de uma soma de programas informáticos e haveria apenas linguagem, porém, reduzida a um código.

Os dois projetos se opõem fundamentalmente. Entretanto, o que uniu essas duas formas de pensar o ser humano, apesar de suas diferenças de origem, foi a rejeição do humano como um ser de fala. Sua abordagem reducionista lhes permite afirmar que o psiquismo obedece apenas ao determinismo do organismo. Sejam quais forem os ideais em jogo, a etologia do comportamentalismo ou a máquina artificial do pretenso cognitivista, nega-se a dignidade do ser falante e a verdade de sua queixa.

2. A falsa ideia da saúde mental

A crença na existência de uma “saúde mental” é uma viga central do edifício da TCC. Entretanto, sabemos que é impossível definir cientificamente o que seria essa “saúde mental”; ela é, contrariamente, definida por uma norma moral. Os especialistas da TCC mascaram esse impossível, fazendo da saúde mental um conceito estatístico. Substituem a realidade dos fatos pela realidade estatística como se os cálculos bastassem para fazer existir a realidade do que é calculado.

Após definirem que existe uma norma mental e uma normalidade psíquica, todos os que dela se afastam, que não se tornaram a média estatística, são os desviantes, portadores de patologias mentais a serem reeducadas.

Assim, os teóricos da TCC desconhecem que a condição de ser sexuado e mortal do ser falante está na origem de vários sofrimentos “psi” e que o real do psiquismo, do mental, é o gozo.

3. Protocolos e questionários: a propagação de um cientificismo

O método dos questionários busca garantir que os comportamentos possam ser observados, codificados e quantificados. Desse modo, os comportamentos são reduzidos às listas de questões simples, às quais são atribuídos valores numéricos. A metodologia se resume à fabricação do questionário com o objetivo de formular questões objetivas e elaborar um protocolo, entendido como um conjunto de perguntas.

A prática dos questionários se afasta muito da experiência clínica. A cotação das respostas da avaliação substitui a qualidade pela quantidade, a descrição dos fenômenos por números que são organizados em estatísticas feitas para velar a falha estrutural do saber. Essa máquina enlouquecida da avaliação pretende uniformizar tudo em uma espécie de código universal.

4. O supermercado dos diagnósticos e a demissão da clínica

A psiquiatria é a única disciplina médica em que os diagnósticos são estabelecidos com base não na causa real da doença, e sim no efeito que os medicamentos têm sobre ela. As classificações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) são fabricadas com o mesmo procedimento de avaliação: são objeto de cálculos estatísticos. O DSM não originou nenhuma verificação independente que levasse em consideração o princípio da falseabilidade ou refutabilidade de suas descobertas, princípio fundamental de certificação de um conhecimento científico de acordo com Karl Popper.

Nessas classificações, nunca se trata do sujeito nem da clínica do caso. Está em jogo apenas o consenso dos psiquiatras. Trata-se de uma espécie de “ditadura do consenso” (AFLALO, 2012), ou seja, o que se leva em conta não são fatos em si, mas sim o consenso dos especialistas, que devem satisfazer também as companhias seguradoras para as quais trabalham. Na impossibilidade de verificar os sintomas “psi”, os especialistas os negociam, mantendo apenas o que pode fazê-los concordar entre si.

5. Sintoma: um erro cognitivo

As TCCs tentam impor a ideia segundo a qual o sintoma “psi” é um distúrbio, cuja origem seria tripla: falta de aprendizagem, componentes biológicos e sociais, motivo pelo qual se tornou “biopsicossocial”. Há uma operação de redução do sintoma “psi” por meio de três operações:

1) Transforma o normal em normativo: esconde o fato que a norma “psi”, inacessível à ciência, sempre se fundamenta num julgamento de valor, ou seja, decorre da moral.

2)Transforma o mental em orgânico: utiliza-se das estatísticas para assentar o mental com as ferramentas conceituais aplicáveis ao organismo. Na falta de poder ver o órgão mental, cujas disfunções valeriam para todos, a norma do mental é fabricada com estatísticas que se fazem passar por uma verdade universal.

3) Utiliza-se do artifício do cálculo estatístico forçando a passagem do patológico para o normal, da doença mental para a saúde mental. A média estatística se torna a norma estatística e, por fim, a normalidade mental.

Para se tornar avaliável, o sintoma é transformado numa grande quantidade de itens simplórios. É reduzido a pequenas unidades de comportamentos ou de cognições, a fim de encontrar uma significação constante, facilmente calculável. O sintoma é reduzido a uma quantidade excessiva a ser corrigida. Desse modo, estabelecem listas de sintomas, ou seja, “faltas observáveis de comportamento e de pensamentos” que sempre esbarram nas questões do ser vivo e sexuado. A ineficácia dessa fabricação de sintomas impele sempre a inventar outros, principalmente ditos de personalidade. Assim, as TCCs tropeçam sempre no problema da persistência dos sintomas e das personalidades desviantes, refratárias às recompensas dadas para normatizá-las ou fazê-las desaparecer.

O sintoma é concebido como um erro que não tem a ver com a verdade, mas como um erro de consciência, do cognitivo. Nessa perspectiva, as terapias da TCCs são aprendizagens padronizadas, metódicas e breves.

Por fim, encontramos, nesse empuxo à quantificação e nesse modo de abordagem terapêutica, a tentativa de desembaraçar-se do sujeito, do gozo e do real. Por outro lado, o sujeito da experiência analítica demonstra ser intraduzível às neurociências e ao código das TCCs e demonstra como a consistência do corpo do falasser depende de uma amarração singular.
O corpo sinthomatizado e a presença do analista

No último ensino de Lacan, o corpo é abordado em sua vertente de gozo, em sua vertente real para além do campo da imagem. Para se manter unido, necessita estar amarrado aos registros imaginário e simbólico indicando que sua consistência não se dá naturalmente, ao contrário, precisa sempre de algum artifício para se sustentar. Um corpo relativamente habitável, unificado e estável não é um dado biológico. A maneira como esse corpo se mantém e a forma pela qual se dá a união entre o corpo, a substância gozante e a fala torna-se para Lacan um verdadeiro mistério (LACAN [1972-73]1985).

Como uma caixa de ressonância, o corpo é o lugar onde se experimentam os afetos e as paixões, muitas vezes desconhecidos pelo ser falante. Denominar o corpo de “falante” significa dizer que ele é traumatizado por essa língua primeira, que deixa marcas de gozo. Nele se deposita o gozo, que não é subjetivado e nem transformado em enunciação, e, por isso, não pode ser apropriado pelo sujeito. Trata-se, portanto, de um corpo parasitado pela linguagem, marcado por signos que evocam a presença muda de um gozo que ultrapassa o registro fálico (MILLER, 1999).

Desse modo, o corpo traumatizado por alíngua se difere radicalmente do corpo, supostamente natural e já dado por antecipação da TCC. Para as TCCs, o corpo é uma máquina, regulado por leis naturais, separado do campo da linguagem, do Outro e especialmente do gozo.

Nessa perspectiva, Laurent, em “O avesso da biopolítica” (2016), discute como o discurso da ciência busca identificar o ser falante ao seu organismo, eliminando o gozo. O discurso da evidência orgânica recorre à imagem do corpo para fazer desaparecer o real do gozo. O corpo-máquina faz par com o corpo-imagem, por um lado, dividindo esse corpo em unidades sempre mais numerosas e mais complexas, e, por outro, fazendo uma falsa imagem unificada, que se reproduz em variadas telas. A forma do corpo, bem como a multiplicação de suas imagens, fascinam e se oferecem como remédio contra a angústia contemporânea.

“A força da imagem em todos os níveis é encarnar, num objeto separado, o que da lógica subjetiva escapa à representação. Não se vê o sujeito, mas se veem as imagens do corpo, de sua forma e de seu funcionamento. Querer reduzir o sujeito ao seu corpo faz parte da tentativa de identificar o ser falante (être parlant) ao seu organismo” (LAURENT, 2016, p. 16).

Lacan, ao contrário desse discurso da tecnociência, enfatizou a divisão entre o sujeito e sua imagem. A ideia de si mesmo como um corpo implica uma crença, a crença de tê-lo diante do fato que ele, o corpo, escapa o tempo todo. O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN [1975-1976], 2007 p. 64).

É o que nos ensina Samantha, uma garota de 12 anos que, após ter passado por uma TCC e serem constatados problemas relativos ao corpo, nomeados desordem do movimento postural-ocular e déficit de integração, chega à análise. Tratado como um caso de um organismo defeituoso, como um transtorno, nada do corpo, como caixa de ressonância do gozo de lalíngua, é vislumbrado nesse tratamento. Como consequência, seu modo singular de vivificação e amarração desse corpo vacilante, que ameaçava escapar o tempo todo, foi desconsiderado. É durante o tratamento analítico que Samantha inventa uma solução validada pela analista: ela passa a se utilizar do cosplay1, um recurso imaginário que lhe permitiu dar consistência ao seu corpo e protegê-lo de um gozo devastador.

 


Referências
AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007
LAURENT, É. As TCCs não fazem parte do programa cognitivo. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
LAURENT, É. El cognitivismo o el cuerpo sinthomatizado. In: Blog-Note del sintoma. Buenos Aires: Tres Haches, 2006.
LAURENT, É. El atravesamiento del sistema de la ciência. In: El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches, 2010.
LAURENT, É. O falasser político. In: O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
MILLER, J.-A.  Elementos de biologia lacaniana. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – MG, 1999.

1. Cosplay é um termo em inglês, formado pela junção das palavras costume (fantasia) e roleplay (brincadeira ou interpretação). É considerado um hobby no qual os participantes se fantasiam de personagens fictícios da cultura pop japonesa. 



Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes1 Sílvia Reis Soares 

Psicóloga
Coordenadora adjunta do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental
silvia_moc@hotmail.com

 

Resumo: A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro.

Palavras-chave: psicanálise; infância; adolescência; internet.

ALGORITHMS, PROTOCOLS AND SPONSORED CONTENT: A PROBLEMATIC COMBINATION WITHIN CHILDREN AND TEENAGERS CLINIC.

Abstract: Psychoanalysis with children and teenagers has presented several crossings from the incidence of technology, the internet, and social networks. The implication of the analyst in this context is investigated here, in view of the shift in the relation with knowledge, which no longer passes through the assumption of the Other.

Keywords: psychoanalysis; childhood; adolescence; Internet.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

 

I – Estamos na Era da Informação

A internet, criada como Arpanet em 1969, tinha como objetivo interligar laboratórios de pesquisa americanos. Nesse mesmo ano, tivemos também o envio do primeiro e-mail da história. Com a expansão de seu uso, dominou o âmbito acadêmico e se tornou conhecida como Internet. Seu uso comercial foi liberado em 1987 e, posteriormente, empresas fornecedoras de provedores de acesso começaram a surgir. E assim, em 1992, o Laboratório Europeu de Física de Partículas (Cern) inventou a World Wide Web, o famoso www que precede os endereços virtuais, e as informações passaram a estar ao alcance de qualquer usuário. No Brasil, a exploração comercial foi liberada em 1995 e, desde então, temos nos deparado com a difusão da rede e sua multiplicação de formas de exploração (SILVA, 2001).

Com o lançamento do Google, em 1997, a história da internet teve um ponto de virada, disponibilizando a rede para um público extenso e oferecendo o uso de um navegador, tornando-se também o principal mecanismo de buscas, que conta com cerca de 1 bilhão de páginas indexadas, fornecendo agilidade e facilidade ao acesso de informações em decorrência de seus algoritmos (ROCK CONTENT, 2020). Em seguida, surgiram as redes sociais, representando uma forma de contato direto, rápido e possibilitando a troca de informações e o acesso às notícias em tempo real. Importantes serviços foram criados, como o Facebook, o YouTube e o Instagram.

Todas essas são plataformas que servem de entretenimento e são difusoras de informação, substituindo as mídias tradicionais e trazendo tudo ao alcance das mãos. Quantas não foram as revistas e os jornais que deixaram de existir, uma vez que a informação se encontra disponível de graça? Quantos canais de televisão precisaram adequar seu conteúdo e formato ao perder espaço para a Netflix e afins? Desse modo, a internet desencadeou a Quarta Revolução Industrial e o mundo passou a estar na Era da Informação (ROCK CONTENT, 2020). Nesta etapa, conhecida como Internet 2.0, os usuários passaram de uma posição passiva, de meros consumidores, para uma posição ativa, na qual interagem entre si na posição de criadores de conteúdos, confluindo para os influencers da atualidade, ou seja, pessoas que produzem conteúdo e se destacam nas redes em que se encontram. Diante desse cenário, as empresas logo perceberam todo o potencial envolvido e hoje já não se pode falar da internet sem a publicidade que nela encontramos.

É quando surgem em cena os famosos algoritmos, “sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo…” (ROCK CONTENT, 2020, n.p.). São instruções dadas por quem os programa para que resolvam problemas matemáticos, executem tarefas ou realizem cálculos. Assim, com a inserção da publicidade no ambiente virtual, os algoritmos foram ajustados de modo a privilegiar alguns fatores, como a temporalidade, o engajamento e o relacionamento. Organiza a timeline do usuário de modo que os conteúdos exibidos sejam os mais recentes e que estejam recebendo bastantes interações (curtidas, comentários, compartilhamentos), além de priorizar os usuários com quem há interações frequentes. Então, os algoritmos destacam o que entendem ser do interesse do usuário e mostram conteúdos que avaliam como relevantes.

II – Adolescência e atualidade: entre o ideal e o possível

A adolescência, construção social acerca do que a psicanálise compreende como puberdade, é o momento da vida em que o sujeito já não é mais criança e passa a ser tomado pelas irrupções do real do corpo, que está em constante mudança. Miller2 (apud DRUMMOND, 2016) aponta que, tratando-se da adolescência, nos ocupamos de três aspectos: a saída da infância, a diferença dos sexos e o desenvolvimento da personalidade. É, então, um momento crucial, visto que é quando o sujeito se depara em um encontro com o impossível e, a partir do qual, precisará construir uma resposta. “Receber um adolescente é receber alguém em um impasse, pois se defronta com as mudanças corporais, identificações, a lida com os outros e com o Outro, relação com o sexo. Impasses estruturais, encontros com o real, diante dos quais o sujeito se vê desamparado” (STIGLITZ, 2016, apud MEZÊNCIO, 2017, p. 78). Assim, o adolescente encontra-se, naturalmente, envolto a essas questões e, considerando o enfraquecimento do Nome-do-Pai e a proliferação de objetos, o saber já não faz enigma, estando acessível a qualquer momento e em qualquer lugar: ele está ao alcance das mãos. Ou você nunca pediu a alguém que procurasse uma resposta no Google?

Lacan nos diz em “Televisão” que, em nossos tempos, o objeto a foi elevado ao zênite social, ou seja, temos localizado no mais alto ponto do céu o mais de gozar como dominante. “Este primado do objeto a, próprio da época do Outro que não existe, deixa para trás, a identificação simbólica ao ideal” (AMENDOLA, 2020, n.p.). Assim, a inserção social se faz menos por identificação do que por consumação, como aponta Miller.

O celular, gadget que permite o acesso aos apps (aplicativos), está sempre disponível. Não é incomum crianças e adolescentes queixando-se nos consultórios de quererem ou precisarem de um aparelho. Ou, ainda, tem sido frequente ouvir deles que o celular, e até especificamente o TikTok, são motivo de eles viverem, são pontos que os ligam à vida.

O que tem sido percebido na clínica é que o uso excessivo de celulares e afins privilegia relações intermediadas pelo aparelho, o que destaca a total desorientação do adolescente quando privado de seu acesso. É comum vermos um grupo de pessoas próximas fisicamente, em que está, cada uma, atenta ao conteúdo de seu dispositivo, e até mesmo relacionando entre si por meio das redes sociais, em detrimento da relação vis-à-vis. Para além disso, frente às frustrações decorrentes, pouco tem sido possível enquanto saída privilegiada pelo simbólico e frequentemente nos deparamos com atos sobre o corpo como forma de alívio ou punição. Miller nos coloca que os sujeitos contemporâneos hipermodernos são desorientados, sem uma bússola norteadora, o que favorece a imposição do objeto a a esses sujeitos desamparados. “O mais de gozar se esgueira através das redes…” e dita várias formas de burlar o circuito natural dos corpos e da vida (AMENDOLA, 2020, n.p.).

III – Quando os algoritmos encontram sujeitos desorientados: uma angústia infinita

A relação do sujeito contemporâneo com o saber já não é a mesma de outrora. Não se supõe mais que o outro sabe, visto que ele o detém. É comum nos depararmos com influencers seguidos por milhões de pessoas, mas de quem nunca ouvimos falar. Que conteúdos produzem, afinal? Muitos dançam trechos musicais coreografados que se tornam verdadeiros virais, outros dublam cenas famosas de filmes, fazem pegadinhas, promovem desafios, etc. Os conteúdos em vídeo já são privilegiados quanto aos estáticos dos textos e imagens, convocando os usuários a se adequarem às regras para aumentar o engajamento.

Uma das mais recentes redes sociais em evidência é o TikTok. O aplicativo chinês mais baixado de 2021 é uma rede de compartilhamento de vídeos curtos que monta a sua timeline conforme os conteúdos que o usuário se interessa por consumir. Criado em 2016, é um dos poucos apps que ameaçam a hegemonia da Meta, empresa detentora de Facebook, Snapchat, Instagram, WhatsApp e outras mais. Seu feed é formado pela chamada timeline infinita, ou seja, o conteúdo selecionado é escolhido a partir dos algoritmos e não há um fim, não tem momento para o conteúdo acabar. Essa nova configuração implica numa série de sérias consequências: a falta faz falta! E é aí que mora a angústia.

Em estudos recentes, pesquisadores perceberam que os vídeos curtos de conteúdo agradável ao usuário ativam áreas do cérebro ligadas ao sistema de recompensa, o que produz sensação de prazer e satisfação. Assim, ao assistir a um vídeo do aplicativo, ativa-se a produção de dopamina, produzindo sentimentos de felicidade e alegria. Diante do aumento do recebimento do neurotransmissor pelo cérebro, mais ele demanda, contribuindo para sua entrada em estágio de saturação e diminuindo a sua sensibilidade, de modo a necessitar de uma quantidade maior da substância.

IV – O discurso capitalista e o saber: fonte de parva riqueza

É diante de todo esse contexto que temos uma combinação deveras problemática: uso excessivo das redes sociais, aplicativos que te entregam o que te agrada, ainda que não solicitado, e a inexistência da falta ou, ao menos, de um hiato que possa suscitar um questionamento, são imperativos de gozo: Compre! Seja! Faça! Nessa seara, muitos encontraram a oportunidade de se venderem enquanto produtos a serem consumidos: “Te ensino a ganhar dinheiro com o Instagram! Compre meu curso! Siga o meu perfil!”. E o resultado disso é a venda de soluções rápidas por pessoas que ocupam o lugar de mestre e que interpretam o desconhecido (vide as caixinhas de perguntas), mas privilegiando formatos standards de como fazer, vender ou tratar.

Para que o analista esteja à altura de sua época, é preciso que esteja atento ao modo como o falasser se manifesta. Márcia Mezêncio diz que “o laço transferencial é a oferta que cabe ao analista […] e que esse laço é o que pode produzir um lugar onde o sujeito possa se enganchar” (2017, p. 75). E, a partir disso, cavar um amor epistêmico ao inconsciente. Diante disso, então, pergunto: o que faria o analista, em sua posição de semblante do objeto, causa de desejo, diante do sujeito que acredita ter o objeto em suas mãos? Como convocar o sujeito a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco?

 


Referências
AMENDOLA, A. F. O discurso analítico: uma pausa vivificante. Lacan XXI – Revista FAPOL online. 2020, vol 1. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2020/05/26/o-discurso-analitico-uma-pausa-vivificante/?lang=pt-br Acesso em 02 out. 2022.
Conheça a história da Internet, sua finalidade e qual o cenário atual. Rock Content Blog, 2020. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/historia-da-internet/ Acesso em 02 out. 2022.
DRUMMOND, C. Gide e a imiscuição do adulto na criança. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 42, jul./dez. de 2016.
LACAN, J. Televisão. Outros escritos São Paulo: Zahar Editor, 1993.
MEZÊNCIO, M. A constituição do sintoma na juventude: deriva e ruptura. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 43, abr. 2017.
O GLOBO, A. Como o TikTok atua no cérebro e vicia jovens em seus vídeos curtos. EXAME, 2022. Disponível em https://exame.com/ciencia/como-o-tiktok-atua-no-cerebro-de-jovens-com-videos-curtos-e-personalizados/. Acesso em 04 out. 2022.
Saiba como funciona um algoritmo e conheça os principais exemplos existentes no mercado. Rock Content Blog, 2019. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/ Acesso em 03 out. 2022.
SILVA, L. W. Internet foi criada em 1969 com o nome de “Arpanet” nos EUA. Folha de S. Paulo, 2001. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u34809.shtml Acesso em 02 out. 2022.

1 Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Saúde Mental da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022. 
2 Texto de encerramento da 3ª Jornada do Institut de l’Enfant, 2015.