Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat
Psicanalista, doutora pelo Programa
de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ
clarisse.boechat@gmail.com

 

Resumo: Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época.

Palavras-chave: Psicanálise; presença; ruas; errância.

ABOUT A CERTAIN PRESENCE OF PSYCHOANALYSIS IN THE STREETS

Abstract: In this text, I return to questions that emerged from the experience of working on the streets of the city of Rio de Janeiro, between 2012 and 2019, and the lessons I was able to extract from that. Highlighting especially the wandering that the streets showed me as one of the names of the real of our time. From that, it was possible to locate and point out what, for each one, worked as guidance, as well as sustain our bet on the “errant methods” of those I have met. The work turned out to be a learning experience, coinciding with what I also find in my, more traditional, clinical practice. Whether in the office or on the streets, wandering seems to present itself as a privileged mode of operation in times when the Name-of-theFather no longer serves as the main highway. As we live in a wandering world, the patients who come to us in our offices are also taken by their own wanderings and atypical solutions, as a symptom of our time.

Keywords: Psychoanalysis; presence; streetswandering.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Retomo, neste texto, questões que começaram a surgir a partir do trabalho iniciado em 2012, como psicóloga do Consultório na Rua do Centro do Rio de Janeiro. A primeira delas tornou-se mais consistente no título de minha tese de doutorado1: “Quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?”. Para respondê-la procurei localizar o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico. Em outros termos, considerando as grandes diferenças entre os encontros que aconteciam nas ruas e uma experiência de análise, qual é a pertinência do interesse da psicanálise em relação a um campo, à primeira vista, tão distinto daquele das análises tradicionais? As experiências de errância das ruas nos ensinariam sobre a abordagem psicanalítica dos sintomas ou é muito mais a experiência com essa abordagem que pode orientar nossas intervenções nas ruas?

Tais questões se endereçaram ao Núcleo de Pesquisa “Práticas da Letra”, ligado ao Instituto de Clínica Psicanalítica da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio. A pesquisa do núcleo, coordenado à época por Ana Lucia Lutterbach-Holck, interrogava os “usos possíveis da psicanálise na cidade”, convocando-a a se fazer presente “nas ruas, de portas abertas a quem possa interessar testemunhar sua experiência” (LUTTERBACH-HOLCK, 2014, p. 43). Dessa aproximação surgiu, num segundo tempo, o ateliê “Escreve-se história”, que funcionou semanalmente em frente à Central do Brasil, entre 2014 e 2019, permitindo-nos estar em contato com o que me parece possível considerar como a presença do real na cidade.

Nesse ateliê, uma dupla de psicanalistas se colocava em uma calçada próxima a essa Central, sob o anúncio “Escreve-se história”, com um banquinho reservado a quem se aproximasse. A este, dizíamos algo como “caso queira nos contar uma história, podemos escrevê-la e entregá-la, ao final, para você”. Enquanto o primeiro integrante da dupla se oferecia como destinatário, ouvindo a história, o segundo operava como uma espécie de “escrevente” e, em silêncio, registrava os pontos que se destacavam quando um pedestre tomava a posição de narrador de sua experiência. Ao fim, oferecíamos o original, ficávamos com uma cópia do material e, caso houvesse interesse, dávamos um cartão com data e horário do próximo encontro.

Ofertávamos a escuta e a escrita daquilo que, na abertura ao imprevisto, em uma fala, se precipita, ressoa, causados pelo desejo de ler a cidade de nosso tempo, inventando formas de ocupá-la. Contudo, essa ocupação das ruas, embora tivesse como bússola a psicanálise, não deu margem a experiências que pudessem ser chamadas de análise. Do ponto de vista mais formal, que tampouco demarca o que é uma análise, havia uma radicalidade no despojamento do setting. Os atendimentos eram feitos em meio a carros e transeuntes; não havia pagamento nem como recolhermos os efeitos do só-depois — pois muitas vezes o depois não existia, devido ao trânsito mesmo daqueles com os quais pontualmente nos encontrávamos.

A oferta de escuta e registro das histórias que alguns teriam a nos contar foi o ponto de partida para que pudessem, cada qual a seu modo, e de formas muito distintas, servir-se daquela espécie de trabalho de “edição” que fazíamos sobre o que nos ressoava como orientação. Tanto o “ouvinte” das histórias quanto seu “escrevente” tinham a função de “editar” o “texto” que nos era endereçado. Por vezes, tal “edição” consistia em apontar o que se esboçava como uma localização subjetiva; em outras, havia a tentativa de instauração de um espaçamento mínimo, localizando frestas que furassem a consistência de um Outro invasivo, permitindo-nos apostas nas possibilidades de uma extração de algo perturbador; e ainda, em certas ocasiões, visávamos aos significantes que indicavam uma modalidade de gozo, seja pela possibilidade de ela se constituir como ancoragem, seja pela aposta de promover algum descolamento. Buscávamos extrair, da errância, uma leitura, na medida em que pudéssemos seguir o fio daquelas andanças, nos constituindo como lugar de endereçamento e, a partir daí, víamos se era possível apostar na localização de um fio, por vezes roto e puído, daquelas histórias.

Certa vez, perguntei a uma mulher o seu nome, ao que, de uma só vez, respondeu: “Maria da Silva. Vim do Maranhão depois que me tiraram à força pra fazer sexo. Minha irmã não conseguiu fazer nada (chora). Meu irmão mais velho morreu cortado pra me defender”. Interrogo: “Como você se virou?”. Ela diz: “Tomando distância. Porque eu meto a faca, se eu voltar é pra matar ou morrer”. Em casos assim, tentávamos recolher algo que funcionasse como uma espécie de orientação vital. Digo a ela: “sua vinda foi uma aposta na vida”, apontando, mesmo diante do horror, para a dimensão vivificante dessa escolha que se impôs.

Era recorrente que aquelas histórias fizessem referência a um antes e um depois de acontecimentos que desfizeram arranjos com os quais seus narradores se sustentavam, deixando-os sem uma rede de proteção e expostos à queda de identificações que os ligavam ao Outro, que os inseriam no laço social, levando-os, com certa frequência, a desmoronar feito um castelo de cartas diante do sopro de uma infeliz contingência. Acontecimentos dessa natureza parecem apontar para o furo de um real traumático, frente ao qual a rua responde como espaço para a errância.

Tocar em amarrações tão vitais requer um manejo delicado para, por exemplo, não destacar uma identificação mortífera, abrir buracos em estradas acidentadas demais, sob o risco de interditá-las. Diante de tamanhas devastações, estávamos atentos ao que despontava como recurso, orientação, extraindo os “pontos cardeais” que o “escrevente” tomava como norteadores naquelas histórias. O que chamamos de “pontos cardeais” são os arranjos e soluções que apostávamos fazer a função de ancoragem diante daquilo que, para cada um, apresentava-se como deriva: pequenas bússolas que operassem como orientação.

Em “O exílio e a identificação”, Cristiane Alberti aborda questões relativas ao exílio estrutural do falasser em relação à linguagem, mas também quanto à perspectiva mais radical do exílio, que nos chamou a atenção pela proximidade com o que as ruas apresentam: “Destaquemos aqui que alguns sujeitos estão sempre fora de, jamais em casa, um exílio existencial, nenhum lugar, parte alguma” (ALBERTI, C., 2020, n.p.). Entendemos que “nenhum lugar”, “parte alguma” apontam para uma metonímia incessante, marca do que não se localiza, excesso de extravio. O que chamamos de errância relaciona-se a essa deriva pulsional, em que o circuito da fantasia, a formalização de um sintoma, ou mesmo a consistência de um delírio, não se apresentam de forma tão localizável.

A errância no ensino de Lacan não possui o estatuto de um conceito nem é um tema recorrente em seus seminários. Mas podemos nos ater aqui à menção que lhe é feita no título de seu Seminário 21: les non-dupes errent, que joga com a homofonia que remete tanto aos “não-tolos erram” quanto à pluralização de “Os Nomes-do-Pai”, apontando para as soluções atípicas que um sujeito pode lançar mão para se virar na vida. A temática da errância, tal como Lacan a esboça ali (1973-74, inédito), pode constituir-se como fio condutor de uma clínica que precisa se haver com impasses e soluções surgidas quando o Nome-do-Pai não se faz estrada principal que orienta os caminhos. Ao contrário, na errância há a iteração insistente do Um do gozo desarticulado de um itinerário ou mesmo do que pode se apresentar como montagem da pulsão.

Tal errância se traduz como certo “desenraizamento” e nos evidencia o que se passa quando um sujeito perde o que poderia ter-lhe sido referenciais, vendo-se ultrapassado pela iteração do Um do gozo, sem sentido. Os não-tolos, segundo Lacan, são aqueles que se apresentam como errantes, porque se fixariam à pretensão de seguir sempre a direção inequívoca que a iteração comporta, ou mesmo nos mandamentos provenientes do supereu e nas rotas determinadas pelo Nome-do-Pai.

Fernanda Otoni-Brisset, em “O povo e a peste”, testemunha, de sua prática na rede pública “junto a pessoas sem renda, sem documentos, sem trabalho, sem família, sem teto, sem lei, sem razão, sem muita coisa” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.), e situa que eles têm muito a dizer quando encontram um analista: “Diria que portam sem saber, um saber que não é suposto. Um saber a forçar suas escolhas, de forma irrecusável” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.). Otoni parece também se encontrar com o que nomeamos como a dimensão da iteração presente na errância, que, em seu texto, tender-se-ia a localizar como “esse saber a forçar suas escolhas” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.).

Eis o desafio: como nos incluirmos como destinatários do endereçamento de um saber que se sabe sozinho, que não é suposto? Diante da dimensão implacável da iteração do gozo descolada da suposição de saber no Outro, cabe, ao analista, a aposta de fazer incluir nesses circuitos, a fim de se constituir como parceiro, por exemplo, na relação com o gozo opaco do Um, que itera, instaurando uma modesta margem de manobra a partir do saber que se recolhe.

Quando Claudionor pergunta meu nome e lhe respondo “Clarisse”, ele observa: “Olha! 2 C: Claudionor e Clarisse”. Em seguida, diz que gostaria de escrever um livro com dedicatória para 3 K. Destaco: “Você gosta de letras!”. Ele diz que sim, me mostra uma tatuagem com o 3K, explicando se tratar da inicial dos nomes das três filhas. A letra K surgiu quando aguardava o nascimento de sua primeira filha na maternidade, ao ler uma revista em quadrinhos em que tinha uma mulher chamada Kelly: “Fiquei com o K e escolhi o nome de Késia pra ela”. Ou seja, esse K ele extrai no momento do nascimento de sua primeira filha, parindo um significante que lhe permitiu ser pai. Desse K, retirado da revista, partirão os nomes das demais filhas: Késia, Keyla, Kamile — 3K. O que recolhemos dos encontros, que duraram cerca de um ano, nos ensina sobre o uso sinthomático do 3K, invenção marcada pela tolice de se deixar guiar por essa espécie de Um sozinho, que lhe orienta a deriva, a lógica de sua errância, funcionando à semelhança de um itinerário.

Seguíamos aqueles sujeitos em seu ir-e-vir, às vezes sem rumo, buscando fazer ressoarem as formas pelas quais eles poderiam se valer de seus próprios arranjos, inventando ou aprimorando modos de lidar com o gozo que itera sempre em suas derivas.

Jacques-Allain Miller, em O parceiro sintoma (2008), considera o sinthoma, no último Lacan, como uma construção que envolve uma parte de gozo solta e uma parte de gozo apreendido no âmbito do discurso. Nessa dimensão sinthomática, os itinerários, as montagens, podem ser variados — são formas de dar lugar à errância inerente ao gozo, que é sempre singular.

Ao nos fazermos presentes nas ruas, com a psicanálise, nos acostamentos e “quebradas”, no burburinho caótico da cidade, às margens da rodovia do Nome-do-Pai, aprendemos a garimpar os “pontos cardeais” que podem fazer as vezes de caminhos, conforme Sérgio Laia nos indica mostrando que as errâncias possuem seus próprios métodos sinthomáticos. Fora da estrada principal, mas também não deixando os falasseres imersos na solidão do Um-sozinho, podemos encontrar invenções marcadas por esse norteamento de se fazer tolo de um real, para que se possa dar outro lugar a um gozo que é errante e próprio de cada um. Nos casos que acompanhamos, buscamos situar nossa aposta quanto a um norteamento, ainda que esse trabalho não tenha passado, necessariamente, pela construção da fantasia ou de uma estabilização via construção delirante. Esse norteamento pôde, em alguns casos, fazer as vezes de um itinerário, acolhendo a errância do gozo em vez de pretender, em vão, contê-la. Essa era a parceria a que nos oferecíamos: seguir os indícios — que, com o Lacan do Seminário, livro 23, podemos situar como sinthomáticos — daqueles sujeitos que se endereçavam a nós para que lhes escrevêssemos suas histórias errantes.

Seja nas ruas, seja no consultório, a psicanálise se vale dos desarranjos da rotina; é nessa lacuna que relampeja o que mostra a efetividade do discurso analítico em sua via de extrair, onde quer que ele se aplique, enunciações com efeitos de verdade, ancoragens, deslocamentos, leituras, enfim. Também no consultório testemunhamos do mal-estar próprio ao nosso tempo, da iteração do gozo mais além de qualquer enquadre ou norma, quando a estrada principal do Nome-do-Pai já não faz mais tanto as vezes da grande rodovia.

Então, abordamos a errância como um dos nomes do real que as ruas, ao mesmo tempo, acolhem e dispersam, mas, na medida em que vivemos em um mundo errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são também tomados por suas próprias errâncias, como um sintoma de nossa época. A errância diz respeito ao que, do gozo, não se normatiza nem se normaliza, não sendo propriamente específica da neurose ou da psicose, embora possa ser mais disruptiva nos contextos em que o Nome-do-Pai não faz as vezes de norteador.

Em A sociedade do sintoma, Éric Laurent propõe que, “quando o laço se rompe, a cidade se torna o império do vazio, escavado pela escritura, gozo fora do sentido que circula na cidade” (2007, p. 110). As ruas são labirintos por onde o extravio do gozo circula, mas onde ele também se enlaça em arranjos muito singulares, como pude verificar em minha experiência de alcançar as ruas com a psicanálise. Essa presença permitiu-nos testemunhar as formas pelas quais o mais singular de um gozo, que, muitas vezes, dá lugar à segregação, pôde se relançar e até encontrar algum lugar no coletivo em uma renovada, embora muitas vezes lábil, forma de laço social dessegregativo (LAIA, 2020). Um laço que, intermitentemente, pode se enganchar e se desconectar do Outro, compondo diferentes soluções provisórias. Nas ruas ou no consultório, nossa tarefa consiste em instalar pequenas brechas porosas à passagem das operações singulares de cada sujeito, que portam a vitalidade de uma ação psicanalítica extensiva ao campo social. Situado na conjunção entre a clínica e a política, o analista tem como incumbência apostar na emergência da diferença, na abordagem dessegregativa do gozo errante, na diversi-cidade dos laços, tornando-se “aquele que segue” as soluções atípicas (LAURENT, 2018).

 


Referências:
ALBERTI, C. O exílio e a identificação. Disponível em: https://ebp.org.br/rj/2020/10/19/o-exilio-e-a-identificacao/. Último acesso em 09/04/2021.
LACAN, J. (1973-74). O seminário, livro 21: les non dupes-errent. Inédito.
LACAN, J. (1975-76). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAIA, S. O ventríloquo e a biruta analítica: das versões do corpo falante… no momento de conclui. In: Curinga. Nº 49, 2020.
LAURENT, É. A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. In: Opção Lacaniana. Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, n. 79. São Paulo, 2018.
LUTTERBACH-HOCLK, A. L. Sobre o método e o objeto. In: LUTTERBACH-HOLCK, A. L.; GROVA, T. [orgs.] Ao pé da letra: leituras e escrituras na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Subversos, 2014.
MILLER, J-A. Le partenaire-síntoma. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
OTONI-BRISSET, F. O. O povo e a peste. Disponível em: http://lalibertaddepluma.org/fernanda-otoni- brisset-o-povo-e-a-peste/. Último acesso em: 09/04/2021.

1. Tese defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2020, que teve como orientadores Heloisa Caldas e Sérgio Laia.



O grito silencioso: o corpo da criança na clínica da civilização1

Alessandra Thomaz Rocha
Psicanalista, doutora em psicanálise pela UFMG, membro da EBP/AMP
aless.thz@hotmail.com

 

Resumo: O texto trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças. Para isso, a autora aborda a questão do grito em Lacan e localiza a questão do silêncio e sua importância na psicanálise. Articula-os um ao outro e à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

Palavras-chave: Silêncio; grito; criança; acontecimento de corpo; falasser

THE SILENT SCREAM: THE CHILD’S BODY IN THE CLINIC OF CIVILIZATION

Abstract: The text deals with the silent scream issue from the point of view of the political body event from the perspective of the psychoanalytic clinic with children. For this, the author addresses the issue of screaming in Lacan and also locates the issue of silence in Lacan and its importance in psychoanalysis. She articulates them to each other and to the clinic of the parlêtre based on the event of the political body, considering that there is no clinic of the subject without a clinic of civilization.

Key words: Silence; scream; child; body event; parlêtre.

 

CAROLINA BOTURA. IO

 

Como se articulam grito e silêncio? Qual é a relação da criança com seu corpo e o com o gozo, que dele escapa? Qual é o lugar do corpo da criança na clínica da civilização? Para tratar desse assunto, faremos inicialmente uma abordagem sobre o grito a partir de Lacan e, em seguida, sobre o silêncio, para depois articulá-lo à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização.

O grito

Lacan evoca o grito para falar do silêncio no Seminário 12: problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965, inédito), fazendo circular na sala uma reprodução do célebre quadro de Edward Munch “O grito” (1893). Ele comenta que não encontrou imagem melhor para falar do silêncio do que essa. Menciona o ser que aparece, que tem o aspecto estranho e que não se pode dizer sexuado. Esse ser que

“tapa as orelhas, escancara a boca: ele grita. O que é esse grito? Quem ouviria esse grito que não ouvimos? Se não que ele impõe esse reinado do silêncio […]. Literalmente, o grito parece provocar o silêncio e, aí se abolindo, é sensível que ele o causa, ele o faz surgir, ele lhe permite manter a nota. É o grito que o sustenta, e não o silêncio ao grito” (LACAN, 1964-65, p. 217).

“O grito é uma pura enunciação, o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas” (LAURENT, 2016, p. 210-211). Assim, o silêncio não está fora da linguagem, já que não é anterior ao grito, mas, ao contrário, é o grito que funda o silêncio. Logo, não há silêncio sem grito, pois, como nos afirma Lacan, “O grito faz o abismo onde o silêncio se aloja” (LACAN, 1964-1965, p. 217). O grito é a expressão primitiva e indiferenciada do recém-nascido, que, por estar fora do sentido, convoca seu outro primordial a um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Sob a forma de choro da criança, o grito é transformado em demanda. Para Freud, a primeira experiência de satisfação, por ser inédita, é também irrecuperável enquanto tal. Ela estabelece tanto uma expectativa e uma procura por satisfação quanto uma impossibilidade de reencontro do objeto dessa satisfação, para sempre perdido, constituindo um vazio contínuo e constante para o sujeito, que nenhum objeto substituto pode preencher. Lacan se refere à pausa do silêncio na música como um saber fazer do músico, que é tão essencial quanto uma nota sustentada, e se pergunta se só poderíamos pensar no silêncio como suspensão da palavra.

Taceo não é sileo

Ainda nesse mesmo seminário (1964-1965), Lacan nos remete a duas formas do silêncio, utilizando os termos em latim. Define taceo como a dimensão do silêncio que é aquela da palavra não-dita, enquanto sileo seria um silêncio fundante, estruturante, que aponta para uma ausência essencial da palavra, isto é, um buraco de significação, uma impossibilidade de simbolização (LACAN, 1964-1965) que seria, em última instância, a própria morte. Roland Barthes, em O neutro (2003), referindo-se à língua clássica, também faz uso desses dois termos em latim para abordar o silêncio. Define Sileo como o que remete a uma ausência de movimento e de ruído, uma espécie de pureza atemporal das coisas que existe antes de elas nascerem ou depois de elas desaparecerem; e taceo como o que diz respeito a um calar-se, a um deixar de falar, isto é, um silêncio verbal.

Lacan salienta que “O silêncio forma um laço, um nó fechado entre algo que é um entendimento e algo que, falando ou não, é o Outro, é este nó fechado que pode repercutir quando o atravessa, e talvez mesmo o cave, o grito” (LACAN, 1964-1965, p. 218). Menciona que em algum lugar em Freud existe a percepção primordial desse buraco do grito. Afirma que é no nível do grito que aparece o próximo, o Nebenmensch, o mais próximo, porque é justamente esse vazio intransponível, marcado no interior de nós mesmos, e do qual podemos apenas nos aproximar. Menciona também, nessa lição XII, de 17/03/65, o excelente artigo de Robert Fliess, filho do famoso Wilhelm Fliess, o companheiro de autoanálise de Freud, intitulado “Silence and Verbalization2. Esclarecendo que esse silêncio a que se refere Fliess é “o próprio lugar onde aparece o tecido sobre o qual se desenrola a mensagem do sujeito, é aí onde o nada impresso deixa aparecer o que é esta palavra. E o que é dela é precisamente, neste nível, sua equivalência com uma certa função do objeto a” (LACAN, 1964-1965, p. 218).

O silêncio compõe a própria função da verbalização e manifesta a presença do que é indistinguível da pulsão, ou seja, a presença do objeto a. Há, portanto, uma aproximação entre o silêncio das pulsões e o silêncio que compõe a palavra e a convoca enquanto objeto a. Isso que, na clínica, se presentifica como o silêncio do analista. Essa é a função crucial do silêncio na experiência analítica, convocar o dizer analisante, a partir da presença do analista como silêncio invocante, como semblante de objeto a.

O artigo de Robert Fliess também foi citado por Lacan em 1953, em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, para se referir às palavras e à linguagem em relação ao corpo. Fliess estuda, na análise, a conexão entre a palavra e o gozo através dos silêncios. Distingue três tipos de silêncio que observa clinicamente e diz que são interrupções de uma linguagem semelhantes às pausas ou silêncios de uma partitura musical.

“Há o pequeno silêncio normal, ‘uretral’, no qual o paciente parece ter esquecido a regra analítica e interrompe a fluidez das palavras. O ‘silêncio anal’ alude aos pacientes que se calam, retêm palavras, estão sujeitos a uma inibição. O sujeito não consegue retomar as associações. Mas o pior, segundo ele, é o ‘silêncio oral’, que parece interminável. É um mutismo que dá conta de uma impotência para falar. Lacan menciona Fliess precisamente por essa relação da pulsão à palavra que pode tomar valor de gozo segundo os diferentes estados libidinais mencionados por Freud e sinaliza que, quando o valor de gozo infiltra a palavra, e isso se repara melhor no silêncio, a pulsão a cala. No silêncio há a inibição da satisfação que o sujeito experimenta na produção do fluxo de palavras” (KUPERWAJS, 2021, n/p). 

O acontecimento de corpo político e a clínica da civilização 

Partindo do tema do falasser político e do acontecimento de corpo, considerando o fato de que o gozo foi elevado ao zênite na civilização, Éric Laurent, em seu livro O avesso da biopolítica, nos lembra de que o estatuto fundamental da subjetividade de nossa época é a angústia, e que o sujeito moderno possui uma afinidade com o corte introduzido pela angústia em tudo o que constitui o mundo. É uma relação do sujeito com o corte e com o vazio que pode ser dita “fora do sentido” e contabilizada como a marca de um sujeito que falha (LAURENT, 2016). Ressalta que a desaparição do sujeito contemporâneo se produz no nível da divisão subjetiva, o que acarreta uma perda no nível do desejo, e que essa perda ecoa na operação da fantasia “em que o sujeito se apreende como objeto no pleno (plein) de sua perda. Isso define um funcionamento da psicologia das massas distinto da identificação positiva como um traço extraído do Outro” (LAURENT, 2016, p. 210). Ele nos indica que, na democracia, o Um da união está sempre perdido, pois “a oposição entre o laço social fundado numa identificação com um traço unário, ou um bigodinho, e aquele fundado na fantasia como resposta em face da angústia original nos permite ler de outra maneira (…)” (LAURENT, 2016, p. 210) alguns dos movimentos sociais que tem surgido em resposta à crise. Essas respostas vêm sendo formuladas sob a forma de

“movimentos espontâneos sem palavras de ordem unificadora na Europa latina, sob o significante ‘indignados’, nos EUA e sob o de ‘Occupy…’ em países anglófonos. Trata-se de ocupar um lugar mais indefinido ainda, ou seja, aquele de uma enunciação em que o sujeito pode se retomar em sua desaparição. É um grito do sujeito contra o Outro infernal, que o deixa sem lugar no mundo” (LAURENT, 2016, p. 210).

O grito como pura enunciação é o lugar onde os sujeitos se apreenderiam em suas perdas. Logo, “em resposta à angústia, trata-se de escrever alguma coisa nova, alguma coisa que demarque um lugar (place)” (LAURENT, 2016, p. 211), pois “é o lugar que deixa aberto o furo no simbólico que o sujeito tenta ocupar para se apreender” (LAURENT, 2016, p. 211). Porém, resta saber para onde se dirigem as marchas em curso desses movimentos da cultura, já que a suspeita da impotência do homem político contemporâneo se dissemina. Laurent questiona: esses movimentos seriam “a possibilidade de uma manifestação em que o silêncio trabalharia no avesso da pulsão de morte, num mal-entendido vivo que nos afastaria do ajuste final entre liberdade e segurança?” (LAURENT, 2016, p. 211). Seria esse grito silencioso o que poderia operar uma subversão a partir do lugar de uma enunciação eloquente?

Considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização, trata-se, na clínica do falasser, de apostar no inconsciente como o que está ‘a ser definido’, segundo Miller (LAURENT, 2016, p. 201), e de acordo com Laurent, considerar que, diante da liquidez da civilização moderna, a angústia se apresenta de forma generalizada. Por isso, Lacan nos orienta a trabalhar a partir não mais das defesas ligadas ao desejo, mas dos “arranjos e percursos dos regimes de gozo” (LAURENT, 2016, p. 203), como o que se estabelece no nível da pulsão.

Assim, tomando a experiência analítica, não mais nomeada como cura ou tratamento, mas como uma experiência, proposta que se apresenta a partir do último ensino de Lacan, trata-se, na clínica psicanalítica, de apostar no “sintoma como acontecimento” e no “modo de gozar como sintoma”, de forma a localizar, isto é, dar lugar ao falasser político como acontecimento de corpo. Tomar o Outro como corpo, e não como espírito, permite inscrever nele uma marca, que vai mais além do traço unário. É uma marca que permite reler a identificação a partir da inscrição sobre o corpo, a partir do acontecimento de corpo (LAURENT, 2016). “O acontecimento de corpo assinalado por Lacan é mudo. Ou então fala aos gritos, sem direção precisa e fora dos códigos: ‘isso goza onde não fala, isso goza onde não faz sentido’” (BARROS, R., 2011, p. 218).

Laurent (2016) comenta que Miller, em seu texto “Intuições milanesas”, descreve as modificações da clínica na época do não todo e da globalização, assinalando que a “clínica do não todo é aquela em que florescem as patologias descritas como centradas na relação com a mãe, ou […] no narcisismo”, e que o nó é

“uma maneira de responder à estrutura do não todo. […] O ternário RSI se distingue e se opõe ao que era a repartição estanque descontínua entre neurose, perversão e psicose, [e] sem dúvida nos fornece arranjos diferentes, mas que estão em continuidade uns com os outros” (LAURENT, 2016, p. 206).

É o sintoma que se torna a unidade elementar da clínica, e não mais o que se chamava de estrutura clínica, que era uma classe. “Nessa clínica o absoluto, a substância, é o gozo” (LAURENT, 2016, p. 206), que no corpo faz sintoma como um acontecimento, pois “é como se fosse mais simples para o inconsciente de se servir do corpo para tratar o que não pode ser dito” (BONNAUD, 2015, p. 11).

Portanto, o acontecimento de corpo “está, como a angústia, do lado do gozo, que faz desordem no simbólico e que não pode encontrar aí nem seu lugar, nem seu laço, já que se apresenta como irrupção ou emergência” (LAURENT, 2016, p. 209). Porém, a angústia, como afeto que não engana e que é sentido no corpo, está mais em relação ao sexo e ao desejo do que em relação à morte. 

O acontecimento de corpo na clínica com crianças como grito silencioso 

Há um saber que surge da boca das crianças como algo novo, sobre o qual é preciso se debruçar. É preciso investigar, a partir do corpo como Outro, qual seria a relação da criança com o gozo que lhe escapa e que provoca desordem na família. O corpo é o lugar onde um dizer é capturado, mas aparece como enigma de um corpo sexuado, não sem a angústia como sinal. “A criança é feita para aprender, diz Lacan, aprender a fazer o nó a partir do que fracassa. Com isso ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui a ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um” (BARROS, M. 2011, p. 227).

Em tempos de pós-verdade, no qual o que importa não são mais os fatos, mas o que se diz deles, como operar com a enunciação da criança diante de um fechamento ao inconsciente? Como fazer existir o inconsciente quando a subjetividade de nossa época, com sua autodenominação, busca separar o corpo do ser falante e fazer da criança um objeto mudo, a ser escrutinado pelo saber da ciência? Como dar lugar ao Outro do desejo e da palavra, ao falasser, quando o que surge são indivíduos isolados do Outro, arraigados em suas crenças delirantes de um gozo mortífero? É preciso buscar ler o sintoma como grito silencioso nos atos que curto-circuitam a palavra e rechaçam o inconsciente.

Cabe, portanto, ao analista se perguntar sobre o ponto de angústia que mobiliza a criança e seus pais de forma a localizar o não dito que os permitirá formular uma questão. Ao fazer-se parceiro da criança nesse trabalho de elaboração e construção de uma demanda, permite-se a ela lidar com o real opaco que se apresenta de forma cada vez mais avassaladora, a partir de sua posição de objeto a, dejeto das famílias e da civilização.

Na análise com crianças, é possível ler, através dos equívocos e dos lapsos, o que se escreve a partir do corpo fora do corpo, do corpo como Outro, e que surge como acontecimento, como grito silencioso, índice, letra, que abre a possibilidade de inscrição de sua singularidade. É importante localizar o índice inconsciente, a cifra que permite escrever a marca singular do gozo de cada um a partir do saber fazer com as palavras mais além do corpo, para poder dar lugar e nome a uma diferença.

 


Referências 
BARROS, R. Lacan e o acontecimento de corpo. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 217-219.
BARROS, M. Lacan e a criança. Opção lacaniana, 62, 2011. pp. 227-229.
BARTHES, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BONNAUD, H. Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris France : Navarin, 2015.
KUPERWAJS, I. Silêncios. Texto publicado no Boletim infamiliar do XXIII Encontro Brasileiro do campo Freudiano, 2021. Disponível em: https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/wp-content/uploads/2020/12/Kuperwajs-Irene-Sile%CC%82ncios.pdf.
LACAN, J. (1964-1965) O seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito.
LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 238-324.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica do IPSM-MG em 06/07/2022. 
2Silence and verbalization: A suplement to the theory of the analytic rule (1949). (Trad. J. D. Nasio) Le silence en psychanalyse. Paris: Payot-Rivages, 1998. In: Lacan, J. Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965), p. 460. 



As TCCs e sua tentativa de reduzir o ser falante ao organismo

Margaret Pires do Couto
Aderente da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise.
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação/UFMG e
pós-doutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
coutomargaret@gmail.com

 

Resumo: O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo.

Palavras-chave: Corpo; Psicanálise; Gozo.

The TCC’s and it’s attempt to reduce the speaking being to the organism 

Abstract: The article discusses how the belief in the existence of a natural body supports the attempt operated by Cognitive Behavioral Therapies (TCC) to reduce the speaking being to the organism. It is a body that supposedly should be quantified, domesticated and, therefore, adapted to the ideals of culture. On the contrary, psychoanalysis teaches us that a habitable body is not a biological datum. It is the fruit of the clash with language, the place of jouissance.

Keywords: Body; Psychoanalysis; Jouissance.

CAROLINA BOTURA. LONGEEUMLUGARQUENAOEXISTE

 

Um dos modos de rechaço à psicanálise que temos enfrentado no cotidiano de nossa clínica tem ocorrido por meio do encaminhamento em massa, especialmente de crianças e adolescentes, para as psicoterapias de orientação cognitiva comportamental. Os pais ou responsáveis relatam que esse direcionamento é realizado pelo médico pediatra, por diferentes profissionais da saúde, como também pelos profissionais da educação. Com a promessa de eficácia, objetividade e rapidez nos resultados, a terapia cognitiva comportamental (TCC) opera uma nova forma de governo da infância e da subjetividade.

Constatamos também a invasão dos ideais adaptativos dessa abordagem terapêutica na formação tanto dos profissionais da saúde como dos profissionais da educação.

A suposição de um corpo naturalizado, que existiria de forma independente da linguagem, ancora a tentativa de reduzir o ser falante ao organismo. O fascínio provocado no meio médico e educacional por essa proposta terapêutica se verifica em função da crença que é possível se ter o acesso a esse corpo de forma direta e, assim, quantificá-lo, padronizá-lo e adaptá-lo aos ideais vigentes. A promessa da eficácia promove uma verdadeira simplificação que exclui o sujeito, o gozo e o real na difícil tarefa de habitar um corpo.
Desconstruindo a TCC

Encontramos, de acordo com Aflalo (2012), uma aliança neo-higienista da psiquiatria biopsicossocial e o ideário da TCC. Nessa aliança, a clínica psiquiátrica é esvaziada de seu conteúdo e a investigação diagnóstica é substituída pela prática de questionários. Seus métodos contribuem para a propagação de uma ideologia duvidosa que sustenta um novo racismo científico. A psiquiatria psicobiossocial se faz passar por um humanismo científico, embora seja especialmente uma espécie de biorreligião a serviço das TCCs.

A discussão de cinco pontos nos permitirá estabelecer as bases da TCC e seus limites teóricos:

1. O pretenso cognitivismo das TCCs

Para Laurent (2007), a cognição a que se refere o termo terapia cognitivo comportamental não é a cognição definida pelas chamadas ciências cognitivas. Ela não permite estabelecer nenhum laço demonstrativo entre a prática das TCCs e os modelos teóricos propostos pelas ciências cognitivas. O pretenso cognitivismo das TCCs é, antes, uma bricolagem teórica. As terapias do mesmo nome são, na verdade, uma aplicação direta e técnica de duas teorias, inclusive opostas em seus princípios: a teoria comportamental e a teoria cognitivista. A concepção da natureza humana não é a mesma para os partidários do comportamentalismo e do cognitivismo. Para os primeiros, homem e animal são idênticos, pois não há diferença entre a adaptabilidade do comportamento humano e a do rato em laboratório. O humano seria apenas a soma de comportamentos, haveria apenas o organismo. Para os cognitivistas, o ser humano estaria identificado com um de seus órgãos, o cérebro, reduzido ao funcionamento de um computador. O pensamento não passaria de uma soma de programas informáticos e haveria apenas linguagem, porém, reduzida a um código.

Os dois projetos se opõem fundamentalmente. Entretanto, o que uniu essas duas formas de pensar o ser humano, apesar de suas diferenças de origem, foi a rejeição do humano como um ser de fala. Sua abordagem reducionista lhes permite afirmar que o psiquismo obedece apenas ao determinismo do organismo. Sejam quais forem os ideais em jogo, a etologia do comportamentalismo ou a máquina artificial do pretenso cognitivista, nega-se a dignidade do ser falante e a verdade de sua queixa.

2. A falsa ideia da saúde mental

A crença na existência de uma “saúde mental” é uma viga central do edifício da TCC. Entretanto, sabemos que é impossível definir cientificamente o que seria essa “saúde mental”; ela é, contrariamente, definida por uma norma moral. Os especialistas da TCC mascaram esse impossível, fazendo da saúde mental um conceito estatístico. Substituem a realidade dos fatos pela realidade estatística como se os cálculos bastassem para fazer existir a realidade do que é calculado.

Após definirem que existe uma norma mental e uma normalidade psíquica, todos os que dela se afastam, que não se tornaram a média estatística, são os desviantes, portadores de patologias mentais a serem reeducadas.

Assim, os teóricos da TCC desconhecem que a condição de ser sexuado e mortal do ser falante está na origem de vários sofrimentos “psi” e que o real do psiquismo, do mental, é o gozo.

3. Protocolos e questionários: a propagação de um cientificismo

O método dos questionários busca garantir que os comportamentos possam ser observados, codificados e quantificados. Desse modo, os comportamentos são reduzidos às listas de questões simples, às quais são atribuídos valores numéricos. A metodologia se resume à fabricação do questionário com o objetivo de formular questões objetivas e elaborar um protocolo, entendido como um conjunto de perguntas.

A prática dos questionários se afasta muito da experiência clínica. A cotação das respostas da avaliação substitui a qualidade pela quantidade, a descrição dos fenômenos por números que são organizados em estatísticas feitas para velar a falha estrutural do saber. Essa máquina enlouquecida da avaliação pretende uniformizar tudo em uma espécie de código universal.

4. O supermercado dos diagnósticos e a demissão da clínica

A psiquiatria é a única disciplina médica em que os diagnósticos são estabelecidos com base não na causa real da doença, e sim no efeito que os medicamentos têm sobre ela. As classificações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) são fabricadas com o mesmo procedimento de avaliação: são objeto de cálculos estatísticos. O DSM não originou nenhuma verificação independente que levasse em consideração o princípio da falseabilidade ou refutabilidade de suas descobertas, princípio fundamental de certificação de um conhecimento científico de acordo com Karl Popper.

Nessas classificações, nunca se trata do sujeito nem da clínica do caso. Está em jogo apenas o consenso dos psiquiatras. Trata-se de uma espécie de “ditadura do consenso” (AFLALO, 2012), ou seja, o que se leva em conta não são fatos em si, mas sim o consenso dos especialistas, que devem satisfazer também as companhias seguradoras para as quais trabalham. Na impossibilidade de verificar os sintomas “psi”, os especialistas os negociam, mantendo apenas o que pode fazê-los concordar entre si.

5. Sintoma: um erro cognitivo

As TCCs tentam impor a ideia segundo a qual o sintoma “psi” é um distúrbio, cuja origem seria tripla: falta de aprendizagem, componentes biológicos e sociais, motivo pelo qual se tornou “biopsicossocial”. Há uma operação de redução do sintoma “psi” por meio de três operações:

1) Transforma o normal em normativo: esconde o fato que a norma “psi”, inacessível à ciência, sempre se fundamenta num julgamento de valor, ou seja, decorre da moral.

2)Transforma o mental em orgânico: utiliza-se das estatísticas para assentar o mental com as ferramentas conceituais aplicáveis ao organismo. Na falta de poder ver o órgão mental, cujas disfunções valeriam para todos, a norma do mental é fabricada com estatísticas que se fazem passar por uma verdade universal.

3) Utiliza-se do artifício do cálculo estatístico forçando a passagem do patológico para o normal, da doença mental para a saúde mental. A média estatística se torna a norma estatística e, por fim, a normalidade mental.

Para se tornar avaliável, o sintoma é transformado numa grande quantidade de itens simplórios. É reduzido a pequenas unidades de comportamentos ou de cognições, a fim de encontrar uma significação constante, facilmente calculável. O sintoma é reduzido a uma quantidade excessiva a ser corrigida. Desse modo, estabelecem listas de sintomas, ou seja, “faltas observáveis de comportamento e de pensamentos” que sempre esbarram nas questões do ser vivo e sexuado. A ineficácia dessa fabricação de sintomas impele sempre a inventar outros, principalmente ditos de personalidade. Assim, as TCCs tropeçam sempre no problema da persistência dos sintomas e das personalidades desviantes, refratárias às recompensas dadas para normatizá-las ou fazê-las desaparecer.

O sintoma é concebido como um erro que não tem a ver com a verdade, mas como um erro de consciência, do cognitivo. Nessa perspectiva, as terapias da TCCs são aprendizagens padronizadas, metódicas e breves.

Por fim, encontramos, nesse empuxo à quantificação e nesse modo de abordagem terapêutica, a tentativa de desembaraçar-se do sujeito, do gozo e do real. Por outro lado, o sujeito da experiência analítica demonstra ser intraduzível às neurociências e ao código das TCCs e demonstra como a consistência do corpo do falasser depende de uma amarração singular.
O corpo sinthomatizado e a presença do analista

No último ensino de Lacan, o corpo é abordado em sua vertente de gozo, em sua vertente real para além do campo da imagem. Para se manter unido, necessita estar amarrado aos registros imaginário e simbólico indicando que sua consistência não se dá naturalmente, ao contrário, precisa sempre de algum artifício para se sustentar. Um corpo relativamente habitável, unificado e estável não é um dado biológico. A maneira como esse corpo se mantém e a forma pela qual se dá a união entre o corpo, a substância gozante e a fala torna-se para Lacan um verdadeiro mistério (LACAN [1972-73]1985).

Como uma caixa de ressonância, o corpo é o lugar onde se experimentam os afetos e as paixões, muitas vezes desconhecidos pelo ser falante. Denominar o corpo de “falante” significa dizer que ele é traumatizado por essa língua primeira, que deixa marcas de gozo. Nele se deposita o gozo, que não é subjetivado e nem transformado em enunciação, e, por isso, não pode ser apropriado pelo sujeito. Trata-se, portanto, de um corpo parasitado pela linguagem, marcado por signos que evocam a presença muda de um gozo que ultrapassa o registro fálico (MILLER, 1999).

Desse modo, o corpo traumatizado por alíngua se difere radicalmente do corpo, supostamente natural e já dado por antecipação da TCC. Para as TCCs, o corpo é uma máquina, regulado por leis naturais, separado do campo da linguagem, do Outro e especialmente do gozo.

Nessa perspectiva, Laurent, em “O avesso da biopolítica” (2016), discute como o discurso da ciência busca identificar o ser falante ao seu organismo, eliminando o gozo. O discurso da evidência orgânica recorre à imagem do corpo para fazer desaparecer o real do gozo. O corpo-máquina faz par com o corpo-imagem, por um lado, dividindo esse corpo em unidades sempre mais numerosas e mais complexas, e, por outro, fazendo uma falsa imagem unificada, que se reproduz em variadas telas. A forma do corpo, bem como a multiplicação de suas imagens, fascinam e se oferecem como remédio contra a angústia contemporânea.

“A força da imagem em todos os níveis é encarnar, num objeto separado, o que da lógica subjetiva escapa à representação. Não se vê o sujeito, mas se veem as imagens do corpo, de sua forma e de seu funcionamento. Querer reduzir o sujeito ao seu corpo faz parte da tentativa de identificar o ser falante (être parlant) ao seu organismo” (LAURENT, 2016, p. 16).

Lacan, ao contrário desse discurso da tecnociência, enfatizou a divisão entre o sujeito e sua imagem. A ideia de si mesmo como um corpo implica uma crença, a crença de tê-lo diante do fato que ele, o corpo, escapa o tempo todo. O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN [1975-1976], 2007 p. 64).

É o que nos ensina Samantha, uma garota de 12 anos que, após ter passado por uma TCC e serem constatados problemas relativos ao corpo, nomeados desordem do movimento postural-ocular e déficit de integração, chega à análise. Tratado como um caso de um organismo defeituoso, como um transtorno, nada do corpo, como caixa de ressonância do gozo de lalíngua, é vislumbrado nesse tratamento. Como consequência, seu modo singular de vivificação e amarração desse corpo vacilante, que ameaçava escapar o tempo todo, foi desconsiderado. É durante o tratamento analítico que Samantha inventa uma solução validada pela analista: ela passa a se utilizar do cosplay1, um recurso imaginário que lhe permitiu dar consistência ao seu corpo e protegê-lo de um gozo devastador.

 


Referências
AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007
LAURENT, É. As TCCs não fazem parte do programa cognitivo. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
LAURENT, É. El cognitivismo o el cuerpo sinthomatizado. In: Blog-Note del sintoma. Buenos Aires: Tres Haches, 2006.
LAURENT, É. El atravesamiento del sistema de la ciência. In: El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches, 2010.
LAURENT, É. O falasser político. In: O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
MILLER, J.-A.  Elementos de biologia lacaniana. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – MG, 1999.

1. Cosplay é um termo em inglês, formado pela junção das palavras costume (fantasia) e roleplay (brincadeira ou interpretação). É considerado um hobby no qual os participantes se fantasiam de personagens fictícios da cultura pop japonesa. 



Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes1 Sílvia Reis Soares 

Psicóloga
Coordenadora adjunta do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental
silvia_moc@hotmail.com

 

Resumo: A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro.

Palavras-chave: psicanálise; infância; adolescência; internet.

ALGORITHMS, PROTOCOLS AND SPONSORED CONTENT: A PROBLEMATIC COMBINATION WITHIN CHILDREN AND TEENAGERS CLINIC.

Abstract: Psychoanalysis with children and teenagers has presented several crossings from the incidence of technology, the internet, and social networks. The implication of the analyst in this context is investigated here, in view of the shift in the relation with knowledge, which no longer passes through the assumption of the Other.

Keywords: psychoanalysis; childhood; adolescence; Internet.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

 

I – Estamos na Era da Informação

A internet, criada como Arpanet em 1969, tinha como objetivo interligar laboratórios de pesquisa americanos. Nesse mesmo ano, tivemos também o envio do primeiro e-mail da história. Com a expansão de seu uso, dominou o âmbito acadêmico e se tornou conhecida como Internet. Seu uso comercial foi liberado em 1987 e, posteriormente, empresas fornecedoras de provedores de acesso começaram a surgir. E assim, em 1992, o Laboratório Europeu de Física de Partículas (Cern) inventou a World Wide Web, o famoso www que precede os endereços virtuais, e as informações passaram a estar ao alcance de qualquer usuário. No Brasil, a exploração comercial foi liberada em 1995 e, desde então, temos nos deparado com a difusão da rede e sua multiplicação de formas de exploração (SILVA, 2001).

Com o lançamento do Google, em 1997, a história da internet teve um ponto de virada, disponibilizando a rede para um público extenso e oferecendo o uso de um navegador, tornando-se também o principal mecanismo de buscas, que conta com cerca de 1 bilhão de páginas indexadas, fornecendo agilidade e facilidade ao acesso de informações em decorrência de seus algoritmos (ROCK CONTENT, 2020). Em seguida, surgiram as redes sociais, representando uma forma de contato direto, rápido e possibilitando a troca de informações e o acesso às notícias em tempo real. Importantes serviços foram criados, como o Facebook, o YouTube e o Instagram.

Todas essas são plataformas que servem de entretenimento e são difusoras de informação, substituindo as mídias tradicionais e trazendo tudo ao alcance das mãos. Quantas não foram as revistas e os jornais que deixaram de existir, uma vez que a informação se encontra disponível de graça? Quantos canais de televisão precisaram adequar seu conteúdo e formato ao perder espaço para a Netflix e afins? Desse modo, a internet desencadeou a Quarta Revolução Industrial e o mundo passou a estar na Era da Informação (ROCK CONTENT, 2020). Nesta etapa, conhecida como Internet 2.0, os usuários passaram de uma posição passiva, de meros consumidores, para uma posição ativa, na qual interagem entre si na posição de criadores de conteúdos, confluindo para os influencers da atualidade, ou seja, pessoas que produzem conteúdo e se destacam nas redes em que se encontram. Diante desse cenário, as empresas logo perceberam todo o potencial envolvido e hoje já não se pode falar da internet sem a publicidade que nela encontramos.

É quando surgem em cena os famosos algoritmos, “sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo…” (ROCK CONTENT, 2020, n.p.). São instruções dadas por quem os programa para que resolvam problemas matemáticos, executem tarefas ou realizem cálculos. Assim, com a inserção da publicidade no ambiente virtual, os algoritmos foram ajustados de modo a privilegiar alguns fatores, como a temporalidade, o engajamento e o relacionamento. Organiza a timeline do usuário de modo que os conteúdos exibidos sejam os mais recentes e que estejam recebendo bastantes interações (curtidas, comentários, compartilhamentos), além de priorizar os usuários com quem há interações frequentes. Então, os algoritmos destacam o que entendem ser do interesse do usuário e mostram conteúdos que avaliam como relevantes.

II – Adolescência e atualidade: entre o ideal e o possível

A adolescência, construção social acerca do que a psicanálise compreende como puberdade, é o momento da vida em que o sujeito já não é mais criança e passa a ser tomado pelas irrupções do real do corpo, que está em constante mudança. Miller2 (apud DRUMMOND, 2016) aponta que, tratando-se da adolescência, nos ocupamos de três aspectos: a saída da infância, a diferença dos sexos e o desenvolvimento da personalidade. É, então, um momento crucial, visto que é quando o sujeito se depara em um encontro com o impossível e, a partir do qual, precisará construir uma resposta. “Receber um adolescente é receber alguém em um impasse, pois se defronta com as mudanças corporais, identificações, a lida com os outros e com o Outro, relação com o sexo. Impasses estruturais, encontros com o real, diante dos quais o sujeito se vê desamparado” (STIGLITZ, 2016, apud MEZÊNCIO, 2017, p. 78). Assim, o adolescente encontra-se, naturalmente, envolto a essas questões e, considerando o enfraquecimento do Nome-do-Pai e a proliferação de objetos, o saber já não faz enigma, estando acessível a qualquer momento e em qualquer lugar: ele está ao alcance das mãos. Ou você nunca pediu a alguém que procurasse uma resposta no Google?

Lacan nos diz em “Televisão” que, em nossos tempos, o objeto a foi elevado ao zênite social, ou seja, temos localizado no mais alto ponto do céu o mais de gozar como dominante. “Este primado do objeto a, próprio da época do Outro que não existe, deixa para trás, a identificação simbólica ao ideal” (AMENDOLA, 2020, n.p.). Assim, a inserção social se faz menos por identificação do que por consumação, como aponta Miller.

O celular, gadget que permite o acesso aos apps (aplicativos), está sempre disponível. Não é incomum crianças e adolescentes queixando-se nos consultórios de quererem ou precisarem de um aparelho. Ou, ainda, tem sido frequente ouvir deles que o celular, e até especificamente o TikTok, são motivo de eles viverem, são pontos que os ligam à vida.

O que tem sido percebido na clínica é que o uso excessivo de celulares e afins privilegia relações intermediadas pelo aparelho, o que destaca a total desorientação do adolescente quando privado de seu acesso. É comum vermos um grupo de pessoas próximas fisicamente, em que está, cada uma, atenta ao conteúdo de seu dispositivo, e até mesmo relacionando entre si por meio das redes sociais, em detrimento da relação vis-à-vis. Para além disso, frente às frustrações decorrentes, pouco tem sido possível enquanto saída privilegiada pelo simbólico e frequentemente nos deparamos com atos sobre o corpo como forma de alívio ou punição. Miller nos coloca que os sujeitos contemporâneos hipermodernos são desorientados, sem uma bússola norteadora, o que favorece a imposição do objeto a a esses sujeitos desamparados. “O mais de gozar se esgueira através das redes…” e dita várias formas de burlar o circuito natural dos corpos e da vida (AMENDOLA, 2020, n.p.).

III – Quando os algoritmos encontram sujeitos desorientados: uma angústia infinita

A relação do sujeito contemporâneo com o saber já não é a mesma de outrora. Não se supõe mais que o outro sabe, visto que ele o detém. É comum nos depararmos com influencers seguidos por milhões de pessoas, mas de quem nunca ouvimos falar. Que conteúdos produzem, afinal? Muitos dançam trechos musicais coreografados que se tornam verdadeiros virais, outros dublam cenas famosas de filmes, fazem pegadinhas, promovem desafios, etc. Os conteúdos em vídeo já são privilegiados quanto aos estáticos dos textos e imagens, convocando os usuários a se adequarem às regras para aumentar o engajamento.

Uma das mais recentes redes sociais em evidência é o TikTok. O aplicativo chinês mais baixado de 2021 é uma rede de compartilhamento de vídeos curtos que monta a sua timeline conforme os conteúdos que o usuário se interessa por consumir. Criado em 2016, é um dos poucos apps que ameaçam a hegemonia da Meta, empresa detentora de Facebook, Snapchat, Instagram, WhatsApp e outras mais. Seu feed é formado pela chamada timeline infinita, ou seja, o conteúdo selecionado é escolhido a partir dos algoritmos e não há um fim, não tem momento para o conteúdo acabar. Essa nova configuração implica numa série de sérias consequências: a falta faz falta! E é aí que mora a angústia.

Em estudos recentes, pesquisadores perceberam que os vídeos curtos de conteúdo agradável ao usuário ativam áreas do cérebro ligadas ao sistema de recompensa, o que produz sensação de prazer e satisfação. Assim, ao assistir a um vídeo do aplicativo, ativa-se a produção de dopamina, produzindo sentimentos de felicidade e alegria. Diante do aumento do recebimento do neurotransmissor pelo cérebro, mais ele demanda, contribuindo para sua entrada em estágio de saturação e diminuindo a sua sensibilidade, de modo a necessitar de uma quantidade maior da substância.

IV – O discurso capitalista e o saber: fonte de parva riqueza

É diante de todo esse contexto que temos uma combinação deveras problemática: uso excessivo das redes sociais, aplicativos que te entregam o que te agrada, ainda que não solicitado, e a inexistência da falta ou, ao menos, de um hiato que possa suscitar um questionamento, são imperativos de gozo: Compre! Seja! Faça! Nessa seara, muitos encontraram a oportunidade de se venderem enquanto produtos a serem consumidos: “Te ensino a ganhar dinheiro com o Instagram! Compre meu curso! Siga o meu perfil!”. E o resultado disso é a venda de soluções rápidas por pessoas que ocupam o lugar de mestre e que interpretam o desconhecido (vide as caixinhas de perguntas), mas privilegiando formatos standards de como fazer, vender ou tratar.

Para que o analista esteja à altura de sua época, é preciso que esteja atento ao modo como o falasser se manifesta. Márcia Mezêncio diz que “o laço transferencial é a oferta que cabe ao analista […] e que esse laço é o que pode produzir um lugar onde o sujeito possa se enganchar” (2017, p. 75). E, a partir disso, cavar um amor epistêmico ao inconsciente. Diante disso, então, pergunto: o que faria o analista, em sua posição de semblante do objeto, causa de desejo, diante do sujeito que acredita ter o objeto em suas mãos? Como convocar o sujeito a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco?

 


Referências
AMENDOLA, A. F. O discurso analítico: uma pausa vivificante. Lacan XXI – Revista FAPOL online. 2020, vol 1. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2020/05/26/o-discurso-analitico-uma-pausa-vivificante/?lang=pt-br Acesso em 02 out. 2022.
Conheça a história da Internet, sua finalidade e qual o cenário atual. Rock Content Blog, 2020. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/historia-da-internet/ Acesso em 02 out. 2022.
DRUMMOND, C. Gide e a imiscuição do adulto na criança. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 42, jul./dez. de 2016.
LACAN, J. Televisão. Outros escritos São Paulo: Zahar Editor, 1993.
MEZÊNCIO, M. A constituição do sintoma na juventude: deriva e ruptura. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 43, abr. 2017.
O GLOBO, A. Como o TikTok atua no cérebro e vicia jovens em seus vídeos curtos. EXAME, 2022. Disponível em https://exame.com/ciencia/como-o-tiktok-atua-no-cerebro-de-jovens-com-videos-curtos-e-personalizados/. Acesso em 04 out. 2022.
Saiba como funciona um algoritmo e conheça os principais exemplos existentes no mercado. Rock Content Blog, 2019. Disponível em: https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/ Acesso em 03 out. 2022.
SILVA, L. W. Internet foi criada em 1969 com o nome de “Arpanet” nos EUA. Folha de S. Paulo, 2001. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u34809.shtml Acesso em 02 out. 2022.

1 Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Saúde Mental da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022. 
2 Texto de encerramento da 3ª Jornada do Institut de l’Enfant, 2015. 



Almanaque on-line entrevista Margarida Elia Assad

Margarida Assad
Psicanalista, membro da EBP/AMP e professora aposentada da UFPB.

 

CAROLINA BOTURA. CABEÇA

 

ALMANAQUE ON-LINE: Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. Não são poucos os testemunhos dessa forma de laço, como vemos, por exemplo, nos grupos terapêuticos ligados às adições. Seguindo ainda com Miller, ele também destaca uma outra forma de enlaçamento social presente nos chamados grupos extremistas, que, mais recentemente, surgem também no Brasil, nos quais o que estaria em jogo seria a articulação entre a identificação e a pulsão de morte. Que leitura é possível extrair dessa “psicologia de grupo” contemporânea?

MARGARIDA ASSAD: A psicologia de grupo freudiana certamente está sendo renovada pela queda do patriarcado presente na atualidade. Mesmo na falta dos significantes para os Nomes-do-Pai, que sustentavam os ideais dos grupos, os laços sociais se fazem demonstrando que sua causa não é o amor ao Pai, mas uma falha irredutível, causa do inconsciente. Essa falha irredutível se introduz pela via da estrutura de linguagem, pelo Outro, tornando o corpo, objeto dessa marca, um ser destinado ao social, destinado a fazer laços. Assim entendo o aforismo lacaniano “o inconsciente é a política”, uma vez que, por política, a psicanálise entende esse laço irredutível que o corpo falante mantém com o social. E, por ser um laço irredutível, uma unidade perdida, resta ao falasser fazer, desse furo marcado em seu corpo, uma identificação para si mesmo. Laurent esclarece que seria uma identificação a “dar sentido” a essa “experiência fora-de-sentido inerente a todo falasser” (2016, p. 65).

Temos assistido no mundo uma nova configuração social, desenhada por grupos com diferentes identidades. Nem todos apresentam identidades de gozo articuladas à pulsão de morte. Alguns desses grupos se reúnem em torno de um significante que possa permitir que o laço social seja mantido, impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem. Marcus André propõe a identidade como forma de pertencimento a um grupo, o que o insere na cidade, destacando que no Brasil, em especial, a identidade salva vidas (VIEIRA, 2022, p. 65). Nesse sentido, precisamos fazer distinções sobre a interpretação que o discurso analítico pode fazer sobre a “psicologia de grupo contemporânea”. Alguns grupos e coletivos certamente se constituem numa lógica das paixões de gozo, que se radicalizam de forma feroz sobre a sociedade. Alguns são nomeados terroristas, pois seu desejo se expressa pela via da destruição e morte, como assistimos na depredação feita aos símbolos da República Brasileira no dia 8 de janeiro passado. Claro que nesses grupos existem diferentes identidades, das fascistas até os que imaginam que servem a um gozo imaginário, com valor de nomeação, como vimos no chamado grupo de “patriotas”, enrolados em bandeiras. Patriotas dá a eles um nome, uma identificação, que sustenta o vazio do não-saber quem são e, menos ainda, de seu desejo. Há muito a refletir sobre a formação moderna dos grupos. Nesses últimos, o que une tais indivíduos não é da ordem de um semblante, mas do puro real marcado pela vontade de morte no Outro, e não do Outro. Podemos pensar que há aí uma identificação construída sobre o que há no Outro de desejo de morte e que capitanearia, numa ordem de ferro, seus seguidores, satisfazendo sua vontade de gozo mortífera. Mecanismo semelhante à histeria moderna, na qual o sintoma é sintoma de um outro corpo, um sintoma em segundo grau (LAURENT, 2016, p. 28).

Fazer distinções sobre tais grupos é fundamental. Há grupos nos quais as identidades salvam e inserem seus participantes na cidade de forma civilizatória. E há grupos nos quais a identificação não se cristaliza na identidade, como diz Lacan1, podendo levar a um aumento da angústia do grupo ou levar ao pior, que seria a passagem ao ato na forma de destruição e morte pela absoluta identificação ao desejo de morte no Outro.

 

AOL: Ainda nesse tema sobre o discurso do mestre em nossa época, lembramos que a psicanálise aplicada é uma tentativa de diálogo com esse discurso. Hoje, um de seus pontos fundamentais seriam as classificações universalizantes próprias a uma psicopatologia que se apresenta como científica, cuja perspectiva se baseia, em última instância, na homogeneização do sintoma, reduzindo-o a um transtorno especializado. Nesse sentido, o que parece estar em questão é uma tentativa de enquadrar o gozo em um diagnóstico prêt-à-porter, ignorando, portanto, o efeito único e irredutível do encontro de cada sujeito com a linguagem. Diante disso, que diálogo se faz possível?

M.A: O discurso psicanalítico tem hoje uma tarefa da maior importância para o mundo contemporâneo. O discurso científico, ao tentar homogeneizar os sintomas, de forma a classificá-los por sintomas comuns a cada classe, replica o que vem ocorrendo na proliferação de grupos, em que se buscam nomeações que possam preencher o vazio das identificações. Temos hoje uma excelente demonstração dessa liquefação das identificações em identidades sem nenhuma relação com a singularidade do sujeito. Carolina Castelliano, da Defensoria Pública da União e secretária de Atuação no Sistema Prisional, afirmou, durante o UOL News, que muitos dos golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília, na maioria mulheres, apresentam sintomas de desconexão com a realidade e que elas próprias não entendem como praticaram os atos de violência. Foi criada uma identidade de grupo, ela diz, que eliminava a subjetividade de cada um: ao que o grupo determina, o sujeito adere. A pessoa se tornou o grupo, diz Carolina, “elas sentem falta do grupo quando são mantidas isoladas”. Essas observações da defensora pública nos ajudam a interpretar o que vem acontecendo com o sujeito moderno.

O neoliberalismo associado ao discurso capitalista vem oferecendo soluções às questões subjetivas para todos, indiscriminadamente. As famílias e as instituições sociais são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguir sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo. Hoje, por exemplo, temos formas diferentes de parentalidade que não assombram mais seus filhos, para usar um termo que Laurent isolou em Lacan: épater (assombrar, chocar). Cabe ao discurso analítico ofertar um diálogo com essas novas coordenadas do simbólico escutando as irrupções, as manifestações de angústia, fazendo frente, fazendo um judô (LAURENT, 2016, p. 36) com esses novos discursos. Laurent propõe que se investigue, nas novas formas do masculino e do feminino, “o que serve de pai na configuração dos gozos de hoje” (BARROS, 2022, p. 123). Podemos ficar com essa indicação, que pode orientar a prática dos analistas nesses grupos e coletivos, escutando de que forma a sexuação se mantém na ordem do dia definindo os sintomas contemporâneos.

 

AOL: No tocante à clínica, ela tem nos mostrado, nas últimas décadas, casos que se manifestam, predominantemente, sob formas de gozo, que convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Na sessão clínica de Angers, Miller interroga se essas novas formas como as psicoses podem se apresentar na atualidade, designadas, por fim, como psicoses ordinárias, não exigiriam uma nova posição do analista, propondo pensá-la sob a forma de uma neotransferência. Você pode nos esclarecer o que a particularizaria? E poderia nos dar alguma referência de sua clínica?

M.A: O último ensino de Lacan nos traz novas leituras para a transferência. Se a fala do analisando produz efeitos, não é certo que isso se deva exclusivamente à transferência, ou seja, que seria pela suposição de saber em análise que tais efeitos tenham surgido. A extensão feita por Lacan do significante à letra nos permitiu ler de outra forma o inconsciente em análise. Lacan reenvia, cada vez mais em seu ensino, a fala à escrita. Um escrito feito pela letra de gozo presente no acontecimento de corpo. Essa nova modalidade de leitura para o inconsciente exige que a prática do analista o leve a escutar, pela sonoridade de lalíngua, a fixação de gozo no que se diz. Escutar deixando-se ir além do que se diz, escapando à rotina de aparolaNesse sentido, a fineza da escuta analítica é estar à altura da interpretação feita pelo inconsciente sobre o trauma da linguagem. Isso promove uma nova leitura do conceito de transferência, levando-a ao estatuto de lalíngua, fazendo do analista um parceiro do corpo-intérprete. Podemos lembrar da paciente de Helenice Saldanha, citado em um texto recente da Correio (CASTRO, 2002, p. 90), quando a queixa de ser indigente ganha uma nova leitura a partir de se descobrir negra. Não se trata de um deslizamento de um significante a outro, mas de uma ruptura entre o simbólico e o imaginário, eclodindo um efeito real, um novo dizer que tem aí o estatuto de acontecimento de corpo.

Entrevista realizada por Letícia Mello, Márcia Bandeira, Patrícia Ribeiro e Renata Mendonça.

 


Referências 
ASSAD, M. “O impossível e o laço, o analista e a época”. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Analista: Presente. 2022.
BARROS, M. R. C. R. “Como viver a infância hoje? O que Lacan nos ensina sobre a sexuação na atualidade”. Latusa, 26. Rio de Janeiro, 2022, p. 123.
CASTRO, H. S. “Notas Sobre a Dimensão Política do Corpo”. Correio 87. São Paulo: EBP, 2022. p. 90.
LACAN, J. (1945). “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 213.
LAURENT, É. “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Entrevista à La Cause du Désir. Correio 87. São Paulo: EBP, 2016. p. 28.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 65.
UOL. “Golpistas presos alegam que não sabiam objetivo do ato no DF, diz defensora”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/19/golpistas-presos-alegam-que-nao-sabiam-objetivo-do-ato-no-df-diz-defensora.html.
VIEIRA, M. A. “O que se cristaliza em uma identidade”Latusa, 26. Rio de Janeiro: 2022. Seção Rio-EBP.

1. LACAN, J. O seminário, livro 24. Lição 12-11-1976. Citado por VIEIRA, 2022.



Um corpo de angu1

Nathália Temponi Natal 
Psiquiatra das Redes de Saúde Mental de Itabirito, Mariana e Ouro Preto
nathtemponi@uol.com.br
 Cláudia Reis 
Psicanalista, membro da EBP/AMP
claudia.r.reis@terra.com.br

Resumo: Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e ,Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro.

Palavras-chave: Toxicomanias; psicose; instituição; analista.

A BODY OF ANGU

Abstract: This writing was constituted from a presentation at a Clinical Section of the Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, in which Nathália was responsible for writing about the clinical case and ,Cláudia, for the comments. Our field of interest was to investigate the relationship that a subject can maintain with a toxic substance and the analyst’s position in conducting the clinical case and, consequently, verify the effects of this encounter.

Keywords: Drugaddictions; psychosis; institution; analyst.

 

CAROLINA BOTURA. OCORPOABRIGA

 

Rogério foi acolhido na instituição de Saúde Mental em 2007, encaminhado pela Unidade Básica de Saúde com relato de que havia chegado agressivo e alcoolizado. Quando lhe perguntado o motivo do encaminhamento, respondeu:

“eu bebo desde o dia em que nasci, minha mãe colocava cerveja na mamadeira e me dava. Meu pai que mandava ela fazer isso, porque eu era muito agitado. Bebo para ver se alivia minha cabeça e se diminui meu estresse. Acho que tô piorando minha cabeça; já tentei parar de beber várias vezes e não consigo. Não consigo resolver meus problemas. Tem hora que eu penso que vou machucar alguém de tanto estresse. Quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram. Quero parar! Ninguém gosta de cachaceiro!”

Relata que, quando criança, via pouco o pai; sentia sua falta e, quando o encontrava, este lhe dava cerveja.

Assumo esse caso em 2019. A todos os plantões, ele chegava alcoolizado, falava muito alto, entrava nos consultórios e interrompia os outros atendimentos. Traz no corpo diversas escoriações, marcas de cortes e cicatrizes de suturas em sua face, por vezes fraturas de partes dos membros superiores, costelas e dentes quebrados. Sua marcha é atáxica, devido a sequela em trauma do quadril na ocasião de um acidente. Observa-se uma piora de sua marcha nos dois últimos anos, provavelmente pelo consumo acentuado do álcool.

Tem chegado cada vez mais machucado; a cada dia, um corte e uma nova sutura em alguma parte do seu corpo, geralmente no rosto e couro cabeludo, por consequência de quedas da própria altura pelo consumo intenso de álcool. Costuma dizer: “o cadáver chegou!”.

Em março de 2020 eclodiu a pandemia do coronavírus e Rogério acentuou o uso do álcool. Ao ser acolhido pela instituição, conseguia passar o dia sem beber, fazendo uso apenas quando chegava em casa e aos fins de semana. A equipe observou o quanto foi importante esse acolhimento devido à urgência que se apresentava nesse caso.

Destaca-se da fala de Rogério sua revolta na infância por ver pouco seu pai e a afirmação de que, quando se encontravam, este lhe dava cerveja. Dos prontuários da instituição, extrai-se, já no acolhimento, que, em sua realidade psíquica, mamava cerveja. Quando se refere a parar de beber, nos traz uma colagem com a morte: “quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram”. Mais adiante: “Eu já estou morto, quem bebe esse tanto já está morto”.

Tem-se uma queixa da falta do pai, relatos de um sentimento de abandono e desamparo e nota-se a presença da pulsão de morte. Esses pontos nos levaram a tomar o Lacan do início de seu ensino, em Complexos Familiares (LACAN 1938/2003), em que relaciona a toxicomania com o desmame. Aponta que o desmame representa a forma primordial da imago materna e que é um momento fundador dos sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. Portanto, instaura marcas importantes na formação do sujeito. Segue suas elaborações afirmando que, traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo a marca permanente da relação biológica que ele interrompe. O desmame é aceito ou recusado, e a continuação do desenvolvimento evocará as marcas daquela crise. É a recusa do desmame que tende a restabelecer esses primeiros conteúdos experimentados. Importante destacar que se trata de um período anterior ao advento do objeto. Diz ainda que esses conteúdos moldam as experiências psíquicas posteriores e são reevocados por associação. Quanto à imago, cito:

“tem que ser sublimada, para que novas relações se introduzam com o grupo social e para que novos complexos se integrem no psiquismo. Na medida em que resiste a essas novas exigências […] a imago, salutar em sua origem transforma-se num fator de morte. […] Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma original que lhe dá o desmame, revela-se nos suicídios […] naqueles que se evidencia a forma oral do complexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas. A análise desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe” (LACAN, 1938/2003, p. 41).

Que efeitos de sentido pode Rogério ter dado ao escutar que era cerveja que mamava?

Notamos uma desordem. Trata-se de um sujeito disfuncional. A forma como leva a própria vida, como não se conecta com o mundo que o cerca, o modo como experimenta seu corpo e o jeito de se relacionar com suas próprias ideias nos levam a tal afirmação. Não consegue ajustar-se socialmente, demonstra uma impotência em relação a conseguir encaixar-se num trabalho, suas relações são problemáticas. Seu corpo vagueia e tem a coordenação motora prejudicada. Um corpo que cai, corta, sutura, não se fixa; um angu, como bem nomeou a analista. Subjetivamente notamos um desenganche do Outro; a cabeça é ruim, porta um mal-estar, uma identificação com o objeto a como dejeto. Não se trata de uma identificação simbólica, mas real: “o cadáver chegou”.

A solução encontrada para todo esse mal-estar é beber. Poderíamos construir uma hipótese, a de que, diante da queixa da falta do pai, este lhe transmitiu esse modo de gozo? Ao aproximar a toxicomania da psicose, teríamos no gozar com o corpo uma forma de substituir o Nome-do-Pai?

Que lugar o objeto álcool ocupa para esse sujeito? O que essa substância representa, uma vez que sabemos que a intoxicação não é da substância, mas do significante?

Rogério está intoxicado pelo que essa droga representa para ele. Qual é o drama subjetivo que essa representação vem a responder?

Colhe-se em sua fala que se trata do encontro com o pai, o elo que os une. Desde seu nascimento (“a cerveja na mamadeira”), até a morte deste pai (“meu pai morreu bebendo comigo”), temos uma trajetória marcada pela presença dessa substância. Desde a falta do pai, sentida no início de sua vida, até a morte enquanto falta, Rogério encontra uma solução, um objeto que tampona, e até transborda: o álcool.

Como fazer desconsistir a droga e trilhar nosso objetivo, que é cavar a passagem do gozo da substância ao gozo pela palavra?

O gozo do toxicômano exclui o corpo do Outro, é autoerótico. Constitui-se como o suposto saber sobre o gozo, ou seja, tem-se uma certeza de gozo com a droga que é um objeto causa de gozo. A aposta da psicanálise é que existe o sujeito do gozo e o sujeito da palavra, e esta circula. Ao oferecer a escuta para que o toxicômano fale, pode despertar algo pulsional.

Nossa orientação teórica acredita que tem um sujeito do inconsciente no doente, por isso operamos a nível do sujeito, e não da droga, exigindo abstinência, por exemplo.

No que toca uma instituição para toxicômanos, sabe-se que esta precisa ser construída a partir do real e conviver com a ideia de que não há tratamento sem recaídas, e, exatamente por isso, tem que contar com algumas estratégias, como pudemos ver no relato do caso. Diante das transgressões do paciente, observa-se um vínculo, mas não muito apertado; um vínculo frouxo. Talvez por isso Rogério, aos trancos e barrancos do seu caminho, lá coloca seu corpo há 15 anos, e parece que ali endereça seu desamparo.

Tarrab (2000) fala da importância de se estar advertido e não ser tragado pelos discursos que circulam nas instituições. Deixar-se surpreender e apostar, sem garantias. Uma posição ética de escutar o sujeito mais além do nome que traz e o marca e dar lugar a sua particularidade. Delinear a entrada na transferência como uma possibilidade de saída.

Interessante o ponto de impasse da equipe diante da condução de tratamento. A solicitação de supervisão clínico-institucional foi uma saída importante. Encaminha-se, pela linguagem, o desafio de Rogério ao saber da equipe, que a colocava impotente e angustiada. Esta, a partir daí, sente-se mais segura para se posicionar e fazer o que precisava ser feito. Existem momentos em que as palavras faltam, e os pacientes passam ao ato para serem atendidos. Do ponto de vista terapêutico, é necessário realizar a internação, que muitas vezes lhes dará o limite corporal. As internações pontuais promovem um intervalo, um respiro.

Tivemos um dado importante que se deu durante a pandemia. Inserido como caso de exceção na PD, diminui o consumo. Nas enchentes deste ano, sem atendimento por duas semanas, a equipe o encontra com os cabelos e barba crescidos e humor deprimido. Poderíamos ter aí um indicador de que uma estratégia de mantê-lo em regime mais próximo poderia ser interessante?

Parece ser esse o desafio do caso. Algo da ordem de uma escuta mais regular, da construção de algum laço que lhe desse um lugar e possibilitasse modificar a posição do gozo desse sujeito, mais compatível com um corpo com outra consistência, que não a de angu.

 


Referências
LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003
TARRAB, M. Las salidas de la toxicomania. In: Más alla de las drogas: estudios psicoanalíticos. La Paz: Plural, 2000.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022.

 




 Tem alguém aí?1

Esteban Pikiewicz
Psicanalista, membro da EOL/AMP
epikiewicz@yahoo.com.ar

 

Resumo: O autor percorre os textos de Freud e de Lacan buscando elucidar o que estaria implicado na expressão presença do analista”. Ele destaca a ideia inicialmente desenvolvida por Freud sobre o analista como objeto e retomada por Lacan quanto à função do “desejo do analista” e do analista enquanto semblante do objeto a causa de desejo, vinculando a sua presença ao próprio conceito de inconsciente. Porém, acrescenta o autor, trata-se de uma presença real e, nesse sentido, nos reenvia a Lacan para afirmar que há, nesse desejo, algo de impuro.

Palavras-chave: presença do analista; inconsciente; desejo do analista; objeto a; real.

IS ANYONE THERE?

Abstract: The author goes through Freud’s and Lacan’s texts seeking to elucidate what would be implied in the expression.: “presence of the analyst”. He highlights the idea initially developed by Freud about the analyst as object, which is revisited by Lacan regarding the function of the “analyst’s desire” and of the analyst making semblance as “objet a cause of desire”, linking its presence to the very concept of the unconscious. However, the author adds, it is a real presence and, in this sense, he sends us back to Lacan, to affirm that there is something impure in this desire.

Keywords: presence of the analyst; unconscious; analyst’s desire; objet petit a; real. 

 

CAROLINA BOTURA. ORAÇÃO

 

Do título e da presença do analista

O que vou propor é um desenvolvimento preliminar, uma aproximação ao que foi trabalhado neste seminário sobre a questão da presença e, em particular, da presença do analista. Vou me valer desse termo para tentar vinculá-lo ao título desta aula: Existe alguém aí? é o título do livro de um grande poeta argentino, Joaquín Giannuzzi (1999), publicado pouco antes de sua morte. O título assemelha-se a uma significação vazia, pois exprime o conjunto de poemas encontrados no livro e não há nenhum poema dentro dele que se intitule assim. O conjunto de poemas, pode-se dizer, circunscreve algo do objeto que é o livro, cujo nome é o nome próprio do autor. O estilo de Gianuzzi é o da ironia, ou humor ácido, o “falar” das coisas cotidianas, insignificantes; da morte, da incerteza, o que se costuma chamar de poesia objetivista.

Agora, a covid-19, como acontecimento, virou nosso cotidiano de cabeça para baixo e, portanto, nossa prática e nossa experiência. Isso acentua ainda mais a pergunta: tem alguém aí? A cada vez que se produz o contato entre nós por esses meios, ou também entre analista-analisando, há, de algum modo, uma preparação, algo prévio, que se reitera, uma espécie de constatação ligada a essa insistência introdutória nas perguntas “Você me escuta?”, “Eles me veem?”, como perguntas sobre esse alguém aí.

Presença: o dicionário diz que se trata da circunstância de estar ou de existir algo ou alguém em determinado lugar. Deriva do latim praesentia, que descreve esse termo como a qualidade de estar diante. Algo que me parece importante destacar é o que se refere à condição de algo físico, algo que tem uma corporeidade. No dicionário se esclarece que o termo está ligado aos traços de algo ou alguém. Não tanto ao que o senso comum menciona como a aparência, mas sim aos traços. Nessa pandemia, precisamente, em que predomina a coronalíngua, se produz, inversamente, a limitação da presença dos corpos.

Sigmund Freud, mediante o sonho da injeção de Irma (FREUD, 1900/1996) — momento fundador da psicanálise —, constrói todo o aparato psíquico de três, que, como diz Germán Garcia, é um aparato patafísico, cuja propriedade é a de não existir dentro do tempo e do espaço euclidiano.

Nesse momento fundador, ele mostra algo que tem o atributo de ser um atrativo, algo que funciona como um ímã e que ele chamou de umbigo do sonho. Trata-se de algo que aparece no limite da decifração, pela via da fórmula química da trimetilamina — ela própria carente de sentido — e do que se apresenta mais além como indecifrável.

Dez anos mais tarde, quando já havia feito uma prática de seu invento, encontra algo homólogo ao umbigo do sonho. Estamos falando dos escritos técnicos (FREUD, 1912/1996). Eu me refiro à dinâmica da transferência, onde ele encontra a detenção nas associações em seus pacientes. Aí se faz presente um obstáculo, no qual Freud constata que se trata da pessoa do médico, sua presença. E, por sua vez, ressalta que é nesse momento que há uma maior produção transferencial: o amor de transferência como obstáculo.

Assim, pode-se fazer uma série de metáforas do irredutível: umbigo do sonho; bate-se em uma criança; o Kern/osso de toda neurose; o grão de areia na pérola neurótica etc. Não são esses conceitos, esses termos ou noções, os que poderiam se articular, fazer uma ponte, uma conexão em sua expressão, com a presença do analista? Lacan, no Seminário 1: os escritos técnicos de Freud (1986), fala da presença do analista “a brusca percepção de algo que não é tão fácil definir, a presença” (LACAN, 1953-1954/1986, p. 54) que é seu acontecimento e “frequentemente tinto de angústia (LACAN, 1953-1954/1986, p. 66). Mas acrescenta que há algo na presença que permite ao paciente tomar consciência de um enigma, um mistério. Aqui, nesse seminário, falou-se do enigma do mal, como algo cuja presença, enquanto humana, é um mistério. Talvez possamos pensar em algo que remeta à marca, uma marca. Lacan acrescenta ainda que há algo do enigma que não se pode experimentar constantemente porque se tornaria insuportável. Diz também que o humano vive tentando apagar isso que é a presença, e não perceber isso que é presença.

Voltando, se Freud forjou o aparelho psíquico com seus outros três — refiro-me ao consciente, pré-consciente, inconsciente e, mais tarde, Eu-Isso-Supereu —, sabemos que Lacan nos orienta com seus três: imaginário-simbólico-real.

Com esses três pode-se ajustar um pouco essa questão, dizer que a presença do analista dá conta de algo que não passa pelo simbólico — ou seja, não há associações — nem pela significação imaginária. No entanto, se nos remetemos ao Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ali se acentua que a presença do analista é uma manifestação do inconsciente (LACAN, 2008, p. 121–123). Podemos pensar se existe uma equivalência entre manifestação e formação do inconsciente. A manifestação parece “direta”, sem mecanismos que intervenham. Uma formação responde a certas leis. Lacan disse que há que integrar essa presença ao conceito de inconsciente. Eu acrescentaria presença do analista enquanto uma presença real. Vimos, anteriormente, nas “Conferências introdutórias à psicanálise: a transferência”, de 1916–1917, que Freud situa o analista na qualidade de objeto, de objeto no centro da neurose de transferência. Quer dizer, um Freud muito lacaniano no qual a presença, então, que é inconsciente, na medida em que está incluída no próprio conceito de inconsciente, aparece onde imagens e palavras claudicam. Em suma, é o que já conhecemos como instituição do objeto a, o parceiro essencial do sujeito, a essa altura (Seminário 11), causa do desejo.

Por que razão, ou por que, é relevante que, reproduzida essa neurose de transferência, nos encontremos com esse obstáculo que evidencia, com a presença, que ali não há memória ou representações?

Então, me atrevo a enfatizar que, justamente pela via dessa presença real do analista, sugere que não se trata apenas de interpretação ali. Ou, pelo menos, também deixo como proponho: trata-se — diria — de uma operação que põe em jogo, justamente, as sucessivas definições que nos são apresentadas sobre o que é interpretar. Ou uma interpretação que tem a ver com presença, ou seja, ligar algo ali com as variações e voltas que podem ser dadas sobre o que será interpretar, ou, se preferir, a diferença entre ato e interpretação.

Se o seminário sobre os conceitos fundamentais da psicanálise é um seminário que tem o caráter de dobradiça, no qual o ensino de Lacan começa a dar uma guinada em torno da conceituação desse objeto — o objeto a, causa do desejo —, isso se estrutura em torno dessa função que chamamos a função de causa do desejo: o objeto a, analista. Precisamente, o capítulo 10 do Seminário 11 se intitula “A presença do analista” (LACAN, 2008).

Presença e amor real

Penso que é muito interessante sublinhar algumas coisas, como fiapos. Primeiro, Lacan diz que é um termo muito bonito, ele o expressa assim. Em segundo lugar, para retomar algo que indiquei antes — essa presença e a transferência —, Lacan ali começa a debater com os pós-freudianos sobre a transferência; se nomeiam a transferência como um sentimento, se se trata de ambivalência, separa-se a transferência da repetição, etc. Mas ele enfatiza novamente a questão da transferência e o problema de saber se ali se trata como significação — o amor como algo autêntico —, nesse ponto máximo suscitado pela presença do analista. Um amor que, poderíamos dizer, não é identificação, mas que está do lado do real. Ele também usa outra palavra, que é a palavra essência. Ele a usa apenas uma vez para se referir a algo desse amor e, também, à presença. O significado de essência é interessante. Segundo o dicionário, significa, entre outros significados, algo permanente, invariável, que não muda em relação a uma coisa. Trata-se, justamente, de que essa presença é a que dá testemunho, ou seja, “há alguém ali” presente. E de que coisa essa presença testemunha? Da perda que é originária, sem compensação, sem saldo a favor do sujeito que fala. Algo que, por sua vez, faz a posição do analista, um lugar (e o acentua) que é muito conflitante.

Vou tentar dizer de outra forma, com noções que são limites: falta de rememoração, algo opaco, misterioso na presença; uma falta de significação — mas uma significação quase absoluta que é o amor — e que não remete à verdade. É a transferência como resistência, o fechamento do inconsciente enquanto pulsátil. Ou, como Lacan o chama em uma antecipação topológica, um nó górdio.

Então, nesse limite, o analista, ali em sua operação, atua ou não atua? Opera ou não opera? Intervém, interpreta? Através do eco? Pela ressonância? Por algo que lhe vem de suas próprias marcas, de suas próprias cicatrizes como o analisante que é ou o analisante que foi?
Inevitavelmente, poderia surgir algo que aparece indiretamente ali, ou ligado ali, no lugar do analista: a pergunta se se trata de algo que implica a função do desejo do analista com um algo a mais.

Porque função, reconheçamos, é aquilo que, em Lacan, remete a sua ambição de ter feito da experiência e da prática da psicanálise uma disciplina absolutamente lógica, matematizável, reduzida a fórmulas, sem equívocos. Mas surge aí algo interessante, pois, para formular isso, no final do Seminário 11, Lacan vai dizer que o desejo do analista é impuro (2008, p. 260). Portanto, se o desejo do analista é impuro, parece-me que não há razão para não pensar a função do analista como tocada, salpicada de algo de uma impureza.

Lacan diz que, se se trata do desejo de obter a diferença absoluta, essa diferença absoluta o é na medida em que implica tocar, obter aí algo de uma marca: isso que é diferença, mas enquanto absoluta. Parece-me que o absoluto não se refere ao todo, mas a algo à parte. Eu diria, é isso que, na medida em que é absoluto, não é permutável, não é modificável. O significante, por outro lado, é permutável, intercambiável um pelo outro.

A pergunta que me fazia era: não seria essa impureza o que levaria Lacan, nos próximos dez anos, a deixar e abandonar tudo o que é lógica, a matematização, discursos, em relação à prática analítica? Não é justamente a partir do Seminário 11 que o psicanalista está posto no banco?

Se o semblante é aquilo que tem a ver com um vazio e uma significação ao mesmo tempo (é a definição um pouco mais rudimentar de semblante), ou dito a partir dos três registros, ele implica algo real bordejado, circunscrito, ajustado pelo imaginário/simbólico, a função do analista pela via do desejo acaba por permanecer pelo que ela tem a ver com a presença. Esse limite, essa aparição, talvez a marca — e aqui acrescento algo mais — seja a encarnação disso, encarnando-se ali como tal. A coisa impura tem a ver com a encarnação disso.

Do estilo como presença encarnada

Desvio-me um pouco. Eu lhes falei de Giannuzzi, do estilo. E quero me valer de algo da referência ao estilo que Jorge Faraoni havia utilizado; Ricardo Gandolfo também falou em um certo momento sobre o estilo, quando se trabalhou no seminário algumas dessas aulas sobre o tema.

Para dizer apenas algumas coisas, certamente, mais tarde, vocês poderão, melhor do que eu, adicionar algumas referências sobre isso, pois meu comentário sobre estilo não é exaustivo; do que se trata? A pergunta tácita que agora exponho é: está ou não em jogo o estilo do analista? A função “desejo do analista”, estando na veia lacaniana da lógica, da matematização, frente a isso, o estilo é isso que, me atreveria a dizer, se aproxima dessa outra questão, digamos, “não lógica”, a presença encarnada; onde a função, em sua pureza, devido à impureza, vacila um pouco, não se faz suficiente.

Voltemos então a nos colocar nesse lugar, no lugar do semblante do objeto a, não representável, não significante, mas que, por enquanto, vale como significante, como esclarece Jacques-Alain Miller. A aposta que o objeto a não é um significante, mas vale como significante, responde a esse afã lacaniano da matematização, da lógica, das fórmulas, mas, diria, marcado por algo que aparece, uma presença, um algo impuro em relação a ele. Pode-se dizer que é algo a mais, pois é encarnado.

Eu vou dizer de outra forma. A função do analista como um significante qualquer, mas ao nível do a como presença do analista, encarnação desse algo, se trata de alguém. E, a esse respeito, me apoio em uma frase de Germán García. Você poderá encontrá-la em um de seus livros (que são uma série de cursos que Germán deu no norte da Argentina), intitulado Derivas analiticas del siglo: ensayos y errores (2014). É um curso de 1988, uma compilação de todas as aulas em que Germán García, quando fala do semblante, diz:

“(…) quer dizer, como diz Lacan, poder ser um objeto qualquer para depois ter um nome. Se se diz que o analista é qualquer um, deve-se dizer também que o analista é sempre alguém, e que alguém tem um nome, o único traço que o analista põe em jogo é o de um nome, os demais são postos pelo analisante” (GARCÍA, 2014, p. 45. Tradução nossa).

Se tomarmos esse ponto pela via do estilo, sabe-se que, em linhas gerais, o estilo é algo que se trabalha e é muito trabalhado no campo da estética, da arte, da literatura, enfim, da criação. Mas aceita-se que não se trata tanto do autor em si, do nome próprio, mas da obra, que o estilo esteja em sintonia com o objeto de que se trata.

Por exemplo, Witold Gombrowicz propôs incomodar com estilo. Poder-se-ia dizer que é em sua literatura que existe o traço do desconforto, o estilo, mais além do próprio Gombrowicz. Na tradição literária, estilo refere-se a algo que é singular, algo que é um traço destacado dentro do que é um movimento cultural, dentro de um autor, de um momento cultural, uma época.

Isto também é interessante: há um traço do que poderia ser pensado como o humano, a condição disso que, por sua vez, é alcançada. Há uma estética acabada, não modificável no nível do que se alcança no objeto artístico e que, por sua vez, tem uma aura enigmática, de mistério. Novamente Germán García vem em meu auxílio; no mesmo livro, algumas páginas depois, ele diz algo que me parece relacionado comisso do estilo. Se o Real implica esse gozo relativo ao corpo, aproximamo-nos então da presença como o que ela encarna. Cito Germán García:

“No real a pergunta é de que goza [enquanto corpo e de que se goza]… A frase de Lacan ‘o desejo do analista não é um desejo puro’ é um desejo conectado a um corpo, a uma substância gozante. Quer dizer que o enigma da interpretação é um eco do enigma do próprio gozo do analista” (GARCÍA, 2014, p. 50. Tradução nossa).

Ou seja, haveria um estilo do analista enlaçado ao nome próprio, que faz o estilo enquanto uma presença. Um traço que tem algo estético, uma forma acabada, singular, e que é eco do próprio gozo do analista, é uma maneira que encontrei de dar uma volta na frase de Germán. Tensão com o Lacan anterior aos Seminários 10 e 11. Dado que, se Lacan estava extremando esse afã lógico, matematizável, de nos propor o inconsciente estruturado como discurso, chegando a preferir um discurso sem palavras, para depois dizer que não há mais do que semblante, vemos que, já no fim do Seminário 19, ou pior…, começa a dizer, a assinalar, a situar que há algo a respeito disso que se impõe, do que aparece. Nessa instância, o chama de um suporte para esse giro dos discursos e nos diz “(…) fazer desse de-ser o suporte com esse des-ser de ser o suporte…” (LACAN, 2012 p. 226).

Acrescenta: “(…) se existe algo que se chame discurso analítico, isso se deve a que o analista em corpo, com toda a ambiguidade motivada por esse termo, instala o objeto a no lugar do semblante. (LACAN, 2012 p. 222)”.

Quer dizer, temos o discurso, o objeto, o semblante e o corpo. Então, se estou tratando de transmitir, de expor nesses apontamentos, é porque me parece que, diante da reformulação lacaniana — a partir dos seminários 10 e 11 —, da prática e da experiência analítica, surge a pergunta se se trata de um corte. Podemos debater se é um corte ou uma continuidade topológica. São debates. Isso porque uma das razões (entre outras) é essa encarnação, esse no corpo (un corps, homófono de encore) que começa a ter toda uma presença diferente em nossa prática, na experiência, no ensino, na sua relação (se houver) com o lugar do analista. Também me atrevo a assinalar que, de modo geral, acostumamo-nos a falar do gozo como pulsional. É o mais clássico entre nós. Articulado, certamente, ao objeto. É por isso que o analista representa, ou está nesse lugar; ele é semblante de objeto. Por isso, temos a parte elaborável desse gozo.

Mas a ideia seria a seguinte: se não é, precisamente, pelo semblante de objeto a, a partir dos seminários 20 e 21, que aparece a presença por essa encarnação nesse lugar e nessa função impura do desejo do analista, que se revela ou se afirma a questão de um gozo que não é somente pulsional. Ou, dito de outro modo: se o objeto a (do qual o analista é semblante) é o elaborável do gozo, resta ao analista, em presença, ser aquele que encarna o não elaborável do gozo. Se podemos pensar que se possa tocar em algo desse aspecto do gozo, nomear, incidir sobre ele, para que isso aconteça, é imprescindível a presença. Mesmo que ela não garanta que isso aconteça.

O semblante se vincula, se ajusta, ele implica em si um vazio. Por isso, Miller assinala: “(…) se Lacan se lançou aos nós, foi para tentar lhe dar, fora da articulação linguística saussuriana, dar substância a esse vazio” (MILLER, 2008).

Visto de um outro ângulo, se diria que já não se trata de um só gozo. Sim, do campo do gozo, mas pluralizado. Por isso a questão do corpo e seu mistério falante faz sua aparição.

É a partir do texto “A Terceira” (sobre o qual lhes recomendo “Leituras da Terceira”, texto de Gabriela Rodríguez e outras colegas de La Plata) que encontramos os três registros lacanianos no esquema do nó aplanado. Na base de tal esquema, encontramos o objeto a. Deixando de lado o que, a partir desse esquema, será o desenvolvimento do ensino de Lacan em torno dos nós, me interessa fixar em uma recomendação lacaniana nesse texto. Para se referir ao analista, Lacan utiliza figuras e personagens como o palhaço, o bufão. E aconselha a não o imitar e fazer como ele: descontraídos, naturais, sem presunções, bufões, palhaços. Por que motivo Lacan incorpora essas figuras do palhaço, do bufão e as relaciona com o analista quando este está formulando um mais além da matematização, do Nome-do-Pai, do falo? A maneira que encontrei de abordar essa pergunta foi através disto, que trato de lhes colocar: a presença, o corpo, a encarnação ali do analista.

O gesto inesquecível

Para aproximarmos a responder algo sobre isso, pode-se mostrar com um exemplo muito conhecido e difundido entre nós. Um, ao menos assim me parece, que abona o que venho desenvolvendo. É o conhecido testemunho de Suzanne Hommel. Esse testemunho expõe, no meu entender, que ali se tratou de uma operação de Lacan, por sua presença em corpo com esse gesto leve na pele de Suzanne Hommel, quando ela fala repetida e insistentemente de seu sofrimento, de se despertar sempre às cinco da manhã com a recordação atormentadora da Gestapo, do Holocausto, da perseguição aos judeus. E, quando Lacan salta da cadeira do analista, de modo surpreendente, acaricia suave e levemente sua bochecha, é ela quem depois interpreta translinguisticamente Gestapo (do alemão) por geste à peau — em francês “gesto na pele”.

Gesto lacaniano que é bufonesco. Esclarecendo o seguinte: não caiamos rapidamente em pensar que o bufão (que também tem sua origem, sua inserção, tal como o menestrel, no popular, para o povo) era somente a diversão e o canto na corte. Também aliviava os sofredores. Ele ia ou se aproximava do leito dos enfermos, dos enterros, ou do que poderiam ser, nessa época, os enterros. Vá saber se havia enterros como existem agora. Mas havia algo do bufão (como também o menestrel) acompanhar ali, em presença, aquele que sofria, no limite da vida. A tal ponto que era a Igreja que se encontrava muito incomodada a respeito dessa função, pois não recorriam a ela. E com uma habilidade que, creio ser atribuída a Assis, o santo, que se pode, com alguma manobra, captar isso para o interior da religião. Porque o bufão cumpria uma função que a religião não cumpria, que tinha a ver com isso da vida que não é só o gracioso. Então, recordemos que temos que associar isso também ao bufonesco e aos menestréis. Como aqueles que tinham o nome próprio como algo singular, relativo a algo corporal, a um traço que os caracterizava. Algo como uma deformidade, ou defeito particular do corpo, e que, com isso, lhes permitia exercer essa função poética, teatral, comediante, de cantos, ou seja, uma espécie de um condensado da condição humana, não tanto por suas características de brilho, etc. E Suzanne Hommel diz: o gesto de Lacan é um gesto de humanidade. Porque introduziu um algo a mais vivo, que ela diz, até hoje, sentir na pele, ainda que o sofrimento, como rememoração, não cesse. Mas, para ela, algo ali está amortecido, algo está ali capturado, tocado nesse geste à peau que lhe trouxe um mais de vida e um menos de sofrimento iterativo. Creio que esse é um gozo que não podemos classificar de pulsional, que se introduz com esse gesto, esse ato de Lacan, mais além do sentido e da lógica fálica.

O outro exemplo, no qual vou me apoiar e vou resumir brevemente, talvez vocês o conheçam. É um dos testemunhos de Berta Mildner, publicado na revista Lacaniana. Mildner explica que, ao longo de sua experiência, sempre teve imbróglios com o corpo. Fazia dos livros um recurso permanente, ao saber exposto neles, e que se manifestava nela como alterações da respiração. Uma respiração constantemente agitada. E que, diante da insistência disso, há uma intervenção do analista que lhe disse: “esse saber não lhe serve para nada” (MILDNER, 2017, p. 59). Primeiro ela o localiza assim. Silêncio. Silêncio do analista.

Quer dizer, fazer sentir uma presença ali pelo silêncio. Ela assinala que o efeito disso é uma grande e intensa angústia. Apontamos, de passagem, que já falamos disso. Lacan afirma, em “A Terceira”, sobre a angústia como sintoma tipo articulado ao corpo. E Mildner diz: “separação máxima entre o corpo e as palavras” (2017 p. 59). E só uma recordação. A última das lembranças encobridoras é produto de um relato do Outro materno. Ela era muito pequena, com crise de bronquite e agitação. Corre às emergências médicas. Diante dessa recordação, ela chora e chora e não há mais que choro. Sem parar. Há uma intervenção nesse relato, de um pediatra — nessa recordação materna — que recomenda algo absolutamente natural: ar livre, que respire ar livre, ar fresco. Uma segunda intervenção do analista, ela diz: “A intervenção do analista foi nomear isso como o trauma” (MILDNER, 2017, p. 60). O que diz Mildner em seu trabalho? Há queda de todo sentido, esvaziamento do sentido, um vazio, mas com um nome. Surge-lhe uma imperiosa angústia, uma vontade de ir ver o analista e lhe falar, como retorno transferencial. É muito interessante porque ela diz que, no meio da sessão, levanta-se bruscamente do divã, senta-se diante do analista e lhe fala da lógica do seu fantasma, do analista como objeto a olhar, o “dizer silencioso” (MILDNER, 2017, p. 60). E que, tratando de recuperar o analista-olhar, mais e mais… surpresa. Aqui surge o interessante, que ela ressalta. Frente a frente ao analista, Mildner ressalta que lhe parecia a pura presença do corpo, de olhos fechados, analista angustiado. Poderíamos dizer aparição, pura presença do analista enquanto corpo, olhos fechados: “encontrei o analista fazendo semblante do acontecimento de corpo (MILDNER, 2017, p. 60)”. E, depois, outra surpresa. Cito: “Saí da sessão com uma vitalidade desconhecida, plus de vida, sem Outro, que transformaria o modo de viver o corpo” (MILDNER, 2017, p. 60).

Nenhum sentido, efeito de um outro enodamento, um vazio de significação. E dir-se-ia “tudo” (o tudo é irônico) pela presença.

Me vali da noção de presença do analista e de todas essas derivadas, que entendo ter uma característica inconclusa, insuficiente, porque abre muitas pontas: marca, objeto, semblante, interpretação, operação, encarnação, função do desejo do analista impuro, o corpo, etc. Porém, em todo caso, me surgia a pergunta se podemos fazer como Lacan diz: “natural”, sejam naturais, sejam soltos, palhaços, bufões. Ou como também diz no Seminário 21, “Les non dupes-errent”: recomeço.

Voltaria ao título: Tem alguém aí? Por que volto ao título? Porque, com essa noção da qual me vali, presença do analista, para aproximar-me desse limite, desse lugar limite, disso que não se pode elaborar, dessa opacidade, desse gozo mais além, mais além do Nome-do-Pai, podemos colocar os nomes que vocês quiserem… Minha pergunta, então, é: o que aí se pode obter da análise como marca disso? Germán García disse por aí que a marca e/ou as marcas de uma análise são as cicatrizes da experiência. Ou, senão, como diria Éric Laurent, enquanto o “inesquecível” dela. Como Suzanne Hommel o testemunha. É inesquecível. Algo ali é inesquecível. Ou, se a marca ou as marcas dizem respeito a esse gozo indecifrável, “fazer-se uma conduta com seu gozo” (OSCAR, 2012, p. 100).

Outra maneira de dizer o que poderia se esperar, entre outras coisas, da experiência de uma análise, eu encontrei na poesia de Joaquín Giannuzzi, de quem lhes falei no princípio e que me impulsionou a intitular a exposição “Tem alguém aí?”. Eu a transmito com um poema que lerei a vocês, porque entendo que expressa algo disso que apresentei. Chama-se “Uma palavra virgem”:

Só ela sobreviveu
de um texto que esqueci. Desde então
é presença musical em minha cabeça.
Era-me desconhecida e, no entanto,
mantive fechado o dicionário
onde segue esperando, em estado puro,
para entregar-me seu segredo. Deste modo
preferi livrá-la da servidão do significado
e criar-lhe um paraíso contra o conhecimento.
Resgatada
do contexto e da confusão conservo-a
como uma joia pessoal.
Agora, nas noites de insônia,
quando o nome das coisas cai na fadiga
apalpo-a e saboreio
como a uma mulher amada na escuridão.
Somente seu som, sem identidade, sem assunto,
percorre sussurrando minhas entranhas:
hipálage, hipálage, hipálage.
Algo deve haver ali dentro que resiste
como um desconhecido gozo triunfante.

 

Tradutores: Jônatas Casséte e Luciana Romagnolli
Revisora: Renata Mendonça

Referências
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII,. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIANUZZI, J. Obra completa. Buenos Aires: Ediciones del Dock, 1999.
GARCÍA, G. Diversiones psicoanalíticas. Buenos Aires: Otium Ediciones, 2014.
LACAN, J. O seminário. Livro 19:… ou pior. Zahar: Rio de Janeiro, 2012.
LACAN, J. O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud (1953-54), 3ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LACAN, J. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MILDNER, B. De la resolución matemática al régimen del encuentro. Lacaniana, 22, Buenos Aires: Grama, abril 2017.
MILLER, J.-A. Sutilezas Analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2008, lição de 8 de abril, p.246.
OSCAR, Z. Los decires del amor. Buenos Aires: Grama, 2012.
RODRIGUEZ, G. Lecturas de la Tercera. Buenos Aires: Tres Haches, 2019.

1. Publicado em:  Vaschetto, E.,Faraoni,J.(coord.)  ¿Podemos vivir en una civilización sin Dios? Segundas Marcas. Seminarios de Psicoanálisis. Barcelona:Xoroi Edicions, 2021 



Toxicomanias◊Adixões1

Ernesto Sinatra
Psicanalista, AME da EOL/AMP
ernestossinatra@gmail.com

 

Resumo: Ernesto Sinatra fundamenta as suas razões para a criação do termo adixões, escrito com o X freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Sem abandonar o termo toxicomanias, a proposta do termo adixiones encontra um fundamento ético em que o X aponta para a marca singular do gozo sinthomático de cada Um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação de objetos de gozo que pretende para todos o mesmo. O X marca a singularidade do gozo e a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação. Dessa forma, Sinatra aponta que a psicanálise oferece a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos que intoxicaram sua existência. Nessa clínica, o singular é a bússola que cabe ao analista seguir.

Palavras chaves: adixões; fixação; toxicomanias; gozo sinthomático.

DRUG ADDICTIONS  ADIXIONES

Abstract: Ernesto Sinatra justifies his reasons for creating the term adixões, written with the freudian X of fixierung, to emphasize the mark of the singular fixation of satisfaction with which each ONE responds to the trauma of non-relationship and, thus, differentiate it from the given generalizations to the term addictions, to which any and all forms of consumption apply. Without abandoning the term drug addiction, the proposal for the term adixiones finds an ethical foundation in which the X points to the singular mark of the synthomatic jouissance of each One that resists, being cataloged by the banalization of the consumer market with its manufacture of objects of jouissance that intends to for all the same. The X marks the uniqueness of enjoyment and the subjective responsibility for one’s own satisfaction. In this way, Sinatra points out that psychoanalysis offers the possibility of questioning the alienation of each One to the objects that intoxicated their existence. In this clinic, the singular is the compass that the analyst must follow.

Keywords: adixões; fixation; drug adicctions; synthomatic jouissance.


CAROLINA BOTURA. LU3


De jeito nenhum lhes digo que o discurso capitalista seja medíocre; é, pelo contrário, algo loucamente astucioso. Loucamente astucioso, mas destinado a explodir. (…) É insustentável… num truque que poderia lhes explicar… porque o discurso capitalista está aí, vocês veem… [
indica o discurso no quadro-negro]… uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $… que é o sujeito… basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consuma, se consuma tão bem que se consome. (LACAN, 1972)

 

  1. Introdução: Um discurso que ao se consumar causa o consumo

Ao consideramos a extensão dos tóxicos na vida cotidiana, chegamos – já se vão trinta anos – à tese da toxicomania generalizada: drogas cada vez mais sofisticadas produzidas em escala planetária, atravessando as mais variadas fronteiras, assim como os diferentes estratos sociais; drogas cada vez mais ao alcance de todos e de todo tipo – inclusive as lícitas.

De nossa parte, continuamos afirmando que as adições constituem um dos sintomas mais relevantes do estado atual da civilização, mas me apresso em conjeturar que já não se trata do mesmo sintoma com o qual caracterizávamos o século passado. Hoje as “cicatrizes da evaporação do pai” se aderem aos corpos a partir da multiplicação dos gozos: a pais pulverizados, gozos pluralizados.

“Adições” se emprega hoje como uma chave para todo uso, e quase todos os flagelos atribuídos à pós-modernidade caem sob essa denominação: tudo é “tóxico”. Assistimos a uma implosão das “adições” impulsionada pelo imperativo do mercado2 com listas de novos adictos, designados não só a partir de substâncias, mas a partir dos objetos de consumo – sexo, sexting,3 videogames, pornografia, telefones celulares, séries, esportes, Internet, compras… A lista ameaça ser infinita, inclusive, recentemente, o filósofo Byung Chul-Han fazia referência a “uma sociedade adita aos likes”.

A partir de nossa orientação, interpretamos que o discurso capitalista – “loucamente astuto” – se consome com o franqueamento do impossível que impõe a circularidade de sua orientação.

É o que impulsiona o consumo desenfreado de objetos que saturam o mercado, objetos que são oferecidos a cada indivíduo – transformando-o por esse mesmo fato em um consumidor – para suturar o furo da não-relação e negar o perecível.

“Nada é impossível!” é a frase que identifica a marca líder em vestuário, cujo logotipo – minimalista – antecipou o like das redes sociais: Nike = Like! E, por seus efeitos comerciais – ou seja, por seu sucesso no mercado de consumo –, bem poderíamos acrescentar, seguindo a referência de Lacan a Marx, que, uma vez mais, com um sorriso cínico-canalha, “o capitalista ri”.

Consuma-se dessa maneira o destino fantasmático que cifra o discurso capitalista (impulsionado por essa frase); mas, ali, onde o mercado impulsiona a um gozo ilimitado com os objetos, o sujeito, “senhor e mestre” de suas ações apenas em aparência, não cessa de fazer saber através de suas inibições, sintomas e angústias: “Não posso! Ainda que queira, não posso!.

  1. ADIXÕES, um conceito adulterado4

As adixões tornaram a se generalizar, quer dizer, a se banalizar, pois enquanto o mercado promove com suas classificações infinitas as adixões a tudo, a causa real que as determina volta a ser negada.

Tal generalização do tóxico tem sido também o fundamento com o qual certos especialistas, fundamentados na biologia, realizam classificações cotidianas com as quais nutrem – até a bulimia – os Manuais de Saúde Mental, a partir de números que identificam transtornos, que, por sua vez, se autorizam em estatísticas, aos quais são atribuídas etiquetas que fixam tais transtornos que costumam ser, como corolário, complementados com psicofármacos.

A partir de nossa investigação, caracterizamos o nov@ sintoma com o termo “adixões”, a fim de cifrar o princípio da toxicidade mesma do gozo como tal, mais além do objeto eleito.

Desta forma, destacamos que qualquer ação pode portar uma satisfação,5 com a condição de marcar6 com um X a incógnita da singularidade do gozo de – e para – cada um, e marcar, para além disso, a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação.

As adixões encontram assim seu fundamento ético. Para verificarmos isso, analisemos um sintagma cristalizado que circula com inquietante familiaridade: as “pessoas tóxicas”. Aqui nos encontramos em um enredo teórico com consequências clínicas: referir-se à toxicidade de alguém induz a uma prática segregativa fundada em uma concepção paranoica do mundo, pois, ao identificar uma pessoa como uma droga, ela não somente é segregada por essa mesma condição, mas a condição da rejeição implica em situá-la como a causa do mal: o Outro é mau e é preciso me afastar dele – ou dela – e estigmatizá-lo por essa condição tóxica.

Fica claro até que ponto essa concepção contradiz o ensinamento fundamental da psicanálise, pois comprovamos na clínica analítica que o gozo é tóxico e recai sobre cada Um a responsabilidade por seus atos, condição que aqui é negada: se ele é tóxico, eu sou inocente… exceto se eu o consumo.

Com nosso desenho epistêmico, o x de adixões mostra a marca singular do obscuro gozo sinthomático de cada um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação tecno-seriada de objetos de gozo,7 que pretende o mesmo para todos.

  1. O fundamento bipolar do consumo

O princípio das adixões: as mercadorias têm em si um valor aditivo, já que se inserem na própria fenda da subjetividade que causa o artificioso da sexualidade humana8 e desencadeia o consumo. O vazio, depois de suturado, é saturado com objetos pelas tecnociências, destinados a produzir o gozo complementar dos sexos que não existe, já que em seu lugar há um vazio. Sublinhemos que o que se substitui, como objeto do mercado, não é um objetomas um gozo, entretanto um gozo que não existe – este é o paradoxo central –, o gozo do qual se busca produzir o equivalente, com o auxílio das tecnociências, imitando aquele da relação sexual que não existe!

Reencontramos aqui o fundamento das adixões como novo sintoma: a proliferação dos objetos em série oculta, pois, o que realmente se trafica, que é a substância do gozo como tal (como se existisse). Em seu lugar, outro gozo desliza entre as mercadorias.

A iteração do gozo, então, causa o movimento dos objetos que se substituem uns pelos outros: 1 gadget; 1 gadget; 1 gadget… É a infinitização dos objetos que o mercado produz e que nunca chega a produzir o objeto adequado, embora prometa satisfazer ao parlêtre fazendo-o, finalmente, existir!

Além disso, devemos incluir uma subsérie na sequência principal do vazio central, já que um gadget pode não se substituir por outro gadget, senão por outro modelo do mesmo gadget: antes de sair o IPhone 7 no mercado, já se dizia que apenas o IPhone 8 transformaria a tecnologia celular, etc., mas já chegamos ao 14? E tudo continua igual!!!!

A temporalidade que se constrói a partir da subsérie é inquietante: por um lado, a infinitização nega o perecível – já que o objeto tem sempre o mesmo nome, há apenas uma diferença real (quer dizer: ordinal, como no caso dos reis) –, mas, por outro lado, a iteração produz a obsolescência do gadget a um ritmo vertiginoso.

O segredo do gozo do gadget é que nenhum objeto final jamais será capaz de satisfazer plenamente, porque há uma defasagem no próprio gozo que falta no lugar onde ele não existe. Essa é a falácia que se compra – na verdade, que causa o comprar – e que produz a moral a aditiva do consumidor, dividida entre a tristeza, produzida pela abstinência, e o triunfo, produzido pelo ter. Tal é o fundamento maníaco-depressivo, ou bipolar, do consumo, sobre o qual se instalam as adixões – as que designamos e assim o preferimos, com x.

O mercado simula oferecer uma lógica – fálica – sustentada no campo do desejo e na produção de bens, mas seu fundamento real é o mais além do princípio do prazer. Ou seja, é o campo do gozo orientado pelo consumo insaciável dos indivíduos, aqueles que, quanto mais consomem, mais são consumidos como objeto de gozo do mercado. Entre a exaltação maníaca da possessão do objeto e a queda depressiva, a partir de sua falta, mostra-se, descaradamente, o vazio, o ponto exato da não-relação, o que, por um lado, recicla o processo de consumo em uma metonímia assintótica, mas, por outro lado, segrega os indivíduos que caem do consumo, fora do processo de produção.

Mais uma vez localizamos a segregação na via rápida do consumo, a partir de sua rodovia principal. A inquietante familiaridade das drogas sublinha este componente aditivo do circuito de consumo que inclusive pode nos intoxicar com uma palavra. Assim “nasceram” as adixões, que continuarão a se reproduzir a partir do circuito bipolar que explora o mercado uma e outra vez, construindo a moral do consumo, quer dizer: a do consumidor.

  1. O mercado é Um mesmo!

Depreende-se que a prática da psicanálise vai contra a operação do mercado que sabe-fazer, sabe consumar o negócio do consumo a partir da falha inaugural da subjetividade. Ao contrário da perspectiva de promover uma satisfação ilimitada, autoerótica, de uma felicidade para todos a partir do ter O objeto adequado, a psicanálise só pode oferecer a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos com os quais “intoxicou” sua existência.

É claro que não se trata de sustentar uma premissa tola “antiprogressiva”, nem de promover uma ascese mística em prol de possibilitar um desprendimento dos objetos de gozo, senão de evitar que se continue sendo o objeto real do consumo; se alguém quer gozar dos objetos, que eles não gozem dele!

Talvez, nessa orientação, a verdadeira subversão da política lacaniana consista em ir contra o mercado em si mesmo, ou seja, contra-a-produção-inconsciente-em-série- de-objetos, com os quais alguém se havia revestido em orientação contrária ao desejo de viver. Isso implica avançar na análise até localizar o gozo singular que o impulsionou ao encontro dessa série, para questionar, o que não implica necessariamente rejeitar, senão, mais propriamente, discriminar os objetos investidos.

O mercado se tornaria assim o nome do inferno em si mesmo, sede das ADIXÕES, a partir das quais se tentou sustentar o transe de uma felicidade impossível, processada entre drogas, redes e telas.

  1. TOXICOMANIAS <> ADIXÕES: dois casos de duplo comando

5.1 Mercanta

Sete momentos localizados em uma análise especificam a lógica que determinou o consumo de um homem dividido entre o gozo obtido com a cocaína e um gozo masturbatório em frente às telas. Seu isolamento permitiu evitar uma passagem ao ato ao estabelecer o circuito do gozo sob transferência, localizado a partir de um detalhe e produzido apenas ao final da elaboração, adicionando, através da intervenção analítica, um oitavo momento.

O triunfo (1) se produz sempre que algo de certa relevância ocorre como esperado (um sucesso profissional, por exemplo); um sentimento estranho (2) no corpo, uma resposta extravagante que afeta seu corpo e que, depois de muito tempo, ele consegue circunscrever em uma frase – “Posso tudo!” –, chamando-a de euforia (3), estado do corpo que diferencia da alegria: presença de uma agitação corporal irreprimível, contínua, que inclui em algo maior o estranho e a onipotência (mencionados nos dois momentos anteriores); a euforia deriva em erotização (4) e, geralmente, se resolve pela via autoerótica diante de uma tela combinada com uma condição fantasmática precisa; empurrando ao consumo (5) sempre realizado em solidão, circunscrito por ações temerárias para conseguir a substância, que sustentam a erotização e canalizam a euforia.

Uma vez desencadeado o consumo de cocaína (às vezes combinado com álcool), não pode parar. É assim que chegamos ao desenganche subjetivo em que a degradação do Outro (6) adquire um papel central, cifrando um duplo movimento indicado pela ambiguidade do termo degradação: a) genitivo objetivo: perseguido pelo “monstro que me consome as entranhas”, chega sempre à beira do colapso físico e mental, perturbado por alucinações que se misturam a pesadelo. Ali, o pai morto retorna para acusá-lo de seus pecados, dando lugar a delírios desencadeados por situações triviais do entorno que promovem nele signos inequívocos da maldade inescrutável do Outro. Nelas, ele está certo de que será vítima da brutal figuração assassina do Pai, a quem acusa de todos os seus males, com todas as injúrias imagináveis. Depois advém b) a forma genitivo-subjetiva da degradação que o empurra para a devastação, pois, após a fúria inicial, é arrastado por uma culpabilidade que o deixa vários dias preso, chorando, sem se alimentar e desejando sua morte, sem animar-se a buscá-la. Finalmente, sua frase Não peço isso, é meu corpo”(7) orienta a saída: deixa de consumir em um estado de perplexidade e desespero. Mas, devido à iteração do circuito, cada vez era mais reduzida sua capacidade de alcançá-la.

Um dia, em plena degradação, decidiu com extrema dificuldade interromper o consumo para ir à sua análise. Já na sessão, enquanto tentava explicar a satisfação que lhe produzia o consumo, produziu um lapso, na realidade uma formação neológica: mercanta (8).

A partir daquele momento, pôde com ela não apenas nomear o circuito de gozo que o consumia, mas, também – e muito especialmente –, contar com uma ferramenta para aceder a uma saída, mais além da insuficiente resposta do corpo, único limite com o qual contava até então, e que, a essa altura, se encontrava seriamente comprometido.

No início das entrevistas, foram recebidas e tratadas interferências parasitárias que produziam frases interrompidas que o levavam ao mutismo, determinadas por uma interceptação mental reprovadora. O resultado foi um alívio que deu acesso à análise, pois o sujeito se encontrava afetado por uma sólida transferência negativa ao seu analista anterior e, por fim, à psicanálise.

O que resulta é que a função da cocaína (o gozo toxicômano) habitava um lábil desejo sexual não suficientemente articulado ao gozo fálico e resolvido pela via masturbatória, sua única via de resolução sexual sustentada pelo gozo escópico (adixão às telas), com um duplo consumo que condensava seu fulgurante e paroxístico êxito; esse circuito que fracassa em um segundo momento por uma nova irrupção do Pai real9 que volta a deixar as coisas no lugar onde estavam antes do consumo.

No campo das toxicomanias, estamos habituados a receber indivíduos que sofrem do furor maníaco do consumo; a particularidade, neste caso, é que ele evidencia o que poderíamos chamar de uma passagem à análise reforçada por um significante prêt-à-porter, por um neologismo produzido sob transferência e que permitiu ao sujeito contar com um artefato sinthomático para tentar, pelo menos, desbastar o gozo de um circuito mortífero com o qual ele desdobrava seu consumo entre um gozo toxicômano e uma adixão às telas.
5.2 Smartwatches10 / “Viver… mata”

Talvez o mais recente paradoxo da tecnologia seja o emprego que os consumidores encontraram para um dos apps mais viralizados. Ao descrevê-lo, encontraremos uma interface entre as adixões e as toxicomanias.

Os smartwatches oferecem uma ferramenta destinada a favorecer a vida saudável – como seus desenvolvedores frequentemente alegam – ao incorporar funções de monitoramento cardíaco, pressão arterial, açúcar no sangue e outras destinadas à promoção da saúde.

Seguindo a oferta ao pé da letra, os consumidores de tecnologia têm respondido com um emprego desse aplicativo que se tornou popular entre outros consumidores… de drogas.

De acordo com entrevistas realizadas – publicadas em reportagem do canal de finanças CNBC –, o app é utilizado como um dispositivo de monitoramento para se informar, em tempo real, das alterações produzidas no organismo pelo consumo de drogas, a fim de interrompê-las e evitar uma overdose, sempre e quando o consumidor assim decidir.

A tecnologia que produziu os relógios inteligentes talvez não tenha contado com essa outra inteligência, a dos consumidores de duplocomando, que têm sabido empregá-la para aquilo que esses gadgets foram criados: retardar a morte, até onde seja possível, enquanto dure a vida. Por exemplo, fóruns Reddit,11 dedicados a investigar o tema,12 com múltiplos comentários de consumidores que chegaram à conclusão de que o limite “saudável” para o consumo de cocaína é de 150 batimentos por minuto; dessa maneira, eles evitariam uma overdose que induziria a uma morte fulminante.

Decorre disso que o consumo do app acompanha o consumo de drogas: enquanto um consumo não ocorre sem o outro, os desenvolvedores, fabricantes, consumidores, todos felizes! Sucesso garantido! Já que o empuxe à intoxicação – com as drogas de escolha – encontraria agora, com os relógios inteligentes, uma poderosa ferramenta de prevenção. Poderíamos agora formulá-la desta forma: drogas sim, morte não!…? Os consumidores de duplo-comando encontrariam, assim, um limite – paradoxal, por fim – para seus excessos?

Nada é menos certo, pois não importa quantas medidas exatas e estatísticas precisas sejam responsáveis pelo procedimento preventivo, os usuários de drogas já terão sentido em seus próprios corpos o “limite” que comanda tal procedimento: uma satisfação imparável de querer ir mais além. É esse “limite ilimitado” dos partidários do duplo-consumo o que produzirá – inevitavelmente – o fracasso do procedimento.

Uma vez que o gozo está à espreita, o saber nunca alcança, mesmo que o indivíduo tente com o delírio do sentido encobrir seu – irrefreável – impulso mortífero. Ou também, uma vez mais, entre toxicomanias e adixões, os desenganados se enganam.

  1. Adixões ficcionalizam isso o que as toxicomanias realizam?

Tendo chegado a essa interface de duplo comando – e somente na condição de não esquecermos que nenhuma classificação pode apagar a diferença de Um com os outros (Uns)13 –, não serão as adixões contemporâneas a tentativa em cada Um de armar-se um corpo vivível, com os objetos oferecidos pelo mercado e que muitas vezes portam ficções a partir de identificações às quais aderir?

adixão ao consumo mostra aqui seu papel como protagonista que, ao declinar na chamada “adixão às compras” com sua subespécie “adixão à roupa”, constitui um paradigma do que podem vestir, ou seja, o que de certas adixões podem ficcionar.

Proponho isso, uma vez que, no espectro mencionado do gozo, as adixões podem, desse modo, sustentar-se em realizações fantasmáticas, em muitas ocasiões mais próximas das cócegas,14 enquanto os usuários das drogas duras, como têm sido chamadas, tendem a prescindir de ficções em seus consumos e a presença do gozo encarcerado neles se mostra mais decididamente pelas devastações corporais e subjetivas, sobre si mesmos ou sobre terceiros.

Deixemos agora a hipótese das adixões como ficcionalização das “adições”, o que denominamos: toxicomania. Quer dizer que, ali, onde nas toxicomanias o gozo da substância tóxica se infiltraria no corpo – para que isso goze –, as adixões tentam “infiltrar” ficções nesse corpo, para que “eu”, de alguma forma, deseje?

Se assim fosse, a recusa do inconsciente levaria a um empuxo com uma dupla tração: por um lado, a partir das toxicomanias, e, por outro lado, a partir das adixões, deste lugar produzindo uma prótese ficcional que ofereceria um semblante de consistência (narcisista?), permitindo esquecer – nem que seja por alguns momentos – a insatisfação do desejo e a fenda real do gozo.

A pura repetição do Um do gozo que se manifesta nas toxicomanias – e que o Outro social teve que inventar, promover, em nossos dias com o termo “adição” – se apresenta nas adixões por meio de uma “solução do desejo”, ou seja, daquilo que no gozo produz sentido (MILLER, 2011).

Mais uma vez devemos ser cautelosos em nossas classificações, pois o gozo canalizado pela pulsão de morte não deixa de espreitar, lançando os indivíduos que pretendiam gozar do lado-cócegas – nas adixões light, aquelas supostamente orientadas pelo desejo de viver – em direção ao encarceramento com apenas um movimento. Tal como precisamente ilustra o trágico destino que aguarda a esposa de Tony Takitani, ficção literária de Haruki Murakami (2019), quando ela é levada pelo amor a abandonar sua adição às compras.

Sem chegar a tais extremos, podemos agora re-situar as crises de angústia – incompreensíveis ao senso comum – que costumam se produzir em consumidores furiosos, uma vez que tenham adquirido o objeto mais valorizado, precisamente aquele que parecia inacessível. Uma mulher em análise, ainda em lágrimas, não conseguia se livrar da sensação que havia vivido dias atrás, antes de ir às compras com sua melhor amiga e ter conseguido “aqueles sapatos tão especiais” que ambas tanto tinham desejado. Logo depois de sair da loja, eufórica, ela parou, de repente, e disse à sua amiga, agarrando-a pelo braço: Mão é isso o que eu queria… não é isso o que eu quero!”, chorando desconsoladamente, interrompendo os olhares dos transeuntes. O gozo da adixão explodia assim em seus sapatos, mostrando o mestre que realmente comanda o desejo insatisfeito.

Porém, mais além das classificações (inclusive das nossas), as toxicomanias – decididamente, e até o final – mostram a pura (re)iteração no real do Um do gozo, enquanto as adixões – das narinas desse mesmo gozo-Um, também elas – persistem numa tentativa, que não cessa de fracassar, na iteração do consumo, de “infiltrar” a cada vez algo de sentido naquilo que, de início, já não o tem, convocando um desejo que se desvanece: o desejo de viver.

Salientamos que esse núcleo duro do gozo toxicômano permanece no cerne do conceito de ADIXÕES, advertindo-nos que, por mais que o mercado pretenda, é necessário destacar que NÃO HÁ ADIXÕES LIGHT, já que a pulsão de morte sempre espreita o indivíduo, envolta em insuspeitadas estruturas formais dos sintomas que distribui.

  1. As toxicomanias, mais além das adixões

As toxicomanias realmente mostram o próprio paradoxo da existência: por um lado, a tentativa de saturar o vazio produzido pelo apagamento do Um original, com as poli-substâncias tóxicas que o mercado fornece; por outro lado, a presença apocalíptica, real, desta falha geológica: a própria fenda do gozo humano que ameaça aniquilar a cada um. Por isso, as toxicomanias constituem o protótipo do que a época elevou ao zênite da civilização, evidenciando o fundamento autoerótico da existência.

Adixões: com esse significante, dizíamos, temos interpretado a multiplicidade de nomes com os quais o Outro social e o mercado pretendem dar valor etiológico e classificatório às substâncias, a ponto de explodir seus confortáveis escaninhos: desde “pessoas tóxicas”, à “dependência do trabalho”, até a “dependência do sexo”, tudo pode ser classificado. Mas a implosão do não-todo estoura sob seus narizes, infinitizando essas mesmas classificações a partir do que resiste a ser encerrado em um nome: a toxicidade do gozo insiste e transborda qualquer classificação. Por isso, o nome de adixões tem o valor por marcar a iteração do gozo que se trafica, para contrariar o paratodo do mercado de consumo, destacando em cada “adicção” a fixação singular de gozo que empuxa a cada falasser.

Ao contrário, as toxicomanias estão mais aquém das adixões, já que toxicomanias é o nome que conservamos – a partir de nossa epistemologia psicanalítica – para denotar a operação da pulsão de morte que tenta fazer existir o gozo infiltrando-se no corpo, instigando a recusa do inconsciente por esse mesmo meio: tóxico-maníaco.

Paradoxalmente, dizíamos, esta é a particularidade sintomática da época atual: fazer Um com o corpo de modo autoerótico – mas, acrescentamos: sem corpo. Curiosamente, poderíamos conjecturar que o irrisório, quer dizer, a pretensão do toxicômano, é fazer existir o gozo no corpo e fora do corpo… que não haja nada mais, que não se adicione nada mais.

Mas à noite… a solidão desespera (Cordera dixit15). Aí o vazio realmente (re)emerge, o original, aquele do “eclipse do Um” que o toxicômano tentou saturar com a substância artificial do mercado e a abstinência da droga é o pedágio imposto pela pulsão de morte para recordá-lo disso.

Enquanto isso, a solidão globalizada constitui um resto das adixões contemporâneas que recordam a nós, consumidores – já que nesse ponto somos todos adit@s (SINATRA, 2016) –, que mais aquém da fenda do gozo o vazio espreita, também o gozo das drogas. E tem sido a partir daí, desse vazio, a tentativa, que deixamos em aberto, de nos servir das adixões para localizar com elas o fundamento bipolar, o caráter tóxico e maníaco do consumo.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Lilany Pacheco

Referências
LACAN, J. Do discurso psicanalítico: Conferência em Milão (12 de maio 1972). (Texto inédito).
MILLER, J.-A. Curso de la Orientación Lacaniana, “El Uno solo”, Sesión del 30-3-2011. (Texto inédito).
MURAKAMI, H. Tony Takitani. Barcelona: Tusquets Editores, 2019.
SINATRA, E. @s nov@s adit@s: a implosão do gênero na feminização do mundo. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2013.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 04/10/2022.
2. Encarnado e patrocinado, por exemplo, pela frase super adictiva: “imposible is nothing!”slogan de lançamento de uma marca líder do mercado, cujo logotipo minimalista coincide com os likes do Facebook.
3. Junção das palavras “sex” e “texting”, que pode ser traduzida livremente como “sexo por mensagens de texto”. Atualmente, a palavra tem um significado mais abrangente e se refere também ao envio de fotos, vídeos e mensagens de áudio. (N. T.)
4. Sobre esse neologismo adixão, conferir em: SINATRA, E. AdiXiones. Buenos Aires: GRAMA Ediciones, 2020. Ver também nota 6.
5. Essa hipótese de trabalho, “nada é sem gozo”, destacada por Miller em Sutilezas Analíticas, nos levou, no Seminário do TyA, a verificar, a partir da prática analítica, seus diferentes modos de manifestação.
6. Seguindo Jacques-Alain Miller, escrevemos adixiones, com o x freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com a qual cada Um respondeu ao trauma da não-relação.
7. Especialmente, a exploração do gozo do olhar que se dissemina pelas múltiplas tecno-telas que o mercado oferece.
8. Que não haja relação sexual quer dizer, para aplicá-la à ocasião, que não há complementariedade de gozo entre o lado macho e o lado feminino, para evidenciar a fenda própria da sexualidade nos humanos, o que J. Lacan denominou com um neologismo: sexuação.
9. A manifestação do ódio ao pai era tão intensa que não podia deixar de injuriá-lo, apesar de saber perfeitamente que o pai não era o culpado pelo que lhe sucedia, do que ele não conseguia fazer, especialmente, porque estava morto.
10. Acrescentaríamos para os não-incautos que – outra vez – erram.
11. Portal da internet, site de marcadores sociais com áreas de discussão, que atribui pontos a seus usuários por votos favoráveis realizados aos seus envios.
12. O tema é, para nós, o do duplo consumo – smartwatches+drogas –, ou o do consumo de duplo comando na interface adixões e toxicomanias, como podemos denominá-los.
13. Recordemos que escrevemos adixões – com o x freudiano de fixierung – para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada Um respondeu ao trauma da não relação; não o esquecer implica ter presente não só os riscos da generalização que vale para todos (Todos adictos!), senão uma das consequências do estrago do ser nomeado para: o empuxo à segregação que porta a identificação das massas.
14. Isso vale, especialmente, nos casos dos “adictos” das minisséries.
15. Cordera dixit. Consideramos que seria o desdobramento de cordeiro, o filhote de ovelha, com “dixit” com o jogo de cartas Dixit criado por Jean-Louis Roubira e publicado pela Editora Libellud, no qual um dos participantes sugere características da ilustração de uma carta da mão, possibilitando que cada adversário também selecione um card que se encaixe com a descrição dada. Reveladas as cartas, os oponentes devem adivinhar qual era a ilustração originalmente anunciada. (N. T.)



A presença real na análise1

GILLES CHATENAY
Psicanalista, AME da ECF/AMP
gilles.chatenay@orange.fr

 

Resumo:   A partir dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência, de Jacques Lacan, o texto se propõe a delimitar o que realmente está presente em uma análise sobre a expressão “presença real”.

Palavras-chave: presença real; transferência; falo; castração, inconsciente.

THE REAL PRESENCE IN THE ANALYSIS 

Abstract: From chapters XVI, XVII and XVIII of the Seminar 8: The transference, by Jacques Lacan, the text proposes to delimit what is really present in an analysis of the expression “real presence”.

Keywords: real presence; transference; phallus; castration, unconscious.

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Orientei minha leitura dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência pelos termos de “presença real” (LACAN, 1960-61, p. 246-58). Tentei delimitar o que realmente está presente numa análise. É uma questão crucial, pois se não houvesse a presença do real em uma análise, parece-me que ela seria apenas um jogo de ilusões.

Signo, símbolo, significante

O capítulo que Jacques-Alain Miller intitulou “A presença real” encerra uma série na qual Lacan trata do complexo de castração e do símbolo Phi. No Capítulo XVII, ele diz: “introduzi (…) o símbolo grande Phi. (…) este símbolo nos é indispensável para compreender a incidência do complexo de castração no que tange à transferência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 233). Deduzo disso que a presença real, para Lacan, nesse Seminário – isso mudará mais tarde em seu ensino – tem a ver com o complexo de castração, o símbolo grande Phi e o dispositivo da transferência. Lacan cita Freud em “Análise finita e infinita” (FREUD, 1937/1996, p. 225-231): “A mensagem freudiana terminou nesta articulação, ou seja, que há um termo último (…) o rochedo – o termo está no texto – do complexo de castração” (LACAN, 1960-61/1992, p. 226-227). O final de análise encontra um rochedo impossível de ser dissolvido pelo significante, ele tropeça em um real. É preciso notar que Lacan assinala que “Trata-se do complexo de castração no homem, bem como na mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 227) que “não se trata das relações entre homem e mulher” (LACAN, 1960-61/1992, p. 225).

Isto é digno de nota, pois poderíamos ter acreditado, a partir dos desenvolvimentos freudianos sobre ter ou não o pênis, que o falo estaria no princípio da diferenciação sexual e que o complexo de castração seria aquilo pelo qual mulheres e homens se diferenciariam. Mas, antes de entrarmos verdadeiramente na leitura a propósito do complexo de castração e do falo, esses capítulos tratam de signos, símbolos e significantes. Para me orientar na leitura, fiz pequenos esquemas. O signo representa alguma coisa. Eu insisto nessa expressão alguma coisa. O signo aponta para alguma coisa, em direção ao objeto. Digamos que o signo apresenta o objeto. Esquematizo desta forma:

Signo

Objeto

O símbolo, ao contrário, vem na ausência de alguma coisa – basta pensar nos primeiros símbolos gravados sobre os túmulos, quer dizer, sobre os mortos. O símbolo presentifica a ausência. Escrevo esta ausência com o conjunto vazio, e coloco uma barra entre o símbolo e o vazio para marcar que o símbolo vem no lugar do vazio.

Símbolo
_________

O símbolo presentifica a ausência: “aquele buquê de flores (…). Sua presença serve para recobrir o que é para se recobrir, (…) era menos o falo ameaçado de Eros (…), que o ponto preciso de uma presença ausente, de uma ausência presentificada” (LACAN, 1960-61/1992, p. 235). Esse símbolo, Lacan o escreve como grande Φ. E ele diz que “este talvez seja, com efeito, o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).  Escrevo-o assim:

Φ
___

O significante, ele mesmo, vem sob um fundo de ausência. Mas como significante, ele chama a dimensão do significado – senão não seria um significante. Entretanto, o sentido só pode surgir como efeito de uma articulação de vários significantes, de uma cadeia de significantes – quando falo, espero que vocês aguardem até o final das minhas frases para decidirem (mais ou menos) sobre seu sentido, se é que elas têm um sentido. O significante não aponta para o objeto presente, ele não só representa sua ausência, mas também aponta para outros significantes.

S1 → S2

Dito isto, esses esquemas do signo, do símbolo e do significante não são tão discriminatórios quanto poderiam parecer. Por exemplo, na frase que citei, Lacan nos diz que o símbolo grande Phi é um significante. Ou ainda, que os signos podem funcionar como significantes: basta que eles estejam ordenados em um feixe de índices que pede interpretação.

A falta de um significante 

O símbolo grande Phi é um significante, mas um significante bastante singular, pois ele vem “no lugar onde se produz a falta do significante” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234).

O que isso quer dizer? Lacan nos dá um exemplo clínico dessa produção com as questões da criança:

O que é correr? O que é bater com o pé? O que é um imbecil? (…) De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de captar o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por esse algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

O momento da pergunta é o momento em que a criança experimenta a ruptura radical entre as palavras e as coisas.

Lacan retornou a esse momento da pergunta no Seminário 11, no qual ele explica que nenhuma resposta pode satisfazer a criança: “ele está me dizendo isso, mas o que ele quer?” (LACAN, 1964/1998, p. 203)

Imagino esse diálogo:

— O que você quer quando me diz isso?

— Eu disse isso porque queria lhe dizer que…

— Mas agora, por que você está me dizendo isso?

— Eu digo isso porque…

— Mas agora, por quê?

Não há fechamento. No momento em que digo não posso dizer por que agora digo o que digo. A questão subjacente às perguntas da criança é: O que você quer? É uma questão sobre o desejo do Outro, e não há nenhum significante do desejo do Outro – apenas signos. O momento da pergunta é o momento em que se experimenta a falta de um significante no Outro que diria sobre seu desejo. Em seu lugar vem o símbolo grande Phi.

É assim que creio entender por que Alcebíades, que sabe que Sócrates o deseja, “demanda vê-lo, quer vê-lo, como signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232): ele rejeita o símbolo grande Phi do falo que apenas presentifica a falta de um significante, o vazio, e pede signos, que apontariam para o objeto, a coisa, o gozo.

E é também por isso que Sócrates recusa. Pois não há ali mais que um curto-circuito. Ver o desejo como signo não é, por este fato, aceder ao encaminhamento por onde o desejo é tomado em uma certa dependência, que é o que se trata de saber. (LACAN, 1960-61/1992, p. 232)

O questionamento socrático está inteiramente orientado para a descoberta desse caminho: em direção à produção de saber. Sócrates pode desejar Alcebíades carnalmente, mas ele dedica sua vida a outro desejo, que é, eu diria, o desejo de saber.

O desejo de saber e o desejo do analista 

Lacan, mais tarde em seu ensino, falará do desejo do analista como desejo de saber. E nesta mesma página, ele também fala do desejo do analista: “Vocês veem, aqui, iniciar-se o caminho que tento forçar em direção ao que deve ser o desejo do analista. Para que o analista possa ter aquilo que falta ao outro, é preciso que ele tenha a nesciência enquanto nesciência” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

O dicionário nos diz que a nesciência2 é o estado daquele que não sabe. Lacan é lógico: só se pode desejar saber se ainda não se sabe. Mas para o analista, é preciso pelo menos saber um pouco: “É preciso que ele esteja sob o modo de tê-lo, que ele também não esteja sem tê-lo, que não esteja de forma alguma tão nesciente quanto seu sujeito” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que ele não deve ser sem tê-lo, esse quase nada de saber? Lacan nos diz: “Para que o analista possa ter isso que falta ao outro”. Trata-se da transferência, da suposição de saber que o analisante faz ao analista, da transferência sobre a qual o analista deve estar advertido. Mas esta suposição, é enganosa? Sim e não. Há engano na suposição de saber dirigida ao analista na medida em que se supõe que ele tenha um saber, ele será suposto ter um saber – sobre o analisante – que não deriva apenas de seus ditos: tudo que o analista sabe sobre o analisante, ele constrói a partir disso que ele lhe diz e de como lhe diz.

É justamente outro saber que é exigido ao analista: aquele que ele produziu em sua própria análise, ou seja, por um lado, uma percepção sobre sua fantasia fundamental que lhe permite não interpretar apenas no seu quadro, e, por outro lado, um saber fazer aí com seu sintoma. E há ainda outro saber que o analista produziu a partir de sua análise: que falta um significante no Outro, que o Outro é incompleto e inconsistente, que o Outro da garantia não existe – o que Lacan escreve S(Ⱥ).

O signo da falta de significante e a angústia 

“De fato, ele também não é sem ter um inconsciente. Sem dúvida, ele está sempre para além de tudo aquilo que o sujeito sabe, sem poder dizer isso a ele. Ele só pode lhe fazer um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232). Isso é lógica: ele não pode dizer com significantes a falta significante. Portanto, ele só pode fazer signo disso. “Pois ao signo que há para dar, falta significante (…) porque é aquele que provoca a mais indizível angústia” (LACAN, 1960-61/1992, p. 232).

Por que a angústia? O signo aponta para o objeto. Mas, aqui, trata-se do signo da falta significante: esse signo aponta em direção a um vazio. Sartre, por exemplo, falou da angústia do sujeito diante de sua liberdade, ou seja, diante de um vazio de determinismo – em termos lacanianos, diante de uma falta no Outro. Mas eu disse que o signo aponta para o objeto – qual é o objeto aqui em questão? Eu arriscaria, antecipando o ensino de Lacan, que se trata do objeto nada. Dois anos após o Seminário sobre A transferência, Lacan fará seu Seminário sobre A angústia (LACAN, 1962-1963/2005), no qual ele dirá que é a presença do objeto que causa a angústia, que o objeto é causa. Anteriormente, o objeto era o objeto desejado; no Seminário sobre A angústia, o objeto pequeno a torna-se a causa do desejo.

Mas ainda não estamos neste ponto no Seminário sobre a transferência. Nas páginas que comento hoje, com qual objeto o sujeito está lidando?

A análise descobriu (…) que aquilo com o que o sujeito tem a ver é o objeto da fantasia, na medida em que este se apresenta como o único capaz de fixar um ponto privilegiado naquilo a que é preciso chamar (…) uma economia regulada pelo nível do gozo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

O principal exemplo que temos de que a fantasia fundamental regula a economia de gozo está no artigo de Freud “Uma criança é espancada” (FREUD, 1919/1996): os sujeitos confessam dolorosamente a Freud que só atingem o gozo sexual apelando para sua fantasia fundamental.

Mas continuo minha leitura desta página:

A análise nos ensina também que, ao referir a questão ao nível do que quer ele?, do que é que isso quer lá dentro?, encontramos um mundo de signos alucinados, e ela (a fantasia) nos representa a prova da realidade como uma forma de experimentar o quê? – a realidade desses signos. (LACAN, 1960-61/1992, p. 239)

A questão é a questão sobre o desejo do Outro, e trata-se aqui da realidade dos signos. Retomo a citação: “O que está em questão, pois, na prova da realidade, vamos observar bem, é certamente controlar uma presença real, mas uma presença de signos” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Lacan disse que o símbolo grande Phi presentificava uma ausência (LACAN, 1960-61/1992).

Φ
___

Mas a presença real é presença de signos. Como percebermos isso, senão que diante do vazio, diante da ausência de significante significado pelo grande Phi, o sujeito convoca a presença real de signos?

O objeto da fantasia e os objetos das fantasias

Signos de quê? Signos “de uma relação com outra coisa” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240). E o que é essa outra coisa? “É isto o que quer dizer a articulação freudiana, que a gravitação de nosso inconsciente diz respeito a um objeto perdido, que jamais é senão reencontrado, isto é, jamais realmente reencontrado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240).

Signo

Objeto a

Qual é esse objeto perdido? “O objeto jamais é senão significado” (LACAN, 1960-61/1992, p. 240) – como entender significado aqui? Escolhi lê-lo assim: do objeto se faz signo.  Qual é a relação do sujeito ao significante? No nível da cadeia inconsciente lidamos apenas com signos. Trata-se de incitar esse outro a quem me dirijo “a visar da mesma maneira que eu, o objeto ao qual se relaciona determinado signo, fazer dele um signo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Como está perdido, já que existe como tal apenas como perdido, estamos sempre lidando apenas com os signos desse objeto. “O objeto verdadeiro, autêntico, de que se trata quando falamos de objeto (…) está no horizonte daquilo em torno do que gravitam nossas fantasias” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241). No horizonte ele não é alcançado. O verdadeiro objeto não é, estritamente falando, o objeto de nossas fantasias no plural, por exemplo, o chicote fálico em “Uma criança é espancada”. O verdadeiro objeto é um objeto em torno do qual giram nossas fantasias. Isto parece nos convidar a distinguir o objeto verdadeiro, autêntico, em torno do qual giram nossas fantasias – e que não pode ser compartilhado ou intercambiado – dos objetos colocados em jogo nessas fantasias.

E para distinguir da mesma forma a fantasia fundamental, no singular, que implica esse objeto verdadeiro – a voz, o olhar, as fezes, o objeto o oral, o fonema, o nada – dos cenários imaginários fantasmáticos que colocam em jogo os signos desse objeto e que podem ser compartilhados. Os cenários e as imagens fantasmáticas, ao contrário da fantasia fundamental, podem ser compartilhados e intercambiados e, aliás, existe um mercado de fantasias. E, nos diz Lacan (1960-61/1992, p. 240), existe “um mercado de objetos”, objetos aqui a serem tomados no sentido comum do termo, quer dizer, objetos que se pode intercambiar. O que compramos quando nos oferecem o iPhone mais recente? Compramos um signo, signo de que temos o gozo, mas, além disso, o signo que aponta para o objeto pulsional de nossa fantasia fundamental, mas que não é esse iPhone. O mercado de objetos é o mercado dos signos do objeto.

Grande Phi, signo do desejo 

Esses signos, nós podemos desejá-los, mas qual é o signo do desejo? Nesse Seminário, é o falo, o grande Phi.

De todos os signos possíveis, não é aquele que reúne em si mesmo o signo e o meio de ação e a própria presença do desejo como tal? Deixar emergir o falo em sua presença real (…). [Do desejo] Não há signo mais certo (…). (LACAN, 1960-61/1992, p. 241) 

Já sabíamos disso para o significante e para o símbolo, mas acentuo que os signos também têm um efeito em si mesmos, que há uma eficiência dos signos. No fundo, isso é evidente se pensarmos na indústria publicitária, cuja única produção é a produção de signos, e que se baseia no pressuposto de sua eficiência.

E o grande Phi é seu meio de ação. Trata-se de tornar estes signos desejáveis – como? Não há desejo sem falta. Portanto, é necessário introduzir a dimensão da falta, e como melhor fazê-lo senão convocando o símbolo que presentifica a falta, grande Phi:

Φ
___

Ao presentificar a falta, grande Phi presentifica o desejo. Retomo a frase de Lacan: “Que o falo venha à luz em sua presença real”: através do signo ou do símbolo grande Phi, o falo deve vir à luz; o sinal ou símbolo grande Phi deve estar realmente presente. “Do desejo não há signo mais certo”, e Lacan acrescenta, “sob a condição de que nada mais haja além do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 241).

Para que o signo do desejo, o grande Phi, que é um signo da falta no Outro, venha à luz em sua presença real, é preciso que se rasgue o véu dos outros signos, que apontam para o objeto, pretendendo preencher a falta. “Do desejo não há signo mais certo, sob a condição de que não haja além do desejo”. O grande Phi é “o puro significante do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 242). O grande Phi foi “o único significante a merecer, em nosso registro, e de uma maneira absoluta, o título de símbolo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 234). Por isso é um significante, mas um significante da falta de um significante no Outro. Como tal ele é indizível, inominável. Daí seu funcionamento como signo: dele só se pode fazer signo, em silêncio, eu diria.

A falta no Outro, a relação com a linguagem e sua projeção no órgão

Lacan escreve o significante da falta no Outro como S(Ⱥ). O Outro, neste caso, é o lugar do significante – digamos, a linguagem. Como tal, S(Ⱥ) escreve a relação conflituosa do sujeito com a linguagem – pensemos no momento da pergunta da criança:

De que se trata, no momento da pergunta? – senão do recuo do sujeito com relação ao uso do próprio significante, e de sua incapacidade de o que quer dizer que haja palavras, que se fale, e que se designe determinada coisa tão próxima por este algo enigmático a que se chama uma palavra ou um fonema. (LACAN, 1960-61/1992, p. 237)

A relação inominada, porque inominável, porque indizível, do sujeito com o significante puro do desejo se projetada sobre o órgão localizável, preciso, situável em alguma parte no conjunto do edifício corporal. Daí este conflito propriamente imaginário, que consiste em ver a si mesmo privado, ou não privado, desse apêndice. (LACAN, 1960-61/1992, p. 242)

Acontece com o significante da falta no Outro com um grande A, algo análogo a isso que aconteceu anteriormente com o objeto imutável e não compartilhável da fantasia fundamental. O objeto da fantasia fundamental foi projetado sobre o objeto localizável e intercambiável do mercado. O significante da falta no Outro com A maiúsculo, lugar dos significantes, digamos da linguagem, é projetado no órgão do outro com um pequeno a, quer este pequeno outro seja o parceiro do sujeito ou o próprio sujeito. Escrevo essas projeções com duas pequenas setas:

Objeto pulsional, objeto a → objeto do mercado

S(Ⱥ) → falo imaginário, ϕ

A → outro

Antecipemos um pouco: no Seminário sobre A angústia, o objeto que se deseja se tornará causa do desejo, e no Seminário De um Outro ao outro (LACAN, 1968-1969/2008), o objeto a como causa responderá pelo objeto mais-de-gozar, permutável, compartilhável, mercantilizável.

Objeto causa → objeto mais-de-gozar

O que faz os termos à esquerda passarem para aqueles à direita? O que é colocado em função nessas projeções de localização?

A função grande Φ 

Nós tínhamos o sinal, o símbolo e o significante, agora eu apresento a função. Lacan fala da “função Φ do significante falo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244), e quando fala do neurótico obsessivo, fala de “colocar em função” e fala do “sinal da função fálica” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A clínica do neurótico obsessivo me parece falar particularmente da “da ativação da função fálica”, digamos, da falicização.

A formulação do segundo termo da fantasia do obsessivo faz, precisamente, alusão ao fato de que os objetos são para ele, enquanto objetos de desejo, colocados em função de certas equivalências eróticas – aquilo que temos o hábito de assinalar, ao falar da erotização de seu mundo, em especial de seu mundo intelectual. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Lacan escreve a fantasia do obsessivo da seguinte forma:

(Ⱥ) ◊ Φ (a, a”, a”, a”’, …)

(LACAN, 1960-61/1992, p. 248)

Ele especifica que o poinçon pode ser lido como desejo de. Eu li desta maneira: recuando diante da falta no Outro, face ao A barrado, o sujeito obsessivo deseja os objetos de seu mundo na medida em que eles são falicizados.

Na medida em que são falicizados, porque sua falicidade é medida:

(…) o j é justamente aquilo que é subjacente à equivalência instaurada entre objetos no plano erótico. O j é, de alguma maneira, a unidade de medida, onde o sujeito acomoda a função a, ou seja, a função dos objetos de seu desejo. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Medida, equivalência: esses objetos são objetos do mercado:

(…) tantos ratos, tantos florins, não passa de uma ilustração particular da equivalência permanente de todos os objetos naquilo que é uma espécie de mercado (…). Ela se inscreve (…) numa espécie de unidade comum de padrão-ouro. O rato simboliza, ocupa propriamente o lugar daquilo a que chamo j, na medida em que ele é uma certa forma de redução de Φ, e mesmo a degradação deste significante. (LACAN, 1960-61/1992, p. 250)

Às projeções que já escrevi, acrescento uma:

Φ → φ

E Lacan acrescenta – trata-se sempre do obsessivo –: “a função Φ do falo, enquanto oculta por trás de sua negociação no nível da função do j (LACAN, 1960-61/1992, p. 254). Mas Φ representa “a função do falo em sua generalidade, para todos os sujeitos que falam” (LACAN, 1960-61/1992, p. 251).

A presença real 

O símbolo grande Φ tem a ver com a presença real: “Sabemos qual é a dificuldade do manejo do símbolo Φ na sua forma desvelada. (…) o que ele tem de insuportável é que não é simplesmente um signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 244).

Ele não é simplesmente signo e significante: não é simplesmente imaginário, nem simbólico: ele é real, presença real, real da presença do desejo. “Esta presença real, trata-se, no entanto, de situá-la em alguma parte, e num outro registro que não o do imaginário. (…) que podemos entrever que o desejo vem habitar o lugar da presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 256).

“Mas então por que o falo, neste lugar e neste papel?” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257) – pois há “outros signos do desejo” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257). “O falo se apresenta no nível humano, entre outros, como o signo do desejo. É também o seu instrumento, e também sua presença” (LACAN, 1960-61/1992, p. 257).   

No nível humano, ou seja, não se refere apenas ao perverso de quem Lacan fala nessas páginas. “O que ele designa não é nada que seja significável diretamente. É aquilo que está além de toda significação possível e, especialmente, a presença real” (LACAN, 1960-61/1992, p. 258).

E, como se trata da presença real na análise, e como essa não pode ser concebida sem a transferência ao analista à qual responde o desejo do analista, eu me arriscaria que a presença real, na análise, está situada de forma privilegiada na emergência do desejo do analista, em suas interpretações, suas escansões, seus cortes… ou em seu silêncio.

 

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Tereza Facury

Referências
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 231-270.
FREUD, S. (1919). Uma criança é espancada. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 193-218.
LACAN, J. (1960-61). O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1962-1963) O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, J. (1968-1969) O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

1. Texto originalmente publicado em Ironik, n.33, boletim da UFORCA.
2. Característica de néscio, de quem não sabe ou não possui conhecimento para compreender alguma coisa. Alguns estudiosos diferem nesciência de ignorância, sendo a última relacionada a falta de conhecimento para compreender algo que se deveria saber. Disponível em: https://www.dicio.com.br/nesciencia/. Acesso em: 19 out. 2022.



Implicações da criminalização do aborto a partir da psicanálise1 

Ondina Machado
Psicanalista, membro da EBP-RJ/AMP
E-mail: ondinamrm@gmail.com

 

Resumo: Em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise? Se A Mãe existe, sob a perspectiva da norma fálica, e A Mulher não existe, conforme formulado por Lacan, o que é um filho para uma mulher? Considerando que uma mulher não pressupõe um filho, fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, excluindo o lado não-todo fálico no qual ela também pode se situar. Uma mulher não pode não querer ser mãe? A criminalização do aborto quer punir essa mulher, desconsiderando que o filho não é solução para todas as mulheres. Assim, a criminalização do aborto compromete a assunção do desejo por um filho. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho?

Palavras-chave: criminalização do aborto; mulher; mãe; desejo.

IMPLICATIONS OF THE CRIMINALIZATION OF ABORTION THROUGH THE LENS OF PSYCHOANALYSIS

Abstract: What would the criminalization of abortion imply from the point of view of psychoanalysis? If The Mother exists, from the perspective of the phallic norm, and The Woman does not exist, as formulated by Lacan, what is a son for a woman? Considering that a woman does not presuppose a son, to make abortion a crime is to make every woman The mother, excluding the not-all phallic side in which she can also find herself. Can a woman not want to be a mother? The criminalization of abortion wants to punish this woman, disregarding that the son is not the solution for all women. Thus, the criminalization of abortion compromises the assumption of desire for a son. How can a woman sign this desire if she is required by law to have a son?

Keywords: criminalization of abortion; woman; mother; desire.
 

CAROLINA BOTURA. NIUNAMENOS

 

Proponho nos centrarmos na questão da “criminalização” do aborto, e não no aborto em si, porque entendo que a decisão de abortar cabe a cada mulher. Mas gostaria de pensar com vocês em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise. Sobre isso acho que posso dizer alguma coisa.

O desejo materno:

Supõe-se que o desejo materno é inerente à mulher. Aquela que não deseja um filho entra em um escaninho à parteé uma aberração. As soluções freudianas do Édipo também levam em conta que mulher e mãe se equivalem ou, pelo menos, que a maternidade tem papel fundamental na vida de uma mulher. Não podemos mais dizer isso nos dias de hoje.

A discussão sobre criminalização do aborto demonstra que filho não é solução para todas as mulheres. A criminalização do aborto pune a mulher que se recusa a ser mãe, pelo menos naquele momento. Como assim? Uma mulher não pode não querer ser mãe, independente das condições em que essa gravidez ocorreu? Ela estaria negando sua vocação natural, biológica e social?

Sabemos que, na criminalização, a questão é que o desejo da mulher não entra nessa discussão. Sabemos também que existem outras “intenções”, como o controle do corpo feminino pelo patriarcado, a manutenção do poder sobre ele e uma misoginia estrutural que Freud chamou de “rechaço à feminilidade”. Assim, gostaria de apresentar a vocês o que seria um filho sob o ponto de vista da psicanálise.

O que é um filho para uma mulher? Reforço a pergunta destacando o “para uma mulher”. Costumamos fazer essa pergunta de outra maneira: o que é um filho para uma mãe? No entanto, quero propor pensar o filho para alguém que ainda não o tem, que ainda não é mãe, que não pretende ser, nesse momento ou mesmo nunca.

Uma mulher não pressupõe um filho; uma mãe, sim, esta pressupõe um filho, mas uma mulher não. O aborto entra na vida de uma mulher exatamente nesse momento, quando ela não quer ser mãe.

Um filho não é um dado natural na vida de uma mulher. Quando uma mulher quer ter um filho é porque ela supõe que ele lhe falta, falta imaginariamente como um complemento. Não ter um filho pode ser entendido, por essa mulher, como uma falta, por muitos motivos. Ou porque ela entende que ser mãe é uma consequência socialmente prevista, ou por querer dar um filho ao seu parceiro, ou, ainda, porque é algo que ela quer viver como uma experiência de cuidado ou da própria gestação.

A relação amorosa não supõe um filho, nem a heteroafetiva, nem a homoafetiva. Mas vamos examinar essa parceria pelo ponto de vista do casal homem e mulher, sabendo que não é o gênero que define as posições no amor, e sim o modo de gozo. 

Vamos ao clássico:

Supõe-se que o homem coloca uma mulher como causa de seu desejo, o que faz daquela mulher um sintoma para aquele homem, e faz daquele homem um amante para aquela mulher. Nada a ver com filho. O filho não entra na parceria amorosa, o filho é uma parceria da mãe com o próprio filho.

A fala de Jair Bolsonaro sobre as mães solo como “mães sem marido” mostra o erro sobre o que é um filho para sua mãe. A mãe, em tese, não precisa de marido, e isso se demonstra na multidão de mães que criam seus filhos sozinhas. O pai entra como aquele que, por amor, vai cuidar dos filhos dela. Aqui podemos identificar uma das maneiras pelas quais fica evidente que a relação sexual não existe: não existe como relação porque cada um quer uma coisa diferente; diferente e não complementar.

Chegamos, então, à fórmula lacaniana na qual um filho é o objeto a para uma mãe. Esse é um ponto que considero de suma importância para pensar a criminalização do aborto e suas consequências, pois fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, é encerrar toda mulher no regime fálico, excluindo o lado nãotodo fálico no qual ela também pode se situar. Mas vejamos isso com calma.

A mãe e a mulher:

No Seminário 20, ao mesmo tempo em que Lacan diz que A Mulher não existe, ou seja, que não há uma representação inconsciente que universalize o ser mulher, ele diz também que “a mulher só existe como mãe” (LACAN, 1972-73/1985, p.133), ou seja, somente A mãe entra como um significante que se representa para outro significante. A Mãe existe, A Mulher não existe.

Dizer que A mãe existe é colocá-la no lado fálico da sexuação, é tomá-la sob a perspectiva da norma fálica, portanto, pela visão do homem, do patriarcado, sobre a mulher. Nada a ver com a mulher. Dá para entender o raciocínio de Lacan, pois, para o homem, como todo alicerçado no falo, existe A mãe, ele sabe o que é uma mãe. O que ele não sabe, nem nós as mulheres sabemos, é o que é uma mulher. Cada uma terá que construir seu ser de mulher na articulação do corpo com o significante. 

Pensem isso no macro:

Uma cultura falocêntrica só pode incluir em si A mãe. É sempre como mãe que as mulheres entram no social, nas políticas públicas, por exemplo. É como mãe também que as mulheres são idealizadas, é como mãe que elas são “as rainhas do lar”.

Com as mulheres não se sabe o que fazer, não se sabe lidar com seus corpos sangrantes, sua TPM, sua menopausa, seu destemor, seu “dom de iludir”, enfim. O espaço público é para as mães, para as mulheres só o privado. As políticas e as leis não contemplam o desejo das mulheres, porque dele nada se sabe e, assim, torna-se temerário. Por isso dão uma resposta que aprisiona a mulher: deduzem que toda mulher quer um filho.

Agora voltemos ao micro, ao “a cada mulher”:

A criminalização do aborto, então, recai sobre a mulher, comprometendo a assunção do desejo por um filho pois, se a lei obriga, como saber se se quer, ou não? Assim, as mulheres, efetivamente, não podem decidir, nem tampouco se responsabilizarem pela decisão, afinal foram obrigadas. A criminalização impõe um permanente “sim” como resposta, na medida em que dizer “não” obriga a buscar soluções fora da lei. Leva as mulheres a uma transgressão perigosa que põe suas vidas em risco, em especial a das mulheres pobres que ficam sujeitas a abortos em péssimas condições técnicas e de higiene. A ONG Rede Feminista de Juristas reporta mais de 850 mil abortos ao ano, pelos dados de 2017, a maioria deles sem condições adequadas.

E aqui podemos ver que quem é excluída é a mulher, não a mãe. Somos minoria por essa exclusão, não pela quantidade de nós na população, mas pela exclusão de nosso ser de mulher.

Mas um filho não é só da mãe, vocês me diriam. Sim, um filho é o resultado de uma demanda por um complemento imaginário articulado a uma lei. O resultado dessa articulação é o desejo. A lei à qual Lacan se refere é associada ao pai, à função pai. O que é essa função? Como função, ela se descola da figura do pai. Lacan coloca nesse lugar o pai real, não o pai imaginário, nem o pai simbólico. Como real, ele é contingente, é sem palavras, é um lugar vazio de significação. Como função, pode ser exercido por qualquer um ou por qualquer coisa: o pai da mãe, a mulher da mãe, o trabalho, outros filhos, outros homens. O que importa é que haja uma articulação entre a pulsão e uma ordenação simbólica que inclua o objeto a/filho na subjetividade da mãe como uma promessa de satisfação, ou seja, como um semblante do que lhe falta. Vejam como aqui se separa a mãe da mulher: o filho é um objeto da fantasia da mãe, portanto, está no mesmo lugar do objeto fetiche, objeto de um gozo fixado, pré-determinado na fantasia e independente de suas características, ou seja, o objeto é tomado como um tampão, um simulacro. Já quando pensamos no filho articulado a uma rede simbólica, trata-se de um lugar de objeto que pode deslizar para diferentes formas de satisfação. Se fixado, é gozo e exclui a cadeia significante, exclui o Outro. Quando o objeto ocupa um lugar simbólico, ele cria uma demanda endereçada ao Outro e instaura o desejo que, justamente por ser desejo, não se fixa. É a famosa frase de Lacan: só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. É essa dialética que separa o corpo da mãe do corpo do filho, é o que faz com que a mãe assine um desejo pelo filho supondo que ele vá satisfazê-la. O desejo não pode ser anônimo, no sentido de ser o desejo de alguém e não de qualquer um, ou mesmo a obediência a uma lei. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho? É essa assinatura que fará de uma mulher mãe de um filho. Um filho, caso ele saiba fazer semblante de complemento, se torna um sintoma na subjetividade da mãe.

Vejam que o problema da criminalização do aborto recai sobre umas e não outras, pois aquelas que querem ter, podem ter.

Gostaria de encerrar minha participação com uma vinheta clínica que, espero, exemplifique o que falei até aqui.

Vivendo uma vida de muitos excessos, uma mulher descobre que está grávida e, mesmo tendo condições financeiras para abortar, descobre em si um desejo de ser mãe até então inimaginável. Seguiram todas as recomendações médicas durante o pré-natal por perceber que disso dependeria o futuro do filho.

Minha hipótese é que esse filho, concebido em um momento de vida desregrada, funcionou como um ponto de basta na iteração insana de um gozo que colocava sua vida em risco. Quando seu filho pergunta sobre o pai, ela diz não saber quem é, que o que sabe é que o queria como filho.

A maternidade como um desejo, e não uma condição, fica bem clara na definição que Romildo do Rêgo Barros (2003, p. 130) dá sobre o desejo materno: “O que pode definir uma mãe não são as prerrogativas do personagem, nem sequer o lugar na família, mas o fato de ser um desejo”.
Referências 

 


LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais, aindaRio de Janeiro: Zahar, 1985.
BARROS, R. do R. Sobre a função materna. In: VIEIRA, M. A. (Org.). Mães. Rio de Janeiro: Subversos, 2003.

1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 30/09/2022.