Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line 32 entrevista Oscar Ventura

Almanaque On-line: Em seu texto “Quando um sonho desperta Um corpo”,  há um ensinamento em que clareza e beleza se combinam em uma transmissão. Cito abaixo a frase em questão, e peço que nos fale como o analista pode chegar a esse ponto de “precisão” que você disse e que marca a fineza de uma clínica lacaniana:

Se o sonho, para além da sua história, abriga também um núcleo autista de gozo, é então necessário poder especificar na experiência o momento clínico que implica a passagem do campo do Outro do significante para o corpo como Outro. (VENTURA, 2020, p. 10)

Em outras palavras, como podemos situar essa distinção entre o inconsciente “mentiroso” e o inconsciente real na interpretação dos sonhos que ocorrem na prática analítica?

Oscar Ventura: Obrigado por esta pergunta, porque me permite continuar interrogando a função que os sonhos desempenham na prática clínica. E permite também articular diferentes momentos da obra de Freud e do ensino de Lacan sobre a possibilidade que os sonhos oferecem de produzir uma retificação na economia do gozo. Porque, na verdade, o que interessa afinal é como dar conta do poder que alguns sonhos têm de modificar a própria posição do sujeito em relação ao sonho sonhado.

Nem todos os sonhos que se desenrolam durante um tratamento dão essa possibilidade; talvez os mais interessantes sejam aqueles em que se pode localizar uma destituição do analista na transferência. Isto é, se o sonho já implica a transferência, como apontou Freud, se o relato do sonho está dirigido ao Outro. Além disso, podemos colocar desta forma: os sonhos podem permitir uma evaporação do Outro.

Provavelmente, temos o paradigma desse deslocamento do Outro com o sonho da Injeção de Irma, “o sonho dos sonhos”, como Lacan o chama no Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Ali, o que em última instância permanece a céu aberto, para Freud, é um real que se encarna no abismo e no mistério do corpo, um furo que suga toda pretensão de sentido que lhe poderia ser concedida. E isso não deixou de ter consequências para o próprio Freud como sonhador e como analisante. Não só lhe foi revelada aquela zona indecifrável do sonho, limite de qualquer interpretação possível, mas também inaugura aquele espaço insondável, no qual se funda a sexualidade humana, incluindo aquele “continente negro”, como Freud o chamava, para ilustrar o enigmático da sexualidade feminina. A elisão do sentido produzida pelo umbigo do sonho deixa fora de jogo a Bedeutung do falo enquanto tal, e esse movimento dá conta da presença de um gozo que não tem nenhuma escrita no campo das representações, sejam elas imaginárias, sejam simbólicas.

Sempre que nos referimos ao umbigo do sonho, a essa diluição das representações que transcorre no próprio lapso do sonho, pode-se notar, por um lado, a presença do limite de um real que ocorre mais além de qualquer significação, e, por outro, uma resposta do corpo, que de uma forma ou de outra é o único suporte para a experiência de um gozo cuja fixação é inexpugnável, e que dá conta, ao mesmo tempo, tanto da vida que ali pulsa, quanto da morte que também abriga.

O relato de um sonho sob transferência tem, portanto, duas dimensões. Por um lado, a sua estrutura significante, o que o analisante diz sobre ele, o conto que o sonho conta, o cenário que constrói, enigmático por vezes, outras mais claro. É a parte de verdade que o sonho veicula em seu estatuto de inconsciente transferencial, é um conto do Outro e para o Outro. E, nessa direção, a verdade mentirosa, mas necessária, se faz ouvir no nível do uso que o sujeito faz do que para ele foram as formas pelas quais o significante mordeu e debilitou sua satisfação, sempre corroída pelo parasita da palavra e que produz um sintoma, o de cada um. Nesse nível, o que constatamos é que o próprio relato do sonho já é uma interpretação, alimenta um sentido novo que corre o risco de se metonimizar num infinito estéril, a repetição é o obstáculo que retorna continuamente. Nessa conjuntura, os atos do analista visam corroer o aparato da fantasia, coração da máquina interpretativa e da repetição a que submete o sujeito, também solidária com a estrutura da fantasia.

Agora, no relato de um sonho, por outro lado, também podemos encontrar seu ponto de furo, seu abismo, a garganta de Irma, por exemplo. É o ponto no qual o significante se esgota e surge a possibilidade de o corpo responder a esse inominável com seu acontecimento. Encontrar esse momento, o Kairós do sonho, se podemos dizer assim, é a possibilidade que podemos oferecer à transferência para produzir a disjunção necessária entre saber e gozo. É o próprio corpo do analista, colocado a serviço do corte, que pode permitir ao sujeito percorrer esse território onde a ausência de sentido faz ressoar outra coisa, que pode ir um pouco mais além do laço que faz o significante se solidarizar com a ruína da repetição.

A.O.: Ainda nesse mesmo texto você trata de um despertar, ligado a um significante novo, fora do sentido, que produz também um acontecimento de corpo, no caso, uma gargalhada que toma todo o corpo. Parece ser necessário consentir com esse significante novo e seu estatuto de fora do sentido para que esse encontro com algo do real se efetive. Em “Rumo a um significante novo”, Lacan (1977/1998, p. 11) aponta o chiste e a poesia como formas de fazer ressoar o fora do sentido que desperta e, em A terceira, ele diz: “O significante não é a letra. O significante se abre para outros – e a letra é morta, ou, o que de mais vivo há, pois dá acesso ao real.” (LACAN, 1974/2023, p. 57). Seria a partir de um significante novo que se conseguiria vivificar a letra morta do sintoma, tornando-o sinthome? Como você percebe a função do chiste e da poesia numa clínica orientada para o real?

O.V.: Bom, há muitas perguntas na questão, daria para escrever um artigo inteiro, uma investigação… Mas podemos reduzi-las um pouco a questões fundamentais. Vou começar fazendo uma pequena pontuação sobre o sinthoma. Às vezes tendemos a nos precipitar sobre as contribuições fundamentais que Lacan nos deixou em seu último ensino. E é verdade que esse último ensino é fundamental para enfrentar a prática clínica contemporânea. A potência clínica que daí emerge nos permite às vezes captar algumas questões muito rapidamente, por vezes logo no início da experiência, inclusive durante as entrevistas preliminares. Por exemplo, há casos em que podemos vislumbrar a partir do relato, e para além da estrutura clínica, incluindo o diagnóstico, qual é a interpretação que o próprio sujeito tem do seu sintoma, qual é também a interpretação que ele tem do mundo, se o sujeito tem ou não uma fantasia consistente, se a estrutura da fantasia é mais permeável, talvez mais fraca, ou se ele não foi capaz de construir esse aparato de interpretação que é a fantasia. Ou seja, às vezes podemos verificar com certa antecipação qual é a relação que um sujeito estabelece com o real, e qual o tipo de defesas ele articulou para amortecer esse real que o habita.

Mas isso não nos autoriza a um procedimento repentino de orientar a experiência para o imediatismo técnico, se assim posso dizer. É necessário tempo para que um sujeito estabeleça algum tipo de acordo com o impossível, embora à orientação do ato analítico não falte uma orientação para o real em hipótese alguma. Digo isso porque é importante enfatizar, creio, que o último ensino de Lacan não dispensa o primeiro. Posso dizer de outra forma: é necessário que a verdade mentirosa se desdobre, que se produza a construção de um mito individual, que a repetição seja escandida, para decantar, até onde o sujeito consinta, as estratégias que ele concebeu para se defender, para dizê-lo rapidamente, da ausência de relação sexual.

Então, a passagem do sintoma ao sinthoma – quando isso ocorre – se estabelece na medida em que um tratamento se desenrola ao longo do tempo. Além disso, a emergência de um significante novo, mesmo que seja contingente, ainda assim necessita que o sujeito, de alguma forma, esteja decidido a fazer da incerteza um parceiro; é uma condição para que a irrupção da contingência possa escrever-se.

O sinthoma implica uma forma de funcionamento subjetivo, coloca a serviço da vida pelo menos uma parte do gozo que parasita a existência. Seria interessante clinicamente não confundir o sinthoma com a raridade de cada um, com um traço peculiar, mas antes apreender que o sinthoma implica uma lógica borromeana, onde o gozo vai mudando, e é na medida em que um sujeito está advertido da irredutibilidade desse gozo que pode inventar a possibilidade de colocá-lo a serviço de outra coisa, alguma coisa que não seja sempre solidária com o autismo subjetivo que o gozo implica.

Seria necessário, talvez, diferenciar duas dimensões da letra, para esclarecer o que é letra morta e o que não é – e que seria letra viva. E para isso é importante colocar a lupa sobre o deslocamento que Lacan vai progressivamente operando do sujeito ao falasser e do inconsciente a lalíngua.

Por um lado, temos um movimento que está inscrito muito cedo no ensino de Lacan, que é a mortificação do corpo, aquela mordida do significante no vivente de que fala Lacan. Ou seja, a desvitalização que o simbólico imprime sobre o corpo e que se solidariza com a letra morta do sintoma, deixando à deriva o mais de gozar que se aninha no próprio núcleo do sintoma.

Na transferência, a interpretação tem um alcance sobre a letra morta, graças à operação do sentido, à decifração como tal. Essa operação transferencial não se confunde com o aparecimento de um significante novo. Não constitui um arranjo para o funcionamento que o sujeito estabeleceu com o sintoma, o sentido, que é infinito, é o obstáculo aqui.

É necessário ter o conceito de lalíngua como pano de fundo para dar todo o seu alcance a um significante novo, porque aí se trata dessa outra dimensão, de um encontro diferente sobre o corpo, que é logicamente anterior, inaugural, se assim podemos dizer, da relação do sujeito com a vida. Nessa dimensão, não se trata da mordida do significante na carne, mas sim do impacto de lalíngua sobre o corpo, que não imprime uma letra morta, mas um afeto que marca o tom vital de cada um. Imprime uma letra inédita e exclusiva. Um significante novo tem a possibilidade de emergir graças ao equívoco de lalíngua que cada um pode produzir na experiência analítica. E esse significante cai da cadeia, não se liga a nada, nenhum S2 pode ser acoplado a esse S1. E é na exploração desse litoral, entre lalíngua e o corpo, onde um gozo pode ser articulado como uma letra, por minúscula que seja, sempre é insensata, ou seja, fora do sentido. É a partir daí que se pode estabelecer um funcionamento orientado mais pelo afeto que fixou a experiência inaugural de gozo do que pelo significante que tenta captá-lo. Provavelmente assim se pode instalar na subjetividade uma lógica do sinthoma que aspire um pouco mais à relação com a vida do que ao parasitismo da carne assassinada pelo logos.

Por fim, muito brevemente, a função do chiste e da poesia na experiência clínica. Provavelmente, o que mais nos interessa tanto no chiste como na poesia é a sua relação com a ressonância que produzem no corpo. Ou seja, o que podem escrever de esvaziamento, o que já não se pode mais metaforizar ou metonimizar. Do lado do chiste, poderíamos dizer que ele não responde exatamente à mesma lógica das demais formações do inconsciente, há aí possibilidades plurais de invenções de significantes novos que coagulam o sentido, mesmo que efêmero, para dar lugar a um eco no corpo, sem que o recalcamento, digamos assim, funcione como obstáculo. Nesse sentido, talvez fosse lícito dizer, em termos freudianos, que o chiste é uma pequena sublimação, certamente necessária para amenizar a existência. A irrupção do chiste na transferência é sem dúvida um momento privilegiado, pois permite um fechamento, um lapso de evaporação do sentido, anterior à emergência do chiste como tal, detém-se a significação para dar lugar a um breve acontecimento do corpo, o riso, por exemplo, às vezes a gargalhada, enfim, nada mais a dizer, fim da sessão.

No que diz respeito à poesia, digo coisas muito sintéticas. Por um lado, há a poesia que se lê, incluindo aquela que é citada, aquela que pode ser recitada, ou seja, a poesia do Outro, que sem dúvida tem um alcance de significação pessoal, e que também pode inspirar um impedimento do relato anódino da história. Por que não pensar a poesia como uma possibilidade de corroer, de furar o suposto bom senso da gramática, de explodir a pontuação, de favorecer a boa forma da ausência, de fazer emergir o novo com palavras que não cabem mais ao cancelamento de um sentido, seja ele seu, seja coletivo, comum?

Por outro lado, podemos perguntar-nos sobre uma outra dimensão da poesia, aquela que pode destilar a experiência de uma análise, aquela que pode brotar de cada encontro com um real que as palavras nunca chegarão a nomear como tal. Se, como Jacques-Alain Miller nos anuncia com todo o rigor, o mais fundamental da língua é que ela se cria ao falar, então nos resta a possibilidade de fazer esse esforço de poesia que tantas vezes citamos, como uma das possibilidades mais autênticas dos efeitos que um tratamento analítico pode produzir.

A.O.: Por fim, gostaríamos de recuperar um trecho do artigo de nosso colega Ram Mandil – que está publicado nesta edição – no qual ele se refere ao diálogo entre Stephen Dedalus e seus colegas em O retrato do artista quando jovem.[1] Nesse diálogo perturbador para Stephen-Joyce, Mandil (2024, s/p) se interessa em destacar como esse encontro “com a inconsistência do Outro”, “com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da pergunta sobre a resposta correta para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss. E Mandil conclui que essa passagem pode nos ajudar a entender o que seria ler um sintoma. Poderíamos pensar que ela também condensa algo que nos ilumina sobre o que estaria em jogo ao final da experiência psicanalítica?

O.V.: É uma alegria me deparar com o texto do Ram e poder conversar um pouco com ele aqui. Não poderia estar mais do que de acordo  com o recorte que Ram faz do Retrato de um artista quando jovem. Ele é uma orientação para captar mais claramente o que significa ler um sintoma, um sintagma que pareceria ser compreendido facilmente à primeira vista. E, ainda assim, envolve toda uma complexidade.

Ler um sintoma implica, em primeiro lugar, um esforço para nos livrarmos daquilo que convencionalmente chamamos de ler, ou seja, da lógica do sentido implícita na leitura em termos amplos, isto que pensamos compreender quando ouvimos, ou quando lemos em sentido estrito, algum texto, por exemplo. Esperamos sempre que a retroação nos conduza, graças ao ponto capitonê, a uma significação que nos permita continuar deslizando na cadeia significante. Talvez fosse interessante pontuar a diferença que existe entre a cadeia significante e a cadeia borromeana: não vou me demorar nisso, certamente precisaria de muito mais páginas. Mas pode ser uma referência conceitual para poder pensar o deslocamento de uma leitura sujeita às leis da linguagem, sob a lógica da tríade edipiana, para uma tríade RSI, em que a diferença se estabeleceria entre uma interpretação, na qual se escuta o sentido, para uma leitura do fora do sentido.

É fundamental diferenciar escuta e leitura. Se quiséssemos esquematizar isso, reduzi-lo, poderíamos dizer que, do lado da escuta enquanto tal, estamos sempre mais ou menos sujeitos ao território do sentido, enquanto, do lado da leitura, nos encontramos com a letra, com a materialidade da letra, o que implica uma diluição do campo do sentido em favor de uma cifra de gozo. Também podemos pensá-lo a partir do binômio som-sentido, o som como tal implica, em sua materialidade, uma detenção da significação, um basta, já que não é um ponto capitonê, que não permite a extensão da metonímia. E esse ponto de parada está ancorado não no Outro da linguagem, mas no corpo como Outro. Ram Mandil (2024, s/p) explica-o claramente nessa vicissitude de Stephen com seus amigos, quando, destacando o impacto do encontro com o desejo do Outro, ele nos conta como esse encontro “com a inconsistência do Outro, com o enigma da falta no Outro”, o levou a ignorar o significado da palavra, passando da “pergunta sobre a resposta correta” para uma “suposta relação entre esta palavra e o corpo”, pela materialidade do som da palavra Kiss.

Vemos, nessa sequência, como o corpo de Stephen é o local de um acontecimento, em busca da resposta correta, a resposta correta seria aquela que fizesse sentido, com o riso compartilhado, ao qual Stephen não tem acesso. E precisa primeiro desfazer todo o aparato da linguagem, toda a confusão da pergunta sobre se era certo ou não beijar sua mãe, para concluir:

Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! […]” (JOYCE, 1916/1998, p. 18).

Talvez tudo se reduza a esse bift!, a essa sonoridade que pode ter a possibilidade de nos fazer apreender a articulação e, ao mesmo tempo, a disjunção entre o corpo e a palavra.

Ora, a experiência de uma análise não está isenta do fato de que o tratamento do sintoma deve passar pela dialética do desejo e pela própria interpretação que a máquina do inconsciente produz. Passar por aí é o que permite, ao fim e ao cabo, desalojar os impasses da verdade que a decifração nos oferece. É a condição que nos guia para um mais além, onde reside em última instância o trauma fundamental da língua, a fixidez de um gozo irredutível e a opacidade, radicalmente indecifrável, de um real que não tem nem causa nem lei a que se submeter.

E, sim, esse é o território por onde transitam, sempre de forma diferente, os finais da análise.

Responsáveis pela entrevista: Ana Helena Souza, Giselle Moreira, Lilany Pacheco, Maria Rita Guimarães e Patrícia Ribeiro
Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Márcia Mezêncio

Referências
JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. (Trabalho original publicado em 1916).
LACAN, J. Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 22, p. 6-15, ago. 1998. (Trabalho original proferido em 1977).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
MANDIL, R. O ato de leitura em psicanálise. Almanaque On-line, n. 32, 2024.
VENTURA, O. Quando um sonho desperta Um corpo. 6 + Um – Papers 06, p. 10-13, 2020. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_006-pt.pdf. Acesso em: 24 nov. 2023.

[1] Depois que ele saiu, Wells veio até Stephen e lhe disse:
Diga-nos uma coisa, Dedalus, você beija sua mãe antes de ir deitar?
Stephen respondeu:
Beijo, sim.
Wells virou-se para os demais camaradas e disse:
Escutem uma coisa, este camarada aqui está dizendo que beija a mãe dele todas as noites antes   de ir deitar.
Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela direção, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:
Não beijo nada.
Wells disse:
Escutem vocês, este camarada aqui está dizendo que não beija a mãe dele antes de ir deitar.
Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu todo seu corpo quente e confuso, de súbito. Qual era a resposta certa para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. […] Fora Wells que o empurrara para dentro da valeta na véspera […] Agir assim era uma coisa má; todos os camaradas tinham dito. E como a água estava fria e escorregadia! […]
O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro […]. Tentava ainda pensar qual seria a resposta certa. Era direito beijar sua mãe, ou não era direito beijar sua mãe? Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e então a mãe abaixava o seu rosto. Isso é que era beijar. Sua mãe punha os lábios na sua face; os lábios dela eram moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift! porque as pessoas faziam isso assim com seus rostos.
(JOYCE, 1916/1998, p. 17-18.)



O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação

O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação1

Lilany Pacheco
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

lilanypacheco@gmail.com

 

Resumo: O presente texto aborda o objeto voz e seu estatuto para a psicanálise para pensar as contribuições que ela pode oferecer sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos.

Palavras-chave: objeto voz; racismo; psicanálise.

THE MUTE MICROPHONE AND THE SANDAL-WEARING PSYCHOANALYST: INTERVENTION IN THE PSYCHOANALYSIS AND SEGREGATION RESEARCH GROUP

Abstract: This text addresses the object voice and its status for psychoanalysis in order to consider the contributions it can offer about interpreting cases involving racist discourses and their consequences for black individuals. Additionally, it reflects on how psychoanalysts can further its contributions against racism and its discourses.

Keywords: object voice; racism; psychoanalysis.

Agradeço o convite para estar aqui, hoje, nesta atividade do Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, neste momento de concluir os trabalhos sobre o tema “Racismo e sistema de justiça: como a Psicanálise contribui nesse debate? e, quem sabe, abrir perspectivas para investigações futuras.

Na atividade de abertura das atividades do Ateliê em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito – que girou em torno da seguinte pergunta: “Ser vítima ou réu, na sua relação com o sistema de justiça, faz diferença na forma de tratamento destinada a esses sujeitos?” –, dois aspectos me chamaram a atenção, além daquele já destacado durante o semestre: a fala de Jésus Santiago, de que é preciso furar o discurso do mestre, e duas pontuações do convidado Felipe Mata Machado, procurador do Distrito Federal, uma sobre o não dito e, outra, quando ele se refere às vestes dos juízes, indicando que, em um julgamento, os juízes não podem estar de chinelo. Me recordo de ter pensado: então eles não acreditam no semblante? Em conversas posteriores, Jésus Santiago lembrou que, no escrito sobre a criminologia, Lacan ressalta exatamente o contrário: os profissionais do Direito são ciosos do semblante, levam a sério demais o parecer ser. E eu pensei: o analista pode estar de chinelo!

Outra fala que se transformou para mim em um dizer foi quando alguém mencionou que os policiais agora têm microfone em seus uniformes, acionados enquanto fazem as suas abordagens. Alessandro Pereira dos Santos ponderou que isso não resolve, pois o microfone do preto, ao sofrer as abordagens desiguais, é mudo.

 Ainda sobre o microfone, eu gostaria de trazer uma vinheta, um pequeno trecho de um podcast com Lázaro Ramos ao qual assisti faz tempo e que me veio à lembrança quando Alessandro mencionou o microfone. Lázaro enfatiza que não é por escolha que ele trabalha constantemente para furar o discurso racista:

O racista não quer ver que é racista. Então é preciso gritar, como em Ó pai ó, fazer um filme histórico etc. O racismo é tão complexo que não vai ser uma linguagem só que vai resolver, a variação contempla mais ouvidos. […] Não adoecer. É para sobreviver, senão o racismo vai matar a gente. Diante do discurso racista o sujeito é forçado a se definir por apenas um adjetivo. Ninguém é obrigado a se definir por um único adjetivo. […] Ter o microfone na mão é útil.[2]

Além desse podcast, me ocorreu ainda a excelente entrevista de Viola Davis e Pedro Bial, quando ela esteve no Brasil para lançamento d#_edn1e seu livro autobiográfico que, diga-se de passagem, foi premiado como melhor audiobook. Ao responder a Bial sobre a experiência de fazer o filme A Mulher Rei, ela relata que, ao pisar nas terras africanas onde as filmagens foram feitas, aquele lugar, com aquelas características, fez com que retornasse para ela a voz de uma tia-avó e, para fazer a personagem, ela se apropriou daquela voz, e saiu daí a potência de seu personagem.

É na direção da voz e seu estatuto para a psicanálise que eu tenho pensado sobre quais contribuições a psicanálise pode nos oferecer, ou nos ensinar, sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos, como destacou Sérgio de Mattos em sua intervenção.

Então, o microfone, as múltiplas linguagens, as múltiplas vozes nos lembrando que as pulsões são, no corpo, o eco de um dizer. E, para que isso ressoe, para que isso consoe, é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é, afirmará Lacan (1975-76/2007, p. 19) ao abordar o uso lógico do sinthoma, em seu Seminário 23, e ele o é “Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não se pode tapar, se cerrar, se fechar”. É por esse viés que, no corpo, responde ao que Lacan chamou de voz. Lacan lembra ainda que é embaraçoso, que não há apenas o ouvido, e que o olhar lhe faz uma eminente concorrência. E eu, de minha parte, hoje, quero colocar a voz no páreo.

Ao seguir a pista de Joyce, Lacan pensa que é preciso resolver alguma coisa em relação ao que Jacques Aubert (1976/2007) isola ao comentar Joyce: a função da fonação e como esta se relaciona ao significante. Esse tema perpassa todo o Seminário 23. Para Lacan, o que permanece em suspenso é saber a partir de que momento a significância, ao ser escrita, distingue-se dos simples efeitos de fonação, uma vez que é a fonação que transmite a função própria do nome, do nome próprio. Isso é exemplar nos testemunhos de passe quando neles verificamos, o modo como um sujeito abandona seu nome de gozo e pode pronunciar-se a partir do nome construído como efeito de uma análise. Todos lembramos muito bem do passe de uma colega que o pai a chamava de “mundana”, e ela mostra que a sua análise a fez “cidadã do mundo”.

Mudemos de lugar, sugere Lacan, e isso supõe ou implica que escolhamos falar a língua que efetivamente falamos. Imaginamos que escolhemos, ele ironiza, e o que resolve, no final das contas, é que criamos essa língua. Isso não está reservado às frases que a língua cria. Criamos uma língua à medida em que a todo instante damos sentido, uma “mãozinha”, e sem isso a língua não seria viva: “Ela é viva porque a criamos a cada instante. É por isso que não há inconsciente coletivo. Há apenas inconscientes particulares, na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala” (LACAN, 1975-76/2007, p. 129).

“Cada ato de fala, golpe de força de um inconsciente particular, não é coletivização do inconsciente?”, é a pergunta de Lacan (1975-76/2007, p. 132) nesse ponto do Seminário 23 citado acima. Penso que essa pergunta é fundamental quando nos interessa o modo pelo qual a psicanálise pode pensar e operar no tocante a questões que dizem respeito à coletividade.

Se cada ato de fala é um golpe de força de um inconsciente particular, está completamente claro que cada ato de fala pode esperar ser um dizer. E o dizer chega a isso sobre o qual há teoria, a teoria que é o suporte de toda espécie de revolução, a saber, uma teoria da contradição. Podemos dizer muitas coisas diferentes, cada uma sendo, na ocasião, contraditória. E não é porque há desarrumação contraditória que nada tenha saído daí como constituinte de uma realidade. Ou, como escreveu Jacques Aubert (1976/2007, p. 167) na apresentação do Seminário de Lacan, “uma dimensão da fala, e os tipos de instauração de lugares onde isso fala”.

Caminhei até aqui com Lacan para encontrar o texto de Mônica Campos Silva (2024), escrito para comentar o trabalho primoroso de Alessandro, e também publicado neste número de Almanaque. Considerei que o texto de Mônica ordenou muito bem as atividades do semestre, todas primorosas, como todos nós que acompanhamos as atividades desse semestre pudemos testemunhar. Lembrando ainda da apresentação de Fídias Siqueira e do comentário de Sérgio de Mattos.

Eu já pensava em usar o texto de Marie-Hélène Brousse (2004) sobre a devastação, intitulado “Uma dificuldade na análise das mulheres”, para expor como tenho pensado e tentado articular as contribuições da psicanálise no enfrentamento do discurso racista e de outros discursos segregacionistas que reinam em nossa cultura.

Me chamou atenção que começássemos a beirar a questão da devastação e do feminino, para além da questão das mulheres e do feminismo, que também é discurso, para tratar a segregação, uma vez que a segregação é, primeiramente, segregação do inconsciente e mortificação do sujeito, como escreveu Mônica. Interessa-nos, portanto, pensar a fala e a linguagem que antecedem os discursos lá onde reina o vivo da vida!

Me chama atenção no texto de Brousse a afirmação de que a devastação se articula à maneira singular pela qual a linguagem emergiu para um sujeito, nos confins da inscrição simbólica. E ela acrescenta: as linguagens têm algo em comum, às vezes elas guardam a lembrança de uma primeira linguagem, diferente daquela que o falasser acaba falando, e há aí uma radicalidade, considerando que todo sujeito falou uma primeira linguagem, mesmo que seja no mesmo idioma que todos falam. Essa emergência pode se dar sob a forma de um insulto, no qual o sujeito é convocado a portar um nome cujo conteúdo de propriedade se resume apenas ao ato de proferir. E ela diz mais: ele é apenas o que se nomeia “fulano”, e só o é quando é nomeado, conduzindo o sujeito ao ser de objeto que ele foi para o Outro – negação da falta a ser e intimação a ser um objeto rebotalho.

Nessa linha, Mônica aproxima os efeitos do racismo em um sujeito pelo que Miller diz da devastação como uma pilhagem, um saque, um roubo, que se estende a tudo, sem limites, conduzindo a uma fixidez dada. A invasão de gozo decorrente da abertura do sujeito ao Outro que o devasta tem como efeito a sua queda como um “corpo desfalicizado”. Tomemos como exemplo o que verificamos nas mulheres que são difamadas. No que concerne à devastação causada pelos discursos racistas, basta lembrarmos dos corpos negros estendidos no chão ou de tantas outras formas nas quais o negro resta apenas como um corpo e sua cor, sem que o sujeito e sua diferença possam ser incluídos na linguagem. Como disse Lázaro Ramos, ninguém é ou quer ser definido por um único adjetivo.

Sigo um pouco mais com Mônica (2024, s/p), por sua vez seguindo Miller em “A salvação pelos dejetos”:

Quando o Outro designa o corpo social, se posso dizer, seu gozo, o gozo desse Outro, mantém-se como uma abstração. Um abstrato, uma ficção que se apoia no número, na massa. […] Entretanto, pode ser que o gozo do Outro social ganhe corpo, que o gozo consiga ser identificado no lugar do Outro, que ele não se evapore, que não se torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa. É quando, pode-se dizer, ou subentender, ou ser persuadido de que “o Outro goza de mim”.

Ainda com Mônica (2024, s/p): “É preciso lembrar que o racismo tende a reabsorver a tensão entre o Um e o Outro, com desprezo pela diferença”. Nesse ponto, importa indicar que, quando não há Outro, há o Um que itera e não cessa de escrever o insulto para o negro, ponto sobre o qual o discurso analítico precisa operar e restituir o furo entre o Um e Outro para que, a partir do furo, o negro possa rasurar o nome que o devasta, esvaziar-se do gozo do Outro que o invade e escrever o seu nome próprio.

Como conduzir o que, embora atravesse a lógica civilizatória, se encontra fora da letra?, pergunta Mônica. Ou, como escreveu Laurent (2023, p. 70) em sua apresentação do Seminário A lógica da fantasia, como o saber psicanalítico pode passar ao real? Em A terceira, Lacan (1974/2023, p. 24) esclarece: “O real não é o mundo e não há nenhuma esperança de alcançar o real por meio da representação. […] o real não é universal […]”, e, portanto, para tratá-lo não é possível adotar o “para todos”, como a ciência o faz.

Laurent (2022), em “A interpretação: da escuta ao escrito”, esclarece que, se o significante é causa de gozo, devemos nos perguntar como esse gozo pode escapar ao autoerotismo do corpo e ainda responder à jaculação interpretativa. Laurent lembra da pergunta de Lacan sobre se a psicanálise não é um autismo a dois, ponto que nos interessa bastante no contexto das investigações deste Ateliê, uma vez que precisamos nos entregar a uma tarefa de forçar o autismo, e poderemos fazê-lo pela via de lalíngua, aquela que o sujeito falou antes de falar qualquer idioma, como Brousse abordou. Laurent acrescenta: lalíngua é uma tarefa comum – e podem se valer dela aqueles que descem do salto e usam chinelos, eu diria. O gozo é autoerótico, mas a língua não é um assunto privado. Ela é comum e pode ser usada quando o analista pode fazer outra coisa que não o sentido. Lacan (1972-73/1985) explora, a partir do Seminário 20, os recursos que, em um forçamento poético, podem permitir ao analista fazer ressoar outra coisa que não o sentido, fora das regras da linguagem, algo que evoque o gozo da coisa comum. Isso implica o analista, seu corpo, e um batimento que engendre com sua presença real a substância significante em sua materialidade e as eventualidades a partir das quais o “ser” ganha “existência”, sendo relançado na cadeia significante com um outro nome, um novo significante com poder de voz – uma fonação, um microfone.

 

Fídias e Alessandro e todos que acompanharam as discussões talvez possam situar nos “casos” que apresentaram se, em algum momento, verificaram em suas intervenções algo que operou nessa direção, aproximando-nos dos dizeres de Freud, cada vez mais próximo do último ensino de Lacan, de que somente a palavra pode curar o que ela própria causou.


 

Referências
AUBERT, J. Apresentação no Seminário de Jacques Lacan. In: LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 166-185. (Trabalho original proferido em 1976).
BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise das mulheres: a devastação da relação com a mãe. Latusa: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio), n. 9, p. 203-218, 2004.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LAURENT, É. A interpretação: da escuta ao escritoCorreio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, 2022.
LAURENT, É. Acontecimentos políticos de corpo. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 90, 2023.
SILVA, M. C. Será que o racismo mata? Almanaque On-line, n. 32, 2024.

[1] Texto apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Racismo do IPSM-MG em 25/10/2023, como comentário à apresentação de Mônica Campos nesta mesma data.
[2] Cf.: https://youtu.be/2GYVuoILBo4?si=Las6pr06vJXCV2sD



EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 32

A Revista Almanaque On-line é uma publicação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSMMG.

Periodicidade: Semestral

ISSN: 1982-5617

A reprodução ou a citação de fragmentos dos artigos é autorizada, desde que acompanhada das devidas referências ao autor, título, publicação (site Almanaque On-line), data da publicação e URL (link para a página).

A reprodução total do artigo é autorizada para fins exclusivos de pesquisa e ensino, desde que o autor seja previamente consultado, e desde que mantidas na reprodução as referências ao autor, título do artigo, título da publicação (site Almanaque On-line), data da publicação e URL (link para a página).

Contato:
ipsmminas@gmail.com

Sede:
Avenida Afonso Pena, 2770 – 2o. andar, Funcionários.
CEP: 30130-007
Telefone: (31) 3275-3873  /  (31) 97510-4560

Diretoria do Instituto:

Diretora geral : Lilany Pacheco
Diretora Secretária- Tesoureira: Luciana Silviano Brandão Lopes
Diretora de Publicações: Patrícia Teixeira Ribeiro
Diretora de Seção Clínica: Cristiana Pittella
Diretora de Ensino: Paula Ramos Pimenta

Equipe de Publicação:

Beatriz Espírito Santo
Daniela Gontijo de Souza
Giselle Moreira
Jônatas Casséte
Kátia Mariás
Letícia Mello
Lilany Pacheco
Luciana Romagnolli
Marcela de Souza
Márcia Bandeira
Maria Rita Guimarães
Patrícia T. Ribeiro- Coordenadora
Rodrigo Almeida
Tereza Facury

Conselho do IPSM:

Fernando Casula Ribeiro Pereira – Presidente
Ana Maria Costa S. Lopes – Secretária
Andréa Eulálio Ferreira
Andréa Maria Guisoli Mendonça
Cláudia Maria Generoso
Kátia de Olveira Mariás
Marcelo Quintão e Silva

Revisora:
Sílvia Barbosa

Web Designer:
Bruno Senna – sennabruno@gmail.com




Editorial – ALMANAQUE Nº32

Editorial

Patrícia Ribeiro

 

 

 

Queremos analistas que sejam analisantes, analisantes perpétuos a arrancar incessantemente farrapos de saber do sujeito suposto saber que não existe, farrapos tanto mais preciosos quanto mais raros e singulares.  Pois a via analítica não é a de um grande número, nem a da estatística, mas a do singular e do paradigma, do singular elevado a paradigma.
(Jacques-Alain Miller, em Discurso de encerramento da Jornada da École de la Cause freudienne, em 2008)

 Esta edição da Almanaque On-line traz um desdobramento do número anterior, quando o foco da pesquisa do IPSM-MG, em consonância com os temas do XIV Congresso da AMP e da 26ª Jornada da EBP-MG, foi o de explorar o aforismo lacaniano “todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Tal loucura se define pela crença em um Outro que, ainda que não exista, protege o ser falante daquilo que é insuportável no real.

No presente número, tomamos como norte investigar o que seria uma clínica orientada não pelo delírio, mas pelo real, definido por Lacan como sem lei e sem sentido.  Um breve recorte do artigo que aqui publicamos na rubrica Trilhamentos, de Esthela Solano-Suárez, permite esclarecer o que a distingue de outras formas de tratamento pela palavra. Podemos dizer que a experiência analítica que inclui o real se orienta pelo que acontece “na disjunção entre o dito e o dizer. […] Esta disjunção convoca a distância entre o que é da ordem do meio-dizer da verdade e do real do gozo que ex-siste ao dito”. E Esthela Solano-Suarez prossegue: “o real em jogo na psicanálise não é o real da ciência.  […] Ele é suscetível de ser isolado como o fora-de-sentido do gozo do sintoma uma vez que este foi despido de seu aparelho de ficções fantasmáticas, a título de verdade mentirosa”. Em uma outra perspectiva sobre o real em jogo em uma análise, encontramos nessa mesma rubrica o texto da Aula Inaugural do IPSM-MG proferida por Sérgio de Mattos, que tomou como referência o tema do XI ENAPOL: “Começar a analisar-se”. Seu texto permite localizar a presença dessa orientação para o real ao afirmar, que desde o início, o analista deve estar atento “ao que levou o sujeito a procurar uma análise, cernir esse ponto de sofrimento, de embaraço, o que não anda bem”, destacando a importância de discriminar os “elementos que naquela circunstância específica evocaram traumas, repetições e algo insuportável que desencadeou o desejo de tratar”. Ram Mandil, em O ato de leitura em psicanálise, indaga sobre a possibilidade do ato analítico hoje, época “dos protocolos e das diretrizes terapêuticas, em que a ação ideal consiste em reduzir, ao mínimo, toda possibilidade de imprevisto”. Sua pesquisa o conduziu a identificar no caso Dora, texto freudiano seminal sobre a histeria, como a leitura feita por Freud acerca dos sintomas dessa paciente permitiu ao autor entrever a dupla dimensão do sintoma – “a que é apreendida pelo sentido e a que permanece opaca a toda significação”. Ram Mandil  evoca ainda passagens do ensino de Lacan sobre o ato de leitura no discurso psicanalítico amparadas na obra de Joyce, nas quais se pode desvelar a “presença do vazio da significação” no que concerne à polifonia dos sentidos dos sintomas. Do mesmo modo, em um diálogo presente em O retrato do artista quando jovem entre Stephen Dedalus e seus colegas, Mandil ressalta que dele se pode elucidar o que seria o ato de ler um sintoma sob a perspectiva do “encontro material entre um significante e o corpo, o próprio choque da linguagem sobre o corpo”.

Em Encontros, Hervé Castanet nos adverte sobre a onipresença em nossa época de uma episteme própria às neurociências, a qual nomeou tese neuro. Segundo esclarece, ela promove uma redução absoluta do mental ao neuronal visando apagar a possibilidade de existência do saber inconsciente, postulado princeps freudiano. Castanet constata ainda que essa tese se desdobra em uma outra, que a confirma – a tese dico –, isolada por J.A-Miller, que afirma: “Eu sou o que eu digo”. Este novo – e falso – cogito centrado unicamente no eu e abolindo a enunciação não é incompatível, sublinha Castanet, com “Eu sou isso que os traços escrevem em meu cérebro.” Em total oposição, o cogito lacaniano, que o autor aqui desenvolve – “Penso, logo go(z)sou” –, reafirma a existência de um real irrevogável, ou seja, “um saber impossível de ser reintegrado pelo sujeito”, que em nada se assemelha ao real biológico. Ainda nessa rubrica, contamos com um inestimável caso clínico apresentado por Jacqueline Dhéret, que coloca questões que atravessam a nossa época. Dhéret discorre sobre a análise “silenciosa” de uma menina de sete anos que não sabe como fazer com seu pai transexual. Ao longo das sessões, ela constrói soluções que a ajudam a suportar um real até então insuportável, que fez vacilar os semblantes nos quais se apoiava.

Oscar Ventura, nosso entrevistado, a quem agradecemos pela generosidade em contribuir com esta edição, sublinha a importância dos sonhos na prática clínica no que concerne à “possibilidade que oferecem para produzir una retificação na economia de gozo”. Ele evoca o célebre sonho da Injeção de Irma para demarcar sua ligação a um real que se encarna para Freud no mistério do corpo, “em um furo que aspira toda a pretensão de sentido que se lhe queira outorgar”. Ventura nos ajuda ainda a esclarecer a diferença entre o ato de escutar e ler em psicanálise, o primeiro estando mais próximo do campo do sentido, enquanto a leitura apontaria para o encontro com a materialidade da letra, isto é, para uma cifra de gozo não capturada na rede das representações.

Na rubrica Prelúdios, publicamos alguns dos textos apresentados no último semestre das Lições Introdutórias à Psicanálise. A referência desta vez foram os textos basilares de Freud sobre as psicoses. Assim, em Neurose e psicose, Luciana Silviano Brandão discorre sobre a distinção traçada por Freud entre essas estruturas para, em seguida, abordar o mecanismo próprio a cada uma delas frente ao conflito entre as instâncias psíquicas por ele postuladas: o Eu, o Isso e o Supereu. A autora sublinha a importante questão que Freud aí se coloca: qual seria o dispositivo análogo ao do recalcamento, pelo qual o Eu se desliga do mundo exterior, na psicose? Diante dessa pergunta, ela elucida o conceito freudiano de Verwerfgung, bem como o de forclusão, nova designação que lhe é dada por Lacan vinculada à metáfora paterna. Elisa Alvarenga nos apresenta a sua leitura do Manuscrito H, texto freudiano do final do século XIX, percorrendo esse momento da elaboração freudiana da concepção do aparelho psíquico. Nesse texto, como a autora sublinha, Freud resgata a importância da sexualidade nas neuroses e nas psicoses, assim como lança algumas das bases da primeira tópica freudiana (ics-pcs-cs) e da teoria da libido. A perda da realidade na neurose e na psicose é o texto abordado por Kátia Mariás, no qual Freud expõe suas elaborações sobre o modo de constituição do campo da realidade e o modo como se dá a sua perda, relacionando-as  ainda às contribuições de Lacan sobre a perda do objeto a nas neuroses e a ausência dessa subtração nas psicoses. Finalmente, Lucia Mello comenta o texto Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica, ressaltando as modificações conceituais decorrentes dessa leitura freudiana que, de acordo com a autora, abrange a clínica do sujeito, a fantasia fundamental, a pulsão e a fixação. A autora destaca como, nesse relato clínico, Freud extrai consequências da contradição que pode advir entre a teoria, decorrente de sua  pesquisa, e o  ato de dar a palavra ao paciente.

Iniciamos a rubrica  Incursões com o texto de Marcelo Quintão, no qual ele apresenta algumas das contribuições de Fabián Naparstek referentes à clínica das toxicomanias, partindo de um percurso histórico sobre a presença das drogas na civilização para, finalmente, destacar, valendo-se de uma vinheta clínica, que a relação de um  falasser com o objeto droga é sempre singular, assim como pode ser diferente também em determinados momentos de sua própria história. Mônica Campos, em Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo, parte de um caso clínico apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação e de imediato responde positivamente à pergunta formulada em seu título. Sua leitura do caso adverte também para as práticas racistas que promovem uma mortificação subjetiva para concluir destacando a importância de uma posição radical do psicanalista em apostar nas soluções singulares de cada sujeito que apontem para a vida, fazendo assim um contraponto aos discursos segregativos. Lilany Pacheco, por sua vez, apresenta uma instigante leitura da pesquisa realizada no semestre pelo Ateliê, focalizando especialmente a contribuição de Mônica Campos, sob a baliza da interrogação “quais as contribuições que a psicanálise pode oferecer ou ensinar sobre a leitura de  casos que implicam em discursos racistas e suas consequências para o preto”. A autora propõe também pensar como o psicanalista pode avançar nas suas reflexões contra o racismo e as demais formas de segregação. Araceli Teixidó traz à discussão o tema da eutanásia a partir das mudanças efetivadas na Espanha, país onde vive, a partir da lei de regulamentação dessa prática. Araceli focaliza especialmente a relevância e a delicadeza envolvidas no ato do profissional de saúde ao responder a essa demanda, salientando que ele  não pode se ater a um mero cumprimento de um protocolo. Em O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo, Ana Sanders faz uma interessante leitura do caso de uma criança atendida por Carolina Koretsky e publicado no livro La Conversación Clínica. Matéo, é um menino que não conta com  o recurso  do sintoma e da fantasia como defesa ao real ligado à sua existência e a um desejo de morte que o assolava. É a partir de um sonho relatado em análise, no qual irrompe um acontecimento de corpo, que “esse sujeito pode deslocar o desejo de morte materno” permitindo-lhe “uma possível solução para a cessão do gozo mortífero” pela via do delírio. Por sua vez, Paula Pimenta tece um valioso comentário sobre o texto de Ana Sanders, realçando a função do sonho na psicose, nos brindando também com sua leitura esclarecedora sobre o sintagma lacaniano, acontecimento de corpo.

Por fim, na rubrica De uma nova geração, Silvia Coutinho Lima interroga, a partir do atual cenário marcado pelos excessos em relação aos corpos – intervenções estéticas, medicamentosas, cirurgias plásticas etc. –, sobre o que impele os sujeitos para essas escolhas, e  embora saiba que a amarração de cada corpo é tecida de forma radicalmente singular para cada falasser, a autora pergunta se esse investimento exacerbado no corpo poderia apontar para um modo de defesa. Ana Paula Menezes de Souza, em seu texto,  discute a interpretação para, a partir desse conceito fundamental da psicanálise, explorar as suas ressonâncias no ensino de Lacan entre o inconsciente estruturado como uma linguagem e o inconsciente real, “quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido”. Dessa forma, a autora busca situar o lugar do analista em um tempo em que “a lógica hegemônica de uma psicoeducação prescritiva” se faz cada vez mais atuante.

Chegando ao final deste número – que também marca a conclusão do  trabalho desta Diretoria –, nós, da equipe editorial da revista Almanaque On-line, desejamos a todos uma boa leitura e que os textos aqui reunidos possam conduzir às múltiplas ressonâncias advindas de uma clínica psicanalítica que inclui o real, que considera as inscrições contingentes nos corpos, habitados que são por uma estranha alteridade que excede as elucubrações de sentido.

Uma última palavra, ainda: gostaríamos de agradecer imensamente ao artista Sérgio Machado pela generosidade com que nos cedeu as belas imagens que ilustram este número.

E, claro, queremos fazer também um especial agradecimento a todas as colegas da diretoria do IPSM-MG pelo apoio sempre presente, aos colegas da equipe editorial responsáveis por colocar “no ar” mais esta edição da Almanaque On-line, assim como a todos que deram a sua preciosa contribuição como participantes da produção da revista desde 2020. Nosso muito obrigado!

 

Sérgio Machado, nascido em Belo Horizonte, estudou na Escola Guignard entre 1981 e 1985, onde conviveu com grandes desenhistas e escultores. Sua formação foi com o desenho, mas ele sempre se interessou pelo objeto, sua construção, seu volume. Assim, o artista desenvolveu uma forma de interação entre desenho e objeto, escolhendo a madeira reaproveitada como matéria-prima principal. Suas cadeiras, pequenas esculturas em madeira e os tubarões de tamanhos variados são marcas desse trabalho. Sérgio já realizou várias exposições ao longo de sua carreira e participou de feiras nacionais e internacionais. Atualmente, o artista desenvolve um trabalho com pedras. São pinturas, desenhos e esculturas que surgem a partir do estudo e da observação do mineral e de suas formas, volume, texturas, impressões e histórias. Essa temática, como Sérgio observa, está muito ligada ao período geológico mais recente, o antropoceno, caracterizado pelo impacto da presença do homem na terra.

https://www.instagram.com/sergiomachadoarte/




O lugar do analista na interpretação

O lugar do analista na interpretação

Ana Paula Menezes de Souza
Graduada em Psicologia (UFMG)

Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM/MG
psi.anamenezes@gmail.com

 

Resumo: Entre discursos e terapias vigentes que se alinham a ideais normativos do “eu consciente de si”, do “controle de emoções” e de outros imperativos contemporâneos, perguntamo-nos no presente texto pelo lugar radicalmente distinto ocupado pelo analista em relação à interpretação, tomada a partir da ruptura que propõe em relação às lógicas intersubjetiva e dialógica, tão presentes na atualidade. Nesse sentido, tentaremos discutir o conceito de interpretação, visando explorar as ressonâncias que incidem sobre ele na medida em que transitamos, no ensino de Lacan, entre o inconsciente estruturado como uma linguagem e o inconsciente que se faz presente quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido. Apostamos que pensar o lugar do analista no que toca a intepretação nesses tempos é subverter a lógica hegemônica de uma psicoeducação prescritiva cada vez mais presente.

Palavras-chave: inconsciente transferencial; inconsciente real; analista; intepretação.

THE PSYCHOANALYST’S PLACE IN INTERPRETATION

Abstract: Between current discourses and therapies aligned with normative ideals of the “self-conscious self”, “control of emotions” and other contemporary imperatives, we ask ourselves in this text about the radically different place occupied by the psychoanalyst in relation to interpretation, taken as a starting from the rupture it proposes in relation to intersubjective and dialogical logics, so present today. In this direction, we will try to discuss the concept of interpretation aiming to explore the resonances that affect it as we move, in Lacan’s teaching, between the unconscious structured as a language and the unconscious that is present when the space of a lapse has no impact of meaning. Our hypothesis is that the function of the psychoanalyst when it comes to interpretation in these times subvert the hegemonic logic of an increasingly present prescriptive psychoeducation.

Keywords: transferential unconscious; real unconscious; psychoanalyst; interpretation.

 

 

 

 

Quem é este si/consigo (soi), este si que sabe que isso não tem nem pé nem cabeça, nem sentido, nem interpretação? (MILLER, 2009, p. 15)

Na atualidade, somos confrontados de forma massiva com terapias que se alinham a noções como as de um “eu consciente de si”, de “controle de emoções” e de outros ideais que se centram na pretensão da reeducação de comportamentos. Esses imperativos, aliados ao discurso capitalista, lançam sobre a relação “terapeuta-cliente”, como é nomeada, lógicas que se remetem à intersubjetividade e à dialogicidade, sustentadas pela crença em uma comunicação inequívoca: ao ensinar, se aprende; ao escutar, se entende.

Em outra via, radicalmente distinta, recolhemos desde Freud as reverberações que o descentramento inconsciente provoca e que é fundante de uma ruptura, na releitura de Lacan, entre o ser e o pensamento: “Ali onde penso não me reconheço, não sou – é o inconsciente. Ali onde sou, é mais do que evidente que me perco (LACAN, 1969-1970/1992, p. 96). Tomamos, neste artigo, essa inversão que o inconsciente promove para pensar o lugar do analista quando está em questão a interpretação, sua “tática” (LACAN, 1958/1998). Quais seriam os efeitos sobre a noção de interpretação quando tomamos a modificação da noção de inconsciente presente ao longo da obra de Lacan, isto é, nos termos de Miller (2009), de um inconsciente transferencial ao inconsciente real? Nesse deslocamento, como podemos situar o lugar do analista? Tentaremos tocar essas questões impulsionados pela aposta no caráter subversivo da interpretação e do discurso analítico em relação ao discurso do atual tempo histórico, permeado por terapias que se propõem a, de forma normativa, “psicoeducar.”

 Inconsciente e interpretação: estruturalismo e além

O termo “inconsciente”, elevado a conceito por Freud, foi posteriormente tomado por Lacan, em seu Seminário 11, como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Enquanto termo presente desde a criação da psicanálise, ele sofreu alterações já nesse período inicial, especialmente se considerarmos as modificações que incidiram sobre a teoria em 1920, com o texto “Além do princípio de prazer”. Nesse trabalho, Freud (1920/2006) se confronta de modo mais direto com a dimensão do inconsciente que resta intraduzível e que se apresenta por sua insistência como compulsão à repetição. Estão ali presentes coordenadas fundamentais ao conceito de gozo – posteriormente elaborado por Lacan – e, ainda, a uma leitura do inconsciente lido além das contenções simbólicas, que encontrará desenvolvimentos persistentes ao longo de todo o ensino lacaniano, especialmente em sua última década.

Antes desse derradeiro momento, contudo, observamos outras características nos momentos prévios do ensino de Lacan. A década de 1950, por exemplo, foi especialmente marcada pela influência do estruturalismo. Sob essa perspectiva, o inconsciente é lido como estruturado como uma linguagem, o que quer dizer, em outras palavras, que ele opera como um sistema do qual se decantam os mesmos elementos da linguagem, como o significante e o significado (MILLER, 2012). Nos termos de Miller (2009), podemos pensar essa leitura sobre o inconsciente em sua dimensão transferencial, diante da qual nos remetemos à ligação entre S1 e S2 que constituem as cadeias significantes. Nesse sistema, há de forma central a dimensão do endereçamento, de algo a ser decifrado e que vai ser lançado à figura do analista, tomado na posição de sujeito suposto saber.

No que se refere à interpretação, Miller (2012, p. 5) dirá que, sob essas coordenadas estruturalistas, a interpretação não constituiria “um problema”, estaria remetida de maneira direta às operações com o significante: “A questão é saber qual significante deve ser acrescentado, trazido, injetado pelo interlocutor-analista, para provocar um efeito de sentido”. Esse lugar do analista e da interpretação parecem dar continuidade a uma posição colocada por Freud (1896/1996) desde sua “Carta 52”, texto em que o inconsciente é situado como uma escrita a partir da qual o que se inscreve deve não ser somente lido, mas traduzido, decifrado. Há desde esse princípio a dimensão de um endereçamento que convoca uma posição presente do analista: “pela transferência […] tornamos presente, mobilizamos e lemos o inconsciente” (MILLER, 2009, p. 5).

De modo interessante, contudo, Laurent (2021, p. 176) nomeia o inconsciente, tal como estabelecido por Freud, como uma “ilusão estrutural”, apontando para os limites dessa operação tradutiva que convocaria uma leitura do analista a partir da transferência, conforme trazido anteriormente. A partir disso, perguntamo-nos então: o que há para além dessa ilusão? E, nesse além, onde se situa o analista? Entendemos caminhar com essas questões em direção à noção de inconsciente real: “Associamos, eventualmente, à injunção do analista. Mas, aqui, onde ele está? Não o encontramos. Só o encontramos quando nos pomos a prestar atenção. E, de fato, nesse momento, há sentido e há interpretação” (MILLER, 2009, p. 6).

O inconsciente real, de modo distinto ao inconsciente transferencial, coloca em cena a exterioridade do sujeito suposto saber e da máquina significante, evidenciando a dimensão que lalíngua convoca da materialidade da linguagem, alheia ao sentido. Miller (2009) situará o inconsciente real como homólogo ao traumatismo, como um limite que não convoca sentido ou transferência, mas uma centralidade do corpo como aparelho de gozo: goza-se à revelia do sentido.

Esses dois conceitos formulados por Miller – inconsciente transferencial e inconsciente real – interessam-nos na medida em que tentamos percorrer desde uma interpretação-tradução, que se associa ao sentido e ao sujeito suposto saber, até uma interpretação-corte, ligada à “matéria sonora equívoca” (LAURENT, 2022, s/p), que se afasta do sentido, oferecendo outros contornos à interpretação.

Como afirma Laurent (2022, s/p).

Ao introduzir essa modalidade que rompe com a associação livre da fala, ao estabelecer um certo isto não quer dizer nada, a interpretação que passa pela fala passa para o lado da escrita, única capaz de se encarregar do furo do sentido e do impossível.

De uma à outra, entendemos partir da interpretação que joga com o sentido, referida à estrutura da linguagem, em direção a um hiato que se remete mais aos efeitos de sentido real que “dispensa[m] o imaginário da significação” (LAURENT, 2022, s/p). Estamos, nesta última, mais distantes da linguagem e mais próximos de lalíngua.

Nesse terreno, Miller (2012, p. 16) dirá que, no que diz respeito à lalíngua, o fenômeno essencial que ela convoca remete não ao sentido, mas ao gozo: “e o que se pode fazer com a interpretação quando se trata de apparola, quando é o gozo que fala? Interpretar a verdade, certamente. Interpretar o gozo!”.

 O lugar do analista

No texto “A interpretação pelo avesso”, Miller (1996, p. 96) afirma:

Fazer ressoar, fazer alusão, subentender, silenciar, fazer oráculo, citar, fazer enigma, meio-dizer, revelar – quem faz isso? Quem o faz melhor? Quem maneja essa retórica desde nascença, enquanto você se esforça por aprender os rudimentos dela? Quem? – a não ser o próprio inconsciente.

Ainda no referido texto, Miller (1996), recuperando Lacan, situará a interpretação junto ao conceito de inconsciente, estabelecendo que a interpretação é primordialmente operação do inconsciente, cabendo à interpretação analítica um segundo tempo.

Partindo desse ponto, localizamos uma presença do analista que não toma o inconsciente como uma linguagem-objeto a ser decifrada por uma metalinguagem, que seria a interpretação (MILLER, 2009), mas a situa de modo correlato a essas próprias operações. Há aí a subversão que o discurso analítico promove. Desse ponto de vista, estabelecemos para a interpretação um lugar próprio, não sendo ela pedagógica, didática, sugestiva ou explicativa, imperativa (SIQUEIRA; GORSKI, 2018).

Se, no começo do ensino lacaniano, a interpretação analítica consistia na ideia de fazer revelar uma verdade oculta do sujeito do inconsciente, com o passar dos anos, e uma permeação mais presente do conceito de gozo, avança-se em direção ao falasser, entendendo a interpretação cada vez mais como ferramenta de perturbar a defesa ao “tentar tocar esse real do corpo que se goza” (SEYNHAEVE, 2021, s/p). Nesse sentido, o próprio inconsciente transferencial poderia ser tomado como uma defesa contra o gozo fora do sentido:

o ponto de vista do sinthoma consiste em pensar o inconsciente a partir do gozo. Pois bem, isso tem consequências para a prática, especialmente para a prática da interpretação. A interpretação não é apenas a decifração de um saber, é fazer ver, é elucidar a natureza de defesa do inconsciente” (MILLER apud SEYNHAEVE, 2021, s/p).

A interpretação que visa perturbar a defesa, pois, mobiliza o corpo e convoca do analista “o tom, a voz, o sotaque. Até o gesto e o olhar” (MILLER apud SEYNHAEVE, 2021, s/p). De Seynhaeve (2020) extraímos o testemunho de Bernard Porcheret, que sintetiza esse outro lugar da interpretação:

No caminho em direção à porta de saída, eu tiro meu casaco do cabide. Silêncio, nenhum barulho de maçaneta para ir chamar o analisante seguinte. Viro-me, o analista, contingência da interpretação, neste dia, está vestido com um terno escuro […]. Na penumbra do corredor, atrás da porta da sala de espera, ele fica de frente para a parede, congelado, imitando o agente funerário […]. Na rua, a alguns metros de distância, leve, eu rio. Um dizer surgiu: fôlego. […]. A interpretação fez cair o significante mestre agente funerário, sob o qual eu estava esmagado. Imitando-o, em silêncio e sem olhar, o analista me separa dele. (PORCHERET apud SEYNHAEVE, 2020, s/p)

O analista perturba o silêncio com sua interpretação.


Referências
FREUD, S. Carta 52. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1996. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 2006. (Trabalho original publicado em 1920).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original publicado em 1958).
LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Curinga, n. 50, 2021.
LAURENT, É. A intepretação: da escuta ao escrito. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, 2022.
MILLER, J.-A. A interpretação pelo avesso. Opção Lacaniana, n. 15, p. 96-99, 1996.
MILLER, J.-A. Primeira lição: o inconsciente real. In: Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
MILLER, J.-A. O monólogo da apparola. Opção Lacaniana On-line, ano 3, n. 9, p. 1-25, nov., 2012.
SEYNHAEVE, B. Não sem os corpos. Almanaque On-line, v. 14, n. 27, ago. 2021. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/bernard-seynhaeve. Acesso em: 01 out. 2023.
SIQUEIRA, E.; GORSKI, G. Inconsciente e interpretação: momentos-chave em Freud e Lacan. 2018. Disponível em: https://ebp.org.br/nordeste/inconsciente-e-interpretacao-momentos-chave-em-freud-e-lacan/. Acesso em: 01 out. 23.



Corpos (des) amarrados

Corpos (des) amarrados

Silvia Coutinho Souza Lima
Psicanalista
Ex-aluna do Curso de Psicanálise do IPSM/MG
silviacslpsi@gmail.com

Resumo: Interroga-se, neste artigo, o que faz o sujeito eleger a via das intervenções estéticas no corpo de maneira radical e ininterrupta. A autora traz possíveis elementos que podem contribuir para esse modo de vida e cita a história de uma influenciadora digital que é um exemplo para pensar qual corpo estaria aí em jogo.

Palavras-chave: corpo; intervenções estéticas; excesso.

(UN) TIED BODIES

Abstract: In this article, the question is raised about what leads individuals to choose the path of radical and uninterrupted aesthetic interventions on the body. The author presents possible elements that may contribute to this lifestyle and cites the story of a digital influencer as an example to contemplate which body might be at stake.

 Keywords: body; aesthetics interventions; excess.

 

 

Circulando em um shopping center, notei a instalação de uma clínica de estética. Na entrada, observo a seguinte pergunta: “o que te incomoda hoje?” – uma interrogação que convida as pessoas a se depararem com seus incômodos no corpo e se dirigirem a esse local que faz a oferta das supostas soluções. Dessa forma, esse estabelecimento, estruturado para a venda de bens materiais ou serviços como cinema, atrações de lazer, agência de viagem e loja de câmbio, amplia a oferta em relação ao corpo, para além das vestimentas. As academias já são vistas, há muitos anos, como local de prática de exercícios e espaço de saúde. Agora, as portas são abertas para essas clínicas de estética, que instigam o olhar do sujeito para sua imagem, sua adequação em relação ao império da beleza e ofertam seus serviços enquanto as pessoas circulam nesse ambiente, já que, na lógica do mercado de consumo, não há espaço para pensar, refletir, fazer escolhas, prescindir.

Nas redes sociais, predominam imagens e vídeos curtos, denominados shorts, com explicações de demonstrações das mais variadas intervenções para se obter um corpo esculpido sem nenhuma lacuna para a vida real.  Gordura, flacidez, cicatriz, estria e celulite são vilões que precisam ser combatidos, seja através de procedimentos estéticos e cirurgias plásticas, seja através de exercícios físicos intensos ou medicamentos para emagrecer. Respostas rápidas e universais para resolver os incômodos relativos ao corpo, sem espaço para a solução do um a um, para o long way de lidar com impossível de cada corpo falante.

Outra prática que chama a atenção é o uso do phármakon da moda: Ozempic. Esse medicamento é aprovado pela Anvisa para o tratamento de diabetes tipo 2, mas está sendo amplamente utilizado para fins de emagrecimento, de maneira off-label.  A perda de peso significativa é alcançada em poucos dias a partir do estímulo da produção de insulina e a consequente diminuição de apetite. Trata-se, portanto, de uma saída radical para diminuir a fome, em vez de o sujeito se implicar com sua fome, seja ela qual for. O consumo está tão significativo que, em junho de 2023, a mídia divulgou o comunicado do fabricante sobre a provável ausência de disponibilidade do medicamento até o final do ano, devido à demanda maior do que o previsto.

O mercado de cirurgias plásticas também cresce exponencialmente. Em 2019, O Brasil foi o país com o maior número de cirurgias plásticas no mundo. No ano seguinte, o país ficou em segundo lugar, seguindo o campeão Estados Unidos. Um dado importante é que cresceu muito o uso das redes sociais para a divulgação do trabalho dos cirurgiões e do depoimento das influencers, que fazem uso dessa mídia para divulgar produtos e serviços que propõem alterações corporais.

Diante desse cenário de excessos de intervenções estéticas, medicamentosas e de cirurgias plásticas, fico com as seguintes questões: o que conduz os sujeitos para essas escolhas?; ainda que a amarração de cada corpo seja tecida de forma radicalmente singular para cada falasser, pode-se pensar em algum estatuto comum que contribua para essa via?; esse modo de vida investido de forma exacerbada no corpo aponta para uma defesa?

Lacan (1975-76/2007, p. 64), no Seminário 23, afirma que “o falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante”. Dessa forma, Lacan fala da crença desse pertencimento do corpo, do amor-próprio que estabelece fatos na mentalidade do falasser e opera no imaginário operando uma borda, um suporte. O sujeito então se apoia nessa ilusão da unidade do corpo e cria suas representações, seja sobre sua imagem ou sobre mundo.

Outro aspecto importante para se pensar o estatuto do corpo refere-se às zonas erógenas, que estão abertas no organismo e permitem a integração da imagem do corpo e do corpo fragmentado. Assim, as experiências de gozo marcadas na boca, ânus, falo, ouvidos e olhos atuam como grampos, objetos a que ancoram a relação do sujeito com o corpo. Brousse (2014, p. 10) comenta que “os objetos a são objetos que, quando estão inseridos no vaso, que é a nossa imagem do corpo, florescem, mas quando estão fora dela, provocam angústia ou horror”. A autora aponta o lugar da beleza na relação do sujeito com o corpo. Os objetos a, localizados na singularidade da imagem do sujeito, possuem um valor fálico, e o belo opera como suporte para integrá-los e não se reduzirem ao caos do organismo.

Interessante pensar então que a ilusão da unidade, a apropriação, o movimento da busca pela beleza são fundamentais para que o sujeito contorne sua imagem corporal e tenha uma consistência para imprimir suas experiências de gozo e uma borda para se relacionar com outros corpos. A questão norteadora aqui é o que faz com que esse ponto, que é necessário para fazer um véu ao real do corpo, tome o sujeito de tal forma que ele faz uma tentativa de se organizar a partir das constantes alterações no corpo.

E o que pensar sobre os corpos nos tempos contemporâneos? Tempo do saber científico, em que as palavras da família, da religião e da tradição – que ofertavam ideais, significantes, ancoragem e olhar para esses corpos – não operam mais? Brousse (2014, p. 13) faz um paralelo do avanço científico com o avanço da angústia, da substituição do Ideal do Eu para o eu ideal :

“existe uma espécie de extensão do império das imagens que não são tão reguladas pelo mundo do discurso […] mas sim pelo império da escritura científica, nos processos para modificar o eu ideal, como por exemplo operar o nariz, aumentar ou diminuir os seios, modificar as rugas, etc.”.

Essa decadência do Ideal do Eu implica então na decadência da linguagem sobre o corpo e sobre o gozo do corpo, o corpo não é visto e desvela-se de maneira fragmentada, a unidade corporal não opera.

O sujeito encontraria, assim, nas ofertas das redes sociais, clínicas, academias e medicamentos, uma maneira de se apropriar desse corpo? Ficaria na busca da beleza constante como anteparo para o caos do corpo? O corpo que sai fora a todo instante, conforme postulado por Lacan, nesse cenário contemporâneo de menos consistência, sairia ainda mais, e o falasser buscaria então incessantemente essas saídas para não se deparar com sua fragmentação?

Essas intervenções constantes de modificações corporais podem ser pensadas, portanto, como uma defesa dos sujeitos diante do corpo, que é esburacado e caótico, não garante a relação sexual e é marcado por modos de gozo. Além disso, é interessante pensar na particularidade do corpo nos tempos atuais da ciência e da falha do Ideal, com o impasse na articulação do corpo que está fora com o corpo imaginário.

E como pensar o estatuto do corpo nas diferentes estruturas clínicas? Miller (2010), no texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, fala da tripla externalidade que configura a desordem na junção mais íntima do sentimento de vida e, portanto, a categoria clínica da psicose ordinária. A externalidade social, que se define pela impotência na relação com a função social, a externalidade subjetiva, marcada pela fixidez no índice de vazio, e, por fim, a externalidade corporal. Nessa última, o sujeito vive a iminência do corpo se desfazer e inventa laços artificias que possam prender seu corpo a ele mesmo. A pista fundamental para diferenciar do corpo da neurose seria a infinitização da falha presente na relação com o corpo. O neurótico tem uma estranheza com o corpo, mas está submetido à restrição, ao limite. Dessa forma, o fato de alguns sujeitos que recorrerem à prática ininterrupta de intervenções no corpo pode apontar para essa externalidade do corpo na psicose ordinária? Nesse contexto contemporâneo, o limite e a restrição citados por Miller como pontos de diferença do corpo da neurose estariam mais embaçados e menos nítidos? Essa tentativa infinita do falasser de prender seu corpo estaria presente de maneira mais expressiva?

Tive conhecimento de uma influenciadora canadense que ficou famosa nas redes sociais por suas escolhas contínuas e extremas de cirurgias plásticas. Essa mulher aponta em sua história aspectos que podem ser interrogados como paradigmáticos desses questionamentos. Ela se nomeia Mary Magdalene, tal como a personagem bíblica, que segundo ela é uma prostituta. Está com 25 anos, seu corpo é completamente tatuado e a lista de procedimentos estéticos é imensa: seios pesando 5kg cada, nádegas enormes, cintura e nariz finíssimos, lábios super grossos e a tentativa de ter a vagina mais gorda do mundo. Suas imagens causam espanto, é um exemplo muito extremo de uma falha na apropriação do corpo e na tentativa de tê-lo a partir das modificações, sem um ponto de basta. Neste ano, após uma prótese de seio explodir, ela opta por reduzir o tamanho e relata que vai retirar um pouco de seus preenchimentos estéticos. Atualmente, possui três contas de Instagram, sendo que em uma se apresenta com o nome Denise (que parece ser seu nome verdadeiro) e outra, com foco artístico, na qual expõe suas produções e utiliza a frase “a arte me salvou”. Trago aqui alguns trechos retirados e traduzidos de sua entrevista no podcast “No Jumper” em setembro de 2021:

Minha família era missionária e mudava muito, já morei em acampamento, trailer e floresta. Por isso minha personalidade é muito estranha. Não me sinto canadense, mexicana nem americana, sou apenas Mary[…] eu posso continuar crescendo, vou continuar crescendo até eu morrer. Eu não me importo, para mim não há um ponto final […] meu estilo é sempre aleatório, confuso, depende do dia […] ninguém sabe quem eu sou, tenho uma vida dupla… quando estou em casa sou como a Madre Teresa, pintando e com os meus animais, quando estou viajando estou sempre bêbada… vocês só veem esse lado […] gosto da estética das cirurgias e de parecer sexy… gosto de parecer slutty, trashy , cheap, shit […] Sou uma fake slut, não saio por aí transando […]  preciso morar lá, isolada, para descobrir quem eu sou, se eu morar aqui (referindo-se ao local da entrevista, Los Angeles) tenho medo de me perder […] para mim é como cortar o cabelo (falando sobre as cirurgias), tenho dores na coluna mas acostumei… Eu gosto e não preciso que ninguém entenda… sou lógica, é muito simples, faço porque adoro e posso pagar… se eu não gostar mais é só tirar… não é tão sério, as pessoas complicam demais… apenas faça o que você quer […] sou apenas Mary e eu faço que a Mary quer fazer.

Mary relata que é a única filha mulher e tem três irmãos mais velhos. Sua família era missionária, muito religiosa e extremamente rígida. Fala que esse contexto contribuiu para ela se rebelar. Iniciou com as modificações aos 21 anos, época em que trabalhava como stripper e acompanhante sexual. Relata que estava em uma fase depressiva e pensava que iria ficar presa a essa vida para sempre. A via das cirurgias plásticas lhe possibilitou uma nova vida e ela se diz muito grata por isso. Ao ser questionada sobre seus objetivos, responde que quer viver da sua arte (inclusive seu site atual fala que em breve sua loja de arte estará aberta), ter um santuário de animais (com os animais vivos, pois é vegetariana e tem um apego muito grande a eles) e continuar famosa na plataforma Only Fans, de conteúdo adulto. Afirma várias vezes que as pessoas a julgam pela sua imagem, mas ela é muito mais do que suas cirurgias.

Mary sinaliza assim para uma tentativa desenfreada de fazer um corpo? Suas escolhas de aumentar de maneira extrema suas zonas erógenas, como seio, bunda, boca e vagina, dizem de uma busca extrema de servir ao gozo do corpo que está mais fora do que dentro? Sua divisão entre Maria Madalena e Madre Teresa, puta e beata, pode indicar a divisão do corpo real e corpo imaginário? Morar isolada com sua arte e seus animais opera como uma tentativa de solução para sua estranheza com ela mesma e com o Outro?  Fazer “o que a Mary quer” aponta para a externalidade de um corpo que opera com o imperativo do gozo? Ao falar do seu estado depressivo antes de suas mudanças no corpo e de como esse novo momento lhe trouxe certa organização, pode-se pensar que a radicalidade das cirurgias plásticas, até certo ponto tiveram um efeito de amarrar seu corpo? Seu “corpo Mary”, que lhe define, foi a solução do momento? Seu outro corpo, que antes servia ao Outro, agora passa a servir a seu gozo? Se antes ela era uma prostituta, com o novo corpo ela suporta então parecer uma?

Pode-se pensar então que o falasser, ao operar de maneira extrema essas intervenções no corpo, seja através de medicamentos e atividades físicas, seja através de procedimentos cirúrgicos e estéticos, aponta para uma maior fragilidade no trabalho de amarração de seu corpo? Essa via da busca incessante por um corpo que supostamente seja uma unidade consistente aponta para a hipótese de corpos cada vez mais desamarrados e imersos no gozo, rechaçados da palavra e operando no gozo do Um?

Cabe ao analista escutar como cada sujeito poderá tratar da elaboração do seu corpo, que, ao lhe pertencer, em alguma medida possibilita uma borda para se situar com seu gozo e não ficar totalmente submetido aos objetos a que estão fora. A orientação da psicanálise é acompanhar esses sujeitos na invenção do saber fazer com o real, considerando as amarrações singulares da clínica borromeana. Mary quase perdeu a vida em procedimentos cirúrgicos e seguiu até quase literalmente explodir. Parece que está iniciando um novo caminho de amarrar um corpo que seja diferente, corpo da Denise que é artista e que pode expressar em suas produções os buracos, o horror, os fragmentos, o impossível.


Referências
BROUSSE, M. H. Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o estádio do espelho. Opção Lacaniana Online, ano 5, n. 15, nov. 2014. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_15/Corpos_lacanianos.pdf>. Acesso em: 04 set. 2023
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana Online – Nova série, v. 1, n. 3, nov. 2010. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf>. Acesso em 15 ago. 2023.
NO JUMPER. The Mary Magdalene Interview. 2021. Disponível em: <https://podtail.com/pt-BR/podcast/no-jumper/the-mary-magdalene-interview-plastic-surgery-world/>. Acesso em 23 out. 2023.



Cinco teses sobre as núpcias do dico e do neuro[1],[2]

Cinco teses sobre as núpcias do dico e do neuro1,2

Hervé Castanet
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause freudienne/AMP

castanet.herve@wanadoo.fr

 

Resumo: Hervé Castanet localiza alguns pressupostos epistêmicos da tese neuro, uma tese que invade hoje a discussão científica e pretende reduzir o mental ao neuronal. Por sua vez, a tese dico, isolada por J.-A. Miller, vem confirmar o procedimento neuro: “Eu sou o que eu digo”, terreno em que o ‘eu’ faz existir sua verdade. Se a tese neuro toma a materialidade cerebral como real, o autor sinaliza, em seu texto, o papel dos analistas no combate a isso: “O combate que temos que travar contra a tese neuro, como dico naturalizado, gira em torno do conceito de real”.

Palavras-chave: neurociência; psicanálise; inconsciente; real.

FIVE THESES ON THE NUPTIALS OF THE DICO AND THE NEURO

Abstract: Hervé Castanet locates some epistemic assumptions of the “neuro thesis”, a thesis that invades scientific discussion today and aims to reduce the mental to the neuronal. In turn, the “dico thesis”, isolated by J.-A. Miller, confirms the neuro procedure: “I am what I say”, the terrain in which the ‘I’ makes its truth exist. If the “neuro thesis” takes cerebral materiality as real, the author highlights in his text the role of analysts in this fight: “The fight we have to fight against the ‘neuro thesis, as dico naturalized, revolves around the concept of real”.

Keywords: neuroscience; psychoanalysis; unconscious; real.

Tese 1

Uma tese invade hoje a episteme e pretende fazer a separação entre o que é clínico e o que não é. Orientados pela psicanálise, é necessário esfregar os olhos para perceber o que tem sido bombardeado: o cérebro é uma máquina – à maneira sofisticada de Turing – de processar informações. É o órgão no qual reside toda causalidade dita mental.

O mental aí se reduz ao neuronal, e o inconsciente, que nada tem a ver com aquele de Freud e de Lacan, pode ser aceito com a condição de que seja provido de córtex.[3] Querer enlaçar traço sináptico e traço psíquico, ainda que se referindo ao primeiro Freud, participa desse mesmo empreendimento de naturalização: o inconsciente, sim, mas não sem o neocórtex.

A tese não é nova e a frase frequentemente citada de Cabanis, datada de 1802, recupera seu lugar de bússola: “O cérebro secreta o pensamento, assim como o fígado secreta a bile”. Assim, essas velharias neomaterialistas do tempo das técnicas conquistadoras recuperariam seus direitos! A Universidade, os dispositivos hospitalares, os investimentos de pesquisa etc., deveriam se curvar aos avanços da ciência para pôr fim à teologia que, segundo essa tese, legitimaria os dispositivos da fala.

Falar? Você está brincando! A transferência? Mostre-nos os traços neuronais! Essa tese tem um nome: é a tese neuro que, em sua vontade hegemônica, se torna a tese do tudo neuro. Ela é a negação do inconsciente no sentido que lhe dá Lacan: “A novidade revelada pela psicanálise é um saber não sabido por ele mesmo” (LACAN, 1971/2011, p. 23). O dizer não sabido não o equipara ao caos – ao contrário: “O saber não-sabido de que se trata na psicanálise é um saber que efetivamente se articula, que é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1971/2011, p. 23). Lacan insiste nisso em O Sinthome:

“Sou isso que digo”.

“O inconsciente é inteiramente redutível a um saber. É o mínimo que supõe o fato de ele poder ser interpretado.” (LACAN, 1975-76/2007, p. 127).

Tese 2

A ciência dos cálculos não se ocupa de tal saber, porque alojá-lo neuronalmente revela-se vão. Para a tese neuro, esse saber não sabido é estúpido, a psicanálise é metafísica. Apenas o cérebro é verdadeiro, uma vez que se interessa pelas imagens cerebrais, em que o mental é um processo materialista: este é o reino do homem neuronal (CHANGEUX, 1983).

A tese dico, “Eu sou o que eu digo”, isolada por Jacques-Alain Miller, contrariamente ao que se poderia acreditar não se opõe à tese neuro, mas confirma o procedimento: o Eu digo equivale à verdade e cada um se torna o conhecedor de sua vida. Isso é verdade, já que Eu o digo. Desde que o cirurgião pode adequar as formas do corpo com as afirmações do Eu digo, nada mais se opõe a que o neurocirurgião, ele mesmo, intervenha na arquitetura neuronal para que cada um experimente em seu corpo e em seu pensamento isso que ele diz que é. Em tal contexto, neuro e dico não são incompatíveis. O dicionário é naturalizado: “Eu sou isso que os traços escrevem em meu cérebro”. Ficção científica? Talvez não…

Tese 3

Estaremos presentes nesse “Eu sou isso que digo”, reciclado pela tese neuro, para a produção de um novo cogito? Certamente que sim, na condição de acrescentarmos, como faz Lacan (1966/1998, p. 60) em 1966, que aí se trata de um “falso cogito” dito psicológico.

É falso porque ele “representa o eu do cogito(LACAN, 1966/1998, p. 60) que exclui a dúvida e a certeza antecipada que Descartes constrói como tensão temporal. Exclusão da escansão temporal que o exemplo dado por Lacan desse falso cogito verifica: “eu penso quando sou aquele que se veste de mulher” (LACAN, 1966/1998, p. 60), como mostram as Memórias do abade de Choisy.

Tese 4

Se existe o falso cogito, existe também o… verdadeiro.

É com este último que Lacan dialoga para subvertê-lo. Os leitores de Lacan sabem: subversão e revolução se opõem. O termo “revolução” associado à descoberta freudiana é inadequado, pois ele designa um retorno à origem. O termo “subversão” é preferível: “O que não se aceita, com ou sem revolução, é uma subversão que se produz na função, na estrutura do saber” (LACAN, 1971/2011, p. 23). Com a psicanálise, a reflexividade do “sabe-se que se sabe” perde sua base.

Em “A Terceira”, de 1974, Lacan retoma a fórmula do cogito. Um gozo sem sujeito define o ser de uma nova maneira: o ser do sujeito não deve ser buscado no pensamento, mas no gozo: “Eu sou lá onde isso goza”. O Eu é localizado lá onde há o gozo inconsciente. O cogito, subvertido pelo isso goza, assume uma nova forma: “Penso, logo Se goza” (LACAN, 1974/2022, p. 13) Criando um neologismo: Eu sou (verbo ser) + eu gozo (verbo gozar) = Eu go(z)sou.[4] Lacan (1974/2022, p. 13) acrescenta: “Isso rejeita o ‘logo’ usual, aquele que diz Eu go(z)sou. […] ‘Rejeitar’ deve ser entendido aqui como o que eu disse acerca da foraclusão – rejeitado, o go(z)sou reaparece no real”.

Qual a relação disso com a psicanálise, pergunta o cético? “Que sentido tem isso, seu go(z)sou? Exatamente o meu tema específico, o Eu [Je] da psicanálise” (LACAN, 1974/2022, p. 13). Como todo mundo, Descartes “tem um inconsciente, e é miserável” (LACAN, 1974/2022, p. 14). Assim vai o cogito do parlêtre (sujeito + o gozo): “Penso, logo go(z)sou” (LACAN, 1974/2022, p. 14).

A conjugação do verbo go(z)sar[5] escreve que existe “um saber impossível de ser reintegrado pelo sujeito” (LACAN, 1974/2022, p. 14), que seja esse o cogito próprio da psicanálise.

 Tese 5

O combate que temos que travar contra a tese neuro, como dico naturalizado gira em torno do conceito de real. Caberá a nós afirmar que o biológico não é o real, segundo a afirmação de J.-A. Miller (2018a, p. 126 -127), que acrescenta: “O real tornou-se o neuro-real; é este neuro-real que é chamado a dominar nos próximos anos” (MILLER, 2018b, p. 117).

Nesse aspecto, o real dito neuronal, apesar das inúmeras provas da sua realidade material, é uma ficção, com sua “filosofia espontânea”, segundo a expressão de Althusser (1974). É, portanto, sua ideologia do tipo truque de mágica que temos de combater, por meio da qual querem nos calar. O real do go(z)sou jamais nos deixará tranquilos… Tanto pior para os fãs do cérebro!

Tradução: Beatriz Espírito Santo
Revisão: Giselle Moreira

Referências
ALTHUSSER, L. Philosophie et philosophie spontanée des savants. Paris: Maspero, 1974.
CASTANET, H. Cinq thèses sur les noces du dico et du neuro. La Cause du désir, n. 114, p. 177-179, 2003.
CHANGEUX J.-P. L’Homme neuronal . Paris : Fayard, 1983.
LACAN, J. O Seminário sobre “A carta roubada”. In: ­Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 13-66. (Trabalho original publicado em 1966).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Saber, ignorância, verdade e gozo. In: Estou falando com as paredes: Conversas na Capela de Saint-Anne. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011, p. 9-38. (Trabalho original proferido em 1971).
LACAN, J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. (Texto original publicado em 1974).
MILLER, J.-A. Déficit ou faille. La Cause du désir, n. 98, mar. 2018a.
MILLER, J.-A. Neuro-, le nouveau réel. La Cause du désir, n. 98, mar. 2018b.

[1] Texto originalmente publicado em 2023 na revista La Cause Du Désir.
[2] Dico: abreviatura familiar de “dicionário”.
[3] No original, em francês: cortiqué.
[4] No original, em francês: Je souis. Ver nota da tradutora Teresinha Meirelles do Prado em “A Terceira”: “No original: Je pense, donc je souis. Jogo de palavras com a famosa expressão cartesiana, entre as expressões ‘je suis’ (sou) e ‘je jouis’ (gozo)” (LACAN, 1974/2022, p.13).
[5] No original, em francês: souir.



Adeline, uma garotinha reservada[1]

Adeline, uma garotinha reservada1

Jacqueline Dhéret
Psicanalista, AME da École de la Cause freudienne/AMP

E-mail: jacqueline.dheret@wanadoo.fr

Resumo: Este texto discorre sobre a análise de uma menina de sete anos, cujo pai é transexual, coloca em cena questões que atravessam a nossa época, ligadas ao que se designou como parentalidade. A criança  em seu silêncio  “não sabe como fazer com seu pai”. Ao longo das sessões, junto à analista, ela constrói soluções que a ajudam a suportar seu mal-estar.

 Palavras-chave: criança; pai transexual; parentalidade, silêncio, mal-estar.

ADELINE, A RESERVED LITTLE GIRL

Abstract: This text discusses the analysis of a seven-year-old girl, whose father is transsexual, and raises issues that permeate our time, linked to what is known as parenthood. The child in his silence “does not know what to do with his father”. Throughout the sessions, together with the analyst, she builds solutions that help her cope with her malaise.

 Keywords: child; transsexual father; parenthood; silence; malaise.

A garotinha de sete anos e meio, que recebi durante dois anos e revi novamente quando esteve em Lyon, me contou suas preocupações. Ela “não sabe como fazer” com seu pai.

Ela veio acompanhada pela mãe, que explica a situação insustentável que vem enfrentando

há vários anos. O juiz de família encarregado do divórcio dos pais planeja encaminhar o caso ao juiz da infância, porque o pai de Adeline, que se afirma transexual,vive um relacionamento com um companheiro. O juiz esteve com os pais e está reticente em permitir que a criança  frequente a casa do pai, que está disposto a continuar a ver sua filha. A criança circula entre pai e mãe e permanece calada.

A mãe de Adeline deseja, inquestionavelmente, que o pai da criança, seu ex-marido, exerça seus direitos de visita, e manifesta a sua desaprovação com o fato de que é o companheiro que fica, na maioria das vezes, responsável pelo que chamamos de parentalidade.[2] É principalmente ele que cuida da criança a cada dois finais de semana. A mãe espera que a analista possa lhe dizer o que deve ser feito por sua filha.

Rapidamente eu compreendi que não estamos num impasse de gênero:

o discurso da mãe confirma que o ex-marido, ao se dizer mulher, encontrou uma solução para antigos tormentos. Ele não lida bem com a ambiguidade dos semblantes, não se dá ao trabalho de brincar com as aparências: ele se sabe mulher. Se ele aceitava seu gênero biológico, se ele se acreditou homossexual, agora ele não duvida mais de sua identidade. Depois do nascimento da filha, ele pôde confiar a sua perplexidade e a sua desolação àquela a quem conhecia desde o final da adolescência e com quem se casou. A mãe confirma que eram próximos, “faziam tudo juntos”, até o nascimento de Adeline.

Para a justiça, é um brutal encontro com a dissociação aqui realizada entre diferença sexual e função parental. Um pai legal que subverte as leis da natureza e uma mãe que afirma que um pai, mesmo que tenha se tornado mulher, continua sendo um pai. Lembramos que não ocorreu a ninguém dizer que essa criança teria agora duas mães. O pai de Adeline, que deixou o lar conjugal há vários anos, forma um casal heterossexual estável com seu companheiro, de acordo com o que ele experimenta em seu corpo, a partir de sua imagem.

Essa situação fora da norma não é um efeito da hegemonia da ciência no mundo moderno. O recurso à cirurgia de redesignação sexual, já praticada por volta dos anos 2000, encontrou na época grande relutância. Para o pai de Adeline, os tratamentos hormonais e cirúrgicos, encontrados no exterior, permitiu-lhe combinar a imagem do seu corpo com o que se apresentava para ele, como uma evidência. Supomos que a construção dessa certeza, que não corresponde exatamente à definição psiquiátrica,[3] foi a resposta desse sujeito à impossibilidade de integrar o pênis real, devido à Verwerfung, quando ela fez irrupção na criança (LACAN, 1956-57/1995, p. 429).

Construir um vazio

Adeline está claramente tão feliz quanto preocupada com nossos encontros. A partir de um comum acordo, deixamos de lado o burburinho que agita a justiça e os agentes sociais. Eu também interrompo o gozo voyeurista dos entes próximos que se manifestam pelo telefone: apenas Adeline e sua mãe, que a acompanha, irão atravessar a porta do meu consultório. Suas idas e vindas, a espera da mãe enquanto a filha fala comigo, se encarregam do real insuportável que faz com que os semblantes vacilem: eu respeito Sua mãe convoca as responsabilidades que um pai deve assumir, mas Adeline, na sua forma de aceitar a minha presença e permanecer em silêncio, me indica que ela percebe o quanto o significante “pai” é apenas uma hipótese ligada a um passado. Se ele teve valor de verdade, esse significante não pertence à sua língua íntima. O que resta é que “ela se preocupa com seu pai”.

Essa formulação, complementada por outra, sussurrada – “Não sei como fazer…” –, silenciará o território sonoro dos saberes do Outro (MILLER, 2012). Uma vez aberto no espaço do tratamento o direito à sombra, de que nos fala G. Wajcman (2004) em seu Chroniques du regard et de l’intime, Adeline tomará o gosto pela palavra.

Que reconstrução na lingua ela vai operar?

Estamos além do Édipo, mas a criança não abandona, durante a sessão, a nomeação “meu papai”; um “papai” que ela não pode nomear assim na frente de terceiros, quando eles estão juntos.

É essa vigilância obrigatória que a menina colocará no centro dos nossos encontros e que ela questionará, com um embaraço subjetivo, se esforçando ao longo das sessões em construir pequenas soluções suportáveis.

Tomemos um exemplo: na época do Natal, ela cria uma história em quadrinhos na qual encena a festa, seus preparativos e o ambiente familiar; a refeição acontece na casa dos avós maternos, onde estão seu tio, sua tia e seu primo. Um lugar, ao lado do lugar da mãe, está vazio: “O do papai”. Mas ela o desenha, de pé, perto da poltrona. Ela o contorna com um círculo de onde sai uma flecha que aterrisa no quadrinho seguinte, ao lado de um outro personagem, o de seu companheiro: “É para mostrar que papai não está conosco, que ele passa o Natal com Paul”. Ele está, contudo, presente para sua filha, na reconstrução familiar que ela está realizando e ele é um homem. A flecha o desloca, no quadrinho seguinte, ao lado de Paul. O impossível de representar diz respeito ao ponto em que o pai se vê como uma mulher. A astuciosa construção imaginária de Adeline usa a técnica específica dos quadrinhos para indicar que o ponto de apoio aqui é Paul, com quem é normal que o pai passe o Natal, já que vivem juntos. Uma narrativa se organiza a partir do significante “companheiro”, ao qual a criança soube se ater e  se apropriar e que não é, para ela, sem valor.

Endereçar-se a Paul para se fazer ouvir pelo pai e encontrar a sua voz

 Paul tem menos mérito em cuidar de Adeline nos fins de semana do que em cuidar do “papai”. Nas sessões, a criança vai formulando gradativamente seus medos de ir à casa de seu pai quando Paul não está lá. Estar cara a cara com o pai é difícil, não tanto por causa da aparência física dele, muito próxima a de uma mulher, mas por sua forma de falar, muito loquaz, sobre sua relação com o álcool e sobre suas insônias, que a impedem de dormir. “De manhã, tenho medo de encontrá-lo no sofá diante da televisão”, disse Adeline.

Quando Paul está presente, seu pai se comporta melhor e ela fica mais tranquila porque há “menos de tudo isso”. Ele se dedica a uma comunicação a três que evita o preocupante cara a cara. Por exemplo, ele pode dizer, quando Adeline apresenta um resultado escolar: “Muito bom!”; e, em seguida, dirigindo-se ao pai da criança: “Veja, a pequena se vira muito bem em matemática”. Ele é o conciliador que se encarrega da vida cotidiana. Adeline pode se endereçar a Paul, que transmite suas falas, e essa montagem evita os excessos. Com ele é possível bater papo “com delicadeza” e gentileza. Acima de tudo, ele parece saber fazer com o “papai”

Com o tempo e sem que a analista tenha algo a dizer sobre isso, Adeline dirá à mãe que não é necessário que ela vá com tanta frequência à casa do pai. A análise afrouxou o controle de um significante mestre e a voz de Adeline tornou-se mais firme. Ela conseguirá dizer o que é possível, o que ela não quer por ser muito difícil e o que ela demanda. Por exemplo, ela quer ir à casa do pai se Paul estiver lá, não quer mais ir ao restaurante porque é obrigada a tomar cuidado para não dizer “papai” a seu pai, ela quer fazer outras coisas que tornem complicado o exercício do direito de visita do qual sua mãe não abre mão. A maneira como ela formulará essas coisas junto à mãe irá esvaziar qualquer ímpeto de envolver serviços de proteção infantil e judiciário.

Aos poucos, ela limitará a permanência na casa do pai e não dormirá mais lá de forma sistemática. Quando sua mãe se muda para outra cidade, e antes que o pai e Paul fizessem o mesmo, ela se convida para ir para a casa de uma tia-avó paterna, uma figura civilizada desse ramo da família. “Não muito, mas um pouco com papai”, o que a mãe, o pai e seu companheiro admitirão sem muitos problemas.

O impossível de nomear

 O ponto explosivo diz respeito ao pedido do pai para que a filha o chame pelo seu nome de mulher quando estiverem fora do âmbito familiar, sendo seu desejo implícito de ser chamado de “papai” apenas em determinadas circunstâncias.[4]

Adeline se opõe a esse pedido com uma recusa obstinada, mas informulável. Fora de casa, durante as chamadas telefônicas na semana, ela ignora o pai quando estão em público. Nem um olhar, nem uma palavra! A tal ponto que esse nome feminino, que indica o sexo do qual o pai assumiu a aparência, impõe sua presença nas sessões por não ser jamais pronunciado. Carregado de um excesso de sentido, ele mobiliza a vergonha, tal como um grande segredo. Faz calar e reproduz o Outro ali onde a certeza paterna faz existir A mulher. Está para além das palavras; o risco é de que alguma coisa se feche sobre esse Outro absoluto.

Como alojar este nome na língua, sem abandonar o significante “papai”?

A analista, sensível ao estilo da menina, respeita o silêncio cauteloso com o qual ela envolve as suas afirmações. Adeline tem uma maneira muito íntima de se endereçar a ela, cuidadosa, concentrada e às vezes sussurrando; uma forma de guardar as palavras, de cobri-las de silêncio, até o momento em que ela decide dizê-las, em sua fragilidade. Então, ela pode se apoiar nelas, a voz fica mais firme e a analista diz: “Sim!”.

“Falar aqui me ajuda a refletir”, disse a jovem analisante, ansiosa por inventar sua resposta para a certeza paterna.

A analista optará por intervir o mais próximo possível da língua do sujeito, do seu estilo, a ponto de dizer baixinho: “E Paul então, como ele chama o seu pai?”. Ela responde com confiança, sem qualquer constrangimento.

Colocar Betty e Paul como um casal não é do mesmo registro que colocar o pai sob a vigilância cuidadosa de Paul.

No espaço público, Betty presentifica o horror do corpo materno que Freud (1940[1922]/1996) disse que se manifesta, para além da privação, no acúmulo, na efervescência. Adeline, que está de olho no pai, diz “não” a ele, mas a presença da Coisa provoca uma aniquilação do ser vivo. A montagem que ela encontrou não se sustenta mais: em público, o significante “pai” torna-se impronunciável, e Betty aparece, em sua inquietante estranheza, como a Medusa.

Alojar Betty na língua passa por Paul e essa operação reconstrói um ponto de opacidade sobre o que é ser mulher.

Por que minha mãe me deu um pai como este?

 O desejo, como nos indica J. Lacan, parte do Outro, e essa interrrogação, que supõe para a criança um valor fálico, a faz faltante. Em decorrência da banalização do nome de Betty, Adeline apresentará uma nova questão. Nós não estamos mais no tacere[5] do início; no Outro, algo não pode ser dito, e podemos querer saber.

“Por que minha mãe me deu um pai assim?”
“Um pai assim, como?”, pergunta a analista.
“Sim. Um pai que pensa que é uma dama.”

Observamos o uso de uma linguagem refinada, do significante que coloca um véu sobre A mulher, aquela que, se existisse, permitiria que a relação se inscrevesse. “Papai acredita nisso”, essa é a loucura dele.

A questão desta vez diz respeito ao enigmático desejo da mulher na mãe. Não se trata mais aqui da palavra de amor, nem da esmagadora igualdade da regra, de quem se espera que regule o enigma através do exercício dos direitos parentais. Uma lacuna foi cavada, um vazio, que instalou uma respiração.

Adeline precisou de um tempo para resolver o que era insuportável para ela; ela se afastou um pouco do gozo mortificante, construiu um julgamento em sua língua. Uma língua feita de um prudente respeito pelo delírio do pai e uma pergunta à qual ela responderá com outra avaliação igualmente calculada: “Será que ela se enganou… quando ela se casou com meu pai?”.

Consideremos essa alegação provisória como uma forma de se afastar do significante esplêndido, aquele que diria tudo, para manter aberto o campo do desejo, graças ao apoio dado pela transferência.

Uma mulher pode se enganar. Sim, na análise podemos descobrir que o “eu não quero saber de nada” do gozo do sintoma passa pelos enganos significantes.

O personagem excepcional na família materna é o avô. Um intelectual respeitado e admirado pela filha, a qual, desde a adolescência, formava um casal com o pai de Adeline.

Os semblantes que haviam organizado o casamento os colocavam, ela e ele, protegidos da questão sexual. Estamos, sobretudo, no registro da satisfaçao dessa mulher em ser o ponto de apoio para o outro e com a aceitação de uma quase assexualidade que tinha, no entanto, permitido a chegada da criança.

E, então, um dia, eu amarei alguém…

Na aurora da adolescência, Adeline compartilhou comigo um ponto de sofrimento: quando se é uma jovem, gostamos de contar tudo para as melhores amigas. Ela não pode fazer isso.

“Nem tudo pode ser dito”, pontua a analista, “e é isso que nos permite falar…”. (silêncio)

“Um dia amarei alguém e então terei que descobrir como falar sobre isso.” (silêncio)

“Há crianças que não veem o pai com frequência porque ele está longe. Há também crianças cujo pai está morto e talvez seja difícil falar disso. Eu posso falar um pouco sobre meu papai. Em todas as famílias também se pode ter amigos. Paul e Betty, eles também podem ser amigos da família: escrevemos para eles, convidamos para as grandes ocasiões.”

Essa situação desvela o artifício sobre o qual se funda o casamento: o princípio da imutabilidade, tão caro à justiça, que nos libertava dos dados naturais, repousa sobre um ponto de eternidade. Construído por ficções jurídicas, esse postulado não diz nada sobre os corpos. Na época freudiana, tratava-se de amarrar a questão do nome, da exceção, à interdição do incesto. Hoje percebemos melhor que as leis que pareciam, por um tempo, imutáveis, baseiam-se, de fato,  sobre uma permanência que é construida simbolicamente.

Hoje, trata-se de assegurar a continuidade de outra forma, o que pode ser respondido pelo discurso analítico ao dar crédito à linguagem do sujeito, aos fundamentos ainda que incertos que lhe dão abrigo, na língua comum.

Tradução: Letícia Mello
Revisão: Tereza Facury

Referências
CHAUMONT, O. D’un corps à l’autre. Paris: Robert Laffont, 2013.
FREUD, S. A cabeça de Medusa. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996, p. 289-290. (Trabalho original publicado em 1940[1922]).
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (Trabalho original proferido em 1956-57).
MILLER, J.-A. A criança e o saber. CIEN-Digital, n. 11, jan. 2012.
WAJCMAN. G. Fenêtre: Chroniques du regard et de l´intime. Paris: Verdier, 2004.

[1] Publicado originalmente em: Brochure des textes du colloque de mai: Le désir e la loi. 2013. Disponível em: http://ccbcn.info/xv-conversacion/docs/biblio/BrochureColloqueMai.pdf. Acesso em: 01 jan. 2023.
[2] Em 1990, o termo “parentalidade” foi introduzido no vocabulário comum e tornou-se um termo referencial de ação pública. Permite “repensar” a perturbação das formas de família, mas abre também esse campo aos cognitivos-comportamentais, que agora querem acompanhar nossas vidas. Atualmente, multiplicam-se os ateliês de parentalidade que visam capacitar os pais em dificuldades, o desenvolvimento de competências parentais, etc.
[3] “Transtornos precoces de identidade de gênero”. Outros exemplos clínicos mostram que essa  certeza, assim que toma forma, é interpretada como arcaica, já presente na infância.
[4] Olivia Chaumont (2013, tradução nossa), em seu livro  D’un corps à l’autre, diz, sobre sua filha, que esta, hoje em dia uma adulta, ainda a chama de “pai”. “Para que ela se sinta confortável em público”, acrescenta Olivia, “eu fico em segundo plano”.
[5] Tacere: termo em latim que significa “ficar em silêncio”.



O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo

O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo1

Ana Sanders
Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
anasandersb@gmail.com

Resumo: A contribuição lacaniana sobre a relação entre o sonho, o trauma e o despertar, para além da representação onírica que ele faz surgir, evidencia um importante paradoxo clínico. A leitura de um sonho como acontecimento de corpo, a partir de um caso de uma criança de 8 anos, suscita questões paradigmáticas no sentido de uma clínica em direção ao real.                                                                                

 Palavras-chave: sonho; trauma; acontecimento de corpo; despertar.

 THE DETAIL HISTORIAN: ARTICULATIONS BETWEEN DREAM AND BODY EVENT

 Abstract: The lacanian contribution to take the dimension between dream, trauma and awakening, beyond the dream representation that it arises, is necessary to highlight as an important clinical paradox. The reading of a dream as a bodily event, based on a case of an 8-year-old child, raises paradigmatic questions in the sense of a clinic towards the real, of speaking in the contemporary.

Keywords: dream; trauma; bodily event; awakening.

 

 

 

Sonho e trauma

Em 1936, o filósofo judeu alemão Walter Benjamin (1936/1987), ao localizar o silêncio sintomático dos combatentes que retornaram do campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, elabora sua célebre formulação, em seu ensaio “Experiência e Pobreza”, afirmando que a arte de narrar histórias e de compartilhar experiências estaria em declínio. Diante do excesso vivenciado nas trincheiras, os combatentes voltavam mudos e empobrecidos na capacidade de transmitir, através da fala, algo dessa experiência. Tal experiência já havia sido apontada por Freud ao escrever sobre as neuroses de guerra, em 1918, as quais, diferentemente da lógica da neurose de transferência, corresponderiam a uma neurose traumática. Assim, o excesso de uma vivência pulsional não seria sem consequências para os processos psíquicos, apontando, dessa forma, o fundamento dessa neurose na fixação no acontecimento traumático.

Em 1920, como efeito da clínica com os sujeitos que voltavam da guerra, Freud (1920/2020) retoma os sonhos traumáticos em seu caráter de exceção no que concerne ao pressuposto de que todo sonho seria uma realização de um desejo e estaria, portanto, ligado ao princípio de prazer; o que ele descobre é que existem sonhos que apontam para a compulsão à repetição, ou seja, para a repetição de um desprazer. Isso porque, neles, o trabalho onírico se apresenta sob a característica de reconduzir repetidamente “o doente de volta à situação de seu acidente, no qual ele desperta com um novo susto” (Freud, 1920/2020, p. 73). Sob consequência do excesso para o aparelho psíquico ocorrido na vida em vigília, essa experiência fornece aos sonhos uma marca da repetição, ao impor a experiência traumática sem cessar, inclusive durante o sono, como uma tentativa de uma elaboração simbólica. Esse retorno, essa fixação no trauma, aproxima os sonhos da neurose traumática à dimensão do real proposta por Lacan.

Nesse sentido, há uma leitura decisiva feita por Lacan ao abordar a teoria dos sonhos em Freud que provocou uma reorientação importante para a prática clínica. No Seminário 11, Lacan (1964/1988) retoma o centro incógnito dos sonhos, o umbigo, para dizer de uma hiância essencial em um registro de real no inconsciente, que permite que o sujeito possa emergir como efeito de surpresa. No seu último ensino, Lacan (1973-74) propõe o neologismo “troumatisme” para assinalar que a irrupção do real produz, como efeito, o furo no simbólico, que aponta para o aforismo da relação sexual que não se escreve. Esse furo pode ser precipitado pelos momentos em que as vivências se fragilizam tanto no tecido social, quanto no eixo simbólico-imaginário (ou quando os semblantes que organizam a vida do sujeito se fragilizam diante de vivências de horror). Essa vivência traumática emerge nos sonhos como um a tentativa de dar conta desse real, como marca do impossível na própria linguagem. Assim, o falasser se arranja como pode ao se defender desse furo, ou seja, do real.

Assim, Lacan (1964/1985) se concentra no instante de despertar de um sonho que ocorre a partir de batidas na porta, no momento que esse pequeno ruído chega à consciência – não à percepção –, provocando um despertar. No sonho paradigmático de Freud, “Pai, não vês que estou queimando”, a leitura lacaniana destaca que não é a realidade que desperta, sendo que a prova disso é que o pai continua seu sonho e integra a realidade em sua ficção. Nesse sentido, Miller (1996, p. 105) enfatiza que “o despertar para a realidade é apenas fuga ao encontro com o real, aquilo que se anuncia no sonho quando o sujeito se aproxima, como Freud mesmo o observa, do que ele nada quer saber”. A formulação de Lacan é a de que se desperta para continuar a sonhar quando o sujeito se defronta com um ponto de horror, para continuar a dormir nas próprias fantasias, nas representações e nos discursos que tecem a trama da realidade, permitindo manter a continuidade de seu sonho (KORETZKY, 2023). Assim, na Conferência “A Terceira”, Lacan (1974/2011, p. 25) destaca sua leitura dos sonhos:

É um dos sonhos que tenho; eu tenho o direito, assim como Freud, de dar notícia de meus sonhos a vocês; contrariamente aos de Freud, os meus não são inspirados pelo desejo de dormir; é antes o desejo de despertar que me agita. Mas, enfim, isso é particular.

O historiador do detalhe

Apresento aqui o caso de Matéo, escrito por Carolina Koretsky (2020) e publicado no livro La Conversación Clínica. O acesso ao caso em sua construção sob transferência e o estilo da analista nos permitem levantar questões importantes para a discussão que se segue. A autora se serve da leitura lacaniana para pensar o sonho pela via do despertar, para além da dimensão da representação onírica, o que nos esclarece sobre o que seria uma orientação da clínica pelo real.

Matéo, de 8 anos de idade, foi acompanhado pela psicanalista por três anos. Ele é filho único e vive a maior parte do tempo com a mãe, uma vez que seu pai havia se mudado por razões de trabalho, mantendo sua presença apenas aos finais de semana. Como demanda inicial, seus pais se queixavam do baixo investimento de Matéo em relação ao saber escolar.

Após um episódio importante, a mãe, atravessada por sua angústia, procura análise para Matéo. Nesse contexto da entrevista com a mãe, ficamos sabendo que esta interpela fortemente o filho acerca de seus esquecimentos com as atividades, fazendo-o copiar cinquenta vezes em seu caderno: “não devo esquecer meu dever de casa”. Diante dessa demanda, o menino corre em direção à varanda da casa e fica bastante tempo do lado de fora. A mãe, perplexa, relatou à analista seu medo de que Matéo pulasse dali. Nessa entrevista, o relato dessa cena permite interrogar a mãe acerca de outras questões sobre o filho, inclusive sobre  um traço persecutório de Matéo ligado aos seus colegas de escola, ou sobre a percepção de um olhar “mau” ao dizer que se sentia seguido na rua.

Em suas elaborações, a mãe de Matéo recupera o acontecimento do nascimento do filho. Durante o parto, o bebê estava em risco e foi preciso fazer uma intervenção cirúrgica. Nesse ato, o médico fere o rosto de Matéo com um bisturi. A mãe diz à analista:  “Eu dei a vida a uma criança perfeita e me devolvem uma criança ferida”. Sobre as suas inquietações em relação ao choro incessante da criança, ela associa a dor pela ferida e, por fim, confessa: “Eu o teria jogado pela janela”. Em outra cena, ele, aos 4 anos, olha para a mãe e confronta algo do seu gozo, confronta o desejo materno e o enigma de sua significação: “Você vai me matar?”. A mãe, surpresa, não responde ao filho, deixando um silêncio. Matéo, por sua vez, não encontra o recurso ao sintoma e à fantasia como defesa a esse real. Diante disso, a análise de Matéo se inicia. O primeiro tempo do trabalho de análise com a psicanalista foi escandido em três eixos sintomáticos: a corrida, o “problema de hipersensibilidade” e os “ruídos”.

1) Durante as primeiras entrevistas, Matéo conta, entusiasmado,  detalhes sobre as corridas de atletismo que fazia. No entanto, em seus relatos, denunciava um ponto de sua angústia, já que, para ele, de nada adiantava ser bem colocado se não fosse o primeiro. Nesse sentido, a analista escuta nesses relatos até que ponto sua própria existência era também uma corrida contra um desejo de morte que ele carregava, mas que mantinha afastado enquanto corria, em um circuito incessante, no qual a morte pairava sobre ele. Então, como manejo da analista, a manobra possível se estreitou para afrouxar o vínculo com a exigência mortífera, enquanto era preciso respeitar o valor de solução desse sintoma.

2) Matéo apresentava sua relação difícil com os outros no ambiente da escola. Em seus relatos, era tomado por um sentimento de injustiça diante do que lhe pareciam ofensas e insultos vindos do outro. O nome encontrado pela criança para seu choro incontrolável e para a dor por estar com os outros foi: “problema de hipersensibilidade”. Assim, a analista pode permitir vacilar o Outro, diluindo as significações de suas más intenções.

3) A psicanalista pontua os “ruídos” que a criança localiza terem se iniciado aos 4 anos de idade e que se estruturavam como um fenômeno alucinatório restrito ao adormecer. Esses “ruídos” ocorrem no período em que emerge o silêncio insuportável quanto ao enigma de significação do discurso materno. Como uma solução para apaziguá-lo, ele muda de quarto para um outro mais próximo da rua e passa a dormir devido aos barulhos que abafam os seus “ruídos”. Assim, Matéo, sob transferência, pôde ir encontrando soluções transitórias para aquilo que o invadia.

Já em outro tempo de sua análise, Matéo encontra uma solução diferente da corrida infinita e essa outra solução surge a partir da história das grandes guerras, uma das paixões de seu pai. Matéo passa a colecionar tanques e carros blindados e se interessa por conhecer minuciosamente os seus modelos e seus detalhes. Com interesse destacado pela história, a criança passa a ter uma ligação mais viva com o saber. Em uma sessão, Matéo relata um sonho: “Era um campo de batalha. Eu estava com outros soldados e dei ordem para me executar! Foi estranho! Eu mesmo ordenei minha própria morte. Eu mandei executar minha morte. E então eu morria”.

Seu relato de sonho não produziu uma angústia pavorosa, nem o sono interrompido, mas ele diz que teria mudado a sua vida. Matéo conta que seu sonho lhe serve muito, já que o sentiu no seu próprio corpo. Para a analista, ele diz: “Eu sei o efeito de receber uma bala no corpo. Senti verdadeiramente no meu próprio corpo o que é morrer”. A analista nomeia esse saber como um saber impossível, mas acrescenta que esse sonho o permitiu falar em análise algo sobre esse corpo ferido (como significante da mãe com a ferida no parto e suas consequências para ela). Não se trata, nesse caso, de um saber enciclopédico, como o saber que constrói sobre as guerras, mas um saber que se apoia em um acontecimento de corpo, algo que é experimentado no corpo durante o sonho, do qual ele extrai, de forma discreta, um lugar de exceção.

Sonho como acontecimento de corpo

No caso de Matéo, é possível localizar no sonho os significantes traumáticos de seu nascimento, como as primeiras marcas vivenciadas diretamente no corpo, colocando em questão: o sonho serve para quê? O estatuto do sonho se constitui como uma formação inconsciente, ainda que não lhe seja atribuído um saber enigmático para se decifrar. Matéo faz do sonho uma produção de sua análise e pode se servir de sua função para deslocar o desejo de morte materno em sua elucubração. O sonho dá ao sujeito uma posição de exceção, uma possível solução para a cessão do gozo mortífero. Da pergunta sem resposta – “Você vai me matar?” –, que o suspende em uma posição de assujeitamento, foi possível deslocar para o que surge no sonho. Matéo pode responder à pergunta com um “mate-me”, e, assim, tenta se encarregar disso que chega pelo Outro, tomando um horizonte duplo de morte e renascimento do sujeito.

Koretzky (2020, p. 133) relata que “a criança, objeto metonímico do corpo da mãe, é o útero ferido da mãe, a testa ferida pelo bisturi. Mas no sonho, a bala que ele mesmo encomenda e que o atravessa, o torna mais vivo”. Assim, ao experimentar a morte em seu corpo, o sujeito se posiciona de modo menos mortífero para dizê-lo. As marcas deixadas por lalíngua no corpo aparecem nos sonhos, em todo tipo de tropeço e em diversas formas de dizer, como anuncia Lacan para tomar a dimensão do inconsciente pelo equívoco. Desse modo, o sonho no caso em tela pode se colocar de modo emblemático como um acontecimento de corpo.

O despertar funcionaria como uma borda tópica e temporal entre a cena do sonho e da realidade, operando como um limiar que marca um antes e um depois, para que possa anunciar: “isso aconteceu” (KORETZKY, 2023, p. 56). A formulação de que se desperta para continuar sonhando possibilita tomar o sonho pela fantasia e pela representação, no próprio tecido da realidade. Na psicose, se constata que os limites entre o sonho e a vigília parecem incertos, assim, o despertar não opera separando as cenas do sonho e da realidade, como fuga do despertar para o horror do real. Dessa forma, o sonho se coloca como “isso é tudo”, e não como se tivesse uma outra cena. Na ausência de fantasia, é o delírio que se apresenta, por isso a interpretação delirante que surge pode vir justificar o real encontrado. Como no caso apresentado, o sonho já parece fazer a interpretação em si. Percebe-se, assim, o sonho menos endereçado ao analista, em busca de sentido na interpretação sob transferência, mas sim, ao analista como testemunha.

Ao fazer um uso próprio do interesse do pai pelas grandes guerras, a elaboração de Matéo tem uma função importante que surge no sonho. Desse modo, ele pode dar lugar à consolidação de sua paixão pela história e por um saber que pode ser singular para ele, que ele nomeia “gosto pelo detalhe”. O sonho pode emergir como acontecimento, algo da ordem de uma tiquê, de uma contingência, e não de um automaton, pela repetição.

Como trazido anteriormente, se o sonho corresponde ao desejo de dormir, o caso clínico de Matéo, em cujo sonho os significantes traumáticos são deslocados, também permite que o sujeito possa continuar a “dormir” melhor. Para Matéo, o corpo afetado pelo trauma não é aquele atingido pelo bisturi, mas pela incidência da língua. Se o verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua, o trauma não deve ser apreendido aqui a partir do vivido, nem mesmo do sentido e da história. O significante não se introduz aqui como um elemento simbólico que ordena e negativiza o gozo, mas como uma “potência de desordem” num registro do real.

Desse modo, o caso foi trazido na elaboração deste trabalho para levantar a questão do despertar, proposto no último ensino de Lacan, como um paradoxo para uma orientação clínica em sua dimensão do real e que também permita apontar efeitos importantes para a clínica com crianças.


Referências
 BENJAMIN, W. O narrador. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Trabalho original publicado em 1936).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Trabalho original publicado em 1920).
KORETZKY, C. O despertar. Belo Horizonte: Ed. Autêntica. 2023.
KORETZKY, C. El historiador del detalle. In.: MILLER, J.-A. La conversación clínica. Olivos: Grama Edciones, 2020.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. 1973-1974. (Trabalho inédito).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trabalho estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN. J.  A terceira. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 62, dez. 2011. (Trabalho original publicado em 1974).
MILLER, J.-A. Despertar. In: Matemas I. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG, em 04/10/2023.



Eutanásia: entre demanda e desejo

Eutanásia: entre demanda e desejo1

Araceli Teixidó
Psicanalista, membro da Escuela Lacaniana de Psicoanálisis/AMP

Professora do Instituto do Campo Freudiano da Espanha
Coordenadora da Rede Psicanálise e Medicina
araceliteixido@gmail.com

Resumo: A nova lei de regulamentação da eutanásia na Espanha nos faz trabalhar a diferença entre demanda e desejo, bem como a relevância do ato do profissional ao dar sua resposta. Na prática, a resposta negativa tem sido considerada como objeção de consciência do médico e supõe o fim do relacionamento com o paciente. Este trabalho propõe que possa ser dada uma resposta negativa sem pressupor o fim do relacionamento com o paciente. Discute-se também a aceitação literal das demandas: quando a decisão do paciente é tida como um dado e o trabalho do médico como a verificação dos requisitos para acesso ao procedimento.

Palavras-chave: eutanásia; demanda; desejo; ato; objeção de consciência.

EUTHANASIA: BETWEEN DEMAND AND DESIRE

 Abstract: The new euthanasia regulation law in Spain prompts us to explore the distinction between demand and desire, as well as the relevance of the professional’s actions when giving their response. In practice, a negative response has been considered a conscientious objection by the physician, leading to the termination of the relationship with the patient. This study suggests that a negative response can be given without presupposing the end of the relationship with the patient. The literal acceptance of demands is also discussed: when the patient’s decision is taken as given and the doctor’s work as verifying the requirements for access to the procedure.

 Keywords: euthanasia; demand; desire; act; conscientious objection.

Introdução

 Este texto realiza-se a partir de minhas próprias elaborações, mas não seria possível sem as elaborações de outros que pesquisaram comigo, especialmente psicanalistas da ELP e da AMP, mas também médicos e outros profissionais da área da saúde que caminham conosco neste terreno incerto que é a fronteira entre a psicanálise e a medicina.

A ciência alcançou avanços que levam a vida mais além do que seria desejável, mesmo para vidas que podem não ser desejáveis. Isso abre para a decisão de ter que frear a deriva, parar o processo terapêutico, para não chegar a esses extremos em que prolongar a vida não faz sentido. Isso tem sido trabalhado pelo Estado espanhol há anos e algumas fórmulas foram alcançadas para limitar a violência terapêutica. Essas vias eram legais, porque a morte era causada pela doença, mesmo quando ocorria por recusa do paciente em receber a medicação eficaz. Tanto a eutanásia, quanto o suicídio assistido, eram puníveis. Os casos que foram regulamentados com a nova lei são aqueles em que é solicitada a intervenção de um profissional para poder morrer, sem que o paciente se encontre em estado agonizante ou terminal.

Em todos os casos, compete ao médico a decisão de aceitar ou não a demanda e avaliar se a falta de desejo é decorrente de fatores irreversíveis ou se é transitória. Para isso será necessário conversar com o paciente e decidir. No entanto, tal como foi disposto na Espanha, ao médico é solicitado apenas verificar se os requisitos estão preenchidos ou não. Nesse sentido, alguns profissionais tomam a decisão do paciente como um dado objetivo e, portanto, como uma afirmação incontestável.

A eutanásia diz respeito a um real. O médico, formado para procurar o bem do paciente no sentido de melhorar sua saúde ou ajudá-lo a enfrentar os sofrimentos que a doença ou a própria vida podem acarretar, se depara com uma demanda que sai totalmente do roteiro previsto e, mais ainda, o orienta a um ato que contradiz aquilo para o qual se formou e que orientou sua vocação. Acolher a demanda de receber a morte e ser aquele que terá que executá-la se apresenta como um real, como algo que não se pode antecipar simbólica ou imaginariamente, que pode confrontá-lo com uma experiência singular para a qual sente que não dispõe de recursos.

Historicamente, o suicídio foi rejeitado pela legislação e pela moral. Em diversos países e momentos, cometer suicídio foi condenado moralmente e penalizado legalmente. Por exemplo, um suicida poderia perder o direito a ser enterrado em terra sagrada, seu cadáver não era merecedor de cuidados ou poderia legalmente perder todos os seus bens, isto é, não seriam deixados como herança aos seus descendentes.

Embora essas penas tenham desaparecido do código legal espanhol, não desapareceu a criminalização da assistência ao suicídio. O que a legislação atual dispõe não é da legalização, mas, sim, da descriminalização do auxílio a morrer em determinados casos, que são os que a legislação indica.

Considero que essa legislação constitui, então, um avanço jurídico, mas também ético, ao suprimir o juízo moral a respeito do desejo de acabar com a própria vida. Com essa lei, se reduz o juízo moral, e o dilema ético passaria para as mãos do paciente e de seu médico.

O ato de morrer não pode ser reduzido a um procedimento burocrático. Despojar a demanda de morrer de  um juízo moral não precisa ser sinônimo de simplesmente aceitá-la porque estão preenchidos os requisitos ou porque o profissional sente empatia com o sofrimento do paciente. Aí está um dos espaços fronteiriços que exploraremos hoje. A clínica nos convoca. Por isso, será necessário observar como se considera e se trata a demanda do paciente.

Questões que definem a lei do estado espanhol

 A lei que regulamente e descriminaliza a eutanásia na Espanha, conhecida como Ley Orgánica 3/2021, foi aprovada em março de 2022 e entrou em vigor três meses depois, em junho. A eutanásia é aplicável àquelas situações em que uma pessoa manifesta vontade expressa de pôr fim à sua vida com o objetivo de evitar o “padecimento grave, crônico e incapacitante” provocado por uma “doença grave e incurável”. Um exemplo que está ao alcance de todos é o filme Mar adentro, de Alejandro Amenabar (MAR…, 2004).

Trata-se de um procedimento protocolizado que deixa uma margem de decisão ao profissional, mas que será avaliado, endossado ou não, por outros: na Catalunha, intervêm um médico consultor, e todos os casos passam por um Comitê de Garantia e Avaliação. O procedimento foi desenhado para assegurar um controle anterior à aplicação efetiva da eutanásia.

Finalmente, gostaria de destacar a questão da objeção de consciência. Como sabem, trata-se da possibilidade de não ser convocado a participar nesses casos, em razão das convicções morais contrárias à eutanásia.

 A lei não orienta a clínica nem o ato

A lei não orienta a clínica nem o ato, apenas estabelece o marco legal. Os médicos têm se esforçado em conhecer os aspectos legais, tem havido muita formação nesse âmbito, que certamente tem que ser conhecido e constitui um primeiro véu diante do real, mas sabemos que, se o mantivermos somente nesse nível, a angústia do médico pode ficar escondida sob essas questões.

Em um dos espaços convocados pelo Departamento de Saúde do Governo da Catalunha, chamou-me muito a atenção a pergunta que um médico fez ao professor: “posso me opor em um único caso?”. Perguntei-me o que seria opor-se em um único caso. O professor respondeu-lhe em termos legais. A orientação do Departamento de Saúde indica que existem outros mecanismos para recusar-se a intervir em um único caso sem que seja necessário ser objetor, como o conflito de interesses – isto é, a recusa a atuar por outros motivos, tais como a proximidade pessoal com o paciente –, ou, também, coloca-se como exemplo que o médico possa sentir-se desconfortável se considera que pode haver soluções terapêuticas.[2] Há, ali, uma confusão.

Se dizer “não” implica em ser objetor de consciência e retirar-se do caso, colocado assim implica que se faz necessário responder “sim” a todas as solicitações nas quais estejam preenchidos os requisitos, deixando o médico como mero executor da lei. Nessa operação, a demanda é reduzida a um dado objetivo, fechando o acesso ao desejo e ao possível trabalho da demanda. Essa questão me interessou porque me parece que o “não” nos permite pensar no ato do médico com mais clareza.

Minha tese principal para o trabalho de hoje é que o fato de que não se proponha que o médico possa dizer “não” e continuar vinculado ao paciente elimina a dimensão do ato de sua intervenção. Se dizer “não” significa retirar-se do caso, para que serviria o médico? Por isso, considero de máximo interesse estudar aqueles casos em que o médico efetivamente decide que não deve ser praticada a eutanásia e como ele declina a dar continuidade do tratamento com o paciente.

A objeção de consciência ou o ato de dizer não

 Dizer “sim” é um ato, mas ao apoiar a demanda do sujeito costuma ser mais fácil esquecer-se disso. Dizer “não” também é um ato, mas, ao se opor à demanda do sujeito, coloca-se em jogo com mais força a posição do profissional e a necessidade de administrar aspectos do caso que comprometem no âmbito da relação entre profissional e paciente.

Um dos limites da decisão do médico é o da lei, mas, nesse marco, a decisão lhe corresponde como agente. Estar diante de uma solicitação de eutanásia não deveria significar realizar um procedimento administrativo ou legal, não se pode reduzir a questão a apenas verificar o preenchimento dos requisitos. Foi dado a esse procedimento o nome de Prestação de Auxílio para Morrer, conferindo ao ato um caráter administrativo, como se fosse da mesma natureza a prestação do auxílio financeiro que se dá a uma pessoa desempregada. Suponho que essa denominação está de acordo com a decisão de não julgar moralmente o desejo de querer acabar com a própria vida, ignorando que qualquer outro significante escolhido também se apoiará sobre uma vertente moral, uma moral vazia própria ao capitalismo, que foraclui o gozo e deixa os sujeitos reduzidos a dados, em consonância com a ideologia autonomista. Supõe-se, assim, eliminar também a angústia do médico quando se afirma que o paciente sabe o que diz e o que quer e o médico apenas deve decidir se aceita ou não sua demanda. Felizmente, o real não se elimina, se desloca. A questão é que esse real possa ser recolhido e trabalhado em algum lugar.

O médico que se responsabiliza por seu ato escuta ou procura escutar cada demanda em sua singularidade e avalia com o paciente o pedido, podendo dizer “sim” ou “não”, ou propor outras soluções ao paciente: podem ser oferecidos cuidados paliativos, mas também pode-se adiar a conclusão oferecendo uma nova sessão, tal como os  psicanalistas.

É importante ver como declinam-se as negativas, como se chega a elas. Se o médico considera que não se deve dar continuidade ao pedido, ele irá se retirar do caso? Se ficar, qual sentido terá esse “não”? Tornar-se-á um ato?

Também tenho a impressão, pelas conversas tidas com diversos colegas, de que, quando o médico diz “não” e o paciente o aceita, o caso não entra na consideração de solicitação de eutanásia. Deveriam ser incluídos? Não sei, porque se não é incluído, não se contabiliza, mas, por outro lado, evita-se fixar algo dessa solicitação que certamente não convém fixar. A meu ver, acredito que é especialmente importante trabalhar esses casos, isto é, levá-los em consideração.

Estou prestes a iniciar um pequeno grupo de trabalho sobre esses casos com médicos e enfermeiros que participam do processo de eutanásia em Barcelona. Espero que nos sirva para aprender a partir da experiência.

O ideal da autonomia do sujeito esconde o fracasso da comunicação

 O discurso autonomista choca-se com a psicanálise de orientação lacaniana, pela qual operamos a partir do lugar daquele a quem se dirige a palavra, partindo da premissa de um sujeito não tão autônomo, pois é dependente do corpo e do Outro (FREUD, 1930 [1929]/1986, p. 66-67).

A pergunta é a matéria-prima da psicanálise. Contudo, no delírio autonomista, a palavra não se pensa dependente de um desejo, mas sim que o discurso pertence a cada sujeito e que ele tem o direito a que ninguém o intérprete. Qualquer interferência será vivida como uma intromissão paternalista.

Assim, o discurso fica desvinculado do Outro e ao médico não é dado nenhum poder de interpretar o dito. Perguntar geralmente supõe uma dúvida a respeito do juízo de quem fala, seja este o paciente ou o médico. Por isso, se o paciente disse que sente dor, não é necessário questionar: ou acredita-se nele e atua-se em consequência, prescrevendo uma analgesia, ou bem não se acredita nele e abandona-se ele na suposição de quem mente e “apenas” quer chamar a atenção.

A deriva autonomista impede uma verdadeira conversação e, portanto, impede o acesso ao desejo. Se a dor é recebida como um dado, a respeito do qual o médico dirá “verdadeiro ou falso”, elide-se toda a dimensão do gozo, esquece-se que dor é um nome do gozo e que às vezes une à vida, mesmo que seja de uma maneira ruim, pois há ali nela uma forma de elaboração.

Pensa-se uma divisão entre sofrimento físico e sofrimento psíquico – dividem-se as demandas de eutanásia entre aquelas que correspondem a doenças físicas e as de saúde mental –, sendo o físico o verdadeiro e o psíquico, o duvidoso. Esquece-se que, no ser falante, tal distinção é, em certo sentido, arbitrária. De acordo com a lei, um sofrimento físico ou um diagnóstico concreto não são motivo para aceitar a demanda da eutanásia: deve ser irreversível ou insuportável. Essas dimensões não têm sentido a não ser no domínio do falasser, como gozo. Parece-me muito importante distinguir essa dimensão na demanda de eutanásia. Não se trata do insuportável para qualquer um, mas, sim, do insuportável para um. Nem todos os pacientes com a mesma doença no mesmo estágio demandam a morte. Nunca é a mesma dor. Caso contrário, bastará, como acontece com o profissional que considere que tal sofrimento é insuportável, que aceite a demanda sem mais delongas.

Lembro-me da expressão do médico Marc Broggi (2011, p. 156) a respeito do que acontece quando se recolhe uma demanda em sua literalidade, por estar de acordo com o texto da lei. Ele diz que isso é “abandonar o paciente aos seus direitos”.

As demandas recolhem e encobrem o sofrimento e com elas pede-se uma solução. Por isso, nem sempre são claras, nem sempre são exatamente o que se pretendia dizer, inclusive quando são formuladas com clareza. Por isso é necessário questioná-las, para que possam ser ditas de uma maneira melhor.

Como pontua Hoornaert (2003, p. 96), na realidade a qualificação de insuportável não se baseia apenas na avaliação do indivíduo autônomo, mas está contaminada de paternalismo, tendo em vista que é o médico quem decide sobre o insuportável. Mas quando o médico se limita a verificar os requisitos, supõe-se que, ao dizer “sim”, nada do seu desejo está em jogo, porque a operação da medicina atual tenta eliminar da equação o desejo do médico. Por esse motivo, todo ato que não se limite a considerar exclusivamente o juízo do paciente é habitado por uma sombra de liberticídio (HOORNAERT, 2023, p. 96). Um atentado à liberdade do sujeito.

De fato, poderíamos concordar, pois qual ferramenta tem o médico não analisado para evitar sugestionar o paciente? Os psicanalistas também acreditam que o paciente deve tomar sua decisão não influenciado por nós.

É assim que na medicina as decisões dos pacientes são tidas como dados que entram em um algoritmo, e não como manifestações de dor, de medo, de angústia. Já a psicanálise considera que todos esses afetos influenciam na decisão do paciente e o deixam em uma situação de falta de autonomia e de vulnerabilidade que fazem imprescindível não o deixar sozinho no processo de decidir.

Em decorrência dessa maneira de agir, a decisão de morrer pode ser entendida como a firme decisão de morrer quando o próprio médico tem a convicção de que a dor do paciente é insuportável. A psicanálise considera quão insuportável pode ser para um sujeito, e também para o médico, suportar a dor do outro, especialmente quando se é o destinatário da demanda. A obrigação de viver bem, que determina nossa época, deixa no esquecimento que viver é difícil, que há quem não consiga fazê-lo e que é condenado a não ser mais do que um resto se não lhe for permitido falar bem. A obrigação de viver bem dá as costas à obrigação do bem dizer (LACAN, 1973/2012, p. 558) que promovemos, o que supõe deixar o sujeito sozinho com seu gozo.

Na ideologia autonomista, fazer falar, perguntar, é duvidar da palavra, é duvidar da capacidade do paciente. Paradoxalmente, isso deixa o pacienta à mercê de uma decisão que o exclui. Ao contrário, no discurso do analista, perguntar é devolver ao sujeito sua capacidade de responder e fazer-se responsável por suas palavras.

Dizer não, introduzir a conversação

 Freud (1915/1984, p. 301), com suas palavras “se quiseres suportar a vida, prepara-te para a morte”, nos encoraja a entender que a demanda de receber a morte deve ser considerada pelo real que contém em seu seio.

Leonora Troianovski, colega da ELP, me contou o caso em que uma mulher pedia a eutanásia depois da morte de sua pequena filha em um acidente. A médica disse rapidamente que não procederia essa demanda, mas, ao mesmo tempo, acolheu o real que emergia dessas palavras: a morte de um filho – como viver depois disso? Cada um deverá encontrar seu caminho, em solidão, mas acompanhado de alguém que possa acolher seu sofrimento e suas palavras. Alguém que possa esperar e dar tempo. Até que se produzam ou se reconheçam outras âncoras para a vida.

Da minha parte, assisti a um caso no qual propor a eutanásia como horizonte surgiu como remédio para acalmar o sofrimento de um paciente bem idoso em um momento de perda do controle transitório das funções corporais, à qual sucedeu uma tentativa de suicídio. Contudo, o paciente não pode dialetizar sua experiência naquele momento e passou ao ato suicida. Já no hospital, a escuta o tranquilizou, revelando as dificuldades sofridas, mas também seus laços com a vida. Não proponho sugerir a eutanásia como possibilidade futura como a melhor solução no caso de se chegar a uma situação irreversível, mas foi a que pode ser realizada naquele momento e que tranquilizou o paciente no sentido de dar-lhe um sentimento de controle, que lhe permitia continuar vivendo.

Durante esse trabalho, outro profissional interpretou esse desejo de morrer como uma demanda de morrer e já se disponibilizava a processar a solicitação de eutanásia. Não teve seguimento, mas é uma demonstração do enlouquecimento extremo que às vezes se produz na situação de uma leitura literal da passagem ao ato. Oferecer a eutanásia a uma pessoa suicida não é uma indicação a ser considerada (JOVELET, 2023). Cada vez há mais suicídios entre pessoas idosas, o que nos confronta com questões a respeito da qualidade dos nossos cuidados.

Por outro lado, e em relação à demanda de eutanásia, também deve ser considerado que tal demanda de pedir pela morte e sua aceitação podem introduzir um limite ao sofrimento que permita situar-se novamente na vida (ANSERMET, 2023, p. 91). Não é rara a proposta que alguns pacientes fazem de adiar a realização da eutanásia depois de já ter sido aprovada. Nesse caso, eles mesmo pronunciam o “não”, uma vez que já foi aprovada sua demanda. Saber que é possível ter certo controle sobre o sofrimento ajuda a suportá-lo.

A posição do médico

 Por fim, e no cerne da questão, a clínica da eutanásia também atinge o próprio médico em sua posição ética. Assim, para abordar os aspectos clínicos e éticos, aspectos que dizem respeito à relação entre profissional e paciente, no ano passado propusemos dois espaços na Rede Psicanálise e Medicina,[3] aos quais se juntaram muitos profissionais da saúde. Um primeiro espaço, em junho de 2022, no qual trabalhamos a partir de um texto de referência,[4] e uma jornada, em dezembro de 2022, a partir de uma conversa entre alguns médicos e psicanalistas que introduziram suas reflexões, dúvidas e medos a respeito dos primeiros casos recebidos.[5]

Em um desses espaços, um médico questiona-se a respeito da influência que pode haver  para o paciente se for oferecida a eutanásia como uma das possibilidades diante da situação que o acomete, pois nem todos os pacientes estão informados de que esse benefício existe na carteira de serviços.

Parece-me uma boa questão que deve ser esclarecida, como esclarece-se a incógnita nas equações matemáticas. Na demanda de eutanásia, está em jogo a questão da pergunta pelo desejo do outro. Atualmente, se pensa a vida em termos de utilidade, e muitos pacientes, ao ver chegar a fase final de sua vida, dizem para si e para nós: “não sirvo para nada”. Isso pode ter sido dito também em outras épocas, mas, no contexto atual, o paciente pode ver-se reduzido a não ser mais do que uma despesa, questão que se agrava pela falta de tempo das famílias para estarem ao seu lado.

Portanto, às vezes, o pedido de eutanásia pode ser a verificação do desejo do outro, uma pergunta a respeito sobre se, apesar da dependência, ainda se é amado. Por isso, me parece extremamente importante que não seja considerado objetor quem considera que deve dizer que não autoriza a prática da eutanásia. Não deve se ver obrigado a se retirar do caso, mas deve poder continuar para sustentar seu ato.

Para concluir, da mesma maneira que não consideraríamos o desejo de matar o outro levianamente nem como algo a ser discutido, convém não se colocar inteiramente à disposição diante da demanda de receber a morte. Hoornaet (2023, p. 99) sugere, inclusive, não aprofundar o assunto, pois se trata de uma tendência a ser contida. Ou seja, às vezes não se trata de fazer falar sobre isso, mas sim do contrário, de fazer calar.

Acontece que, na psiquiatria, o diagnóstico de incurabilidade levaria a poder praticar a eutanásia de maneira absolutamente louca. Repensar a psicose como uma posição pessoal, e não como doença, dá outra dimensão ao seu tratamento. Também dá espaço a repensar o papel do psiquiatra que, hoje, em muitos casos, está alinhado com a promessa terapêutica e pode esquecer o papel testemunhal e de acompanhamento que lhe cabe (DEWAMBRECHIES-LA SAGNA, 2018, p. 11).

Da minha parte, e considerando que minha área é a saúde física e não a saúde mental, parece-me importante que o paciente possa sentir sempre que sua demanda é acolhida por aquilo que nela circula do sofrimento, do mal-estar de viver, portanto, do gozo, e que está ligado a uma palavra. Acredito que é o que se obtém das vinhetas aqui apresentadas.

Como sempre, o trabalho que fazemos na intersecção entre a psicanálise e a medicina nos leva a questionar a respeito da função do médico. O impulso a curar tudo leva ao ponto de limite da impotência da medicina equiparada à ciência onipotente e elimina o resto que permitiria continuar trabalhando.

Na ética médica, a reflexão somente deve surgir diante dos casos também nos processos de eutanásia. Como na psicanálise, a revisão do ato deveria ser posterior. Do contrário, sustentaremos que é possível controlar o ato antes, que é possível eliminar o real da morte.

Até aqui chegam as elaborações que consegui articular para trabalhar hoje. É difícil estar à fronteira do processo de atender solicitações de eutanásia, há um real em jogo.

O incalculável está sempre presente, para o profissional, para o paciente e para sua família. Não se pode prever os efeitos que o ato terá sobre si mesmo. E me parece que é aconselhável deixar permanentemente em aberto algo a esse respeito, impedindo que se feche precipitadamente. O trabalho sobre o próprio inconsciente e sobre a clínica dos casos é o caminho.

Tradução: Victoria Carmín Musachi
Revisão: Patrícia Ribeiro

Referências
ANSERMET, F. Une mort prescrite. Mental. Revue International de Psychanalyse, n. 47, p. 89-94, 2023.
BROGGI, M.-A. Per una mort apropiada. Barcelona: Edicions 62, 2011.
DEWAMBRECHIES-LA SAGNA, C. (2018). Les choses qui importen. Em G. Briole, Comment s’orienter dans la clinique (p. 11-12). París: Le Champ Freudien Éditeur.
FREUD, S. De guerra y muerte. Temas de actualidad. In: Obras Completas. Vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 1984, p. 273-303. (Trabalho original publicado em 1915).
FREUD, S. El malestar en la cultura. In: Obras Completas. Vol. XXI. Buenos Aires: Amorrortu, 1986, p. 58-140. (Trabalho original publicado em 1930 [1929]).
HOORNAERT, G. Euthanasie pour souffrance psychique insupportable. Mental – Revue Internationale de Psychanalyse, n. 47, p. 95-103, 2023.
JOVELET, G. Mouirir au XXIe. siècle. Place du suicide et de ses équivalents chez la personne âgée. Mental, n. 47, p. 110-117, 2023.
LACAN, J. Televisión. In: Otros escritos. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 535-572. (Trabalho original proferido em 1973).
 MAR Adentro. Direção de Alejandro Amenábar. Espanha, Itália, França:  20th Century StudiosFine Line Features, 2004.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Medicina, no dia 15/09/2023.
[2] Na única nota de rodapé sobre a objeção de consciência do Comitê de Garantias e Avaliação da Catalunha. Disponível em: https://canalsalut.gencat.cat/ca/professionals/consells-comissions/comissio-garantia-avaluacio-catalunya/parers-posicionament/objeccio-consciencia-pram. Acesso em: 10 set. 2023.
[3] Red Psicoanálisis y Medicina (ICF). Cf.: https://redpsicoanalisisymedicina.org/
[4] Cf.: https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/05/Programa-Al-pie-de-la-letra-2022.pdf
[5] Cf.: https://redpsicoanalisisymedicina.org/wp-content/uploads/2022/10/PROGRAMA-6a-JORNADA-2022.pdf